APROXIMAÇÕES ENTRE A SEMIÓTICA SOCIAL E A ANÁLISE DO DISCURSO: UM EXAME DE CAPAS DE REVISTAS

June 14, 2017 | Autor: Roberto Santos | Categoria: Discourse Analysis, Multimodality, Social Semiotics
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Não desconsideramos os possíveis desacordos e pontos conflitantes entre as duas correntes, no entanto, interessa-nos, nesse texto, destacar as afinidades.
APROXIMAÇÕES ENTRE A SEMIÓTICA SOCIAL E A ANÁLISE DO DISCURSO: UM EXAME DE CAPAS DE REVISTAS
Francisco Roberto da Silva SANTOS
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN)


1 Introdução

Anteriormente defendemos (cf. SANTOS, 2011) que os estudos dos discursos "não podem prescindir de uma investigação do fenômeno da multimodalidade", uma vez que os elementos visuais que compõem os textos também encerram escolhas (muitas vezes inconscientes) que deixam entrever posicionamentos ideológicos e políticos. Assim, as imagens e demais recursos multimodais transmitem sentidos que são "atravessados por discursos historicamente marcados e que são perpetuados pelos indivíduos e pelas instituições envolvidas na produção e circulação dos textos" (SANTOS, 2011, p. 17).
Também já afirmamos (cf. SANTOS, 2013) que "a análise do discurso pode e deve lançar mão dos instrumentos teórico-metodológicos estabelecidos pela semiótica social", especialmente na Gramática do Design Visual (KRESS e van LEEUWEN, 2006). Isso se justifica uma vez que tais instrumentos permitem ao analista, ao mapear a materialidade da imagem, alcançar "o plano discursivo, ao sondar as redes sociais de poder e solidariedade que ora admitem, ora proíbem a materialização de determinado significado, restringindo assim as escolhas visuais e verbais dos falantes envolvidos no processo comunicativo" (SANTOS, 2013, p. 372).
O presente texto retoma esses posicionamentos, discutindo algumas aproximações teóricas entre a análise do discurso e a semiótica social. Em seguida, através do exame de capas de revista, buscamos demonstrar de que forma a análise linguística dos gêneros que circulam na sociedade pode beneficiar-se da aliança entre essas duas teorias.

