AQUI JAZEM AS SELVAGENS E SOLTAS IDEIAS SOBRE A EDUCA- ÇÃO ARTÍSTICA, E NÃO SÓ

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Tania Sophie de Freitas

AQUI JAZEM AS SELVAGENS E SOLTAS IDEIAS SOBRE A EDUCAÇÃO ARTÍSTICA, E NÃO SÓ. Relatório apresentado na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, para a obtenção do grau de Mestre em Ensino de Artes Visuais no 3º. Ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário. Professora Orientadora: Professora Catarina Sofia Silva Martins Professora Cooperante: Professora Leonor Soares Escola de Estágio: Escola Artística de Soares dos Reis Porto, Junho de 2016 1

Resumo

Encontra-se, nas vossas mãos, o presente objecto. Este oscila entre dissertação e relatório, quiçá um pouco de ambos e, por vezes, nada de nenhum. Digo-vos nada, talvez porque a escrita posta ao serviço dos meus pensamentos vos parecerá ganhar uma certa vontade própria, fruto das experiências e episódios que pontualmente vos relato aqui. Um carácter performativo, talvez, e sem dúvida rizomático, percebereis porquê. A apresentação formal e estética do mesmo recorre a uma organização que, ironicamente, vos fará recordar as forças de domesticação exercidas sobre o corpo dócil de um aluno, quer seja pela organização do caderno, quer pelos sumários que ditam e pautam as suas tarefas escolares; aspetos que procuram não só reavivar memórias mas instigar à provocação. Percorrerão, ao longo destas páginas, capítulos que entendo que colocam o aluno no centro, ainda que os discursos não encontrem sempre o seu ponto de partida nesta figura emblemática do ensino, carregada de pré-conceitos e rótulos. As conversas e desconversas, indagações sobre o lugar e não lugar deste, ramificadas e consolidados através de entradas do meu diário de bordo (caderno de estágio), relatos de caricatos momentos vividos na Soares dos Reis, a partir dos quais se formularam as questões sobre o ensino artístico, mais concretamente, sobre o Desenho, disciplina acompanhada ao longo do estágio, na qual a minha prática se foi vinculando. Este espaço da escrita culmina em reflexões e questionamentos sobre o modo como olhamos e idealizamos o Desenho, dentro e fora da ‘disciplina’, conduzindo-me a uma escrita ou desenho de uma possível anatomia. Por fim, as inevitáveis questões sobre o lugar ou não lugar do pedagogo, professor, que acompanharam todo este processo e vivências de estágio. A procura incessante, de posicionamentos, de espaços de subversão, de recriação, para a construção e crescimento, expansão não apenas de sujeitos-alunos mas de sujeitos-Homens, no campo do ensino artístico. Palavras-Chave: Educação artística; Anatomia do desenho; Ofício de aluno; Performativo; Disciplina; Identidades.

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Abstract

You have, in your hands, the present object. It oscillates between a dissertation and an internship report, maybe a little of both and sometimes nothing at all. I say anything, perhaps because you may notice that my writing, when put at the service of my own thoughts, acquires a certain own will, as a result of the different experiences and events that I will promptly explain along the following work. A performative character, perhaps, and certainly rhizomatic, you will understand why. The formal presentation and aesthetics of this work refers to an organization that, ironically, may make you recall the domestication forces acting on the docile body of a student, where their notebook organization or the class summaries dictate their school work; aspects that seek not only to revive memories but also to instigate provocation. Along these pages, you will find chapters that put the student in the centre, although arguments do not always find their starting point in this emblematic figure of education’s universe, rich in preconceptions and labels. Conversations, questions about the place of it, branched and consolidated through various entries of my logbook (internship notebook), moments lived in Soares dos Reis that gave life to different questions about art education, specifically on the drawing field, discipline that I accompanied along my internship, to which my practice is bonded. This writing object culminates in reflections and questions about the way we look and idealize drawing, inside and outside the 'discipline', leading me to a writing or drawing a possible anatomy. Finally, the inevitable questions about the place of the teacher, that accompanied this process and internship experiences. The incessant search of placements, subversion spaces and recreation for construction and growth, expansion not only of subject as students but also as individuals in the art education field. Keywords: Art Education; The anatomy of drawing; Student “job”; Performativity; Discipline; Identities

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Resumée

Se qui se trouve dans vos mains, est pemièrement, un object. Celui ci varie entre la nature de deux objects différents, une dissertation ou thèse et un rapport, peut-être un peu des deux, parfois rien. Quand je vous dis rien, c’est peut-être parce que l’acte d’écrire mis au servisse de mes pensés vous paraîtra gagner une libre volonté, fruit des experiênces et epísodes que de temps en temps apparaîtront dans ce texte. Un carácter performative, peut-être, et sans auqun doute rizhome, que j’èspere vous reconnaîtrai. La présentation formelle et estéthique du même recours à une organisation qui, ironiquement, vous fera revivre les forçes de domestication exercées sur le corps docile d’un élève, soît par l’aspect organisateur du cahier d’élève, soît par les leçons qui dites et introduissent les tâches scolaires; des aspects qui cherchent non seulement à réaviver des mémoires comme aussi à susciter la provocation. Vous voyageraient, au long de ces pages, à l’intérieur des chapitres qui positionne l’élève au centre, même si les discours ne trouvent pas leurs débuts sur cette figure emblématique de l’éducation. Les conversations, aventures et mesaventures, questionements sur la place qu’occupe l’élève, consolidées par les extraits de mon journal de bord (cahier de stage), histoires carismatiques vécues à l’intérieure de l’école Soares dos Reis, à partir dequelles se sont formulées les questions sur l’enseignement, l’éducation artístique, plus précisément sur le dessin, discipline que j’ai accompagné au long du stage et sur laquelle c’est reposée ma méthodologie. Cet espace de l’écriture culmine dans une panoplie de réflections et interrogations qui repouse sur la manière comme nous voyont et envisageont le Dessin, à l’intérieur et à l’extérieure de la discipline ou matière, me conduissant à une écriture, ou dessin, de sa possibilitée anatomique. Enfin, les inévitables questions sur le posicionement du pédagogique, enseignant, qui ont accompagnés tout le processus et les expériences du stage. La recherche incessante, des espaces de subversion, de innovation, pour permêttre la construction et la croissance des sujects-élèves qui sont égalements des sujects-Hommes, dans le champs de l’enseignement artístique. Mots de passes: Education Artistique; L’anatomie du dessin, Le métier d’élève; Performance; Identitées. 5

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Agradecimentos

Ao tempo, que quando parecia não ser suficiente, mostrou-me à sua elasticidade, permitindo que eu o esticasse o suficiente para terminar este objeto que, embora sofrido, se tornou algo belo aos meus olhos. Aos meus pais, por serem exemplos de força, dedicação e persistência. Seres a quem a educação não se apresentou como uma necessidade maior devido aos caminhos sinuosos que a vida apresentou-lhes mas que, com humildade e simplicidade, com o suor de anos de trabalho, ofereceram-me um dos bens mais preciosos que um Homem pode ter: a educação. Pela crença, orgulho que depositam em mim quotidianamente, nas minhas escolhas e rumos, pelo seu amor incondicional. Ao meu irmão, a quem dedico este objeto. Inúmeras foram as vezes que pensei nele enquanto escrevia. Uma pessoa, que vence, ao seu tempo, um sistema que o rejeita pelas suas dificuldades e condição. Ele que é um dos meus maiores orgulhos, que comprova que para todas as regras existem exceções, maravilhosas e extraordinárias. Aos meus amores, colegas e amigos, camaradas de vida. Que durante meses, ouviram as minhas lamentações, inquietações, choros e desesperos. Deixaram-me divagar em diálogos que se transformavam rapidamente em monólogos. Pelas dicas e conselhos. À minha orientadora, Catarina Martins, pelas bibliografias que me levaram a viajar entre pensamentos e sentimentos recalcados. Por me conduzir a uma paixão pelo Tavares e a sua escrita. Por me questionar não só sobre o processo da própria escrita como também sobre os meus próprios questionamentos e me deixar livre de seguir as vontades deste objeto. À Leonor Soares, pela sua hospitalidade, alegria e disposição para ensinar, aconselhar e apoiar. Por não se opor a estratégias novas e permitir assim, que testássemos e experimentássemos novas abordagens didáticas e pedagógicas. Ao Miguel, por todo o seu apoio e ajuda. Pelo carinho e paciência. Estarei eternamente grata por tudo.

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SUMÁRIOS DE AULA (RE)SUMO

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DIÁLOGO DESASSOSSEGADO

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ANTECÂMARA

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A DISCIPLINA DA “ALUNIZAÇÃO”

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Sumario, lição n.º 1: Como e onde começa a educação? De filho a aluno. O que é ser aluno? Sumario, lição n.º 2: A ideia do Ofício de aluno A construção do aluno: As desigualdades. Sumario, lição n.º 5: Aluno - O papel de uma vida. Os espaços de subversão. O aluno malabarista, quiçá, vigarista. As designações

A DISCIPLINA DA INDISCIPLINA: Da ideia do Desenho ao corpo do Desenho. Sumário, lição nº4 Dissecação do Desenho. Matéria inorgânica. Sumário, lição nº 10 Para lá do programa. Somewhere, over the rainbow…. Sumário, licão nº 8 A anatomia do Desenho.

A DISCIPLINA DO DISCIPLINADOR Sumário, lição nº20 educação x artes = caos2 Sumário, lição nº21 As relações no discurso escolar: de Foucault a Rancière.

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Sumário, lição nº 45 A lição das lições

RASCUNHOS, RABISCOS E GATAFUNHOS

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Ou considerações finais

AS FÓRMULAS

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Bibliografia

SEBENTA EXTRA Anexo I - Proposta Didática Anexo II - Desenho Transferência-de-uso

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Diálogos desassossegados.

— A que horas começa a nossa educação? — Meu caro, depende do que entende por educar… — A que horas começa? — Temo que a sua e a de qualquer um de nós já se tenha iniciado… A verdadeira discussão não terá que ver com o tempo da educação mas sim com qual a diferença entre ensinar e educar. — Diferença, Excelência? É tudo o mesmo. — Sim e não… ainda que ambos os termos sejam frequentemente aplicados como sinónimos, respetivamente de um para o outro, e vice-versa, eles não significam o mesmo… Entendeis? — Não estou certo de compreender, aliás, nunca me havia debruçado sobre tal assunto. Acredito, porém, que me ireis elucidar sobre a matéria. — Vede como nós, meros seres, você, eu e os outros, tomamos as coisas por certas e sabidas e poucos são os verdadeiros audazes e corajosos que se dedicam a questionar as razões e os porquês…

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— Mas com que necessidade haveríamos de o fazer? Não está tudo bem, tal e qual como está? — Meu caro, é necessário questionar para evoluir! É necessário revolução! — Certo… continue, Excelência! — Bom, quando eu digo que educar não é o mesmo que ensinar, é porque me dediquei a entender aqueles que estudaram a ciência da origem das palavras, a etimologia, sabe? De modo que espero não ser daqueles que falam sem saberem o que dizem… Tolos, delirantes. — Entendo. — A etimologia é a dissecação das palavras de modo a retirar delas as suas conjunturas. Primeiro, educar. Do latim, Educare: ex e ducere, que significam, respetivamente, fora e conduzir/encaminhar. A ação de educar é, então, a de conduzir ou encaminhar o sujeito para fora. Podemos, portanto, educar um animal, no sentido de criá-lo, adestrá-lo e conduzir os seus comportamentos tal como podemos, de igual modo, educar o corpo, a postura, abandonar ou não a rigidez... Educa-se qualquer corpo desde que este seja dócil.

