Apresentação no Congresso Internacional Lusófono \"Todas as Artes Todos os Nomes\" 2016: \'\'Corpetes, pulseiras e batons: Gênero e diferença na cultura punk em Portugal e no Brasil\'\'

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Corpetes, pulseiras e batons: Género e diferença na cultura punk em Portugal e no Brasil

Paula Guerra | Universidade do Porto, KISMIF Project, Portugal Gabriela Gelain | Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Grupo de Pesquisa CultPop, Brasil

1. Objetivos

O principal objetivo desta apresentação é entender a emergência da cultura jovem em Portugal e no Brasil, concretamente no que significa ser jovem hoje, sobretudo uma jovem do género mulher. Concentramo-nos na emergência desta cultura associada ao punk, uma vez que este é particularmente simbólico dos movimentos associados à liberdade, ao cosmopolitismo, à modernidade e à estética. A esta perspetiva, acrescentamos ainda uma outra especificidade: a experiência feminina, permitindo um desenvolvimento adequado destas especificidades acentudas pelas diferenças de gênero, mostrando similaridades e distâncias em relação ao trabalho do CCCS, contribuindo a uma releitura crítica de suas principais contribuições.

2. Quadro concetual

Andy Bennett faz remontar o punk ao movimento de bandas de garagem americanas dos anos 60, à cena underground nova-iorquina dos anos 70 e à cena musical de pub rock londrina.

Todas estas cenas sugerem a ideia de uma maior intimidade entre a banda e o público onde esta ética subversiva foi reavivada e posta em claro contraste com o estilo de música dominante da época, especialmente o rock progressivo, com a sua complexidade técnica e grande afastamento entre a banda e o público (Bennett, 2001: 59).

Portanto, foi dentro de um ethos igualitário e interventivo que emergiu o punk enquanto prática estética e reflexiva, defendendo – entre outras bandeiras – a igualdade de género.

A este respeito, vale a pena lembrar o movimento Riot Grrrl. Este movimento foi a maior representação do feminismo nas culturas juvenis nos EUA no final da década de 1980; as participantes deste movimento estavam desiludidas e revoltadas com a exclusão a que as mulheres eram voltadas no movimento punk, apesar do mito existente de uma igualdade de género neste movimento, ou seja, estas mulheres colocaram o punk rock numa posição pouco confortável quando expuseram as suas claras contradições internas (Downes, 2010).

Apesar de existirem mulheres desde o começo do punk, atraídas pela suposta aceitação de uma igualdade de género, o que se verificou é que a estas mulheres eram-lhes negados papéis de liderança na cena punk e quando os alcançavam eram vítimas de violência física e psicológica para os sustentar.

Portanto, a grande consequência do Riot Grrrl foi em algumas cidades americanas a “alteração nas posições subordinadas das mulheres dentro das subculturas punk, de consumidoras ou observadoras para produtoras” (Piano, 2003: 244). Julia Downes recorre mesmo a algumas palavras do Riot Grrrl Manifesto em 1991: “Riot grrrl (…) porque estamos furiosas com uma sociedade que nos diz = rapariga burra, rapariga = má, rapariga = fraca”. (Manifesto Riot Grrrl cit. por Downes, 2010: 15).

Esta “ausência das mulheres” no quadro do punk foi assim sentida como um ultraje e um dos melhores exemplos da hegemonia masculina sobre a história da cultura popular na exata medida em que a grande diferença que separa a subcultura punk das restantes é a questão da produção cultural (Reddington, 2003: 246); as subculturas anteriores eram definidas sobretudo pelos seus padrões de consumo (como o caso dos mods e hippies). Esta ausência também se fez sentir no plano da teoria. Com efeito, Angela McRobbie (1980) lançou uma crítica aos estudos subculturais por estes deixarem de lado o papel das mulheres nas subculturas com exceção de Laing (1985). Assim, os estudos subculturais veiculavam essa hegemonia masculina, perpetuando a ausência das mulheres no punk, dotando-as de invisibilidade subcultural e remetendo-as ao espaço doméstico e à condição subordinada de namoradas (Blaze, 2007: 59).

Enfim, no plano da praxis e da teoria, as Riot Grrrls propunham uma diferente forma de conceptualizar o ativismo feminino, retirando-o do focus tradicional das marchas, rallies e petições em direção às artes criativas, à realização de filmes/documentários, de fanzines, à constituição de comunidades e bandas como parte do ativismo feminino (Downes, 2007: 27).

