APROPRIAÇÕES IMAGÉTICAS DOS ESPAÇOS URBANOS

June 14, 2017 | Autor: (. Teresinha Bara... | Categoria: Fotografia, Cidades, Urbano
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APROPRIAÇÕES IMAGÉTICAS DOS ESPAÇOS URBANOS Teresinha Barachini / Universidade Federal do Rio Grande do Sul

RESUMO As apropriações imagéticas praticadas pela fotografia ao captar fragmentos das cidades deflagram não apenas seus espaços como também as diferentes experiências do corpo em relação ao urbano. Por vezes, é a sua ausência que reforça sua presença, por outras é a sua presença que reafirma a sua ausência em um determinado lugar ou mesmo sua impermanência como resultante de ações praticadas através de errâncias para absorção dos espaços urbanos. PALAVRAS-CHAVES fotografia, corpo, errâncias, urbano, cidade RESUMEN Las apropiaciones imagéticas practicadas por la fotografía al captar fragmentos de las ciudades deflagran no solamente sus espacios sino también las diferentes experiencias del cuerpo en relación a lo urbano. Por veces, es su ausencia que refuerza su presencia, por otras es su presencia que reafirma su ausencia en un determinado lugar o aun su impermanencia como resultante de acciones practicadas a través de errancias para absorción de los espacios urbanos. PALAVRAS CLAVE fotografía, cuerpo, errancias, urbano, ciudad

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As fotografias produzidas por artistas que tem como prática as perambulações urbanas suscitam-nos sempre inquietudes em relação às nossas apreensões citadinas. Transformam o registro, o documento e, em certa medida, o efêmero, em ações de apropriações do espaço urbano.

Através da complexidade imagética,

deflagra não apenas a fragmentação da paisagem como traz à tona a nossa cegueira cotidiana e torna tácito o nosso pertencimento corporal ao ambiente. O artista, ao atuar junto ao espaço urbano, experimenta as relações perceptivas do seu cotidiano e, o lugar comum, redimensiona-se em diferentes significações. “A cidade passa então a ser a mesma e outra concomitantemente, descrevendo sempre seus próprios retornos em uma ação cíclica de suas diferenças” (BARACHINI, 2013, p.133) e trazendo a justa compreensão de que a cidade é um organismo vivo e, portanto, mutável e transformável pelos indivíduos que nela transitam e a captam. A câmera escura utilizada por Brunelleschi, Alberti e Leonardo Da Vinci firmava não apenas as leis que possibilitavam a representação do espaço da cidade em perspectiva, bem como, anunciava a captação de “uma visão fotográfica” 1 dos espaços arquitetônicos. Nos primeiros anos da fotografia, necessitava-se de um tempo de exposição, correspondente até a alguns minutos para fixação da imagem. Por este motivo, a arquitetura, pelo seu caráter imóvel, era um dos temas comuns dos fotógrafos. Paradoxalmente, as primeiras imagens urbanas mostravam a cidade sem o elemento que representaria um ícone do modernismo: o homem nas ruas. (CIDADE, 2006, p.6)

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Joseph N. Níépce, Vista da Janela em Le Grass, 1826 (primeira fotografia)

Quando, por exemplo, apreciamos a primeira fotografia de Niépce, de 1826 (Fig. 01), com sua vista a partir da janela em Le Gras, ou as imagens de paisagens e vistas urbanas de Talbot, feitas entre 1842 e 1846, conseguimos nitidamente perceber as predileções estéticas desses fotógrafos e as implicações que suas escolhas por paisagens urbanas explicitam. Em meados do século XIX, grande era o número de artistas que se dedicavam à fotografia de vistas exteriores e aos monumentos tanto naturais como arquitetônicos, sendo os lugares pitorescos os mais requisitados. Segundo Scharf (1994, p. 82), muitos destes fotógrafos, a serviço de outros artistas, em sua grande maioria pintores, viajavam para lugares distantes e exóticos a fim de registrar as paisagens. A fotografia, de certa maneira, tornava-se naquele momento um recurso de catalogação de imagens do mundo para os mais diferentes usos. O crítico de arte John Ruskin, por exemplo, por volta de 1841 comprou seu primeiro daguerréotype – Il Canal Grande di Venezia – e, a partir de então, além de tornar-se um ávido colecionador de daguerréotype, que tinham como temáticas as paisagens

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e a arquitetura francesa e italiana, utilizava-os permanentemente para seus estudos de arquitetura e para a execução de ilustrações de seus livros, entre eles, o Examples of the Architecture of Venice, publicado em 1851. Assim, desde os primeiros daguerréotype, as imagens das cidades possuem algo de indizível, que se faz presente no acontecimento da fotografia, no vago, no indeterminado, naquilo que não tem fronteiras ou limites explícitos.

Daguerréotype pertencente à coleção de John Ruskin

Paris, palco do caminhar de Baudelaire, transforma-se completamente em um novo cenário urbano durante a administração de Georges-Eugène Hausmann entre os anos de 1853 e 1870. Seguindo uma tendência historicista da época, este disponibiliza recursos para o registro fotográfico de todo o processo de intervenção na cidade. Contrata, assim, como fotógrafo, Charles Marville, para captar o desaparecimento de certa Paris e o surgimento de outra (Fig. 03). Este instante de suspensão, entre o antes e o depois, coloca o observador urbano em um estado de mobilização perante a sua memória e a sua imaginação. No Brasil, fato semelhante pôde ser observado no início do século XX através das crônicas de João do Rio pseudônimo de Paulo Barreto -, que irá escrever sobre suas perambulações por

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áreas do Rio de Janeiro antigo que estavam sendo parcialmente demolidas por Pereira Passos e registradas pelo fotógrafo Marc Ferrez. Para Benjamin (1989, p. 186), “o flâneur como tipo o criou Paris” neste mesmo período e, afirma que “a cidade se cinde em seus polos dialéticos [e] abre-se para ele [flâneur] como paisagem e, como quarto, cinge-o”. Na sua prática do caminhar, faz-se presente o cenário urbano transitando entre uma arqueologia visível e o fim deste espaço pela circulação. O flâneur, enquanto passeia pela cidade, como se contemplasse um panorama, mantém aguçado o seu olhar de detetive, como que fazendo um reconhecimento de elementos para uma tipologia poética do urbano. O seu olhar não é de alguém que apenas contempla uma vista de forma imediatista, mas um olhar contemplativo que observa em perspectiva a paisagem fora do fluxo da multidão. Baudelaire (apud Peixoto, 2004, p.87) diz que “gostaria de voltar aos dioramas”, pois “essas coisas, porque falsas, estão infinitamente mais próximas da verdade, enquanto a maioria dos nossos paisagistas mente, justamente porque se esquecem de mentir”. Benjamin vai praticar o “flânierie” no espaço de ambiguidade dado pelas áreas de passagem – as galerias –, que são locais que se estabelecem entre o interior (a galeria) e o exterior (a rua). Seu corpo se funde com a cidade através do jogo de sobreposições na tentativa de flagrar o momento em que o sujeito se revela ante a cidade. As passagens, para Benjamin, segundo Peixoto (2004, p.282), são como “acessos que nos conduzem às profundezas da cidade” e, sob este aspecto, as galerias são panoramas ideais “de uma época primitiva que acaba de passar, que se oferece a nossos olhos nas passagens de todas as cidades”. Passagens que contém múltiplos significados e que eliminam qualquer determinação anterior à experiência, por ser um espaço que tem sua constituição no transcurso daquele que a percorre. Ao serem ameaçadas de demolição durante a reorganização urbana de Paris, as galerias – passagens – postulam para si o lugar do efêmero. Paisagem em trânsito. Lugar dos prazeres e das profissões malditas. Refúgio dos mitos modernos cujas imagens foram registradas pelo fotógrafo Charles Marville.

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Charles Marville, Passage de l’Opéra, Galerie du Barometre Bibliothèque de Paris

Para Jacques (2004, p.8-9) 2 , o primeiro momento das errâncias urbanas é exatamente este das flanâncias, na figura do flâneur, em Baudelaire. Já o segundo momento refere-se às deambulações dos anos 1910-30, correspondendo às ações dos dadaístas e surrealistas, organizadas por Louis Aragon, André Breton, Picabia e Tzara, entre outros, e ao mesmo tempo irão criticar algumas ideias urbanísticas do início dos CIAMs3; e o terceiro momento, que vai de 1950 a 1960, corresponderia às derivas urbanas ou as errâncias voluntárias do pensamento desenvolvido pelos situacionistas como Debord, Raoul Vaneigem, Michèle Bernstein, Jorn e Constant, os quais criticarão tanto os pressupostos básicos dos CIAMs quanto o modernismo pós-segunda guerra mundial.

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Foto de Tristan Tzara lendo para uma grupo de pessoas em frente a igreja St Julien le Pauvre, Paris, em 14 de abril de 1921.

Folheto de divulgação dos Dadaístas para a visita a igreja St Julien le Pauvre.

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Em 14 de abril de 1921, em Paris, às três da tarde, sob uma chuva torrencial, os dadaístas marcaram um encontro em frente à Igreja abandonada de Saint-Julien-lePauvre, em Paris. Tratava-se de uma ação consciente acompanhada de uma grande quantidade de comunicações impressas e documentação fotográfica (Fig. 04,05 e 06). Com esta visita, os dadaístas pretendiam iniciar uma série de excursões a lugares banais da cidade, “particularmente àqueles que realmente não têm razão de existir”, e garantiam aos participantes a aquisição da “consciência imediata do progresso humano em atividades destrutivas possíveis” (GOLDBERG, 2006, p. 75). Eles acreditavam que estas excursões poderiam representar de uma forma efetiva a aproximação entre a vida e a arte.

Foto da visita à Igreja de St Julien le Pauvre. Da esquerda para a direita, Jean Crotti, André Breton, Jacques Rigaut, Paul Éluard, Georges Ribemont-Dessaignes, Benjamin Péret, Théodore Fraenkel, Louis Aragon, Tristan Tzara e Philippe Soupault.

O Dadaísmo intuía a cidade como um espaço estético, onde era possível discernir o banal e o ridículo através de ações no cotidiano de forma direta no espaço público e, com estas ações, desmascarar o projeto da cidade burguesa. Já os surrealistas, por sua vez, entendiam a cidade como espaço composto de zonas inconscientes que poderiam ser acessadas por ações de incursões no espaço urbano, ou seja, através de deambulações aleatórias. Estas ‘errâncias’ no espaço urbano geraram a ideia de Hasard Objectif, que segundo Rosalind Krauss (1998,p.132-134), tinha “origem no fato de as energias do inconsciente funcionarem com propósito oposto à realidade” e entre o “desejo irracional, inconsciente e a estranha manifestação deste no mundo 1692

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externo”, provando para eles que na realidade “o mundo externo é, ele próprio, transformável” e que “existe uma possibilidade, oculta nele, de uma realidade alternativa ou, como insistia Breton, uma surrealidade”.

Brassai, La Tour Saint-Jacques, 1935

Os artistas surrealistas Aragon, Breton, Brassai e Leon-Paul Fargue irão vaguear à noite em uma prática reivindicatória de vivenciação diferenciada da cidade. Assim como Benjamin, Aragon será atraído pelas passagens, estes espaços constituídos como estranhos mostruários, os quais ele irá percorrer sempre como se fosse pela última vez, pela premência de seu desaparecimento. Eram lugares que se colocavam aparentemente como espaços de intimidade pela sua constituição arquitetônica, mas que eram absolutamente públicos em sua prática de uso. Em 1933, Breton encomendou, entre outras, vistas noturnas da Torre Saint-Jacques para Brassai. Esta foto (Fig. 07) acompanhou a publicação de “Nuit du Tournesol”, na revista surrealista Minoutaure, que depois seria o capítulo central de L’Amour Fou. Segundo Rossalind Krauss (2002, p. 150), no que diz respeito a esta foto, ele não precisou tirá-la a pedido de Breton, porque já a possuía havia algum tempo, inclusive como o poeta a havia descrito: “sob o seu pálido véu de andaimes”. As imagens fotográficas captadas à noite por Brassai tornam os espaços urbanos de

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Paris lugar de passagens, de percursos, de deambulações noturnas implícitas. Daniela Cidade6 (2006, p.13) nos lembra de que ao abordarmos as relações de espaço urbano e sujeito, devemos considerar o imaginário e as experiência individuais, e que ao nos basearmos na “teoria de André Breton do automatismo psíquico, estas relações podem ser manifestadas também através da fotografia como mecanismo gerador de sobreposições de elementos aparentemente desconexos e contraditórios”, resultando em uma interpretação do espaço urbano.

Ralph Rumney, Map of Venice, 1958

Em 1957, em um bar de uma vila italiana – Cosio d’Arroscia –, organizado por Debord, surge a Internacional Situacionista – IS. Segundo Careri (2002, p. 90), os situacionistas reconhecem que perder-se por uma cidade é uma expressão concreta da antiarte e o assumem como um meio estético e político através do qual tentam subverter o sistema capitalista do pós-guerra. Eles desejavam trocar a cidade onírica por uma cidade lúdica e espontânea em ações de reapropriação consciente das suas territorialidades.

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Depois da ‘visita’ do Dada e a ‘deambulação’ surrealista, surge uma nova palavra: dérive, uma atividade lúdica coletiva que não somente aponta para a definição das zonas inconscientes da cidade, senão que também se propõe a pesquisar, tendo como apoio à ‘psicogeografia’, os efeitos psíquicos que o contexto urbano produz nos indivíduos. A dérive é uma construção de um modo alternativo de viver a cidade, um estilo de vida que se situa fora e contra as regras da sociedade burguesa e que se propõe como uma superação da deambulação surrealista. (CARERI, 2002, p.90)4

O artista Ralph Rumney participou da formação da Internacional Situacionista como representante da London Psychogeographical Association (LPA), na qual ele era o seu único membro. Sua primeira e última missão dentro da Internacional Situacionista consistia em fornecer um relatório sobre a psicogeografia5 de Veneza. E, para chegar ao seu intento, ele propôs tingir as águas de Veneza, dizendo que esta ação serviria para estudar a reação das pessoas, o fluxo e a estagnação das águas. Ele nunca chegou a tingir o canal, embora em 1968, alguém tenha tingido os canais como protesto contra o capitalismo. Rumney foi expulso da Internacional Situacionista meses depois do seu ingresso, por Debord, por não ter entregado o relatório sobre Veneza de acordo com os termos solicitados. Em um texto publicado pela IS (n°1, de junho de 1958), sob o título Veneza venceu Ralph Rummey, os situacionistas escrevem: O trabalho começou bem. Rumney, que conseguira estabelecer os primeiros elementos para um mapa de Veneza , cuja técnica de notação era nitidamente superior a toda cartografia anterior [...] Em janeiro de 1958, as notícias começaram a piorar. Rumney, diante de inúmeras dificuldades, cada vez mais enleado pelo meio que tentara atravessar, teve de abandonar uma a uma suas linhas de pesquisa e, afinal, como dizia em sua comovente mensagem de 20 de março, ficou reduzido à imobilidade. [...] As armadilhas são outras, mas o objetivo também é de outra natureza: procura-se chegar a um uso apaixonante da vida. É compreensível que se esbarre nas defesas do mundo do tédio. O fato é que Rumney acaba de desaparecer, o seu pai ainda não foi procurá-lo. A selva de Veneza foi mais forte e se fechou sobre um jovem promissor e cheio de vida, que se perde, que se dissolve entre nossas múltiplas lembranças. (Texto da IS, nº1, 1958 Apud JACQUES, 2003, p.78)

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Ralph Rumney, The Leaning Tower of Venice, Guide Psychogéographique Venice,1958

Ralph Rumney, The Leaning Tower of Venice, Guide Psychogéographique Venice,1958

Embora não tenha gerado uma sistematização de dados e registros, da maneira que havia se proposto junto à Internacional Situacionista, segundo Sandler (1998, p. 7879), Rumney fez uma apreensão das ruas de Veneza em um estilo detetivesco, gerando uma iconografia fotográfica situacionista. A sua dificuldade consistiu em 1696

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conseguir explicar teoricamente para os situacionistas o sentido que existia nos encontros com as pessoas ao mesmo tempo em que tentava identificar zonas de passagem, sinistras e belas, dentro de uma abordagem psicogeográfica. A deriva urbana realizada por Rumney em Veneza, representada em seus trabalhos de fotocolagens, não consistia em ser uma documentação fotográfica da cidade, mas sim, mapas – Map of Venice – que emergiam de uma consciência lúdicoconstrutiva. Mesmo a cidade em questão não sendo um exemplo de cidade moderna, o fotógrafo conseguiu permeá-la e transformá-la em um ambiente de percursos citadinos, reafirmando pela sua prática, a deriva proposta pelos Situacionistas, pois a mesma não se postula como uma ação que tenha como foco a alteração efetiva do espaço físico das cidades, mas o uso dos espaços públicos como lugares de encontro e de tomada de consciência de sua existência no espaço urbano. Rumney, de alguma forma com suas fotos, cria [...] algo de descontínuo, seja efetuando triagens nos significantes da ‘língua’ espacial, seja deslocando-os pelo uso que faz deles. Vota certos lugares à inércia ou ao desaparecimento e, com outros, compõe ‘torneios’ espaciais ‘raros’, ‘acidentais’ ou ‘ilegítimos’. (CERTEAU, 1994, p.178)

O Mapa de Veneza (Fig. 09 e 10) realizado por Rumney me fascina por ter implícito em suas imagens à presença do corpo, isto é, não se trata apenas da consciência dos possíveis lugares elencados por ele em seu caminhar, mas a entrada efetiva e absoluta de um mapa que está calcado no corpo de quem percorre. Dissolve-se a cidade espetáculo – a vista panorâmica de Veneza – para se absorver as passagens, as escadarias, os canais, o fragmento, pelo olho-corpo do que é próximo, ou melhor, apreende-se o espaço da cidade pelo caminhar afetivo, confuso e ordinário do cotidiano despretensioso. Se a cidade espetáculo se pressupõem desencarnada, é em ações de caminhar que torna-se possível a percepção dos espaços urbanos no e pelo corpo.

Jacques

(2008) sustentará como resultante da errância urbana contemporânea a ideia de corpografia enquanto “uma memória urbana inscrita no corpo”,

ou seja, “uma

espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita mas também configura o corpo de quem experimenta”.

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Os praticantes da cidade, como os errantes, realmente experimentam os espaços quando os percorrem e, assim, lhe dão “corpo” pela simples ação de percorrê-los. Estes partem do princípio de que uma experiência corporal, sensório-motora, não pode ser reduzida a um simples espetáculo, uma simples imagem ou um logotipo. Ou seja, para eles a cidade deixa de ser um simples cenário no momento em que ela é vivida. E mais do que isso, no momento em que a cidade – o corpo urbano – é experimentada, esta também se inscreve como ação perceptiva e, dessa forma, sobrevive e resiste no corpo de quem a pratica. (JACQUES, 2008)

O corpo ausente nas primeiras fotografias de Niépce não era uma escolha era uma consequência, enquanto, nas fotos de Charles Marville e Brassai a ausência do corpo é intenção. Já com os dadaístas o corpo que visita passa ser o legitimador do espaço urbano esquecido por sua presença documental e a partir das derivas situacionistas, ou ainda, mais próximo a nós através de errâncias urbanas contemporâneas, o corpo não apenas absorve criticamente os espaços urbanos, como se dilui territorialmente através da experiência estética6.

Notas 1

Ver sobre a fotografia e a experiência no meio urbano em: CIDADE, Daniela Mendes. Um olhar sobre a cidade. IN I Seminário Arte e Cidade. Salvador: EDUFBA, 2006, p. 6. 2

Ver também sobre este assunto em: REY, Sandra Terezinha. Uma perspectiva histórica sobre a passagem da representação do movimento à sua prática no espaço real . Anais 17º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas: Panorama da Pesquisa em Artes Visuais. Florianópolis: ANPAP, 2008. Disponível em:< http://anpap.org.br/anais/2008/artigos/188.pdf.> Acesso em: 2014 3

CIAMs- Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna, CIAMs, dos anos 1910-20 até 1959

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Texto original : “Después de la ‘visita’ de Dada y la ‘deambulación’ surrealista, se acuna una palabra nueva: dérive, una actividad lúdica colectiva que no solo apunta hacia la definición de la zonas inconscientes de la ciudad, sino también se propone investigar, apoyándose en el concepto de ‘psicogeografía’, los efectos psíquicos que el contexto urbano produce en los individuos. La dérive es una construcción de un modo alternativo de habitar la ciudad, un estilo de vida que se sitúa fuera y en contra de las reglas de la sociedad burguesa, y que se propone como una superación de la deambulación surrealista ”. Ver o texto original em CARERI, Francesco. Walkscapes: el andar como práctica estética = Walking as an aesthetic practice. Barcelona: Gustavo Gilli, 2002, p. 90. 5

Segundo Jacques “ A psicogeografia seria então uma geografia afetiva, subjetiva, que buscava cartografar as diferentes ambiências psíquicas provocadas basicamente pelas deambulações urbanas que eram as derivas situacionistas.” Ver em JACQUES, Paola B.(org.) Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 23. 6

O grupo de pesquisa Objeto e Multimídia iniciou em 2015 uma série de atividades para entender, absorver e interagir corporalmente nos espaços de Porto Alegre. Entre suas primeiras ações está a VISITA INCERTA AO MURO. Esta “visita” levou o grupo ao encontro de um lugar que “não tem razão de existir” e, assim, aproximou esta experiência das propostas de errancias dos dadaístas. Atualmente participam do grupo de pesquisa realizando as atividades em Porto Alegre: Bruna Gazzi Costa –UFRGS, Denise Souza Corsino-UFRGS, Liziane Ungaretti Minuzzo – UFRGS, Manoela Farias Nogueira – UFRGS, Thiago Trindade Oliveira- UFRGS e Teresinha Barachini (Tetê Barachini) – UFRGS (coordenadora).

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Teresinha Barachini [Tetê Barachini] Artista Plástica. Doutora em Artes Visuais/Poéticas Visuais – PPGAV-IA-UFRGS, Porto Alegre. Mestre em Artes/Poéticas Visuais, PPGAV-ECA-USP, São Paulo. Docente do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Colabora com o LIT (Laboratório de Imagem e Tecnologia) e coordena o Grupo de Pesquisa Objeto e MultimídiaCNPq.

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