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— Creio entender que caminhos tomais, Excelência… Continue. Questiono-me apenas sobre o que quer dizer quando refere que se “educa para fora”… do quê? Que caminhos se tomam? — Eis uma questão perspicaz. Levar para fora de si? Será o mais sensato. Precisamos de sair de nós exatamente para alcançar uma outra perspetiva de nós. Contudo, não estou certo de saber responder-lhe, pois caberá certamente decidir o próprio destino a quem o conduz. — Controverso, meu caro. Uma criança não pode escolher de si e por si o destino. Deve ser, por isso, encaminhada por outro, conduzida. — Continuemos a nossa aula de anatomia linguística, dissequemos mais uma palavra. Repare que ensinar, do latim Insignire: in e signum, significa fazer ou deixar um sinal, uma marca. — A escola marca os seus alunos com os símbolos do conhecimento. — Fazeis-me rir. A escola educa e não ensina, educa no sentido de domesticação, educa o corpo a reagir à sociedade, de modo passivo.Triste, não concorda? — Não, não concordo. A escola ensina, a escola instrui os seus alunos. A escola explica. Sabeis que explicar tem que ver, na sua origem, com a dobragem e redobragem de lençóis? Pense no ato em si, na forma do gesto… É isso que, de facto, o professor faz: dobra e desdobra as lições e o conhecimento em inúmeras parcelas para que se tornem compreensíveis ao aluno, permitindo assim a reprodução do saber e, quiçá, produção de novo saber. — Os livros fazem o mesmo. 14

— Os livros fazem o mesmo… — Assinalar, demonstrar, adestrar, exercitar, habilitar, habituar, instruir, treinar, amestrar, domesticar, apostolar, doutrinar, evangelizar, pregar, propagar, castigar, corrigir, … quereis mais sinónimos? — Tal assusta-me, como se pode associar o ensino à doutrina? Ao Evangelho? — Jesus ensinava os fiéis. — Desviámo-nos da conversa. Qual é a verdadeira premissa então? A escola deve ensinar ou educar? — Não deverá fazer os dois? — Quando começa a derradeira educação?

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Antecâmara.

NEM SEMPRE SOU IGUAL Nem sempre sou igual no que digo e escrevo. Mudo, mas não mudo muito. A cor das flores não é a mesma ao sol De que quando uma nuvem passa Ou quando entra a noite E as flores são cor da sombra. Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores. Por isso quando pareço não concordar comigo, Reparem bem para mim: Se estava virado para a direita, Voltei-me agora para a esquerda, Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés O mesmo sempre, graças ao céu e à terra E aos meus olhos e ouvidos atentos E à minha clara simplicidade de alma... Alberto Caeiro

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As introduções são enfadonhas. Desculpem-me a expressão. As introduções são chatas. (Ainda que mastigáveis) Não são insetos, não. São apenas aborrecidas, como os chatos – ainda que nunca tenha sabido, esperando sinceramente que vós também não, o quão incomodativo podem ser. O que se espera de uma introdução? Espera-se que ela apresente algo, é uma escrita anterior a um outro momento, também ele de escrita, mas que não acrescenta nada, no sentido em que ele não vai formular todo o pensamento, vai apenas evidenciar os contextos – apresentá-los. É o espaço, um pequeno espaço,

anterior a um outro maior, mais imponente. APRESENTAR. Ação de indicar a presença do presente, ou do momento presente… É esse o efeito de uma introdução: o de mostrar as presenças e, consequentemente, as ausências. Diz e não diz, já que não lhe compete explicar-se, compete-lhe, sim, anunciar. ANUNCIAÇÃO. O exercício da escrita. Escrevemos para que nada seja esquecido e tudo possa ser relembrado. Não, minto. Na verdade, escrevemos com a intenção de que nada seja esquecido. No entanto, durante o processo de passagem de uma ação para outra, do pensamento para a escrita, nessa translação e espaço temporal, perdem-se conteúdos. Que infortuna. Escrevemos então para que algo possa ser recordado. Inventamos, recriamos, apropriamo-nos de factos, de ideias, atribuímos-lhes nova ordem. Nesse processo, surge igualmente outro nobre ato, o da leitura. Imprescindível leitura. Que seria de nós sem a possibilidade e potencialidade que é ler? No entanto de nada nos serve ler, se lemos apenas as palavras. Ler é assumir uma postura de viajante e, como tal, deixar-nos perder por entre locais, espaços de mil aberturas, deixarmo-nos interpelar por quem, entre narrativas, relatos ou contos, tenta cativar nossa atenção para os detalhes, questionando-nos, confrontando-nos… É nas leituras que reconstruímos os nossos saberes e novas pontes se vão criando, que as raízes se vão interpelando e que a vontade de escrever, reescrever, pensar dentro do próprio ato da escrita se formula. Do mesmo modo que a escrita é sempre um propulsionador, uma alavanca que ativamos para iniciar os mecanismos internos, umas pedras de carvão que se lançam dentro da locomotiva, a que chamamos de memória, para que a bagagem que nela se encontra se desloque no sentido que queremos. Esta dissertação é isto e talvez mais. Permaneço na expectativa do mais. É uma escrita desafiante, enquanto exercício, ainda que não tenha a certeza de como se apresente a quem a ler. É uma escrita dos meus pensamentos, de cruzamentos e articulações de vivências e experiências. É minha e de outros a quem faço jus de referir, porque neles encontrei por vezes um “porto seguro” e em outros um mar de tempestades e tormentas que me fizeram delirar, contorcer-me de dor, passar noites em branco na tentativa de extrair-lhes algo. É um atlas. O meu atlas. É um álbum de imagens escritas. Descritas. São retalhos de histórias, minhas e de outros, justapostas com propósitos que servem a necessidade da própria escrita. Então, o que posso eu dizer-vos sobre o contexto que a justifica – a escrita? A vontade insaciada de conhecer e, mais do que conhecer, compreender as razões da educação. É esse o meu propósito, é essa a minha sina. Abrir espaços de conversa, diálogos internos, íntimas confissões, descontentamentos (contentes), contentamentos (descontentes), conflitos, evidenciar as presenças e as ausências, as inquietações, as angústias, os medos, os sonhos, os delírios que foram pautando, não apenas este último ano no presente Mestrado em Ensino de Artes Visuais e, consequentemente, a minha presença como professora-estagiária na Escola Artística de Soares dos Reis, mas também todo o meu percurso escolar e académico que foi, inevitavelmente, inúmeras vezes recordado e revisitado

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em todo este processo. “Todo rizoma compreende linhas de segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há rupturas no rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas a linha de fuga faz parte do rizoma.” (DELEUZE & GUATARRI: 1995: 6)

Compreenderão que este texto introdutório terminará por dizer-vos mais sobre o processo da escrita e o modo como apresento este objeto, que tenho acarinhado ao longo dos meses que marcam a sua estratificação. Como Deleuze e Guatari o indicam, com uma clareza inigualável, todo o texto é composto por segmentos, frases que compõem e inscrevem o território da minha investigação, interpolamentos entre reflexões edificadas em autores de campos diferentes da psicologia, das artes, das ciências da educação e uma ferramenta, pessoal, íntima que marcou presença em todo o meu estágio na escola artística Soares dos Reis – o diário de bordo. Deste modo, aquilo que aqui vos devolvo, pontuado pelo sabor das experiências de estágio na Soares dos Reis, ora doces, por vez salgadas e algumas amargas, é uma dissertação, é um relatório, é um objeto que oscila entre estas duas naturezas que poderiam apresentar-se distintas mas aqui se cruzam num espaço único, possível pelo seu carácter intertextual. São estas e não outras. Não são outras e são estas porque assim o ditou todo o estágio. São palavras, linhas que definem o território da minha investigação, vasto território, mapeado em capítulos que se desdobram e se constroem no seu interior, contribuindo para a expansão dos campos, interferindo com e por vezes inserindo corpos que lhes poderiam ser alheios, multiplicando as ligações. Apresenta-se como uma forma aberta, mutável ou pelo menos assim se deseja, conectável e “suscetível de receber modificações constantes” (DELEUZE & GUATARRI, 1995:. 8). “É Epicteto, que todavia não ministrou senão um ensino oral, insiste repetidas vezes no papel da escrita como exercício pessoal: deve “meditar” (meletan), escrever (graphein), treniar (gymnazein); “possa a morte arrebatar-me enquanto penso, escrevo e leio”. Ou ainda: “Mantém estes pensamentos noite e dia à disposição (procheiron); põe-se nos por escrito, faz-lhes a leitura; que eles sejam objecto das conversas contigo mesmo, logo encontrarás alivio no pensamento de que não era inesperado”. Nestes textos de Epicteto, a escrita aparece regularmente associada à “meditação”, a esse exercício do pensamento sobre si mesmo que reactiva o que ele sabe, se faz presente um princípio, uma regra ou um exemplo, reflecte sobre eles, os assimila, e se prepara assim para enfrentar o real. “ (FOUCAULT, 1992:134) 18

É igualmente uma meditação, à luz da designação que Foucault evoca no seu texto A Escrita de si. Pensamentos, recordações que, depositadas no meu diário de bordo, adormeciam comigo, acompanhando-me nalguns sonhos e, ao acordar, marcavam as aspirações do quotidiano, da rotina do estágio, das infinitas tardes de leitura. São palavras que se abrem a outras, pelo que este objeto tem a pretensão de não existir apenas para mim e, por essa razão, necessita de explicações, de esclarecimentos, quer seja dos motivos que propulsionaram as escolhas da investigação, quer seja pelos rumos, pelos mares navegados, pelas direções tomadas. Uma clareza que espero ter encontrado ao longo das leituras e releituras, escritas e reescritas. São momentos de epifania, diálogos que mais se aproximam de monólogos, uma escrita esquizofrénica, com pitadas de passividade e mãos cheias de exaltação – uma catatonia.  

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A DISCIPLINA DA “ALUNIZAÇÃO”

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Sumário, lição n.º 1: Como e onde começa a educação? De filho a aluno. E, já agora, o que é ser aluno? Cábula do aluno: Ninguém nasce aluno, ainda que essa condição nos acompanhe, de forma inevitável, em todos os percursos da nossa vida. Não nos esqueçamos que ser aluno é também ser-se ser. Ser aluno é estar-se na condição de quem aprende, de quem está sujeito a uma ação educativa. Apesar de que, tal como Rancière refere na sua obra, O Mestre Ignorante, não há homem sobre a terra que não tenha aprendido alguma coisa por si mesmo e sem mestre explicador” (Rancière: 2002, p. 28) e mesmo admitindo, humildemente, que este ato é, de certa forma, uma faculdade ou aptidão inerente à condição humana, nada somos sem os outros e é com os outros que a evolução do eu, enquanto ser, existe e se perpetua. Aprender é permitir a cada ser adquirir algo que ainda não existe nele ou que ainda carece de aprofundamento, quer nos estejamos a referir a conhecimentos, saberes específicos, aptidões, hábitos ou habilidades. Consequentemente, é assumir, sobretudo numa fase inicial das nossas vidas, a nossa individualidade incompleta e insatisfeita de si, uma individualidade que precisa de ser instruída pois ainda lhe faltam os saberes necessários à sua subsistência. O aluno é “a pessoa a quem lhe falta algo”. (BIESTA, 2011: 151) Então seremos para sempre alunos. Ser aluno é ser-se um ator ativo dentro da “passividade” que este papel, em particular, poderá exigir. A contradição é propositada pelo que passarei à sua explicação ao longo destas “lições”. Porque ingressamos na escola? Sabemos que não chegamos aos estabelecimentos escolares com mentes vazias e corpos apáticos ou, por oposição, completamente selvagens. Isso não acontece. Durante a nossa tenra infância, vamos gradualmente obtendo aquilo que são as nossas primeiras lições de vida e que também são pilares da fundação de cada um, nas quais se incluem as aprendizagens básicas que envolvem a aquisição da fala, a aprendizagem dos atos de comer ou de andar, de como interagir, escutar ou expressar as nossas necessidades aos outros, essa instituição - concebida como tal desde dos finais do século XVIII -, chamamo-la de família. O impacto e a importância que o contacto com esta primeira instituição tem no plano da construção da nossa subjetividade é indiscutível, já que é ela quem, em primeira mão, formula e concebe, instrui e informa-nos acerca do mundo, da sociedade, sobre as relações sociais, os valores, o senso comum, os ideais culturais sob ou pelos quais se regem, a diferença entre o bom e o mau, entre muitas outras