3. Metodologia

Para concretizarmos estes objetivos, procedemos a uma análise de 10 entrevistas em profundidade realizadas a 10 mulheres que estiveram/ estão ligadas à cena punk portuguesa e que, devido à sua idade, vivenciaram os primórdios desta cena em Portugal (fins dos anos 1970 e inícios dos anos 1980).

Além disso, para visualizar o movimento riot grrrl no Brasil, foram realizadas 10 entrevistas a mulheres que estão/estiveram ligadas à cena punk riot grrrl brasileira (1995 até ao presente momento).

Entrevistadas de Portugal As entrevistadas mais novas deste conjunto de entrevistas selecionado tinham, em 1977 (ano em que surge a primeira banda punk em Portugal e em que no Reino Unido é lançado o álbum emblemático dos Sex Pistols - Never Mind the Bollocks), 10 anos, atingindo a adolescência em meados dos anos 1980.

A mais velha das entrevistadas tinha 29 anos em 1977.

Consideramos, portanto, ter um bom conjunto de testemunhos capaz de enriquecer e sustentar a nossa análise.

Entrevistadas

Ano de Idade quando nascimento ocorreu o 25 de Abril de 1974 Filipa, 67 years old, Master’s or equivalent (Level 1948 26 7), Musician, London (England) Elisabete, 60 years old, Upper Secondary 1955 19 Education (Level 3), Commercial manager, Lisbon Augusta, 57 years old, Bachelor’s or equivalent 1958 16 (Level 6), Computer Engineer, Lisbon Verónica, 55 years old, Bachelor’s or equivalent 1960 14 (Level 6), Philosopher, astrologer, musician, Lisbon Isabel, 52 years old, Master’s or equivalent (Level 1963 11 7), Teacher of Secondary Education, Barreiro Joana, 49 years old, Bachelor’s or equivalent 1966 8 (Level 6), Visual Artist, Porto Teresa, 49 years old, Upper Secondary Education 1966 8 (Level 3), Jewelry designer, urban crafts and jewelry, Oeiras Helena, 48 years old, Short-cycle tertiary 1967 7 education (Level 5), Owner of clothing store, Lisbon Luísa, 48 years old, Upper Secondary Education 1967 7 (Level 3), Market Studios, Lisbon Virgínia, 48 years old, Bachelor’s or equivalent 1967 7 (Level 6), Actress, Teacher, Lisbon

Idade quando o punk surge em Portugal e sai o álbum Never Mind the Bollocks de Sex Pistols, em 1977 29 22 19 17

14

11 11

10

10 10

Escolaridade: Trata-se de um conjunto de entrevistadas que possui pelo menos o Ensino Secundário, sendo que a maioria (6 entrevistadas) possui mesmo um curso ao nível do Ensino Superior. Quase todas as entrevistadas mais velhas possuem habilitações escolares de nível Superior. Proveniência geográfica: A maioria das entrevistadas (9 entrevistadas) é natural da Grande Lisboa e Península de Setúbal, sendo que apenas uma entrevistada é proveniente do Porto.

Estado civil: Somente uma entrevistada é casada, estando as restantes divorciadas (6 entrevistadas), solteiras (2 entrevistadas) e viúvas (1 entrevistada).

Profissão: Em termos profissionais, quase todas as entrevistadas encontram-se a trabalhar (8 entrevistadas), sobretudo em atividades do sector terciário, nomeadamente em profissões intelectuais e científicas (6 entrevistadas) ou em atividades ligadas à direção de instituições (2 entrevistadas). IN SHORT: Portanto, estas mulheres são da capital do país, das classes sociais socialmente mais valorizadas e possuem uma escolaridade elevada. Estas características são tão marcantes quanto contrastam com o resto da população portuguesa juvenil feminina dessa época.

