Aproximações entre improvisação livre, anarquismo e educação musical (TCC, ECA-USP, 2015)

July 9, 2017 | Autor: Stênio Biazon | Categoria: Music Education, Anarchism, Free Improvisation, Educação Musical, Pedagogia Libertaria
Share Embed


Descrição do Produto

STÊNIO RAMALHO BIAZON GOMES

APROXIMAÇÕES ENTRE IMPROVISAÇÃO LIVRE, ANARQUISMO E EDUCAÇÃO MUSICAL Observações: 1 - No presente arquivo versão realizei duas pequenas correções em relação à versão " oficial" (disponibilizada na biblioteca da ECA-USP) - páginas 3, 9 e 44, em cores. 2 - Aqueles que baixaram este trabalho no período de 01/05/2017 a 02/10/2017 no academia.edu se depararam, por distração minha, com uma texto repleto de erros - a versão anterior a todas as correções e que contém o título "Aproximações entre improvisação livre e anarquismo NO CONTEXTO da educação musical". Peço que a referida versão não circule nem seja citada. Obrigado Stênio Biazon [email protected]

CMU-ECA-USP São Paulo, 2015

1

STÊNIO RAMALHO BIAZON GOMES

APROXIMAÇÕES ENTRE IMPROVISAÇÃO LIVRE, ANARQUISMO E EDUCAÇÃO MUSICAL

Trabalho apresentado ao Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, formulado sob a orientação de Rogério Luiz Moraes Costa para a conclusão do curso de Licenciatura em Educação Artística com Habilitação em Música.

CMU-ECA-USP São Paulo, 2015

2

Banca examinadora: Prof. Dr. Rogério Luiz Moraes Costa (orientador, USP)

Profa. Dra. Maria Teresa (Teca) Alencar de Brito (USP)

Prof. Dr. Manuel Silveira Falleiros (UNICAMP)

3

É consentida e, inclusive, incentivada a reprodução integral ou parcial deste trabalho, preferencialmente citando a fonte. A sugestão de citação da fonte não parte do pressuposto da ideia de direito autoral ou de propriedade intelectual, mas sim do intuito de possibilitar a construção de redes de compartilhamento de saberes.

4

“A professora indignava-se, ameaçava Deus e o mundo, não queria mais ver aquela anarquia em sua escola, crianças que não aprendiam educação em casa etc. . . . A primeira vez que ouvi dona Carolina empregar a palavra anarquia para designar desordem, fiquei chocada. [...] Ao chegar em casa, nesse dia, relatei o acontecido à mamãe. Ao contrário do que esperava, mamãe não se indignou, riu da minha ingenuidade, explicou-me então que a maioria das pessoas pensava assim, usando a palavra anarquia naquele sentido, nada sabendo sobre a verdade do anarquismo. Se a maioria soubesse – suspirava -, se entendesse, não haveria mais problemas no mundo. O difícil, o mais difícil era fazer as pessoas compreenderem a coisa mais primária, mais simples: ‘o povo unido pode mover o mundo . . .’” Zélia Gattai (Anarquistas, graças a Deus)

5

AGRADECIMENTOS

Sou extremamente grato a todas as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram com a realização deste trabalho. Nestas incluo não só todas aquelas que fundamentaram (através de seus escritos e/ou de suas valorosas presenças) minhas reflexões acadêmicas, artísticas, humanas e pedagógicas, mas também aquelas que sequer posso saber o nome ou um dia agradecerei pessoalmente, contudo, contribuíram com este trabalho, enquanto responsáveis, por exemplo, por erguer os tijolos da universidade, abrir seus portões ou cuidar de sua limpeza.

6

RESUMO

No presente trabalho apresentamos os aspectos que consideramos comuns à improvisação livre e ao anarquismo, evidenciando suas facetas pedagógicas e procurando trazê-los para o contexto da educação musical. Realizado este levantamento, analisamos de que forma estes aspectos se relacionam com as práticas do grupo de improvisação livre Coletivo Consenso Centralizado.

PALAVRAS-CHAVE

Improvisação (livre); anarquismo; educação musical; educação anarquista; pedagogia libertária;

7

SUMÁRIO

Apresentação

p. 10

Abreviaturas

p. 11

Nota sobre o uso de linguagem de gênero

p. 12

Introdução

p. 13

Capítulo

1:

Aproximações

conceituais

entre

improvisação

musical

e anarquismo

p. 14

1.1. Música, educação e política

p. 14

livre

1.1.1.

Interesses políticos na educação musical

p. 16

1.1.2.

Reprodução de estruturas sociais e relações de poder na música e na educação

1.1.3.

A improvisação pensada enquanto prática não-dominadora (e outras referências de nãodominação nas artes)

p. 18

1.2. A improvisação livre

p. 21

1.3. A improvisação livre no contexto da educação musical

p. 23

1.4. Diálogos entre improvisação livre e anarquismo

p. 24

1.4.1.

Porque o anarquismo?

p. 24

1.4.2.

O anarquismo

p. 26

1.4.3.

Improvisar é desierarquizar: possíveis contribuições do pensamento anarquista para prática da improvisação livre (e um tanto quanto vice-versa...)

1.4.4.

p. 31

“Aqui pode tudo, mas tudo não é qualquer coisa”: liberdades no anarquismo e na improvisação

p. 37

Improvisação livre e educação libertária

p. 45

1.4.5.1. H. J. Koellreutter sob a ótica da pedagogia libertária

p. 50

1.4.5.2. “O anarquista” segundo Koellreutter

p. 54

1.4.6.

Improvisação livre e autogestão

p. 56

1.4.7.

Improvisação

1.4.5.

livre

em

busca

tendência a horizontal

de

um

estado

de

iguais:

diagonal p. 63

8

com

1.4.8.

Possíveis contribuições das aproximações entre anarquismo e improvisação livre para a educação musical

p. 66

Capítulo 2: Coletivo Consenso Centralizado – breve relato (auto)crítico

p. 67

2.1. Da fundação do grupo: características dos membros

p. 67

2.2. Do

planejamento

ao

acontecimento:

lidando

coletivamente

com

imprevistos,

necessidades

vontades

e

p. 68

2.2.1. Breve relato e impressões gerais sobre as práticas do grupo

p. 70

segundo questões pertinentes às

Capítulo 3: Coletivo Consenso Centralizado segundo os segundo as aproximações entre improvisação livre e anarquismo

p. 89

3.1. Não era livre? Mas e os idiomas?

p. 89

3.2. Não era livre? Por que tantas propostas e jogos?

p. 93

3.3. Construção coletiva da liberdade individual e contribuição individual para a liberdade coletiva

p. 94

3.3.1.

3.3.2.

Solo de guitarra na calça: autorização social e sua contribuição para a escuta e experimentação

p. 94

Poder tudo e responsabilizar-se pelo todo caminham juntos

p. 97

3.4. Valorização e incorporação dos conhecimentos prévios 3.4.1.

p. 98

Estado biográfico (des)estratificado durante a performance como desenvolvimento de técnica estendida

3.4.2.

Relações diagonais com

p. 99 tendências horizontais no contexto da proposição de

performances

p. 102

3.5. Análise de um trecho de performance do ponto de vista do diálogo

Considerações

finais:

Pela

construção

de

relações

p. 105

horizontais

no

contexto

educação musical

p. 109

Bibliografia

p. 111

9

da

APRESENTAÇÃO

Ao longo da graduação1 envolvi-me prática e teoricamente com os objetos de estudo deste trabalho. Na prática da improvisação livre e em suas reflexões aprofundei-me, inicialmente, como membro da Orquestra Errante e, em seguida e até hoje, como pesquisador2, educador e claro, como performer em contextos diversos. Por sua vez, meu contato com o anarquismo e alguns valores caros a este, como a autogestão, vem se dando principalmente através do coletivo anarquista AtivismoABC (e da Casa da Lagartixa Preta), onde cheguei a participar de grupos de estudos e, com menor freqüência, através de outros espaços e coletivos3. Os referidos estudos e práticas sempre estiveram, de início ao menos em minhas reflexões, em constante diálogo entre si e com o curso de licenciatura em música, suas vivências e algumas de suas disciplinas4. Mais recentemente, estas reflexões também foram permeadas por minhas primeiras experiências e convivências como membro do NuSom e colaborador do Ibrasotope Música Experimental, além de, claro, pelas práticas do grupo de improvisação Coletivo Consenso Centralizado.

1

Mais especificamente a partir do segundo ano (2012) e mais frequentemente a partir de 2013. Refiro-me a minha pesquisa de iniciação científica Improvídeo: estratégias pedagógicas para a improvisação livre a partir de imagens em movimento orientada, assim como este trabalho, por Rogério Costa, tendo sido financiada pelo CNPq e pela PRP-USP entre 2012 e 2015. 3 Por exemplo, a Casa Mafalda, o CCS (Centro de Cultura Social) e o GT de Autogestão da ECA. 4 Refiro-me principalmente a disciplinas (do CMU-ECA-USP) ministradas por Pedro Paulo Salles e Teca Alencar de Brito, e (na FE-USP) a uma disciplina ministrada por Doris Accioly e Silva. 2

10

ABREVIATURAS

AABC – (coletivo anarquista) AtivismoABC C³ – (grupo de improvisação) Coletivo Consenso Centralizado CI – (grupo de improvisação) Coletivo Improvisado CIL – (coletivo / série de concertos) Circuito de Improvisação Livre g.o. – grifo(s) original(is) (por conta da freqüente realização de grifos nossos em citações diretas, optamos por não informá-los em cada citação. Informamos apenas quando os grifos são originais.) OE – (grupo de improvisação) Orquestra Errante Por conta de os textos de Rogério Costa serem a referência mais recorrente neste trabalho, optamos por citá-los através das seguintes siglas: IC – A ideia de corpo e a configuração do ambiente da improvisação musical FGD – A livre improvisação musical e a filosofia de Gilles Deleuze EOL – Free improvisation: a way for the expansion of listening and technique for the contemporary performer PMA – Livre Improvisação e pensamento musical em ação: novas perspectivas (ou na Livre Improvisação não se deve nada) FTC – Fundamentos técnicos e conceituais da livre improvisação5 OEND – Na Orquestra Errante Ninguém Deve Nada a Ninguém ou... Como Preparar Um Ambiente Propício à Prática da Livre Improvisação MEM – O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação IJ – A ideia de jogo em John Cage e no ambiente da livre improvisação

5

Este texto é coletivo. Os outros autores são: Fernando Iazzetta e César Villavicêncio.

11

Nota sobre o uso da linguagem de gênero

Assim como alguns coletivos que publicaram textos citados por nós e a autora Gabriela de Andrade Rodrigues (citada neste trabalho)6, optamos por não escrever os plurais referentes a pessoas utilizando (apenas) o gênero masculino, como determina a norma culta da língua portuguesa. A lingüista Carmen Rosa Caldas-Coulthard considerou que esta linguagem é um símbolo da “inacessibilidade das mulheres ao poder” e da “supremacia masculina” (CALDASCOULTHARD, 2007, p. 233, 243). Levando isto em conta optamos por não utilizá-la. Nossa escolha de “referência genérica” (termo de Caldas-Coulthard) baseia-se em uma das maneiras de escrita apresentada pela pesquisa da autora em questão (CALDAS-COULTHARD, 2007, p. 239). Semelhantemente a uma das referências citadas anonimamente pela autora, optamos por contemplar juntamente os gêneros feminino e masculino em cada sentença, fazendo eventuais concordâncias de gênero com a palavra mais próxima da palavra em questão. Por exemplo, “as autoras e autores anarquistas” ou “todos os improvisadores ou improvisadoras”. Em alguns casos, (assim como a autora já referida Gabriela Rodrigues) nos utilizamos da escrita com parênteses ou barras por considerarmos facilitar a leitura, por exemplo: “a relação compositor(a)-intérprete” ou aos/às musicistas.7

6

Apresentamos aqui exemplos (hipotéticos) de como seria a escrita destes coletivos e da autora Gabriela Rodrigues, conforme a linguagem na qual escrevem (e que aparecerem em nossas citações diretas), a partir de uma mesma frase. A frase “Os educadores passaram a pesquisar o tema”, supondo que (conforme permite a norma culta da língua portuguesa) “educadores” se refira à homens e mulheres, seria escrita da seguinte maneira conforme os seguintes coletivos e a autora: Coletivo AtivismoABC: “As educadoras passaram a pesquisar o tema”. Observação: para o AtivismoABC coletivos de pessoas são sempre escritos no gênero feminino (por ser o gênero da palavra em questão). Gabriela de Andrade Rodrigues: “As(os) educadoras(es) passaram a pesquisar o tema”. Observação: a autora opta por contemplar simultaneamente os gêneros masculino e feminino através do uso de parênteses. GT de Autogestão da ECA: “_s educador_s passaram a pesquisar o tema”. Observação: este coletivo insere o caractere “_” com o intuito de sugerir que este poderia ser substituído por qualquer letra. 7 Em citações diretas de textos que se utilizam da norma genérica da língua portuguesa para plurais conservamos sua escrita. No entanto em paráfrases contemplamos a nossa opção lingüística. Já ao referirmo-nos a grupos que, ao que tudo indica (pela bibliografia ou por algum referencial histórico), possuem apenas homens mantemos o gênero em questão. Observação: em nosso trabalho, não há nenhum caso deste referente a grupos de mulheres.

12

INTRODUÇÃO

Este trabalho é dividido em três capítulos (além de possuir considerações finais). No primeiro, de caráter conceitual e especulativo, procuramos, através de um levantamento bibliográfico, comentar o que consideramos haver de comum entre a improvisação livre e o anarquismo. Já o segundo capítulo é uma espécie de relatório das práticas do grupo de improvisação livre Coletivo Consenso Centralizado com perfil autocrítico. Por sua vez, o terceiro capítulo é mais analítico e integra os dois anteriores. Nele, formulamos hipóteses acerca de como os conceitos expostos e discutidos no capítulo um se relacionam com as práticas do grupo em questão. Por fim, nas considerações finais, expomos brevemente nossas ideias sobre como supomos que este trabalho possa contribuir para a educação (musical), o anarquismo e a improvisação livre.

13

Capítulo 1: Aproximações conceituais entre improvisação musical livre e anarquismo (e algumas reflexões contextualizando-as na educação musical)

Neste capítulo, além de situar brevemente a leitora ou leitor acerca de nossa compreensão sobre a intimidade entre música, educação e educação musical e a organização (micro) política8, apresentamos nossos objetos de estudo: a improvisação livre e o anarquismo, procurando apontar para aspectos pedagógicos implícitos e explícitos em ambos. Feita esta apresentação, propomos alguns diálogos entre a improvisação livre e o anarquismo. Tanto o levantamento biográfico acerca dos dois objetos de estudo quanto a apresentação das (supostas) aproximações entre os dois são, num modo geral, divididos basicamente em: seus pressupostos (em planos ideais), suas concepções de liberdade, a educação (anarquista / musical) e suas estratégias – como por exemplo (a suposta ideia de) autogestão (na improvisação livre) – os quais procuramos apresentar (salvo exceções feitas em busca de maior fluência textual) sempre nesta sequência. Contudo, ressaltamos que os quatro temas se cruzam frequentemente, sendo, por exemplo, a ideia do estabelecimento de relações diagonais com tendências horizontais compreendida como pertencente tanto ao campo da autogestão quanto da educação.

1.1.

Música, educação e política

1.1.1. Interesses políticos na educação musical “Ninguém aqui é ingênuo de achar que a música pode independer de interesses políticos, estou certa?9(sic)” Flávia Toni 8

O coletivo AtivismoABC que considerou que a esfera micro política diria respeito às “relações de nossa vida cotidiana (com quem vivemos, como vivemos, o que comemos, como lidamos com conflitos interpessoais, como gerimos [práticas e] espaços coletivos, como produzimos alimentos, etc.)” (ATIVISMOABC, 2014, p. 7) A partir de proposições de Deleuze, Guattari, Landauer e Newman, David Bell constatou que “o Estado”, além de ser uma instituição, também seria um modo de pensar e se relacionar. Associando estes modos não institucionais de Estado com o nível “micropolítico” das relações de poder (BELL, 2014, p. 5). 9 Pergunta feita pela professora Flávia Toni durante uma aula da disciplina Música Brasileira I do Departamento de Música da ECA-USP.

14

Diversos autores e autoras apontam para o fato de que a educação escolar pode servir a interesses políticos. Enguita entende a “escola como [um] ambiente que prepara as crianças para as posições que podem assumir no sistema capitalista” (ENGUITA, 1989, p. 30, 31). Para tal, o poder capitalista se [desloca], se [desterritorializa], ao mesmo tempo em extensão – ampliando seu domínio sobre o conjunto da vida social, econômica e cultural do planeta – e em intenção – infiltrando-se no seio dos mais inconscientes estratos subjetivos. (GUATTARI, 1989, p. 33)

Ferrer, educador fundamental para as reflexões de nosso trabalho como um todo, considerou que os governos sempre se preocuparam em dirigir a educação do povo [pois] sabem melhor [do] que ninguém que seu poder está totalmente baseado na escola [...]. [Isto é, eles não o fazem] porque [esperam] pela educação e renovação da sociedade, mas porque necessitam de indivíduos, operários, instrumentos de trabalho mais aperfeiçoado para que frutifiquem as empresas industriais e os capitais a elas dedicados. [...] Erro grave seria crer que os dirigentes não haviam previsto os perigos que, para eles, o desenvolvimento intelectual dos povos traz consigo, e que, portanto, necessitavam mudar os meios de dominação; e, de fato, seus métodos adaptaram-se às novas condições de vida [...]. (FERRER, 2006, p. 64, 2010, p. 28, 29, citação adaptada de duas traduções distintas do mesmo texto)

Em suma, “não há dúvida de que a escola, em qualquer sociedade, tende a renovar-se e ampliar seu âmbito de existência social formando pessoas aptas a ocuparem os lugares que a estrutura social oferece.” (TRAGTENBERG, 2011, p. 2) Como poderíamos supor, a educação musical (escolar ou não) também pode atender a interesses políticos. Segundo a educadora Marisa Fonterrada, na Grécia Antiga a música estava a serviço da formação de um povo obediente às leis e que exaltasse suas terras natais. Já na Idade Média, o propósito maior da música era o de louvar a deus, sendo o cantochão uma das vias de disseminação da fé cristã (FONTERRADA, 2008, p. 35-38). No Brasil, no período do canto orfeônico, o repertório da prática musical escolar contava com “canções que pudessem promover o ideal de ‘civilização’”, como o hino nacional. A execução deste era obrigatória, devendo ser ensinado pela professora ou professor de música (IGAYARA, 2012, p. 7, 8). Ainda segundo Susana Igayara, podemos falar da “música como atividade doméstica”. A autora comenta que, no Brasil na década de 1930, a função de “formadora cultural das crianças” era socialmente imposta às mães de algumas classes sociais. Isto é, conforme as 15

mulheres eram educadas para o lar, elas recebiam alguma formação musical para poder exercer esta função (IGAYARA, 2009, p. 1, 3, 9). Como vimos através dos exemplos de Igayara e Fonterrada, a educação (musical) pode ser uma ferramenta de dominação política e imposição de funções sociais. Voltando ao âmbito escolar (mas sem necessariamente restringir-se a ele), podemos dizer que a música, assim como as demais disciplinas, é determinada pelos poderes de decisão que regulam todas as atividades educativas, mas sofre diretamente a influência de instituições e produções não necessariamente ligadas à escola, influentes na medida de seu poder de influência no campo musical como um todo. (IGAYARA, 2009, p. 2, 2012, p. 18)

Levando em conta o exposto por Igayara, expomos a seguir exemplos de como a sociedade e suas instituições e estruturas podem ser reproduzidas na música e na educação. Sendo reproduzidas, inclusive, relações de poder.

1.1.2. Reprodução de estruturas sociais e relações de poder na música e na educação “O Poder em seu pleno sentido está onde a força não é necessária, onde as coisas podem precisamente ‘passar’ sem nenhum conflito visível nem previsível.” Antón Corpas

Para Small, “fazer música” (musicking) seria uma forma de organização. Esta organização diria respeito tanto aos sons, quanto às pessoas envolvidas na performance, sendo que as duas formas em questão estariam interligadas (SMALL apud BELL, 2014, p. 3). Consideramos que influências das estruturas sociais podem ser notadas em ambas as formas de organização da música. Sobre a influência da sociedade na primeira destas formas de organização (referente aos sons), podemos citar a improvisadora Chefa Alonso. Segundo a autora, a música funcional tonal responde à ordem social que aceitava hierarquia e os valores estabelecidos e refletia as exigências culturais e religiosas da sociedade de seu tempo, uma sociedade fundada na ordem hierárquica, na autoridade absoluta, na presunção de uma verdade única e imutável (ALONSO apud BAÉZ, 2011, p. 15).

16

Entendemos que a visão de Alonso aponta para a ideia de que a música, por estar imersa num contexto histórico, político e cultural, reflete em suas estruturas as características de seu tempo e de sua cultura (ELLIOT apud FONTERRADA, 2008, p. 114). Já ilustrando a influência das estruturas sociais na organização das pessoas envolvidas na performance, podemos citar Schafer que sugere que “a orquestra ou banda, em que um homem atormenta sessenta ou cem outros, é, na melhor das hipóteses, aristocrática e, na maior parte das vezes, ditatorial.” (SCHAFER, 1991, p. 279) Ainda sobre as formas de organização daqueles e daquelas envolvidas (diretamente ou não) na performance, podemos citar novamente Igayara, que constatou “limites impostos à atividade musical das mulheres”. (Ao menos) na primeira metade do século XX as mulheres ocupavam poucas carreiras musicais, sendo as mais comuns: professora de iniciação musical, professora de piano e pianista intérprete (IGAYARA, 2009, p. 5). A autora cita a historiadora Michelle Perrot que, ao tratar da criação artística (localizando sua análise na sociedade do século XIX) chega a afirmar, com indignação, que “as mulheres podem apenas copiar, traduzir, interpretar.” (PERROT apud IGAYARA, 2009, p. 5, 6) A composição musical (que, por ser considerada um trabalho mais intelectual, costuma ser hierarquicamente mais valorizada do que a interpretação), por exemplo, seria uma atividade exercida majoritariamente por homens (IGAYARA, 2009, p. 6). Consideramos que há nesta situação uma relação de poder (também) no sentido proposto por Corpas (autor epigrafado neste subtítulo). Isto é, estaria definido (no caso, e similarmente ao exposto pelo autor, pela distinção de gênero), não de forma coletiva e consensual, mas previamente instituída, quem pode e quem não pode fazer algo. Entende-se, a partir do conceito de Corpas, que o (verbo, semelhantemente ao substantivo) poder estaria relacionado a uma (não) autorização social ou um (não) direito (CORPAS, 2013, p. 34, 35).10 Já no contexto da escola, considera-se que capitalismo e escolarização são dois processos conectados. A escolarização oferecida e imposta pelo Estado e pelo capitalismo reproduz [a] sociedade no nível mais micro e pessoal. Assim se reproduzem os valores da hierarquia rígida, da fragmentação do saber em áreas especializadas e isoladas, o acúmulo de 10

O uso em questão da expressão relação de poder foi feito originalmente no contexto da “violência de gênero”. Corpas considerou que “para agredir, da mesma forma que para se defender de uma agressão, é preciso sentir-se com direto de fazê-lo, e para isso são necessárias convicção pessoal e certa proteção social”. Mais a frente, o autor afirmou que “precisamente quando dizemos ‘relações de poder’ falamos de relações de direito. [...] O Poder em seu pleno sentido está onde a força não é necessária, onde as coisas podem precisamente ‘passar’ sem nenhum conflito visível nem previsível” (CORPAS, 2013, p. 34, 35). Nossos grifos do verbo e do substantivo poder (e de palavras semelhantes como possível) ao longo do trabalho são feitos quando temos o intuito de enfatizar (também) o sentido de direito, autorização social.

17

propriedade, a dedicação incansável ao trabalho visando satisfação em consumos efêmeros. (ATIVISMOABC, 2014, p. 44)

Consideramos que as análises expostas sobre a música e a escola contribuem para que compreendamos, assim como Schafer, que a “aula de música é sempre uma sociedade em microcosmo” (SCHAFER, 1991, p. 279). É relevante para o presente trabalho refletir sobre qual tipo de sociedade ou comunidade estaria sendo contemplada (“em microcosmo”) pela prática da improvisação (livre), ou mesmo compreender quais (micro) aspectos da organização destas estariam presentes na prática em questão. Supomos, de maneira geral, que compreendê-la como uma organização sem relações de dominação contribuiria com estas reflexões.

1.1.3. A improvisação pensada enquanto prática não-dominadora (e outras referências de não-dominação nas artes) “A música não é mais importante do que as pessoas. A música existe porque existem pessoas, e não o contrário. [E mais,]a música não é [e não tem que ser] privilégio dos musicistas.” Adaptação de falas de Teca Alencar de Brito

Interessa também a este trabalho, para a fundamentação das reflexões deste capítulo e aproximação de nosso escopo, colocações de artistas surrealistas que simpatizavam com o anarquismo. Em texto coletivo, alguns destes afirmaram que a luta pela substituição das estruturas sociais e a atividade desenvolvida pelo surrealismo para transformar as estruturas mentais [...] são complementares. Sua junção deve apressar a vinda de uma época liberada de toda hierarquia e opressão. (BÉDOUIN et al apud FERRUA, 2001, p. 36)

Para evitar entendimentos equívocos desta ideia, podemos complementá-la citando o pintor Camille Pissarro que considerou que “seria um erro – no qual incorreram os revolucionários mais bem intencionados, como Proudhon – querer exigir sistematicamente uma tendência socialista exata na obra de arte” (PISSARRO apud FERRUA, 2001a, p. 14).11

11

Ideias dos partidários da Comuna de Paris semelhantes à de Pissarro são citadas por Ferrua: “Sendo a Arte a expressão livre e original do pensamento, disso resultada, do ponto de vista de ensino, toda direção oficial impressa ao

18

O grupo Música Viva (do qual Koellreutter, amplamente citado neste trabalho, fez parte) por sua vez, era crítico em relação às escolas de composição que priorizavam o nacionalismo. Os compositores que integravam o grupo em questão compreendiam que o pensamento desta corrente não proporcionava independência estética (NEVES, 1959, p. 127), tampouco uma abertura desta, a qual Koellreutter acreditava ser proporcionada pelo dodecafonismo (idem). Ele e seus companheiros de coletivo ainda consideravam que o nacionalismo tendia a gerar segregação entre os povos (BRITO, 2004, p. 30) e possibilitava o surgimento de guerras (KATER apud BRITO, 2004, p. 30).12 Vemos, tanto nas ideias dos artistas surrealistas citados quanto dos membros do Música Viva,

uma busca pelo o que poderíamos chamar de não-diretividade da criação artística13.

Consideramos haver nesta uma intenção de não-dominação, algo presente no pensamento anarquista14 e que compreendemos como implícito na proposta da improvisação no contexto pedagógico. Segundo Falleiros, a partir da segunda metade do século XX, compositores como John Cage e Karlheinz Stockhausen, ao inserirem improvisações em suas composições estariam, em algum grau, “afrouxando os modos de controle” da relação compositor(a)-intérprete (FALLEIROS, 2012, p. 152). Já as experiências de improvisação realizadas pelos compositores Cornelius Cardew e Vinko Globokar teriam aberto “possibilidades para que a criação partisse do coletivo ao invés [...] de uma única pessoa.” (FALLEIROS, 2012, p. 40) Todavia, também é importante considerar, de acordo com Costa, que a liberdade de se trabalhar a partir dos fluxos do inconsciente não pode ser concedida por um compositor. Ela depende de uma atitude do intérprete que se coloca na situação de criador. Num certo sentido, trata-se de uma conquista do intérprete. (IJ, p. 3)

julgamento da obra é fatal e condenada; que ela não pode nem mesmo pertencer a uma maioria artística, visto que admitindo inclusive essa direção como boa, ela tende, contudo, a destruir a individualidade.” (HIPPEAU apud FERRUA, 2001, p. 13, 14) 12 Reflexões como estas também foram desenvolvidas nos encontros (que participei como ouvinte) da disciplina O jogo da improvisação na proposta pedagógica de H-J Koellreutter, ministrada por Teca Alencar de Brito no CMU-ECAUSP. 13 Este termo foi utilizado por Neves ao definir a crítica da jornalista Patrícia Galvão feita a Koellreutter (por suposto direcionamento estético de seus alunos ao dodecafonismo) e a Guarnieiri (por acreditar no direcionamento estético de seus alunos ao nacionalismo) (NEVES, 1959, p. 131). 14 No contexto de algumas das alianças e rupturas entre anarquistas e surrealistas, Zorkine afirmou “não é intenção dos anarquistas impor uma revolução uniforme no domínio intelectual, sensível e moral. Os anarquistas, se eles têm um objetivo preciso no plano político e econômico, não têm noutros planos a pretensão de dirigir os espíritos para uma expressão artística em vez de dirigi-los para uma outra.” (ZORKINE, 2001, p. 72)

19

Ainda que não tenhamos apresentado o anarquismo, um de nossos objetos de estudo, podemos tratar brevemente dele no contexto da “não-dominação”. Pietro Ferrua, para quem Cage declarou-se anarquista (FERRUA, 2003. p. 23, 25)15, chegou a afirmar que “suas composições literárias e musicais são anarquistas16 tanto pelo conteúdo quanto pela forma” (FERRUA, 2003, p. 25), considerando a “supressão do maestro” como um dos “elementos anárquicos” (idem, ibidem). Entretanto, poderíamos, a partir da colocação de Costa, nos perguntar o porquê da não “supressão” de sua figura de compositor. Neste sentido, é possível, de acordo com Falleiros, compreender que em alguns contextos, a improvisação seria apenas um recurso de indeterminação, não significando a concessão de autonomia criativa para o(a) performer (FALLEIROS, 2012, p. 152). Já sobre o free-jazz, Falleiros considerou que “alterar [os] papéis tradicionais foi também uma forma de reavaliar hierarquia e autonomia criativa de cada músico tornando todos ao mesmo tempo improvisadores.” Isto é, “os papéis assumidos por cada [músico] em relação à sua posição no grupo foram repensados por conta da ideia de uma autonomia destes papéis e hierarquização das funções” (FALLEIROS, 2012, p. 154). Por sua vez, Viola Spolin considerou, no contexto da improvisação teatral, que “o acordo de grupo não deve estar em conformidade com a ‘tirania da maioria’ nem deve ser o resultado em obedecer cegamente a um líder” (SPOLIN, 1986, p. 45). Aproximando estas reflexões de nosso escopo, podemos citar a educadora musical Teca Alencar de Brito que, sobre a metodologia de Koellreutter, afirmou que a criação ocupa lugar importante e a improvisação é uma ferramenta fundamental. Sua prática permite conscientizar importantes questões musicais, que são trabalhadas com aspectos como autodisciplina, tolerância, respeito, capacidade de compartilhar, criar, refletir, etc. (BRITO, 2011, p. 47)

A partir destas referências, consideramos a improvisação passível de ser compreendida, em contextos diversos, como uma prática que proporciona situações de (ao menos) menor dominação entre indivíduos em relação a diversas outras práticas. Por outro lado, como apontamos, ainda que na improvisação sempre haja, ao menos em algum grau, compartilhamento da criação artística, 15

Em passagem pelo Rio de Janeiro, Cage chegou a ministrar uma palestra sobre a obra do anarquista Thoreau para um grupo político. (FERRUA, 2003, p. 22, 23). Para esclarecer seu entendimento sobre a música, o compositor também citou Walden de Thoreau em carta à Murray Schafer: “Música é sons, sons à nossa volta, quer estejamos dentro ou fora da se salas de concerto” (SCHAFER, 1987, p. 120). Por sua vez, o manuscrito Anarchy, do compositor, também faz referências a autoras e autores anarquistas como Emma Goldman, Pietr Kropotkin e Mikhail Bakunin (FERRUA, 2004, p. 222, 223). Segundo Ferrua, John Cage considerava que “a introdução da noção de silêncio na música foi tão necessária para a evolução desta arte como o conceito de anarquia o é para encontrar uma solução aos problemas dos governos.” (FERRUA, 2004, p. 221) 16 Para esta discussão, basta compreender “anarquista” como “sem hierarquia”.

20

algumas situações de sua realização mantém relações de controle, por exemplo, entre compositor(a) e intérprete.17 Entretanto, como discutimos ao longo do trabalho, diversas características particulares da prática chamada neste trabalho de improvisação livre nos permitem considerar que ela busca a diminuição de hierarquias e a não-dominação.

1.2.

A improvisação livre "Formar-se como improvisador é também escolher deliberadamente o ambiente que irá nos rodear.” Manuel Falleiros

Segundo Baéz, “no final dos anos 60, a improvisação livre nasce como [prática] na Alemanha e na Inglaterra, tendo [os] músicos Peter Kowald, Evan Parker, John Stevens [e] Eddie Prévost como iniciantes do seu desenvolvimento” (BAÉZ, 2011, p. 19). Entende-se que esta prática “surgiu num contexto que envolveu free-jazz e compositores norte americanos” (DEL-NUNZIO, 2011, p. 184, 185). A improvisação livre também é chamada de livre improvisação, improvisação contemporânea18 ou improvisação idiomática. Sendo que este último nome lhe é dado, pois ‘livre improvisação não é um tipo de música é um modo de fazer musical (music making)’. O elemento básico do método do livre improvisador pode ser encontrado nas suas atitudes do que diz respeito às tradições musicais, os idiomas, gêneros, etc. Tem sido apontado, e corretamente, que a livre improvisação não pode de antemão excluir os idiomas tradicionais... A diferença entre aquele que é ativo dentro das fronteiras de um idioma particular e o livre improvisador está na maneira com que este lida com este idioma... Idiomas particulares não são vistos como pré requisitos para o fazer musical, mas sim como ferramentas que, em qualquer momento podem ser usadas ou não... da mesma maneira o ponto de partida do livre improvisador contém uma recusa em se submeter a qualquer idioma particular ou tradicional (BAILEY apud COSTA [FGD], p. 65).

Bailey também compreende esta prática como “permeável às influências e posicionamentos trazidos por cada músico” (DEL-NUNZIO, 2011, p. 187). Isto é, ainda que na improvisação livre nenhum idioma musical possa se impor, ela não é necessariamente contra eles. Assim, os idiomas 17 Poderíamos também citar improvisações com regência, nas quais haveria ainda uma “ação subjugada à vontade de apenas uma figura” (FALLEIROS, 2012, p. 165). 18 Pelo pesquisador César Villavicêncio (FALLEIROS, 2012).

21

musicais estão presentes (eles se sobrepõem) na performance por fazerem parte das biografias musicais19 dos e das participantes (FGD, p. 64).20 Ainda que a prática da improvisação livre “[não se valha] das regras implícitas dos idiomas musicais estabelecidos” (FTC, p. 2) e nela “não [haja] certo ou errado em relação às regras”, “a ideia de que [elas] não existem [...] não pode ser considerada de forma tão absoluta” (FALLEIROS, 2012, p. 23), visto que ela “traz como regra implícita que cada um ao menos se ouça e ouça ao outro” (MEM, p. 88). Isto é, como expomos ao longo do trabalho, esta prática pressupõe uma “ética da escuta e da interação” (FGD, p. 63) – “ética que deriva do compromisso de fazer música de forma colaborativa” (FTC, p. 3) –, sendo desejável que haja “respeito pela contribuição de cada um” (OEND, p. 279). Ou seja, “a criação se dá sempre de forma colaborativa, coletiva, compartilhada em tempo real” (OEND, p. 280). Se, por um lado, há algumas regras implícitas, paradoxalmente, também é fato que, mesmo no contexto da utilização de estratégias como jogos, roteiros e propostas de improvisação, em que explicitamente “[há] algumas regras a serem seguidas, [...] todos [estão] ‘livres’ para interpretá-las, possibilitando o surgimento de novos caminhos interpretativos a serem desenvolvidos ou não pelos membros do grupo.” (CAMPOS, 2011, p. 11) Para a realização da improvisação livre, considera-se que todos os sons podem fazer parte de uma performance musical (OEND, p. 279). Em outras palavras “o ambiente não é previamente hierarquizado: todos os sons [têm] direitos iguais.” (idem, p. 280) Podemos então inferir que “não existe um ideal requerido de técnica e entendimento necessários previamente para realizar uma improvisação” (FALLEIROS, 2012, p. 16), “a habilidade e conhecimento requerido é aquele que estiver disponível” (BAILEY apud COSTA [PMA], p. 2). Portanto, esta prática “pode ser realizada por qualquer pessoa, com ou sem conhecimentos instrumentais ou musicais” (CAMPOS, 2013, p. 2). Vemos, assim como diversos autores e autoras, por estas e outras características, a improvisação livre como uma prática fundamental para a educação musical, o que será exposto a seguir.

19

Mais a frente no trabalho, traremos o conceito rosto (de Gilles Deleuze) para o aprofundamento desta questão. Para o entendimento destas colocações, é fundamental o esclarecimento do que seria a improvisação idiomática. Segundo Bailey, ela “se dá dentro do contexto de um idioma musical, social e culturalmente delimitado histórica e geograficamente” (BAILEY apud COSTA [MEM], p. 28), por exemplo, dentro do chôro ou do rock. Nela cada improvisador pode se expressar a partir de seu próprio “sotaque”. Entretanto, as “conversas” se dão em uma única ”língua” (ou linguagem), a qual possui seus limites e estaria contida em uma espécie de “hiperpartitura” (IC, p. 93, MEM, p. 56). Compreende-se que “a improvisação idiomática pode se valer [do] discurso da Lei[, em suma, um discurso que não traz violência aparente,] para estabelecer as suas fronteiras.” Sendo que isso não impossibilita seu fluxo, “mas o congela em um círculo sobre ele mesmo.” (FALLEIROS, 2012, p. 27) Ou seja, no ambiente idiomático, “as realizações são, paradoxalmente, infinitas (pois não é possível prever todas elas em suas minúsculas nuances), mas limitadas pela leis implícitas do sistema.” (IC, 93). 20

22

1.3.

A improvisação livre no contexto da educação musical “Que os jovens façam música como preferirem” Murray Schafer

Entendemos que, na educação musical, importa, prioritariamente, a criança (ou o adulto, se for o caso), o sujeito da experiência, e não a música, como muitas situações de ensino musical insistem em considerar. A educação musical não deve visar à formação de possíveis músicos do amanhã, mas sim à formação das crianças (e adultos) de hoje. (BRITO, 2006, p. 46) (os parênteses são nossos)

Também de acordo com Brito, consideramos que “todos devem ter o direito de cantar, ainda que desafinando! Todos devem poder tocar um instrumento, ainda que não tenham, naturalmente, um senso rítmico fluente e equilibrado!” (BRITO, 2006, p. 53) Compreendemos que as características apresentadas anteriormente sobre a improvisação livre contemplam estas ideias sobre a educação musical, visto que as (consideradas tradicionalmente) inabilidades musicais, como não conseguir entoar uma altura dentro do temperamento ou não ter condições de realizar um ritmo com fluência, são contempladas pela proposta de que todos os sons possam fazer parte da performance. Podemos ainda acrescentar que, na improvisação livre, “enquanto houver sensibilidade na escuta é possível com o mínimo ou nenhum conhecimento específico em música, realizar com outros improvisadores uma interação de resultado musical.” (FALLEIROS, 2012, p. 175) Segundo Costa, a improvisação livre, por valorizar a criação colaborativa, é uma alternativa para a educação musical tradicional, visto que a segunda prioriza a reprodução de repertórios (EOL, p. 2). Podemos também considerar que a Livre Improvisação admite a convivência de estilos musicais diferentes, interação entre músicos de culturas diferentes e qualquer tipo de equipamento ou processo criativo, como um computador gerido por um programa sofisticado em conjunto com instrumentos experimentais adaptados e de baixa tecnologia. (FALLEIROS, 2012, p. 35)

Sendo estas condições também passíveis de fazer desta prática algo que, como afirmamos anteriormente, pode ser realizado por todas as pessoas. 23

Já para Koellreutter, a improvisação (livre)21 seria “uma das principais ferramentas para a realização do trabalho pedagógico-musical” (KOELLREUTTER apud BRITO, 2011, p. 20), visto que ela “[privilegia] as experiências criativas, a pesquisa, o debate” (idem, p. 34). Para situar a improvisação livre dentro (ou melhor, fora) do contexto de nossas citações anteriores acerca da música e da educação musical a serviço de relações de dominação, citamos Costa. Sem querer estabelecer nenhum juízo de valor, é fácil observar que vivemos um tempo em que a arte ultra-funcionalizada, muitas vezes, tem que servir a várias finalidades: louvar os diversos ‘deuses de plantão’ (geralmente intolerantes e oponentes: religiões, seitas, partidos, conceitos estéticos, etc.), unificar as massas em torno de ‘bandeiras’ específicas (por exemplo nos hinos e gritos de guerra de torcida), favorecer os processos de aprendizado e adestramento (a arte à serviço da educação), vender produtos a partir de seus poderes retóricos de persuasão (na publicidade), manifestar ou sublinhar ‘sentimentos’ (por exemplo, a música retorizada da TV, de certo tipo de cinema e teatro), para unificar multidões ou massas em torno de rituais catárticos (nas raves e festas), promover o encontro social de melômanos da arte erudita em concertos e museus, etc. Num tempo como este, a livre improvisação é um fim em sim mesmo. Talvez estabeleça uma conduta, seja uma cura, uma política ou uma pedagogia. Mas uma pedagogia onde não se ensina nenhum conteúdo. Nela se fala de dinamismos, de relacionamentos, de processos e fluxos. (PMA, p. 5)0

Compreende-se também que na proposição pedagógica da improvisação, possibilita-se ao educando ou educanda que ele ou ela torne-se um(a) performer-criativo(a), não sendo apenas um(a) intérprete, como acontece na situação de execução de um repertório tradicional (EOL, p. 10). Consideramos que há na prática da improvisação livre, como valorizava Koellreutter, um “respeito ao universo cultural, aos conhecimentos prévios, às necessidades e aos interesses de seus alunos” (BRITO, 2011, p. 31), evidenciado pelo fato de ela partir das biografias musicais dos e das participantes e, consequentemente, dos idiomas que as compõem.

1.4.

Diálogos entre improvisação livre e anarquismo

1.4.1. Porque o anarquismo? "Independente do que você já ouviu falar o anarquismo não é uma possibilidade de futuro ou passado longíquo para a sociedade. O anarquismo existe hoje em 21

O autor em questão não se utilizava deste termo. No entanto, assim como em textos de outros autores e autoras, fica implícito que ao tratar da “improvisação”, Koellreutter refere-se à prática que chamamos de improvisação livre.

24

diversas fissuras do estado e do capitalismo. Por isso cuidado, onde não existir desmando, mercantilização da vida e apatia, você pode estar vivenciando o anarquismo." Editora Deriva

Temos ciência de que os paralelos que traçamos (nos próximos subtítulos deste capítulo) entre o anarquismo e a improvisação livre não dizem respeito a características necessariamente exclusivas destes dois temas. Isto é, supomos que muitas destas não sejam apenas deles, sendo possivelmente encontradas, em algum grau, em modos de pensar, por exemplo, advindos do construtivismo. Supomos também que algumas das características do anarquismo de que nos valemos para a fundamentação de nossas ideias não sejam exclusivas desta “corrente socialista”, sendo (possivelmente)22 comum a diversas outras correntes. Todavia, é importante esclarecer que tratar (apenas) do anarquismo (e de temas e práticas decorrentes deste) é, ao mesmo tempo, uma delimitação de escopo (ainda que seja um escopo amplo), uma escolha de afinidade pessoal e, claro, uma escolha a partir das ideias encontradas nas bibliografias (e de vivências práticas) da improvisação livre. Sobre um engajamento político relacionado à prática da improvisação livre, podemos citar Falleiros que apontou que o posicionamento político dos compositores que a propuseram era um dos norteadores do processo criativo desta prática (FALLEIROS, 2012, p. 33). Por exemplo, o autor cita a Scratch Orchestra, “um conjunto de música experimental com uma política de portas abertas e uma ênfase na improvisação livre” (MORLEY-COLLEGE apud FALLEIROS, 2012, p. 151) que teve como um de seus organizadores o compositor Cornelius Cardew, “declaradamente engajado nos movimentos políticos anti-imperialistas”. Para Falleiros, o grupo em questão “teve um papel questionador no campo da música em relação às hierarquias que envolviam o compositor, o instrumentista, o regente e o público.” (FALLEIROS, 2012, p. 150, 151) Aproximando-nos explicitamente do anarquismo podemos citar Costa que associou a improvisação livre às zonas autônomas temporárias (TAZ)23. O autor considerou que

22

Dizemos “possivelmente” por não possuirmos aprofundamento teórico nestas. Para Hakim Bey “a Taz é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente [...]” Ela seria “uma tática” para um Estado “repleto de rachaduras e fendas”. “TAZ é um microcosmo daquele ‘sonho anarquista’ de uma cultura de liberdade” “[Ela] é um acampamento de guerrilheiros ontologistas: ataque e fuja” (BEY apud COSTA [PMA], p. 9) 23

25

a livre improvisação é um território livre, em devir constante, socializado, autônomo, libertário, democrático e anárquico. Nele não há lugar para a propriedade privada dos meios de produção, não há sociedade de direitos autorais, não há mistificação de competências, nem sacralização e fetichização da obra de arte ou do artista. Não há sistemas fechados nem poderes estabelecidos. (PMA, p. 9)

Já David Bell, de quem utilizamo-nos de algumas ideias em nosso trabalho, considerou abertamente, em seu artigo Improvisation as anarchist organization, que “quando as pessoas participam de uma improvisação musical coletiva elas estão praticando uma forma de organização anarquista” (BELL, 2014, p. 4, tradução nossa).24 Enquanto que Chefa Alonso, compreendeu que a improvisação “[criou] novos códigos de comportamento, baseado na flexibilidade e numa série de princípios que compartem o espírito libertário25.” (ALONSO apud BAÉZ, 2011, p. 18) Por fim, justificando o nosso escopo, podemos citar Schafer. Ainda que para o autor “a possibilidade de todas as sociedades se tornarem auto-realizadas [permaneça] [...] pequena”, ele sugere (a nosso ver, sem nenhum juízo de valor explícito) que a “[colocação do] fazer musical criativo no centro dos currículos” levaria à anarquia. Isto é, “uma sociedade totalmente criativa seria uma sociedade anárquica.” (SCHAFER, 2001, p. 278, 279)

1.4.2. O anarquismo “’Anarquismo’ é a idéia revolucionária de que ninguém é mais qualificado do que você para decidir o que sua vida será.” Coletivo CrimethInc

“Anarquia (do grego ‘anarkhia’) é a ausência de governo”, “a ausência de chefes permanentes num grupo humano.” (WALTER, s/a, p. 1) “É a sociedade organizada sem autoridade, compreendendo-se a autoridade como a faculdade de impor a própria vontade.” Para Malatesta, 24

Texto original: “when people take part in collective musical improvisation they are practising an anarchist form of organization”. 25 Não podemos afirmar com certeza a intenção de Alonso com o uso desta expressão. Contudo, utilizaremos neste trabalho os termos “libertário” e “libertária” como sinônimo de anarquista. Ainda que historicamente o termo tenha assumido conotações diversas, como eufemismo de anarquismo ou um grau moderado deste (WALTER, s/a, p. 3), comumente o encontramos como sinônimo de “anarquista” (ATIVISMOABC, 2014; LENOIR, 2006; RODRIGUES, 2014; SILVA, 2011), inclusive, segundo Gabriela Andrade de Rodrigues, em outras obras de Nicolas Walter. No entanto a primeira autora afirma que o segundo nem sempre utiliza o termo desta maneira (RODRIGUES, 2014, p. 59).

26

“enquanto ninguém deseja e nem tem meios de explorar os demais, não existem traços [desta].” Ou seja, os e as anarquistas compreendem que “a autoridade [...] não é necessária para a organização social” (MALATESTA, 2009, p. 4, 5). O movimento anarquista considera fundamental a “supressão da autoridade [também] nas relações cotidianas.” (WALTER, s/a, p. 1) “Que se recuse tanto a mandar como a obedecer”. Esta foi uma afirmação de Malatesta. Isto é, para o autor, “anarquista é, por definição, aquele que não quer ser oprimido e que não quer ser opressor”. Alguém que “[renuncia] às vantagens pessoais cuja obtenção requer o sacrifício dos outros” (MALATESTA, 2009, p. 6, 9). Por volta de 1840, Pierre-Joseph Proudhon foi o primeiro a declarar-se anarquista, tendo, segundo a arte-educadora Gabriela de Andrade Rodrigues, influenciado o movimento homônimo, emergido, a partir de 1870, no contexto da I Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) (RODRIGUES, 2014, p. 107, 108). Enquanto Marx propunha um único partido para a organização operária, Bakunin e outros revolucionários e revolucionárias teriam proposto “a autonomia das federações que integravam a Associação Internacional dos Trabalhadores. Engels disse então que Bakunin estava disseminando a anarquia (num sentido pejorativo)”.26 Após terem sido expulsos da A.I.T. (pelos partidários de Marx), “alguns [destes revolucionários] decidiram adotar essa denominação, mas num sentido positivo”27 (ALVES, 2012, s/p; WALTER, s/a, p. 1, 2). Para compreender sumariamente as diferenças entre as ideias “socialistas”28 de Bakunin e de Marx, também podemos constar que “[diferentemente deste,] Bakunin [não] acreditava ser necessária a passagem por um período de ‘ditadura do proletariado’ para atingir a sociedade sem classes; ele pregava a imediata eliminação do Estado” (SPINDEL, 1980, p. 46)29. Do mesmo modo, Malatesta declarou-se contra “organismos autoritários que, pela força, ainda que seja por bons fins, [imponham] aos demais sua própria vontade” (MALATESTA, 2009, p. 5). Também semelhantemente, o escritor Jean Dubuffet, auto-declarado um indivíduo de “impulsos anarquistas”, considerou, sobre o Estado, que “a posição de subversão cessa evidentemente se acontecer de generalizar-se para tornar-se, no final, a norma. Ela muda, nesse momento, de subversiva para

26

Citação direta de Alves. Citação direta de Walter. 28 Optamos por utilizar o termo “socialismo” de forma ampla, abarcando as duas correntes. Em “O que é socialismo?” Arnaldo Spindel expressa-se, de maneira geral, da mesma forma que optamos. Contudo, o autor eventualmente se utiliza da expressão “comunismo” para tal. 29 Contribui com o entendimento desta ideia colocações do próprio Bakunin: “Ao polemizar com eles [partidários de Marx], nós os levamos a reconhecer que a liberdade, ou a anarquia, isto é, a livre organização das massas operárias, de baixo para cima, é o último objetivo da evolução social, e que todo Estado, inclusive seu Estado popular, é um jugo, o que significa que, por um lado, engendra o despotismo e, por outro, a escravidão.” (BAKUNIN, s/d, s/p) 27

27

estatutária... Revolução, é virar a ampulheta. Subversão é outra coisa; é quebrá-la, eliminá-la.” (DUBUFFET apud RAGON, 2001, p. 32, 33)30 “A negação da participação nas eleições, votando ou se candidatando” (ALVES, 2012, s/p) também é uma característica do movimento anarquista. Segundo a cientista social Doris Accioly e Silva, “a crítica anarquista aos Estados e aos governos não faz exceção sequer aos governos representativos, ao mostrar que as leis chamadas democráticas obrigam as minorias a se submeterem às maiorias” (SILVA, 2011, p. 92). Em outras palavras (e também trazendo para o anarquismo contemporâneo), o movimento anarquista sempre compreendeu que, como propõe coletivo AtivismoABC, “os meios para se atingir um fim precisam ter, em si, algo deste fim. Meios autoritários tendem a não atingir fins libertários.” (ATIVISMOABC, 2014, p. 11) Outra das principais características do anarquismo (principalmente do que se desenvolveu na Espanha durante o levante antifascista), e que interessa especialmente ao nosso trabalho é que “diferentemente dos marxistas, eles criam que era a mudança das mentalidades, por intermédio da educação, e não da luta de classes, o principal instrumento para transformar radicalmente a sociedade” (BERNAL, 2006, p. 13). Por razões como estas, Vaccaro considerou o anarquismo como “a única teoria que pensa em uma formação do indivíduo não constituída de práticas de poder, ou seja, autoritárias e hierarquizadas” (VACCARO apud ROMANI, 2006, p. 98). Segundo Silva, Lily Litvak, pesquisadora do anarquismo, lembra ainda que, “para os anarquistas, a educação não se limitava à infância. Eram muito importantes na vida ácrata31 conferências e cursos variados [de trabalhadores] para trabalhadores.” (SILVA, 2011, p. 92) Em suma, o movimento anarquista “defende que a educação do povo conduzirá inevitavelmente à revolução” (BERNAL, 2006, p. 14). Em outras palavras, “para os libertários, educação, cultura e revolução são indissociáveis.” (SILVA, 2011, p. 91, 92) Compreende-se que a essência pedagógica do anarquismo viria também do fato de que “grande parte da tradição anarquista é herdeira da concepção rousseauista de uma bondade essencial da natureza humana que teria sido deformada pelas instituições sociais calcadas na exploração e na opressão.” (SILVA, 2011, p. 100) Neste sentido, os e as anarquistas “se convenceram de que boa 30

Dubuffet fez distinção entre “revolução” e “subversão”, estando a segunda relacionada à eliminação imediata do Estado (após o acontecimento da primeira). No entanto, sobre nossas próximas citações que contém a palavra “revolução”, compreendemos que nelas não está se partindo do sentido atribuído por Dubuffet. Isto é, ainda que o autor associe a revolução à instituição de uma nova autoridade (algo que diverge do pensamento anarquista), a maior parte dos e das anarquistas não utiliza o termo neste sentido. 31 A expressão “ácrata” é utilizada como sinônimo de “anarquista”, assim como “acracia” como sinônimo de “anarquia”.

28

parte do sofrimento humano não é conseqüência inevitável das leis naturais ou sobrenaturais inexoráveis, mas [...] que podem ser eliminados pelo esforço humano.” (MALATESTA, 2009, p. 4) Importa também para o nosso trabalho, como aprofundaremo-nos mais a frente, as concepções de liberdade do anarquismo. Sobre estas, dentro e fora do contexto da educação, citamos Gallo. Da revolucionária obra de Rousseau, em luta contra uma educação religiosa e que tolhia a liberdade, brotariam dois ramos muitos distintos: uma educação liberal, cunhada numa perspectiva de liberdade individual, como um dom divino, que viria a sustentar o projeto burguês de sociedade; e uma educação libertária, apoiada numa noção de liberdade de cunho social e coletivo, produzida no contexto dos movimentos socialistas de crítica ao capitalismo. Assim, no século vinte veríamos as propostas de pedagogia ativa dividirem-se em duas linhas: aquela representada pela chamada “escola nova”, de tendência liberal, e aquela de tendência socialista libertária, que produziu experiências como as ‘escolas modernas’, inspiradas no experimento pioneiro de Francesc Ferrer i Guárdia. Não cometamos, portanto, o equívoco de as confundir, perdendo-nos na tênue, mas importante, linha que as separa e diferencia.” (GALLO, 2006, p. 39)

Como apontou Gallo e como poderia se supor a partir das referências que expusemos até aqui, o movimento anarquista e seus íntimos, como o chamado socialista libertário, também atuou (e atua) diretamente no âmbito escolar. Francesc Ferrer i Guárdia (ou Francisco Ferer) foi o fundador da Escola Moderna de Barcelona (1901 – 1909). Ele o fez inspirado pelas ideias do anarquista Pietr Kropotkin, pela experiência do também anarquista Paul Robin no Orfanato de Cempuis, (GALLO, 2006, p. 38, 39; SILVA, 2011, p. 99) e, segundo Emma Goldman, pela Escola Moderna de Paris, a qual fora criada por Louise Michel (GOLDMAN, 2006, p. 27). Embora não haja nenhuma evidência de que Ferrer militava junto ao movimento anarquista, sabe-se de sua proximidade com este (GALLO, 2006, p. 37). É sabido também que evitava-se que a escola fosse associada ao anarquismo com intuito de não assustar as pessoas e não sofrer intervenção estatal (SAFÓN, s/a, p. 25, 27). As bases da pedagogia de Ferrer são a coeducação de sexos32 e de classes, a ausência de recompensas e castigos, a educação integral33, o ensino fundado na ciência e não em misticismos ou noções religiosas34, a formação permanente do 32 Compreendemos que utiliza-se o termo sexo, pois o conceito de gênero surgiu apenas na metade do século XX (IGAYARA). Contudo, em referências biográficas diversas atreladas à Ferrer e a pedagogia libertária, pudemos notar o questionamento dos chamados papéis de gênero, ou seja, funções sociais atribuídas pelo sexo de nascença. Veja: GALLO, 2006, p. 40; G. A. apud DUPONT, 2006, p. 61; TRABALHO, 2006, p. 46. 33 Como discutiremos mais a frente neste trabalho, a ideia de educação integral, refere-se à educação concomitantemente intelectual e manual, estando intimamente ligada à coeducação das classes sociais. 34 Embora valorizasse o aprendizado pelo “desejo e afecção” Ferrer chamava sua pedagogia de “racionalista” (GALLO, 2006, p. 37), o que está associado ao fato de colocar-se radicalmente contra “os dogmas não validados pela ciência” (FERRER apud SAFÓN, s/a, p. 30/0. Compreende-se que esta postura (posteriormente tão criticada por diversos educadores e educadoras, como o próprio Koellreutter) era uma resposta a um ensino extremamente baseado na

29

caráter, o cultivo da vontade, a harmonia corpo-intelecto-moralidade, sempre com base nos exemplos e na grande lei natural da solidariedade35; a educação infantil deveria buscar métodos adaptados à psicologia da criança. (SILVA, 2011, p. 99)

Sébastien Faure, fundador da escola A Colméia (1904), que também foi inspirada por Robin e era localizada próxima á Paris, “editou um opúsculo de canções, coros e comédias para crianças” (SILVA, 2011, p. 98). Já no contexto da revolução libertária espanhola (1936 -1939) a educação valorizava o acesso às artes em pé de igualdade com as ciências (DUPONT, 2006, p. 55). (Sem desprezar a crítica e distinção feita por Gallo, citamos) o escola novista Puig Elías que considerou que “o aluno estando mergulhado em uma ambiência de forte densidade artística, a eclosão de sua personalidade é certa” e também constatou esperar uma “profunda renovação das artes” (ELÍAS apud DUPONT, 2006, p. 56, 57). Por sua vez, no Congresso de Saragoça realizado em 1936, falouse, referente à educação, na importância do “criar” e do “experimentar” no “campo artístico” (TRABALHO, 2006, p. 46, 47). Vemos que, ao menos as referências que obtemos, sugerem que a concepção de criação artística de educadores e da educadoras na revolução espanhola era vaga e a prática musical da pedagogia libertária de Faure não contemplava a criação (algo esperado para a época). No entanto, podemos citar James Guillaume, outro anarquista que viveu entre o fim do século XIX e o começo do século XX, que sobre as crianças (ao tratar da educação), considerou que “elas próprias organizarão suas brincadeiras” (GUILLAUME apud LENOIR, 2006, p. 74). Sobre a maneira de organização idealizada pelos anarquistas, Walter afirmou que supunha-se, após a revolução, que todos os componentes da sociedade estariam religados entre si [...] sem hierarquia nem burocracia; que as discussões seriam conduzidas por delegados revogáveis em vez de representantes permanentes; que as decisões seriam tomadas por livres consentimentos com base num consenso geral em vez de uma imposição legal segundo um voto majoritário (WALTER, s/a, p. 3)

De maneira geral, esta forma de organização exposta por Walter é fundamental para a chamada autogestão. Em suma, esta forma de organização, que não é exclusiva de espaços e pessoas anarquistas (AUTOGESTÃO-DA-ECA, 2014, s/p), “é um modelo de gestão onde todas possuem igual capacidade de participação sem a existência de cargos hierárquicos” (ATIVISMOABC, 2014, p. 7). A autogestão faz-se presente tanto em coletivos de atuação política, quanto em escolas e fábricas e seus sindicatos. Ou até mesmo em situações cotidianas em que (mesmo que não planejemos ou notemos) não há hierarquias pré-estabelecidas (AUTOGESTÃO-

religiosidade. Para alguns autores e autoras a proposta de Ferrer era laica, no entanto, para outros, ela chegava a ser anticlerical ou até mesmo antireligiosa (SAFÓN, s/a, p. 38). Observação: o termo “anticlerical” refere-se à revolta em relação ao clero enquanto classe privilegiada. 35 Possivelmente a autora refere-se aos estudos da obra Apoio mútuo de Kropotkin.

30

DA-ECA, 2014a, s/p). Outras características desta forma de organização incluem: como já sugerido por Walter, a revogabilidade de qualquer função delegada a qualquer pessoa (CODELLO, 2006, p. 78; EDUCAÇÂO, 2006, p. 108, 112) e a constante rotatividade das funções (ATIVISMOABC, 2014, p. 30, 42, 2014a, p. 19; CODELLO, p. 78). Sobre a segunda destas características, o GT de Autogestão da ECA considerou que a constante busca pela horizontalidade, que caracteriza uma autogestão, pressupõe a socialização do conhecimento: tod_s _s envolvid_s devem conhecer as funções ou tarefas de organização e, principalmente, devem ter acesso ao produto final. A rotatividade de funções, por exemplo, permite que não se centralize em uma única pessoa a responsabilidade sobre uma determinada tarefa, evitando assim, uma possível hierarquização. (AUTOGESTÃO-DA-ECA, 2014a, s/p)36

Walter considerou que, aproximadamente a partir da segunda metade do século XX, a ideologia anarquista foi fortemente influenciada por algumas das ideias pacifistas, feministas, ecologistas, situacionistas – que afirmaram que a autoridade não se exprimia tanto por meio da opressão econômica, mas ao contrário, por meio da mistificação cultural (WALTER, s/a, p. 4).

O anarquismo, em contato com outros modos anticapitalistas de pensar e viver, prossegue, ainda na contemporaneidade, se atualizando prática e conceitualmente. Por exemplo, o coletivo AtivismoABC tem exposto em suas zines, além de suas experiências práticas sobre a (auto)gestão da Casa da Lagartixa Preta (ATIVISMOABC, 2014), os seus princípios (ATIVISMOABC, 2014a). Nosso levantamento de aproximações entre o anarquismo e a improvisação livre realizado ao longo do trabalho resgata e aprofunda a maior parte das referências que expusemos no presente subtítulo.

1.4.3. Improvisar é desierarquizar: possíveis contribuições do pensamento anarquista para prática da improvisação livre (e um tanto quanto vice-versa...) “A ideia é que duas ou três pessoas podem ter uma conversa com sons, sem tentar dominar ou liderar.” Ornette Coleman

Compreendendo, a partir de Prévost, que (idealmente) na improvisação (livre) os improvisadores e improvisadoras não teriam sua produção musical mediada por mecanismos

36

O grifo é nosso, originalmente havia outra frase grifada.

31

externos (como partituras), Bell a associa ao anarquismo e a seu pressuposto de que as relações entre as pessoas não necessitam da mediação do Estado (um mecanismo externo, que gera relações indiretas) (BELL, 2014, p. 4, 5).37 Para o aprofundamento nesta questão, podemos, tanto sobre a improvisação livre, quanto sobre o anarquismo (talvez não apenas sobre o anarquismo, mas sobre formas de organização autogestionadas de um modo geral), falar em ação direta. A ação direta é o princípio onde uma ou mais pessoas decidem e atuam diretamente em tudo o que lhe diz respeito, não delegando a solução de problemas a terceiros. Sendo assim, rejeitamos meios indiretos de resolução de questões sociais, ambientais e de outras esferas (como a mediação por políticos, partidos, Estado e mercado) em favor de meios mais diretos (como o mutirão, a assembléia, o ‘faça você mesma’, e outras práticas que visam construir uma forma de vida mais libertária). (ATIVISMOABC, 2014, p. 16)

Já na música, a ideia de não mediação pode ser associada, entre outros aspectos, à temporalidade. Isto é, uma performance mediada, por exemplo por uma partitura ou por uma tradição idiomática, pressupõe (de maneira premeditada, planejada), ao menos em algum grau, uma amarra ao passado.38 Já a improvisação livre, em suma, por buscar o novo a todo momento, possibilita a intensificação do presente (EOL, p. 4), e valoriza a produção, que é o contrário da reprodução (produção, por exemplo, explicitamente mediada por um referencial passado, como um idioma musical) (MEM, p. 85). Portanto, podemos dizer que o termo improvisação, para a música, corresponde ao contato direto com a produção sonora no mesmo momento da criação musical. A criação no presente momento, sem intermediações temporais é uma característica imprescindível da improvisação seja qual for a sua modalidade. O improvisador deve estar sozinho ou com outros improvisadores, criando no momento e não para depois. Esta condição característica da improvisação encontra no advento da Livre Improvisação uma expressão ainda mais radical em relação ao instante, já que o improvisador está lidando com os sons que cria e escuta no presente momento. [...] Vemos aqui [...] a ação sonora direta, [...] a autonomia criativa (FALLEIROS, 2012, p. 18).

Através da ação (sonora) direta, em ambos os contextos, busca-se, como sugere a expressão, não-mediações (ou terceirizações, como aprofundaremos ao tratar da autogestão). Uma busca que pode ser associada a um gosto pela autonomia. Isto é, associada a um desejo de nãodelegação de uma ação ou decisão, referente a algo “que lhe diz respeito”, a uma terceira pessoa (externa). Desta forma, há, nas duas situações, a tomada do poder decisório para si. Isto é, assim como para o pensamento anarquista é fundamental que terceiros ou terceiras não tenham poder

37

Contudo, o autor faz ressalvas que dialogam com a ideia, já citada anteriormente em rodapé, de micropolítica, as quais citaremos mais a frente. 38 Não nos esqueçamos, por exemplo, que o improvisador ou improvisadora está inevitavelmente ligado ou ligada ao passado através de sua biografia musical.

32

sobre a solução de seus problemas, evidentemente não é característica do ambiente da improvisação livre, por exemplo, que haja a figura de um tipo de compositor ou compositora que pode (está socialmente autorizado a) decidir previamente o que será executado por terceiros ou terceiras. No contexto da discussão (já citada) de Falleiros sobre indeterminação (na composição) e improvisação, o autor considerou que “a diferença essencial se encontra no fato de que o protagonista da criação musical, no sentido do desejo de invenção, é no caso da improvisação o próprio improvisador, sem que exista o cumprimento de uma vontade alheia”.39 Deste ponto de vista, a improvisação livre “não se submete às regras da improvisação idiomática, [nela] o intérprete não se submete aos comandos do compositor pela partitura, o improvisador não se deixa ser refém de seus condicionamentos no instrumento, e assim por diante.” (FALLEIROS, 2012, p. 148, 152) Neste sentido, compreendemos que a prática em questão nega autoridades40. Isto é, no ato da improvisação, (pressupõe-se41 que) o improvisador ou a improvisadora recusa igualmente tanto o mando quanto a obediência42, os quais estariam presentes, em pares respectivamente co-incidentes com as duas posturas em questão, nas relações: idioma-improvisador(a) proficiente, compositor(a)/partitura-intérprete, técnica instrumental-instrumentista. Em suma, nos parece possível dizer que, do mesmo modo que “’anarquismo’ é a ideia revolucionária de que ninguém é mais qualificado do que você para decidir o que sua vida será.” (CRIMETHINC, s/a, s/p), improvisação livre é a ideia revolucionária de que ninguém é mais qualificado do que você para decidir o que sua performance será. Isto é, na improvisação livre (e, a partir das reflexões que esta prática proporciona, também em outros contextos), compreende-se que nenhuma tradição, compositor(a), regente, professor(a) de música, diretor(a) musical, contratante de shows e concertos, público, ou (uma maioria de) performer(s) (durante uma performance) deve(ria) ter poder (direto, autorização social) de decidir o que outrem irá produzir musicalmente.

39

Ressaltamos que esta característica da improvisação livre possui (maior) sentido (de peculiaridade) quando comparada à chamada “música erudita” (ou “de concerto”). Isto é, o “não cumprimento de uma vontade alheia”, em alguns sentidos, não é uma característica exclusiva da improvisação livre. Por exemplo, na chamada “música popular”, musicistas apresentam suas próprias canções para violão e voz, assim como bandas de rock performam suas próprias composições (inclusive, muitas vezes coletivas). Contudo, ainda que o aprofundamento nesta questão não seja do interesse deste trabalho, lembramos que, por outro lado, mesmo a criação, quando está dentro de sistemas (ou linguagens idiomáticas), em algum grau constitui “o cumprimento de uma vontade alheia”, ou uma atuação musical “pelo pensamento de outrem” (PMA, p. 11). 40 “compreendendo-se a faculdade de impor a própria vontade” – Malatesta, op. cit. (ou, a faculdade de “fazer cumprir uma vontade alheia”, Falleiros). 41 Com base na ideia de ética da escuta e da interação – Costa, op. cit. 42 “Que se recuse tanto a mandar como a obedecer” – Malatesta, op. cit.

33

Acreditamos também haver aproximações possíveis entre a improvisação livre e o anarquismo no que diz respeito às suas formas de proposição, incitação e desenvolvimento (ou até emergência, um tanto quanto mais especificamente no anarquismo). Em outras palavras, referimonos às suas (im)possibilidades de instauração, com grande cautela em usar este termo. Quantas vezes temos de repetir que não queremos impor nada a ninguém, que não acreditamos ser possível nem desejável beneficiar as pessoas pela força, e que tudo o que queremos é que ninguém nos imponha sua vontade, que ninguém possa estar em posição de impor aos demais uma forma de vida social que não seja livremente aceita? O socialismo – e isso é ainda mais verdadeiro no anarquismo – não pode ser imposto, seja por razões morais de respeito à liberdade, seja pela impossibilidade de aplicar ‘pela força’ um regime de justiça para todos. Ele não pode ser imposto por uma minoria a uma maioria e também não pode ser imposto pela maioria a uma ou várias minorias. (MALATESTA, 2009, p. 5) É fundamental tratar da questão do desejo como linha de força na prática da improvisação. [...] Tendo em vista a natureza dinâmica do processo de improvisação, podemos afirmar o quanto ela depende de um agenciamento do desejo e em que medida o desejo é a condição necessária e quase suficiente para este tipo de prática. Isto é ainda mais evidente no caso da improvisação livre que não se apoia num sistema de referência anterior e se configura enquanto um fazer, uma ação contínua. O desejo é o que move o processo. É a partir do desejo que se fará a construção do ambiente da livre improvisação. (PMA, p. 90)

Podemos questionar qual seria o sentido e a viabilidade de impor a liberdade.43 Isto é, a não ser em algum contexto em que a compreensão acerca do que seria “ser livre” pouco se desenvolveu reflexivamente, jamais haveria sentido (principalmente lógico ou semântico) obrigar alguém a libertar-se. Deste ponto de vista, diferentemente de contextos de instauração (e permanência) de sistemas pré-estabelecidos – nos quais compreendemos que predomina o que Deleuze chama de superfície de captura44 – tanto na improvisação livre quanto no anarquismo – nos quais respectivamente, e acreditamos também que semelhantemente, não se quer criar um sistema, sendo que se isto ocorrer sua prática falhou em ser livre (FGD, p. 61, 63); e, não se quer criar “cristalizá-lo em dogmas” (MALATESTA, 2009, p. 5) – (espera-se, num plano ideal, que) os fluxos se estabelecem(çam) predominantemente através do desejo, isto é, sem imposições. Num certo

43

E também, claro, o quão desejável seria (ou teria valor moral) impor a “liberdade”, como propôs Malatesta. No entanto este não é nosso foco no momento. 44 A superfície de captura (Fundamento) é uma das três superfícies nas quais se dá a territorialização. Nesta superfície “se dá o registro e o controle, a sistematização, a escolástica, os modelos. Aqui se explicita um território. É o reino das cópias corretas.” (PMA, p. 63)

34

sentido, é esperado (pressuposto) “que cada pessoa tenha certeza sobre sua vontade de estar no coletivo [ou na performance], o que a motiva a estar ali” (ATIVISMOABC, 2014a, p. 24)45. Ainda sobre as (im)possibilidades de instauração (sempre compreendida mais no âmbito da proposição, da incitação e do desenvolvimento) do anarquismo e da improvisação livre, consideramos que ambos não podem ser simplesmente afirmados ou, em algum momento, dados como acabados ou (assegurada e estavelmente) alcançados. Isto é, eles são processos, são modos de fazer46, ações contínuas47 e não delimitações do que fazer. A partir disto, cabe trazer o conceito de (des)territorialização. Se nos sistemas fechados predomina a superfície de captura onde se consolida um território, na improvisação livre, segundo Costa, nota-se em maior grau a chamada superfície de produção (Fundação), onde “só existe o plano, as matérias, as energias e as forças não formadas, não estratificadas.” “É a produção que gera territórios provisórios num ambiente de desterritorialização constante” (FGD, p. 63). “A improvisação é um ato coletivo dirigido a um certo ambiente territorializável no próprio ato” (IC, p. 97). Consideramos que esta compreensão da improvisação livre pode, de certo modo, também ser dada ao anarquismo. Em suma, “a ausência de chefes permanentes num grupo humano”48 nos parece uma busca pela não consolidação de territórios. Ou seja, deseja-se que a territorialização não predomine em relação à desterritorialização. Como aprofundaremo-nos mais a frente (ao tratar diretamente da autogestão), a rotatividade de tarefas socializa os saberes e evita hierarquizações49. Neste sentido, a revogabilidade das tarefas delegadas às pessoas e o constante revezamento de funções é uma estratégia para que não se crie eventuais autoridades, isto é, hierarquias instituídas, não imediatamente revogáveis (RODRIGUES, 2014, p. 75, 103). Podemos então inferir que no anarquismo, com o intuito de que as relações não se verticalizem de forma plena, deseja-se um fluxo de constante desterritorializações. Em outras palavras, há, enquanto estratégia de organização, assim como a estratégia de interação da improvisação, a tentativa de evitar a recorrência demasiada de ritornelos50 que acabem por tornar-se hierarquizações (ou territorializações). Em suma, é desejável que “o horizonte do corpo sem órgãos [continue] exercendo seu poder desestratificante” (FGD, p. 62). Ou seja, a busca constante pelo chamado corpo sem órgãos é o que contribui para que não se criem sistemas, que não predomine a estratificação. 45

Destacamos que os colchetes são nossos com o intuito de aplicar a reflexão sobre a organização coletiva no contexto da improvisação. 46 No âmbito da improvisação, segundo Bailey, op. cit. 47 No âmbito da improvisação, segundo Costa, op. cit. 48 Malatesta, op. cit. 49 Autogestão-da-Eca, op. cit. 50 Entendendo por ritornelo “todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais” (DELEUZE apud COSTA [FGD], p. 63)

35

Também cabe considerar que a condição de constante desestratificação da improvisação faz com que, diferentemente da improvisação idiomática, nela não haja “a garantia das soluções préconcebidas” (FALLEIROS, 2012, p. 28). O que parecer trazer (“em microcosmo”) para a performance a compreensão de Malatesta de que “o melhor modo de convivência social, não é algo fixo, bom para todos os tempos, universalmente aplicável ou determinável de antemão.” (MALATESTA, 2009, p. 5) Uma vez que a improvisação livre apresenta “um ambiente que se configura idealmente sem hierarquias, de igualdade, do trabalho com as especifidades e diferenças” (DEL-NUNZIO, 2011, p. 197) ela pode ser associada à ideia de utopia (idem, ibidem; BELL, 2014, p. 15). Neste sentido, e também pela possibilidade de ser entendida enquanto TAZ, ela seria como um “microcosmo do sonho anarquista”51. Por sua vez, Cristina Valenti considerou, acerca do coletivo libertário ligado ao teatro Living Theatre, que “o termo utópico [...] serviu para indicar algo que ainda não existe, mas do qual é possível construir as condições de realização” (VALENTI, 2001, p. 77). Através de um longo processo de aproximação rumo à utopia, o Living Theatre transformou-se pouco a pouco num outro mundo: fora do sistema mercantil do espetáculo [...] um espaço onde se podia experimentar comportamentos e cultivar valores antagonistas daqueles reconhecidos socialmente, por intermédio de uma prática pelo princípio de ação direta, de matriz anarquista” (idem, ibidem, p. 80).

Considerando, a partir do exposto por Valenti, que a improvisação livre, da forma como idealizada, talvez realmente não exista, mas possa ser construída (ou ao menos buscada), convém trazer o conceito de heterotopia. Uma heterotopia é a realização de uma utopia em um espaço específico; é a urgência de seu acontecimento, o que já é impossível aguardar ruminar, elaborar no pensamento. Ela dá formas à impaciente liberdade; não é acabada ou semi-acabada como a utopia, a via pavimentada e lisa – como aludia Michel Focault -, que, em vez de transformar a si e ao que interessa, acaba sempre pacificada pelo sonho, pela ilusão do futuro, pela transcendentalidade iluminista. (PASSETTI apud RODRIGUES, 2014, p. 97)

Ainda sobre a heterotopia, que Gallo associou à pedagogia libertária de Ferrer, podemos dizer que ela seria “um espaço real e efetivo que, no contexto de uma sociedade dada, constitui-se como um contraposicionamento. [...] [Ela] não fica no nível do sonho, do desejo, mas faz-se real e efetiva afrontando os espaços tradicionais de poder e do poder” (FOCAULT apud GALLO, 2006, p. 42). Partindo deste sentido, nos parece possível afirmar que a criação de (micro)espaços 51

Bey apud Costa, op. cit.

36

heterotópicos seria algo realizável a partir tanto das formas de organização do anarquismo quanto das formas de interação improvisação livre. Podemos enumerar as características que até aqui apresentamos enquanto comuns à improvisação e ao anarquismo: a busca pela autonomia – via ação (sonora) direta (não mediada por mecanismos externos) e via recusa da autoridade (negação do mando e da obediência) –, a valorização do desejo – isto é, a impossibilidade (e não tentativa) da “imposição de (suas) liberdades” –, o fluxo constante (impossibilidade da permanência dos estados) e a possibilidade de criação de espaços heterotópicos. Estando estas associadas respectivamente aos pressupostos de que: as mediações e autoridades não são necessárias à organização, a liberdade não pode ser imposta, ela não pode ser dada como acabada e, consequentemente, pode ser construída (estando sempre em processo) para o presente.

1.4.4. “Aqui pode tudo, mas tudo não é qualquer coisa”: liberdades no anarquismo e na improvisação "Numa situação onde todo significado já foi atribuído, a liberdade é irrelevante, pois todas suas possíveis opções já estão determinadas. Só encontramos liberdade em espaços novos, em momentos totalmente novos [...]." Coletivo CrimethInc

No presente subtítulo, apresentaremos algumas das concepções de liberdade do anarquismo (e seus íntimos) e da improvisação, procurando traçar aproximações entre elas. Para tal, utilizaremo-nos não só de referências bibliográficas, mas – (in)direta e inevitavelmente – de reflexões advindas de nossas vivências em espaços atrelados a ambas as práticas. Primeiramente, apresentamos um trecho da zine Gestão de espaços autônomos do coletivo anarquista AtivismoABC. As estruturas que propomos não estão pré-determinadas, mas compõem de modo complexo um amplo horizonte de relações possíveis. É uma proposta afirmativa, para além da mera negação de estruturas existentes.

37

Possuímos princípios claros, uma estratégia em formação, ambos abertos à criatividade do coletivo e ao surgimento de novas respostas políticas às perguntas que fazem ou deixam de fazer. Capacidade de experimentação e autodisciplina coletiva, liberdade e responsabilidade, que caminham juntas alimentando-se reciprocamente. Existe um modelo de proposta constituído coletivamente, mas ele não possui uma rigidez, nem limitação de possibilidades. Aqui pode tudo, mas tudo não é qualquer coisa. (ATIVISMOABC, 2014, p. 44)

Há, para nós, três reflexões essenciais que (implícita e explicitamente) aproximam as concepções de liberdade do anarquismo e da improvisação, as quais seriam contempladas por esta citação e evidentemente estariam interligadas. A primeira reflexão refere-se à ideia de que ser livre diz respeito (idealmente) a poder “tudo”, sendo que, como se enfatiza, “tudo” jamais pode ser confundido com “qualquer coisa”. Outra reflexão que aproxima as concepções de liberdade em questão estaria relacionada ao conceito de jogo ideal, conforme apresentado por Deleuze. Compreendemos que tanto o anarquismo quanto a improvisação livre são práticas em que as “regras” não estão de antemão definidas, mas que só podem ser estabelecidas conforme “o jogo” se desenvolve. Por fim, levando em conta os empecilhos que se apresentam no ato de “jogar” o jogo ideal, convém apresentar uma terceira reflexão, a qual diz respeito às estratégias de busca pela liberdade do anarquismo e da improvisação. Para tal, trataremos, por exemplo, da importância dada à negação dos sistemas, da negação enquanto estratégia de afirmação da liberdade e da (im)possibilidade de integração de sistemas (sem que eles se desterritorializem). De acordo com o que afirmamos anteriormente, o primeiro aspecto que consideramos comum às concepções de liberdade de que estamos tratando, pode ser resumido pela afirmação de que “Aqui pode tudo, mas tudo não é qualquer coisa”52. Algo semelhante à “necessidade de não confundir liberdade com ‘não importa o quê’” proposta pelo pedagogo libertário Francesco Codello (CODELLO, 2006, p. 82)53. No contexto da educação musical, deparamo-nos com ideias semelhantes a estas acerca do que seria a proposta de improvisar. Koellreutter “[chamava] a atenção para a necessária distinção entre improvisar e ‘fazer qualquer coisa’”, considerando preciso, nos espaços pedagógicos, “ensaiar, experimentar, refazer, avaliar, ouvir, criticar etc”, caso contrário seria um “vale-tudismo” (KOELLREUTTER apud BRITO, 2006, p. 51, 2011, p. 47, 48). Em suma, para nós, “(fazer) qualquer coisa”, “vale-tudismo”, “não (se) importa(r) (com) o quê”, além de semelhantes entre si, estariam associados ao que Rodrigues chamou de liberdade individualista54. Enquanto que a “liberdade” de poder “tudo” (nos contextos da improvisação ou do 52

AtivismoABC, op. cit. Uma reflexão acerca das escolas que construíram o IDEC. 54 “Liberdade individualista” diz respeito a ideia de que “a liberdade da(o) indivídua(o) termina quando começa a liberdade da(o) outra(o)”. (RODRIGUES, 2014, p. 70, 71) 53

38

anarquismo) só seria possível “experimentando, avaliando, ouvindo, criticando, etc”. Isto é, estas seriam ideias complementares entre si e que associamos à liberdade coletiva, também segundo Rodrigues55. Compreendemos que a busca pela diferenciação de “tudo” (que é melhor compreendido junto de seus complementos) e “qualquer coisa” (e seus íntimos) seria algo fundamental tanto para a improvisação quanto para o anarquismo. Sendo que, ainda que seja dada grande importância à necessidade de diferenciá-los, ressaltamos que fica implícito que eles não podem ser entendidos como fixos, isto é, não podem ser territorializados. Compreende-se que “tudo” e “qualquer coisa” estão sempre atrelados a pessoas, (micro)lugares e (micro)situações (enfim, seu contexto presente). Contextualizando resumidamente, podemos dizer que “(fazer) qualquer coisa” (e seus íntimos) seria como improvisar sem escutar o grupo56, ou como tomar decisões acerca de algo referente a um coletivo sem um mínimo consentimento deste. Já “poder tudo” dificilmente poderia ser definido, justamente pela sugestão de infinidade. Entretanto, emprestando uma expressão de Silvio Gallo, o que parece afirmável é que a diferenciação que está em cheque pressupõe a busca pela “construção coletiva das liberdades individuais” (GALLO, 2006, p. 42) e, ao mesmo tempo e em igual importância, pela “contribuição individual para a liberdade coletiva” (complemento nosso para a ideia em questão)57. Ainda referente à nossa primeira reflexão sobre as concepções de liberdade, convém citar trechos de Anarquistas, graças a Deus da escritora Zélia Gattai, os quais já utilizamo-nos nas primeiras páginas deste trabalho, e que podem ilustrar a visão de senso comum sobre anarquismo: A professora [...] não queria mais ver aquela anarquia em sua escola, crianças que não aprendiam educação em casa etc. . . . A primeira vez que ouvi dona Carolina empregar a palavra anarquia para designar desordem, fiquei chocada. [...] Ao chegar em casa, nesse dia, relatei o acontecido à mamãe [que] explicou-me então que a maioria das pessoas pensava assim, usando a palavra anarquia naquele sentido, nada sabendo sobre a verdade do anarquismo. (GATTAI, 1980, p. 190)

Semelhantemente, importa constar que

55 Referimos a ideia de que a liberdade “só pode ser entendida e concebida socialmente, se atinge a liberdade quando todas(os) a atingirem, pois o contrário seria a exploração de umas(ns) sobre outras(os)”. (idem) 56 Sem levar em conta as éticas da escuta e da interação. 57 Sobre a questão da liberdade coletiva e da liberdade individual na improvisação livre, podemos citar Lewis que a considerou um “modelo híbrido de prática criativa que negociava entre individualidade e filiação coletiva” (LEWIS apud DEL-NUNZIO, 2011, p.185). Por sua vez, Bell, sugeriu que “um grupo de improvisação não simplesmente é um coletivo homogêneo nem um mero agregado de indivíduos ‘livres’” (BELL, 2014, p. 10, tradução nossa). Já Costa, sugeriu que a improvisação livre está ligada ao conceito de multidão a qual seria “plural, heterogênea... não se trata de uma massa compacta uníssona, liderada por um chefe”, diferindo-se da massa que “só existe se os indivíduos nela se diluírem perdendo sua identidade pessoal.” (CANETTI apud COSTA [PMA], p. 5)

39

há também aqueles que acreditam que a livre improvisação é uma espécie de valetudo e não se preocupam com o rigor da proposta de interação e com suas necessidades técnicas e auditivas. [ligadas à escuta reduzida e ao som pré-musical ‘molecularizado’] (PMA, p. 12, g.o.) (os nossos colchetes procuram contemplar uma nota de rodapé do texto original)58

Consideramos que as duas citações em questão remetem, aos seus modos, à (corriqueira) pergunta “Já que [o anarquismo / a improvisação] é livre... Então, eu posso fazer qualquer coisa?” Sendo que as maneiras com que o anarquismo e a improvisação lidam – para nós, semelhantemente – com ela parecem ser explicitadas principalmente pelas ideias de Codello, Koellreutter e AtivismoABC. Isto é, possivelmente não há respostas para esta pergunta, e sim novas perguntas e reflexões, as quais provavelmente passam pela distinção entre “tudo” e “qualquer coisa”. Conforme já comentamos, nossa segunda reflexão se dá a partir do conceito de jogo ideal (de Gilles Deleuze). Sendo assim, convém citar o entendimento de Costa acerca de como a prática da improvisação livre está associada a este. Não há regras preexistentes. Todas as jogadas são possíveis pois cada lance inventa suas regras [...] Parece que o jogo ideal é o próprio ato de jogar em que ainda não se formalizaram regras. Ele é, nas palavras de Deleuze, um ritornelo primordial de territorialização anterior à própria territorialização. (MEM, p. 41)59

Podemos ainda acrescentar que “o que se faz com as jogadas é o que torna o jogo potente ou não. As decisões são tomadas a cada momento diante de realidades também configuradas a cada momento.” (PMA, p. 2) Deste modo convém relembrar trechos da citação do coletivo AtivismoABC, em que foi afirmado que “as estruturas que propomos não estão pré-determinadas” e que a proposta do coletivo “não possui uma rigidez, nem limitação de possibilidades”. Sendo estas ideias associáveis às considerações de Codello acerca das formas de organização da Tutorial School do Novo México, em que “substitui-se a palavra regra pela palavra acordo, ressaltando implicitamente o fato de que se trata de um processo, e que o acordo em questão pode ser sempre modificado” (CODELLO, 2006, p. 81). Isto é, ainda segundo expressões do AtivismoABC, as estratégias de organização social (e de interação sonora, no caso da improvisação) estão sempre “em formação”. Para nós, as

58

A citação em questão está mais associada à performers e certas maneiras de lidar com a prática em questão, contudo consideramos que esta ideia também é comum entre aqueles e aquelas que não vivenciam a prática da improvisação livre. 59 O autor ainda completa dizendo que “Nestes termos, esta nos parece ser a diferença entre a improvisação idiomática (jogo com regras) e a nossa proposta de uma improvisação não idiomática (jogo ideal).” (MEM, p. 41, 42) Sendo que na primeira há a separação entre o certo e o errado, entre o adequado e o inadequado, visto que trata-se da “música ‘com nome’” (choro, rock, flamenco, jazz), o qual “identifica e estabelece regras” (PMA, p. 10, 11, 18).

40

características em questão aproximam o anarquismo da improvisação livre e também do conceito de jogo ideal. Já que as características que apresentamos acerca do anarquismo e da improvisação livre indicam que eles só podem ser “jogados” enquanto jogos ideais, é importante questionar o quanto estamos, de prontidão, em condições de lidar com tais formas de organização social e interação sonora. Neste sentido, podemos, de acordo com Costa, afirmar que “grande parte dos músicos (e das pessoas em geral) se sente incapaz de participar de uma sessão de improvisação [...] pelo simples fato de que eles sempre atuaram enquanto intérpretes (e ouvintes) do pensamento musical de outrem” (PMA, p. 11) (os parênteses são nossos). Semelhantemente, também convém considerar que “um improvisador pode questionar o sentido de sua liberdade, já que está preso à sua biografia musical” (FALLEIROS, 2012, p. 25, 26). Por sua vez, tratando de empecilhos semelhantes enfrentados pelos e pelas anarquistas no contexto da busca pela liberdade, o coletivo CrimethInc considerou que: A liberdade só é encontrada na sensação de agir, de criar a si mesmo (e conseqüentemente, ao mundo) [...], não simplesmente pela remoção de forças restritivas. [...] Numa situação onde todo significado já foi atribuído, a liberdade é irrelevante, pois todas suas possíveis opções já estão determinadas. Só encontramos liberdade em espaços novos, em momentos totalmente novos [...]. Devemos estar sempre praticando se queremos ser revolucionários: devemos constantemente destruir e recriar o nosso ser (CRIMETHINC, s/a, s/p).

Associando as citações de Costa, Falleiros e CrimethInc, podemos sugerir que “numa situação onde todo significado já foi atribuído” (na música, quando “atuamos apenas pelo pensamento musical de outrem”...) é fundamental questionar o sentido (relevância) da “liberdade”, já que “as possíveis opções” já estariam, de algum modo, pré-determinadas (na improvisação, por estarmos “presos à nossas biografias musicais”...). Dada estas condições, é importante, a seguir, tratar das estratégias de busca pela liberdade a que recorrem o anarquismo e a improvisação livre. Se, conforme afirmamos anteriormente, as negações do mando, da obediência e das mediações, são características de nossos objetos de estudo, a negação de sistemas pré-estabelecidos – se compreendido que implícita e explicitamente, e também a partir das referências que traremos a seguir, eles baseiam-se nas três coisas– pode ser inferida como outra característica comum ao anarquismo e à improvisação livre. Podendo ser compreendida enquanto estratégia.

41

Deste modo, cabe aqui lembrar que “o ponto de partida do livre improvisador contém uma recusa em se submeter a qualquer idioma particular ou tradicional”60, sendo esta uma espécie de “anti-regra” da improvisação livre (OEND, 282). Em outras palavras, haveria uma (única) “regra” explícita nesta prática, a qual consiste em negar que as regras (idiomas, sistemas, linguagens) tradicionais da(s) música(s) se imponham. Resgatando brevemente, se na improvisação livre se “pode tudo”, este “tudo” não inclui que um idioma específico se imponha – o que seria, portanto, “fazer qualquer coisa” – visto que esta imposição comprometeria a participação daqueles e daquelas que não o dominam. É fundamental também compreender que as negações no contexto da improvisação livre e do anarquismo se colocam enquanto afirmações. Sobre a improvisação livre, Costa considerou que elas não seriam um “compulsivo dizer não, uma tentativa de criar novos valores para substituir os antigos (novas igrejas para novos cultos...)” (PMA, p. 8) Isto é, esta prática tende a desvalorizar as duas dimensões que tradicionalmente dominaram a representação musical – alturas quantizáveis e durações métricas – em favor de micro-sutilezas de modificações timbrísticas e temporais e as propriedades emergentes da criatividade individual e coletiva no momento da execução musical (BORGO apud DEL-NUNZIO, 2011, p. 187)

Neste sentido, podemos compreender que a negação (de tudo aquilo que é considerado como um impeditivo para a liberdade), emprestando um termo de Falleros, viria de um “desejo de desopressão” (FALLEIROS, 2012, p. 25), tendo como uma de suas finalidades a afirmação da liberdade. Seria “uma proposta afirmativa para além da mera negação de estruturas existentes”, como propôs o coletivo anarquista AtivismoABC. Resgatando ideias, já citadas, do coletivo em questão e de Costa, podemos ainda dizer que a improvisação livre seria – semelhantemente às “estruturas” do coletivo “que não estão pré-determinadas” – “uma pedagogia onde não se ensina nenhum conteúdo”, mas na qual – assim como estas estruturas “compõem de modo complexo um amplo horizonte de relações possíveis” – “se fala de dinamismos, de relacionamentos, de processos e fluxos”. Em suma, compreendemos que o “amplo horizonte” do AtivismoABC e a “conduta talvez estabelecida” da improvisação livre, não incluem “qualquer coisa”, recusando, como já dissemos, a submissão aos sistemas. Podemos considerar que as negações contribuem com um “tomar para si o direito a novos valores” (PMA, p. 8). Complementando estas ideias, podemos ainda afirmar que a improvisação livre

60

Bailey apud Costa, op. cit.

42

só é possível no contexto de uma busca de superação do idiomático, do simbólico, da representação, do gestual, do sistematizado, do controlado, do previsível, do estático, do identificado, do hierarquizado, do dualista e do linearizado em proveito do múltiplo, do simultâneo, do instável, do heterogêneo, do movimento, do processo, do relacionamento, do vivo, da energia e do material em si. (FGD, 64) (os nossos grifos procuram destacar ideias relacionadas ao anarquismo, conforme propôs este trabalho até o presente trecho)

Se por um lado a improvisação livre baseia-se em “um tipo de interação e de pensamento sonoro não apoiado em linguagens ou sistemas de referências” e busca, “não a sonoridade musical convencional, mas um livre pensar sonoro”, também é fato que esta prática “[dialoga] e [joga]” com os sistemas linguagens e idiomas, visto que eles “fazem parte da história de cada um” (MEM, p. 59, OEND, p. 282). Não seria mais uma questão de negar os sistemas totalizantes, mas antes integrá-los ao processo criativo. O fim de um elitismo, ou hermetismo, aproximando a música do homem comum, ao invés do choque. Neste caso, a prática de fazer ‘citações’, referências, funciona como fornecedora ‘de sentidos’ para colaborar com o entendimento e criar aproximaxões. (FALLEIROS, 2012, p. 177)

No sentido em questão, este aspecto da liberdade na improvisação pode num primeiro momento ser considerado extremamente distante das liberdades do anarquismo. Visto que, ao organizar-se anarquicamente, ao pé da letra, jamais se integra um “sistema totalizante”.61 Assim, cabe lembrar, de acordo com Falleiros, que no contexto da improvisação esta integração estaria associada a um não-choque ou um fornecimento de sentidos. Deste modo, como já sugerimos na última nota de rodapé, a (não) integração dos “sistemas totalizantes” parece diferir o anarquismo e a improvisação, contudo, fazê-lo na música não parece ir contra os valores anarquistas e suas ideias de liberdade. Sobre questões semelhantes a estas podemos citar a proposta de organização escolar de Rodrigues, que, em contextos em que “nem todas(os) acreditem nos princípios anarquistas” , admite a “liderança temporária de algumas(ns)” (RODRIGUES, 2014, p. 70). A partir do exposto por Falleiros, podemos associar esta proposta a situação de um grupo de improvisação livre em que algum(a) performer, por exemplo, por não estar habituado(a) a sonoridades mais contemporâneas e experimentais, não deseje, não veja sentido ou não se identifique com a ideia de negar sistemas e linguagens nos quais sempre apoiou sua escuta e execução musical. Isto é, compreendendo que no contexto do “livre pensar sonoro” os idiomas “[surgem] não intencionalmente e inevitavelmente”

61 Contudo, cabe lembrar, que estamos comparando duas coisas um tanto quanto distintas em sua essência. Isto é, integrar sistemas totalizantes da música na improvisação não tende a afetar a organização social (ou mesmo musical) tanto quanto seria a permissão de ideias, por exemplo, fascistas num contexto anarquista.

43

(MEM, p. 59), “não se espera que na livre improvisação seja ‘proibido’ o uso de idiomas” (PMA, p.11). Cabe constar, a título de exemplo e comparação, que no contexto da improvisação idiomática, “o improvisador altamente proficiente em um determinado idioma está em constante vigilância” (FALLEIROS, 2012, p. 27). Consideramos que esta vigilância estaria associada à ideia de controle de Deleuze (a qual foi elaborada em “revisão” da ideia de disciplina de Focault). “O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua.” (DELEUZE apud RODRIGUES, 2014, p. 41) “O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funciona em órbita, num feixe contínuo.” (idem, p. 42). Isto é, enfatizando a sociedade de controle

sociedade de disciplina

sociedade da disciplina e o que ela traz de novo em relação à sociedade do controle: “a lógica da vigilância hierarquizada, sanção normalizadora e exame começa a ser substituída pelo autoexame da eterna avaliação, atualização, reciclagem, acúmulo de títulos.” (RODRIGUES, 2014, p. 43) Para nós, este autoexame estaria profundamente associado à ideia de estar “adestrado no idioma” (PMA, p. 14). Já na improvisação livre, compreende-se que “a negação dos idiomas que podem vir a fazer parte da biografia musical de cada improvisador não precisa ser vigiada” (FALLEIROS, 2012, p. 28). Como já dissemos, segundo Costa “não se espera que seja ‘proibido’ o uso de idiomas”. Neste sentido, na improvisação livre, embora se proponha a negação dos idiomas musicais, “pode tudo”, nada está de antemão proibido. Assim, convém relembrar a pergunta corriqueira: “Então eu posso fazer qualquer coisa?” Em relação a qual podemos apontar novamente para maneiras de lidar, considerando que “o improvisador não precisa de ‘autorizações’62 [...] para a ação criativa.“ (FALLEIROS, 2012, p. 16, 17) Isto é, na improvisação livre estaria, a partir de sua proposta, dada uma “autorização social” (direito, poder), que independe de “autoridades” ou “leis” (regras). Em suma, nossa compreensão é de que, em contextos em que se “pode tudo”, o que importa para uma tomada de decisão é que se parta da ideia de que “tudo não é qualquer coisa”, que se considere um coletivo eventualmente em questão. Espera-se, como sugeriu o AtivismoABC que haja uma “autodisciplina coletiva”. Resgatando as reflexões sobre conciliação de liberdades individuais e coletivas, podemos citar Costa. 62 No contexto, Falleiros, referiu-se à ‘autorizações’ em dois contextos: da proposição de uma improvisação por um compositor; e, do domínio dentro de algum idioma específico. Nos dois casos, notamos figuras hierárquicas que concedem esta ‘autorização’: o compositor e a tradição idiomática.

44

Há, também uma dimensão política implícita na proposta de ação musical via improvisação livre coletiva. Esta política é a de que nesta prática o individuo se desfaz, ele se torna um coletivo. Não há partes individuais, assim como não há enunciado individual, todo enunciado é coletivo. Todas as partes são coletivas. O músico e sua biografia são desterritorializados. Eles mudam de natureza. O músico e sua biografia formam um bloco de som e silêncio, de duração e som/silêncio coletivo. Neste plano de consistência da improvisação aquelas essências (o músico como um meio) que são geralmente vistas como expressividades individuais, desterritorializam-se em ritmos, criando uma espécie de envoltório pulsante. (MEM, p. 167)

Cabe, a partir deste excerto, considerar que os idiomas, linguagens ou até sistemas totalizantes podem fazer parte de uma performance de improvisação livre contanto que sejam desterritorializados, ou se surgirem enquanto territórios provisórios, ou ainda se através de indivíduos que se refazem enquanto coletivo. Isto é, nesta prática “os sistemas e as linguagens deixam de impor suas gramáticas abstratas e se rendem a um fazer fecundo” (FGD, p. 64). Sendo possível assim lembrar Codello – que fez distinção entre regra e acordo, de modo que o segundo “se trata de um processo” e “pode ser sempre modificado” –, e sugerir que na improvisação livre estas referências nunca se colocam enquanto regras, mas sempre como acordos. Nossa associação desta condição da improvisação livre às formas de organização do anarquismo é feita, sem necessidade de esclarecimentos, a partir da Revolução Espanhola, em que “nas empresas coletivizadas, o diretor era substituído por um comitê eleito, composto por membros dos sindicatos. Ele podia continuar a trabalhar em sua antiga empresa, mas com um salário igual àquele dos outros empregados.” (MINTZ; GOLDBRONN, s/a, p. 2).

1.4.5. Improvisação livre e educação libertária “O verdadeiro educador é aquele que, contra suas próprias ideias e vontades, pode defender a criança, apelando em maior grau às energias próprias da criança.” Francisco Ferrer

Segundo Nicolas Walter nem todas as chamadas pedagogias libertárias seriam anarquistas (RODRIGUES, 2014, p. 59), contudo, como já apontamos, sempre houve uma grande aproximação dos dois movimentos. Bem como, cabe ressaltar, que as chamadas pedagogias libertárias e suas 45

ideias possuem, (ao menos) na contemporaneidade, grande valor para diversos coletivos anarquistas, sendo comum, por exemplo, o lançamento de obras sobre pedagogia libertária por editoras declaradas anarquistas, e assim por diante. Também é fato, como dissemos anteriormente, que os dois termos são comumente compreendidos como sinônimos. Neste subtítulo, uma de nossas intenções é sugerir que a inserção da prática da improvisação livre no currículo da educação (musical) contempla propostas e ideias da pedagogia libertária conforme concebidas em seu seio e também na contemporaneidade. Ressaltamos que muitas dessas características não são exclusivas desta pedagogia, contudo não é nosso enfoque tratar de outras linhas pedagógicas. Cabe constar, por exemplo, que segundo Gallo, “Ferrer antecipou em meio século elementos da teoria pedagógica construtivista” (GALLO, 2006, p. 40). Ao tratar da “educação libertária” na zine Princípios do coletivo, o AtivismoABC afirmou: Buscamos relações de poder e de saber que sejam contra a dominação, e, portanto, os saberes, para nós, não são colocados a serviço da exploração e do controle de uma pessoa sobre a outra. Ao contrário, são compartilhados e vivenciados, para construir relações solidárias e livres. (ATIVISMOABC, 2014a, p. 10)

A improvisação livre parece-nos estar próxima desta ideia, visto que nela “não cabe o [...] que poderia ser um gesto que não nasce das necessidades da performance, mas sim de segundas intenções: manipulação, sedução e exercício de poder.“ (PMA, p. 4) O objetivo da educação libertária, e a fortiori, da pedagogia libertária, consiste em participar da elaboração de um indivíduo livre – livre para agir e pensar – e capaz de produzir um discurso crítico segundo suas próprias escolhas. Nisso, o projeto anarquista de educação ultrapassa a simples acumulação de saber e propõese a construir um indivíduo capaz de análise e recuo crítico. (LENOIR, 2006, p.74)

Sendo possível também acrescentar que esta pedagogia “tem por objetivo educar a criança para que ela possa cumprir o destino que ela julgar melhor” (L’ÉNCICLOPÉDIEANARCHISTE apud LENOIR, 2006, p. 74). Segundo Gallo, Ferrer fazia crítica à “educação que é reduzida à instrução, à mera transmissão de conteúdos”. “Ele procurou possibilitar que as crianças experimentassem o mundo, fazendo suas próprias descobertas, estimulando assim sua curiosidade e seu desejo de conhecimentos.” (GALLO, 2006, p. 40) Novamente segundo o coletivo anarquista AtivismoABC, podemos considerar que “a educação libertária não separa trabalho e investigação, jogo e reflexão, teoria e prática, atividade manual e intelectual, paixão e responsabilidade” (ATIVISMOABC, 2014a, p. 10).