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coisas, que culminam num conjunto de conceitos, ideias e pareceres que nos são transmitidos e ensinados. No entanto, estas primeiras aprendizagens não são suficientes, como referi inicialmente. O homem precisa de mais, uma criança de mais ainda. A emergência das escolas ergue-se perante este cenário, surgindo como uma espécie de “salvação” das almas, um espaço social com um papel imprescindível, criado com o objetivo de poder completar as ausências cognitivas, construir passo a passo ligações com a sociedade, compreender as relações sociais, acumulando capacidades e comportamentos de vida em comunidade – civismo - dos jovens, já que nela se encontram todos os espaços, corpos e dispositivos que permitem, gradualmente, que cada um cresça no sentido de colmatar as suas imperfeições e carências, tornando-se em algo mais. Para que essa ascensão se dê, é, segundo o Estado, necessário que cada criança ingresse no sistema educativo embora, relembro, as escolas (instituições) não sejam os únicos espaços existentes na sociedade que providenciam vivências e experiências que eventualmente podem potenciar aprendizagens novas que perpetuam o crescimento das crianças e jovens. Quando uma criança dá entrada numa instituição educativa, ela prescinde de um certo conjunto de características e particularidades do “eu” para poder ser reconhecido como aluno. Admite-se, com uma certa humildade, que existem determinadas carências nela, um vazio específico, o qual necessita de ser preenchido para perpetuar não apenas a sua evolução enquanto pessoa como também, de igual modo, a da própria sociedade na qual ela se insere. Nesse processo de ingresso, a criança é apresentada à escola, reunindo-se várias informações indispensáveis ao Estado para que se possa compreender um pouco da sua origem e história, as informações básicas - uma espécie de cadastro - que ficará reservado num arquivo da instituição e virá a ser completado com as devidas informações sobre o progresso e percurso da mesma. A existência deste momento é crucial na vida desta criança. É um ponto de viragem, de transformação. A criança passa a ganhar um novo estatuto social, um novo papel na sociedade, uma nova narrativa do eu - a de aluno.

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Essa transformação vem acompanhada de outras evidências, sendo uma delas a atribuição de um número de identificação, cedido no ato da primeira matrícula, que perdurará e acompanhará cada um até ao fim do seu percurso escolar nessa mesma instituição. Permitam-me que faça aqui um pequeno parêntesis: matrícula é um termo utilizado em contextos muito diversificados. É utilizado, por exemplo, para nos referirmos às placas que encontramos na dianteira e traseira dos veículos ou ainda a qualquer inscrição de seres, animais ou outros bens num registo. No contexto da escola, utilizamo-lo para nos referirmos a algo que poderíamos de igual modo designar por inscrição. O que intento aqui realçar é que, em todos os casos, o termo revela uma preocupação com a identificação de um conjunto de objetos ou de seres, para além de reivindicar uma certa noção ou

ideia de posse, de registo e de pertença. Os dígitos que encontramos nos livros de ponto, nas sebentas ou nos cadernos de presenças não são meramente e somente indicativos da entrada no sistema escolar ou simples instrumentos de identificação, já que, de algum modo, servem também para instituir em cada pessoa registada a ideia ou sensação de pertença a esse local, ainda que iniciem um processo de perda, parcial, da identidade de cada um. A atribuição do número de aluno pode ser vista por dois prismas: por um lado, é possível interpretar esse gesto como um ganho, já que nos é facultada uma identidade nossa, somente nossa, dentro deste espaço que ocuparemos durante anos; por outro, essa nova identidade poderá encaminhar à perda da nossa verdadeira identidade, ou a um cruzamento que, gradualmente, poderá sobrepor-se e até anular traços do “eu” ou gerar conflitos.

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Antes de iniciar a aula, após os ânimos se terem ligeiramente acalmado e os lugares terem sido, pouco a pouco, ocupados, registam-se as presenças e as ausências. Ouve-se a professora, junto ao quadro, e com um marcador na mão direita, iniciar a chamada: - Número 1? - Presente. - Dois? - Presente. - Três? Silêncio. Ouve-se, no canto esquerdo da sala, alguém dizer que a Josefina está doente. Nesse mesmo momento, um três surge escrito a vermelho no quadro virgem. ---

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Figura I - Aluna Joana

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Figura II - Aluna Marua João

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Ainda que este excerto do meu diário de estágio seja simbólico, nada dele é ficcional, pois pude assistir a um momento semelhante numa das aulas que acompanhei. Os números de identificação no ensino ganham um lugar carismático. Por um lado, há quem consinta ser apelidado através de um número e, ao ressoar do mesmo, fique alerta e reclame a sua presença, como também há lugar, em oposição, para os que, indignados, aguardam que o seu nome civil seja proferido a cada chamada, que o professor não os confunda com um outro colega ou que, depois da má pronúncia do seu nome, corrijam imediatamente o erro. Ainda que aqui seja levado de forma extrema o conceito de mutilação do eu, pelo desuso do nome, não quis deixar que ficasse em branco esta ideia trazida pelas leituras de Goffman. Acredito que, no plano atual, a ideia de mutilação se tenha suavizado, até ligeiramente dissipado, aproximando-se mais ao objeto de uma adaptação às circunstâncias e espaços institucionais do que uma perda total ou parcial ou até mesmo uma reconstrução/ reinvenção total da subjetividade de cada um. Por via de outras palavras, poderá dizer-se que este processo naturalizou-se, sendo que já não choca ou provoca o desconforto, ainda que nunca tenha deixado de ser um instrumento de governamentalização. Quando Goffman, na sua obra Manicômio, Prisões e Conventos, nos apresenta esta ideia, ele refere-se aos internados das “instituições totais”. O autor apelida de instituições totais aquelas cujo fechamento se revê no plano físico, ou seja, nas barreiras edificadas entre a instituição e o mundo exterior e que representam uma separação real, palpável e apresentam óbvias proibições de contacto com o exterior (paredes altas, fossos, arame farpado, …). “A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu. Na vida civil, a sequência de horários dos papéis do indivíduo, tanto no ciclo vital quanto nas repetidas rotinas diárias, assegura que um papel que desempenhe não impeça sua realização e suas ligações em outro. Nas instituições totais, ao contrário, a participação automaticamente perturba a sequência de papéis, pois a separação entre o internado e o mundo mais amplo dura o tempo todo e pode continuar por vários anos.” (GOFFMAN, 2003: 24)

O território da escola não é um território isolado, exilado do resto do mundo. Pelo contrário, ele existe inserido no seio da sociedade, no centro das nossas cidades, nos arredores, nas zonas de bairros, comunicando com o mundo envolvente. Não encontramos nelas um “fechamento” igualável aos das instituições de que nos fala Goffman, ainda que não possamos negar que a ideia de clausura não esteja presente, visível, na arquitetura de alguns dos seus edifícios. Tal como em qualquer instituição, o fechamento não é um fator negativo, desde que esse fechar não se expanda para o plano moral, científico e cognitivo, devendo ele até existir no sentido de potenciar espaços de trabalho e focalizar o interesse 28

e a atenção dos que nele se encontram. “Geralmente, o processo de admissão também leva a outros processos de perda e mortificação. (…) Verificamos que a equipa dirigente emprega o que denominamos de processos de admissão: obter a história de vida, tirar fotografia, pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar instruções quanto as regras, designar um local para o internado. Os processos de admissão talvez pudessem ser denominados de “arrumação” ou “programação”, pois, ao ser “enquadrado”, o novato admite ser confrontado e codificado num objecto que pode ser colocado na máquina administrativa do estabelecimento, modelado suavemente pelas operações de rotina. “ (GOFFMAN, 2003: 25-26)

Nas escolas, o processo de matrícula dos alunos não é exaustivo e não se traduz num despejar da identidade de cada um exponenciado a uma intensidade que encontramos, por exemplo, na admissão dos internados de uma prisão, convento ou outra “instituição total”. Este é, no espaço escolar, levado a cabo de um modo mais leve, ou pelo menos assim aparenta ser. Existem semelhanças, é certo, tais como a ideia de que o aluno possa ser “objetivado” a ponto de ser inserido na máquina administrativa do estabelecimento e, desse modo, ser modelado suavemente por operações rotineiras, algo que não é de todo uma visão impossível pois, de facto, encontramos nos dispositivos escolares essa presença da rotina e repetição que modela os corpos dóceis. Regressarei a estas ideias posteriormente, uma vez que a perda da identidade também se dá noutros processos escolares. Para a escola, até certo ponto, não importa a individualidade de cada um, não importa a subjetividade destes seres pois cada um deles, à semelhança de outros que ali se encontram como seu igual, padece do mesmo mal – a ignorância. Deste modo, a Escola, enquanto instituição pública representada pelo corpo de docentes, encontra-se incumbida da missão de ensinar estas “tábuas rasas”. Não concordando com o uso desta última designação, faço questão de utilizar o termo “tábua rasa” visto que é, em muitas circunstâncias, aplicado como forma de designar os alunos, ainda que se possa entender esse uso como um ato de provocação, que incentive debates e indagação sobre a educação e a pedagogia. Ser aluno é fazer parte de uma comunidade de “ignorantes”, no seio de uma maior comunidade, a educativa ou escolar. Prefiro a utilização do termo comunidade a outros como organização ou instituição, consciencializada de que estes últimos talvez sejam os que, na realidade, melhor definem a escola, ainda que possam deixar transparecer uma conceção desses espaços mais fria, mais dura. Comunidade = comum = unificação. Por alguma razão, que não estou certa de conseguir explicar, entendo o uso deste termo como sendo mais apropriado. Talvez porque a ideia

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de comunidade me reencaminhe para valores como a solidariedade, a entreajuda, a necessidade do outro, a autenticidade de um grupo e nos afaste da visão de instituição total. Gostaria de acrescentar a este pensamento umas palavras de Rancière: “Uma comunidade emancipada é uma comunidade de contadores e tradutores.” (RANCIÈRE, 2010: 35) Fazer parte de um grupo alargadíssimo, como é o de uma escola, pressupõe o conhecimento e entendimento e, mais do que estes, o cumprimento de determinadas regras e aceitação de modus operandi, para que cada um cumpra com os seus deveres e obrigações. Os eternos discursos sobre os deveres e a obediência, sempre. Discursos políticos? Talvez, e não só. Os discursos das proibições e autorizações são necessários, como em qualquer organização, para garantir uma ordem, para assegurar o seu bom funcionamento e execução das funções que deve servir, as de ensinar. Encontramo-nos perante um outro género de fechamento. O sujeito – aluno – colocado na impossibilidade de questionar, de interrogar a lógica do sistema, e consequentemente pôr em causa a essencialidade, a necessidade aparente de desenvolver ou exercer determinadas tarefas que lhes são exigidas. Assim como reconhecemos que a estas estão vinculadas imagens de sucesso ou de insucesso, alicerçadas ou provenientes do conceito de ‘falha’ ou ‘erro’. Sobre estes assuntos retornarei posteriormente. Então, o aluno deve comportar-se como aluno. Não lhe é pedido, exigido nem esperado mais do que isto, certo? Como se isso fosse simples, esta coisa de se ser aluno. Mas, primeiramente, o que é ser aluno? Como se é aluno? Os diálogos sobre estas questões são numerosos, os caminhos sinuosos e as conclusões abertas a novos questionamentos. Como se é aluno? Aprendendo… Como se aprende a ser aluno? Sim, porque é necessário aprender-se a sê-lo, de forma a corresponder a padrões e a expectativas que se depositam sobre estas figuras. Não está apenas em causa, como referia anteriormente, a possibilidade de cada um instruir-se e completar-se, sendo também necessário a validação dessas mesmas aprendizagens e a comprovação da sua eficácia e, para tal, é indispensável, em primeiro lugar, aprender a aprender, ideia reforçada pelo documento da UNESCO sobre os pilares da educação para o século XXI. A escola precisa tanto dos alunos como eles dela. Atrever-me-ia a dizer, até, que a necessidade dos alunos para a escola é superior à da escola para os alunos já que ela precisa deles para se validar enquanto instituição social, imprescindível para a organização e evolução da própria sociedade.

