Aproximações da estética contemporânea: novas estratégias narrativas e críticas latino-americanas

May 23, 2017 | Autor: Paula Campos | Categoria: Intermediality, Latin American literature, Contemporary Theory and Criticism
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APROXIMAÇÕES DA ESTÉTICA CONTEMPORÂNEA: NOVAS ESTRATÉGIAS NARRATIVAS E CRÍTICAS LATINO-AMERICANAS Paula Oliveira Campos Augusto1 Orientadora: Rachel Esteves Lima2 Resumo: Este trabalho propõe uma discussão em torno de algumas das noções teóricocríticas – como “literaturas pós-autônomas” (Josefina Ludmer) e “formas do não pertencimento” (Florência Garramuño) – que buscam definir e compreender uma série, cada vez mais recorrente, de práticas artísticas latino-americanas contemporâneas. Com a alteração significativa do objeto literário, a teoria da literatura passa por uma reformulação, na atualidade, que desloca a noção de autonomia dos campos e borra os limites disciplinares, e, por conseguinte, aproxima o estudo da literatura de abordagens transdisciplinares e interartísticas. Nesse cenário de mudanças na estética contemporânea, Nuno Ramos parece encenar algumas das transformações abordadas ao longo deste artigo. Palavras-chave: literatura interartísticas, Nuno Ramos.

latino-americana,

crítica

contemporânea,

relações

“E gostaria de concluir esta breve reflexão sobre a dificuldade da leitura, perguntando a vocês se o que nós chamamos de poesia não seria, na verdade, algo que incessantemente habita, trabalha e sustém a língua escrita para restituí-la àquele ilegível do qual provém e para o qual se mantém em viagem”. (AGAMBEN, Giorgio. Sobre a dificuldade de ler)

“Literaturas pós-autônomas” (Josefina Ludmer), “formas do não pertencimento” (Florência Garramuño), “formas mutantes”, “obra-instalação” (Wander Melo Miranda), escrita “fora de si” (Ana Kiffer), estas são algumas das noções que buscam definir e compreender uma série, cada vez mais recorrente, de práticas artísticas latinoamericanas contemporâneas3. Com a alteração significativa do objeto literário, a teoria 1

Aluna de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da UFBA. [email protected]. 2 Professora Associada da UFBA, atuando no curso de Graduação em Letras e no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura. [email protected]. 3 Para mais informações ver GARRAMUÑO, Florencia; KIFFER, Ana (Orgs.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.

da literatura passa por uma reformulação, na atualidade, que desloca a noção de autonomia dos campos e borra os limites disciplinares, e, por conseguinte, aproxima o estudo da literatura de abordagens transdisciplinares. A formulação mais radical desse processo é concebida pela escritora argentina Josefina Ludmer, em seu polêmico texto “Literaturas pós-autônomas”, publicado, pela primeira vez, em 2007 na Ciberletras – Revista de crítica literaria y de cultura. De acordo com a autora, muitas escrituras atuais não admitem mais leituras literárias, não importando, inclusive, a diferenciação entre “literário” e “não-literário”, entre “realidade” e “ficção”. Essas escrituras do presente se encontram dentro e fora da literatura, em uma “posição diaspórica”, pois, apesar de aparecerem como literatura – isto é, conservarem o formato livro, o nome do autor, algum gênero literário, e se definirem como literatura –, não podem mais ser lidas a partir de categorias literárias, tais como autor, obra, estilo, escritura, texto e sentido. Conforme a autora: Não se pode lê-las como literatura porque aplicam “à literatura” uma drástica operação de esvaziamento: o sentido (ou o autor, ou a escritura) resta sem densidade, sem paradoxo, sem indecidibilidade, “sem metáfora”, e é ocupado totalmente pela ambivalência: são e não são literatura ao mesmo tempo, são ficção e realidade.4