46

Para nós, a proposição pedagógica da improvisação livre se aproxima da possibilidade de que o educando ou educanda “cumpra o destino que achar melhor” e seja “capaz de produzir um discurso crítico segundo suas próprias escolhas”. Visto que ela “nos coloca – enquanto instrumentistas – diante da possibilidade de criar nosso próprio ‘discurso’, ‘dizer nosso próprio texto’.” (IC, p. 93) Sendo fato também que a não separação da investigação e do trabalho remete a improvisação livre no sentido de que “muitas vezes a invenção de técnicas estendidas ou a descoberta de novos recursos instrumentais [...] ocorre em plena performance” (FTC, p. 6). Amiúde, podemos considerar que a integração entre atividade manual e intelectual, bem como uma crítica geral da educação anarquista a esta separação (ATIVISMOABC, 2014, p. 32, 33; DUPONT, 2006, p. 55) é contemplada pela improvisação livre, visto que ela questiona a separação entre intérprete, público e compositor(a) que se desenvolveu tradicionalmente na música ocidental chamada de erudita. Compreende-se que, nesta prática, o improvisador ou improvisadora exerce todas estas tarefas ao mesmo tempo (EOL, p. 2, OEND, p. 283, PMA, p. 9). Semelhantemente ao anarquismo, a pedagogia libertária é crítica em relação às hierarquias e relações de poder. Isto é, a pedagogia libertária (e suas semelhantes) tem, por exemplo, como fins e meios a repartição do poder e do conhecimento entre: adultos e crianças, educadores (e educadoras) e educandos (e educandas) (CODELLO, 2006, p. 84; LENOIR, 2006, p. 75; RODRIGUES, 2014, p. 75). Sendo que, “a importância da horizontalidade na pedagogia se dá pelo fato de que aquele que tem mais conhecimento tende a ter maior poder em algumas situações.” (ATIVISMOABC, 2014a, p. 11) Trata-se da “horizontalidade entre saberes diferentes” e de uma intenção de “descentralizar o conhecimento” (ATIVISMOABC, 2014, p. 8). Já no contexto da educação musical, Schafer, semelhantemente, considerou que “numa classe programada para a criação não há professores: há somente uma comunidade de aprendizes. [...] O professor precisa trabalhar para a própria extinção.” (SCHAFER, 1991, p. 286) Diferentemente, por exemplo, do contexto tradicional conservatorial em que há uma técnica instrumental a ser reproduzida fielmente, nota-se, pelas referências que apresentamos aqui, que, para a realização de uma performance de improvisação livre, não se parte do pressuposto de que o educador ou educadora possui maior ou melhor conhecimento do que o educando ou educanda. Isto é, na medida em que, numa peformance de improvisação, “todos os sons têm direitos iguais”63 e “a habilidade e conhecimento requerido é aquele que estiver disponível”64, podemos inferir que os saberes e conhecimentos prévios dos educandos e educandas estão valorizados em pé de igualdade 63 64

Costa, op. cit. Bailey apud Costa, op. cit.

47

com os saberes do educador ou educadora. Neste sentido, há uma repartição de poder explícita: todas as pessoas podem atuar enquanto performers, mesmo sem um domínio técnico específico. Ao tratar da educação libertária, as pessoas que compõem o AtivismoABC também destacaram que utilizam “tanto saberes populares quanto acadêmicos, rompendo suas fronteiras.” (ATIVISMOABC, 2014a, p. 10) Podemos lembrar que algo semelhante ocorre na improvisação livre, visto que as referências diversas (como os idiomas) que compõem a biografia musical dos improvisadores e improvisadoras não estão hierarquizados entre si. Sendo que, implicitamente, a origem destes idiomas e linguagens – por exemplo, se eles são advindos de culturais tradicionais, midiáticas, experimentais ou acadêmico-eruditas – deixa de ser um fator de hierarquização, como acontece nos conservatórios e universidades. Como considerou Costa, a improvisação livre pode contribuir para que as fronteiras lingüísticas, culturais e sociais sejam menos rígidas. (FGD, p. 65, MEM, p. 28). Ela é possível em contextos de “alta complexidade e sofisticação” musical e também “num ambiente de extrema simplicidade” (PMA, p. 2). Recordando Falleiros65, nela convivem não só estilos e culturas musicais distintas, mas também diferentes tipos de tecnologia de produção sonora. Contudo, cabe lembrar que é o desejo que possibilita este tipo de interação. É uma prédisposição para a desrostificação, sendo necessária a atomização, ou molecularização segundo conceito de Deleuze, do estado biográfico de cada músico, encontrando o universal pela menor parte comum. Este desmonte ou desmanche da biografia individual pelo recorte ou seleção, no sentido de dar coesão às ações musicais, permite uma reorganização que conecta as experiências constituindo então uma biografia comum designada. (FALLEIROS, 2012, p. 145)

“A livre improvisação é uma proposta de socialização do fazer artístico.” Ao distanciá-lo do “Espetáculo” – “instrumento de dominação” – Costa sugeriu que ela estaria associada a “este novo papel da música e da arte” (PMA, p. 10): “arte [...] pelo mero prazer do jogo criativo”, que possibilita “a remoção entre as barreiras entre artistas e ‘usuários’ da arte” (BEY apud COSTA [PMA], p. 10). Contemplando, assim, o pressuposto anarquista de que todas as pessoas são “artistas em potencial” (PRADO; HARTMAN apud SILVA, 2011, p. 90). Isto é, a música não deve ser um privilégio dos e das musicistas. Negar os castigos e (igualmente) as recompensas também é uma característica da pedagogia libertária (ELÍAS apud DUPONT, 2006, p. 50; RODRIGUES, 2014, p. 80; SILVA, 2011, p. 97; TRABALHO, 2006, p. 46). Neste sentido, convém lembrar que, na improvisação livre (jogo ideal), 65

Op. cit.

48

diferentemente da improvisação idiomática (jogo com regras) – e de diversas outras práticas musicais –, não está previamente estabelecido o que é adequado e inadequado.66 Trata-se de considerar que a reprodução de repertórios possibilita julgamentos (MEM, p. 85). De acordo com Rodrigues, as classificações hierarquizadoras tendem a assumir um caráter punitivo (RODRIGUES, 2014, p. 35). Isto que nos sugere que a classificação (julgamento) entre melhores e piores musicistas (no contexto da reprodução de repertórios) aproxima-se da lógica dos castigos e recompensas. Já a improvisação livre seria uma prática em que, de um modo idealizado, esta diferenciação hierarquizadora não é esperada. Compreendemos que as proposições afirmativas da pedagogia libertária para estas críticas aos modelos diversos de educação incluem a valorização do jogo (GALLO, 2006, p. 37), a autodisciplina67, a auto-avaliação (EDUCAÇÃO, 2006, p. 111) e o recuo crítico68. Para nós, estas propostas dialogam com a improvisação livre, já que nesta prática é dada considerável autonomia ao improvisador ou improvisadora. Sendo que, nela, parece não haver sentido a imposição de uma disciplina (externa) ou avaliação (de resultados, visto que os processos interativos talvez possam ser “avaliados” conforme contemplem em maior ou menor grau as éticas da escuta e interação, por exemplo). A expressão “recuo crítico” também nos faz sentido quando transposta para a improvisação, sugerindo uma escuta de si e do grupo, de modo que haja uma avaliação crítica da performance em tempo real atrelada a um cuidado com a produção sonora. Seria a importância da escuta em pé de igualdade com a produção sonora, um aprendizado relevante para todas as práticas musicais. Em suma, compreende-se que “[a pedagogia libertária] é uma intenção permanente em ato, daí suas fragilidades, e não uma crença na infalibilidade do método, daí sua força.” (LENOIR, 2006, p. 75) [Um] futuro imprevisível proclama uma necessidade de flexibilidade e adaptação contínua que na Livre Improvisação será dirigida por meio da escuta. Na Livre Improvisação, a todo momento, temos que lidar com o imprevisível, não se pode agir segundo uma conduta pré-estabelecida que garanta a interação para a criação desta música. O improvisador está sempre consumindo pela escuta de novidades incessantes e tendo que lidar com elas de forma criativa. (FALLEIROS, 2012, p. 35, 36) A ideia de uma criação não muito planejada, que envolva riscos, é positiva no sentido de afastar determinadas cortesias e constrangimentos relacionados às ordens permissivas do fazer musical que se aliam aos ideais não criativos, como o 66

Costa, op. cit. AtivismoABC, op. cit. 68 Lenoir, op. cit. 67

49

controle, a repetição e ao conhecimento e cumprimento de regras (FALLEIROS, 2012, p. 180).

Parece-nos que no contexto da improvisação livre bem como da pedagogia libertária, as medidas que tendem a “garantir” resultados específicos ou condutas/posturas e evitar certos “riscos” são indesejáveis, visto que elas diminuiriam a autonomia daqueles e daquelas que fazem parte de um determinado espaço.

1.4.5.1.

H. J. Koellreutter sob a ótica da pedagogia libertária “Não existe ‘fórmula secreta’. O que ‘funciona’ se, por algum motivo, você quiser garantir que as crianças se comportem como muitas vezes se deseja é agir com autoritarismo. Mas claro, isto está totalmente fora de cogitação. Um trabalho sincero, que leva as crianças em conta, tem que lidar o que elas trazem consigo, incluindo um certo caos.” Adaptações de falas de Teca de Alencar Brito

Como temos indicado ao longo do trabalho, o projeto de educação (musical) de Koellreutter valorizava a improvisação por considerar que esta prática favorece o debate, a autodisciplina, a tolerância e as experiências criativas.69 Por este motivo, é de nosso interesse tratar diretamente do pensamento do educador em questão, além de refletir sobre (supostas) semelhanças deste com a pedagogia libertária. Deste ponto de vista, convém constar que Koellreutter acreditava na “superação de preconceitos [...] decorrentes do racionalismo” (BRITO, 2011, p. 28), visto que Franscico Ferrer chamava sua pedagogia de “racionalista”. Contudo, como já dissemos, segundo Gallo, apesar desta designação, esta era uma pedagogia que valorizava a afecção, o que nos sugere que Ferrer, ao menos em algum grau, seria exceção dentre os pensadores e pensadoras desta corrente pedagógico-filosófica.70 A vinda de Koellreutter ao Brasil, em 1937, decorreu de sua relação com o movimento antifascista (BRITO, 2004, p. 18). Assim, convém constar que o movimento libertário, inúmeras 69 70

Brito, op. cit. Gallo, op. cit.

50

vezes, já se aproximou de outras correntes socialistas (e não só destas) por uma espécie de causa maior, o antifascismo. Por exemplo, no contexto da Revolução Espanhola, as organizações libertárias consideradas “[vencedoras] do levante fascista”, “julgando que a instauração imediata do comunismo libertário seria de natureza ditatorial, [...] optaram por uma colaboração com todos os setores antifascistas” (DUPONT, 2006, p. 49). Quanto à posição política de Koellreutter dentro do contexto do que temos chamado de “correntes socialistas”, podemos abordá-la a partir de conversas informais que tivemos com o compositor e filósofo Antonio Herci, que estudou composição com o musicista em questão. Nestas, constatamos que Koellreutter declarava-se “socialista”, sendo muito crítico em relação ao chamado “stalinismo”, além de um profundo conhecedor da obra de Marx. Contudo, ao menos segundo nossas referências, Koellreutter não fazia menção explícita ao anarquismo e seus autores e autoras. Para apresentar um pouco do pensamento do educador de que estamos tratando, podemos citar trechos de seu texto Educação e cultura em um mundo aberto como contribuição para promover a paz, o qual foi citado por Teca Alencar de Brito: Mundo aberto significa sociedade aberta. Sua coesão interna não será conseguida, como no passado, pela pressão do mais forte, e sim pela concentração em objetivos comuns e pela mobilização para empreendimentos comuns. [...] É chegado o tempo de renunciar a títulos, hinos nacionais, bandeiras e insígnias. Teremos de aprender a esquecer que somos doutores, professores, diretores ou alemães, japoneses, indianos, brasileiros, ou qualquer outra nacionalidade [...] Teremos de aprender a ser, sobretudo, gente, apenas gente, e estenderemos nossa consciência nacional a uma consciência supranacional. Teremos de desenvolver um sentimento de solidariedade de todas as nações, a consciência de compromisso perante a uma comunidade cultural e política universal. [...] No século XX somos chamados a formar esse homem livre, destituído de preconceitos, que pensa e sente em termos supranacionais [...] (KOELLREUTTER apud BRITO, 2011, p. 53, 54)

Nesta citação há ideias que se aproximam do pensamento anarquista, ou no mínimo são explicitamente críticas da hierarquização (de naturezas variadas) entre indivíduos. A crença numa sociedade não calcada na pressão do mais forte seria uma destas semelhanças. Enquanto que a proposição da “concentração em objetivos comuns pela mobilização para empreendimentos comuns” e da “consciência supranacional”71 remete ao federalismo ou mutualismo, teoria elaborada pelo anarquista Proudhon sobre como seria a organização da sociedade sem um Estado centralizador.72 Também podemos considerar que, ao propor um mundo em que se “[pense] e 71

Críticas anarquistas ao conceito de pátria podem ser encontras em Mentiras do patriotismo de Hector Morel, que considerou que “o que nas sociedades tem por objetivo amordaçar e explorar os povos, paralisar, comprimir o desenvolvimento da inteligência humana, faz-se sempre e invariavelmente em nome da pátria.” (MOREL, 2001, p. 7) 72 Na ocasião do evento “Conversa internacional(ista)” realizado no CCS, pudemos conhecer mais sobre algumas federações anarquistas da América Latina e da Europa. Estas se organizam segundo o princípio do apoio mútuo (ou

51

[sinta] em termos supranacionais” Koellreutter sugere outra ideia anarquista, a de que a mudança das mentalidades deve dar-se principalmente pela educação (e não pela luta de classes).73 Parece haver também uma busca pela “sociedade sem classes”74 quando Koellreutter trata de “doutores, professores, diretores”, propondo que os títulos e cargos hierárquicos deixem de ser fatores hierarquizantes entre as pessoas, já que “teremos de aprender a ser, sobretudo, gente, apenas gente”. Contudo, convém lembrar que esta não é uma ideia apenas do anarquismo. Do mesmo modo que enfatizamos o pensamento koellreutteriano no âmbito da ideia de nacionalidade, convém tratar do engajamento do grupo Música Viva, do qual ele fez parte. Este coletivo demonstrou, em manifesto, ideias de igualdade no campo da música, propondo “cultivar a música contemporânea [...] de todas as tendências, independente da nacionalidade, raça, ou religião do compositor” e “proteger e apoiar principalmente as tendências dificilmente acessíveis.” (KATER apud BRITO, 2004, p. 28)75 No contexto da educação, podemos constar que, desde a chamada Era Vargas, em que a prática musical escolar estava associada ao enaltecimento da pátria (FONTERRADA, 2008, p. 214)76, Koellreutter já defendia uma educação musical criativa (BRITO, 2011, p. 30). Sendo que, de um modo geral, o educador em questão acreditava na educação “pela e para a transformação” (BRITO, 2004, p. 16) e “na música a serviço de um ideal: ampliação da consciência, transformação do mundo” (idem, p. 32). Outro aspecto importante da proposta de Koellreutter, consiste na busca por uma “educação musical não orientando para a profissionalização de musicistas, mas aceitando a educação musical como meio que tem a função de desenvolver a personalidade do jovem como um todo” (KOELLREUTTER apud BRITO, 2011, p. 43). Semelhantemente, ao propor o ensino científico, o pedagogo anarquista Paul Robin enfatizou que buscava “propiciar o [...] desenvolvimento de todas as faculdades da criança” e não torná-las cientistas (ROBIN apud SILVA, 2011, p. 12). Isto é, em ambos os contextos, trata-se de um desenvolvimento integral. Sugere-se que os estudos das diversas áreas de conhecimento não precisam visar a formação de indivíduos pré-determinados ao cumprimento de determinadas funções dentro de um sistema e sim de seres humanos. mutualismo). Em suma, nesta forma de organização, eventuais ações “da federação” são realizadas pelos coletivos envolvidos, se dando sempre através da organização por “objetivos comuns” destes. Isto é, nunca são tomadas decisões que dizem respeito a um coletivo advindas de uma (suposta) “instituição superior”, visto que esta não existe. Compreende-se que a federação é uma associação de coletivos, na qual todos devem possuir total autonomia de si: a federação não possui poder decisório em relação a nenhum coletivo para além da decisão autônoma dele. 73 Bernal, op. cit. 74 Bakunin apud Spindel, op. cit. 75 Contudo, podemos perceber que não foi feita menção à distinção de gênero. 76 E também segundo sugeriu Igayara, op. cit.

52

Neste sentido, convém lembrar que a proposta da educação integral, no contexto da pedagogia libertária, não só tratava de uma educação igualmente manual e intelectual, mas também da busca pela possibilidade de que as classes sociais fossem educadas igualmente. Visto que, educava-se as elites apenas intelectualmente e as classes sociais menos favorecidas manualmente. Semelhantemente, o grupo Música Viva indignava-se com o fato de as elites possuírem uma educação diferenciada (KATER apud BRITO, 2004, p. 33). Koellreutter sempre propôs a superação do currículo fechado, que determina previamente os conteúdos a serem transmitidos, sem averiguar e avaliar criteriosamente o que realmente é importante ensinar a cada aluno, grupo, em cada contexto ou momento. Nos cursos de atualização pedagógica o professor nos orientava a ensinar ‘aquilo que o aluno quer saber’. [...] cabe a analogia: ‘O caminho se faz ao caminhar’. Desse modo, cabe ao educador facilitar situações de aprendizagem autodirigida, com ênfase na criatividade, em lugar da padronização, da planificação e dos currículos rígidos presentes na educação tradicional. Mais do que programas que visam resultados precisos e imediatos, é preciso contar com princípios metodológicos que favoreçam o relacionamento entre o conhecimento (em suas diversas áreas), a sociedade, o indivíduo, estimulando, e não tolhendo, o ser criativo que habita cada um de nós. (BRITO, 2011, p. 33)

Koellreutter ainda afirmava: “Meu método é não ter método.” “O método fecha, limita, impõe... e é preciso abrir, transcender, transgredir, ir além...” (KOELLREUTTER apud BRITO, 2011, p. 31). O educador também propunha que a criação fosse um elemento prioritário nos projetos de educação (BRITO, 2001, p. 29). A valorização do que poderíamos chamar de “currículo aberto”, presente na proposta de Koellreutter, também é uma característica da pedagogia libertária. Sendo possível, de acordo com Gallo, considerar que na pedagogia de Ferrer “deveria ser ensinado, pois, aquilo que as crianças quisessem aprender, por terem tal curiosidade despertada pelas experiências práticas, e não que os manuais escolares traziam impresso.” (GALLO, 2006, p. 41) Bem como, no contexto da Espanha libertária, o escola novista Puig Elías propôs que “todos os métodos [fossem] experimentados” (ELÍAS apud DUPONT, 2006, p. 52). Assim como o pensamento anarquista de um modo geral, os educadores e educadoras libertárias sempre valorizaram a autonomia e o poder decisório dos indivíduos e (evidentemente) destes quando inseridos num contexto de educação. Sobre esta, Ferrer afirmou: “Não tememos dizêlo: queremos homens capazes de evoluir incessantemente; capazes de destruir, de renovar constantemente os meios e [renovar] a si mesmos; [...] que nunca se sujeitem ao que quer que seja” (FERRER, 2006, p. 68). Já Tiana, considerou que “a tarefa de educar não consiste, pois, em adaptar os educandos a um molde estabelecido de antemão, mas possibilitar a construção de sua 53

própria vida” (TIANA apud BERNAL, 2006, p. 15). Koellreutter, por sua vez, propunha que “a educação tendesse, essencialmente, ao questionamento do sistema e não à sua reprodução, que tenda ao despertar e ao desenvolvimento da criatividade e não à adaptação e à assimilação” (BRITO, 2011, p. 36). Sendo estas, para nós, outras características que aproximam o pensamento do educador em questão da proposta da pedagogia libertária. Outras características comuns entre as propostas pedagógicas em questão incluem: o livre diálogo entre professor(a) e aluno(a) – em oposição à imposição e obrigação – (BRITO, 2011, p. 37; SILVA, 2011, p. 97) e a crítica à transmissão de conteúdos – que deve dar lugar à conscientização e a concessão de ferramentas para a construção da própria trajetória por parte dos educandos e educandas (BRITO, 2011, p. 95; ELÍAS apud DUPONT, 2006, p. 52; GALLO, 2006, p. 40; KOELLREUTTER apud BRITO, 2011, p. 99; LENOIR, 2006, p. 71, 73; ROBIN apud LENOIR, 2006, p. 75). A proposta de não hierarquização entre culturas (e, consequentemente, entre músicas) também faz parte do pensamento de Koellreutter, o que está, a partir das referências que já apresentamos, em conformidade com os valores anarquistas, da pedagogia libertária, e como já constatamos, também da improvisação livre. O educador em questão propôs “que as culturas não ocidentais tanto quanto as originárias, aborígines, ainda existentes nesse planeta e, naturalmente, também no Brasil, sejam levadas em conta tanto quanto a ocidental” (BRITO, 2011, p. 36). Considerando também que “‘todas as músicas’ devem ser valorizadas e trabalhadas” (BRITO, 2011, p. 51).

1.4.5.2.

“O anarquista” segundo Koellreutter “Professores de música têm obsessão por pulso.” Teca Alencar de Brito

Em alguns jogos (ou modelos) de improvisação formulados por Koellreutter encontram-se personagens, situações e objetos originalmente não-musicais representando ações e funções musicais, as quais são executadas pelos jogadores. Características das personagens, situações e objetos em questão são traduzidos, de forma lúdica, em propostas musicais. Bêbados, discussões

54

entre torcidas de futebol e relógios com defeito são exemplos do que o educador propõe que seja, sempre de forma aberta, levado aos jogos de improvisação. No jogo O palhaço (BRITO, 2011, p. 104-110), para o nosso interesse, há um personagem (que também pode ser) chamado de anarquista: o próprio pallhaço. Neste jogo, “Koellreutter tomou de empréstimo aspectos característicos da estrutura social: a presença dos cidadãos, da lei, que orienta comportamentos e atitudes, e do anarquista (ou palhaço), que contesta as leis.” (BRITO, 2011, p. 104, 105) Alguns jogadores e jogadoras fazem o papel da lei, executando um pulso estável, enquanto que os chamados cidadãos e cidadãs criam e executam ostinatos que devem obedecer ao pulso (lei). Por sua vez, o que é proposto à personagem anarquista é que ele ou ela, ao tocar, não se oriente pelo pulso, representando alguém “que se opõe a um sistema qualquer” (BRITO, 2011, p. 105). Podemos compreender que Koellreuter preocupava-se, “[semelhantemente aos grupos de improvisação], em descobrir e desenvolver aqueles territórios que foram reprimidos por mil anos de uma música dependente da notação [tradicional]” (KARKOSCHKA apud DEL-NUNZIO, 2011, p. 187). Isto pode ser percebido, por exemplo, nos jogos Solo-fantasia (BRITO, 2011, p. 111-114) e Loja de relógios (BRITO, 2011, p. 116-118), além do jogo em questão, O palhaço. Nestes jogos, propõe-se um fazer musical não limitado ao tempo métrico. Sendo trabalhados os chamados tempo não-métrico e tempo amétrico (BRITO, 2011, p. 105). Gostaríamos de propor que o jogo de que estamos tratando seja compreendido enquanto um “tomar para si o direito a novos valores”77 no âmbito da produção musical78. Além da proposta de conscientização acerca dos tempos em questão (BRITO, 2011, p. 104), a realização dos tempos amétrico e não métrico traz possibilidades (no sentido de poder, autorização social, direito, como temos tratado) aos educandos e educandas. Nesta situação, lhes é proposto que experienciem (também) um fazer musical distinto daquele que – no senso comum e também em alguns ambientes conservatoriais – é o único aceito enquanto música. Isto é, estamos muito distantes de ter a produção musical que não baseia-se no tempo métrico reconhecida enquanto música de qualidade (ou mesmo enquanto música). Tampouco, nos contextos diversos de educação musical (na escola regular, na escola de música, nas práticas informais, e até mesmo nas universidades) vemos uma grande difusão do costume de fazer música sem ser metricamente. É neste sentido que

77

Costa PMA, op. cit. Poderíamos falar precisamente da conscientização acerca do chamado “novo conceito de tempo” e da prática da música contemporânea. 78

55

compreendemos que, ao tornar possível (autorizada) a produção musical amétrica e não métrica, os jogos em questão lidam com alguns dos conceitos que temos apresentado neste trabalho. Partindo da ideia de que “numa situação onde todo significado já foi atribuído, a liberdade é irrelevante, pois todas suas possíveis opções já estão determinadas”79, podemos sugerir que um indivíduo que nunca ouviu falar da possibilidade de fazer música sem metro, provavelmente não irá fazê-la, ou, se fizêla, possivelmente não se atentará para o seu valor. Isto é, “a liberdade [não] é encontrada [...] simplesmente pela remoção de forças restritivas”80. A título de exemplo, consideramos que mesmo aquele ou aquela que não está (indiretamente) impedida (desencorajada) por um(a) regente, professor(a) ou compositor(a) a expressar-se ametricamente, talvez não experiencie este fazer musical. Parecendo-nos mais provável que isso aconteça a partir do “tomar para si o direito a novos valores”, por exemplo, através do convite à realização de práticas como as de que estamos tratando. Em suma, podemos compreender a partir de Brito que o palhaço ou palhaça pode “usar toda sua fantasia, independência e [e desenvolver sua] personalidade” (BRITO, 2011, p. 107). Em suma, consideramos fundamental que a educação (musical) busque apresentar aos educandos e educandas “tudo” aquilo que podem realizar. Sendo que, conforme temos sugerido, a produção musical para além das regras e leis (implícitas e explícitas) contribui para novas descobertas. Neste sentido, a improvisação livre, a pedagogia libertária e as práticas de criação em geral, parecem – através da “remoção de forças restritivas” e do “direito a novos valores” – abrir caminho para compreensões menos (previamente) hierarquizadas. Diminuindo abismos, por exemplo, entre: saberes populares e acadêmicos, culturas orientais e ocidentais, fazer musical métrico e seus outros.

1.4.6. Improvisação livre e autogestão “Quando estamos improvisando, somos [, mais do que quando estamos interpretando uma composição, por exemplo,] responsáveis pelo resultado.” Adaptação de uma fala de Teca Alencar de Brito

79 80

CrimethInc, op. cit. Idem.

56

Talvez a ideia de negação dos sistemas enquanto estratégia para o alcance da liberdade soe um tanto quanto abstrata e ligada a um plano idealizado. Neste sentido, sugerimos que a autogestão trata-se de uma estratégia afirmativa contextualizada num plano concreto. Se temos dito que o anarquismo busca que a participação política esteja acessível à todas as pessoas – e sugerido que a improvisação busca o mesmo em relação ao fazer musical –, ao tratar da autogestão cabe enfatizar que, mais do que isto, esta busca também diz respeito a que as coisas sejam acessíveis da mesma maneira, que todos e todas possam usufruir destas sem assimetrias. Pode-se dizer, resumidamente, que parte do que se pretende numa autogestão é que ninguém tenha poder tampouco responsabilidades em excesso em relação às demais pessoas. Sendo que, o que procuraremos apresentar é (a nossa visão de) que a improvisação tem pretensões similares e, inclusive, elas se utilizam de estratégias análogas. Nossa associação das estratégias em questão também parte da constatação de Bell de que os improvisadores e improvisadoras possuem estratégias de organização para evitar eventuais exclusões, relações de dominação ou vícios. Sendo que, para o autor, estas estratégias podem contribuir para a organização anarquista (BELL, 2014, p. 15, 18). Conforme já afirmamos, a autogestão “é um modelo de gestão onde todas possuem igual capacidade de participação sem a existência de cargos hierárquicos”. Sendo que, compreende-se que uma das maneiras de possibilitar isto é que haja constante rotatividade das funções. Pode-se considerar que a justificativa para a autogestão se dá pelo fato de que: Nossa sociedade opera com responsabilidades curtas e grossas, muito restritas a vida fragmentada pelo trabalho e consumo capitalistas. Esquivar-nos das responsabilidades que não nos competem é uma característica disto [...] Para o AABC, gerir um espaço exige a desconstrução desta lógica, trazendo à tona a necessidade de uma auto-disciplina autônoma e autogerida, organizada a partir da divisão de tarefas e responsabilidades de modo consensual e controlado coletivamente. (ATIVISMOABC, 2014, p. 22)

Podemos ainda dizer que, numa autogestão, “a ação coletiva passa a ser responsabilidade de todas e a autodisciplina passa a ser primordial, já que a falta de compromisso de uma pessoa afetará todo o coletivo.” (ATIVISMOABC, 2014a, p. 7) O que gostaríamos de sugerir é que a improvisação, diferentemente de outros modos de fazer musical, pelo seu caráter irreversível (FALLEIROS, 2012, p. 19) e pelo fato de que “cada som tem conseqüências no fluxo” (PMA, p. 4), traz à tona a necessidade de responsabilização pelo todo, tão valorizada pela proposta da autogestão. Aprofundaremo-nos nesta questão no capítulo 3, a partir de discussões realizadas com o grupo Coletivo Consenso Centralizado.

57

Comumente, os coletivos e espaços autogestionados recusam a terceirização de serviços (no caso do AABC, referentes, por exemplo, às manutenções da Casa da Lagartixa Preta). Isto advém da busca pela autonomia e também – com base na ideia de integração entre trabalho manual e intelectual – de uma crítica geral à especialização profissional (ATIVISMOABC, 2014, p. 32, 33). Noutro contexto de nosso interesse, pode-se dizer que a improvisadora ou improvisador, num certo sentido, “[diferentemente de um solista de orquestra que estuda e executa sua parte], não é uma espécie de ‘franquiado’, mas reúne ao mesmo tempo e na mesma figura, o propositor e o executor da música.” (FALLEIROS, 2012, p. 17) Podemos assim, sugerir que, na improvisação livre, o improvisador ou improvisadora – justamente por exercer igualmente o trabalho manual e o intelectual – é autônomo como a autogestão propõe: não executa algo designado por um terceiro ou terceira nem designa alguém para atuar através da sua vontade (o que podemos entender como uma das contextualizações do conceito geral da negação das autoridades, do mando, da obediência). Numa autogestão (e no anarquismo) valoriza-se a tomada de decisões através do consenso. Diferentemente de uma decisão tomada a partir de votos majoritários, em que muitas vezes se anula o que a minoria deseja81, pode-se considerar, que ele “é a possibilidade de combinar diferenças”. Mesmo quando, devido à busca pelo consenso, uma decisão demora mais do que o esperado para ser tomada, ele tende a ser prioridade. Convém também ressaltar que “no consenso, discordar de uma proposta não é a mesma coisa que opor-se a ela. Uma proposta pode não ser a preferida por todas, mas pode ser levada a cabo coletivamente caso ninguém se oponha a ela”; ou, até mesmo, caso “[considerem] que essa escolha não é para eles verdadeiramente fundamental.” (ATIVISMOABC, 2014, p. 23, 2014a, p. 15; CODELLO, 2006, p. 81) Sendo que, ainda que não seja exatamente a mesma coisa, podemos, a partir do nosso conhecimento sobre algumas federações anarquistas82, chamar (ao menos para o uso que faremos neste trabalho) o que é feito nesta situação de “abstenção amigável”.83 Até aqui (a partir destas referências), podemos considerar que, já que todos e todas “podem tudo”, a priorização do consenso destaca, entre outras coisas, que todas as pessoas têm igual direito de vetar ou adiar decisões referentes a algo coletivo – sendo que, convém constar, em muitos outros contextos este direito está restrito a um(a) chefe. Sendo isto algo que, ao seu modo, parece-nos ser também uma característica da improvisação livre (ao menos se comparada com outras práticas). Por 81

Silva, op. cit. Conforme já tratamos, o nosso breve contato e conhecimento acerca desta forma de organização se deu na ocasião da Conversa Internacional(ista). 83 No caso da “abstenção amigável” na forma original do termo, ela contempla tudo o que citamos, com exceção da ideia de “levar a proposta a cabo coletivamente”. 82

58

exemplo, podemos inferir a partir de constatações de Falleiros, que os(as) musicistas de orquestra, se por acaso desejarem interagir com a cadência de um(a) solista, não podem fazê-lo (em suas palavras, “não [está] aberta a possibilidade”) (FALLEIROS, 2012, p. 17, 18). Sendo, evidentemente, também um fato que, na hipótese de desgostar da cadência e desejar intervir sonoramente no fluxo, ele ou ela não irá interrompê-la (a não ser que isto esteja previsto, por exemplo, pelo compositor ou compositora) – o que está atrelado a uma designação de papéis pouco flexível e em conformidade com a ideia de especialização. Já na improvisação livre, de maneira geral, autorizações84 como estas estão dadas – pela proposta da prática em questão – a todos e todas e, consequentemente, também lhes está dado o poder para, na medida do possível, expor sonoramente um eventual desejo de “veto” de algum material sonoro. De maneira geral, na improvisação livre, aquele instrumento que, tradicionalmente, podia apenas acompanhar (ou um(a) instrumentista que, devido ao pouco domínio técnico, acabava não solando ou não tendo nenhum protagonismo) tem direito de participar da performance da mesma maneira que os(as) demais. O que queremos enfatizar é que, se alguma textura ou bloco sonoro não for “consenso” entre todos os improvisadores ou improvisadoras – e portanto alguma não se “abstiver amigavelmente” –, ela está autorizada ao menos a tentar intervir no fluxo (inclusive, sem a necessidade de que isso esteja previsto por uma partitura ou comando de um(a) regente): não está fadada a “apoiar” alguém que protagoniza. Sobre a ideia de direito ao “veto” (encerramento) literal da performance, esta será abordada nos próximos capítulos a partir de jogos-propostas de improvisação desenvolvidas pelo improvisador Max Schenkman. Ainda sobre o consenso dentro de uma autogestão, convém considerar que “quando existe oposição a uma proposta e as pessoas são contra implementá-la, é necessário generosidade da proponente para retirá-la ou esperar uma nova oportunidade” (ATIVISMOABC, 2014a, p. 15). Neste sentido, podemos lembrar que no contexto da improvisação livre “há[, assim como em uma conversa,] aqueles momentos em que todos falam ao mesmo tempo, outros em que alguém não é ouvido ou entendido” (PMA, p. 14). O que propomos aqui é a associação da situação “em que alguém não é ouvido” com a situação em que alguém tem a implementação de sua proposta contrariada pelo coletivo. Sendo que, nesta analogia, não se deve (no ato de transportar as palavras “ouvido” e “entendido” ao contexto de uma conversa em busca de um consenso) levá-las as ao pé da letra. O que queremos enfatizar é que, na improvisação livre, além de ser comum que aconteça, tende a ser proveitoso para a interação que “alguém que não [esteja sendo] ouvido” (que pareça não estar contribuindo com a performance ou interagindo) tenha “generosidade [e retire a sua proposta] 84

Evidentemente em contextos distintos de uma “cadência” em seu sentido original.