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Sumário, lição n.º 2: 1. A ideia do Ofício de aluno No início da sua obra Ofício de aluno e Sentido do Trabalho Escolar, Perrenoud apresenta-nos o aluno como uma persona que desempenha um ofício particular, o de aluno. Entender o estatuto social de aluno como um ofício poderá criar algumas dúvidas, pelo que, ao longo da sua introdução, Perrenoud elucida essas questões explicando que esta sua associação do termo ao papel dos alunos deve-se à evidência de que, ao longo do desempenhar das suas tarefas, os alunos vão adquirindo um ganho que, embora não se reveja monetariamente, como nos restantes ofícios, esse ganho se transformará em “meios de subsistência” através deste trabalho que é “reconhecido pela sociedade”. (PERRENOUD, 1995:.14). Existe, de facto, por nós, um reconhecimento deste estatuto como sendo uma função exercida a tempo inteiro - O que fazes? Profissão? Sou estudante, logo estudo. Que profissão mais enfadonha quando exposta desta maneira. Não existe margem para dúvida nem ninguém negará a necessidade e utilidade de uma instrução básica em diversas áreas do saber a curto e longo prazo, ainda que, este seja, nas palavras de Perrenoud, um ofício «sui generis». A ideia da particularidade deste ofício não se prende pelo facto de o ganho não ser monetário e antes existir um enriquecimento teórico, que se encontra no campo do intelecto, das habilidades e das competências gerais que se podem adquirir no contexto escolar; a questão prende-se com algo que evidenciava no início deste capítulo: a sua imposição, ou seja, pode acontecer não ser livremente exercido por opção própria – a escolaridade obrigatória. Ofício de aluno – a formação de um habitus1. 2. A construção do aluno: As desigualdades. O Habitus, conceito apresentado por Bourdieu em A Dominação Masculina, define um sistema – mecanismos - que cada um constrói ao longo do tempo, assimilado e construído a partir da própria experiência social e pessoal, com o intuito inerente de orientar as nossas ações e comportamentos ou modos de agir na vida quotidiana e nas mais variadas circunstâncias.

O habitus escolar surge mimeticamente dos princípios, valências e hábitos da própria sociedade, da qual retira os seus mecanismos de modelação dos seres para potenciar a sua preparação para sua entrada em outros e novos grupos ou organizações: o aluno não aprende apenas a ser aluno já que, neste processo, aprende igualmente a ser cidadão. Aprender a ser aluno é, resumidamente, aprender as regras do jogo, criando mecanismos

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próprios de adaptação, de imediatismo de resposta, de camuflagem, de teatralidade, de imitação. Aprende-se a viver em comunidade ou em multidão, a gerir as diversas individualidades que nos rodeiam e, de igual modo, as relações pessoais entre estas mesmas, o que implica aprender a ter consciência do eu perante o outro, das fronteiras e barreiras físicas e não só, dos relacionamentos e da construção dos mesmos, dos códigos de conduta e de comportamento; aprende-se a ganhar consciência do tempo, seja pela sua fragmentação, seja pelas esperas, pelos atrasos, pela exigência da assiduidade e das rotinas necessárias e repetidamente continuadas, pelos ritmos oscilantes, sejam estes nossos, dos companheiros ou das próprias disciplinas; aprende-se a controlar os impulsos próprios, as vontades e desejos repentinos que não têm lugar neste espaço, aprende-se então a pensar-se no “nós” e não exclusivamente no “eu”; aprende-se a ser passivo, aprende-se a respeitar as hierarquias e, consequentemente, as relações de poder; aprende-se a ser obediente, a levantar a mão e interagir somente quando se é solicitado para tal; aprende-se a escutar a opinião do outro sobre nós próprios, a ser alvo de avaliações e críticas, para que destas fulmine uma consciência das nossas falhas e sucessos, compreende-se que aprender os métodos de avaliação e ser submetido aos mesmos não serve somente para situar cada aluno no seu percurso, serve ainda para que se possam equiparar aos outros, entendendo o seu grau de aprendizagem e, face às expectativas que existem sobre ele, as lacunas e sucessos; aprende-se o lugar do erro e a sua importância no percurso, o efeito das falhas e o que advém destas, os castigos e as sanções assim como se aprende a ser recompensado e elogiado quando o oposto sucede; aprende-se a ser autónomo; aprende-se, por fim, a aprender os saberes necessários à nossa existência. Ainda que todas estas aprendizagens sejam válidas para todos os seus sujeitos - os alunos – é possível, nas observações dos comportamentos, dos resultados, da assiduidade, entre outras coisas, ser-nos devolvida uma visão repartida, a de que a assimilação destas aprendizagens não é uniforme e igual, não surge simultaneamente e, por vezes, não ocorre no mesmo espaço. Ainda que a premissa da escola seja ensinar todos do mesmo modo, criar igualdades de oportunidade, existem sucessos e, inevitavelmente, insucessos. Inicia-se o ciclo das comparações, o mundo das designações. As dicotomias entre o bom e o mau, que não serão tão lineares como se creem ser. O que é que entendemos por “bom aluno”? E por mau? Será imprescindível a existência destas distinções? Para que nos servem? O que fica nas entrelinhas destas diferenciações não será mais rico? Temos necessidade destas distinções? “O exercício do ofício de aluno é então o produto de uma socialização implícita ou até mesmo invisível de um processo de regulação que ninguém desejou, mas que, pouco a pouco, censura os modos de reacção que não têm uma finalidade prática ou trazem 32

aborrecimentos.” (PERRENOUD, 1995: 204)

Poderá refletir-se sobre o desempenho dos alunos através das designações do bom ou do mau? Premissa incondicional? Não. Não me parece que seja benéfico manter um olhar tão rígido, direcionado para um reino de dicotomias, no qual a condição de aluno apenas existe em dois estados, em dois polos distintos, em que uns são reconhecidos pelo seu mérito e outros, em oposição, pela sua incompetência. Acreditar que os alunos possam ser categorizados, enquadrados em dois planos distintos, o da genialidade e o da mediocridade é, na verdade, inútil, do ponto de vista emocional e pedagógico. Creio que tal contribuirá para o aumento da desigualdade já que fermenta a ideia de que uns são capazes ou mais capazes porque têm algo, dentro deles, chamemos-lhe dom, aptidão ou genialidade, que lhes permite alcançar com maior facilidade, rapidez e eficácia, os objetivos e metas comuns. Durante o processo de aprendizagem, sabemos que nem todos poderão ocupar esses lugares, para além de que os mesmos não são cativos, e pelo meio esquecemo-nos de uma outra ocupação na escala hierárquica - o do mediano. O mediano, pobre, é por várias vezes esquecido. Dei por mim a constatar isto. Permanece ali, no meio do segmento da sala, pacífico, desempenha as suas funções, cumprindo os prazos, cumprindo os objetivos base, sem grandes exaltações ou manifestações. No entanto, ainda que seja facilmente tornado invisível, a sua presença é imprescindível, já que é ele quem dita a norma e, por consequente, ele que define a existência e, sensivelmente, a distância entre os opostos. Situarmo-nos num discurso em que o mediano é condenado à transparência da sua existência, ao medíocre é dado a conhecer o desprezo e, simultaneamente, a honra de ser exemplo de insucesso e alvo de chacota e por fim, o génio, que é simplesmente idolatrado, colocado num pedestal inigualável e intocável, não deverá acontecer. Ninguém negará a necessidade de diálogos nos quais se procurem ver e reconhecer as valências, as capacidades mentais, motoras e cognitivas de cada um, assim como evidenciar ações, atitudes e vivências anteriores e atuais, mesmo que sejam desígnios de mau comportamento ou outras irregularidades. O regime da meritocracia generalizou-se durante décadas. Tempos em que se valorizava quem se destacava pela positiva, quem obtinha os melhores resultados, quem possuía os comportamentos adequados, um bom aproveitamento, quem demonstrava, ao longo do seu percurso escolar, uma evolução constante. Concordo com os incentivos, os encorajamentos e o reconhecimento dos alunos, o que não significa que a meritocracia seja algo que só pertença a uma categoria específica de alunos. Reconhecemos que alguns dos alunos a quem se atribui mérito no percurso escolar, são, por norma, oriundos de famílias de classe média-alta, que possuem, do ponto de vista económico, meios de proporcionar e incutir aos seus descendentes experiências e vivên33

cias que expandem a sua curiosidade e cultura geral – promovem a criação de um capital cultural que a escola alimenta e explora. São portanto compreensíveis, nesse prisma, as desigualdades existentes, as dificuldades que certos alunos apresentam face a outros no entendimento e compreensão de determinados campos do saber, já que, para alguns deles, o grau de familiaridade com certos assuntos não é nulo e já foi antes iniciado e explorado. A escola inicia um processo de aculturação no qual os alunos se acostumam e se adaptam à cultura escolar, que não é mais do que um reflexo da própria cultura da sociedade mas, mais do que refletir, esta aculturação tem a função de homogeneizar, de igualar as diferenças existentes entre os alunos, ou pelo menos assim se espera. Assume-se a presença da desigualdade e que a retórica da escola é precisamente a de equilibrar essas desigualdades, através da instrução, o que permite verificar que não se trata somente de desigualdades no plano económico, social ou cultural mas subentende uma desigualdade de inteligências. Rancière recorda-nos, no seu livro o Mestre Ignorante, que a inteligência que permite ao homem aprender em criança a língua materna, ou outro tipo de aptidão e habilidade, está subordinada a um processo de adivinhação no qual o homem observa e retem informação, associa aquilo que pretende aprender a aquilo que ele já domina, reconhece e compreende, de modo a, progressivamente, dominar e apreender um novo saber. Esta é, segundo ele, a prova de que todos possuímos inteligências iguais. “E indicou o meio de se realizar esse Ensino Universal: aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo o princípio de que todos os homens têm igual inteligência”. (RANCIÈRE, 2002: 30).

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Pequena reflexão sobre as inteligências. Imagine-se a seguinte situação: num saco, encontram-se vinte elásticos, todos com a mesma dimensão, com o mesmo diâmetro e a mesma espessura. Aparentemente, nenhum aspeto os diferencia e podemos concluir que são, inevitavelmente, iguais. Sabemos, de igual modo, que exercendo uma força, quer esta tenha origem no seu interior ou no seu exterior, existe a possibilidade desse objeto alterar a sua forma inicial, duplicando, triplicando a sua área de ocupação, ou alterando a sua morfologia. Esta é a metáfora das inteligências. No processo de alteração da forma, quando exercemos uma força, existem diferentes sujeitos envolvidos no processo. Quando a força tem origem no interior, é exercida pelo aluno, através do envolvimento de uma faculdade presente no processo de aprendizagem: a vontade. Noutro cenário, essa força será oriunda do exterior, um sujeito externo à inteligência, que então se molda de acordo com a força exercida no exterior, aquilo a que Rancière chama de embrutecimento. Não esqueçamos que “quem aprende é o aluno. Se não quiser, recusando-se a entrar na atividade intelectual, não aprenderá, seja qual for o método pedagógico da professora” (CHARLOT, 2008: 23). Em qualquer um destes casos, é possível verificar alterações na

forma da inteligência. Parece-me importante salientar que, enquanto a vontade operar, há uma possibilidade da forma original do elástico-inteligência manter-se mais fiel a si, enquanto o mesmo cenário não me parece viável se esta surgir apenas por pressão (ou opressão) de outro, tornando-se menos provável que a sua forma inicial seja respeitada, possibilitando uma expansão (des)construtiva. “A existência desta poderosa e exclusiva relação entre as habilitações escolares e a prática cultural não deve escamotear o facto de que, dados os pressupostos que governam a vida escolar, a acção dos sistemas de ensino só pode ser plenamente eficaz sobre indivíduos já bastante familiarizados com o mundo de arte através da educação familiar. Tudo se passa como se a acção da escola, cujo efeito é desigual (quanto mais não seja devido à desigualdade de duração da escolaridade) conforme a classe donde o aluno provém, e cuja eficácia varia consideravelmente conforme os sujeitos sobre que se exerce, tende a reforçar e a consagrar as desigualdades iniciais”. (BOURDIEU, p. 331)

Dois olhares sobre o mérito: consagração de um título ou uma espécie de gratificação, pela produtividade, desempenho e pelos avanços do aluno, que gera incentivo para que outros alcancem os mesmos feitos; por outra perspetiva, um instrumento que serve para criar separações, realçar e justificar um modelo de aluno por excelência – o bom. Modelos que equivalem a estereótipos. Servem para imortalizar as ideias que surgem em torno de um dom ou de uma aptidão inata para o ofício de aluno. A “ideologia do dom é chave do sistema escolar e do sistema social” (BOURDIEU, 1988: 42), eternizando uma vez mais a separação das classes sociais, dos indivíduos dessas mesmas classes, com base nos seus dons ou nas suas inaptidões. Erro? As inaptidões surgem como uma condição de um efeito da herança cultural dos alunos: um “handicap” social. Retornamos à ideia de que é então impossível alcançar-se a excelência e ter-se mérito se não tivermos nascido num berço de ouro. Estará o nosso sucesso escolar inevitavelmente ligado à nossa posição social e económica? Não. O que fazemos então ao mau aluno, se só deveria prevalecer uma tipologia de aluno – a do bom?

