Aqui, como em \"Narcos\"?

June 24, 2017 | Autor: M. Trindade Viana | Categoria: International Security, Latin America, War on Drugs
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sexta-feira, 23.10.2015

Monica Herz, Manuela Viana e Ana Telles* Aqui, como em ‘Narcos’?

R

ecentemente, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (SESEG) anunciou que concluiu acordo de cooperação com a Drug Enforcement Agency (DEA). O nome da agência norte-americana é de difícil tradução ao português devido à palavra ‘enforcement’, que, em inglês, significa ‘fazer valer’ algo - neste caso, a legislação antidrogas dos EUA. Embora detalhes não tenham sido divulgados, o acordo com a SESEG prevê a instalação de um escritório da DEA na capital do Estado e a condução de investigações a fim de mapear as rotas do tráfico ilegal de armas. Os agentes da DEA também devem cooperar no esquema de segurança antiterror dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro. Com certa dose de sarcasmo, a dificuldade em traduzir a palavra ‘enforcement’ para o português poderia ser explicada pelos problemas em fazer valer a lei em países como o Brasil. Por essa lógica, nada mais ‘esperado’ do que um país como os EUA para auxiliar nessa árdua tarefa

de nos tornarmos um pouco mais civilizados. Persistindo nessa toada, o acordo assinado com a SESEG poderia engatilhar uma espécie de assepsia na polícia do Rio de Janeiro, uma vez que são inúmeras e incessantes as acusações de que é justamente pelas mãos da polícia que as armas - grande parte das quais, produzidas nos EUA - chegam às favelas cariocas. Essa lógica virtuosa de cooperação está presente com clareza na série ‘Narcos’. Contudo, um aspecto fundamental escapa a essa ideia: o mundo não é como se pinta ali - muito menos a DEA. Para além do espanhol de Wagner Moura, que infelizmente foi o principal aspecto comentado sobre a série, um elemento que merece ser debatido com atenção é a lógica de ‘bandidos vs. mocinhos’, reproduzida por meio da série. Nesta, os agentes da DEA são retratados como os donos da história (um deles, inclusive, é narrador onisciente da trama) e os donos das soluções para o narcotráfico na Colômbia (e não parte do problema). As operações são articuladas pela DEA e discutidas a portas fechadas com a embaixadora e membros da Agência Central de Inteligência (CIA) e do Exército dos EUA e, somente então, apresentadas à polícia colombiana. O fracasso das operações, por sua vez, é recorrentemente explicado pela corrupção dos policiais colombianos. O retrato pintado por ‘Narcos’, entretanto, deixa de fora elementos importantes da história que conta. A sé-

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rie sequer menciona escândalos de prostituição e abuso sexual de menores ligados a agentes da DEA na Colômbia, ou mesmo o movimento ‘filhos da DEA’, formado por mães cujos filhos com agentes da DEA nunca foram reconhecidos. Em uma das cenas, o protagonista e narrador fica surpreso e indignado ao ver o uso da tortura por policiais colombianos para a obtenção de informações - técnica ensinada por norte-americanos a policiais e militares latino-americanos durante décadas em centros de treinamento dos EUA. A cooperação da DEA com a Colômbia é antiga: Bogotá conta com um escritório de representação da agência desde 1975, contexto em que os EUA cristalizavam a narrativa das drogas como ameaça à segurança nacional do país. Os agentes da DEA não apenas participavam das operações antinarcóticos com a polícia colombiana, como também treinavam esses policiais. O trabalho da DEA concentrou-se nos chamados ‘blocos de busca’, formados por policiais selecionados pela DEA após treinamentos intensivos em áreas como inteligência, perseguição e infiltração. Os profissionais eram escolhidos não apenas pelo critério de excelência na consecução das atividades, mas também pela confiança que os agentes da DEA tinham nesses policiais. Esses blocos constituíram o carro-chefe do desmantelamento dos cartéis de Medellín e Cali. Nos anos 80, a administração Reagan conferiu autoridade e recursos ao Departamento de Defesa para em-

preender operações antidrogas, à época concentradas na região andina: o que passou a ser conhecido como ‘guerra às drogas’. Com isso, o combate ao crime passou a operar cada vez mais com uma lógica de guerra. As Forças Armadas da Colômbia - que incluem a polícia do país - contaram com treinamento e recursos da DEA, Departamento de Defesa, CIA e Agência Federal de Investigação (FBI). Em curso por mais de três décadas, a ‘guerra às drogas’ na Colômbia resultou em um dos maiores déficits humanitários da América Latina. No Rio de Janeiro, empreendemos nossa própria ‘guerra’. Há décadas, uma combinação de políticas sobre drogas exclusivamente repressivas, heranças autoritárias do regime militar e desigualdades sociais e raciais contribui para sermos reconhecidos, mundialmente, como um dos lugares mais violentos do mundo. Por aqui, construiu-se a ideia do traficante de drogas como ‘inimigo público número 1’ da sociedade, aquele que deve ser caçado a qualquer preço, mesmo que isso envolva fazer refém grande parte da população fluminense, moradora das favelas e periferias, que se vê cotidianamente na linha de fogo dessa guerra. Mais ainda, apostamos em uma estratégia que não tem funcionado: condenamos gerações inteiras de jovens brasileiros a morrerem de um lado ou de outro do combate, sem no entanto atingirmos as estruturas do tráfico de drogas, seja em escala nacional ou internacional. Nesse sentido, causa surpresa que o governo do Rio

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de Janeiro veja com bons olhos trazer a experiência da DEA ao Estado quando até mesmo nos EUA já se começa a discutir a viabilidade de alternativas não repressivas para lidar com as drogas ilícitas. Quatro Estados norte-americanos já legalizaram totalmente o comércio de maconha, com o objetivo de tirar da clandestinidade um mercado lucrativo que, na mão das máfias, torna-se combustível para violência e corrupção. Pelo lado da América Latina, concerta-se, pela primeira vez na história, um posicionamento regional contra a militarização das políticas sobre drogas na região, reconhecendo que ela causou mais prejuízos do que benefícios a todas as camadas da população latino-americana e urgindo por alternativas ao encarceramento em massa, à violência e à corrupção causa-

dos pela ‘guerra às drogas’. Em abril de 2016, a Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGASS) sobre drogas, provavelmente acolherá o posicionamento latino-americano, ou seja, reconhecerá que lidar com as drogas ilícitas sob o ponto de vista da guerra não tem dado certo. Por aqui, continuamos apostando em algo como ‘Narcos’. Mas a lógica ‘mocinhos vs. bandidos’, na vida real, não existe. Todos perderemos.

* Monica Herz é professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio ** Manuela Trindade Viana é pesquisadora do IRI PUC-Rio *** Ana Clara Telles é pesquisadora do IRI PUC-Rio

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