59

ou [espere] uma nova oportunidade” (sendo desejável, tanto para a improvisação quanto para autogestão, que, com reflexão, se busque alguma coerência numa possível re-proposição de uma ideia anterior). Consideramos difícil – e provavelmente desnecessário – tentar definir com precisão o que seria um “consenso” dentro de uma improvisação. Contudo, talvez seja um tanto quanto simples ilustrar uma das situações que, para nós, sem dúvida não é um “consenso” nesta prática. Para tal, antes de tratar diretamente da improvisação, citamos, novamente, o AtivismoABC: O diálogo não deve ser confundido com concordância cega, tampouco com um monólogo mascarado pela retórica. Entendemos o diálogo como algo que ultrapassa o sentido da fala, algo corporal-emocional que surge ao fazer e construir coisas em conjunto. Para que o saber e o poder sejam melhor distribuídos, é interessante que no processo coletivo as pessoas que pouco se expressam e tomam iniciativas explorem mais sua capacidade de argumentar, falem mais, coloquem suas ideias e as coloquem em prática, e aquelas que apresentam tendência de falar e fazer mais que as outras prestem atenção a isso, cedam espaços, deixem de falar quando se sentirem contempladas pela fala de outra pessoa (às vezes repetimos algo que já foi dito com nossas palavras, sem necessidade). (ATIVISMOABC, 2014a, p. 6)

Para nós, a improvisação, que como dissemos pode ser compreendida enquanto uma conversa, possui, como seguiremos aprofundando logo a seguir, muitas semelhanças com o trecho citado sobre o diálogo. A respeito do que, de maneira alguma, pode ser chamado de consenso nesta prática, sugerimos que uma “concordância cega (‘surda’)” e um “monólogo mascarado pela retórica” – que não são diálogos, tampouco levam a consensos e contemplam as diferenças – podem ser associados a algumas situações de “interação”. Como, por exemplo, situações em que um improvisador ou improvisadora mais experiente, que tende a “dirigir o resultado da performance” (BURROWS apud FALLEIROS, 2012, p. 24), acaba por agenciar, ou conduzir as interações e diálogos entre as(os) demais, ou mesmo protagonizar a performance. Já as situações em que “repetimos algo que já foi dito com nossas palavras, sem necessidade”, lembra-nos a improvisação, por exemplo, quando um improvisador ou improvisadora, ao tocar sozinha após um aparente final de performance, parece querer dar uma espécie de “palavra final” desta. Visto que, em ambas as situações, pode haver uma espécie de enfoque no discurso de si mesmo(a) sem preocupar-se com o coletivo. Ainda que tenhamos, até aqui, sugerido que a improvisação “traz à tona, ao menos durante a performance, uma sociedade politicamente análoga ao anarquismo, com cada indivíduo contribuindo para o bem-estar da comunidade.” (SMALL apud BELL, 2014, p. 4, tradução nossa) Convém considerar que, “na prática” os dois não funcionam exatamente assim (BELL, 2014, p. 4). 60

Isto é, as relações de dominação muitas vezes fazem-se presentes mesmo inconscientemente, quando não desejadas ou premeditadas (GORDON apud BELL, 2014, p. 6). Sendo importante também constar que, na contemporaneidade, o anarquismo é contra relações hierárquicas também na esfera “micropolítica”, as quais eventualmente podem emergir em sua organização interna (BELL, 2014, p. 5). Tendo em mente que as verticalizações acontecem mesmo sem estarem previstas, convém enfatizar que a “autogestão é uma busca contínua por romper com as formas dominantes de organização (que envolvem, também, as esferas do agir e do falar)” (ATIVISMOABC, 2014a, p. 7) e, no caso da improvisação, do tocar e do cantar. Em outras palavras, [a mera afirmação da horizontalidade não] pode torná-la possível. Por isso, defendemos que a horizontalidade deve ser buscada constantemente. Para nós, todas as situações que geram qualquer verticalização devem estar em constante desconstrução. (AUTOGESTÃO-DA-ECA, 2014b, s/p)

Se por um lado, a improvisação desconstrói as pré-determinações de funções atribuídas aos improvisadores e improvisadoras – por exemplo, a partir do instrumento que tocam ou de seu domínio técnico –, também é fato, inclusive devido a suas biografias (enquanto ouvintes e performers) incluírem estas pré-determinações, que, como num diálogo, há as “pessoas que pouco se expressam e tomam iniciativas” e também “aquelas que apresentam tendência de falar [...] mais que as outras”. Sendo que, por estas condições, as assimetrias da conversa (que podem gerar “mandos” e “obediências”), assim como numa autogestão, necessitam de atenção constante por parte daqueles e daquelas que participam de uma improvisação. O simples fato de os instrumentos terem projeções distintas é algo que, na improvisação livre precisa ser sempre levado em conta para que, nesta “conversa”, o “poder [seja] melhor distribuído”. Há aqueles que precisam “[ceder] espaço” e também os que precisam “[explorar] mais sua capacidade de argumentar, [falar] mais, [colocar] suas ideias [em prática]”. Neste sentido, pode-se considerar que a improvisação livre proporciona rotatividade de funções e desautomatização destas. Também é importante relevar que, aquela improvisadora ou improvisador proficiente em um idioma, que, por “se aproximar mais do modelo ideal, [agencia] mais interações [numa improvisação idiomática]”, deve procurar o seu lugar na improvisação livre, tendo cautela com “suas mais refinadas habilidades” (FALLEIROS, 2012, p. 25, 29). Ou seja, “neste processo de escuta e ação sonora em que os participantes se encontram em um estado no qual podem receber sugestões e influências se faz necessário desmanchar hierarquias polarizadoras”. (idem, p. 24, 25) “Uma melodia pode ser polarizadora, uma cadência harmônica também, porque elas agenciam a 61

escuta para uma direção prévia que apresenta uma forma estabelecida de agir com elas.” (idem, p. 24) Sendo assim, muitas vezes as estratégias de realização da improvisação buscam criar uma necessidade de agenciar elementos novos e de maneiras distintas; e também promover um desvio relativo às ações conhecidas e estagnadas, evitando a ocorrência do mesmo jogo, do surgimento de leis ou se apoiar apenas em estereótipos ou fórmulas. (idem, p. 30)

Embora tenhamos apresentado semelhanças entre a improvisação e a autogestão no que diz respeito às maneiras de lidar com as assimetrias no contexto da distribuição do poder, convém constatar o que consideramos parecer uma espécie de (ainda que sutil) diferença. Compreendemos que uma organização não deixa de ser horizontal ou autogestionada se, em dado momento, opta por menor (ou mesmo nenhuma por um período) rotatividade das tarefas (gerando, em algum grau, “especializações”), desde que isso tenha sido feito de maneira consensual. Contudo, se um grupo de improvisação livre opta por delimitar (com certa fixação) funções aos improvisadores e improvisadoras (com pouca ou nenhuma rotatividade) – ou mesmo se isto acontece sem ser premeditado –, ainda que consensualmente, ele está, de algum modo, se aproximando uma espécie de “idioma musical” (mesmo que criado pelo grupo), território (pouco provisório), ou até de uma composição85. Isto é, na improvisação livre, os territórios que eventualmente são criados, precisam e tendem a ser desterritorializados (FGD). Mas, ainda assim, arriscamos dizer que, há algo em comum nas duas situações que apresentamos hipoteticamente. Tanto no caso de um coletivo que busca autogestionar-se quanto de um grupo que se propõe a praticar a improvisação livre, eventuais (no caso de uma autogestão) “fixações” de funções, ou (num grupo de improvisação) territorializações das maneiras de interagir (que emerjam sem premeditação ou até não sejam percebidas), tendem a ser passíveis de questionamento e reestruturação, por exemplo, quando há o ingresso de uma pessoa nova no grupo que questione ou afete isto. Sendo que, também há a semelhança de que numa autogestão as pessoas novatas precisam atentar-se às experiências anteriores do coletivo (ATIVISMOABC, 2014a, p. 3, 4) e, num grupo de improvisação livre, há a habitual proposição aos ingressantes de que “procurem ouvir mais do que tocar”. Ou seja, a contribuição da escuta ativa para o grupo através da concessão de espaço (voz) aos/às demais. Compreende-se então que, qualquer grupo de pessoas de qualquer natureza, reunindo-se por qualquer período de tempo, para qualquer propósito, inevitavelmente estruturar-se-á de algum modo. A estrutura pode ser flexível, pode variar com o tempo, pode distribuir entre os membros do grupo as tarefas, o poder e os recursos de forma igual ou desigual. 85

Algumas discussões acerca das diferenças e semelhanças e discussões entre improvisação e composição são brevemente citadas no capítulo 2.

62

Mas ela será formada a despeito das habilidades, personalidades e intenções das pessoas envolvidas. O simples fato de que somos indivíduos com aptidões, predisposições e experiências diferentes torna isso inevitável. [...] Para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades, é preciso que a estrutura seja explícita e não implícita. (FREEMAN, 1970, s/p)

Assim, convém constar que, “a Livre Improvisação deixa transparecer suas ‘regras’ (ou características) apenas à medida que ela acontece enquanto jogo entre as pessoas envolvidas” (FALLEIROS, 2012, p. 180), o que também parece afirmável acerca das estruturas de uma autogestão, como sugeriu a cientista política feminista Jo Freeman. Sendo também um fato que estas estruturas (ou “regras”, características) tendem a surgir intimamente associadas, no caso da improvisação livre, às biografias musicais dos e das participantes, e, no caso de uma autogestão, às suas “habilidades, personalidades e intenções”, bem como, “aptidões, predisposições e experiências”. Levando isso em conta, a seguir discutiremos a improvisação livre na perspectiva das relações diagonais com tendências horizontais.

1.4.7. Improvisação livre em busca de um estado de iguais: diagonal com tendência a horizontal “Como reestabelecer o princípio da horizontalidade perante essa situação quase vertical das relações de saber e poder em dado campo de ação?” Coletivo AtivismoABC

Um dos elementos chave da autogestão é a participação política dos membros e sua capacidade de influir na construção coletiva. Nesse sentido, temos como princípio a horizontalidade em termos de graduação igualitária para a participação irrestrita de todos os membros do coletivo em seus processos. Todos os membros do coletivo [têm] o mesmo potencial (em termos de [...] abertura do coletivo) para propor, fazer, questionar, sugerir, participar, se expressar. (ATIVISMOABC, 2014a, p. 3)

Nas duas zines publicadas pelo AtivismoABC, o coletivo discute o caráter diagonal com tendência horizontal de sua organização e de suas relações. Sendo que em Princípios do coletivo, esta ideia é apresentada junto ao princípio da horizontalidade. A horizontalidade pode ser definida como a ausência de hierarquia dentro de uma relação, ou seja, uma maneira de se relacionar em que um elemento não possui mais poder que o outro. Em busca da horizontalidade, chegamos a conclusão de

63

que nosso coletivo está hoje numa “diagonal com tendência horizontal”. (ATIVISMOABC, 2014a, p. 3)

Esta maneira de organização, baseia-se na busca de horizontalidade reconhecendo as diferentes capacidades, experiências, graus de envolvimento e diversidade de conhecimentos. Na transmissão de conhecimentos e tomada de decisões, a experiência de uma pessoa precisa ser balanceada a partir das diferenças das outras. Novatas devem respeitar as propostas das mais experientes, mas devem ser levadas em consideração já que sua experiência desconhecida pode ser inovadora. Em caso de divergência, experiências diferentes podem ser postas em prática. Reconhecendo as diferenças de poder é possível questionar seu monopólio e criar diferentes focos de poder, multiplicando os polos ao invés de monopolizar. (ATIVISMOABC, 2014, p. 10) Mas há um princípio que não pode ser ignorado por conta da ideia de igualdade, que é o da diferença; embora todas tenham igual liberdade para serem, estarem, tornarem-se, agirem e influenciarem o coletivo, cada uma o faz a partir de suas próprias demandas, desejos, capacidades, gostos, talentos e experiências diversas que tiveram em suas vidas. [...] É isso que resulta no que chamamos de efeito diagonal de nossas relações. (ATIVISMOABC, 2014a, p. 3) Ao defendermos a igualdade não estamos pressupondo que todas as pessoas tenham que ter as mesmas coisas ou serem idênticas. [...] De cada um segundo suas possibilidades e a cada um segundo suas necessidades. Desta forma a igualdade deve estar no acesso à participação política, aos meios de produção de vida, no acesso à terra e à moradia, nas relações de gênero e nas relações entre culturas distintas. (ATIVISMOABC, 2014a, p. 19) Em suma, nós não vemos as relações de poder como algo estático nem dualista (vertical ou horizontal), mas como uma estrutura complexa em constante transformação que pode apresentar tendências à horizontalidade e à verticalidade. (ATIVISMOABC, 2014a, p. 6)

Compreende-se que a desestratificação ou desterritorialização “brutal” tende a ser “suicida” ou levar a um “buraco negro” (FGD, p. 64, 65). Neste sentido, no caso da improvisação livre, os processos em questão contemplam (e precisam contemplar) as biografias musicais dos e das participantes e os idiomas que a compõem. “Os idiomas estão ‘nos dedos’, nos aprendizados dos instrumentos, no ambiente musical que cerca os músicos, suas vivências de ouvir, tocar, etc.” (MEM, p. 115) A condição, que já apresentamos, de jogo ideal da improvisação livre, é o que possibilita que emerjam os rostos biográficos dos e das participantes. O rosto está associado aos processos de territorialização (repetição, ritornelo) que caracterizam cada pessoa e cada musicista. Neste, encontram-se “manias”, “cacoetes”, “gostos” e também inevitável e necessariamente referências aos idiomas e linguagens musicais. “A performance [também reflete] de alguma forma todas [as] assimetrias e contingências reais” advindas de “temperamento[s]”, “atitudes” e “reações” (PMA, p. 1, 2, 14). Trata-se de uma superfície de raspagem. Nela “se reconhece os – inevitáveis – ‘rostos’ dos músicos envolvidos na performance como histórias que armazenam vivências diversas 64

em vários territórios”. Ela “[opera] molecularmente, não delimitada por um sistema de referência específico, mas sim como resultado da interação entre os músicos.” (FGD, p. 63) Para nós, o efeito diagonal com tendência horizontal das relações está presente nas características da improvisação livre que acabamos de apresentar. Isto é, – mais uma vez olhando para esta prática a partir das colocações do AABC – numa tentativa de proporcionar que, em sua realização, todos e todas possam (relevando a ideia de “conversa”) “propor, fazer, questionar, sugerir, participar, se expressar”, é extremamente necessário reconhecer eventuais “diferenças de poder” – como diferentes projeções dos instrumentos, diferentes tendências a polarização contidas nos idiomas que cada um(a) domina, diferentes níveis de aprofundamento no instrumento (o que discutiremos mais a frente ao tratar sobre “porque é bom/ruim tocar um instrumento bem?”), diferentes personalidades dos(as) performer. Trata-se de reconhecer que os rostos (e os próprios idiomas e funções exercidas dentro deles) podem apresentar eventuais “diferenças de poder”. Fazendo-se necessário “relevar diferentes [...] experiências, graus de envolvimento[,] diversidade de conhecimentos”, “demandas, desejos, [...] gostos”. Não estamos – como, em uma transposição literal do conceito de “diagonalidade”, poderia parecer – dizendo que a improvisação deve reproduzir alguma designação de funções a partir das “especializações” musicais dos educandos e educandas. Isto é, assim como o AABC não deixa de lado a rotatividade de tarefas e a socialização dos saberes, propomos, por exemplo, que bateristas não tendam (como acontece no contexto idiomático) a continuar tocando materiais semelhantes à grooves ou guitarristas sendo solistas protagonistas. O que queremos enfatizar é possível que estas especificidades sejam, na medida do possível, balanceadas na realização da improvisação livre. Compreendemos que, atentar-se às características dos instrumentos, dos idiomas musicais, das biografias musicais e da personalidade dos educandos e educandas, contribui para que seja possível, por exemplo, encontrar meios de proposição das desterritorializações mais adequados a cada performer. Trata-se de ao buscar que todos e todas “tenham voz” e “o que dizer nesta conversa” (OEND, p. 281, 282, IC, 92), considerar que a improvisação livre é passível de ser realizada enquanto prática musical com tendência horizontal e que (deve) contempla(r) as diferenças diagonais. Assim, podemos relembrar que “há um princípio que não pode ser ignorado por conta da ideia de igualdade, que é o da diferença”. Isto é, a proposta da improvisação livre de que “todos os sons tenham direitos iguais” (e consequentemente que todas as pessoas possam praticá-la) não se trata de uma “[pressuposição de] que todas as pessoas tenham que ter as mesmas coisas ou serem 65

idênticas” (desenvolver as mesmas habilidades, processos de interação). Igualdade, como propôs o AABC, refere-se ao “acesso a participação política” (ou participação musical, num sentido de socialização do fazer artístico), bem como, por exemplo, “[às] relações de gênero e [às] relações entre culturas distintas”. Segundo Silva, o anarquismo busca que as pessoas “possam relacionar-se com [as outras] como iguais na diferença [...], uma sociedade na qual as diferenças não sejam transformadas em desigualdade” (SILVA, 2011, p. 10). Neste sentido, sugerimos que a improvisação livre pode proporcionar, ao menos durante sua realização, este tipo de relacionamento. Isto é, “sabemos que não existem verdadeiramente iguais, nem em uma sessão de Livre Improvisação, mas o estabelecimento de um estado de iguais” (FALLEIROS, 2012, p. 25).

1.4.8. Possíveis contribuições das aproximações entre anarquismo e improvisação livre para a educação musical

Num certo sentido, o que procuramos apresentar neste capítulo consiste na nossa compreensão de que a improvisação livre contempla alguns valores do pensamento anarquista. Em suma, ela atenderia à proposta de “unidade entre estética e vida [anarquista]”: “a mais bela das artes, será aquela [...] igualitária e livre” (SILVA, 2011, p. 93). Além de claro, como também sugerimos, a prática da improvisação livre parece-nos ir em direção do que propõe a pedagogia libertária. Contudo, como enfatizaremos nas considerações finais, as proposições anarquistas não pretendem limitar-se a comunidades e educações anarquistas, tampouco impor formas de organização que conduzam as pessoas nestas direções. Trata-se de sugerir o direito a horizontalidade, de apresentar maneiras de que a organização não dependa das relações de dominação. Sendo que, também consideramos isto algo presente na proposição da improvisação livre. Isto é, no ato de propor(cionar) a realização desta prática, talvez o educador ou educadora esteja apresentando uma espécie de “conversa (musical) anarquista”. Uma conversa que tem como proposta a negação das relações de dominação e que busca que as diferenças não signifiquem desigualdade no acesso ao fazer musical (criativo). Sendo isto algo que, assim como o anarquismo e a pedagogia libertária, pode beneficiar e transformar não apenas pessoas e espaços anarquistas.

66

Capítulo 2: Coletivo Consenso Centralizado – breve relato (auto)crítico

Visando maior clareza textual, o presente capítulo está escrito em primeira pessoa do singular. Aqui, o que está escrito em primeira pessoa do plural diz respeito ao grupo de improvisação Coletivo Consenso Centralizado, ou C³ como costumamos chamar. Apresento aqui um breve relato das práticas do C³ realizadas no período de agosto a outubro de 2014. Meu intuito é que improvisadoras(es) e educadoras(es) tenham acesso aos registros da rotina de um grupo de improvisação, a um pouco de nossos aprendizados coletivos e à algumas reflexões que as práticas do grupo me proporcionaram enquanto educador. Ainda que este capítulo tenha sido escrito após o primeiro, convém constar que, no período de realização das práticas aqui relatadas, eu pouco havia desenvolvido as reflexões do primeiro capítulo ou lido todas as obras em questão. Isto é, uma parte das referências acadêmicas do primeiro capítulo foi estudada por mim apenas após o período de realização das práticas a que me refiro neste capítulo. Sendo assim, procuro evitar os conceitos do capítulo um, deixando-os, no geral, para o capítulo três. Quando me refiro ao C³ algumas vezes estou incluso. Contudo, na maior parte das vezes trato do Coletivo Consenso Centralizado me referindo apenas aos demais membros, visto que, ainda que isto não seja plenamente possível, em muitos contextos em buscava ser neutro visando compreender as maneiras de organização dos/das demais.

2.1.

Da fundação do grupo: características dos membros

Ao longo do período em questão, o C³ contou, além de mim, com quatro pessoas (nomes reais): Caio Vinícius, Carlos De Nicola, Natália Francischini e Thaís Giovanetti.86 Sendo, respectivamente, os instrumentos (mais frequentemente) tocados por estas: guitarra elétrica; violão – além de, eventualmente, voz e tambores –; guitarra elétrica; e bateria – e, eventualmente, voz. De maneira geral, eu, que tive formação conservatorial como guitarrista e violonista – esta informação 86

Ao final deste período, tendo anunciado previamente, Carlos De Nicola deixou o grupo.

67

é relevante para algumas discussões –, participei como flautista (pífanos, flautas nasais e garrafas) e performer vocal. A exploração sonora de objetos diversos e eventuais troca de instrumentos eram recorrentes. As(os) improvisadoras(es) em questão, salvo uma exceção, não se conheciam entre si, mas todas(os) já conheciam a mim. Quando convidei-lhes, expliquei que se tratava de um grupo de improvisação livre – dando breves explicações sobre esta prática (relevando também o quanto cada um(a) já a conhecia) –, o qual possivelmente contribuiria para as reflexões do meu trabalho de conclusão de curso – que, naquele momento foi referido com o tema provisório “Dimensões políticas da improvisação livre no contexto da educação musical”, sendo feita também alguma breve referência a minha intenção, na época pouco fundamentada, de abordar o anarquismo –, e que teria a mim como um “orientador”87 do desenvolvimento coletivo na prática em questão. É importante constar que, além de mim, nenhuma pessoa do grupo atua como ou se considera musicista profissional. Contudo, em níveis, freqüências e por períodos distintos, todas já tiveram algum contato com o estudo de instrumentos e até de teoria musical. No período em questão, as quatro eram estudantes da USP.88 O contato com a improvisação livre anterior ao grupo era algo restrito a Caio e Carlos. O primeiro já havia participado da minha pesquisa de iniciação científica como performer89 e assistido à OE duas vezes, enquanto que o segundo tocou algumas vezes com o grupo em questão.

2.2.

Do planejamento ao acontecimento: lidando coletivamente com imprevistos, vontades e necessidades

Antes do primeiro encontro do grupo, elaborei e apresentei-lhes uma espécie de planejamento temático de oito encontros, o qual deveria ser (como foi) consideravelmente flexível. A seguir, o título destes: 1 – A improvisação musical 2 – As técnicas estendidas 3 – A escuta reduzida 87

Mais tarde, encontramos uma palavra mais adequada para definir qual era o meu papel no grupo: facilitador. Um termo que, posteriormente, descobri que é utilizado por Francisco Ferrer em relação ao papel do educador. 88 Caio cursa Engenharia Elétrica, Carlos graduou-se em Publicidade e Propaganda, Natália cursa Licenciatura em Artes Plásticas e Thaís cursa Licenciatura em Artes Cênicas. 89 Mais a frente, exporei brevemente do que se trata a pesquisa.

68

4 – Estratégias criativas: a improvisação livre em diálogo com outras linguagens 5 – H. J. Koellreuttter: educação musical por um “mundo realmente humano” 6 – Reflexões acerca das dimensões políticas da improvisação livre 7 – Elaboração coletiva de propostas de improvisação 8 – Tema decidido coletivamente e elaboração de um programa de concerto

A ideia era que os temas fossem parte de discussões e, em algum grau, de propostas de improvisação de cada dia. Para isto eu proporia anteriormente uma leitura e, (no geral) no início do encontro, exporia (através de slides) outras referências sobre o tema. O primeiro encontro seguiu esta estrutura, porém, com o tempo ela foi sendo reelaborada pelas demandas coletivas implícitas e explícitas. Além das oito atividades sugeridas, eu havia proposto que tentássemos, de algum modo, manter relações ou realizar algo com a Orquestra Errante, com o Circuito de Improvisação Livre, com o Ibrasotope Música Experimental e com o Coletivo Improvisado. Um dos intuitos disto era que as improvisadoras e improvisadores tivessem contato com outras pessoas com experiência de improvisação (além de mim). Visto que, não tê-lo poderia fazer com que não notássemos algum direcionamento dos e das performers rumo a maneiras muito minhas de compreender e realizar a improvisação livre. Para breve comparação com o planejamento, apresento breves títulos (descrições) que dei aos nove encontros conforme foram realizados pelo grupo. A maioria deles foi dado posteriormente, visto que não estavam previstos na lista anterior. Em negrito, aquilo que, ainda que em momentos distintos, foram realizados de maneira semelhante à prevista: 1 – A improvisação musical 2 – A improvisação musical “2” 3 – Encontro com convidados: Max Schenkman da OE e Thiago Salas Gomes do CIL (+ breve exposição sobre técnicas estendidas) 4 – Visita ao CI 5 – A escuta reduzida 6 – Encontro dedicado à proposta de Caio Vinícius: improvisação a partir da interpretação de personagens de RPG 7 – Encontro dedicado à proposta de Natália Francischini: improvisação durante e através da exploração e confecção de materiais “plásticos” (telas, esculturas, etc) 8 – Improvisação com instrumentos de percussão: propostas de Koellreutter e da pesquisa Improvídeo

69

9 – Encontro dedicado às propostas de Carlos De Nicola: improvisações a partir da interação com poemas escritos pelo improvisador

A principal mudança “do planejamento ao acontecimento” (como chamei no título) é que tivemos encontros totalmente dedicados a explorar as propostas de cada performer (que elaborou propostas). Antes, eu havia imaginado todas estas sendo realizadas em um único dia. Os motivos desta mudança podem incluir a intenção coletiva de aprofundamento (e preparação específica do espaço, etc) de cada proposta; e também o fato de firmarmo-nos como um grupo com tendência a realizar poucas (e longas) sessões de improvisação e muitas (e longas) discussões em cada encontro. Aqui é importante constar que, como eu já imaginava, o meu planejamento (que foi realizado antes do grupo começar a se encontrar e tocar) não contemplou as peculiaridades do grupo. As (fundamentais) características e intenções que retratei acima não podiam ser previstas ou sequer imaginadas até que o grupo começasse a se conhecer e se organizar. Neste sentido, era realmente fundamental que o planejamento fosse, como foi, apenas uma proposta inicial.

2.2.1. Breve relato e impressões gerais sobre as práticas do grupo

Encontro 1 Para este encontro, eu havia proposto a leitura de um pequeno trecho de O ouvido pensante de Murray Schafer, chamado O que é música? – tema introdutório sugerido por Caio –, o qual não foi lido por todos(as). Assim, aqueles(as) que haviam lido fizeram uma breve exposição sobre este, com enfoque na definição de “o que é música?” elaborada coletivamente pelos alunos e alunas de Schafer. Conforme a discussão desta definição seguiu (com poucas intervenções minhas), iniciei a exposição dos slides que havia preparado. Primeiramente, haviam outras definições e citações (de Bério, Blacking, Cage e outros autores) que abordaram esta questão. Com intenção provocativa, também apresentei uma citação de Gilberto Cotrim, que trazia uma concepção do que é música ligada ao que a educadora musical Ariane Escórcio chamou de “transmissão do belo” (ESCÓRCIO, 2013), algo muito distinto das demais definições. As falas dos improvisadores e improvisadoras abordaram, entre outras reflexões, a ideia de “ouvir a mata como música” e “o que seriam ‘sons (des)organizados’?”. O tópico seguinte, sobre “o silêncio”, trouxe além de referências acadêmicas, algumas frases de crianças (sobre o silêncio). Esta discussão acabou assumindo um caráter extremamente político. Caio Vinícius fez a seguinte reflexão: "no contexto da aula [na escola regular], o que significa o 70

professor [pedir] silêncio? Não quer dizer silêncio, quer dizer que só ele vai falar (sic)." Através desta, procurei, através de reflexões desenvolvidas nas aulas ministradas por Pedro Paulo Salles, apontar para o fato de que, trabalhar o silêncio na música (também) era importante pelo fato de que, ao menos na escola, o silêncio mais conhecido era o do medo, da repressão e do “cale a boca”. Sobre o tópico “improvisação x composição” o Coletivo Consenso Centralizado fez comentários como “improvisar é compor naquele e para aquele instante” e “tocar uma composição é seguir um ‘script’ de improvisação”. A ideia de que a improvisação pode ser uma etapa anterior à estruturação final de uma composição também foi abordada. Já na discussão “improvisação idiomática x improvisação livre”, Natália inferiu que os idiomas contêm “fórmulas” (algo abordado na bibliografia, mas que não apresentei diretamente) e Carlos lembrou histórias do Guitar Trio, em que Paco de Lucia era julgado por não ter fluência na linguagem do jazz. O último tópico foi preparado com o intuito de contribuir com eventuais entrecruzamentos de composição e improvisação na discussão em questão e tratou do conceito de “fazer música juntos” de Alfred Schutz (SCHUTZ apud COOK, 2007). Ainda que o grupo tenha se envolvido nas discussões e nas referências que apresentei, é fato que preparei muitos slides e cheios de informação, o que procurei evitar nos encontros seguintes (até que, mais a frente, eles foram finalmente vetados coletivamente). Ao final da discussão relatada, que durou por volta de cinqüenta minutos, propus que realizássemos nossa primeira sessão de improvisação. A (não) proposta dada por mim foi que improvisássemos "a partir do que vocês [estão] entendendo por improvisação livre até agora". A performance em questão foi a única do dia e durou por volta de quarenta minutos, algo que, em minha vivência como improvisador, eu não lembrava de ter experienciado. Houve alguns silêncios que poderiam ser entendidos como finais, porém, não houveram falas nestes (eu optei por não me colocar enquanto responsável por iniciar alguma conversa que delimitasse o final da performance: procurei dar espaço às maneiras próprias do grupo de lidar com isto) – ainda que tenham havido sutis risos –, o que lhes deu caráter de finais de seções. Outra característica que me chamou a atenção foi o fato de que, sem ter havido nenhum comentário prévio sobre esta questão, houveram muitas seções duo e duas seções solo (as quais, na grande maioria das vezes, não surgiram como “prolongamentos” de supostos fins). Sendo que, isto é algo que, muitas vezes, acontece apenas através da proposição explícita de estruturas.

71

O aproveitamento do acaso foi recorrente, como por exemplo, quando objetos caíam no chão e em seguida passavam a ser explorados neste, ou durante o “solo de guitarra na calça” que será abordado no capítulo três. Sobre seu solo, realizado com uma única baqueta e um único prato, Thaís Giovanetti afirmou que “[aproveitou] a textura do prato”. Ela também relatou que, algumas vezes, teve ideias de como tocar o seu instrumento a partir da observação das maneiras que os/as demais tocavam os seus. A improvisadora também fez associações dos momentos de fortíssimo e maior densidade sonora (sem usar estes termos) com a ideia de construção de “afinidade”. Isto é, até que estivéssemos seguros e seguras para tocarmos juntos(as) não arriscaríamos tocar forte. De uma maneira geral, ao ouvir as conversas (literais, não “conversas” musicais) nas gravações deste encontro, nota-se grande assimetria entre aquelas pessoas que “pouco se expressam” “e aquelas que apresentam tendência de falar [...] mais”. Nos encontros seguintes, conforme as pessoas foram se conhecendo melhor, tomando liberdade para pedir a palavra em eventuais “cortes”, ou até perdendo a timidez, estas assimetrias foram, em algum grau, se equilibrando. Ao final deste encontro, propus que buscassem, em seus cotidianos, atentar-se aos sons ao seu redor. Como maneira de concretizar a proposta, entreguei a cada um(a) um mapa da Cidade Universitária, caso desejassem anotar os sons que ouvissem na universidade.

Encontro 2 No início deste encontro conversamos um pouco sobre a performance da semana anterior (algumas(ns) de nós haviam escutado a gravação) e a presença de risos na performance foi alvo de discussões que envolveram um questionamento: a improvisação livre é algo “sério” (sem humor)?. De maneira geral, os risos foram considerados apenas “reações das pessoas” e, portanto, não deveriam ser evitados. A seguir, questionei “qual seria o nome do grupo” e imediatamente surgiu a questão “porque ter um nome?” Foi sugerido que um grupo de improvisação livre, diferentemente, por exemplo, de uma banda de rock, não necessitaria de uma identidade pré-determinada e de um nome que remeta a ela (já que se pretende “livre”). Assim, essa decisão foi adiada. Em seguida, surgiu (sem que eu imaginasse) a discussão sobre a possibilidade de nomear (a posteriori) ou não as nossas “músicas” (um assunto talvez um tanto quanto precipitado para um 72

segundo encontro). Procurei contribuir apenas referencialmente com esta discussão (em boa parte delas, eu evitava “opinar” diretamente). Citei as performances gravadas pela OE para a pesquisa de Manuel Falleiros que, em páginas como soundcloud receberam como “nome” a palavra que havia sido usada como potencializadora da performance. Também falei sobre o grupo Royal Improvisers Orchestra que, após a realização de longos concertos de improvisação, corta-o em faixas e nomeiaas. A discussão seguiu com colocações sobre a ideia de que, assim como quando há títulos em obras em museus, nomear uma improvisação pode “direcionar o entendimento” do/da ouvinte da gravação. Contudo, também foi apontado que isto poderia ser eventualmente desejado. Conforme a discussão rumou para a atribuição de significados às performances, sugeri que esta questão fosse mais aprofundada apenas quando, em outro momento, falássemos sobre a chamada escuta reduzida. A leitura proposta para o encontro 2, O menino e a folha de capim, não foi discutida pois (além, claro, de mim) apenas uma pessoa havia lido. Após estas discussões (que não foram tão demoradas) realizamos uma (longa) performance “livre” (sem proposta), porém com um diferencial, a luz apagada. Esta teve por volta de cinqüenta minutos de duração. Neste encontro, uma das ideias era experimentar como seria primeiro tocar e depois, apenas no fim, ver os slides. Contudo, como novamente tivemos uma performance extremamente longa, adiamos a minha apresentação dos slides sobre técnicas estendidas. Se, por um lado, convém considerar que os improvisadores e improvisadoras estavam (desejavelmente) ansiosas para tocar (e por muito tempo), também posso constar que havia uma expectativa minha em relação à discussão dos slides (cuidadosamente) preparados por mim. Neste sentido, é evidente que meu papel enquanto educador foi abster-me disto em prol da demanda coletiva. Isto é, estávamos lá (principalmente) para tocar e as discussões deveriam contribuir com isto. Ainda que elas fossem importantes, é fato que nunca deveriam tomar o lugar das performances (independentemente do que eu havia planejado e previsto!). Cabe também constar que a performance em questão contemplou (ao seu modo) muito do que meus slides propunham. Refiro-me ao tópico “estratégias para o desenvolvimento de técnicas estendidas”. Por exemplo, as questões: “como é tocar um instrumento que você ‘não sabe’?”; “como seria o tocar o ‘seu instrumento’ deste outro modo, ‘sem saber’ tocá-lo?”; “é possível tocar um instrumento ‘como se fosse outro’?” foram (de certa maneira) contempladas pelas trocas de instrumentos realizadas entre os membros do C³ ocorridas nesta data (algo que, em outras oportunidades, foi resgatado para reflexões). Também foram comentados pelo grupo momentos silenciosos em que escutávamos a respiração dos/das demais, assim como a escuta dos passos quando alguém caminhava até instrumentos e objetos. Na discussão posterior à performance, Thaís Giovanetti nos apontou para o caráter “cênico-sonoro” (termo meu com o intuito de sintetizar sua 73

ideia) de algumas destas ações. Isto é, ela sugeriu que estas foram realizadas de maneira diferente do cotidiano para que tivessem seus sons enfatizados.90 Nas conversas posteriores à performance, procurei sugerir que, com o passar do tempo, buscássemos priorizar o desenvolvimento de modos de fazer música distintos dos que tenhamos realizado. Por exemplo, parecia-me essencial (também) realizar performances curtas. Trata-se de experienciar “o diferente”. Não por uma hierarquização, mas em busca de um repertório mais amplo (e possivelmente mais “livre”, menos limitado a vícios específicos). Nesta situação, também comentei que o improvisador Max Schenkman havia desenvolvido jogos voltados especificamente para a questão da duração das performances, os quais realizamos no encontro seguinte junto ao educador em questão. Quando perguntei aos membros do C³ se haviam tido experiências de escuta marcantes no período entre os dois encontros, Caio Vinícius relatou situações em que ouviu sons cotidianos “com intenção de ser música”. Algo associado à definição de música de Bério, com a qual ele se identificou.

Encontro 3 Neste encontro, recebemos dois convidados: Thiago Salas do Circuito de Improvisação Livre e Max Schenkman da Orquestra Errante. Começamos com um breve momento de apresentação de todos(as), em que expusemos nossas formações musicais, algo que, inclusive, ainda não havíamos feito mesmo apenas entre pessoas do C³. Como estava previsto, Thiago Salas contou-nos um pouco da história do CIL e de suas atividades. Nas performances organizadas pelo circuito já se apresentaram tanto pessoas que “acabaram de começar a tocar” quanto “gente com trinta anos de experiência”. Também há uma ideia de que os eventos do CIL podem ser organizados por qualquer um(a), basta “arrumar um lugar e pessoas (sic)”. Uma de minhas intenções ao convidar o improvisador Thiago Salas foi que os membros do C³ conhecessem um pouco sobre práticas de improvisação livre organizadas de uma maneira distinta da que eu estava lhes propondo (e também distinta da OE e do CI, por exemplo). Isto é, o

90

Não foi algo que acabei por propor naquele contexto. Mas convém constar que a escuta das sutilezas sonoras deve dar-se também no âmbito dos sons “cotidianos”, segundo definiu a performer.

74

CIL não é um grupo de pessoas que “ensaia” (sem público), se reúne regularmente e estuda estratégias pedagógicas para a realização da improvisação. Ele é uma espécie de “série de concertos/performances” (sempre com público) que acontece entre pessoas diversas. Por exemplo, segundo nosso convidado, o “risco” de realizar sessões de improvisação entre pessoas que nunca tocaram juntas ou sequer conhecem umas às outras é algo que os organizadores buscam algumas vezes. Thiago Salas também falou um pouco de seus trabalhos com luteria experimental e mostrounos acessórios que eventualmente utiliza junto ao violão. Contudo, comentou que muitos dos objetos utilizados nas performances são descobertos apenas durante a realização da mesma. Já a presença de Max Schenkman foi proveitosa no que diz respeito ao fato de, ao menos na minha visão de educador e como já sugeri neste relato, nosso grupo necessitar (naquele momento) exercitar situações de performance distintas das longas sessões que havíamos realizado. A primeira proposta de performance do educador em questão foi uma improvisação “de olho fechado, e aí quando você já propôs tudo que você tinha para dizer, interagiu tudo que você tinha que interagir... enfim, quando você quiser acabar, você simplesmente abre o olho e fica em silêncio, até que todos assim o fizeram (sic)”. A seguinte, um “desdobramento” da primeira, foi definida da seguinte maneira: “a gente vai fazer isso de novo, só que a gente tem que tentar abrir o olho ao mesmo tempo (sic)”. A terceira proposta desta sequência, que foi realizada duas vezes e era executada com os olhos abertos. Nela, deveria ser combinado um sinal sonoro de encerramento da sessão, quando este fosse tocado (no nosso caso era um prato específico que ficava no centro da sala) todos(as) deveriam parar de tocar. Max considerou que esse jogo busca que “qualquer um [possa] decretar o final” da performance. As quatro performances em questão tiveram, cada uma, entre um e três minutos. Também realizamos propostas decididas coletivamente, como “tocar sempre em duos” (que durou por volta de sete minutos) e uma “performance de três minutos”. Sendo que a proposta não era que esta última fosse cronometrada, mas que tocássemos até “sentirmos” que a duração em questão foi alcançada. Uma breve exposição (sem muitas discussões) dos slides que eu havia preparado sobre técnicas estendidas também fez parte deste encontro. Suas “definições” e “(supostos) exemplos” ao longo da história da música ocidental tradicional foram abordadas a partir de um texto de Ferraz e Padovani (2011). Enquanto que a importância das técnicas estendidas na improvisação livre foi tratada a partir de textos de Costa, junto à questão sobre “porque é bom/ruim tocar um instrumento bem?” Também lhes expus um vídeo de Mário Del Nunzio experimentando sonoridades com 75

objetos diversos e uma placa de zinco afim de sugerir o uso de objetos não usuais na exploração instrumental; além de vídeos de dois guitarristas91 que fizeram parte de minha formação. O intuito era sugerir que buscassem técnicas estendidas (também) em suas “biografias musicais”. A ideia de Padovani e Ferraz de que as técnicas estendidas possuem este sentido apenas quando contextualizadas – isto é, eventualmente acabam sendo incorporadas de maneira efetiva no repertório e tornando-se usuais (portanto, não mais estendidas) –, entre outras, foi abordada e associada com os vídeos em questão.

Encontro 4 O quarto encontro do C³ consistiu em uma visita a um ensaio do Coletivo Improvisado. Este grupo de improvisação se reúne na Escola Livre de Música do CIDDIC-UNICAMP e é coordenado pelo improvisador Manuel Falleiros. Ao longo deste encontro-visita, a característica essencial de organização de ensaio que diferenciava o CI de nós – sobre a qual Manuel Falleiros já havia me falado – ficou evidente. Eles mais tocavam do que falavam. Nossos (já firmados) hábitos de debater longamente sobre cada performance ou de conversar incessantemente até haver certa “garantia” de que todos(as) compreenderam alguma proposta ou jogo não faziam-se presentes ali. Considero que esta diferença foi algo marcante para o encontro inteiro, como apresentarei. O ensaio começou com a nossa breve apresentação (do grupo e não de cada pessoa) feita por mim. Num modo geral, estávamos indo conhecer e participar de um ensaio do CI da maneira que ele já acontece, sem nenhuma proposta ou intervenção planejadas. Diferentemente de nós, o CI (assim como a OE) costuma ensaiar abertamente. Num certo sentido, ficou claro que, em algumas situações (semelhantemente a OE) pouco se sabe sobre “quem são todas as pessoas pertencentes ao CI”. Isto é, há “turistas”. Assim, mais tarde eu, inclusive, soube que algumas das pessoas ali presentes estavam indo pela primeira vez ao ensaio do CI (e assim como o C³, não conheciam quase ninguém). A visita ao CI foi a primeira oportunidade do C³ de realizar vários exercícios (como eram chamados pelo grupo) de improvisação com proposições (mais) diretamente ligadas ao som. O primeiro deles foi referido como “camadas” e realizado em círculo. Seguindo uma direção prédeterminada (no círculo) para as entradas na improvisação, cada performer deveria criar (na sua 91

Randy Rhoads e Daniel Johns.

76

vez) uma espécie de ostinato (algo que foi melhor compreendido pelos membros do C³ como “looping” ou “ciclo”). “Você tem que contribuir”, “construir por cima dos colegas anteriores”. “[São trabalhados aspectos como:] não tocar qualquer coisa, [...] tocar uma coisa para contribuir com o todo. Você tem que tomar uma decisão, você tem que escutar primeiro, imaginar o que vai ficar legal [...] ‘Sair tocando’ às vezes não funciona (sic)", foram considerações de Falleiros. Realizamos três performances com esta proposta e havia certa agilidade do educador em questão em propor ao grupo a realização da seguinte (sem perder a energia, eu diria). “Quem quer começar a próxima?” era questionado logo ao fim de cada uma delas. Contudo, de maneira geral, nós do C³ estávamos sempre focados em discutir cada performance, sendo que, algumas vezes (sem perceber) isto foi feito (entre nós) com pouca participação do CI. O exercício seguinte foi referido como “cinco sons”. Resumidamente a proposta consiste em que cada improvisador(a) realize uma espécie de “série”, a qual diz respeito à delimitação de (apenas) uma das características dos sons: a busca pela (não) sincronia – no sentido de “tocar no mesmo instante”. Como explicou-nos o CI, cada performer deve tocar quatro sons “dessincronizados propositalmente” e “o quinto deve ser sincronizado” com qualquer outro som. Caio Vinícius retratou, com humor, uma das dificuldades desta proposta: "pra você não sincronizar, você precisa ‘achar’ uma pausa. E quando tem uma pausa, ‘vêm’ outros ‘dez’ [sons] (sic)". Também é algo relevante para este jogo a organização coletiva diante de um conflito de interesses: algumas vezes um(a) performer tenta sincronizar seu quinto com alguém que não se encontra no momento que deve realizar algo sincronizado. Em suma, considero que este jogo não tem um foco direto no desenvolvimento, por exemplo, de sutilezas da produção sonora. Entretanto, ele trabalha intensamente a atenção em relação ao quando será produzido cada som, o que gera um estado de escuta importante: a busca pela escuta de todos os instrumentos por um tempo muito longo. Isto é, a atenção sonora tende a não se “desligar”. O exercício em questão foi realizado quatro vezes. Assim que os membros mais antigos do CI deram as primeiras explicações sobre este, antes mesmo que as dúvidas “implodissem” o ensaio, quatro improvisadores decidiram realizar uma demonstração. Mais uma vez, ficou evidente que tocar era muito importante e, na organização deles, algumas vezes, isto substituía muito bem possíveis explicações e conversas. As duas realizações seguintes desta proposta foram feitas com sextetos compostos por membros dos dois grupos, havendo, em seguida, uma terceira em tutti. O último exercício que o CI nos apresentou foi a “síntese”. Duas pessoas devem “contar uma história [com sons]” e, em seguida, uma terceira a “resume (sintetiza, explica)”. É importante considerar que, quando um(a) improvisador(a) começa um resumo, o final da história (se ela ainda 77

não houver acabado) deve começar a ser encaminhado. (Seguindo, em círculo, uma direção prédeterminada), aquela(e) quem fez o resumo começa a contar outra “história” junto a uma das primeiras pessoas que contaram a história anterior – mais especificamente, a segunda da roda –, sendo que, a primeira da roda já deve ficar em silêncio. Quando conveniente, uma quarta pessoa começa a fazer seu resumo da história recém-apresentada – o que significa o término desta e o silenciamento/retirada da segunda pessoa do círculo –, e assim por diante. Para este jogo, o CI também parecia esclarecido em relação ao fato de que se alguém não compreende-se as regras, assim que ele começasse, elas seriam reveladas, fazendo-se, realmente, pouco necessárias muitas discussões anteriores. As últimas performances deste encontro consistiram em propostas nossas que misturaram os jogos de Max Schenkman (já apresentados neste relato) e, como encerramento, “uma livre”. Sobre esta ocasião, também convém constar que a junção dos dois grupos fez com que tivéssemos por volta de quinze improvisadores e improvisadoras. Sendo isto, algo que evidentemente (e como relatado pelos/pelas participantes) dificultou a escuta nos jogos em que tocávamos todas e todos “ao mesmo tempo”. A diversidade dos instrumentos em questão também foi alvo de discussões. "A gente sempre vai ter esse problema [ao reunir] instrumentos heterogêneos [...], não previstos para estarem juntos [...]. A gente faz o que a gente pode", considerou Manuel Falleiros. A questão das assimetrias realçadas no contexto da proposição de um estado de iguais (um estado em que, igualmente, todos e todas possam tudo) entre elementos (instrumentos neste caso) distintos é aprofundada apenas no capítulo três. Contudo, cabe aqui considerar que a convivência destas diferenças se faz possível através do desejo, o qual pressupõe concessões e conquistas, visto que, quando se pode tudo (quando não se prevê proibições), de algum modo, um instrumento de maior projeção pode se impor relação aos demais. Ainda que eu já tivesse comentado um pouco sobre esta situação (da música experimental) com o C³, chamou a atenção do grupo, principalmente de Natália e Thaís, o fato de, em um grupo de quase dez pessoas, não haver nenhuma mulher. A partir daí, nossas freqüentes conversas pessoais sobre a exclusão social e questões de gênero passaram a fazer especulações também sobre o ambiente da música experimental.92 Neste sentido, tornou-se um interesse geral do grupo procurar manter relações com improvisadoras. Mariana Carvalho, ao menos na época, única mulher da OE

92 A constatação de que há poucas mulheres na música experimental, também se dá no ambiente acadêmico, como podese ler em Schick (SCHICK apud DEL-NUNZIO, 2011, p. 198). Enquanto que reflexões e referências sobre o acolhimento de minorias no contexto da improvisação são encontradas em Bell (BELL, 2014, p. 7).

78

foi convidada para participar de um encontro conosco, contudo, (apenas) por questões logísticas, este encontro (ainda) não ocorreu.

Encontro 5 Neste encontro, novamente realizei exposição de slides e fiz ao grupo propostas de discussões. O tema era “a escuta reduzida” que, anteriormente, havia sido planejado para o encontro 3. Não houve proposição de leitura anterior. Sínteses do conceito em questão feitas por Brito e Costa foram apresentadas, além de sua importância para a improvisação. Outros tópicos dos slides incluíam “o ouvido como instrumento”, “ensino pré-figurativo” e “paisagem sonora”. Com o intuito de contextualizar a ideia de “escuta microscópica” (na época, sem utilizar este termo) dentro do repertório “não-experimental” também apresentei uma citação do compositor Tristan Murail. Um bom exemplo [de] escuta seria a maneira pela qual os “roqueiros” escutam o “rock”. [...] Para os apreciadores de “rock”, após alguns poucos compassos não há mais nenhuma dúvida quanto ao nome do grupo [...]. O que eles escutam [...] é o som (sound) antes de tudo; eles percebem as diferenças e sutilezas que escapam aos ouvidos fechados. (MURAIL)

Uma atividade de escuta também foi proposta. Sugeri que, em silêncio, atentássemo-nos aos sons de um papel celofane amassado. Por termos ficado em silêncio, este momento foi muito produtivo no que diz respeito à percepção da “paisagem (e poluição) sonora” da sala e a redores do Departamento de Música. Contudo, a tentativa de que os/as performers ouvissem as micro-sutilezas do som do celofane não gerou tantos frutos. A minha proposta de que procurassem “esquecer a fonte sonora do som e concentrar-se nele” funcionou razoavelmente para Natália Francischini. Porém, sua escuta se deu de modo um tanto quanto simbólico: a preocupação com a identificação da fonte sonora se foi, mas o som foi ouvido como (“representação” [expressão minha] de) uma chuva. Também é fato que, num modo geral, a concentração nos sons do objeto em questão não foi muita: “o celofane era como uma trilha sonora dos meus pensamentos”; “eu estava com uma música na cabeça”. Possivelmente não era o momento mais adequado para apresentar os conceitos em questão. Ou, talvez, eu tenha misturado conceitos demais, imaginando que um ajudaria o outro a ser esclarecido, mas na verdade eles complicaram uns aos outros. Mas também pode ser apenas que o grupo queria principalmente tocar (ou mesmo discutir improvisação, mas) sem muitos referenciais teóricos (e slides). Contudo, após algum tempo de discussão, Natália Francischini fez uma colocação que contribuiu muito para o esclarecimento do conceito-tema em questão. Ela sugeriu 79

que “escuta reduzida é como ouvir os pixels”.93 Neste sentido, convém considerar que, ainda que eu fosse o proponente do estudo de um conceito específico, minhas ideias não eram as únicas nem as mais adequadas. A figura de facilitador ou orientador parece (“somente”) possibilitar construções colaborativas do conhecimento (evidentemente sem que as referências dadas inicialmente sejam descartadas). Neste sentido, podemos falar, inclusive, em relações diagonais com tendência horizontais. A proposta (pouco diretiva) das duas sessões de improvisação deste encontro foi que "escutássemos de maneira reduzida". Para isto, surgiu o questionamento de se, para isso, deveríamos “produzir de forma reduzida”. Durante as performances em questão, Natália realizou algumas descobertas acerca de seu instrumento que, inclusive, envolvem sutilezas de escuta e execução. Sendo que, uma destas descobertas será discutida no capítulo 3. Também neste encontro, durante nossas discussões Caio Vinícius deu uma espécie de definição da improvisação livre, a qual remete a ideia dos idiomas musicais enquanto idiomas (literalmente) em que se estabelece uma conversa. “[Na improvisação livre,] você não tem chão, não tem ‘contexto’. Você vai conversar com uma pessoa e não tem [previamente] um assunto, um ‘contexto’”. Convém considerar que, da maneira como apresentamos no capítulo um, sobre a improvisação idiomática, pode se compreender que ela também não possui um “assunto” previamente definido, mas apenas a “língua” em que se dão as “conversas”. Contudo, pode-se considerar, inclusive, que cada “língua” possui “assuntos” preferidos e mais recorrentes.

Encontro 6 Este encontro foi inteiramente dedicado a proposta de improvisação elaborada por Caio Vinícius. Uma das ocupações do performer em questão é a participação em jogos de RPG. Role-plyaing game, também conhecido como RPG (em português: “jogo de interpretação de papéis”), é um tipo de jogo em que os jogadores assumem os papéis de personagens e criam narrativas colaborativamente. O progresso de um jogo se dá de acordo com um sistema de regras predeterminado, dentro das quais os jogadores podem improvisar livremente. As escolhas dos jogadores determinam a direção que o jogo irá tomar. [...] Como em um jogo de estratégia, há regras que o definem, e guiam aquilo que o seu personagem pode ou não fazer. A esse conjunto de regras chama-se sistema. Como

93

Naquele contexto eu não possuía esta referência, porém Costa fala em “escuta microscópica” (EOL)

80

no teatro, cada personagem tem uma história e deve ser interpretado assim como fazem os atores.94

Há seis anos, Caio e um grupo de amigos95 jogam dando continuidade à “mesma história”. O “sistema” em que esta se dá é o chamado Vampiro: a máscara. Alguns dias antes do encontro em questão, o performer enviou-nos um breve texto sobre o “sistema” (universo, eu diria) em questão, além de textos detalhados sobre sete personagens. Convém constar que o “sistema” não prevê personagens. Isto é, as personagens em questão foram desenvolvidas pelos próprios jogadores que as interpretam, ou – no caso de coadjuvantes – pelo narrador que as interpreta. O proponente pediu-nos que, com alguns dias de antecedência, escolhêssemos qual personagem cada um(a) “interpretaria” na ocasião do encontro. No entanto, nós não jogaríamos uma nova história com estas personagens, tampouco daríamos prosseguimento à história que vem sendo jogada por Caio e seus amigos. Estas personagens seriam interpretadas sonoramente durante uma sessão de improvisação, a qual, além desta, não possuiria nenhuma outra “regra” (instrução). No entanto, convém constar que, além de tratar da personalidade e da história das personagens, cada texto continha o tópico “personagens conhecidos”. Neste, o proponente escreveu (implícita e explicitamente) sobre as relações que cada personagem mantinha (ou não) com cada um dos outros seis – algo que foi essencial para o desenvolvimento das interações durante a performance. Com o ambiente preparado previamente a luz de velas e com alguns objetos, houve uma espécie de apresentação das personagens, para que todos(as) soubessem (lembrassem) qual seria interpretada por cada um(a). Esta foi realizada como se fossem as próprias personagens falando – isto é, falamos em primeira pessoa – e, em seguida, iniciamos a performance do dia, a qual teve duração de pouco mais de vinte cinco minutos. As relações políticas entre os chamados “clãs” de que as personagens faziam parte recorrentemente eram motivações para as interações. Por exemplo, foram produzidos materiais de “discordância” sonora para demonstrar insatisfação com personagens que possuíam ideais divergentes. Já os materiais idiomáticos eram propositalmente recorrentes na atuação de uma personagem que não conseguia se desprender de seu passado e tradições. Também é relevante constar que a discussão posterior a performance também foi realizada como se fossem as próprias personagens conversando (falamos em primeira pessoa).

Encontro 7 94 95

Nenhum destes faz parte do C³.

81

Este encontro foi proposto por Natália Franscischini que, sem muitos esclarecimentos prévios, pediu que, levando nossos instrumentos, comparecêssemos a um atelier do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. Neste, havia a nossa disposição: telas, tintas, pincéis, gizes de diversos tipos, blocos de concreto celular, madeiras, além de diversas ferramentas de esculpir. As instruções dadas para a (novamente única e longa) sessão de improvisação realizada consistiam tanto em “usar os materiais como instrumentos” – a proponente constou que escolheu “materiais que facilmente dá para [tirar] um som deles (sic)” – quanto criar plástica e visualmente “dialogando com o que estão escutando”. Ainda que ela tenha nos dado a possibilidade de utilizar instrumentos musicais tradicionais, estes foram muito pouco presentes. Atribuo isto ao fato de que foi despertada grande ansiedade e curiosidade pela exploração de certos materiais que, para alguns de nós, eram absolutamente novos. As descobertas sonoras acerca dos materiais plásticos se deram, além dos usos tradicionais, por exemplo, através de raspagens das telas ou realização de furos (feitos abruptamente com a parte de trás de pincéis) nestas. Ou, até mesmo, algumas vezes, lixávamos os blocos de concreto e madeira em situações de interação sonora e escuta concentrada. No entanto, minha impressão geral foi de que, em casos como este, acabávamos por abster-nos da concentração na produção visual. O contrário também me pareceu ocorrer: ao atentarmo-nos a plasticidade das produções, acabávamos escutando pouco. Neste sentido, talvez a proposta tivesse muitos aspectos sendo trabalhados ao mesmo tempo. Também considero que o fato de a maior parte de nós não possuir afinidade com os materiais em questão fez com que nossas atuações tivessem um caráter muito experimental. O desejado equilíbrio entre exploração/inovação de recursos e domínio destes (COSTA, 2013) não ocorreu, visto que durante a performance não houve aprofundamento técnico em quase nenhuma das formas de produzir (sonora e visualmente). Ainda que Natália tenha nos demonstrado alguns cuidados e até processos de trabalho recomendados para a exploração dos materiais, quase tudo que ocorria era novidade (idem). Assim, ao invés de aprofundarmo-nos nas possibilidades (sonoras e visuais) que os materiais poderiam proporcionar, acabamos passando a maior parte do tempo desvendando as interessantes e inesperadas reações destes. No que diz respeito aos sons, num certo sentido, foi como tocar um instrumento musical de que nunca se ouviu falar. Noutro, já que diferentemente da maior parte dos instrumentos, os m ateriais se transformavam e se desfaziam ao longo da performance, a tendência era que raramente

82

conseguíssemos dominá-los. Deste modo, pode-se dizer que a superfície de fundação predominou em relação à superfície de captura. Contudo, em nível fora do controle. (Apenas) ao final da performance, a proponente convidou-nos a expor as obras que havíamos produzido na exposição Nós, que ocorreria nas semanas seguintes no próprio departamento em questão e fora organizada por alunos e alunas deste. O convite foi aceito e na ocasião da exposição havia, junto às obras, um texto esclarecendo como estas foram produzidas, além de links e “qr codes” referentes ao registro audiovisual da produção das obras.

Encontro 8 Este encontro foi um pouco mais curto que o habitual. Nele, realizamos os jogos de improvisação Solo-fantasia e Permitido-proibido, elaborados por Koellreutter (BRITO, 2011), e duas breves propostas de improvisação a partir de uma cena de um filme, elaboradas em minha pesquisa de iniciação científica (BIAZON, 2013, 2014, 2015), tocando principalmente instrumentos de percussão. Em suma, compreendo que, possivelmente, teria sido mais produtivo para este encontro ter realizado menos propostas, porém mais vezes. Entretanto, havia a intenção de apresentar-lhes um número grande de jogos e estratégias. Meu intuito era que Carlos e Thaís96, que ainda não tinham elaborado suas propostas, pudessem ter mais referências do que Caio e Natália para elaboração destas. As reflexões acerca dos tempos métrico e não métrico, propostas a partir do jogo Solofantasia, naquele momento, não foram tão instigantes para os improvisadores e improvisadoras. Conforme apresenta Brito apresenta e conforme conheci nas práticas da OE, há uma série de variações deste jogo. No nosso caso, propus da seguinte maneira, haviam momentos solo não métrico e, conforme este tornava-se métrico surgia um tutti, o qual possuía um único metro. Contudo, neste não deveriam ser criados ostinatos, mas sim apenas improvisar metricamente. Já Permitido-proibido, ainda que, ao meu ver, não tenham surtido efeito direto na produção sonora dos membros do C³, segundo nossas discussões, proporcionou-lhes situações de escuta. Conforme o proposto, os/as performers paravam imediatamente todas as vezes que a personagem “proibido” tocava. Enquanto que, nos momentos em que a personagem “permitido” tocava também

96

Entretanto, acabamos por não agendar um encontro dedicado a execução de alguma proposta a ser desenvolvida por Thaís.

83

seguiram atentamente a proposta de tocar conjuntamente, porém sem muitas situações de interação evidentes. A primeira proposta de improvisação a partir de vídeos, consistiu em tocar enquanto se assistia a um trecho do filme Total eclipse de uma paixão. Devido ao pouco tempo que nos restava, optei por não propor tantas discussões acerca desta, enfatizando a proposta seguinte, que consiste em improvisar imaginando o vídeo em questão. Nesta performance, os improvisadores e improvisadoras deveriam tentar ouvir aos/às demais em busca de “compartilhar seus tempos internos”. Isto é, a partir da escuta, procuravam saber qual momento do vídeo estava sendo imaginado por cada um(a). Sobre esta questão, tivemos algumas discussões relevantes sobre as situações de expectativa acerca de momentos específicos da cena.

Encontro 9 Carlos De Nicola, como já registrei, decidiu não continuar no grupo. Sendo que, apesar de o grupo não ter se reunido efetivamente desde o encontro 9, consideramos apenas que este foi o último encontro com o performer em questão, e não o fim do C³. Carlos, de um modo geral, em suas próprias palavras, “precisava dos idiomas musicais para se expressar”. Isto é, na maioria das vezes, ele se utilizava de materiais consideravelmente idiomáticos durante as performances. Ele chegou a questionar se estava, como eu propunha, “expandindo o conceito de música” (palavras minhas) ou apenas “o esticando” (palavras dele). Nestas situações, me parecia que ele estava tocando sozinho ou não escutando o grupo. Arrisco-me também a dizer que, neste período, ele não desenvolveu um apreço por sonoridades menos tradicionais: não-rítmicas ou não-melódicas, algo que fazia com que se apoiasse nos modos de fazer música por ele já conhecidos. O encontro 9 foi dedicado a realização das propostas de improvisação desenvolvidas por Carlos De Nicola. Neste, ele levou e leu alguns de seus poemas, algo que, num certo sentido, trouxe-o para as improvisações de uma maneira diferente. Sem dúvida alguma, ele estava com sua escuta mais atenta ao grupo (e menos amarrada à sua biografia musical). Sendo também um fato que, diferentemente do que ocorrera nos demais encontros, suas produções sonoras explicitamente referenciadas em estruturas pré-existentes – como cadências harmônicas, ritmos, palavras e até mesmo longos textos declamados – não foram (como costumavam ser) analisadas por mim enquanto “distantes da proposta”, visto que, nesta ocasião, ao menos as poesias (já escritas) eram parte das propostas. 84

Esclarecendo como seria o encontro, ele considerou: "São quatro [poemas] [...]. Pra cada um deles tem um tipo de 'trabalho' com a improvisação", “uma abordagem improvisatória, digamos”. "Eu prefiro [explicar] esses 'trabalhos' [apenas no momento específico de leitura de] cada um [dos poemas]". "A leitura, - [a] maneira como ela vai ser -, também envolve a maneira como [os poemas] vão ser ‘trabalhados’ [na improvisação]". Sobre o primeiro poema e a maneira que este seria “trabalhado”, Carlos propôs: “Para cada núcleo que eu disser – núcleos, nesse caso, são frases –, a improvisação acompanha este núcleo”. “[Ela deve ser] consonante, sincrônica e harmônica com [cada] núcleo.” “[Isto também] pode significar tocar ao mesmo tempo”. “Não precisa ser exatamente isso. Mas a ideia pra esse poema é isso”. Abaixo, o poema: eu falo pra você soltar seu cabelo você não solta eu falo pra você soltar seu amor você não solta teimosa Um pouco por não termos compreendido a proposta, mas também pelo fato de termos aguardado versos e um poema mais longos, acabamos por não seguir exatamente a proposta dada. O proponente considerou que “[a improvisação] não [seguiu] minha ideia inicial, que era, para cada frase, ter um acompanhamento”. O que ocorreu foi que começamos a tocar apenas após o quarto núcleo (verso). Carlos, que nesta ocasião alternava-se entre instrumentos e a recitação, construíra interações a partir das duas atuações. Cabe constar que, até que este fosse recitado, nós não possuíamos nenhuma informação sobre este poema. Assim, para nossa surpresa, havia o último verso, o qual, nas palavras de Carlos: “resolvi soltar depois porque eu percebi que a reação foi de uma maneira que favoreceu isso”. Isto é, diferentemente dos outros versos, “teimosa” foi dito apenas depois que já tocávamos instrumentos. Nota-se que o performer improvisava tanto com os instrumentos quanto com a declamação. “A ideia do segundo [poema] é que eu recite-o todo, em seguida – a continuação dele –, a gente faz [improvisando]”. “A gente tem que meio que dar uma resposta menos harmônica”. Carlos considerou que, nesta performance, contemplamos sua “orientação” (instrução, proposta). Abaixo, o poema: multipenetração 85

preenche a todos por igual

derramamo-nos sobre o gozo infinito e imenso sem saber onde apoiar as mãos Sobre o terceiro poema, a proposta dada: “[Terão] quatro blocos esta sessão”. “São quatro versos [...] de duas ou uma palavra” “[que serão recitados] separados e, para cada verso, [em seguida,] [nós tocaremos algo com] a sua [devida intensidade]”. “A ideia é que [...] a gente reproduza o volume, a intensidade, que a gente acha que [cada verso do poema] deveria ser emitido”. “[Ao ler cada verso,] eu vou tentar ‘não fazer intensidade’ na minha voz, para não influenciar (sic)”. sexo anal vinho fezes um lençol rasgado Realizada esta performance de quatro seções, nossas discussões sobre ela constaram que, diferentemente do caso da primeira proposta, “sabendo que tem quatro versos, a gente se planeja (sic)”. As diferenças entre relacionar-se singularmente com cada verso, ou procurar uma compreensão do todo (algo que pareceu mais possível apenas após o último verso), também foi algo abordado na discussão. A instrução dada para a interação com o último poema, era “tentar sintetizá-lo, fazer uma síntese na hora que acharmos que a síntese cabe (sic)” (grifo meu). Deveria ser “um tocar coletivo, mas [poderia] ser uma síntese um pouco individual”. a mão apoia apoiada na cabeça.

ninguém sequer imagina o turbilhão dessa pretensiosa paz; 86

oscilante aos giros da caneta marejada em cada descarga de sangue às mãos e livre fluído das lágrimas.

(apesar dos anos e das páginas em branco, elas caem pendendo dos olhos nem por isso)

a mão apoia apoiada na cabeça. sob o papel a sobra de sonhos mancos procura – rabiscadamente – um suporte escrito. Considero que o ambiente intimista proporcionado pelas declamações de Carlos De Nicola contribuiu para que o grupo realizasse dinâmicas mais piano, as quais proporcionaram situações de escuta e cuidado com a produção sonora. Minha impressão geral foi de que o grupo se ouviu, com clareza, inclusive, por exemplo, na separação entre seções da peça. O fato de terem sido performances curtas também pode ter contribuído para que cada um(a) tivesse uma compreensão mais reflexiva de cada performance em seu todo. Thaís Giovanetti fez uma breve descrição (do começo ao fim) da performance referente ao segundo poema. A performer fez considerações sobre os instrumentos que a começaram, sobre o momento em que eles pararam de tocar nesta primeira parte e sobre intervenções pontuais feitas por um destes. Sendo isto, algo que, nos outros encontros, ela não havia feito desta maneira.