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– Bater com uma certa força num mau aluno, por exemplo. – Sim? – Não deveria ser punido moralmente. Deveria ser considerado um acto estético. Corrigir o que é mau: haverá acto mais nobre? – O seu argumento é feio mas, de certa maneira, convenceu-me. Mas vou, se me dá licença, fugir dele. E de si. – Excelência, espere um pouco! É o que lhe digo. O que é bom atrai, o que é bom faz de nós contempladores. Diante do que é bom puxo de uma cadeira, diante do que é mau pego num pau para enxotar. – Que horror, Excelência. Que imagem terrível! Não devemos tratar mal o que é mau, isso não é de bom-tom, nem revela bom coração. Adaptação do texto de Gonçalo M. Tavares, em O Torcicologologista, Excelência.

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Figura III - Os dez mandamentos do bom aluno

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Não se trata de exercer uma violência física para corrigir, trata-se de exercer, sim, uma violência simbólica. O castigo ou sanção quando aplicada a um aluno não serve senão de arquétipo para os restantes, de modo a adverte-los daquilo que não se deve ser ou fazer, de acontecimentos e atitudes que não podem ocorrer no seio da comunidade escolar sob pena de o mesmo lhe vir a acontecer, ainda que possamos reconhecer que determinadas atitudes, em outros contextos, consigam ser merecedoras de louvores – manifestos. Há, no entanto, no início deste parágrafo, algo que escrevi que me suscita algum desconforto. Corrigir. Correção. Quais são os objetos ou sujeitos da correção? Que função tal ação serve? Quando pensamos em bom e mau, sobressaem as questões morais, censura do mal em benefício do bem, a repreensão, as advertências, os castigos que não são senão uma tentativa de correção, modificação da natureza do sujeito. Entendo que, na esfera educativa, o ato de corrigir deverá procurar assimilar-se ao de retificar ou emendar os erros dentro dos espaços da aprendizagem, tornar correto o que está errado, modificar os objetos da aprendizagem e não os seus sujeitos. A escola vincula aprendizagens, circunstâncias e espaços que potenciam a construção da subjetividade de cada um. Não será, parece-me, sua função procurar corrigir, no sentido de modificar a natureza de cada um – personalidade. Censurar, reprimir, castigar… Tinha 15 anos e, inconscientemente, o meu corpo reagiu às futilidades que a minha professora jurava a cada aula de desenho. Dessa vez, a louca (era assim que a chamávamos n’altura) encontrava-se a relatar as suas aventuras no ginásio, os peitos musculados que via, o decote que utilizava quando entrava pelo ginásio, fazendo questão de, simultaneamente, avançar-se para beira do Hugo, um dos meus colegas de turma, e gesticular de uma forma demasiada erótica para ser “correta” naquele contexto. Nada de preocupante, sendo que vos poderia estar a relatar uma história que envolve o termo “pichota” (desculpem-me a linguagem) e outros vocábulos impróprios, diria. Quando o meu olhar se revirou, para meu azar, coincidiu com o instante em que o seu se cruzou com o meu. O efeito? Expulsão da sala e uma falta disciplinar.

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Este episódio transporta-me até outros pensamentos. Recordando a questão da passividade, que introduzia no início, os alunos podem escolher agir de forma passiva e apática a acontecimentos deste género como é possível, de igual modo, que manifestem o seu descontentamento, sentimentos de revolta e indignação, etc. Porque é que um aluno, tendo a possibilidade de permanecer imóvel, age, ou não, contra si, ou contra as suas crenças e convicções. Não será de todo inconsciente. Age porque crê ter voz, ter algo para dizer, ainda que em algumas situações se procure abafá-la. Como tal, ele escolhe permanecer no seu papel ou sair dele, sabendo de antemão as consequências que esta saída de si possa ter sobre a sua função de aluno. Trata-se de liberdade, de emancipação, talvez de um sufoco provocado pela permanência num estado de obediência constante.

Sumario, lição n.º 3: Aluno - O papel de uma vida. Ou os espaços de subversão. O aluno malabarista, quiçá, vigarista. As designações. “Ora, dizem os acusadores, ser espectador é um mal; por duas razões. Em primeiro lugar, olhar é o contrário de conhecer. O espectador permanece face a uma aparência, ignorando o processo de produção dessa aparência ou a realidade que a aparência encobre. Em segundo lugar, olhar é o contrário de agir. A espectadora fica imóvel no seu lugar, passiva. Ser espectador é estar separado ao mesmo tempo da capacidade de conhecer e do poder de agir.” (RANCIÈRE, 2010: 8-9)

A educação pede, gentilmente, que o aluno preste atenção, que foque o seu olhar no que sucede no decorrer da aula. Será porque a sua atenção se concentra então no ato de olhar que a aquisição do conhecimento não ocorre como esperado? Avançando, não é este o tema da lição, ainda que pudesse ser interessante permanecer nessa questão. O aluno escolhe o papel de espetador, por excelência, já que é exatamente esse que lhe foi designado e espera-se que este seja passivo, que não interfira com a peça (aula) e que o seu comportamento traduza uma atenção sobre as ideias que o ator (docente) está por seu dever a inculcar-lhe. O conceito do conformismo. No entanto, a esperança na passividade é vã. Os docentes estão perante várias plateias de espetadores que pertencem a diferentes corpos coletivos - turmas - e, em cada um dos corpos que compõem essas mesmas turmas existe o poder de “traduzir à sua maneira o que percebe, de ligar o que percebe à aventura intelectual singular que os torna semelhantes a todos os outros na medida em que essa aventura singular não se assemelha a nenhuma outra.“ (RANCIÈRE, 2010: 27). Potenciar a inteligência ou as inteligências, é isso que se quer. É inútil esperar que os alunos sejam meros espetadores, que se coloquem meramente “fora de cena” (BOAL, 2008: 15), que estejam ali com o único propósito de encher uma sala de espetáculo - escola - limitando-se à contemplação, resumindo-se ao exercício da pura observação. Qual o efeito da imobilidade sobre estes dóceis seres? Saturação. Um efeito de contradição. Reconhecemos a dificuldade que, até para nós, com mais uns anos, é permanecer com o foco de atenção sobre um assunto, durante longos períodos de tempo, sobretudo quando a nossa participação se torna passiva, no sentido em que se focaliza, apenas, no ato da escuta. Torna-se cansativo, exaustivo, o corpo e a mente cedem. Reter e processar toda a informação quando ela é somente debitada, a uma velocidade que, ao longo do tempo, parece acelerar-se. Repentinamente, surge-me a imagem de Charlie Chaplin, em Modern Times. Uma

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fábrica, um local de lavor comum, com postos de trabalhos fixos e onde a organização é mãe. Cada operário encontra-se confinado ao seu espaço, destinado às tarefas que o respetivo ofício exige. Chaplin inicia o seu ciclo, primeiro dando entrada no espaço, picando o ponto. De seguida, desloca-se até ao seu posto, inicia as suas funções, de forma mecânica, e as suas mãos vão replicando e repetindo os mesmos gestos, infinitamente, produzindo vários objetos. A determinado momento, distrai-se com uma mosca que o importuna e, perdendo o ritmo, altera a sua própria produção, prejudicando não só o seu próprio desempenho como o dos seus colegas. Idealmente, o género de operário/espetador/aluno que se poderia desejar, seria uma espécie robotizada, recarregável quando fatigado, que nada nem ninguém pudesse distrair ou importunar na execução das funções, não alterando o seu ritmo e a sua postura. Esperar-se-ia, do aluno, uma passividade, ver um desprezo, pelos assuntos externos à aula. O aluno, corpo dócil, é domado para que se comporte deste modo, ouve e consente. Calar e ouvir. Abafa-se a produção de pensamento pois deve apenas permanecer e ressoar uma palavra, a do professor. Como? Abafa-se o pensamento? Abafam-se as dúvidas? Só há espaço para uma verdade, a do professor? Porquê? Será realmente este o cenário? Se sim, quais as razões? Fará sentido? Não é, consequentemente de admirar, se determinados alunos têm medo de expor dúvidas, questões, fazer associações… se, perante tal vontade, há uma previsão de censura por essa mesma ação. "O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento das suas habilidades, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil é. Forma-se então, uma política de coerções que consiste num trabalho sobre o corpo, numa manipulação calculada dos seus elementos, dos seus gestos, dos seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, os chamados "corpos dóceis". A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças. Ela dissocia o poder do corpo e faz dele, por um lado, uma "aptidão", uma "capacidade" que ela procura aumentar; e inverte, por outro lado, a energia, a potência que poderia resultar disso e faz dela uma relação de sujeição estrita" (FOUCAULT 1997: p. 119).

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Os corpos que Foucault descreve como dóceis em Vigiar e Punir, referem-se aos que, colocados no seio de uma instituição como as prisões, uma ‘maquinaria’, se tornam submissos, obedientes, recompondo a ordem e a lógica sobre a qual o corpo opera, os seus gestos e as suas ações, redefinindo a direção da sua energia numa relação de sujeição. Numa instituição escolar, a sujeição encontra-se perante o saber, devolvida na figura do

professor e da sua ação educativa. O aluno permanece sentado, coloca a mão no ar para tomar à palavra, realiza as tarefas que lhe são solicitadas. Mas, e eis uma verdade sobre o ensino, os corpos não são todos dóceis, não são todos disciplinados. E não existe apenas um tipo de aluno, ou um género de espetador. Quando anteriormente afirmo que os alunos não possuem todos uma natureza dócil, refiro-me essencialmente à manifestação ou às manifestações físicas e orais dos mesmos. É certo que não existe apenas a escuta ou a observação durante o processo de aprendizagem, nas diferentes práticas pedagógicas e didáticas. O aluno emite sons, balbucia, gagueja, hesitante, por vezes nervoso, umas palavras ou frases no ar, que adivinham dúvidas ou questões. Certas vezes, ouvem-se murmúrios, cochichos entre dois ou três alunos. Outros arrastam mesas, deslizam os corpos pelas cadeiras, tamborilam sobre os tampos das mesas, baqueteiam uma caneta ou um outro utensílio ao seu dispor. Ocasionalmente, estas manifestações são de cansaço, de irritação, de fatiga e não transpõe ou acrescentam, a priori, interesse à atividade a decorrer. Não se traduzindo em conteúdos a transpor, ou em questionamentos sobre os mesmos, encontro nestas palavras e sons, posicionamentos e declarações de fadiga que entendo como chamadas de atenção ou até mesmo provocações que devem ser consideradas pelo docente, talvez para que ele altere a sua prática, mude de ritmo, ou interaja de uma outra forma com os seus alunos... Em todo o caso, poderíamos considerar e catalogar esses sons em duas categorias, segundo Biesta: o “ruído” e a “voz”. Dificilmente estaremos errados sobre a associação que faremos, figurativa, de ruído ao seu significado no contexto aqui abordado. Ruído enquanto sinónimo de uma ausência de harmonia, sons incompreensíveis ou ininteligíveis, que se tornam incompatíveis com a prática do docente, e dessa forma, vêem a sua importância anulada e a sua presença omitida. Será todo o ruído, ruído no sentido pejorativo? Não poderá residir no interior desse ruído a aspiração, a ambição de ser um outro tipo de som? Será que toda a voz é genuinamente voz, com pretensão de significar?