2 Considerações sobre a análise do discurso.

A Análise do Discurso (AD) é uma corrente linguística que toma o discurso como objeto de análise a partir de sua materialidade textual, situado assim, no interior de relações interdiscursivas, ideológicas, sociais e históricas. É a partir da materialidade textual que podemos ter acesso ao discurso, mas este não se encerra naquela, mas implica uma exterioridade ao texto já que encontra-se no social e estabelece relações com a história (FOUCAULT, 1999 apud SILVA, 2008). Assim, conforme sugere Orlandi (2006, p.15), "na análise do discurso não podemos deixar de relacionar o discurso com suas condições de produção, sua exterioridade".
Pêcheux (1969 apud ORLANDI, 2006, p. 14) afirma que "o discurso mais do que transmissão de informação (mensagem) é efeito de sentidos entre locutores". Isso quer dizer que, por remeter uma exterioridade à língua, o discurso depende de posições ideológicas, sociais e históricas que permitem a construção de sentidos, isto é, de "efeitos de sentidos", o que possibilita uma desestabilização e uma série de equívocos por onde deslizam as compreensões e interpretações dos enunciados singulares que formam o discurso. Deve-se ter em mente, também, que o lugar histórico, a posição sujeito ocupada pelo locutor, além de todas as condições de produção envolvidas na emergência dos enunciados determinam os sentidos que são sempre (re)transformados e nunca repetidos, pois cada enunciado-discurso é único.
A AD ainda considera o discurso como "uma manifestação, uma materialização da ideologia decorrendo do modo de organização dos modos de produção social" (MUSSALIM, 2003, p. 110). A ideologia é entendida como o reflexo das visões de mundo de determinado sujeito ou determinado grupo social, ou seja, a ideologia representa uma exterioridade à língua, buscando na memória social e histórica a fundamentação para a construção e produção de sentidos nos discursos materializados linguisticamente (intradiscurso). Esse conceito é imprescindível para os estudos em AD, na medida em que é tomado para explicar a construção de sentidos, tendo em vista que sentido é entendido como "efeito de sentido", a dimensão interdiscursiva da ideologia faz emergir os equívocos linguareiros que permitem o aparecimento de um dado enunciado situado e singular (cf. SILVA, 2008).
Compreendendo os sentidos dos discursos como sendo uma construção sócio-ideológica historicamente situada, podemos dizer que tais sentidos não são dados a priori a partir da imanência dos signos, mas como "efeito de sentido", o que faz refletir a posição ideológica dos sujeitos no momento da enunciação. Tendo em vista que os efeitos de sentido dos discursos materializados por meio da linguagem dependem do lugar sócio-ideológico do qual o sujeito fala, sua inscrição histórica e ideológica afeta a produção dos discursos no qual o efeito de sentido se constrói como uma exterioridade a língua (cf. SILVA, 2008; ORLANDI, 2006; MUSSALIM, 2003).
Podemos dizer ainda, que o conceito de ideologia relaciona-se à noção de Formação Discursiva (Foucault) já que esta refere-se às condições interdiscursivas que permitem o surgimento de um enunciado e não de outro, determinando, assim, o que pode e deve ser dito em determinado discurso, levando-se em consideração as posições dos sujeitos, as condições de produção e a situação sócio-histórica que situa os enunciados (cf. SILVA, 2008; ORLANDI, 2006; MUSSALIM, 2003)..
A análise do discurso concebe o sujeito não como um dado a priori, como já definido desde o nascimento e como único e idêntico a si mesmo, como fazem outras teorias da linguagem. De acordo com Mussalim (2003, p.110), a ideia de sujeito para a AD não é como "aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe permite determinadas inserções e não outras". Assim sendo, o sujeito não é dono de um saber consciente e não fala tudo o que quer na hora que deseja. Em outras palavras, ele não domina o seu próprio discurso. Na verdade, o sujeito é uma posição vazia, que pode ser ocupada por diferentes indivíduos. Uma posição que pertence a uma Formação Discursiva e que, portanto, sofre coerções naquilo que pode ou não dizer. Ao falar, o indivíduo assume uma posição na ordem do discurso, comunicando não o que deseja conscientemente, mas somente aquilo que aquela posição permite-lhe pronunciar em uma conjuntura histórica determinada.
Falando de outro modo, o sentido não pertence ao indivíduo que o produz, mas a uma Formação Discursiva, na qual se insere a posição sujeito que esse indivíduo ocupou para produzir esse sentido, ou melhor, esse efeito de sentido. É por isso que, quando o analista busca interpretar o sentido de um enunciado, ele não pode jamais deter-se somente ao intradiscurso, ou seja, à materialidade textual do discurso, mas deve ir em busca, também, do interdiscurso, isto é, do conjunto de enunciados exteriores e anteriores ao texto materializado que pertencem a discursos advindos de outras épocas e de outros lugares sociais e que se entrecruzam no núcleo de uma Formação Discursiva (cf. SILVA, 2008). Nos termos de Foucault, o analista deve interrogar, tendo em vista a noção-conceito de FD, "porque um enunciado foi produzido em uma dada conjuntura histórico-social e não outro em seu lugar?".

3 Considerações sobre a semiótica social

Baseada na Linguística Sistêmico-Funcional de Halliday, a semiótica social considera os vários sistemas semióticos, inclusive a linguagem, como conjuntos de recursos que estão à escolha dos falantes de determinada cultura para realizarem sentidos em contextos sociais. Portanto, os sentidos são tidos não como inerentes aos signos, mas como pertencentes a uma dada cultura e influenciados pelas relações conflituosas que determinam a estrutura social de um grupo.
As fronteiras teóricas da semiótica social foram delineadas por Hodge & Kress (1988), em seu livro Social Semiotics. Para realizar um estudo que estabelecesse a relação entre os signos e a sociedade, Hodge & Kress (1988, p. viii) partiram, primeiramente, de uma concepção de comunicação advinda do Círculo de Bakhtin e de uma concepção de sociedade amparada no marxismo:

Vemos a comunicação essencialmente como um processo, não como um conjunto desencorpado de significados ou textos. O sentido é produzido e reproduzido sob condições sociais específicas através de agências e formas materiais específicas. Ele existe em relação a sujeitos e objetos concretos, e é inexplicável exceto em termos desse conjunto de relações. A sociedade é tipicamente constituída por estruturas e relações de poder, exercidas ou resistidas; é caracterizada pelo conflito tanto quanto pela coesão, assim sendo as estruturas de significado em todos os níveis, desde as formas ideológicas dominantes às ações semióticas locais apresentarão traços de contradição, ambiguidade, polissemia em várias proporções, por vários meios.

Essas noções permitem a Hodge & Kress (1988, p. vii) estudar o fenômeno semiótico partindo da ideia de que os processos de produção e recepção de sentidos só podem ser compreendidos tendo como ponto de partida a dimensão social e as lutas de poder que a caracterizam e que são refletidas nos eventos comunicativos.
Um aspecto fundamental para a semiótica social é o uso do termo recurso, que substitui a noção de "código" da semiótica tradicional, a qual "considerava os sistemas semióticos como códigos, conjuntos de regras para conectar sinais e significados" (JEWITT; OYAMA, 2001, p. 134). Por sua vez, a semiótica social trata os modos semióticos como recursos, termo emprestado de Halliday, que é definido por van Leeuwen (2005, p. 3) como "as ações e os artefatos que nós usamos para nos comunicarmos, sejam eles produzidos fisiologicamente ou por meios tecnológicos". Esse autor também argumenta que "na semiótica social, o termo 'recurso' é preferido, porque ele impede a impressão de que 'o que um signo representa' é algo pré-determinado, e não é afetado pelo seu uso" (van Leeuwen, p. 3).
Os recursos semióticos são, segundo Jewitt & Oyama (2001, p. 136), "produtos de histórias culturais" e "foram inventados em contextos de interesses e propósitos específicos". Outro fator importante é que eles não possuem um sentido único e inalienável, mas um potencial semiótico, ou seja, uma série limitada de significados que podem ser ativados pelos interlocutores em contextos sociais específicos (Cf. JEWITT; OYAMA, 2001, p. 135). Além disso, as normas que indicam os potenciais semióticos dos recursos não são imutáveis nem inatas, e uma preocupação precípua da semiótica social é estudar os fatores sociais e históricos que determinaram o aparecimento de um recurso e os que podem causar mudanças em suas regras de uso. Kress & van Leeuwen (2006) também destacam o caráter ideológico da imagem, ao dizerem que:

As estruturas visuais não simplesmente reproduzem as estruturas da realidade. Pelo contrário, elas produzem imagens da realidade que está vinculada aos interesses das instituições sociais no interior das quais as imagens são produzidas, circuladas e lidas. Elas são ideológicas. As estruturas visuais nunca são meramente formais: elas têm uma dimensão semântica profundamente importante. (KRESS; van LEEUWEN, 2006, p. 47).

Isso significa que o processamento das imagens deve ocorrer com o mesmo rigor racional e critico que a leitura da palavra encerra, de forma a considerar sua dimensão sócio-ideológica. Para Kress & van Leeuwen (2006, p. 20), "numa cultura alfabetizada os meios visuais da comunicação são expressões racionais de significados culturais propícios a julgamentos e análises racionais". É por isso que esses autores propõem uma teoria de análise de elementos visuais. A Gramática do Design Visual (GDV), como ficou conhecida essa teoria, compreende as imagens como estruturas sintáticas que podem ser examinadas assim como a linguagem. Isso é possível pelo fato de o método de Kress & van Leeuwen (2006) ter suas bases na LSF, a qual pode ser adequada para a análise sintática de qualquer sistema semiótico, inclusive a imagem, já que o que interessa a esse modelo é o estudo da função, e não da forma. A Tabela 1, a seguir, traz um resumo de alguns conceitos-chave da gramática visual de Kress & van Leeuwen (2006):


ALGUNS CONCEITOS-CHAVE DA GRAMÁTICA DO DESIGN VISUAL (cf.: Kress; van Leeuwen, 2006)
Participantes Representados (PR)
Cada elemento que aparece representado na imagem
Participantes Interativos (PI)
Participantes da interação mediada pela imagem: produtor e leitor
Vetor
Linha oblíqua que une os participantes representados, indicando que um age sobre o outro
Metafunção Representacional
Processos Narrativos (Participantes ligados por vetores)
TIPO DE PROCESSO
TIPOS DE PARTICIPANTES

Processo de ação
Ator: participante do qual emana o vetor, que pratica a ação


Meta: participante para o qual se direciona o vetor, que sofre a ação

P. de reação
(ação de olhar)
Reator: participante que pratica a ação de olhar


Fenômeno: participante (ou processo) para o qual se direciona o olhar do Reator
Processos Conceituais
(Não há vetores entre participantes)
P. analítico
(relação parte-todo)
Portador: o todo, participante que contêm os Atributos Possessivos


Atributos Possessivos: as partes que constituem o Portador

P. classificacional
(rel. de ordem estática)
Superordinado: categoria mais geral (o tronco)


Subordinados: subcategorias (os ramos)

P. simbólico
Portador: participante ao qual se atribui valores simbólicos


Atributos Simbólicos: atribuem valores ao Portador
Circunstâncias
(elementos secundários)
Locativa: servem de Cenário onde se localizam os participantes e suas ações

de Acompanhamento: acompanham os participantes principais

de Meio: servem de ferramenta ou instrumento para a realização da ação dos participantes principais
Metafunção Interativa
Modalidade
Codifica o valor de verdade atribuído à imagem, através do uso de certos marcadores de modalidade: a contextualização, o grau de detalhe e o tipo de reprodução das cores etc.
Contato
Demanda: quando os participantes representados olham para o observador

Oferta: quando os participantes representados não olham para o observador
Distância Social
Próxima: uso do plano fechado; relação de intimidade entre PR e PI

Média: uso de plano intermediário; PR e PI se conhecem, mas não são íntimos

Longa: uso de plano aberto; participantes representados são totalmente estranhos
Perspectiva
Ângulo Horizontal
Frontal: relação de envolvimento entre PR e PI


Oblíquo: relação de estranhamento entre PR e PI

Ângulo Vertical
Alto: Participantes interativos têm poder sobre a imagem


Baixo: A imagem tem poder sobre participantes interativos


Ao nível do olhar do observador: igualdade de poder
Metafunção Composicional
Valor informativo
Refere-se ao valor específico assumido pelos elementos visuais de acordo com sua localização na página: direita/esquerda (Dado/Novo); zona superior/zona inferior (Ideal/Real); zona central/bordas (Centro/Margens)
Saliência
Relaciona-se ao modo como os participantes representados estão dispostos para criar uma hierarquia de importância entre eles
Estruturação
Presença de elementos que conectam ou separam os participantes representados
Quadro 1. Resumo de alguns conceitos-chave da Gramática Visual (SANTOS, 2012, p. 352-354)

4 Aproximações teóricas

Desse breve e superficial percurso em torno da análise do discurso e da semiótica social, depreendemos algumas afinidades conceituais entre as duas teorias:
A noção de exterioridade à língua ou ao modo semiótico, como fator determinante para explicar os efeitos de sentido atribuídos a um texto, a uma imagem, a uma melodia, a uma vestimenta, enfim, a uma materialidade. Assim, o sentido não se encerra no material (linguístico ou não), mas deve ser buscado na dimensão social e histórica, no jogo de interdições e de relações de poder ou solidariedade que permitiram sua imanência.
A noção de sujeito, como uma entidade que não pode ser pré-determinada, ou vista como dona de seu próprio dizer e de suas escolhas semióticas. Tanto a AD como a semiótica social entendem o sujeito como não tendo controle dos sentidos que enuncia, uma vez que esse é determinado pela posição ideológica e discursiva que o sujeito ocupa numa conjuntura histórica e social.
A ideia de texto como materialização do discurso, expressa, por exemplo, em Orlandi (2006, p. 16): "o texto constitui discurso, sua materialidade", e em Hodge e Kress (1988, p. 6): que utilizam o termo discurso para "se referir ao processo social no qual os textos estão embutidos, enquanto texto é o objeto material concreto produzido no discurso".
O conceito de ideologia como visão de mundo imposta por um grupo social, que assume papel importante na construção de sentidos. Além disso, a percepção de que as diferentes ideologias estão em constante embate de forças, resultando em contradições, coerções e subversões. A AD denomina esse confronto de formação ideológica (cf., por exemplo, MUSSALIM, 2003, p. 124); enquanto os fundadores da semiótica social o nomeiam complexo ideológico (HODGE; KRESS, 1988, p. 3). Os termos formação ideológica e complexo ideológico, apesar de referirem-se ao mesmo fenômeno, possuem cada um suas especificidades conceituais no interior das teorias que as utilizam.
A hipótese de que existe um conjunto de regras prescrevendo as condições pra produção e recepção de sentidos, ou melhor, um jogo estratégico de relações de saber-poder que possibilitam a produção e a aparição de uma mensagem e não de outra em determinado contexto histórico-social. A AD chama esses mecanismos de controle do dizer de formações discursivas (cf. SILVA, 2008; ORLANDI, 2006; MUSSALIM, 2003), ao passo em que a semiótica social utiliza o termo sistemas logonômicos (HODGE; KRESS, 1988, p. 4). Do mesmo modo que os conceitos apresentados no item d, aqui, não assumimos que os termos formações discursivas e sistemas logonômicos sejam sinônimos, visto que eles resguardam especificidades condizentes com os construtos teóricos dos quais fazem parte.

Essas aproximações (além de outras não explicitadas aqui) apontam para um diálogo possível entre as duas linhas teóricas, levando-nos a crer que isso poderia trazer contribuições mútuas. Na seção que se segue, através da análise de capas de revista, buscamos estabelecer esse diálogo, evidenciando sua colaboração para uma análise mais completa dos textos e dos discursos que circulam em nossa sociedade.

5 Análise de capas de revista

Neste artigo, investigamos duas capas da revista Época. Tais textos foram publicados em abril de 2014, e foram escolhidos por tratarem de um tema comum: as denúncias de corrupção e mal uso de dinheiro público relacionadas à Petrobras. Tais capas estão reproduzidas a seguir:

Figura 1 Figura 2

Fonte: Época, 05 de abril de 2014 Fonte: Época, 18 de abril de 2014

A primeira capa da Época chama à atenção para as denúncias de "Propina na Petrobrás" e foi publicada em 05 de abril de 2014, ou seja, no período em que as investigações começaram e as primeiras irregularidades foram delatadas. Já a segunda capa, de 18 de abril do mesmo ano, foi publicada já com as investigações bem adiantadas e, portanto, destaca as "Novas provas de corrupção na Petrobrás".
Focando nos títulos das capas percebemos uma estrutura verbal em comum, que podemos reduzir como x + na Petrobras, sendo x = propina na primeira capa, e x = corrupção na segunda, ou seja, duas práticas ilícitas que estariam sendo praticadas no interior da empresa petroleira. Assim o uso da preposição na e a posição da palavra Petrobrás como adjunto adverbial de lugar, em ambos os títulos, deixam entrever a ideia de que a Petrobras não seria a agente dessas improbidades, mas sim o lugar onde elas foram realizadas. Em outras palavras, podemos deduzir o discurso de que não foi a empresa em si que recebeu as denúncias de propina e corrupção, mas pessoas ou grupos mal intencionados que agem dentro dela.
Um dessas pessoas mal-intencionadas está explicitamente mencionada em ambas as capas: o ex-diretor da Petrobrás, Paulo Roberto Costa. Seguem os trechos em que ele é citado:
(...) e os indícios de corrupção que o ex-diretor Paulo Roberto Costa não conseguiu destruir antes de ser preso.
Outras contas secretas do ex-diretor preso Paulo Roberto Costa e novas empresas suspeitas de pagar propina.
Em (a), Paulo Roberto Costa aparece como sujeito da oração subordinada subjetiva "não conseguiu destruir antes de ser preso", que tem como objeto direto o pronome relativo "que", cujo referente é "indícios de corrupção". Portanto, o ex-diretor da Petrobrás é colocado como agente efetivo (sujeito) do ato de tentar sem sucesso destruir provas de corrupção. Já no trecho (b), Paulo Roberto Costa é relacionado ao termo "outras contas secretas" através da preposição "do", que indica posse; significando que ele é o dono das tais contas secretas. Nessas duas construções, também notamos as escolhas pelos vocábulos "destruir" e "secretas" ligados às ações de Paulo Roberto Costa, o que o representam como uma pessoa furtiva e perigosa, pois, tendo consciência de seus atos desonestos, tenta apagar provas e esconder vestígios. Percebe-se também que, tanto em (a) como em (b), aparecem explicitadas as expressões "ex-diretor" e "preso", denotando a ideia de que o acusado não faz mais parte do staff da Petrobras e está apartado do convívio geral da sociedade. Em outras palavras, a empresa não mantém mais nenhuma relação com ele.
Comparando esses trechos com os títulos, nos quais a Petrobras aparece como mero local onde as atividades ilícitas foram realizadas, percebemos que Paulo Roberto Costa é colocado como real ator da ação de "não conseguir destruir" e como possuidor das "outras contas secretas", assim ele é representado efetivamente como culpado dessas ilegalidades. Em (b) também encontramos a frase "novas empresas suspeitas de pagar propinas", na qual as novas empresas (não a Petrobras) aparecem também como efetivas agentes (ou pelo menos suspeitas) do ato ilegal de "pagar propinas".
Quando a Petrobras é colocada efetivamente como realizadora de uma ação censurável, essa ação é simplesmente a de fazer "maus negócios", como no trecho transcrito em (c), da capa de 18 de abril de 2014. Ora, realizar "maus negócios" é errado e danoso, principalmente se trata-se de uma estatal, porém é algo a que qualquer empresa está sujeita a cometer; ou seja, um erro menor comparado a manter contas secretas, tentar destruir provas incriminadoras ou pagar propina.
Os rastros do esquema na Argentina – e outros maus negócios da estatal.
Passemos agora a analisar a materialidade visual dessas duas capas de Época. Em primeiro lugar, notamos o uso predominante da cor preta, em ambos os artefatos. O preto pode ser visto como um recurso semiótico que está socialmente associado a sentidos negativos, como morte (pessoas usam roupas pretas para indicar luto), podridão (alimentos ficam escuros quando apodrecem), maldade (vide as roupas das bruxas más em livros e filmes infantis), escuridão (a noite e a sombra) etc. Assim, no contexto das capas, além denotar uma referência direta ao petróleo, o uso da cor preta também carrega esses outros sentidos negativos para representar os atos ilícitos que estão sendo denunciados.
Na capa "Propina na Petrobras", nota-se que o título e o restante do texto aparecem em branco sobre um segundo plano preto que representaria um aglomerado de petróleo. O branco, em oposição ao preto, carregam sentidos positivos de clareza e luz. Esses aspectos têm o potencial semiótico de denotar que, do interior da escuridão que envolve as práticas ilegais realizadas na empresa, aquela edição de Época trará, a partir de sua matéria de capa, informações esclarecedoras, que colocarão luz para o caso. Essa acepção está de acordo com as análises de Piovezani Filho (2003) dos ethos materializados nos textos da imprensa em geral, que revelam uma "postura crítico-heurísitica" da mídia, como agente político, reivindicando para si o exercício de "deslindar o obtuso, de revelar o real" que se esconde nas malhas da política (p. 57) ou, neste caso, de uma grande estatal.
Outro sentido possível, que nos é permitido pelo próprio título, que como vimos posiciona a Petrobras como adjunto adverbial de lugar, é considerarmos o "aglomerado de petróleo" em segundo plano como uma metáfora da empresa, que na sintaxe visual da capa ganha status de circunstância locativa (KRESS; van LEEUWEN, 2006) na qual posicionam-se e apresentam-se o título e o texto. Desse modo, os elementos visuais repetiriam o sentido do título, reforçando o discurso de que a Petrobras, ao invés de ser agente das práticas de propina, é o mero local em que elas ocorreram.
