Aprisionando-se como Ulisses

August 13, 2017 | Autor: Waldisio Araujo | Categoria: Philosophy
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APRISIONANDO-SE COMO ULISSES por Waldísio Araújo Ulisses deixa-se prender para contemplar em segurança o que está para além do homem. Símbolo da inteligência grega, sabe que é mediante o exercício da autocontenção criativa que podemos formar, aperfeiçoar e intensificar nossa humanidade. O canto das Sereias é perigoso, mas é preciso entregar-se a ascultar o impulso da própria vida. O profundo respeito que os gregos nutriam pela harmonia, proporção, razão, medida, moderação e justiça, que vimos no artigo Voando como Dédalo, poderia tê-los mergulhado num fatalismo melancólico caso tivessem visto na hybris essencialmente a expressão de uma impotência Amarrado ao mastro do navio, Ulisses ouve em humana. Pelo contrário, o que salta aos olhos na segurança o canto melodioso e mortal das Sereias. Cerâmica grega antiga. história da civilização grega é uma explosão vital de criação que inundou todos os campos da ação, do saber e da expressão e que até hoje se espraia por nossa razão e imaginário. O fato é que a história de Dédalo e Ícaro nos ensina não a nos conformarmos com a sujeição aos determinismos que curvam nosso ser para dentro de nossos estreitos limites, mas a fundamentarmos nosso poder, conhecimento e liberdade justamente sobre tais limites. Experimentar e comunicar o que somos e podemos, a fim de ancorarmo-nos na segurança da justa medida em que nos é lícito alçar vôo enquanto homens, é papel do sábio, que assim encontra e ensina o lugar que cabe a si mesmo e a sua comunidade na ordenação do mundo. Contudo, o século VI a.C. inventou uma nova forma de vida, a do filósofo, que se encarregou de encontrar em que consistiria a sabedoria dos sábios. Agora, já não bastava ao pensador encaixar-se espontânea e harmonicamente na ordenação do mundo, mas também investigar o que é, como se originou, como funciona e a que obedece essa ordenação. Inaugurava-se assim a valorização da busca da verdade por si mesma e o começo de uma perigosa ruptura entre conhecimento e ação. Mas a sabedoria, que em grande parte se expressava nos mitos, ainda comunicaria por muito tempo à filosofia a ideia de que a liberdade desenfreada conduz inexoravelmente à perdição, efeito visível da hybris que ameaça os indivíduos e as comunidades, e que uma certa autocontenção é necessária não somente à manutenção mas também à modificação, aperfeiçoamento e intensificação da vida plenamente humana. Em suma, trata-se da constatação de que, tomando-se certos cuidados, podemos conduzir nosso ser a realizar grandes feitos de tal forma que isso não incorra no ciúme dos deuses. Esse tema pode nos guiar num outro relato mítico, contido na Odisséia… Ao retornar para casa após a vitória dos gregos sobre Tróia, o herói Ulisses perde-se no vasto mar e é obrigado a enfrentar grandes perigos – entre os quais o de navegar próximo a rochedos habitados pelas Sereias, seres híbridos de mulher e ave cujo canto melodioso arrebatava os navegantes e os

fazia atirar-se ao mar e nele perecer. O astuto Ulisses, porém, ordena aos seus companheiros que o amarrem ao mastro do navio e que se obstrua com cera os ouvidos deles. Destarte, atravessaram ilesos enquanto o herói se debatia em vão para lançar-se no mar ao encontro das mortíferas Sereias. Mas uma vez o mito nos fala da necessidade de contenção do impulso humano a ultrapassar certos limites além dos quais a própria integridade do homem se arrisca à ruína, e tanto a narrativa do desejo de voar de Ícaro quanto a da entrega à fruição do canto em Ulisses prescrevem esse autocontrole. Diferente de Ícaro, contudo, o inteligente herói sabiamente tomou as devidas precauções para que seu impulso para experimentar o sobre-humano não comprometesse sua segurança, mas deixando intacto o impulso em si – assim como permaneceu em Dédalo o impulso de voar mesmo após a queda fatal do filho. A conduta do herói protegido da deusa Atena é marcado em várias situações pela invenção, e não é à toa que fora dele a ideia do cavalo de madeira usado pelos gregos para apossar-se de Tróia. Partidário da astúcia e inteligência contra os perigos da força bruta, Ulisses conhece suas próprias limitações e sabe que rompê-las seria aniquilar a si próprio. Por outro lado, não abdica da oportunidade de conhecer, e por isso começa por inventar uma forma de liberdade que, paradoxalmente, consiste numa prisão: com efeito, deixar-se amarrar ao mastro é substituir por novas limitações aquela que consistia em não poder-se resistir aos próprios desejos; reinventa-se a si mesmo de tal forma que possa aceder a algo que seus limites anteriores não permitiam experimentar – a aproximação prudente ao que há de supra-humano no mundo. Dizemos “no mundo” porque para o paganismo antigo as Sereias (assim como os próprios deuses e o caos primordial) não se situavam num plano transcendente e, portanto, inacessível e incognoscível aos mortais, mas são habitantes deste mundo e se relacionam com objetos e homens porque simplesmente não se concebia outro mundo que não o que todos mal ou bem conhecemos. E se os homens não podem contemplar diretamente deuses, demônios ou forças titânicas isso não se deve a uma radical heterogeneidade e incompatibilidade entre dois mundos, mas ao caráter limitado do poder do homem, que não pode expor-se diretamente ao excessivo poder dos deuses e de outros seres sem ser prontamente fulminado — exceto se o divino é abordado indiretamente, mediante suas metamorfoses, objetos cultuais ou estátuas. Logo, o conhecimento do homem acerca do supra-humano é algo como o conhecimento que nossa mão pode ter das chamas de uma fogueira: podemos aproximar a mão do fogo somente até uma certa distância além da qual ocorre a aniquilação da própria forma de conhecimento (a mão ou seu possuidor); assim, as chamas permanecem sempre próximas de nós, ainda que a rigor inalcançáveis. Longe de transcendente, a impossibilidade de um contato direto com os deuses deve-se apenas à terrível diferença de poder entre nós e eles, ambos concebidos como formas de vida tão extremamente distintas que sua vizinhança num mesmo mundo funda um abismo de poder e conhecimento intransponível – a ponto de o homem poder facilmente confundir qualquer desejo de redução da distância com o salto para uma transcendência. Dessa ambiguidade, a nosso ver fundamental, se origina a tendência civilizacional a levarmos pendularmente o nosso pensamento a interpretar a ordem do mundo (seja real ou aparente, necessária ou casual) como efeito ora da execução de um plano cósmico idealizado ou executado por um poder inteligente determinador ora como realização espontânea das múltiplas possibilidades de um irracional indeterminado. O pensamento mítico grego manteve o intercâmbio cultural entre

ambas as possibilidades interpretativas, e pode assim ter obrigado o pensamento filosófico a respeitar suas implicações até uma época tão tardia quanto o século IV, quando o cristianismo espalha-se e triunfa sobre o paganismo imperial romano. Mas a partir do predomínio das religiões monoteístas e, mais recentemente, da ciência moderna, um ideal de “verdade objetiva a todo custo” se impõe e abole a convivência, passando a ver qualquer resquício caótico como mistério provisório a ser elucidado tão logo o conhecimento humano seja iluminado por uma pretensa evolução espiritual religiosa ou por novas teorias cientificas. A partir do mastro em que se atara, Ulisses é convidado pelas Sereias a adentrar o palácio da Verdade do homem e do mundo, mas ele sabe que aceitar o convite é se deixar aniquilar enquanto homem, que por trás do melodioso canto esconde-se o inexprimivelmente pavoroso. Claro que ele não conheceu essa verdade, e qualquer pessoa que já tenha se deixado arrebatar pela beleza ou pelo medo sabe que a experiência de amarrar-se muda bastante a natureza da própria contemplação. E ainda que a tivesse conhecido ele não poderia nos falar sobre ela e que, no fundo, talvez ninguém queira realmente conhecer. O que Ulisses parece nos ensinar é tão somente que devemos inventar nossa própria linguagem de tal forma que a melodia e o ritmo do canto das Sereias nos possam soar e atrair de longe, como o eco de uma voz desconhecida que nos convoca dos confins do mundo e de nós mesmos e nos faz pressentir que lá reside a fonte inesgotável de todo ser, pensamento, beleza e poder. Entre o Ser e o Caos, o Determinismo e a Liberdade, Ulisses, mesmo sábio, se debate por soltar-se. Veremos num último artigo, intitulado Assumindo-se como Édipo, o que talvez lhe acontecesse caso conseguisse romper as amarras. Waldísio Araújo [email protected]

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