Para Ludmer, essas produções evidenciam o fim do ciclo da autonomia literária, por esse motivo são denominadas de escrituras ou literaturas pós-autônomas. São dois os postulados, próprios da contemporaneidade, que fundamentam as literaturas pósautônomas: 1) “todo cultural (e literário) é econômico e todo o econômico é cultural (e literário)”; 2) “a realidade é ficção e a ficção é a realidade”5. O que o primeiro postulado flagra é a impossibilidade de se continuar pensando dentro de esferas bem delimitadas, já que o que se observa, atualmente, é a mescla dos campos político, econômico, cultural e literário, considerados, durante a modernidade, como autônomos. A autora declara, então, o “fim do campo”, tal como pensado por Pierre Bourdieu, em seu livro As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Diante disso, a literatura perde o poder de definir-se através de suas leis e instituições próprias e, conforme Ludmer, consequentemente, perde seu poder crítico. Se, do século XVIII até a segunda metade 4 5

LUDMER. Literaturas pós-autônomas, 2010, p. 1. LUDMER. Literaturas pós-autônomas, 2010, p. 2.

do século XX, a crítica, as escolas e as universidades foram responsáveis por delimitar a função, o valor e o sentido do “literário”; no presente, essas instituições encontram-se em crise e necessitam de outras epistemes. Ademais, essas escrituras pós-autônomas podem tanto se situar simbolicamente dentro da literatura como podem se colocar, como afirma a autora, “como lixo”, problematizando o valor do literário e os modos de ler limitados a: é literatura ou não é literatura? É boa literatura ou é literatura ruim? Com a mudança do estatuto da literatura e do seu objeto de estudo, passa-se a reivindicar a necessidade de uma mudança nos modos de ler. O segundo postulado diz respeito à reformulação das categorias “realidade” e “ficção”. Tomando os clássicos latino-americanos dos séculos XIX e XX como exemplo, percebe-se uma distinção entre a “realidade”, entendida como “realidade histórica”, e a “ficção”, entendida como a relação entre “a história” e “a literatura”. A partir dessa perspectiva, a ficção seria o resultado da passagem da realidade histórica para um mito, uma fábula, uma produção literária. Nesse sentido, Ludmer argumenta que as literaturas pós-autônomas, ao fabricarem o presente com a realidade cotidiana, se integrariam à chamada “imaginação pública”. Essa realidade cotidiana não seria, então, a realidade histórica referencial e verossímil do pensamento realista, inclusive entendida como “o real” e “a verdade”, mas sim “a realidade produzida e construída pelos meios, pelas tecnologias e pelas ciências. É uma realidade que não quer ser representada porque já é pura representação”6. Por esse motivo, a autora afirma, no final do seu texto, que lê a literatura atual como se fosse uma notícia. Em seu livro Leitores, espectadores e internautas, Canclini evidencia como o conceito de Pierre Bourdieu sobre a autonomia dos campos culturais se torna cada vez menos aplicável, desde a segunda metade do século XX. Diferente de Ludmer, Canclini não chega a decretar o “fim do campo”, apesar de sustentar que a formulação de Bourdieu não é mais produtiva para pensar o presente e de enfatizar a necessidade de uma outra maneira de ler o contemporâneo. De acordo com o autor, o conceito do sociólogo francês foi bastante útil para descrever o que ocorreu entre os séculos XVIII e XX. Durante esse período, foram criadas instâncias de seleção e de consagração – como as universidades, as escolas, a crítica, as editoras, os leitores, os museus, as galerias – 6

LUDMER. Literaturas pós-autônomas, 2010, p. 2.

através das quais as obras de arte e a literatura se independem do poder religioso e político e passam a ser regidas por suas leis próprias. Na modernidade vemos nascer, portanto, as ciências leigas, que produzem saberes específicos, e os campos artísticos e literários, que vêem surgir um sistema próprio de valoração de suas obras e de seus autores/artistas. No entanto, desde a segunda metade do século XX até o presente, observamos como a tendência à mercantilização da produção cultural e à massificação dos bens culturais em vários suportes ao mesmo tempo fragiliza a autonomia dos campos culturais. Segundo Canclini, “a fusão de empresas acentua essa integração multimídia e a sujeita a critérios de rentabilidade comercial que prevalecem sobre a pesquisa estética”7. Nesse cenário, há uma perda da autonomia no campo editorial, pois empresas que nada tem a ver com edição compram editoras clássicas, com o intuito de lucrar com a venda de livros. Uma das consequências desse processo é o enfraquecimento do que Bourdieu chamou de “capital cultural”. O que está em jogo é a taxa de lucro que determinado autor vai dar para esses grupos empresariais, e não o capital cultural conquistado por ele dentro do campo literário. Simultaneamente, a fragilização da autonomia dos campos resulta do processo denominado “convergência digital”, responsável por promover a formação de hábitos de leituras diferentes – os leitores passam a ser não apenas leitores, mas também espectadores e internautas8. Outra leitura atual realizada sobre essas mudanças no campo da arte e da literatura pode ser encontrada no livro Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea, da autora, também argentina, Florência Garramuño. A autora constrói a tese de que, contemporaneamente, estaríamos diante de instalações, filmes, práticas artísticas, obras de teatro e textos “inespecíficos”, isto é, de formas artísticas que compartilham um desconforto diante de qualquer definição ou categoria de pertencimento. Esses “frutos estranhos”9 promovem o apagamento da especificidade dos meios, ao incluírem e trabalharem com diversos meios ou construírem seus discursos com referências explícitas a outros dispositivos ou meios, como cinema, 7

CANCLINI. Leitores, espectadores e internautas, 2008, p. 20. CANCLINI. Leitores, espectadores e internautas, 2008, p. 19-24. 9 Referência à instalação de Nuno Ramos, intitulada Fruto estranho e exposta MAM-RJ em 2010. 8

música, performance, fotografia, literatura, artes plásticas. Além disso, essa aposta no inespecífico coloca em tensão a prosa e o verso; enfraquece a forma aglutinante e individualizante do romance, mostrando a necessidade de explorar novas formas de narrar; promove uma indistinção entre a realidade e a ficção; escapa de uma leitura estritamente disciplinar, por sua variedade de formas discursivas; em contraposição a um hibridismo formal, não há desejo de criar uma identidade estável, ainda que híbrida – a função da arte seria arquivar fragmentos; dentre outras características. Apesar de a interação entre as diferentes linguagens artísticas ser uma tendência atual, esse é um percurso que já vem se manifestando há vários séculos, se tornando agudo desde as vanguardas históricas do século XX. Se os clássicos não admitiam as relações interartes e as classificações em gêneros distintos eram seguidas de forma rígida, foi somente a partir do Renascimento que vai se generalizar “a ideia de uma identidade superior entre as diferentes linguagens artísticas”. Passa-se a acreditar “em uma linguagem universal e mágica, segundo a qual a impressão captada por um dos sentidos era transmitida aos outros”10. Essa noção de sinestesia é retomada por Baudelaire, em seu soneto “Correspondances” (1857). Em seu poema, Baudelaire afirma que “o homem atravessa florestas de símbolos”, nas quais “os perfumes, as cores, os sons se correspondem”. Ademais, o poeta francês também foi um dos fundadores, com seus poemas em prosa, do movimento de expansão das fronteiras da lírica. A partir do final do século XIX, poetas e artistas plásticos, no Ocidente, vão reatar os vínculos antigos entre escrita e imagem. Os precursores desse processo são o poeta Mallarmé, com o poema “Un coup de dés”, e os artistas Picasso e Braque, com os papier-collés. Em seu poema, Mallarmé explora diferentes tipos de letras, graças às novas possibilidades tipográficas; dá uma nova utilização para o branco da página, tornando esses vazios elementos estruturadores do poema; além de buscar inspiração nas escritas das civilizações egípcias e asiáticas. A poesia passa a se situar no limite entre a literatura e as artes plásticas. Posteriormente, as vanguardas históricas do século XX vão retomar essa restituição do caráter visual da escrita. De acordo com Veneroso, 10

VENEROSO. A visualidade da escrita: a aproximação entre imagem e texto nas artes do século XX, 2010, p. 51.

“o artista moderno passa a não mais se interessar pela mimese da realidade. Ao invés disso, ele se interessa pelas relações estruturais que ocorrem na obra de arte”11. A tentativa desses artistas era captar a experiência sensível antes que esta atingisse a forma convencional da representação objetiva. As colagens cubistas, o suprematismo, o futurismo, o dadaísmo, o construtivismo, o expressionismo abstrato, a pop art, a arte conceitual, a poesia concreta, o grafite urbano, a poesia visual são algumas das manifestações artísticas que promovem uma relação estreita entre imagem e escrita, entre os poetas e os artistas plásticos. Além disso, flagramos, nesse percurso, o questionamento, por parte dos artistas, da centralidade da escrita no pensamento ocidental e o movimento de expansão dos limites da arte, que hoje se agudiza. No teatro, esse questionamento do logocentrismo é realizado por Antonin Artaud, em sua proposta para o teatro da crueldade. Segundo Derrida, o teatro defendido por Artaud anuncia o limite da representação, que afastou o teatro ocidental de sua potência afirmativa. Os grandes desafios do dramaturgo seriam: acabar com esse caráter imitativo da arte, trazer para o teatro a vida naquilo que ela tem de irrepresentável e de vir a ser e operar um deslocamento do caráter humanista e logocêntrico do teatro clássico. De acordo com Derrida: O palco é teológico enquanto for dominado pela palavra, por uma vontade de palavra, pelo objetivo de um logos primeiro que, não pertencendo ao lugar teatral, governa-o à distância. O palco é teológico enquanto a sua estrutura comportar, segundo toda a tradição, os seguintes elementos: um autor-criador que, ausente e distante, armado de um texto, vigia, reúne e comanda o tempo ou o sentido da representação, deixando esta representá-lo no que se chama o conteúdo dos seus pensamentos, das suas intenções, das suas idéias.12

No teatro da crueldade, a palavra deve ser mais um elemento, dentre tantos outros, aproximando-se do gesto, de sua presença tal como em um sonho, e transformando-se, enfim, em palavra-imagem, em fisicalidade. Ademais, o teatro da crueldade não é um teatro de improviso, mas sim um teatro que produz situações para a produção de acasos e de devires. Por isso, o que há não é nem o espectador nem o 11

VENEROSO. A visualidade da escrita: a aproximação entre imagem e texto nas artes do século XX, 2010, p. 43. 12 DERRIDA. O teatro da crueldade e o fechamento da representação, 2009, p. 154.

espetáculo, mas sim uma festa. Essa proposta de Artaud fez muitos adeptos, como, no caso brasileiro, os grupos Teatro de Arena e Teatro Oficina. A Tropicália também será um momento importante no que diz respeito a essa combinação entre as artes. Em seus textos “Tropicália: o problema da imagem superado pelo problema de uma síntese” e “Tropicália: a nova imagem”, ambos de 1969, o artista performático Hélio Oiticica destaca como o significado do conceito de Tropicália, inventado por ele em 1966-67, tomou uma extensão que ele não poderia imaginar. Se antes o conceito se referia a uma ideia puramente teórica, posteriormente, se estende para além do campo específico das artes plásticas. O artista passa a considerar, então, a Tropicália não como um movimento artístico organizado, mas antes como “a constatação de uma síntese onde se reúnem propósitos gerais: cinema, teatro, artes plásticas, música popular, porque as fronteiras entre essas divisões formais tendem a se dissolver dentro de algo maior”13. Conforme o artista, a síntese foi realizada, inicialmente, por Caetano Veloso, quando este compôs a música que iria se chamar “Mistura Fina”, mas, por sugestão do cineasta Luiz Carlos Barreto, passa a se chamar “Tropicália” – mesmo nome da instalação de Oiticica. A ideia trazida na música se encaixou muito bem com o conceito anterior formulado pelo artista plástico. A partir desse momento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinan, Tom Zé e Gal Costa conseguiram fazer a mais extraordinária revolução na música popular brasileira, dandolhe a importância de uma experiência de vanguarda, e ao mesmo tempo estabeleceram uma relação, intencional ou por acaso, com experiências em outros campos de criação, como as produções teatrais de José Celso Martinez Corrêa (...). O cinema de Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe) pode ser incluído entre muitas produções do cinema novo no Brasil e a nova divulgação de filmes underground; as artes plásticas (Gerchman, Pape, Manuel, Lanari etc.) e a poesia e a literatura (irmãos Campos, Pignatari etc.).14