Um pouco mais sobre o C³ Outra prática de música experimental vivenciada conjuntamente por (alguns) membros do C³ foi a estréia da peça Desodorante, use com moderação! do compositor Glauber Kiss de Souza. Esta ocorreu no Ibrasotope Música Experimental na ocasião do XII ENCUN. A composição em questão consiste em um roteiro de improvisação a ser executado com desodorantes e isqueiros. Ainda que tenha havido um longo recesso nas práticas do grupo, hoje (junho de 2015) o C³ pretende prosseguir realizando seus estudos e atividades, inclusive, expandindo-as para concertos e oficinas de improvisação. Na medida do possível, também é uma pretensão do grupo a colaboração 87

com coletivos e espaços ligados a música experimental. Cabe constar que, de um modo geral, estas colaborações são vistas como algo que não se limita ao desenvolvimento artístico. Isto é, temos maior apreço pela colaboração com pessoas e coletivos que, na organização de atividades, não deixem de lado questões políticas. Trata-se de optar por maneiras de organização e realização de nossa produção artística que busquem, ao máximo, a coerência com os valores de cada pessoa do grupo. Em suma, vemos maior sentido em realizar performances e oficinas, por exemplo, em espaços que não consideremos reprodutores de relações de opressão e que procurem construir relações horizontais entre si e com os/as demais.

Coletivo Consenso Centralizado. Filmagem de uma discussão. Agosto de 2014, Departamento de Música da ECA-USP. Da esquerda para a direita: (acima) Caio Vinícius, Thaís Giovanetti e Natália Francischini; (abaixo) Stênio Biazon e Carlos De Nicola.

Seleção feita por mim (e não pelo coletivo) de gravações de nossas performances no link: https://www.youtube.com/playlist?list=PLX0skWiSpOPDb2Fub23Rhx5j_9jlBEK9L

88

Capítulo 3: Práticas do Coletivo Consenso Centralizado segundo questões pertinentes às aproximações entre improvisação livre e anarquismo (e um tanto quanto vice-versa...: aproximações entre improvisação livre e anarquismo segundo questões pertinentes às práticas do Coletivo Consenso Centralizado)

Enquanto no capítulo 2 procurei evitar o uso de conceitos do capítulo um – visto que se trata de um relato de práticas que foram realizadas anteriormente ao desenvolvimento das reflexões conceituais em questão –, neste, como sugere o título, trago (a posteriori) explicitamente os conceitos para as práticas do grupo. Aqui, resgato algumas situações já relatadas no capítulo 2, bem como, trago alguns detalhes sobre as práticas do Coletivo Consenso Centralizado que não haviam sido citados. No presente capítulo, predomina a escrita em primeira pessoa do singular e em terceira pessoa do singular (sujeito indeterminado), visto que trata-se de minha visão sobre conceitos de terceiros e terceiras.

3.1.

Não era livre? Mas e os idiomas? “Eu acredito que se trabalharmos algumas estratégias conseguimos descobrir novas sonoridades em conjunto, coletivamente, que acabam apontando para a questão musical independentemente dos idiomas. Acho que a 'grande sacada' da Livre Improvisação é essa. Nós tocamos música para além dos idiomas, tocamos 'música-música'. Você não faz música via jazz, via melodia, via artifícios. Você faz música interativa, 'música-música'. Você está trabalhando com os aspectos conceituais musicais de uma maneira um pouco mais viva e direta. Você não está fazendo ritmos via ritmos brasileiros, harmonia via 'harmonia do Tom Jobim', por exemplo. 89

Você não está fazendo uma coisa via outra. Você está fazendo a coisa em si. (sic)” 97 Manuel Falleiros

O meu convite feito aos membros do C³ para experienciarem a livre improvisação, evidentemente, incluía propostas (estratégias) específicas para buscar uma improvisação mais “livre”. Neste sentido, como já apresentei no capítulo um, a não submissão aos idiomas musicais seria fundamental. Sendo que, em algum grau, esta inclui a negação destes. Em minhas proposições da não submissão dos idiomas (e negação destes) procurei apontar para o fato de que isto pode contribuir para a expansão do conceito de música. Eu não me utilizava desta expressão, mas eu estava propondo o “direito a novos valores”, já abordado no capítulo um. Sendo assim, nas práticas do grupo, frequentemente eu lhes sugeria que se atentassem às situações em que “estavam sendo idiomáticos (sic)” (e as evitassem). Entretanto, por mais que eu procurasse esclarecer as diversas facetas destas reflexões, havia um questionamento específico muito recorrente. Como é que eu estava lhes convidando para fazer uma improvisação “livre”, mas havia algo (um tanto quanto) nãorecomendado? Neste sentido, algumas pessoas do grupo consideravam que a minha proposição de negação dos idiomas tinha um caráter restritivo (ou até direcionador). Minha contra argumentação sempre se dava, semelhantemente ao exposto no capítulo um, através da ideia de que os materiais idiomáticos estabeleciam regras e tendiam a gerar polarizações. Contudo, o performer Caio Vinícius chegou a sugerir que haveria um “idioma ‘não-idiomático’”. Isto é, a proposta não-idiomática também possuiria as suas fronteiras um tanto quanto delimitadas. Em sua visita ao C³, Thiago Salas fez uma consideração que pode aprofundar esta ideia: A improvisação livre é muito livre, [...] livre pra ser idiomática na hora que quiser, livre pra desligar o instrumento do outro [...] se não ‘tá’ gostando. Mas muitas vezes isso também não é muito ético... Tem que ver isso no grupo, tomar esse cuidado... ninguém quer constranger o outro (sic) (SALAS, Thiago).

Num certo sentido, considero que a bibliografia dá conta de deixar claro que a improvisação (mesmo quando chamada de) “livre” não é “livre” num sentido pleno. Trata-se de ser “livre” no sentido de ser livre de algo. [...] É relativo o sentido da palavra liberdade. Para nós este sentido se configura caso a caso em relação a determinados sistemas e forças. Para Espinosa, por 97

Esta reflexão sobre ação direta sonora é uma transcrição de uma colocação de Manuel Falleiros em uma conversa com o CI, ocorrida em 2013, durante uma palestra-oficina referente à pesquisa Improvídeo.

90

exemplo, a liberdade é o exercício pleno da potência que cada corpo possui e esta potência só se define na relação do indivíduo com o seu meio ambiente. (IC, p. 97)

Em suma, o que podemos inferir é que, para o convidado Thiago e para Caio, para ser livre, a improvisação (também) deve livrar-se da negação (e até da não-submissão, eu sugeriria) dos idiomas. Neste sentido, posso citar uma reflexão minha (que consta em um trecho da entrevista que concedi a Manuel Falleiros para sua pesquisa de doutorado) sobre sentir-se preso à negação dos idiomas, a qual foi registrada no início da prática enquanto livre improvisador. Inúmeras vezes, me vejo reproduzindo (não de propósito, mas por costume) estilos dentro da improvisação, assim como outras vezes, me vejo imensamente preocupado em não seguir nenhum estilo e confesso que às vezes tenho a impressão de que o desejo de ‘não estar em nenhum estilo’ acaba por me prender, e por exemplo, pode me impedir de expor uma ideia, simplesmente porque tive receio de que ela sugerisse um estilo. (BIAZON apud FALLEIROS, 2012, p. 253) (o grifo foi realizado para o presente trabalho)

Para sintetizar esta questão, podemos, de acordo com Costa, considerar que não é possível realizar uma improvisação totalmente livre (IC, p. 97) e refletir: Porque não usar elementos idiomáticos (melodias [...]; harmonias [...])? Afinal, eles também fazem parte da biografia musical de cada um. A proibição acaba sendo uma espécie de limitador consciente do campo de consistência com o intuito de disciplinar a prática e dirigir a escuta ao objeto sonoro. Como se vê, este já é um tipo de roteiro para a improvisação que – como sempre – não é totalmente livre. Ninguém e nada é totalmente livre. (MEM, p. 142, g.o.)

A partir das ideias desenvolvidas no primeiro capítulo (e que, de certa forma, eu já expunha ao C³), é importante considerar que a improvisação nega aquilo que a torna menos livre no sentido de impedir a participação de algumas pessoas (por exemplo, daquelas que não dominem um idioma que venha a se instaurar). Assim, para que isto não signifique uma perda para quem tende a se expressar mais idiomaticamente, a improvisação acolhe os idiomas que estão nas biografias musicais desde que eles sejam desterritorializados (que as biografias musicais se desrostifiquem). Isto é, os acolhe de modo que suas (originalmente) regras façam-se presentes apenas como acordos (modificáveis): mesmo os materiais de uma linguagem (um tanto quanto) pré-existente deve estar permeável as intervenções de outrem. Contudo, cabe lembrar que meu papel e proposta não era vigiar os membros do C³, mas sim convidá-los a esta reflexão. Também sendo um fato que, pode ser tênue a linha que separa um material idiomático que se coloca enquanto uma “regra a que o improvisador terá que se submeter ou negá-la” daquele que emerge enquanto parte do rosto biográfico a ser desrostificado. Deste modo, em última instância, a desrostificação pouco pode ser “avaliada” senão a partir de uma própria intenção, de um desejo (que não pode ser imposto). Em

91

suma, no contexto de avaliação da adequação de nossas condutas performática-sonoras à proposta da improvisação livre, a autoavaliação possui um valor essencial. No encontro em que tratamos das técnicas estendidas, ainda que eu tenha evitado os conceitos deleuzianos, parte do que propus aos membros do C³ foi (algo como) que almejassem o nível molecular dos aspectos idiomáticos de seus rostos biográficos. Ao expor-lhes vídeos dos guitarristas de rock Randy Rhoads e Daniel Johns98, utilizei-me de ideias advindas da leitura de textos de Nicholas Cook e Tristan Murail. Apontei para o fato de que no contexto de uma performance de execução de uma composição (“tradicional”, com alturas e durações definidas) haviam materiais um tanto quanto improvisados (abertos, não totalmente previstos). Bem como, para o fato de que, mesmo em materiais mais “tradicionais” (focados nas alturas e durações) podese (e costuma-se) escutar sutilezas sonoras. Sendo que, estas sutilezas (que já costumas notar, como os timbres de guitarras, segundo a citação de Murail no capítulo 2) e os materiais mais abertos das composições seriam (compreendidos por mim como) uma das maneiras de, a partir de nossas biografias musicais, explorar os instrumentos de maneira não-idiomática. Nos vídeos em questão, eu mostrei-lhes técnicas (estendidas? a depender do contexto e do quanto vão sendo incorporadas ao repertório, como sugere Ferraz) como: pickslides (raspar a palheta nas cordas), empurrar o braço do instrumento para frente enquanto as cordas soam (afrouxando-as), ou manipular um único som da guitarra com pedais. Também ressaltei que, ainda que, nestas gravações, estes materiais fossem tocados simultaneamente a materiais métricos de outros instrumentos e algumas vezes fossem “apenas” ornamentos de riffs (que possuem alturas e durações definidas), nossa escuta não os deixava passar. Sugeri que muitos destes materiais seriam os detalhes (mais) abertos ou imprecisos (do que alturas e durações) das composições em questão. Minha proposta era que, como sugere Falleiros, os sistemas fossem integrados, tornando a proposta de não-submissão aos idiomas menos “chocante”: os improvisadores e improvisadoras poderiam encontrar materiais não idiomáticos em suas biografias musicais. Contudo, isto foi exemplificado apenas a partir da minha formação musical (como guitarrista), o que talvez tenha sido um pouco abstrato (ao menos para Thaís e Carlos, que tocavam bateria e violão). Além de que, estas distinções podem ser complexas para quem não possui formação musical acadêmica (talvez um aprofundamento nas propriedades do som tivesse contribuído). Ou mesmo, o balanceamento das diferenças diagonais de cada instrumento devesse ser levado em conta para esta proposta: coletivamente poderíamos pensar sobre o que seria

98

Links para os vídeos: https://www.youtube.com/watch?v=1d4vKb-4ubg

https://www.youtube.com/watch?v=ZcoweoZ6jpM

92

e

(e o que não seria) idiomático em cada instrumento, em cada repertório; poderíamos ter refletido coletivamente sobre quais técnicas e sonoridades usuais dos instrumentos eram mais polarizadoras; etc. Mais a frente no trabalho, já em outro contexto, a questão dos níveis moleculares dos rostos será resgatada.

3.2.

Não era livre? Por que tantas propostas e jogos?

Num certo sentido, alguns questionamentos das pessoas do C³ remetem a constatação de que “os exercícios de improvisação podem eventualmente ‘burocratizar’ a criação e gerar um distanciamento com a realização artística” (FALLEIROS, 2012, p. 180). Ainda que concordassem com diversas fundamentações sobre a importância dos jogos e propostas, havia uma ideia coletiva de que para a realização de uma improvisação (o mais) livre (possível) seria necessária a ausência de propostas. Uma ideia contemplada pela bibliografia: Com opções abertas para que haja uma crença na existência de ‘todas as opções’ a serem escolhidas, representando o seu ponto máximo pela improvisação executada a partir de proposta nenhuma. Esta improvisação realmente ‘livre’, assim conceituada porque não partiria de nenhuma proposta, é a que se figura como mais distante da coerção da ação individual. (FALLEIROS, 2012, p. 178)

Pode-se compreender que um enfoque na ausência de propostas enfatiza a condição de “poder tudo”. Entretanto, assim talvez não seja dado muito valor para a ideia de que “tudo não é qualquer coisa”. Isto é, as improvisações “totalmente” livres (sem propostas) também são importantes para os grupos de improvisação didáticos. Porém, se realizarmos apenas elas, possivelmente não desmancharemos hierarquias polarizadoras ou não nos desprenderemos de certos vícios. É neste sentido, por exemplo, que um dos jogos elaborados por Max Schenkman (que realizamos no encontro 3) busca conceder o poder de “veto” da performance para todos e todas a qualquer momento. Assim, são compensadas certas assimetrias (que são ainda maiores no contexto) da proposição da liberdade. Quando podemos tudo, podemos, inclusive, estender a performance sem o consentimento dos e das demais. Já no jogo em questão, está consensualmente (e, num certo sentido, gentilmente; noutro, conquistadamente) definido, por exemplo, que “aqueles e aquelas que tendem a falar mais” ou costumam “dar a última palavra” da improvisação estão sujeitos a serem “vetados” por “aqueles e aquelas que não costumam falar tanto”. Semelhantemente, podemos lembrar as reflexões do capítulo um e considerar que o jogo O palhaço dá voz às maneiras de se expressar musicalmente distintas da métrica. Ele, inclusive, também compensaria as assimetrias 93

geradas pelo “poder tudo”. Quando se pode tudo, o fazer musical métrico pode (continuar a) se impor aos demais, já que, por exemplo, pelo fato de predominar na maior parte dos idiomas, ele tende a ser polarizador. Assim, convém exercitar as (dar alguma prioridade às) outras maneiras de fazer música, aquelas que não costumam ser valorizadas. Conforme já citamos, “a liberdade só é encontrada na sensação de agir, de criar a si mesmo [...], não simplesmente pela remoção de forças restritivas.” Num certo sentido, uma postura hesitante às propostas e jogos – e que prioriza a realização da improvisação “sem propostas” – sugere uma conduta pouco estratégica. Seria como, diferentemente do sugerido no capítulo um, agir como se a preparação para o jogo ideal estivesse dada ou pudesse ser declarada. Noutro sentido, esta postura demonstra consciência da condição heterotópica da improvisação livre. Diferentemente de uma ideia de improvisação utópica, ela não seria almejada enquanto algo que pode ser dado como acabado: se buscaria as condições de sua realização para o presente, não aguardando supostas condições “ideais”. Ao compreender que a liberdade em questão trata-se de um processo, convém sugerir um equilíbrio entre o mergulho no jogo ideal – sem preocupar-se tanto com a preparação prévia – e o desenvolvimento de estratégias para jogá-lo – preparando-se com atenção específica em determinados vícios emergentes e polarizações.

3.3.

Construção coletiva da liberdade individual e contribuição individual para a liberdade coletiva

Conforme sugerido no capítulo um, para que “poder tudo” não se confunda com “poder qualquer coisa” são necessárias a construção coletiva da liberdade individual e as contribuições individuais para a liberdade coletiva. Neste sentido, estas seriam vias de colaboração com a construção de um poder (direito, autorização social) gerido coletivamente. A seguir, apresento reflexões sobre como estes conceitos contribuem para o entendimento das práticas do C³.

3.3.1. Solo de guitarra na calça: autorização social e sua contribuição para a escuta e experimentação

94

Se, conforme apresentamos no capítulo um, o convite à realização da improvisação livre consiste na concessão de autorizações (por exemplo, para expressar-se independentemente das regras implícitas e explícitas dos sistemas e linguagens musicais), talvez possamos dizer que uma primeira realização99 desta prática possui um caráter de ruptura. Ao menos sobre o primeiro encontro do Coletivo Consenso Centralizado foi esta a minha impressão posterior. Este encontro, conforme exposto no capítulo dois, contou com discussões, entre outras questões, sobre “o que é música?” além da exposição de referências acerca da improvisação livre com o intuito de apresentar esta prática. Os/as participantes estavam tendo um primeiro contato com considerações acadêmicas sobre ideias como: todos os sons podem ter a mesma importância, música pode ser aquilo que se ouve com intenção de ser música, a criação na improvisação livre se dá colaborativamente e em tempo real. Assim, pode se dizer que algumas autorizações (referente à regras, e não no sentido social) estavam sendo concedidas pelas considerações acerca da prática em questão. Certas forças restritivas, como as que dirigem impositivamente nossa execução a características específicas (e muitas vezes exclusivas) das linguagens musicais como escalas ou cadências harmônicas, estavam, de algum modo, removidas (ou ao menos afastadas). Esta é uma condição fundamental, porém ela não é suficiente (e talvez nem necessária...) para a efetivação de poderes e direitos, enfim, de autorizações sociais. Em essência, a situação até aqui descrita talvez trate (apenas) da remoção das “leis” e “autoridades”. Contudo, as hierarquizações previstas por estas não se exprimem apenas pelos aparatos dos sistemas. Isto é, elas fazem-se presentes nos modos de pensar, agir, sentir e, por consequência, organizar-se coletivamente – é a esfera micropolítica, que muitas vezes reproduz sistemas mesmo quando não há “leis”. Considera-se que o poder para realizar algo só é concedido se este algo for socialmente autorizado – lembrando que isto inclui que o indivíduo também se sinta com este direito, poder. Num contexto musical (como o em questão), poderíamos considerar que certas relações de poder têm seu abismo diminuído apenas se for construída uma concepção coletiva, por exemplo, de que os saberes não estão previamente hierarquizados. Sendo que, esta é uma dimensão que meu papel de proponente (facilitador) não contemplaria. Por exemplo, para que cada membro do grupo se intimidasse menos com a ideia de não ser (idiomaticamente) fluente no instrumento, era necessário que isto ao menos não parecesse um fator hierarquizador para o coletivo. Neste sentido é que podemos falar em construção coletiva da liberdade individual.

99

No caso, a primeira realização do grupo e não de todas as pessoas deste.

95

Durante a (longa) performance realizada neste encontro, segundo análise dos próprios membros do C³ (evidentemente, neste caso, como em muitos do trabalho, sem me incluir como espaço amostral), as ações de cada um(a) sugeriam ações semelhantes aos/às demais. Por exemplo, mudar instrumentos de posição, experimentar sons com objetos que caíam no chão, interagir a partir dos micro-ruídos de desligar e ligar amplificadores, deslocar-se de onde estava, etc., foram ações que, conforme um(a) performer realizava, os/as demais permitiam-se fazer semelhantemente (não identicamente, visto que cada performer possuía suas limitações, facilidades no espaço, etc). Assim, podemos dizer houveram construções coletivas daquilo que cada indivíduo podia fazer. Com estas foi possível uma liberdade um tanto quanto mais plena do que a simples remoção das forças restritivas. Ao discutirmos a performance em questão, antecipando um tema, enfatizei a ideia de que muitas das técnicas estendidas (no contexto, mais referidas como “novas maneiras de tocar os instrumentos”) podem ser descoberta em plena performance, conforme lidamos com a surpresa, o incontrolável e estamos pré-dispostos a lidar com o acaso (FTC, p. 6, PMA, p. 6), sendo isto algo que acabara de ser muito recorrente. Seguindo esta direção, falamos sobre o “solo de guitarra na calça” realizado por Natália Francischini. Conforme seu relato, em um momento de silêncio (que lhe parecia ser o fim da performance), a performer apoiou a guitarra em seu corpo para não mais tocá-la. Contudo, ela constou que, para sua surpresa, o raspar das cordas em sua calça fez um som. Assim ela iniciou um breve solo (em seguida os/as demais performers passaram a tocar também) se utilizando apenas desta técnica, a qual fora, segundo ela mesma, por acaso (e sem que pudesse prever, controlar ou evitar sua primeira emissão) descoberta em plena performance. Durante a conversa sobre esta técnica estendida (e, de certa forma, sobre demais situações em que emergem técnicas instrumentais), Caio Vinícius fez algumas considerações que remetem diretamente a ideia de poder (autorização social). Sobre [as técnicas] serem descobertas durante a [realização da] improvisação livre... você só consegue descobrir[, ou mesmo simplesmente fazer,] uma coisa quando essa coisa é permitida. Você só pode fazer uma coisa se [...], dentro da sua concepção, dentro do lugar que você ‘tá’ você entende que essa coisa é permitida. [Por exemplo], se você for fazer isso[, o ruído de raspar a guitarra na calça,] em outro ambiente, isso não vai ‘poder ser’ um som valorizado. Você [nem chega a considerar] isso porque isso não pode ser um som valorizado; porque tem um contexto que ‘fala’ para você que isto não pode ser valorizado. [Já] nesse contexto[, da improvisação livre,] você podia realizar o que você quisesse [...] que [isto] seria valorizado [ouvido, recebido]. [Ou seja,] qualquer som que a gente fizer durante a improvisação pode ser um som ‘válido’. (VINÍCIUS, Caio) (a sequência das frases foi alterada para facilitar a leitura)

96

3.3.2. Poder tudo e responsabilizar-se pelo todo caminham juntos

Conforme já apresentamos, tanto a autogestão quanto a improvisação livre pressupõem uma responsabilização mais integral por aquilo que é coletivo. Por exemplo, no contexto de uma gestão com cargos definidos ou da execução de uma composição tradicional (ou mesmo de uma improvisação idiomática) cada pessoa está encarregada e preparada apenas para exercer a sua função. Já na autogestão e na improvisação, todas as pessoas podem intervir em todas as instâncias dos processos decisórios ou performáticos. Nestas, também se busca e se proporciona que cada um(a) desenvolva um preparo para, de algum modo, atuar em todas as funções, ou, de prontidão, se colocar diante do coletivo das maneiras necessárias em cada contexto (com menor restrição prévia). Isto é, cada indivíduo não está limitado a participar da construção de algo “coletivo” apenas a partir de uma única especialidade. Todos e todas têm direito de voz mesmo diante daquilo que em contextos que os saberes são prévia e estritamente hierarquizados não teria. No contexto da autogestão (conforme concebida em seu seio e não, por exemplo, no contexto da chamada “autogestão empresarial”) valoriza-se, também conforme já citado, que todos e todas que participam dos processos tenham acesso igualitário aos produtos finais. Sendo que, convém acrescentar que, para uma autogestão, importa reconhecer a relação entre o comprometimento com os processos e o quanto cada pessoa enxerga (pode usufruir de) sua parte no resultado (produto final) (ATIVISMOABC, 2014, p. 14). Num modo geral, é evidente que na improvisação, diferentemente, por exemplo, de uma banda marcial, em que (além dos processos de criação dificilmente serem compartilhados) há instrumentos previamente determinados a tocarem menos, a participação de cada um(a) no produto final tende a ficar mais evidente (é claro que isto seria num plano ideal, ignorando as assimetrias). Algo que posso sugerir e, a partir da minha experiência (principalmente com crianças), constatar que gera maior envolvimento. Contudo cabe lembrar que, ao menos para a autogestão no contexto libertário, a concessão de voz não é (idealmente) proposta com o intuito de cooptar as pessoas almejando melhores desempenhos. Ela deve caminhar junto da distribuição dos produtos finais e resultados. Trata-se de uma proposta de horizontalização das relações e não de um tipo de aprimoramento das relações de dominação conforme desenvolvido no início do capítulo um.

97

No âmbito da improvisação, pode-se considerar, inclusive, que descuidar-se (não responsabilizar-se) com o todo pode ser prejudicial à performance se isto não for aproveitado ou “antropofagizado”. Trata-se da ideia de que “cada som tem conseqüências no fluxo”. O performer Caio Vinícius fez considerações sobre esta questão: “Aqui[, no ambiente da improvisação livre,] ‘não é’ [‘que se dane’] o ruído de quando você liga a guitarra [...] Qualquer barulho que alguém fizer é muito importante, a gente presta muita atenção”. Em suma, segundo Teca Alencar de Brito, conforme epigrafado no capítulo dois, quando improvisamos somos responsáveis pelo resultado. A partir das referências em questão, é possível compreender que há certa intimidade entre a concessão (na verdade, construção e conquista coletiva, que estão sempre em processo) da liberdade (“poder tudo”) e a construção de uma maior responsabilização pelo todo (também sempre em processo...). Como já citamos, trata-se de “não confundir liberdade com ‘não importa o quê’”. Sendo isto algo que parece possível essencialmente em contextos em que há uma concepção geral de que os processos e produtos são coletivos.

3.4.

Valorização e incorporação dos conhecimentos prévios

Conforme temos discutido até aqui, importa compreender que a proposição de relações (sumariamente chamadas) de horizontais tanto no contexto de performances de improvisação quanto de relações entre pessoas se dá através da busca por um estado de iguais. Neste sentido, as diferenças não devem ser ignoradas. O que se pretende é que indivíduos possam se relacionar enquanto “iguais na diferença”. Assim, do mesmo modo que a abertura às estratégias de compensação de assimetrias, certa radicalização – sem deixar de lado eventuais estratégias como a “diagonalidade” – da horizontalidade entre (a escassez e abundância de) referências e saberes apresenta-se enquanto condição para aproximar-se destas igualdades. Conforme sugere Costa, é através do desejo, de uma ética da escuta e da pré-disposição para a molecularização dos rostos que biografias musicais distintas entre si podem conviver numa sessão de improvisação livre (FGD, p. 64, IC, p. 90, OEND, 282). “É necessário que cada um abra mão de seu mundo sonoro particular em favor de um novo mundo coletivo, inédito, inesperado e imprevisível.” (OEND, p. 282) A forma como é possível que [os pontos tangenciáveis entre imagens sonoras distintas] sejam evidenciados se dá pela atomização, ou molecularização segundo

98

conceito de Deleuze, do estado biográfico de cada músico, encontrando o universal pela menor parte comum. Este desmonte ou desmanche da biografia individual pelo recorte ou seleção, no sentido de dar coesão às ações musicais, permite uma reorganização que conecta as experiências constituindo então uma biografia comum designada. (FALLEIROS, 2012, p. 145)

No âmbito da socialização dos saberes diversos e colaboração entre estes – em busca do estabelecimento da horizontalidade, conforme propôs o AABC através da ideia de relações diagonais – faz se necessário equilíbrio entre as ideias das pessoas que possuem certo domínio e daquelas inexperientes. Este tipo organização também só se dá através do desejo e, possivelmente, até mesmo de uma molecularização. Seria através da “menor parte comum” que se reconhece que as propostas dos/das novatas são dignas de serem experimentadas e aprofundadas tanto quanto as propostas calcadas em conhecimentos já fundamentados.

3.4.1. Estado biográfico (des)estratificado durante a performance como desenvolvimento de técnica estendida

Não podemos ser o que não somos, mesmo assumindo um papel, ou realizando a performance. Ninguém está livre do que é, portanto a qualquer improvisação como criação, deve partir de experiências pessoais, convicções estéticas e memórias em conjunto. [...] A biografia de um músico é uma condição da qual ele não pode se livrar porque, a partir dela é que esta improvisação estabelece um local para o seu discurso. Mesmo que ele negue a sua história, este posicionamento é justamente o que revela que ele teve esta história, esta biografia. (FALLEIROS, 2012, p. 141)

É importante considerar que, por um lado, tocar um instrumento “bem” talvez seja um empecilho para a realização da improvisação livre, visto que, tocar “bem” quer dizer tocar bem dentro de um idioma. Isto é, estes se escondem nas técnicas. Neste sentido, a curiosidade semelhante à de uma criança que “não tem tradições para superar”100 pode ser muito produtiva para o processo criativo na improvisação livre (IC, p. 97, PMA, p. 2, 13, 14, 15, OEND, p. 282; GOLDMAN, 2006, p. 27). Conforme relatou e analisou (sem conhecimento da bibliografia), a performer Natália Francischini se sentiu em condições muito favoráveis de se desenvolver na improvisação livre quando foram iniciadas as práticas do C³, visto que já fazia alguns anos que havia pausado seus estudos de guitarra e pouco se lembrava, por exemplo, de acordes ou escalas. Assim, podemos considerar que ela se encontrava numa situação semelhante à proposta de “optar

100

Citação direta de Emma Goldman.

99

por abandonar completamente sua técnica instrumental e reaprender seu instrumento, como ocasionalmente ocorre na música de Lachenmann” (DEL-NUNZIO, 2011, p. 192). Por outro lado, conforme (mais tarde) Natália Francischini se deu conta, também existe, para a improvisação livre, um lado proveitoso de saber tocar um instrumento “bem”. Por exemplo, a familiaridade com este possibilita o controle de sutis nuances sonoras (IC, p. 97, MEM, p. 162). Após os primeiros encontros do grupo, sobre esta outra faceta, ela declarou que: “Às vezes não sei [mais] o que fazer mais na guitarra. Sinto que agora falta um pouco de habilidade idiomática ou mudar de instrumento”. A ideia do mergulho no nível molecular das linguagens musicais pode ser facilmente embasada a partir da proposta de escuta reduzida ou da consciência (da análise) espectral. Contudo, estes são conhecimentos um tanto quanto específicos e complexos. Sendo assim, cabe refletir sobre maneiras de alcance do nível molecular que não pressuponham o conhecimento dos conceitos e práticas em questão (ainda que dialoguem com estes). Deste modo, sugiro que as referências que apresentei acerca da minha biografia musical são uma maneira de tratar de características moleculares dentro das linguagens (sem a necessidade do conhecimento da ideia de escuta reduzida). Ainda que, no rock, haja acordes, cadências, escalas e ritmos recorrentes, minha proposta foi a escuta e apropriação de outros elementos característicos. Sendo estes, os que possuem parâmetros

(principalmente

as

alturas)

pouco

determinados

previamente,

entre

outras

características. Já a situação que será relatada a seguir sobre Natália Francischini, não se deu através dos exemplos que apresentei. Porém, pode-se dizer que ela ocorreu num nível molecular conforme o conhecimento da improvisadora em questão: sem o conhecimento teórico da análise espectral (embora lide com ela auditivamente). Sobre as performances do encontro 5, em que já havíamos discutido sobre escuta reduzida, houve uma ocasião que, em especial, parece possível falar em molecurização e até em uma espécie de “desmolecularização” (estratificação) da biografia musical de Natália. Antes do início do encontro em questão, a performer relatou-nos que naquela semana havia ouvido álbuns de uma banda de heavy metal chamada Eletric Wizard, chegando a dizer que “’queria’ afinar a guitarra bem grave, como eles fazem”. Ao longo das performances daquele dia a improvisadora utilizou-se de sons consideravelmente graves. Por um lado, devemos notar que a performer, em algum grau, planejou (em intenção) que, usaria um elemento específico durante as performances. Por outro, ainda que tenha havido certo planejamento, o fato de (parecer possível considerar) que sua biografia foi molecularizada, possibilitou, através de um processo de estratificação, o desenvolvimento de uma técnica estendida, conforme esclarecido a seguir. 100

A performer se ateve ao que poderíamos chamar de uma molécula da linguagem musical em questão e presente em seu estado biográfico (no sentido de sua biografia conforme estava naquele momento): a afinação da guitarra mais grave do que a afinação tradicional (e com efeito overdrive). Natália não preocupou-se em saber quais notas tocaria, ela apenas quis levar uma sonoridade específica para a performance. Conforme relatou em conversas pessoais, a performer não sabia tocar as músicas da banda Eletric Wizard, tampouco sabia qual era a afinação de suas guitarras. O que, intuitivamente, devido a sua vivência como guitarrista e ouvinte de heavy metal, ela sabia é que as músicas em questão não haviam sido gravadas com a afinação tradicional, que possui um MI (E2) como nota mais grave. Se, ao invés de levar para a performance apenas a característica (molecularizada) em questão, ela houvesse se utilizado de sua biografia musical ainda estratificada (por exemplo, tocando os riffs da banda em questão), possivelmente a interação com este material se daria apenas no âmbito da “concordância cega” (ou da instauração de um idioma). Assim, no nível molecular, ela pôde, a partir de sua biografia musical, interagir de maneira não-impositiva ou polarizadora. Já uma “desmolecularização” (estratificação) teria se dado ao longo do desenvolvimento de uma das performances do encontro 5. Assim como no caso do “solo de guitarra na calça”, podemos dizer que a performer descobriu uma técnica estendida através do aproveitamento do acaso. Em busca de sons graves como os que tinha em sua memória, Natália Francischini afrouxou os bordões da guitarra. Contudo, algo não pôde ser previsto: “acidentalmente” (sem ter planejado) ela afinou as cordas mais graves (originalmente E2 e A2) em alturas muito próximas entre si, gerando batimentos – os quais, fixando a afinação, ela manteve em uma pulsação facilmente perceptível – que eram intensificados pelo efeito overdrive. Assim, ela passou a explorar este material através de diferentes intensidades e realizando efeitos de crescendo com o potenciômetro referente ao volume (ganho) do instrumento. Ao final deste encontro, perguntei à performer se ela possuía consciência do que havia acontecido fisicamente com o som naquela situação (batimentos). Ela afirmou não possuir este conhecimento. Assim, fiz-lhe uma breve explicação e, em seguida passamos algum tempo escutando e gravando a sonoridade em questão. Cabe também lembrar que neste encontro a performer havia sugerido que “escuta reduzida é como ouvir os pixels”. Não é afirmável a relação entre a sugestão sobre o conceito e sua execução musical, porém digna de especulação. Sobre o desenvolvimento da técnica estendida em questão, podemos dizer que, o fato não é negar ou escapar das biografias, mas, antes reinventá-las e reintegrálas a outra forma de organização para o sonoro ao invés do abstrato. Neste processo de reinventar biografias, encontramos sempre um ideal de coerência integradora

101

que exige pontos comuns entre elas para que ocorra o jogo (modalidades de ação, redundância, repetição) e pontos divergentes para que ocorram desvios (caos, imprevisto, risco) (FALLEIROS, p. 143).