Entrevistada Filipa, 67 years old

Bandas

Papeis desempenhados na cena punk

Roseland, The Raincoats, Ana da Silva

Música (guitarrista), Artista Plástica, Vendedora de Antiguidades

Elisabete, 60 years old

Dona de Bar, Editora de fanzine, Criadora de roupa punk, Fotografa, Namorada/ Esposa de punk

Augusta, 57 years old

Realizadora de rádio, Jornalista, Escritora, Tradutora de livros musicais, Namorada/ Esposa de punk

Verónica, 55 years old Isabel, 52 years old Joana, 49 years old

Odd Combo, Anamar

Música (vocalista), Porteira de bar, Artista Plástica, Namorada/ Esposa de punk

Ezra Pound e a Loucura, Pop Professora, Música (baterista), Artista Plástica, Criadora Dell’ Arte, Great Lesbian de roupa punk, Namorada/ Esposa de punk Show. Artista Plástica, Pintora, Designer, Namorada/ Esposa de punk

Teresa, 49 years old

Dona de Bar, Artesã, Criadora de roupa punk, Manager de banda, roller, Namorada/ Esposa de punk

Helena, 48 years old

Dona de loja de roupa

Luísa, 48 years old Virgínia, 48 years old

Fotografa, Namorada/ Esposa de punk Atriz, Namorada/ Esposa de punk

Entrevistadas do Brasil Entrevistadas: 10 mulheres entre 26 e 47 anos de idade, ainda ligadas hoje de algum modo ao Riot Grrrl no Brasil. Hodkinson (2011) diz que a expansão na longevidade das subculturas (a continuidade destas na vida adulta) é um ponto valioso para entender o salto “pós-adolescente” na vida destes adultos, criando um espaço para uma imersão duradoura na música e no estilo subcultural. Proveniência geográfica: 5 estados diferentes no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Santa Catarina)

As entrevistadas mais novas deste conjunto selecionado possuíam, em 1995 (ano em que surge o movimento Riot Grrrl no Brasil), 4 anos, atingindo a adolescência no final dos anos 90, início dos anos 2000. A mais velha das entrevistadas possuía 27 anos em 1995. Escolaridade: Trata-se de um conjunto de entrevistadas que possui ao menos o ensino secundário, sendo que a maioria (8 entrevistadas) possui ensino superior, onde 2 estão cursando o Doutorado e uma é professora universitária. Apenas 2 das entrevistadas não possuem faculdade.

Entrevistadas Brasileiras sobre Riot Grrrl

Ano de Idade quando nascimento chegou o Riot Grrrl no Brasil (1995)

Letícia, 28 anos, Jornalista e Publicitária, Rio Grande do Sul Simone, 47 anos, Professora Universitária, Doutora em Comunicação, Rio de Janeiro Marcela, 32 anos, Tecnóloga, atualmente diarista em Londres, de São Paulo Camila, 26 anos, Fotojornalista, Rio Grande do Sul

1987

8

1968

27

1983

12

1989

7

Juliana, doutoranda em Sociais, 29 anos, São Paulo

1986

8

Camila, 27 anos, designer, Santa Catarina

1988

7

Bessa, 25 anos, artesã e marceneira, Minas Gerais

1990

4

Bárbara, 27 anos, designer gráfica, Minas Gerais

1988

7

Íris, 27 anos, doutoranda em sociais, São Paulo

1988

7

Carla, 26 anos, jornalista, Rio de Janeiro

1989

7

Entrevistadas Toca algum brasileiras instrumento?

Letícia, 28 anos Simone, 47 anos Marcela, 32 anos Camila, 26 anos Juliana, 29 anos

Bandas ou fanzines Papeis desempenhados na cena Riot relacionados ao Riot Grrrl brasileira Grrrl no Brasil

Não toca, mas já teve muita vontade Já tocou em banda, mas se aposentou

Jornalista, Publicitária Professora Universitária, doutorado em Comunicação Diarista residindo em Londres. É integrante do Ladies of Helltown São Paulo Roller Derby

Sim, toca Não, mas já teve vontade Toca baixo, mas no momento não tem banda

Fotojornalista Teve a banda Dança da Vingança, Riot Grrrl de Brasília

Doutoranda em Ciências Sociais

Camila, 27 anos Toca e já teve banda

designer

Bessa, 25 anos Sim

Escritora, artesã, marceneira

Bárbara, 27 anos

Não toca mas possui banda e canta (vocalista)

banda Bertha Lutz (banda riot grrrl)

Designer gráfica

Íris, 27 anos

Sim

Fanzine Histérica

Doutoranda em Ciências Sociais

Fanzine Histérica

Jornalista, dona do blog Riot Grrrl Brasileiro “Cabeça Tédio” e dosfanzines Histérica

Toca, mas não tem Carla, 26 anos banda

4. A representação acerca da emergência do punk em Portugal

Os primeiros sinais de influência punk em Portugal são praticamente contemporâneos da sua emergência nas cenas londrina e nova-iorquina. Surgem na Lisboa dos fins dos anos 1970; e o país inteiro está ainda muito marcado pela transformação política, social e comportamental desencadeada pela revolução do 25 de abril de 1974 . A penetração do punk faz-se entre jovens bem colocados na hierarquia social e/ou bem integrados nas esferas artísticas, e com acesso fácil às novidades internacionais. E estas mulheres fazem parte desse grupo.

Não eram os típicos pais dos anos 60, mas tinha uma certa abertura, em que nos deixavam ir para o estrangeiro quando as outras pessoas criticavam. Achavam que nos íamos prostituir, ou assim, se fossemos para a Alemanha, sem os pais atrás. Mas a minha mãe foi uma pessoa que achou sempre importante, enquanto mulher, votar, e tudo isso. Portanto, em bastantes coisas, eram muito avançados. Filipa, 67 years old, Master’s or equivalent (Level 7), Musician, London (England).

O papel da rádio foi fundamental. E tem um nome associado: António Sérgio, o radialista nascido em 1950 e falecido em 2009, marido de uma das entrevistadas. Crucial também foi a fundação de clubes e bares, primeiramente na cidade de Lisboa. Também aqui um nome sobreleva os restantes: o Rock Rendez-Vous, sala de concertos nascida em 1980, que, depois de um breve interregno em 1983, retomaria a atividade até fechar em 1990.

Augusta, 57 years old, Bachelor’s or equivalent (Level 6), Computer Engineer, Lisbon: o António Sérgio já divulgava na altura, nos microfones da Rádio Renascença, no programa Rotação, o punk rock. Em 1976 criou o programa Rotação, que dava à noite, que durou até ao final de 1979. António Sérgio foi o primeiro a divulgar em Portugal nomes como Patti Smith, Iggy Pop, Sex Pistols, The Stranglers ou Joy Division.

5. A representação do Riot Grrrl no Brasil

Ao Brasil, de acordo com Costa e Ribeiro (2012), algumas bandas Riot Grrrl chegaram através da internet, onde a maior parte do público consumidor tinha entre 13 e 20 anos de idade, de classe média, ainda estudantes.

Segundo Leite (2015), a chegada da Riot Grrrl ao país deu-se em 1995, quando uma edição da revista Melody Maker aparecia nas bancas trazendo a Courtney Love. Assim, ao pesquisarem, as irmãs Elisa e Isabella Gargiulo conheceram as propostas e iniciativas da subcultura, bem como outras bandas da mesma cena musical americana, e já bastante críticas ao machismo que visualizavam em alguns espaços da sociedade, fizeram a banda Dominatrix.

No estopim da Riot Grrrl nacional, as bandas de referência eram a Dominatrix (1995), a Biggs (1996) e a Lava (1996), embora existissem bandas punks anteriores totalmente compostas por mulheres como a Menstruação Anarquika, a Cosmogonia e a Kaos Clitoriano. As bandas Bulimia e TPM (Trabalhar Para Morrer), de 1998 e 1997, não se diziam Riot Grrrls, mas se tornaram referência para o movimento. De acordo com Bramorski (2015), a chegada da internet ao Brasil deu-se em meados de 1995, tornando-se popular dois anos depois. As bandas Riot Grrrl viram-na, então, como um instrumento para o diálogo com seu público e curiosos admiradores. Alguns canais de conversa eram bastante utilizados no país para conectar as riots, como o mIRC e os Blogs, mas o destaque vai para o Fotolog, no qual o foco é a foto. As garotas e as bandas tornaram-se visíveis, pois as fotos revelavam a moldura da performance, as poses, os cartazes (flyers) de shows. Deste modo, através do uso da internet, a rede Riot Grrrl brasileira foi tomando forma.