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Soares dos Reis, Quinta-feira, dia 28 de abril, 2016 Entro na sala e, como habitualmente, o cenário é o caos anárquico, característico daquela turma. Sento-me junto à secretária enquanto alguns alunos saem da sala para recolher as suas capas de desenho. O intervalo nunca contempla tempo suficiente para que estes as recolhem antes de se dirigirem para sala onde decorre a aula de desenho. Neste vai e vem, oiço a Leonor interrogar os alunos acerca da assembleia geral de alunos que tinha decorrido durante a manhã, interrogação essa que foi respondida logo com um certo tom de indignação na voz. I – Ó stora, havia professores a querer participar na nossa assembleia. M – Não acho nada bem! Leonor – Então, mas porquê? - sorrindo para os pequenos. I – Ó stora, acha que faz sentido? O nome diz assembleia geral de alunos, ou seja, é para alunos, não para professores. Leonor – Não vejo mal em terem professores presentes. L – Eu vejo! I – A verdade é que, primeiro, não nos sentimos à vontade para falar de determinados assuntos se os professores estiverem lá presentes. E depois, não faz sentido. Leonor – Vocês podem não querer professores presentes, até aqui eu entendo, mas não quer dizer que isso esteja mal. Mas vocês vão para a assembleia para falar mal dos professores? I – Não se trata disso, stora. São as regras. Sendo assim, porque é que nós não podemos, por exemplo, assistir às reuniões com os encarregados de educação? Leonor – Não estamos a falar do mesmo género de ajuntamento. 42

I – Não faz sentido. As reuniões de avaliação, as reuniões com os encarregados de educa-

ção são sobre nós. São do nosso interesse. Então porque não podemos participar? Toda a sala levanta-se para fazer uma ovação às palavras da colega. Batem palmas. Assobiam. Leonor – Ó meninos, calma. Sentem-se. Vocês não podem participar nessas reuniões porque existe um documento, que estipula a quem são dirigidas e quem pode e deve estar presente. Esse documento, oficial, é o regulamento interno. Ponto. O descontentamento permaneceu estampado nos rostos de alguns no restante decorrer da aula.

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“Neste diálogo, a palavra espectador não é obscena: significa um dos momentos necessários ao diálogo. Seria impensável um diálogo no qual os dois interlocutores falassem constantemente ao mesmo tempo, emitissem mensagens sem recebê-las. A obscenidade começa quando o diálogo se transforma em monólogo, quando um dos interlocutores se especializa em falar e o outro em ouvir, um se especializa em emitir mensagens e o outro, em recebê-las e em obedecer-lhes – um se transforma em sujeito e o outro, em objecto. Essa relação, na qual um aparente diálogo é, na verdade, um monólogo, existe em toda parte, em todas as relações inter-humanas. Ela existe, ou tende a existir, nas relações professor-aluno, (…) ” (BOAL, 1980: 26) O caso que vos transporto até este capítulo ilustra, de algum modo, esta visão do aluno que não vive oprimido pela imponência dos monólogos. Embora nem todos os casos se apresentem como o presente. É um aluno falante. Falante, no sentido de utilizador da língua, indivíduo que emite sons e que com e através destes comunica, fala, constrói enunciados. Demonstra que ele possui uma voz, um espaço seu e, de afirmação, dentro do processo de aprendizagem. Segundo uma educação emancipadora, todos os estudantes podem falar. Parte-se então do pressuposto que eles não carecem de capacidade para fazê-lo e que não estão a produzir o tal ruído de que falava anteriormente. A importância não está, somente, no que os alunos entendem como também naquilo que eles dizem. No ato do discursar, o homem transmite o seu conhecimento, faz poesia, e é nesse sentido que o mestre emancipador exige a presença do(s) discurso(s), que simbolizam a manifestação da inteligências ou das inteligências, inconscientes de si ou descuidadas. Mas há, ainda,

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um outro olhar sobre o significado dos ruídos ou das vozes, que são tidas como ruídos. O mestre explicador olhará para as manifestações dos seus aprendizes e reconhecerá neles o seu caráter de ruído ao invés de voz, porque estes encontram-se na condição de aprendiz, o que subentende a necessidade em aprender e, simultaneamente, a incapacidade de falar. Admitimos que, durante o percurso na condição de aprendiz e até ao fim da sua educação, ele só conseguirá ou poderá emitir ruído. Isto conduzir-nos-á a pensar que a obtenção de uma voz estará sempre subordinada à explicação do mestre porque os jovens são incapazes de compreender aquilo que pensam e falam. Impetuosamente, o mestre fará seu o discurso do aluno, inscrevendo nesse os seus próprios pensamentos e discursos, negando, por mais uma vez, a capacidade em pensar e falar dos seus aprendizes.

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A DISCIPLINA DA INDISCIPLINA: Da ideia do Desenho ao corpo do Desenho.

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Sumário, lição n.º 4 Dissecação do Desenho. Matéria inorgânica. Dissecar o Desenho como quem disseca uma rã nos laboratórios. Pode o desenho ser entendido como um corpo? “O desenho é o motor do mundo, cerne da arte, entendido enquanto fonte de comunicação, estando na origem de todas as civilizações. Sem desenho não existiria conhecimento. E devemos esse conhecimento aos primeiros seres humanos, que foram os primeiros artistas.“ (2015, in As idades do Desenho, Gantes, p. 141)

Desenho. Disegno (italiano). Designar? Apontar? Realçar? Bem, qualquer uma destas ações, ainda que sinónimos, reveem-se no ato de desenhar. A incisão de uma evidência. O destaque de um pormenor. A produção ou reprodução da realidade. O desenho surgiu logo como fonte de comunicação, como uma linguagem simbólica, percetível a todos e para todos. Devemos agradecer, talvez, humildemente, ao Homo sapiens que, de sangue, ornamentaram cavernas com as suas próprias histórias desenhadas, permitindo que herdássemos este legado. O do Desenho. O de uma utilidade e premissa mãe do desenho. Mas, ainda que o desenho seja este instrumento linguístico, é necessário vê-lo e pensá-lo na sua esfera física. Nos seus movimentos, na sua gestualidade, no seu tempo e na sua espacialidade. Inúmeras são as vezes em que, inconscientemente, o corpo responde pela boca de onde lhe falham as palavras. Gesticulando, abrindo caminho para gestos ora amplos ora mais tímidos, rotativos, extensivos, damos pelo nosso corpo a desenhar no espaço, a desenhar no vazio, traduzindo imagens que representam ações e/ou ideias, levando-nos a concluir que o desenho existe, igualmente, fora do papel. Fora do suporte. Ainda que, nervosamente, rabisquemos aborrecidos, ou cansados, sobre o canto de um caderno, esperando que a aula termine, ou que a chamada no telefone caia. Desenho, eu, já não só com a intenção de transmitir uma história, uma ideia… Desenhamos só pelo ato de desenhar. Desenho que surge como posologia, como tratamento que dispensa receita médica, que dispensa cápsulas repletas de componentes químicos, contra algo, o aborrecimento, a rotina talvez. Desenho porque faço parte desta geração ansiosa. Pilar basilar das artes. Talvez não haja arte, obra sem antes existir desenho. Desenho é projeção, é gesto sim, mas também pensamento. Base da pintura, base da escultura. Desenho presente que se haverá ausente. Não se lhe lê os seus vestígios, pelas camadas que lhe são posteriores, mas sabemos que ele existiu, que ele está presente ainda que invisível aos nossos olhos. Existiu num tempo. No seu tempo. O tempo do Desenho. Mas ler-se

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tempo em desenho subentende compreendê-lo em várias camadas, várias ramificações. O tempo da sua execução? O tempo da sua existência? O tempo da sua projeção? Continuámos a comunicar, a contar as mesmas histórias? Em parte, sim. Mas o desenho tornou-se mais… Certo? “O desenho, com a sua capacidade de dar a ver e de estudar o projecto, e as leis íntimas que governam e produzem a natureza, permite agora, ao invés, que o arquitecto, o escultor ou o pintor, eles mesmos, operem como auctores - como projectistas ou criadores, indivíduos capazes de engegno, i.e., de exercitar os seus próprios poderes intelectuais nas encomendas que recebem. Trata--se da descoberta de um novo horizonte que administrava, mesmo se dissimuladamente, a produção das mais diversas artes. É com esta ordem de razões que, cerca de um século e meio depois, Francisco de Holanda dirá que o desenho é a « raiz de todas as ciências», ou que Giorgio Vasari o proclamará «pai das três artes nossas, a Arquitectura, a Escultura e a Pintura, que procedendo do intelecto extrai de muitas coisas um juízo universal».” (PAIXÃO, p. 25)

Eu e o desenho? (paro para me rever, a mim, nesta relação de anos.) “Há uma idade do desenho que associamos à infância e à memória da infância que percorre todas as idades. Vivemo-la nos primeiros anos da nossa existência e revivemo-la no prazer da criança que desenha naturalmente. Porém, a dimensão cultural e científica da expressão infantil, embora continue a suscitar novas perspetivas de conhecimento, não preenche o “tempo de vida” do desenho, que comporta várias facetas, quer na vertente evolutiva do processo histórico, quer no quadro da imaginação criativa e da personalidade artística.” (MARQUES, 2015: 6)

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Quando desenhamos, em pequenos, reproduzimos maioritariamente o nosso mundo envolvente. A família. A casa. A natureza. A cidade. Os animais. Os elementos que fazem parte do nosso quotidiano. Reproduzimo-lo, parece-me, com uma intenção subconsciente de tornar esses referentes nossos ou ainda mais nossos, de lhes atribuir significados, outros, mais íntimos. Ainda que, por vezes, isto surja primeiramente como uma forma de ocupação do tempo. Desenhar não é enfadonho, não é uma atividade desgostosa nesta fase da infância e surge ainda de modo muito espontâneo e despreocupado. Pelo menos nesta etapa da vida. Porquê? Porque não existe o erro, ou o medo de errar. Porque existe uma inocência pura na prática do desenho. Porque não está vinculada a enunciados, nem a convicções sobre o que este – o desenho – deve ser. Enunciados = obrigatoriedade(s)... Concordais comigo?

Sumário, lição n.º 10 Para lá do programa. Somewhere, over the rainbow….