3.4.2. Relações diagonais com tendências horizontais no contexto da proposição de performances

Num modo geral, de acordo com o que apresentamos até aqui, pode-se compreender que a minha relação de facilitador ou orientador com os improvisadores e improvisadoras se dava em uma diagonal como propôs o coletivo anarquista AABC. Esta relação – assim como das demais relações de proposição de performances que também apresentarei enquanto diagonais – considerava, sumariamente, que “novatas devem respeitar as propostas das mais experientes, mas devem ser levadas em consideração já que sua experiência desconhecida pode ser inovadora.” Em essência, o convite feito aos membros do C³ deixava claro que eu não seria uma espécie de autoridade, tampouco um dirigente das práticas do grupo. No que diz respeito às tomadas de decisão, ainda que todos e todas tivessem voz, havia certa abertura às minhas ideias, por exemplo, em relação ao cronograma, visto que havia intenção coletiva de contribuir com a presente pesquisa (apesar de, comumente serem enfatizados, claro, outros fins). Sobre a compreensão da prática da improvisação livre, minhas singelas experiências anteriores, de algum modo, concediam-me um tipo de voz diferenciada. Sendo que, diferenciada não queria dizer mais importante: buscávamos que minhas colocações a respeito da improvisação livre não possuíssem mais valor. Neste sentido, não só (explicitamente) fazia parte da minha proposição, como está implícito no pensamento da improvisação livre – também conforme temos constatado ao aproximá-la do anarquismo e seus íntimos – que a origem dos saberes e das ideias não seria um fator de hierarquização prévia. Isto é, ainda que eu fosse (praticamente) a única pessoa que possuía leituras acadêmicas sobre a improvisação, por volta de três anos de prática e me preparasse referencialmente para cada encontro, havia receptividade coletiva com as ideias de todos e todas, sendo que – conforme já exposto – algumas vezes estas eram decisivas para o entendimento de conceitos, etc. A função “diferenciada” (que claro, não era exclusiva, mas principalmente minha) era, por exemplo, relatar experiências, citar autoras e autores, etc. Não podemos deixar de lado a ideia de que, ao menos como propôs o AABC, as relações diagonais com tendências horizontais são parte de uma busca maior por relações horizontais. Desta 102

maneira, parece coerente que espaços e coletivos que procuram se organizar horizontalmente “[multipliquem] os polos ao invés de monopolizar”. O C³ (enquanto coletivo, isto é, todas as pessoas, consensualmente) nunca declarou afinidade com o anarquismo ou a autogestão. Contudo, sumariamente, a ideia de tomada de decisões por consenso e de estabelecimento de relações horizontais foram, no geral, um valor comum. Neste sentido, cabe constar que (implicitamente e explicitamente) foi extremamente importante para o grupo a construção de espaços e situações com outros “pólos diagonais”. Ou seja, eram necessárias atividades em que eu não fosse nem a principal referência nem o proponente. Sendo que, cabe lembrar, de início eu havia sugerido um único dia para todas as propostas do grupo. Porém, fez muito mais sentido que aqueles e aquelas que elaboraram propostas de improvisação tivessem um encontro inteiramente dedicado a isto. Assim, empiricamente, estes “pólos” foram construídos. Sobre a ocasião da realização da proposta de improvisação de Caio Vinícius, cabe constar que quase nenhum(a) de nós possuía experiência em histórias de RPG e nenhum(a) conhecia Vampiro: a máscara. Assim, os textos fornecidos pelo proponente foram a nossa única referência acerca daquilo que era o ponto de partida para a performance em questão. É evidente – assim como, por exemplo, a integração de “sistemas totalizantes”, na música, não é tão prejudicial à horizontalidade – que ninguém estava verdadeiramente prejudicado com este maior “poder” do proponente (ele podia elaborar os textos em questão como preferisse, sendo pouco passível de questionamento, visto que não tínhamos referências). Contudo, durante esta performance, possivelmente Caio Vinícius (que, inclusive, é o narrador da história de seu grupo de amigos e portanto a conhece em seus mínimos detalhes) tinha maior consciência acerca de questões como: o (longo) histórico de cada personagem, os valores de cada clã, etc. Estávamos evidentemente num contexto lúdico e voluntário, porém, de algum modo, talvez o proponente pudesse fruir e compreender esta performance de uma maneira “privilegiada” (algo que, ressalto, não era prejudicial a ninguém, visto que se trata de uma improvisação e não da participação política, por exemplo. Contudo...) Neste sentido, notamos uma verticalidade da performance que não pode ser removida nem ignorada. Por outro lado, o efeito diagonal estava dado por fatos como: o performer se esforçou em situar-nos (sinteticamente) no “sistema” (universo) dos vampiros e vampiras; ele nos deu diversas opções de escolha de personagens. Ainda que não tivéssemos conhecimentos aprofundados, nossas escolhas se dariam a partir de algum conhecimento para além das nossas “funções” específicas. Ainda que não exercêssemos diversas “funções”, conhecíamos um pouco dos “processos” (materiais prévios), não limitando nosso conhecimento, por exemplo, a um personagem decidido pelo proponente. 103

Já no caso da proposta de Natália Francischini, podemos compreender a “diagonalidade” de outra maneira. Sendo ela a única graduanda em artes plásticas entre nós (e quem mais dominava os materiais que havia nos disponibilizado), na proposição de performance, ela compartilhou alguns saberes “básicos” sobre como utilizar os materiais de esculpir ou misturar tintas que não conhecíamos. Entretanto, a proponente enfatizou que deveríamos “tentar transportar a ideia da improvisação livre para as artes plásticas”, sem muitos outros esclarecimentos. Neste sentido, alguns(mas) de nós acabamos nos utilizando de “técnicas estendidas” (em relação àquelas que Natália havia exposto). Sendo estas responsáveis, como esperado, por gerar resultados plásticos inusitados, contudo, algumas vezes, também responsáveis por danificar as ferramentas. Considerando a exposição sobre as técnicas e a proposição de expandi-las, podemos inferir que estava sugerido certo equilíbrio entre as duas possibilidades. Os saberes daqueles e daquelas que não dominavam os materiais não estavam rejeitados. Estes, (ainda mais) empiricamente (do que as técnicas tradicionais), nos proporcionavam descobertas que, possivelmente, com sua experiência e domínio técnico, Natália Francischini não tendesse a explorar. Já no caso da proposta de Carlos De Nicola, assim como nas ocasiões de realização de jogos propostos por Max Schenkman ou pelo CI, havia o pressuposto de que procuraríamos seguir as instruções. Entretanto, conforme relatado – e previsto pela proposta da improvisação livre –, “[havia] algumas regras a serem seguidas, [mas] todos [estavam] ‘livres’ para interpretá-las, [o que possibilitou] o surgimento de novos caminhos interpretativos a serem desenvolvidos ou não pelos membros do grupo.” Ainda que houvessem as instruções elaboradas pelo proponente, nossos “deslizes” acerca destas não foram impeditivos para a realização das propostas. Nossas ações não previstas pelas regras foram “antropofagizadas” pelos jogos. Por mais que quem (previamente) dominasse (compreendesse a fundo) as instruções em questão fosse o proponente, nossas “inexperiências” e “incompreensões” (havíamos acabado de conhecer as propostas) destas tiveram igual poder de condução (e transformação das propostas) das performances. Em suma, podemos considerar que a construção de uma organização com tendência horizontal, entre várias características, se deu pela construção de “pólos diagonais” diversos e não por uma tentativa de ignorar as diferenças, preferências e conhecimentos específicos. Os “pólos” em questão foram (autonomamente) construídos segundo afinidades de cada um(a). Neste sentido, nossa organização acolheu materiais, práticas e áreas de conhecimento (originalmente) nãomusicais que faziam parte da história de cada um(a). Através desta abertura, radicalizamos que cada proponente pudesse se envolver com o grupo segundo suas “próprias demandas, desejos, capacidades, gostos, talentos e experiências diversas que tiveram em suas vidas”. Tratou-se de dar 104

voz (também) às características não-musicais dos rostos dos/das performers, as quais, em alguns casos, podem ser um tanto mais vivas (por serem, por exemplo, suas principais ocupações) e até “menos idiomáticas” (por não serem imediata e diretamente associáveis com linguagens musicais pré-existentes). Também convém constar que, num primeiro momento, eu lhes propus que experienciassem (e se adequassem a)o modo de (pensar e) fazer música da improvisação livre. Já no contexto da execução de suas propostas, as práticas específicas e selecionadas que compõem seus rostos (poesias, histórias de RPG, produção de artes plásticas) fizeram com que a própria proposta da improvisação livre acaba-se – em níveis diferentes para cada proposta – por se desestratificar e adequar-se às situações desenvolvidas.

3.5.

Análise de um trecho de performance sob o ponto de vista do diálogo

Para encerrar este capítulo, apresento uma breve descrição minutada de um trecho (uma seção, eu diria) de 4’41” da (longa) performance realizada no primeiro encontro do grupo. Para tal, procuro me utilizar de algumas referências sobre a ideia de diálogo ou conversa. Sendo estas algumas já apresentadas ao longo do trabalho e outras ainda que não o foram. A gravação deste trecho pode-ser vista e ouvida neste link: < https://www.youtube.com/watch?v=RNiZVSczgu0 > Neste trecho são tocados os instrumentos: guitarras distorcidas, por Caio e Natália; pífanotsi (instrumento de afinação temperada desenvolvido por Max Schenkman inspirado principalmente no pífano e que possui uma membrana como o tsi oriental) por Stênio; prato tipo crash, por Thaís; e violão, por Carlos. O trecho em questão inicia-se (0’00”) com Natália descobrindo (e explorando) uma sonoridade através do ato de esfregar as cordas da guitarra em sua calça. Até a marca dos 0’20”, – além de tentativas de Carlos (quase silenciosas) de imitar o gesto em questão, que, como diz Costa “não foram [ouvidas] ou [entendidas]” principalmente devido a uma assimetria entre a projeção da guitarra e do violão, e da diferença dos tecidos das calças; e sons feitos acidentalmente por Thaís com baquetas, os quais também não parecem ter surtido efeito na produção sonora de Natália – ouve-se apenas os “passeios” (com variações: longo e curto, rápido e lento, inclinando o braço para cima e para baixo, mais abruptamente e sublimemente) do instrumento pelo tecido, o que produz sons consideravelmente audíveis. Dos 0’21” aos 1’24”, alguns eventos: a) a exploração da guitarra na calça se mantém, tendendo a maior intensidade e densidade (“rítmica”, das durações) conforme os demais instrumentos fazem-se presentes; b) Carlos passa a explorar sonoridades com 105

uma caneta e o violão, descobrindo, inclusive, um (aparentemente buscado) som semelhante ao da “guitarra na calça”, contudo, ele utiliza a caneta predominantemente como slide (atacando com a mão direita, o que gera alturas mais definidas do que quando apenas raspava a caneta); c) na marca dos 0’32” Thaís se soma à performance ao experimentar gestos circulares no prato, chegando a se utilizar de baquetas distintas; mais enfaticamente a partir dos 0’48” a performer cria uma textura contínua que ruma em direção a sonoridades de maior intensidade, a qual vai se transformando conforme, com a baqueta, ela faz movimentos circulares que caminham do centro para as extremidades do prato; a última destas sonoridades consistiu em raspar (ainda circularmente) uma parte áspera da baqueta áspera nas laterais do prato. Aos 1’25” (acidentalmente?) Caio ataca um E2 curto e (aos 1’37”) faz alguns barulhos (acidentais?) ao mover pedais pelo chão. Talvez estas intervenções tenham sido como “comentários”sobre “assuntos” fora da pauta (ou mesmo “resmungos” e “pigarros”) feitos por alguém que não está compenetrado ou compenetrada na “conversa”. Contudo, ainda assim, estes parecem ter surtido, respectivamente, os efeitos: a) Thaís faz dois silêncios curtos: aos 1’25” e aos 1’28” (que não haviam ocorrido desde que iniciara a textura contínua); b) logo Natália encaminha seu discurso de experimentação com o tecido da calça ao final (1’40”). Entre 1’41” e 1’46”, ainda com os últimos sons feitos por Carlos com a caneta-slide, temos Caio e Thaís preparando gradativamente um ambiente sonoro completamente novo. Talvez possamos compreender que, após o silêncio de Natália, ele e ela estavam “pedindo a palavra” a Carlos. Aos 1’47” inicia este novo ambiente. Caio toca notas agudas em movimento cromático descendente, porém com um efeito especial, um cry baby (uma espécie de wha wha com timbre que imita a voz humana) automático (que não tem sua modulação controlada pelos chamados “pedais de expressão”, mas sim programadas). As modulações feitas pelo efeito em questão influenciam Thaís, que – com gestos rápidos e curtos que lembram a maneira de segurar um lápis ou pincel – passa a “rabiscar” o prato com a ponta de uma baqueta (posteriormente, Caio considerou que ela estava “pintando o prato”). Ela cria uma textura que parece estar sincronizada com o metro sugerido pelo efeito da guitarra. O ambiente logo é acrescido de “arpejos” (rasgueados?) – de durações longas, o que fizera o metro que era executado soar com uma subdivisão – de (todas as) cordas soltas feitos por Natália (1’52”), que aos 2’00” já havia silenciado Caio e feito com que Thaís passasse a tocar menos. Soou como se ela achasse que já sabia o que seria (estava sendo) “dito” e os interrompido. Mesmo que tenha realizado alguns efeitos de crescendo com o potenciômetro de volume/ganho, Natália ocupou com a guitarra quase todo o espectro, dificultando a escuta de uma espécie de “batida de samba” – que continha tríades e floreios melódicos – tocada por Carlos (algo que pode 106

ser visto na gravação) (dos 2’00” aos 2’34”). Junto ao longo decay do último ataque de Natália e de uma pontual uma melodia de bordões tocada por Carlos (2’35” até 2’37”) temos os primeiros indícios de um duo entre Thaís e Stênio, o qual se inicia aos 2’38”. Numa espécie de primeira parte do duo (de 2’38” até 2’55”), Thaís se utiliza de um material sonoro muito semelhante aos “rabiscos” do ambiente sonoro anterior. Contudo, (se imaginarmos a baqueta como uma caneta) estes estão sendo permeados por “pingos” ou “pontos” que fazem o prato reverberar um pouco mais (pois a baqueta encosta menos no prato), gerando sons mais texturais: menos precisamente rítmicos do que os “rabiscos” anteriores. Com estes, o pífano-tsi de Stênio dialoga através de sons curtos de alturas (no geral) pouco definidas: vocalizações que podem ser grafadas como ft (de “fitness”) e que resultam em toques abruptos da ponta da língua com o bocal do pífano gerando ataques que lembram a consoante p; uma espécie de “sugar” (que faz com que a vibração da membrana lembre a vibração de uma palheta). Como se fosse uma segunda parte do duo (de 2’56” a 3’15”), Thaís continua a “rabiscar”, porém se utilizando de sua outra mão para segurar (prender) o prato. Desta vez, ela alcança outro extremo das possibilidades sonoras dos (variados) “rabiscos”: a escassez de reverberação do prato. Sob o olhar do diálogo, pode-se dizer que ela estava mostrando um segundo ponto de vista (que se opunha a um primeiro) de um mesmo “assunto” (o qual fora apresentado superficialmente para “concordar” com Caio no ambiente sonoro criado anteriormente pelos dois). Convidado a dialogar com o “outro ponto de vista”, Stênio integra sonoridades feitas com sopros rápidos em f aos ataques em ft’s que já vinham sendo realizados. Ele e ela parecem “se entender”: após as sonoridades distintas e complementares da primeira parte, na segunda, fora construído uma espécie de “uníssono de textura”. Com o domínio de uma nova técnica (soltar e segurar o prato) Thaís finalmente apóia uma de suas baquetas em uma estante para que possa ter uma mão livre e realizá-la com mais fluência. Assim, (segundo seus planos ou não) lhe é concedido um momento solo (de 3’15” até 3’50”). Neste, após um breve momento inicial de “rabiscos” quase inaudíveis e a marcação de um metro (que inaugura o gesto que será explorado a seguir) ela inicia um ciclo de gestos: uma quantidade não definida de batidas (não mais “rabiscos”) com a ponta da baqueta (agora segurada de outra maneira) enquanto a outra mão segura o prato e uma única batida “longa” (espaçada) com o prato solto. Temos assim uma série: sons curtos e um único som longo. Os demais parâmetros (inclusive a quantidade de sons curtos, que se inicia com dois, aumentado gradativamente até seis, quando se cria razoável estabilidade) são explorados, havendo uma tendência ao acelerando. O novo “assunto” contava com as características de oposição dos dois “pontos de vista” anteriores: o prato

107

segurado e o prato solto. Poderia ser um desdobramento do que havia sido desenvolvido. Contudo, desta vez, as reações foram outras. Aos 3’51” Stênio passa a tocar trinados em fortíssimo oscilando-os pela série harmônica. Ele e Thaís seguem com estes materiais até um silenciamento quase sincronizado após a breve realização de sons longos aos 4’26’’. Ainda que a dinâmica forte pareça unificar os dois materiais, eles não pareciam se complementar ou construir uma mesma textura. Levando para o âmbito do diálogo, soa como se o pífano-tsi se colocasse para demonstrar pouca satisfação com a recontextualização dos dois pontos de vista, os quais, outrora, haviam gerado relações de mais “concordância” entre Stênio e Thaís. Já o silenciamento quase sincronizado, soa como se tivessem desistido conjuntamente de conflitar suas “opiniões” divergentes: uma abstenção. A “pauta” pode ter sido adiada. Cabe constar que a entrada de Stênio gerou uma intervenção pontual de sons graves feita por Caio (3’53” a 3’58”), além de a entrada de Carlos (a partir de 3’53”) com ritmos percutidos no tampo e na lateral do violão e, eventualmente, sincronizados com falas (“tá tá tá”). O final do trecho (de 4’27” a 4’41”) foi realizado por Carlos que prosseguiu (sem a voz) com ritmos percutidos até um diminuendo. Sob a ótica do diálogo, talvez o pífano-tsi tenha cativado (de início) a guitarra e o violão, provocando sonoridades densas. Contudo, a guitarra logo se absteve (por já não ter mais o que dizer sobre aquele “assunto” ou por ainda não ter uma “opinião” formada?), enquanto que o violão, através do convite do pífano-tsi desenvolveu e seguiu com seu próprio discurso, quase independentemente do “conflito” do pífano e do prato.

108

Considerações finais: Pela construção de relações horizontais no contexto da educação musical (e nos demais contextos)

Acreditamos que, através deste trabalho, contextualizamos algumas reflexões sobre a busca de relações horizontais no contexto do fazer musical coletivo, mais especificamente da improvisação. Assim, dadas inúmeras situações de educação musical existentes, convém, de acordo com Teca Alencar de Brito, lembrar que “a música não é mais importante do que as pessoas. A música existe porque existem pessoas, e não o contrário”. Cabendo, deste modo, considerar, primeiramente, que nenhuma ação coercitiva pode ser justificada pela busca de um resultado musical. O mais significativo na educação musical é que ela pode ser [...] [uma] possibilidade de atingir outras dimensões de si mesmo e de ampliar e aprofundar seus modos de relação consigo próprio, com o outro e com o mundo. Essa é a real função da arte e deveria estar na base de toda proposta de educação musical. (FONTERRADA, 2008, p. 117)

Assim, sugerimos que o desenvolvimento de outras dimensões de si e de relações com o mundo proporcionado pela educação (musical) pode ser (mais) transparente, sincero e respeitoso com educandos e educandas (e pessoas em geral) quando se atenta para a não-reprodução das relações de opressão tanto nos níveis mais micro quanto mais macro e tanto daquelas mais explícitas quanto das que nos passam despercebidas. Preocupando-se em possibilitar, sugerir, desenvolver e encorajar as relações de não-dominação. Não estou dizendo que todo mundo tem que ser anarquista e não acreditamos nisso também. Não queremos um mundo anarquista, mas queremos um mundo em que princípios de justiça, de apoio mútuo, de horizontalidade e de autogestão estejam presentes. 101

Conforme sugerido pela citação em questão e também encontrado em autores e autoras que citamos neste trabalho102, a educação e atuação cotidiana (nos mais diversos contextos) pode ter o valoroso papel de apresentar possibilidades àquelas e aqueles ao nosso redor. Especificamente no contexto da educação libertária e da improvisação livre, convém insistir que jamais se trata de obrigar, induzir ou conduzir, mas sim “autorizar”. O que em outras palavras consiste na busca por 101

Uma fala de Mix presente no documentário “Casa da Lagartixa Preta ‘Malagueña Salerosa': 10 Anos de Experiências Anarquistas” (2014, Produção: Anarco.Filmes, Do Morro Produções & Ativismo ABC, 70 Minutos), estreado na 3º edição do Festival do Filme Anarquista e Punk de São Paulo realizado no Tendal da Lapa. 102

Koellreutter, Silva, Dupont, Ferrer.

109

uma “desproibição”. Trata-se de “desproibir” as pessoas (ou convidá-las à conquista ou autoconcessão) a questionar (e eliminar, se desejarem) as relações de poder. “Autorizando” (este termo perde um pouco o sentido nesse contexto; justamente por isso, falamos mais em “desproibir” do que em autorizar) as pessoas a se relacionarem mais horizontalmente, procurando contribuir para que as pessoas possam conquistar em si mesmas e coletivamente a autorização social para questionar, transformar, se desviar e (até, quando desejado) buscar eliminar os sistemas e tudo aquilo que é instituído (na esfera micro e na esfera macro). Neste trabalho também procuramos sugerir que a improvisação é uma (das, possivelmente, várias) prática(s) musical(is) que (a depender, evidentemente, das suas maneiras e contextos de realização) possibilita vivências e reflexões acerca, por exemplo, da igualitaridade dos saberes e do direito à voz compartilhado e gerido coletivamente. Sendo que, para nós, talvez esta prática possa contribuir com o conhecimento da organização social-comunitária baseado nestes princípios. Contudo, esta prática por si só não consegue apresentar ou sugerir (lembrando que, trata-se sempre da apresentação de possibilitades, da “desproibição”) a busca pela horizontalidade de um modo amplo. Tornando-se assim uma preocupação nossa que, na medida que desenvolve-se aberturas para que “os sons [tenham] direitos iguais” (e outras ideias semelhantes), não sejam deixadas de lado as possibilidades de construção de horizontalidades entre pessoas. Em suma, importa para nós que os “ruídos”, as “desafinações”, aquilo que é “distinto do métrico”, bem como todos os idiomas (desta vez, não-musicais) da sociedade (de cada comunidade) estejam “desproibidos” de participar daquilo que as “cadências perfeitas”, o “metro”, a “afinação temperada” costumam ter como privilégios. Lembrando (sempre) que a reestruturação destas assimetrias “envolvem, também, as esferas do agir e do falar”, enfim, da micropolítica, a qual somos todos e todas igualmente responsáveis cotidianamente.

110

BIBLIOGRAFIA

ALVES, Munís. Os anarquistas não votam! Por quê?. Publicado em 07 de dezembro de 2012. In: Tempos Safados: História, historiografia, filosofia e contemporaneidade. Disponível em: http://tempossafados.blogspot.com.br/2012/09/os-anarquistas-nao-votam-por-que.html. Acesso em: 01, jan. 2015. ATIVISMOABC, Coletivo. Gestão de espaços autônomos. 2014, Santo André (SP). Zine publicado independentemente. ______________, Coletivo. Princípios do coletivo. 2014ª, Santo André (SP). Zine publicado independentemente. AUTOGESTÃO-DA-ECA, GT de. Já pensou https://gtautogestaoeca.wordpress.com/2014/10/23/ja-pensou-autogestao/

autogestão?

2014

_______________________________________. Era autogestão e eu não vi: características autogestionárias de organização que passam despercebidas. 2014a https://gtautogestaoeca.wordpress.com/2014/11/05/era-autogestao-e-eu-nao-vi-caracteristicasautogestionarias-de-organizacao-que-passam-despercebidas-formacao-do-grupo-de-trabalho-deautogestao-da-eca/ BAÉZ, Rodrigo. Improvisação: seu percurso histórico nas práticas musicais do ocidente e sua inserção nos processos de formação musical. Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Departamento de Música da ECA-USP, São Paulo, 2011. BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia (excertos). BÉDOUIN, Jean-Louis et al (2001). Declaração prévia Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: COÊLHO, Plínio Augusto. Surrealismo e Anarquismo. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 3536. BELL, David. Improvisation as anarchist improvisation. 2014. Ephemera Journal. BERNAL, Anastasio Ovejero (2006). Anarquismo espanhol e educação. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 9-24. BRITO, Teca Alencar de. Koellreuter educador: o humano como objetivo da Educação Musical. São Paulo: Peirópolis, 2001. 2º edição, 2011. Música na Educação Infantil. São Paulo: Peirópolis, 2003. Edição de 2006. __________________ Criar e comunicar um mundo novo: as ideias de música de H.J. Koellreutter. 2007. Dissertação de mestrado apresentada à PUC-SP, São Paulo, 2004. CALDAS-COULTHARD, Carmen Rosa. Caro Colega: exclusão lingüística e invisibilidade. Revista Discurso & Sociedad, Vol 1(2) 2007, 230-246.

111

CAMPOS, André – Da palavra ao gesto instrumental: uma proposta de improvisação livre. In: XXIII Congresso da ANPPOM, 2013, Natal (RN). ______________; JR., Carlos Menezes; CINTRA, Celso; TRALDI, Cesar; BARREIRO, Daniel; PEROBELLI, Mariene; ABREU, Santo; MANZOLLI, Jônatas (2011) – Diálogo entre música, audiovisual e movimento na performance de RUBRICAS. Artigo referente ao Performa '11 – Encontros de investigação em Performance da Universidade de Aveiro (MG). CRIMETHINC, Ex-workers br.protopia.wikia.com/wiki/Liberdade

colletive.

L

de

liberdade.

http://pt-

CODELLO, Francesco. (2006). A democracia direta na escola. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 77-85. CORPAS, Antón. Geometria, ideologia e geografia das relações de confiança: apontamentos sobre violência de gênero. Tradução: Editora Subta. In: Tesoura para todas: violência machista nos movimentos sociais. Editora Deriva. Porto Alegre (RS), 2013. P. 33-38. COSTA, R. L. M. (2003) - O músico enquanto meio e os territórios da livre improvisação. Tese apresentada para obtenção do título de doutor pela PUC/SP, 2003, São Paulo (SP). ________________ (2012) - A livre improvisação musical e a filosofia de Gilles Deleuze. Revista Per Musi, Belo Horizonte (MG), n.26, p.60-66, 2012. ________________ (2013) – Free improvisation: a way for the expansion of listening and technique for the contemporary performer. Palestra apresentada na segunda conferência internacional (PSN), Cambridge, UK. ________________.; IAZZETTA, Fernando; VILLAVICÊNCIO, C. (2013a) - Fundamentos técnicos e conceituais da livre improvisação in Keller, D., Quaranta, D. & Sigal, R., (eds.) (2013). Special Volume Sonic Ideas: Musical Creativity (Volume Especial Sonic Ideas: Criatividade Musical), Vol. 10. Morelia, Michoacán: Centro Mexicano para la Música y las Artes Sonoras CMMAS. Sonic Ideas, v. 10, p. 120. ________________. (2013) - Na Orquestra Errante Ninguém Deve Nada a Ninguém ou... Como Preparar um Ambiente Propício à Prática da Livre Improvisação. Revista Música Hodie, Goiânia (GO), V.13 – n.1, p. 278-286, 2013. ________________. Livre improvisação e pensamento musical em ação: novas perspectivas (ou na livre improvisação não se deve nada).. In: Silvio Ferraz. (Org.). notas.atos.gestos. Rio de Janeiro: 7 letras, 2007, v. , p. 143-177. ________________. A ideia de jogo em obras de John Cage e no ambiente da livre improvisação. Per musi, Belo Horizonte, n. 19, 2009, p. 83-90. ________________A ideia de corpo e a configuração do ambiente da improvisação musical. OPUS, Goiânia, p. 87-99. 2009. DEL-NUNZIO, Mário. Fisicalidade: potências e limites da relação entre corpo e instrumento em práticas musicais atuais. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Música da ECA-USP. São Paulo, 2011.

112

DUPONT, Cédric. (2006). Um novo sistema educacional durante a revolução espanhola. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 49-61. EDUCAÇÃO, Federação d(o/a)s trabalhador(e/a)s da (2006). Carta de apresentação, Plataforma e Um outro sindicalismo Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 107-112. ENGUITA, Mariano Fernández. A face oculta da escola: educação e trabalho no capitalismo. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas FALLEIROS, Manuel Silveira (2012) - Palavras sem discurso: estratégias criativas na livre improvisação. Tese apresentada para a obtenção do título de Doutor pela ECA/USP, 2012, São Paulo (SP). FERRER, Francesc. (2006). A renovação da escola. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 63-76. FERRER. Francesc. (2010) A renovação da escola. In. A escola moderna. Ateneu Diego Giménezes, Piracicaba. FERRUA, Pietro (2001). Surrealismo e anarquismo. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: COÊLHO, Plínio Augusto. Surrealismo e anarquismo. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 926. FERRUA, Pietro (2001) - Intencionalidade, Anarquismo e Arte. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: COÊLHO, Plínio Augusto. Arte e Anarquismo. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 9-26. FERRUA, Pietro. john cage: anarquista fichado no brasil. verve, p. 20-31. 2003 FERRUA, Pietro. o “testamento anarquista” de john cage: anarquista. verve, p. 219-277. 2004 FONTERRADA, Marisa Trench de Oliveira. De tramas e fios: Um ensaio sobre música e educação. São Paulo: Editora UNESP, 2005. FREEMAN, Jo. A tirania das organizações sem

estrutura,

1970.

GALLO, Silvio (2006). Ferrer e a pedagogia racional: um balanço, cem anos depois... In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 37-43. GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Record, 1980 3ª edição. GOLDMAN, Emma (2006). Francisco Ferrer e a Escola Moderna. Tradução: Felipe Corrêa. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 25-36. GUATTARI, Félix. As três ecologias. 1989.Papirus, Campinas. IGAYARA, Susana. (2009) Educação feminina e cultura musical entre mulheres: Brasil, 19001950. Anais do IX ANPEd-UFSCAR, São Carlos. ________________ (2012) As professoras de música da época de Villa-Lobos. 2º Simpósio VillaLobos. São Paulo.

113

LENOIR, Hughes. (2006). Considerações relativas à educação libertária. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 7176. MALATESTA, Errico. (2009) Anarquismo e Anarquia. Tradução: Felipe Corrêa. Editora Faísca. NEVES, José Maria. (1959) Cartas abertas aos músicos e críticos do Brasil. Revista Musical Chilena. RAGON, Michel. De Féneon a Dubuffet. Imaginário, 2001. RODRIGUES, Gabriela de Andrade. Educação anarquista em cultura visual. 2014, UNB, Brasília. ROMANI, Carlo. (2006). Da biblioteca à Escola Moderna. Breve história da ciência e da educação libertária na América do Sul. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 88-100. SAFÓN, Ramon. Franciso Ferrer: Racionalismo Combatente. Imaginário, São Paulo, 2001. SCHAFER, Murray. O ouvido pensante. Tradução de Marisa Trench de O. Fonterrada. São Paulo.Editora Unesp, 1991. SILVA, Doris Accioly. Anarquistas: criação cultural invenção pedagógica. Educ. Soc., Campimas, v. 32, 114, p. 87-102, 2011. SPINDEL, Arnaldo. O que é socialismo? Editora: Primeiros Passos, São Paulo. 1980 SPOLIN, Viola (1986) – Jogos teatrais na sala de aula. Tradução: Ingrid Dormien Koudela. Editora Perspectiva, São Paulo (SP), 2008. SPOLIN, Viola (1963) - Improvisação para o Teatro. Tradução: Ingrid Dormien Koudela, Eduardo José de Almeida Ramos. São Paulo (SP): Perspectiva, 1979. Título original:Improvisation for the Theater. TRABALHO, Confederação Nacional do (2006). A C.N.T. e a educação, 1936-1939. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: Revista Educação Libertária nº1. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 45-47. TRAGTENBERG, Maurício. Relações de http://www.scielo.br/pdf/ln/v1n4/a21v1n4.pdf>

poder

na

escola.

S/a,

s/p.

<

VALENTI, Cristina. Living Theatre e a cultura libertária. Imaginário, 2001, São Paulo. WALTER, Nicolas. O que é Anarquismo? s/a. Tradução Plínio Augusto Coêlho ZORKINE, Paul; BRETON, Roland; NIN, Serge (2001). O verdadeiro sentido de um encontro. Tradução: Plínio Augusto Coêlho. In: COÊLHO, Plínio Augusto. Surrealismo e Anarquismo. Editora Imaginário, São Paulo (SP). Pg. 67-69.

Bibliografia dos encontros do C³

114

COOK, N. - Fazendo música juntos ou improvisação e seus outros. Revista Per Musi, Belo Horizonte (MG), n.16, p. 07-20, 2000. Tradução Fausto Borém (UFMG). MURAIL, Tristan. A revolução dos sons complexos. Tradução José Augusto Mannis. Atravez, São Paulo. ESCÓRCIO, Ariane. A transformação de concepções em educação musical através da análise de livros didáticos brasileiros. Relatório apresentado ao PIBIC, 2013. PADOVANI, José Henrique; FERRAZ, Silvio. Proto-história, evolução e situação atual das técnicas estendidas na criação musical e na performance. Música Hodie, vol 11. 2011, p. 11-25. BIAZON, Stênio. Improvídeo: estratégias pedagogias para a improvisação livre a partir de imagens em movimento. Relatório apresentado ao PIBIC, 2013. ______________. Improvídeo: estratégias pedagogias para a improvisação livre a partir de imagens em movimento (parte 2). Relatório apresentado ao PIBIC, 2014. _____________. Improvisação livre a partir de vídeos: estratégias de realização, considerações e hipóteses. Artigo (a ser) apresentado no XXIII Congresso Nacional da ABEM, Natal, 2015.

115

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.