Um discurso similar parece ser materializado visualmente na capa "Novas provas de corrupção na Petrobras". No lado esquerdo dessa capa, vemos uma espécie de monstro preto saindo de um barril de petróleo com o logotipo da Petrobras. No contexto que se apresenta e fazendo uma leitura em conjunto com o título, podemos interpretar esse monstro como uma representação da corrupção que existia dentro da Petrobras (representada pelo barril) e que agora se revela. Novamente, a empresa é representada como uma circunstância locativa onde se escondia e habitava o "monstro da corrupção". Cabe aqui fazer a ressalva de que, apesar de o barril com o logotipo da Petrobras assumir o papel, no contexto da sintaxe visual, de circunstância locativa, ele não pode ser visto como um mero elemento secundário, haja vista a saliência que ele ganha na composição em decorrência de seu tamanho, do fato de o logotipo ser um dos únicos elementos coloridos em toda a capa, e também pelo peso simbólico que o logotipo da maior e mais famosa empresa brasileira carrega.
Pode-se notar também que, pelo tipo de reprodução das cores, que é, segundo a gramática visual, um marcador de modalidade (KRESS; van Leeuwen, 2006), o barril ganha mais valor de verdade (por suas cores menos saturadas e mais próximas do real) do que o monstro (por utilizar um preto supersaturado e com brilho exagerado, bem como pela sua forma de aspecto instável). Além disso, o próprio caráter mítico e fantástico da figura monstruosa já esvazia o valor de verdade desse elemento. Corrobora também para esse sentido o posicionamento do monstro em relação ao barril na composição da imagem, que atrelam a esses elementos valores informativos contrastantes. Kress & van Leeuwen (2006) explicam que quando a distribuição dos elementos ocorre no eixo vertical da página ou da imagem, os participantes da parte superior recebem, valor informativo de Ideal, enquanto que os elementos que aparecem na parte inferior, são tidos como Real. No conjunto barril-monstro, portanto, o barril da Petrobras possui status de Real, no sentido de concreto, sólido, palpável; enquanto o monstro ganha valor de Ideal, com caráter de abstrato, incerto, hipotético. Assim, as escolhas dentro dos recursos semióticos da modalidade e do valor informativo cooperam para vincular à Petrobras (metaforizada pelo barril) os sentidos de concretude, estabilidade e, em última análise, confiança. Em contraposição, as escolhas na representação do monstro da corrupção o retratam como hipotético, abstrato e efêmero, isto é, como algo que pode ser suplantado e que não abalaria o caráter sólido e confiável que a empresa ainda resguarda.
Analisando agora a perspectiva (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006) em que os elementos "monstro da corrupção" e "barril da Petrobras" foram retratados, notamos o uso do ângulo horizontal oblíquo na representação do primeiro (já que o monstro está de lado, de perfil) e do ângulo horizontal frontal para o segundo (já que o logotipo da Petrobras presente no barril está sendo mostrado de frente). Os autores da gramática visual explicam que o ângulo oblíquo sugere uma relação de alheamento entre o participante representado e o participante representado (incluindo aqui o leitor e o produtor da imagem), no sentido de que eles não fazem parte do mesmo mundo; enquanto o ângulo frontal sugere um envolvimento dos participantes interativos com os participantes representados, como se ambos fizessem parte do mesmo mundo (Cf. KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). Sendo assim, extrai-se o sentido de que o produtor da capa retratou o "monstro da corrupção" como alheio aos valores do leitor e da própria revista, como algo a ser abominado e evitado por todos. Em oposição, a representação do barril da Petrobrás em um ângulo frontal cria uma relação virtual de envolvimento para com o leitor e a própria revista, significando uma adesão destes aos valores da Petrobras; assim a empresa é vista como um elemento a quem o leitor pode identificar-se e simpatizar-se.
De um modo geral, portanto, tanto os elementos linguísticos como os não-linguísticos das capas de Época coadunam ao concretizarem um discurso que alivia a culpabilidade da Petrobras quanto às improbidades que estão sendo denunciadas, ao retratarem-na apenas como o local onde pessoas e empresas mal intencionadas praticaram tais irregularidades, mostrando a estatal como tendo um caráter estável, confiável e identificada com os valores dos leitores e dos produtores da revista. O sujeito produtor da capa (caracterizado aqui como a própria revista Época), portanto, ao materializar esse discurso de proteção da imagem da Petrobrás, que a desresponsabiliza dos crimes delatados, o fez simplesmente por estar autorizado por uma formação discursiva ligada a uma formação ideológica que tem interesse na manutenção da integridade da estatal. Em outros termos, poderíamos dizer que os sentidos construídos pelos recursos semióticos (verbais e não-verbais) que compõem a capa foram autorizados por um sistema logonômico ligado a um complexo ideológico favorável à sustentação da empresa petroleira.
Porém os discursos não se revelam apenas no que está explícito no texto, mas também naquilo que ele esconde ou apaga. Não vemos na primeira capa de Época (Propina na Petrobrás) qualquer referência, por meio de recursos verbais ou visuais, à responsabilidade da presidente Dilma, de seu partido (o PT), nem tampouco do governo como um todo; apesar do fato de, conforme foi noticiado, Dilma Rousseff ter tido participação direta na compra de uma petroleira em Pasadena, negócio muito prejudicial à Petrobras, na época em que ela assumia o cargo de Ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula. Apenas na segunda capa (Novas provas de corrupção na Petrobrás) é que temos uma menção ao governo, no seguinte trecho:
Um documento inédito complica a versão do governo no caso Pasadena.
No entanto, a palavra "governo" é muito genérica e não remete direta e exclusivamente à presidente petista. Além disso, a responsabilidade desse governo também não é explicitamente expressa nesse fragmento, visto que a escolha pelo verbo "complica" (ao invés de outros mais contundentes e comprometedores como "nega", "desmente" ou "contradiz") que tem nessa oração como meta ou objeto "a versão do governo", indica apenas uma possibilidade ou suspeita de que as declarações emitidas pelo governo podem não estar condizentes com a verdade dos fatos.
Tais observações poderiam levar-nos a constatar a já tantas vezes promulgada "tendência esquerdista" da revista Época, no entanto, preferimos dizer que o sujeito em questão atualizou, nessa capa, um discurso que alinha-se aos interesses do grupo político que atualmente assume o poder governamental do país.

6. Considerações finais

Experimentamos atualmente uma profusão cada vez maior de textos multimodais, seja nas mídias impressas ou virtuais. Torna-se imperativo superarmos a crença de que os sentidos de um texto encerram-se exclusivamente nos signos linguísticos e que os elementos visuais são ideologicamente neutros. Assim, tornam-se basilares para a análise dos discursos materializados nos textos que circulam socialmente, teorias como a Semiótica Social e da multimodalidade discursiva, que procuram investigar o texto e o discurso em sua integridade multimodal, isto é, na simbiose do verbal com o não-verbal.
Vimos que a Semiótica Social possui muitos pontos em comum com a Análise do Discurso: ambos veem o sentido como externo à língua; têm uma noção de sujeito como não tendo controle dos significados; enxergam o texto como materialização de discursos e estes como reproduções dos efeitos da ideologia. Sendo assim, uma investigação dos sentidos do texto pode enriquecer-se imensamente com a coadunação das duas correntes teóricas.
Foi isso que propomos a partir do exame de duas capas da revista Época, publicadas em abril de 2014 e que repercutem as acusações de corrupção na Petrobras. A análise dos discursos e efeitos ideológicos concretizados pelos recursos verbais e visuais que compõem as capas mostrou, dentre outros aspectos, uma tentativa de atenuar a culpabilidade da Petrobras quanto aos crimes que a envolvem, e de apagar o envolvimento da Presidente Dilma Rousseff e seu partido, o PT, no episódio.

Referências

HODGE, R.; KRESS, G. Social semiotics. 1. ed. Ithaca, NY: Cornell University Press, 1988.

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