Quando um aluno inicia um desenho na sala de aula, inicia-o com uma série de condicionantes estabelecidas previamente. Formato. Suporte. Material. Intenção. Tema. Técnica. Sabendo que estas premissas, por mais dificuldades ou desinteresses que provoquem ao longo do desenrolar da tarefa, terão de ser cotadas, com uma nota (novamente esta maldita história.). Ainda que estas questões dos critérios e das obrigatoriedades estejam presentes na disciplina do desenho, e não vou aqui discuti-las ou tentar negar a sua necessidade, mesmo não concordando na totalidade com todas elas, preocupa-me a falta de adaptação ou subversão deste sistema. Falar de ensino é falar de organização. Falar de organização é falar de regras e direitos. É falar de privações. É falar de obrigações. É falar de espaços. É falar de limites. É falar de construções. É falar de ocupações. (E todo este pequeno discurso se lê com uma certa entoação negativa, parece-me). {Já alguma vez analisou o programa da disciplina de desenho. Bem, a primeira vez que o fiz, deu-me uma vontade de rir. Não propriamente pelo que lá estava, ainda que determinados momentos dessa escrita me tenham parecido duvidosos e, confesso, tenha necessitado de várias leituras para consolidar e compreender aquela organização “desorganizada”. A razão do meu ataque de riso deveu-se a outra questão… Revi-me nas salas de aulas e corredores da FF (Escola Secundária Francisco Franco), revi os rostos dos meus camaradas, dos meus professores. Revi os exercícios que executei. Revi os episódios carismáticos do meu secundário. Mas não encontrei assim tantas semelhanças como seria expectável com aquilo que era solicitado nas aulas e aquilo que o programa dita. {Porquê? Ah! Esperem aí, a preocupação de quase todos eles, eles – professores, eram os exames nacionais. A primeira coisa que fiz, no 10.º ano, foi realizar um exame nacional. Ah ah ah. Mais uma vez, o monstro saiu da toca.} Supõe-se que o programa cause náuseas, que seja difícil de digerir para alguns indivíduos, quer nos estejamos a referir a professores, a alunos ou até mesmo a encarregados de educação, e confesso considerar-me incluída nessa comunidade. Qual é ou quais são as problemáticas levantadas pela existência do programa de Desenho A que o tornam tão criticado, rejeitado? Quais sãos os problemas dos programas em geral? Em primeiro lugar, a sua condição de fechamento.

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Soares dos Reis Aula de 12.º ano, abril de 2016 Reflexão sobre o programa. Ó tu, arcaico utensílio que surgiste pelas mãos dos homens, num tempo que uns intitulam de moderno, outros de contemporâneo. Que raízes são as tuas, que razões de ser te designaram? Pobre de ti, que procuras, por via das palavras, tornar mais sóbrias as coisas que de sóbrias nada têm. Entre letras e pontuações, pautas de uma voz monótona a sinfonia das jornadas dos alunos e professores por todas instituições escolares. As tuas palavras são soberanas, ainda que esse não seja teu supremo desejo mas antes o daqueles que te deram a vida. Em teu nome, árduas batalhas foram travadas, alcançando em grande número derrotas, em mares de amargura, deceção e cansaço. Invocaram o teu nome em falso e assim o continuarão a fazer, para justificar o mal do mundo. Mas que culpa tens tu? Se não apenas o de servir os propósitos para os quais te invocaram. Não és lei mas tantos são os que fazem de ti esse instrumento de poder. Deveríamos beber de ti o essencial, como de uma fonte, para nos saciar e alentar nessas viagens ao descobrimento do saber. Mas não!!! Não, colocam-nos palas entre os olhos, encaminham-nos para que o teu saber governe os nossos passos diários, para que todas as nossas comunicações sejam feitas por códigos morse, incompreensíveis para muitos, afirmando e espalhando apenas a tua palavra divina. Desculpa-me, se sobre ti caio. Ainda que a violência das minhas palavras te agrida, em verdade, nada disto é dito para ti, mas não estou certa de saber com quem compartilhar esta minha indignação. Afinal, não te criaste a ti próprio, foram outros que te criaram, os mesmos que me tentaram e tentam continuamente criar, a mim e aos outros. Pobre criatura, pobre de ti, que nem consciência te deram para compreenderes que os teus próprios monólogos se voltam e revoltam contra ti, em contradições absurdas. Quanto aos que te leem como supremo, pobre desses, que ainda não se encontraram e ainda não entenderam o valor da invenção, da subversão, dos questionamentos e da confrontação.

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Resume-se ao seguinte: o programa dita, o professor recita e o aluno executa. Que ditados são esses? O que nos diz o programa acerca da própria natureza da matéria que ele prescreve? Não erra, quando apresenta o Desenho como “forma universal de conhecer e comunicar” (Programa de Desenho A – 10.º Ano, p. 3) nem mesmo quando o proclama como “área estruturadora de muitas outras áreas de exercício profissional, que nela se baseiam ou que do seu exercício partem” (Programa de Desenho A – 10.º Ano, p. 3). É poético quando nos recorda que é uma área de projeção íntima, na qual cada estudante se interioriza e se consciencializa sobre si e, nesse processo, conhece-se e reconhece-se, aceita-se a si e ao outro, aceita a diferença e abre-se para a inovação. Recorda-nos que o desenho não deve ou não é apenas “aptidão de expressão” ou somente “área de investigação nos mecanismos de perceção, de figuração, ou de interpretação” (Programa de Desenho A – 10.º Ano, p. 2), traduz-se igualmente num modo de ação, em atitudes e posicionamentos perante o mundo, que se pretendem também atentos, exigentes, construtivos e liderantes. Estas últimas noções trazem-me à memória palavras de Eisner, onde o autor, referindo-se às artes em geral, dizia que estas ensinavam os alunos a “agir e julgar na ausência de regras, a confiar nos sentimentos, a prestar atenção às nuances, a agir e apreciar as consequências das escolhas, a revê-las e, depois, fazer outras escolhas.” (EISNER, 2008: 10). Assume, de facto, a importância do professor, salientado que é ele quem se incuba da missão de contagiar e criar um ambiente, não estando certa de que ambiente se trata. Ele deverá assegurar que a dinâmica se afaste de “sistematizações rígidas ou permanentes” (Programa de Desenho A – 10.º Ano, p. 4) já que a esfera das artes, quer nos estejamos a referir ao desenho, ou a outra prática artística, é alvo de mutações no plano conceitual, nas suas configurações e formas. Até este ponto, nada me invoca repulsa pela ferramenta – programa. Uma das primeiras problemáticas, a meu ver, surge quando se leem as seguintes frases: “Do mesmo modo o desenho é uma disciplina que permite ou auxilia com sucesso o processo contínuo de integração dos adolescentes: é o campo da inserção e da assimilação da diferença, pela atracção que a área pode exercer sobre aqueles que a força centrífuga das organizações poderia afastar do ciclo da renovação escolar e geracional.” (Programa de Desenho A – 10.º Ano, p. 3)

Tristemente, releio o excerto interpretando as suas palavras com uma conotação misericordiosa, isto porque apontam o desenho como o lugar onde as almas perdidas, que foram pelas instituições escolares renegadas, rotuladas com insucesso, encontrarão um espaço de salvação para, desse modo, renovar a sua presença e dar continuidade aos seus estudos.

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Desenho visto como a disciplina do facilitismo? Do lazer? Da recriação? Incongruente discurso quando, anteriormente, afirmava a sua utilidade e pertinência para todos os indivíduos, em todas as áreas, pelas aprendizagens que proporciona na área da perceção visual, da expressão gráfica e da comunicação visual. Continuando a análise ao programa, reforça-se esta última ideia: “(…) o desenho assume-se, hoje, como piloto na área emergente da «educação para a cidadania»”. Não deveriam todas as áreas preocupar-se com a educação para a cidadania? Não é a escola, já por si, um mecanismo que procura assegurar essa mesma educação, por via dos regulamentos internos, sistemas organizacionais? “UM CORPO DISCIPLINADO É A BASE DE UM GESTO EFICIENTE.” Vigiar e Punir de Michel Foucault Novamente, concebe-se o desenho como a disciplina disciplinadora. A prática que encaminha para o aperfeiçoamento, que educa os comportamentos, que corrige. A disciplina enquanto ato de domesticação, também. Então, porque domesticamos? Para aperfeiçoar. Será apenas essa a intenção? Aperfeiçoamos o quê, na disciplina do Desenho? Os saberes em torno da matéria do Desenho, entendidos pela aquisição de habilidades, das técnicas, conhecimento das matérias e utensílios e manuseamento dos mesmos, reconhecimento de autores e referências diversas ou, como também se pode ler nas entrelinhas, os corpos e mentes dos alunos? Que efeito é esse que a escola procura? O de ensinar, certo. Contudo, parece-me que se deva multiplicar o termo, torná-lo plural, não nos podemos então guiar por um mas antes por múltiplos efeitos. Ensinar é base, mas existem variações quanto aos modos de ensinar, objetivos e a existência de ritmos e métodos diversificados. Domesticar é tornar, então, por via da prática, da repetição rotineira de tarefas e exercícios, as respostas do corpo mais imediatas, mais velozes, mais eficientes. É afastar do erro, é retificar e corrigir também posturas e carateres, já que, no ato da repetição aprendemos a reconhecer as nossas falhas com o propósito de uniformizar. Ou não? O altar dos objetivos. Quais são? Que diretrizes assume o programa? Que outras mensagens e interpretações podemos fazer delas? Lemos, no Programa, os seguintes objetivos (Programa de Desenho A – 10.º Ano, pp. 6-7):

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• Usar o desenho e os meios de representação como instrumentos de conhecimento e interrogação; • Conhecer as articulações entre perceção e representação do mundo visível; • Desenvolver modos próprios de expressão e comunicação visuais utilizando com eficiência os diversos recursos do desenho; • Dominar os conceitos estruturais da comunicação visual e da linguagem plástica;

• Conhecer, explorar e dominar as potencialidades do desenho no âmbito do projeto visual e plástico incrementando, neste domínio, capacidades de formulação, exploração e desenvolvimento; • Explorar diferentes suportes, materiais, instrumentos e processos, adquirindo gosto pela sua experimentação e manipulação, com abertura a novos desafios e ideias; • Utilizar fluentemente metodologias planificadas, com iniciativa e autonomia; relacionar-se responsavelmente dentro de grupos de trabalho adotando atitudes construtivas, solidárias, tolerantes, vencendo idiossincrasias e posições discriminatórias; • Respeitar e apreciar modos de expressão diferentes, recusando estereótipos e preconceitos; • Desenvolver capacidades de avaliação crítica e sua comunicação, aplicando-as às diferentes fases do trabalho realizado, tanto por si como por outros; • Dominar, conhecer e utilizar diferentes sentidos e utilizações que o registo gráfico possa assumir; • Desenvolver a sensibilidade estética e adquirir uma consciência diacrónica do desenho, assente no conhecimento de obras relevantes.” Os objetivos são aspirações sobre um determinado objeto. Como nos recorda Eisner, existem virtudes em ter-se objetivos e, mais ainda, em meu ver, na capacidade de os concretizar. Contudo, não há apenas valências em ter-se objetivos, sobretudo quando esses são comuns a todo um grupo de indivíduos. O que acontece, é que estes se tornam um “empurrão para a uniformidade” (EISNER, 2008, 8), quer nos estejamos a referir aos objetivos, ou consequentemente, aos conteúdos, à avaliação e às próprias expectativas alicerçadas aos mesmos. Os objetivos prescritos pelo programa em pouco ou nada contradizem as ideias formuladas sobre o caráter e funções do Desenho mas, no entanto, há, na prática destes nas salas de aula, uma retração, um recuo que enfatiza a aquisição de habilidades e técnicas em detrimento da construção de sujeito, de espaços de autonomia, debate e investigação, que é notória. Não questiono a necessidade de aprendizagens focalizadas sobre uma desenvoltura do desenho, sobre a exploração e domínio de materiais e técnicas, no entanto, quando falamos de ensino artístico, neste caso em particular, de desenho, não devemos esquecer que esta educação não procura germinar artistas, mas criar “identidades autorais” – isto traduz-se na possibilidade dos alunos desenvolverem ideias, sensações, habilidades e imaginação para criar um trabalho genuíno. O programa da disciplina de Desenho A, apoia a autonomia dizendo o seguinte:

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“Na gestão quotidiana, sugere-se a disponibilização permanente, para cada aluno e ao longo do ano, em paralelo com as Unidades de Trabalho que toda a turma executa, de pelo menos uma outra Unidade gerida pelo discente. Esta deverá ser: 1. Proposta pelo aluno, sendo a escolha do(s) tema(s) materiais e suportes livres. 2. Alterável ao longo do ano lectivo, de acordo com as opções do aluno e com as transformações que o seu percurso observa. Esta Unidade de Trabalho «permanente» permite ao aluno a auto descoberta, dentro de parâmetros de responsabilização, autonomia, expressão e criatividade.” (Programa de Desenho A)

A noção de fechamento, a que me referia sobre os programas em geral, parece não ser aplicada, pelo menos na sua totalidade, ao programa de Desenho A, atendendo que abre brechas para que o aluno seja inserido nas tomadas de decisão sobre a sua própria atividade letiva, sendo-lhe proposto que selecione e escolha características para um ou mais projetos pessoais a desenvolver ao longo do ano letivo. Ainda que acredite que esta esfera do envolvimento pessoal do aluno, acerca dos seus interesses e que envolve a escolha de suportes e materiais, deveria acontecer um pouco por todas as restantes unidades de trabalho, já que muitos dos objetivos de Desenho sugerem que os alunos tenham uma postura autónoma, que se deveria manifestar na forma de iniciativas, no desenvolvimento de espírito crítico, comunicação, contextos que considerem novos desafios e ideias. No entanto, continuando a leitura do excerto acima, o programa completa e justifica a existência dessa ou dessas unidades de trabalho “permanentes”, de caráter individual, com o seguinte: “Não se indica uma proposta temporal para esta Unidade devido ao seu carácter transversal e alternativo. É uma forma de minimizar perdas de tempos lectivos devidas a desacerto de ritmos entre alunos, a falhas de material, ou outros. Essa unidade alterna interpoladamente com as outras unidades de trabalho, ao longo do ano, dependendo de cada aluno o seu ritmo e respectivo desenrolar temporal, e sem haver necessariamente encadeamento sequencial ou sincronia dentro da turma.” (Programa de Desenho A – 10.º Ano, p. )

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“É uma foram de minimizar perdas de tempos letivos devidas a desacertos de ritmos entre alunos, a falhas de material, ou outros.” Talvez seja pela estrutura do discurso ou pela sua sequência, a leitura do mesmo reencaminha-me, de novo, para uma ideologia do desenho enquanto modo de ocupação do tempo, não importando a forma desde que esse tempo se transforme em tempo rentável, que resulte na produção de algo. Rentabilizar o tempo, eliminar as ausências. Discurso político. Discurso industrial. Já não se

trata apenas de encontrar uma pedagogia, na disciplina do desenho, que seja “geradora de posturas, de debates, de crítica, de exposições, de confrontos” (p. 3). Pergunto-vos, então, que posicionamentos são assumidos? Que debates são gerados, quais os seus assuntos? A quem são levantadas as críticas e quais os fundamentos das mesmas? Quem se encontra envolvido nesses confrontos? As exposições que gerem encontram-se inscritas em que discursos? Continuemos. ±Acesso não autorizado± Os dissensos da escrita à prática. O caso maismenos. Durante os últimos meses, pude assistir a uma série de conferências ligadas ao ensino artístico e não só, assim como às artes, em geral. Uma delas, teve lugar na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, era intitulada de “Design visto de fora”. A compilação de oradores era abrangente, sendo oriundos de áreas distintas e que, à primeira vista, nada teriam que ver com o design. Não é, no entanto, sobre o design que vos falarei mas sim sobre um acontecimento narrado por um dos oradores, Miguel Januário. Abro um pequeno parêntesis para contextualizar, de forma breve, o foco das intervenções deste artista plástico, talvez mais conhecido por vós pelo seu mais recente projeto na cidade do Porto, o mural “Quem és, Porto?”. Para quem desconhece por completo a obra deste artista, as suas peças, manifestações e intervenções, existem nos espaços comuns da cidade, ou das cidades, com frases assinaladas sempre com o símbolos “+” e “–“, imagens que surgem talvez com uma carga de profanação, invasivas e com intenções provocativas, sobre questões sociais, políticas e económicas. A razão pela qual vos trago a história desta pessoa prende-se com um episódio vivenciado pelo próprio, na Soares dos Reis, em 2015, quando este foi convidado a partilhar o seu processo de trabalho e as suas obras à comunidade escolar da mesma. Explicou-nos que, durante a sua apresentação, devido a falhas técnicas, teve a necessidade de aceder a sua página de internet a partir da rede da Soares dos Reis, de modo a poder completar a sua apresentação com imagens que ilustrassem os seus projetos. O que se sucedeu está representado na imagem, ver Figura II , que se segue. Dispensa comentários. Pelo menos, a minha vontade é a de não dizer muito mais sobre isto. Os factos falam por si, e as conclusões são óbvias. O programa inscreve-se num discurso que procura inserir nas práticas e metodologias quotidianas, a valorização estética e uma consciência, tanto sincrónica como diacrónica do Desenho. No entanto, estas devem assentar “no conhecimento de obras relevantes”. (Programa de Desenho A, p. 12). Que referentes são relevantes? Quem determina essa relevância? Porquê? Desculpa Januário, não és relevante para o ensino das artes, pelo menos do ponto de vista do governo, és uma ameaça. Ameaça à mente dos jovens. Os teus projetos são vírus, podem causar

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distúrbios, náuseas, sensação de mal estar. Não acredito que o convite que foi dirigido ao Miguel Januário pela direção da Soares dos Reis tivesse sido feito de ânimo leve, nem que tenha surgido descontextualizado ou desligado de alguma prática artística contemporânea ou moderna, que fosse útil ou interessante partilhar com a comunidade escolar. Pelo contrário, julgo que a escolha se tenha prendido pelas construções sociais envolvidas nos seus projetos artísticos que contêm “representações das realidades sociais” que fortalecem a ideia de que o ensinamento das artes contribui para o entendimento e contemplação das paisagens sociais e culturais nas quais os indivíduos se encontram inseridos (HERNÁNDEZ, 2007: 39). Como podemos então entrar num plano mais abrangente, atual e reflexivo, se não criamos espaços de discussão, de provocação, de comparação, de questionamentos? Se as práticas e teóricas continuam com a tónica em autores “mortos”? Uns dias depois, estava eu a acompanhar as aulas de uma das turmas de 10º ano, e o mesmo me aconteceu quando procurava mostrar-lhe referências sobre aguarelistas. Destino ou ironia?

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Figura IV- Acesso não autorizado, imagem retirada do facebook MAISMENOS

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±POR MOTIVOS RELACIONADOS COM O CONTROLE DE MASSAS O SEGUINTE 'GRAFFITI' NÃO SERÁ EXIBIDO. IMPOMOS DESDE JÁ AS NOSSAS DESCULPAS. QUALQUER TENTATIVA DE EXIBIÇÃO SERÁ PUNIDA DEMOCRATICAMENTE (ISTO É, FORA DA ARENA PÚBLICA) POR UMA LEI CRIADA POR NÓS PARA NOS DEFENDER DE QUALQUER TIPO DE DISSIDÊNCIA. AGORA CIRCULE, OBRIGADO±

±A GUERRA, AS MIGALHAS, HABITUAÇÃO, DOENÇA E MÁ EDUCAÇÃO±

±NO PRESENTE É PASSADO O FUTURO±

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Preciso de uma pausa. (Estou a desconcentrar-me e sinto-me a confundir e a perder o rumo da história ou da escrita). Talvez queiram também aproveitar para relaxar, beber um copo de água, fumar o vosso cigarro. Falávamos do Desenho e da relação que o ser humano tem com o Desenho. A relação que o ser humano tem com o desenho dentro de uma instituição – a escola. São coisas distintas, atenção, bem distintas. Ao escrever estas últimas palavras, revejo uma das alunas que acompanho na Soares. Já por vários momentos que a encontro sentada à porta da sala, durante o tempo de recreio, a desenhar, ora personagens retiradas de narrativas ficcionadas como o caso do E.T. de Spielberg, ou em outras ocasiões a Mélanie Martinez (cantora, que eu desconhecia, mas pude interrogá-la sobre a sua identidade), personagens oriundas dos imaginários de Tim Burton, enfim, uma panóplia de figuras que, claramente, fazem parte dos seus interesses. Curioso, ou não, é que a magia do depositar, do traçar de linhas que ocorria à entrada da sala se desvanece, quase tão repentinamente, como o simples passo que a orienta para o interior da sala. O que noto não acontecer apenas com esta aluna em particular. O que se altera neste cenário? O referendo? O enunciado? O objeto? O entusiasmo? O interesse? O espaço? A disciplina? O professor? O gesto? A intenção? O ritmo? Disciplina. DISCIPLINA. Disciplinar. DISCIPLINAR. Discípulos. DISCÍPULOS. Disciplina, etimologicamente. O termo remete para a esfera da escravidão, da domesticação, de esforço, de dor, de sofrimento. Disciplina. Quando pensamos em disciplina, pensamos automaticamente em domínio ou dominação do corpo a uma determinada postura e a mente a determinados comportamentos e atitudes. Não será surpreendente, como tal, que as disciplinas escolares, sejam exatamente isso, uma domesticação, uma normalização de modos de pensar e agir acerca de determinadas ciências, determinados saberes. Como é que se ensina o desenho, pergunto-vos? Domesticando os gestos. Domesticando a postura. Domesticando o olhar. Domesticando o modo de ver. Domesticando a atenção sobre o detalhe. Domesticando a atenção sobre o todo. 61

Sumário, lição n.º 8 A anatomia do Desenho.

O desenho é um corpo. O desenho, no ensino, é um corpo disciplinado. Talvez pareça bárbaro dizer que é corpo, talvez provoque, ainda mais, dizer que o Desenho é um corpo que se deixou disciplinar no universo escolar. Se afirmasse que o desenho necessita do corpo, ninguém negaria tal facto, a necessidade do objeto-corpo para a sua execução e existência. Se afirmasse que a obra, aquilo que é depositado num suporte, independentemente da sua natureza, e a este chamasse corpo do desenho, também nada de novo acrescentaria. Mas, então, porque me parece que referir-me ao desenho como um corpo possa suscitar algum desconforto? Por certo, não terei sido nem a primeira, nem a última a refletir sobre estas questões. Quando nos referimos ao termo corpo para definir algo, mencionamos tudo aquilo que compõe e constitui uma unidade orgânica ou inorgânica. Um conjunto de elementos. Nenhuma estranheza poderá surgir então, a este ponto, sobre a ilusão do Desenho como Corpo. Concordaremos todos que o Desenho é composto por uma série de constituintes que o formam enquanto arte, enquanto expressão artística, enquanto disciplina. (Parece-me que terei de voltar a estas divisórias do Desenho e encontrar diversos corpos de acordo com as suas utilidades e funções: Corpo da Disciplina do desenho não é semelhante ao corpo do Desenho enquanto expressão artística pura, ainda que uma encontre a razão da sua existência na outra). Não será descabido, por consequente, pensar-se e imaginar-se uma anatomia do Desenho, já que assumimos que este é corporalizado por membros diferentes e de variáveis funções. Peço que recriem, por instantes, a imagem de um corpo humano, tal qual o concebemos e o conhecemos. Se vos pedisse para associar aos membros, características do Desenho… exceto uma ou outra ambiguidade, terminaríamos todos por concluir, mais ou menos, o seguinte: Um desenho processual, um desenho geométrico, rigoroso, cuidado e faseado, moraria no cérebro; no entanto um desenho expressivo, tosco ou até mesmo bizarro, sobreviveria nas extremidades do nosso corpo, nas mãos e nos pés, ou em membros aos quais não associamos diretamente o ato de desenhar. Quanto às questões de ritmo, de tempo, de melodia e sequência, os ouvidos terão sua cota parte de responsabilidade nessa matéria; e quanto aos olhos? Bem, estes serão sempre o motor de toda ação, talvez como uns pulmões que fazem viver o corpo, … mas, então, e os pulmões? Talvez se possam associar ao tempo, aos inspirar e expirar de cada traçado, … 62

--Soares dos Reis Quinta-feira, 22 de outubro. A manufatura do desenho ou um dia na fábrica escolar ou a representação poética de uma aula. Corpo. Ritmo. Coração. Respiração. Pulmões. Ar. Inspirar. Traço. Expirar. Traço. Cérebro. Pensar. Observar. Riscar. Memorizar. Detalhe. Marcar. Diretrizes. Linhas. Guia. Proporção. Incorreta. Apagar. Visão. Observar. Objeto. Referencial. Descrever. Suporte. Grafite. