Apresentação do livro Eichmann 50 anos depois. In: Marion Brehpol. (Org.). Eichmann em Jerusalém, 50 anos depois. 1ed.Curitiba: Editora da UFPR, 2013, v. 1, p. 1-12.

June 5, 2017 | Autor: André Duarte | Categoria: Hannah Arendt, Banality of Evil, Eichmann
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Apresentação

Se o sopro de ar fresco do pensamento sempre traz consigo certos perigos, pois desestabiliza crenças, concepções, ideias e ideais bem estabelecidos, sejam eles transmitidos desde longa data ou recém formados no calor da hora, sob a pressão de interesses políticos diversos e por vezes inconfessáveis, então também há que se considerar que o ato de pensar será por si mesmo subversivo e polêmico, pois capaz de revirar pelo avesso supostas certezas. E se o pensamento porventura se enfrentar com sua própria atualidade política, dedicando-se a compreendê-la e julgá-la, então seu caráter agonístico haverá de suscitar ainda maiores desconfianças e desconfortos. A obra de Arendt, dedicada ao exercício reflexivo destinado a compreender as coisas políticas de seu e de nosso tempo, distingue-se assim pela inventividade reflexionante e pelas inúmeras discussões que suscitou e continua a provocar entre seus críticos, leitores e intérpretes. Não que a autora tivesse pretendido exercer influências teóricas ou políticas sobre seus contemporâneos. Ela queria apenas compreender o que se passava a seu redor, e foi justamente nesse intento que se arriscou permanentemente no domínio do pensamento, legando-nos com sua obra o testemunho de uma coragem, de uma independência e de uma ousadia poucas vezes igualada. Se o pensar arendtiano sempre suscitou divergências e debates, muitas vezes acalorados, sua obra mais contundente a este respeito é justamente Eichmann em Jerusalém, um relato sobre a banalidade do mal, que neste ano de 2013 cumpre seu quinquagésimo aniversário de publicação. Originado de um colóquio internacional, o presente volume publicado pela editora da UFPR reúne contribuições de intelectuais que são autoridades em diferentes áreas de conhecimento das humanidades, como o direito, a história, a sociologia e a crítica da cultura, e cujos ensaios abordam a riqueza multifacetada da reflexão arendtiana sobre o julgamento e condenação de Adolph Eichmann, o burocrata responsável pela gestão meticulosa do transporte de milhões de judeus, dentre outros povos, para as chamadas fábricas da morte. Se este não foi o livro que a projetou internacionalmente, posto que no começo dos anos 60 Arendt já era uma intelectual de renome, foi certamente aquele que mais repercutiu na opinião pública internacional, excedendo em muito o interesse do universo estritamente acadêmico. O motivo é conhecido: ao contrapor-se veementemente ao espetáculo político-midiático que procurou fazer do julgamento do criminoso nazista

o teatro internacional onde se encenariam pelas câmeras de televisão as terríveis agruras das vítimas sobreviventes ao Holocausto, por um lado, e a encarnação demoníaca do mal, por outro, Arendt foi exposta a uma violenta campanha difamatória que lhe custou amizades preciosas e que fez de sua pessoa o alvo de arrivismos por parte de certos setores da comunidade judaica organizada, para os quais ela se tornou persona non grata. Cinquenta anos depois seu livro continua a suscitar ácidas discussões, que ainda parecem longe de se encerrar: proliferam ensaios, artigos, livros e filmes que se referem, de maneira positiva ou negativa, à noção de banalidade do mal, ao retrato de Eichmann traçado pela pena arendtiana como um ser humano incapaz de pensar e julgar sua conduta, bem como a assuntos relacionados ao direito internacional e à historiografia do Holocausto. Na condição de apresentador desta coletânea, gostaria de ressaltar alguns dos aspectos que me parecem mais chamativos nos estudos aqui reunidos. Celso Lafer, responsável não apenas pela introdução do pensamento arendtiano no Brasil, mas também pela promoção de suas primeiras discussões entre nós, debruça-se particularmente sobre a contribuição de Arendt para o campo jurídico. Referindo-se a recentes publicações de autores como Giorgio Agamben e Seyla Benhabib, dentre outros, Lafer aborda aspectos do relato arendtiano como a difícil questão da aplicação da justiça e o tema da preservação da memória das vítimas do Holocausto, entendida como prática narrativa que permitiria recuperar sua dignidade aviltada. Lafer também disute problemas relativos à tipificação dos crimes de genocídio, entendendo-os como uma categoria dos crimes contra a humanidade, isto é, aqueles nos quais se visa destruir de maneira sistemática e absoluta um determinado grupo humano, aspecto ressaltado por Arendt em seu próprio relato. Em sua conclusão, Lafer argumenta que as noções de mal radical e de mal banal não seriam contraditórias entre si, mas antes complementares no pensamento arendtiano. Em seu comentário à contribuição de Celso Lafer, Katya Kozicki ressalta que um dos méritos da reflexão arendtiana sobre o caso Eichmann residiu justamente na discussão do problema do juízo, da capacidade de julgar: afinal, como julgar acontecimentos sem precedentes, para os quais não dispomos de uma regra geral previamente estabelecida? Como se sabe, essa questão levou Hannah Arendt a refletir sobre as formas do juízo político e a privilegiar o juízo reflexionante de inspiração kantiana como mais apto para avaliar situações políticas sem precedentes, como

aquelas derivadas do mal totalitário. Kozicki também aborda o problema da incomensurabilidade entre o mal perpetrado pelo nazismo e os poderes jurídicos de punição legal, explorando ainda as implicações derivadas da impossibilidade de punir e de perdoar os criminosos responsáveis pela organização e implementação da solução final. Como punir crimes para os quais não pode haver perdão? Como perdoar crimes para os quais não pode haver suficiente ou adequada punição? A contribuição de Marion Brehpol aborda as relações entre testemunho, memória e a escrita da história no confronto com as fontes de que dispõe o historiador profissional. Brehpol salienta que o ‘acontecimento’ Eichmann em Jerusalem embaralha as distinções entre memória viva e relato historiográfico ao multiplicar as fontes de pesquisa, constituídas não apenas pelas muitas memórias de todos os envolvidas na questão, como também em função da multiplicidade de fontes de pesquisa que se oferecem ao historiador, as quais vão desde relatos jornalísticos até narrativas e relatos que assumem caráter ficcional, como obras literárias e cinematográficas. Parte importante de suas considerações se ampara nas reflexões de Primo Levi a respeito do instável estatuto da memória dos sobreviventes dos campos de concentração nazistas: como garantir credibilidade a memórias cujo próprio teor é irreal, posto que referidas a acontecimentos dantescos, para os quais não se apresentam quaisquer precedentes históricos e que, deste modo, mais se assemelham a pesadelos? Ademais, em situações totalitárias como a dos laboratórios da morte, nos quais as vítimas eram também implicadas na perpetração dos crimes e violências, os próprios sobreviventes se vêem às voltas com o fato mesmo de haverem sobrevivido quando milhões foram sacrificados, aspecto que faz de suas memórias a instância da lembrança de seus próprios privilégios, situação paradoxal e insuportável, posto que rouba a dignidade da rememoração. Finalmente, Brehpol também discute as implicações políticas e midiáticas decorrentes de um julgamento transmitido ao vivo pela televisão e organizado para encenar publicamente o sofrimento do povo judeu, de maneira a oferecer uma base suplementar de legitimação para o então recente Estado israelense e para a própria burocracia alemã do governo Adenauer, que ainda contava com antigos membros do regime nazista. Ao recusar-se a compactuar com os elementos dessa cena político-midiática, os quais, segundo Arendt, pervertiam a natureza mesma do julgamento, e sem ter qualquer experiência na composição de narrativas destinadas ao grande público, era quase inevitável que o relato produzido

por Arendt provocasse suspeitas, ira e má-compreensão por parte da comunidade judaica. Levando esses dados em consideração, Brehpol imagina um leitor hipotético e suas possíveis reações ao ler as reflexões arendtianas sobre a banalidade do mal e o caráter patético do próprio réu: como não ficar estarrecido em face do vivo contraste com a imagem midiática de Eichmann, descrito como um monstro demoníaco? Vera Karam de Chueiri, por sua vez, em seu comentário ao texto de Marion Brehpol, retoma a noção da banalidade do mal e a situa no contexto da reflexão arendtiana sobre o caráter inédito do fenômeno totalitário, o qual desafia nossas categorias políticas e nossos juízos morais e jurídicos, retomando, ainda, a discussão do problema das relações entre punição e perdão em Arendt e Derrida. Sergio Adorno tece interessantes relações teóricas entre as reflexões de Arendt em seu relato sobre Eichmann e algumas teses e noções que aparecem em outros textos da autora, como seu ensaio sobre a verdade e a mentira na política e suas análises em Origens do totalitarismo. Paralelamente, também reflete sobre o problema da anestesia moral diante da crueldade e do terror. O cerne de sua contribuição visa questionar se a anestesia moral, isto é, a indiferença de todos os implicados direta ou indiretamente na execução da solução final, poderia constituir um álibi que os eximiria de responsabilidade penal. Para Sergio Adorno, o centro vital do relato de Arendt não se encontraria na formulação da noção polêmica de banalidade do mal, mas em suas considerações a respeito da relação entre responsabilidade e julgamento, isto é, como aplicar a justiça em se tratando de crimes monstruosos e que se mostram como um verdadeiro desafio às medidas humanas de estabelecimento de penas? Como falar de justiça e responsabilidade em sociedades totalitárias, imersas na violência e no terror? Aos olhos de Arendt, portanto, a grande questão era a de saber como estabelecer bases jurídicas adequadas, com as quais seria possível tornar Eichmann responsável por seus atos, motivo pelo qual a autora recusou como prejudiciais todas as encenações políticas que permearam o julgamento do começo ao fim. Daí, também, seu interesse pelo próprio personagem do réu, cujos motivos e intenções teriam de vir a público para a possível caracterização de sua culpabilidade. O problema é que o resultado de tal observação foi justamente a caracterização de Eichmann como alguém incapaz de pensamento e de empatia, alguém moralmente anestesiado, incapaz de se colocar na posição do outro, neutralizando-se assim o princípio da alteridade, como observado por Norbert Elias,

mencionado por Adorno. Eis aí as características psicológicas que tipificam o homem de massa dos regimes totalitários em sua incapacidade para discernir o certo e o errado, a verdade e a mentira, traços que explicam a anestesia moral que fundamenta o abismo psicológico de homens puramente banais, meros cumpridores de seu dever, seja ele qual for. De todo modo, uma coisa é certa: se o regime não contasse com o apoio direto e o engajamento de seus simpatizantes, não teria podido levar a cabo sua política de extermínio de populações inteiras. Logo, todos aqueles que estiveram comprometidos com a execução da solução final devem ser considerados como responsáveis pelos crimes inomináveis que cometeram, justificando-se assim a legitimidade do julgamento penal. Em última instância, Arendt considera que o que se deve sempre exigir dos seres humanos é que eles sejam capazes de discernir o certo e o errado quanto à maneira de se conduzirem no mundo, mesmo que para isso devam contar apenas com sua própria força de julgamento. As reflexões propostas por Claudine Haroche incidem sobre a análise da personalidade cruel, típica dos regimes totalitários, tema que de certo modo já permeava as reflexões do ensaio anterior. No entanto, Haroche dá um passo adiante ao vislumbrar em nosso mundo pós-totalitário condições sociais favoráveis para o espraiamento daquilo que ela nomeia como personalidade ilimitada, desprovida de quaisquer referências estáveis em meio à profusão de imagens e discursos que se multiplicam na era do virtual, gerando-se assim subjetividades cindidas, insensíveis às demandas e necessidades do outro. Recorrendo às reflexões da Escola de Frankfurt, Haroche traça em um primeiro momento o perfil da personalidade autoritária, com seu rigorismo obediente, insensível ao outro e aos inferiores, bem como suas obsessões com a carreira e o sucesso próprio, por detrás dos quais se esconde o medo e horror típicos do fascista diante da diferença, do estrangeiro, do não idêntico. Frente às estratégias de autodefesa do eu institucional, característico da personalidade autoritária do fascismo, Haroche argumenta pela defesa de um eu capaz de empatia como condição de salvaguarda da civilização. Num segundo momento de seu texto, a autora discute a desestabilização das condições sociais que permitiriam a estruturação de uma subjetividade capaz de abertura para o outro, decorrente do aumento exponencial da velocidade que caracteriza as relações interhumanas na era da moderna tecnologia digital. Quando tudo acontece rápido demais não temos tempo para pensar, sentir e julgar, tendendo assim a nos tornarmos insensíveis, surdos e

cegos à presença e à própria existência dos outros, como já o haviam observado teóricos como Adorno, Horkheimer e Günther Anders. Anders, primeiro marido de Arendt, não casualmente escreveu um interessante ensaio denominado Nós, filhos de Eichmann, em que discutiu o fenômeno da obsolescência do humano no mundo contemporâneo. Para Haroche, enquanto a personalidade autoritária era rígida e monolítica, a personalidade ilimitada, característica do mundo tecnológico póstotalitário, é narcísica e fragmentada: em ambos os casos, a incapacidade para relacionar-se com o outro e reconhecê-lo em sua existência fazem dos dois tipos de subjetividade um campo fértil para o espraiamento da crueldade. O movimento frenético do mundo contemporâneo, particularmente em sua configuração neoliberal tecnológica, não dá tempo ao tempo e assim bloqueia a possibilidade do eu estabelecer uma relação consigo próprio e com os demais, fonte de nossa insensibilidade diante do mal. Para confrontar-se com estas tendências históricas, Haroche recorre finalmente à psicanálise de Winnicott, particularmente à sua teoria dos objetos transicionais, ali encontrando indicações preciosas para uma educação capaz de sensibilizar o sujeito para a existência do outro. A incapacidade de olhar, pensar, sentir e julgar, isto é, a incapacidade de colocar-se em pensamento e imaginação na posição do outro, é justamente o traço característico da personalidade de Eichamann, aspecto ressaltado pelo comentário de Christina Lopreato ao texto de Haroche. Em consonância com a teórica francesa, Lopreato também enfatiza que o automatismo e a ausência de limites, característicos de nossos tempos, acentuam o narcisismo, a insensibilidade e o déficit empático. O texto de Jacy Alves de Seixas traça paralelos entre o relato arendtiano sobre o caso Eichmann e uma obra literária contemporânea, Amphytrion, do mexicano Ignacio Padillha. Seu objetivo é refletir sobre os dispositivos de subjetivação e dessubjetivação postos em ação no mundo contemporâneo, tomando como ponto de partida a própria noção arendtiana de banalidade do mal, relativa à pura incapacidade do homem contemporâneo de pensar e julgar. É justamente essa ausência de pensamento e juízo que pode causar tantos males no mundo contemporâneo, mais do que qualquer tendência maligna que possa se enraizar no coração humano. Segundo Seixas, tudo se passa como se Eichmann não tivesse de fato morrido, mas nascesse uma vez mais dentro de cada um de nós sempre que nos tornamos insensíveis para o discernimento do certo e do errado e desvinculamos a constituição de nossa

subjetividade dos dilemas morais que nos confrontam cotidianamente. Define-se aí um processo de desumanização que faz de Eichmann todos e qualquer um, fruto de um dispositivo de desindividualização que, por sua vez, parece estar instalado no centro mesmo da novela mexicana de Padillha, na qual um personagem pode afirmar acerca de si mesmo ter sido “todos e ninguém”. Ora, esse misterioso fenômeno de dissolução das fronteiras egóicas, em vista do qual um eu pode conter muitos outros, indiscriminadamente, é exatamente o eixo que organiza e estrutura a narrativa de Padilha, comentada ao longo do texto de Jacy de Seixas. Finalmente, o último texto do livro está a cargo de Pedro Plaza Pinto, que nos oferece uma erudita e competente análise dos procedimentos narrativos empregados no filme Eichmann, de 2007, dirigido por Robert Young (divulgado no Brasil com o título A solução final). O autor disseca minuciosamente as estratégias narrativas que compõem o filme e nos mostra passo a passo a construção planejada de um Eichmann que, contrariamente ao personagem descrito por Arendt, volta a encarnar a potência demoníaca para o mal, rearticulando-se assim com a figura sádica e perversa que a acusação procurou construir durante o julgamento de Jerusalem. O autor aborda particularmente a decisão narrativa pela qual o diretor enquadra o filme ficcional pelo recurso a fontes documentais de caráter histórico, procurando assim conferir veracidade à sua construção ficcional: os créditos iniciais definem o que foi a solução final citando a Enciclopédia Britânica, ao passo em que o filme se encerra com a voz em off do investigador policial que teve acesso a Eichmann e o interrogou antes de iniciado o julgamento, ele próprio, um dos personagens centrais do filme, ao lado de Eichmann. O filme centra-se justamente nesse interrogatório, o qual não havia sido divulgado pelas câmeras de televisão que filmaram o julgamento: tudo se passa como se a ficção fosse o elemento que agora confirmará a veracidade da versão efetivamente construída pelo julgamento e que fez de Eichmann um monstro moral. Entretanto, observa Pedro Pinto, quanto mais o filme procura afastar-se do personagem descrito por Arendt, tanto mais dele se aproxima desapercebidamente, pois o que ressalta da tela de cinema é um homem insensível, incapaz de pensar e julgar, um homem banal, de sorte que, paradoxalmente, “o filme chega mais perto do livro do que gostaria”. Desse ponto de vista, pode-se considerar que o filme malogra em um de seus principais objetivos. Finalmente, o autor examina a eficácia das estratégias narrativas empregadas no filme à “dramaturgia do eu” proposta por

Strindberg e conclui que também aí o filme fracassa. O grande problema mal resolvido do filme, julga Pedro Pinto, é o fato de que ele é uma narrativa ficcional de caráter histórico, que procura conferir veracidade a acontecimentos históricos, ao mesmo tempo em que seu núcleo central desenvolve-se em torno à subjetividade e os dilemas privados do investigador policial, Disso decorre que o drama privado é legitimado pela referência didática a fatos históricos memoráveis, aspecto que promove um desagradável desencontro entre forma e conteúdo. Na perspectiva da sétima arte, ao que parece, melhor será aguardar pela estréia do novo filme de Margarethe von Trotta, Hannah Arendt, que tem em seu foco justamente a participação de Arendt no julgamento de Eichmann.

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