Riot Grrrl bands no Brasil A partir da observação das postagens da página do Facebook “Riot Grrrl Brasil”, realizamos 55 capturas de tela, de janeiro a maio de 2016, em relação às bandas que possuem uma forte ligação a Riot Grrrl no país, contabilizando um total de 24 bandas de 5 estados brasileiros, entre eles: a) São Paulo: In Venus, Bad Habit, Charlotte Matou um Cara, Liar (cover de Bikini Kill), X So Pretty, Anti-Corpos, Dominatrix, Ratas Rabiosas, Lâmina, Biggs ; b) Rio de Janeiro: Pagu Funk, Catiilinárias, Ostra Brains, Belicosa, Kinderwhores, Trash No Star; c) Rio Grande do Sul: Devastadoras, Sapamá, A Vingança de Jennifer, 3D, She Hoos Go; d) Alagoas: Oldscracht, Raiva; e) Paraíba: Noskill.

6. Participação das das mulheres nos primórdios do punk português

Estas mulheres consideram que a participação da sociedade portuguesa no punk é diminuta nesta época. E ainda é mais reduzida no caso das mulheres. A primeira causa para a participação reduzida das mulheres nos primórdios da cena punk portuguesa centra-se em razões que se prendem ao papel que a mulher teve/tem na sociedade portuguesa e que cristaliza comportamentos e atitudes que prefiguram a mulher ao espaço doméstico, à condição de namorada/mãe/ esposa. Também é feita referência a uma maior presença das mulheres em vários e diferentes campos profissionais, sendo, no entanto, realçado que por norma não chegam aos lugares de chefia. No caso da música, por exemplo, os diretores das editoras independentes são geralmente homens. De qualquer forma, a socialização familiar e escolar para os papéis femininos e masculinos continua a ser determinante nas expectativas dos jovens e na sua construção identitária e tal transporta-se com toda a intensidade para o universo (sub)cultural do punk.

Filipa, 67 years old, Master’s or equivalent (Level 7), Musician, London (England). Quando começámos com as The Raincoats, e continuámos e tivemos a consciência do papel das mulheres tanto no punk como no resto, o facto de fazermos isso e haver outras mulheres, pensei que no futuro haveria mais igualdade em questão de música, mulheres e homens a fazerem coisas – e isso ainda não se sucede. Claro que a partir, até antes disso, as portas abriram-se, e o punk tornou-se uma coisa em que qualquer pessoa podia fazer aquelas coisas, e as mulheres sentiram que podiam continuar, podiam envolver-se em mais coisas, eu acho que uma pessoa quando...também depende do encorajamento de pessoas mais velhas na nossa vida, se os pais encorajam em certos caminhos, os professores, e as pessoas à volta mais velhas que vêem, sei lá, um talento ou uma tendência, se essas pessoas são encorajadas, seguem o caminho para o qual sentiam um certo entusiasmo. Se as pessoas dizem “ai ser artista, ser músico, é um disparate...” claro que a pessoa fica...sem acreditar, as pessoas seguem mesmo, mesmo com uma ambição, enquanto há outras que sem aquele encorajamento.

Uma segunda razão intimamente relacionada com a primeira e hipoteticamente mais abrangente do ponto de vista da dominação simbólica masculina nas sociedades condensa o que no entender destas entrevistadas se prende com a maior presença dos homens em movimentos que implicam maior ousadia e demarcação face à sociedade, catapultando o homem para papéis-chave em revoluções e liderança de movimentos sociais e culturais mais estruturantes.

Verónica, 55 anos, Licenciatura, Filósofa, astróloga, música, Lisboa: Eram sempre mais homens, porque na minha adolescência e idade adulta, e talvez agora as coisas já estejam diferentes, mas nos movimentos que nos mandam imprimir algum tipo de inovação ou de ousadia, ou que implicam alguma clivagem com o que era dominante, por experiência eu encontrei sempre mais homens.

Uma terceira ordem de razões para a não participação das mulheres na cena punk radica nas suas dificuldades/ inacessibilidade ou afastamento da aprendizagem musical e do acesso/familiarização face a instrumentos musicais elétricos.

Luísa, 48 anos, Ensino secundário, Estudos de Mercado, Lisboa: O que acontecia – e acho que ainda acontece agora – é que as bandas de música eram muito mais rapazes. Naquela altura, haviam mais rapazes que sabiam tocar e menos raparigas...

Uma quarta ordem de razões centra-se nas expectativas sociais face à imagem e estética femininas. Assim, a moldagem social do corpo por padrões estéticos dominantes é contrária ao visual feminino punk, pois este contrasta e colide com essa feminilidade. Tal não quer dizer que o visual punk não se tenha moldado à lógica dominante e seja hoje objeto de uma classificação distintiva de sentido positivo, mas nem sempre o foi. Exemplificadamente, na atualidade, a Patti Smith é uma lembrança do que o punk “ofereceu” às mulheres uma permissão para explorar as barreiras de género, para investigar o seu próprio poder, raiva e agressividade. Ou seja, Patti Smith, com a sua imagem de androginia desafiou a ideia mainstream sobre a feminilidade, mas foi um processo paulatino.

Joana, 49 years old, Bachelor’s or equivalent (Level 6), Visual Artist, Porto:

E, quer dizer, na altura o que é que acontece? Eu tinha uma data de amigos de infância, que eram todos…como é que eu hei-te explicar? Betinhos, ou direitinhos, ou não sei o quê. E, de repente, vêem-me assim vestida e o que é que eles achavam? Achavam que se eu andava assim vestida, estava completamente passada da cabeça e drogava-me.

De forma inter-relacionada e sintetizadora, algumas entrevistadas apontam o conservadorismo e machismo da sociedade portuguesa como sendo responsáveis pela diminuta participação feminina no punk e ainda pelo facto de o punk funcionar ele próprio numa lógica conservadora e machista.

Isabel, 52 years old, Master’s or equivalent (Level 7), Teacher of Secondary Education, Barreiro: Eu tive a sorte de trabalhar com pessoas impecáveis, que tinham uma atitude impec de igualdade. Mas soube de portas travessas de machismo total com certos rapazes. Quando, por exemplo, precisavam de uma vocalista ou de um vocalista e alguns gabavam-se de terem posto a gaja, era assim que falavam, ali a esmiuçar-se toda, a cantar até ficar afónica. Punham de propósito guitarras e baixo o mais alto possível. Pessoas malformadas e mal-educadas. Houve, houve… (…) Também a atitude também tem que vir das próprias moças, atenção. [A evolução no sentido de uma maior igualdade entre géneros em Portugal desenvolveu-se] Muito devagarinho e sempre de uma forma mais pobrezinha. Aqui temos uma cultura latina em que as mulheres são muito engraçadas para serem macacos de realejo e para trabalharem. Há aqui uma herança árabe, mourisca em que a mulher está sempre em segundo plano. Portanto não foi com a mesma amplitude que existiu nos outros países.

6. Participação das das mulheres no Riot Grrrl brasileiro

Parece haver, no Brasil, uma continuidade subcultural em relação ao tempo de vida das pessoas (HODKINSON, 2011) envolvidas com a Riot Grrrl, pois a maioria das respondentes estão em contato com a subcultura há mais de 5 anos e não mencionaram, em nenhum momento, um afastamento pleno com a subcultura, mas sim levam os princípios Riot Grrrl para o resto de suas vidas e tentam passar a frente as ideias.

O que é o Riot Grrrl hoje? E você considera que é um movimento mais voltado para a juventude brasileira? "Difícil definir. Não consigo identificar o riot girl como um movimento ativo hoje. Acho que teve e tem sua importância para a entrada das mulheres no punk e enquanto protagonistas na cena, em especial na década de 90 e início dos anos 2000. O mais importante é a representatividade, ver mulheres fazendo inspira outras a fazer também. (...) Não. Acho inclusive que as bandas, artistas e zineiras mais conhecidas do movimento não são mais tão ícones para as mulheres mais jovens quanto são para mulheres na faixa dos 20 e 30 anos.” Juliana, 29 anos, São Paulo.

"Vejo as meninas descobrirem essa ideia e reinventarem de um jeito mais divertido.Na época, era um rótulo pra qualquer mulher que tocasse em banda. Então, eu ficava com a atitude do L7, sem abraçar o discurso do Bikini Kill“ Simone, 47 anos, Rio de Janeiro “O Riot Grrrl foi um movimento contracultural feminista que aconteceu em 1990 e desde então reverbera. Por isso, acho que hoje muitas mulheres e adolescentes se influenciam neste movimento para construir política, arte, amor, amizade, convívio, contracultura. Acredito no Riot Grrrl como ética e é um conceito que, para mim, está sempre condicionado à contracultura feminista.(...) Com certeza suas protagonistas eram jovens nos anos 1990 e é claro que isso foi fundamental para que elas influenciassem mulheres jovens na época. O Riot Grrrl é sobre um estar no mundo que é combativo, que é punk e feminista e acho possível que mulheres adultas também se influenciem por ele.“ Carla, 26 anos, Rio de Janeiro

8. Notas finais

1. Estamos perante 10 histórias, 10 narrativas de mulheres punk lovers portuguesas. Trata-se de mulheres que estiveram nos primórdios do punk português com diferentes papéis, mas que partilharam todas uma participação enquanto punk lovers. 2. Estas mulheres, que não podemos chamar de mulheres punk mas antes punk lovers. São maioritariamente de Lisboa – a capital do país, são fortemente escolarizadas. São oriundas de classes sociais elevadas, nomeadamente da média burguesia intelectual e científica do país nos anos 70.

3. São herdeiras directas da Revolução dos Cravos, da Revolução do 25 de abril que deitou por terra um dos mais duradouros regimes fascistas da história: durou 40 longos anos. A ditadura fascista vivida durante esses 40 anos ocasionou uma sociedade profundamente elitista, hierárquica e fechada sobre si própria, largamente influenciada pela religião e pela tradução cultural colonialista.

4. Basta lembrar o caso de uma das entrevistadas, Ana da Silva, pertencente à banda The Raincoats que pertencendo claramente a uma elite económica e cultural do antigo regime teve a possibilidade de fazer o mestrado em Londres antes mesmo da ocorrência da Revolução do 25 de Abril. 5. Tal como o punk de que gostavam, estas mulheres eram um grupo verdadeiramente outlier das mulheres jovens e adolescentes portuguesas da época. 6. A sua visão sobre o país onde o punk entrou em 1977 é claramente marcada pelo 25 de abril. Assim, a Revolução foi importante pelo impacto que teve na alteração dos costumes, valores e consumos juvenis. Mas também foi importante pela abertura ao exterior, ao estrangeiro, de onde vinham ventos de mudança em termos de músicas, de roupas, de lifestyle. A Revolução permitiu a estas mulheres reavaliarem o lugar de Portugal no mundo e o seu próprio lugar enquanto jovens.

7. É no binómio liberdade/conservadorismo que estas mulheres melhor situam o país após a Revolução e o punk. E este binómio vai ser determinante na sua própria esfera de acuação enquanto jovens e membros de uma (sub)cultura. A título exemplificativo, Portugal não conheceu nos anos 60 nenhum impacto do movimento hippie, dos mods ou rockers. A primeira vez que se confronta com expressões subculturais é após a Revolução. 8. Estas mulheres representam o punk como muito importante em termos de impacto no estilo de vida e na abertura de horizontes culturais, musicais e artísticos. O punk emergente era fortemente influenciado pelo estrangeiro, designadamente londres e Nova Iorque. Na emergência do punk português, a rádio por intermédio de António Sérgio vai ter um papel determinante. A existência do Rock Rendez Vous em lisboa – clube onde vinham actuar bandas estrangeiras foi também muito influente. 9. Estas mulheres pioneiras do punk português representam a participação das mulheres no punk como muito reduzida. E isso ocorre por via dos papéis tradicionalmente atribuídos à mulher na sociedade portuguesa decorrentes da socialização familiar e escolar: mãe, namorada e esposa.

10. A fraca participação das mulheres no punk fica ainda a dever-se ao facto de estarmos perante uma sociedade que compele os homens À afirmação e liderança no espaço público. O domínio de liderança das mulheres é o espaço privado, da casa, dos filhos, do doméstico. Aqui, a matriz católica apostólica romana é fulcral.

11. O ensino da música eléctrica e o contacto com instrumentos eléctricos eram universos totalmente masculinos. Era inconcebível a participação das mulheres nessa esfera. Aliás, o afastamento das mulheres do punk também se prende com razões estéticas e corporais: a sociedade condena esteticamente a anti feminilidade presente no punk. 12. Finalmente, a não participação das mulheres no punk também se fica a dever ao conservadorismo e machismo da sociedade portuguesa; estas mesmas lógicas estão presentes no funcionamento do universo punk muito numa lógica bourdeusiana.

ObrigadX Paula Guerra Universidade do Porto, KISMIF Project, Portugal [email protected]; [email protected] www.punk.pt; www.kismifconference.com

Gabriela Gelain Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Grupo de Pesquisa CultPop, Brasil [email protected]

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