Aproximações ao Aparelho Metafísico de Meditação – António Pedro

May 28, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Literatura, Estética, Teatro, Ceramica, Arte Portuguesa
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Aproximações ao Aparelho Metafísico de Meditação – António Pedro

Em meados dos anos 1930, António Pedro assinou o famoso Manifesto Dimensionista, ao lado de artistas internacionais como Alexander Calder, Ben Nicholson, Hans Arp, o casal Delaunay, Antoine Huidobro, Joan Miró, Marcel Duchamp, W. Kandinsky, Lazslo Moholy-Nagy ou Francis Picabia, todos eles tendo convergido para Paris no período posterior à 1ª Guerra Mundial. O autor do Manifesto foi Charles Sirato, tendo António Pedro assumido o impulso de o disseminar em Portugal, publicando em 1936 “Manifesto resumo do DimenSionisMo”: “A existir a palavra, dimensionismo, não significa de modo nenhum uma escola fechada ou exclusivista. A existir, deve apenas significar a direcção especial de uma série de procuras, caracterizadas pela ampliação das possibilidades formais das várias artes, realizada pelo aumento de uma ou mais dimensões espaciais.” Como o próprio sublinhou “O nosso Manifesto é um ponto de partida”. O seu contributo consubstanciava-se sobretudo na poesia dimensional que apresentava como sendo uma prova da possibilidade da poética se expressar no espaço. O Aparelho Metafísico de Meditação foi uma das suas produções, pretendendo corresponder ao quadro conceptual formulado, como o próprio sinalizou no ponto segundo do texto subtitulado Nota Circular Àcerca de Mim-Mesmo. Nesse regresso, viria fundar em Lisboa, aquela que se pode considerar uma das primeiras galerias modernas, de vocação comercial, senão foi mesmo a primeira: Galeria UP (1938). Um dos propósitos fundantes do Dimensionismo consubstanciava-se numa “…tendência que se propõe apagar a fronteira entre as artes através da introdução do espaço-tempo como quarta dimensão.” Segundo Maria Jesus Ávila, servia esta premissa para que o Artista-Poeta melhor pudesse estender as cumplicidades, em domínios que lhe eram tão intrínsecos e desejados em uníssono. Obra emblemática que ilustra este desígnio é, precisamente o “poema dimensional” intitulado Abstractions Géometriques. A obra, entendida como maquette, e pensada para o livro 15 Poèmes au hasard, concentrava elementos visuais cromáticos, intervencionados no processo de impressão, de forma inusitada. A obra foi apresentada em Paris, no primeiro Salon des Surindèpendants, reconhecida a sua originalidade pela crítica – veja-se a revista Les artistes d’aujourd’hui.

Vitrina com peças de António Pedro na Exposição temporária comemorativa dos 50 anos da sua morte – Museu Nacional Soares dos Reis – outubro 2016

António Pedro - Abstractions géometriques, 1935, Guache sobre cartolina e lápis sobre papel, 24,5 x 17,5cm (Inv. 2374 MNAC)

As abstrações viam-se grafismos organicistas, quase de valência antropomórfica, conciliando sinuosidades e dobras com linhas assertivas, oscilando entre dinâmicas centrípetas e centrífugas. Essas linhas e as morfologias, sustentadas sobre fundo negro, insinuavam variações de ordem coreográfica, quanto musical. A forma circular é um dos denominadores comuns entre as quatro unidades constitutivas do políptico, aguentando a força do reconhecimento de ser um olho que via para além da dicotomia entre palavra e imagem, entre poesia e pintura. Assim, localizando, inscrevendo-se numa nova assunção dimensional, se formulava uma versão singular de poesia visual, onde os sinais se assumiam como unidades gráficas e, simultaneamente, como indutores simbólicos, portadores de polissemia exemplar. A poesia explorava, desde finais do século XIX, e em particular, numa alusão quase direta a Stéphane Mallarmé, as vias de uma caso muito em particular visual (mesmo de indexação plástica) onde o semantismo exigido se tornava menor, em prol de uma acentuação visualverbica pregnante e substantiva. Abertura exploratória alastraria século XX adentro, manifestando-se na concatenação de peças, autoria de pintores-poetas e vice-versa, explorando inúmeras possibilidades relacionais diretas ou indiretas. Tudo surgia de modo espontâneo, emergindo de um âmago poiético, onde a razão se submetia à tensão intuitiva, propugnando uma assunção presidida mais e mais pela irracionalidade consciencializada e ambicionada. As razões impregnavam-se de sensações sobrepostas e intersecionadas, jogando-se no abismo dinamizador, anunciando a diluição de fronteiras entre as artes, poesia, literatura, música e dança. Os acasos asseguravam a intensidade que então, se percebia, era suscetível de ser atingida. Não fora por acaso que a palavra “hasard” se presentificava no título do livro de poemas, evocando a célebre frase de Mallarmé “un coup de dès jamais n’abollira l’hasard” (1897), logo no início do famoso poema que também serviria aos praticantes da poesia visual portuguesa – po-ex, assim como o fora para os “xamãs”da poesia concreta (Brasil) – Haroldo e Augusto Campos ou Décio Pignatari, tanto como se pode confrontar em autores menos conhecidos (ou mediatizados), caso de Edgar Braga. Os ritmos das palavrasvisuais chamavam, por sua vez, a audição ou a movimentação flexibilizada e concatenada que expelia noções de espaço ou tempo convencionalizadas e, mesmo, autofágicas. Atenuavam-se

as incongruências, as incompatibilidades entre o rigor geométrico das linhas retas e a volúpia das formas curvilíneas. A espessura da superfície que tudo albergava, na lucidez de António Pedro que queria anular a consciência vigilante da definição e da medição do tempo, compreendido como noção atávica e epigonal. Datado de 1935, o Aparelho metafísico de meditação – acima referido - é uma peça invulgar, desde o ponto de vista quer estético, quer poético, quer artístico, que gera uma vivência enigmática no espectador atual. A lição que ecoa a dualidade poesia-pintura aqui reveste-se de tridimensionalidade, sob formato de uma pirâmide onde está incrustada uma placa de plástico onde foram presas palavras cujo caminho circular é assinalado pela seta superior sobre o triângulo invertido desenho de modo a sobrepor-se ao círculo concêntrico. Na base, como se de uma legenda se tratara confirma-se o título da obra. O diálogo mudo sobre o tempo que é essa dimensão, inominada de imponderáveis triádicos – passado, presente, futuro – é tutelado pelas palavras “Deus”, “Homem”, “Querido”, anunciando-se um jogo cinético que caberia ao próprio espectador impulsionar.

António Pedro - Aparelho metafísico de meditação, 1935, Madeira, plástico e latão cromado, 18 × 25 × 25 cm. (Inv. 2380 MNAC)

A inovação da obra circunscreve-se também no que era a intencionalidade relacional ao público, solicitando-lhe uma ação direta sobre a obra em si, outorgando-lhe movimento, ação no espaço, sob efeito da condição do tempo individuado. Cada rotação do dispositivo iria assinalar uma das três frases sugestionadas. O acaso primava, movimentando a lucidez, daquele que se representara em autorretratos, duas pinturas emblemáticas (e enigmáticas): Auto retrato com sua mulher (1941) ou Auto retrato nu, com uma jóia (1943). A questão identitária consolida-se em vertentes complementares: criação plástica (pintura, objetos e esculturas), autoria de poemas, textos e manifestos e, assiduamente a partir de 1953, com a sua presentação de fundador do Teatro Experimental do Porto (TEP), onde viria a desenvolver uma atividade única no panorama português. Radicou-se no Porto, chegando a convite de Eugénio de Andrade e onde, viria igualmente a assumir a incumbência de criar “…uma Escola de Teatro e a Direcção artística da Companhia propiciará uma das experiências determinantes da renovação das linguagens do teatro português na segunda metade do século. Conhecedor das experiências de Stanislavsky e de Meyerhold.” (LAMBERT, M.F. e FERNANDES, J. Porto 60/70: os Artistas e a Cidade, 2001, Museu de Serralves/ASA)

O impulso para situar a necessidade de controlo sobre a apropriação de outros, inomináveis ou sim, na representação dramatúrgica, traduzia a exigência existencial do eu / outros. Eis, como as variantes de “eus” situados, agem em/sobre as viagens dos outros incorporados, dir-se-ia… O seu pensamento crítico desenvolveu-se, como antes se assinalou sob escrita de manifesto, caso do Anti-Isto: Manifesto-Poema (1935), publicado em 1936 em Primeiro Volume, mais um poema visual, desde vez, mais nitidamente satírico, como salientou Adelaide Ginga, em que se manifesta contra “isto”, ou seja, tudo aquilo que possa ilustrar «categorias socio-populares”, isoladas pelo autor, dando visibilidade a estereótipos de grupos enraizados num atavismo, tacanhez que minava a sociedade, impedindo o livre impulso e expansão intelectual e criadora. Os seus textos proclamatórios surgem compilados, no Porto por Petrus, na década de 1960, designadamente, no volume III de Os Modernistas Portugueses. A capacidade de subverter e revelar variações sobre um mesmo tema, viria a tomar novas modalidades quando, descrente da sociedade lisboeta/nacional, António Pedro se retira para Moledo do Minho, dedicando-se a conceber peças modeladas, crianças nascidas de si mesas, assinalando mutações grotescas, monstros queridos e meigos. Os pequenos monstros que arregalavam a alma dos espectadores, essas peças em cerâmica de António Pedro revelam uma abordagem ao Surrealismo verdadeiramente providencial. Indo bem mais além daquilo que eram os “modelos” previstos no ideário surrealista, ultrapassando os seus desígnios estéticos iniciais.

António Pedro, Escultura, 1952, bronze, 36,5 x 28 x 26,5 cm (Inv. 79E758 - CAM/FCG)

As obras tridimensionais, modeladas em pequeno formato, geradas por António Pedro mantêm-se inigualáveis ainda, sublinhando o poder dos elementos e da mão que os pretende dominar. Plasmam um vocabulário peculiar, extravasando convicções e devaneios imaginados, materializados através e no barro. Lembre-se o ensaio de Henri Focillon, Elogia da Mão, aplicando-se no caso do artista português à posse, assim como à apropriação da terra que com a água, quer o fogo para subsistir, sobrevivendo à dissolução e evidenciando a razão alquímica.

As bases conceptuais, que servem as várias linguagens experimentadas por António Pedro, ergueram-se num período histórico alinhado pela estética do Neorrealismo, afirmado desde 1935 enquanto corrente proclamatória do ideário subliminar (deslizando sobre a ditadura do Estado Novo) e sob auspícios da própria designação que desviava as atenções do que pretendia ser um realismo de cariz social e socialista. Por outro lado, através de artigos manifestos e polémicos, uma outra corrente artística tinha sido apresentada aos artistas portugueses Portugal, ainda que tardiamente por referência à sua eclosão em França, mediante a difusão do Manifesto Surrealista, autoria de André Breton, divulgado em 1924. O Surrealismo tivera a primeira manifestação pública, no caso português, apenas em 1940, na 1ª exposição coletiva de pintura de António Pedro, António Dacosta e Pamela Boden, como assinalou José-Augusto França no ensaio dedicado a António Pedro, publicado na Editora Artis, em 1967. O Surrealismo impôs-se, portanto, como facto cultural emblemático, estandarte de vanguarda e marginalidade, no panorama da moderada e tímida vida cultural portuguesa — Grupo Surrealista de Lisboa em 1949; fruto de posicionamento coletivo, donde constavam alguns elementos artisticamente insatisfeitos, provenientes do Neorrealismo. As peças de cerâmica, realizadas por António Pedro, evocam quase de imediato o seu “exílio”, o período de Moledo do Minho. Revelam uma faceta do artista pluridisciplinar peculiar, fruto de uma maturidade e conhecimentos experienciais multidisciplinares. O autor-artista dominou a plasticidade manual do barro e libertou seres, não raro monstruosos, de rara qualidade situacional criativa. Esses seres, inconfiguráveis, cujas feições deformadas acentuavam a intervenção direta do autor possuem um valor pulsional, de uma tal veemência e energia que integram, ainda hoje, uma classe de motivações que viria a repercutir na abordagem de Jorge Vieira, no respeitante aos seus trabalhos de vertente mais surrealista. Entre a pintura que, inicialmente, refletia a lição metafísica de Giorgio di Chiricco, passando pela surrealidade ontológica, sublinhada nas dinâmicas poéticas + visuais, dramatúrgicas, literárias, objetuais e escultóricas, dimensionaram uma obra, um pensamento e uma atividade relevantes que frutificaram na sua plasticidade intrínseca, desdobrando um imaginário enriquecido pelas muitas vivências introspetivas e pelas convicções societárias.

Maria de Fátima Lambert Public. Artes e Letras. Julho 2016

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