Após esse breve percurso sobre as relações entre as diferentes linguagens artísticas, retornemos ao texto de Florência Garramuño. Em seu livro, a autora responde a demanda de Canclini por uma reformulação do conceito de campo e se contrapõe a 13

OITICICA. Tropicália: o problema da imagem superado pelo problema de uma síntese, 2007, p. 309. 14 OITICICA. Tropicália: a nova imagem, 2007, p. 312.

Ludmer, ao postular não o “fim do campo”, mas a ideia de um “campo expandido”, no caso da literatura contemporânea. A inspiração de Garramuño vem de Rosalind Krauss, que, já no final da década de 1970, propôs a ideia da “escultura em um campo expandido”, ao se deparar com obras artísticas que não podiam continuar a ser chamadas de escultura, a não ser que a categoria se expandisse e se tornasse maleável. Garramuño se contrapõe a Ludmer, ainda, no que diz respeito ao potencial crítico dessa arte inespecífica do presente. Enquanto Ludmer afirma que a literatura perde seu poder crítico, diante da perda da autonomia, Garramuño defende a existência de uma outra forma de pensar o potencial crítico da arte. Esse potencial crítico passaria a residir, justamente, nessa mistura ou não pertencimento. Para reforçar seu argumento, a autora traz a citação de Jacques Rancière abaixo: Pois em todas essas performances busca-se unir o que se sabe ao que se ignora, ser ao mesmo tempo performers a exibirem suas competências e espectadores a observarem o que essas competências podem produzir num contexto novo, junto a outros espectadores. Os artistas, assim como os pesquisadores, constroem a cena em que a manifestação e o efeito de suas competências são expostos, tornados incertos nos termos do idioma novo que traduz uma nova aventura intelectual. O efeito do idioma não pode ser antecipado. Ele exige espectadores que desempenhem o papel de intérpretes ativos, que elaborem sua própria tradução para apropriar-se da “história” e fazer dela sua própria história. Uma comunidade emancipada é uma comunidade de narradores e tradutores.15

Desconstruindo as hierarquias entre autor e espectador, entre a ação e a contemplação, o potencial crítico da arte seria, portanto, tornar propício um “cenário de igualdade”. A autora afirma que “é como se, na retirada do sentido dessa mescla e fusão, o sem-sentido do mundo passasse para a arte”16. Diante disso, a literatura contemporânea torna-se, conforme Garramuño, “uma literatura ignorante”, ao buscar refúgio na ausência de sabedoria e entender a criação artística como a tradução de um idioma novo. A tradução deve ser aqui compreendida nos termos em que pensa Eduardo Viveiros de Castro, quando este afirma que “a boa tradução é aquela que consegue fazer com que os conceitos alheios deformem e subvertam o dispositivo conceitual do 15

RANCIÈRE apud GARRAMUÑO. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea, 2014, p. 16. 16 GARRAMUÑO. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea, 2014, p. 14.

tradutor, para que a intentio do dispositivo original possa ali se exprimir, e assim transformar a língua de destino”17. Nesse cenário de mudanças na estética contemporânea, Nuno Ramos parece encenar algumas das transformações abordadas brevemente até aqui. O trabalho de Ramos não se situa em nenhum meio específico, mas sim na contaminação de práticas, discursos e materiais múltiplos e heterogêneos. O artista passeia por diversas formas artísticas – a fotografia, as artes plásticas, a literatura, a música e as artes visuais. Diante disso, poderíamos chamá-lo de “um artista ignorante”, no sentido em que parece não se colocar como especialista em nenhuma dessas linguagens (exceto, talvez, as artes plásticas, com as quais trabalha desde 1984), mas sim como um experimentador de cada uma dessas linguagens e de suas possibilidades. Uma característica importante na obra de Nuno Ramos é a operação de colocar em contato materiais dessemelhantes, fazendoos se encontrar e se tornarem análogos, abrindo a passagem, em sua obra, de um meio a outro, de uma matéria a outra. Vaselina, terra, sal, breu, fumaça, vinagre, petróleo, ácido sulfúrico, coca-cola, soro fisiológico, água, carvão, arames, estes são alguns dos materiais com os quais Ramos trabalha. Outro ponto importante de sua obra é a manutenção de tudo num estado incerto e inacabado, como se o seu trabalho estivesse sempre em “formação”. Nesse sentido, o artista parece ter aprendido a lição de Deleuze, em seu texto “A literatura e a vida”: Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento (...). Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida.18

Para exemplificar esse inacabamento e essa contaminação entre literatura e outras artes na obra de Nuno Ramos, o livro Cujo (1993) seria o texto-chave para ler, pois as passagens que compõem esse primeiro livro do artista foram aparecendo anos antes do livro, fragmentariamente, em mostras de obra plástica, escritos sobre diferentes superfícies e com diferentes materiais. Antes de se tornarem símbolos nas páginas do 17

VIVEIROS DE CASTRO. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pósestrutural, 2015, p. 87. 18 DELEUZE. A literatura e a vida, 1997, p. 11.

livro, os escritos de Ramos foram impressos como matéria em obras como Breu, Vidrotexto 1, 2 e 3, Aranha e Canoa. Ademais, o livro não pertence a nenhuma arte em particular, mas é visível como arte de forma mutante. No livro, a arte funciona como um grande laboratório de destruição e criação, de mutações e de passagens. Apesar de a ficha catalográfica definir Cujo como “poesia brasileira”, o que encontramos, ao longo do livro é um texto sem versos, métricas, estrofes e todas aquelas características da poesia com as quais ainda estamos acostumados. Nuno Ramos propõe uma tensão entre a prosa e o verso nesse livro, e, podemos dizer: talvez o que se chame de “poesia”, nesse caso, se aproxime daquilo que Agamben oferece como explicação na epígrafe desse trabalho. Talvez o que o artista chame de poesia seja esse “algo que incessantemente habita, trabalha e sustém a língua escrita para restituí-la àquele ilegível do qual provém e para o qual se mantém em viagem”. Referências AGAMBEN, Giorgio. Sobre a dificuldade de ler. Revista Cult, n. 180. Disponível em: . Acesso em: abr. 2016. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. 3. ed. São Paulo: Limonax, 1987. BRIZUELA, Natalia. Depois da fotografia: uma literatura fora de si. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2014. CANCLINI, Nestor Garcia. Leitores, espectadores e internautas. São Paulo: Iluminuras, 2008. DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In: ______. Crítica e clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. DERRIDA, Jacques. O teatro da crueldade e o fechamento da representação. In: ______. A escritura e a diferença. Trad. Maria Beatriz Marques Nizza da Silva et al. São Paulo: Perspectiva, 2009. GARRAMUÑO, Florencia, KIFFER, Ana (Orgs.). Expansões contemporâneas: literatura e outras formas. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2014. GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2014.

LUDMER, Josefina. Literaturas pós-autônomas. Sopro – Panfleto político-cultural, n. 20, jan. 2010. Disponível em: . Acesso em: jan. 2016. OITICICA, Hélio. Tropicália: o problema da imagem superado pelo problema de uma síntese. In: BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007. OITICICA, Hélio. Tropicália: a nova imagem. In: BASUALDO, Carlos (org.). Tropicália: uma revolução na cultura brasileira. São Paulo: Cosac Naify, 2007. RAMOS, Nuno. Cujo. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. SARDENBERG, Ricardo; TASSINARI, Alberto (orgs.).. Nuno Ramos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. A visualidade da escrita: a aproximação entre imagem e texto nas artes do século XX. In: ARBEX, Márcia; BARBOSA, Márcio Venício; CASA NOVA, Vera (orgs.). Interartes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

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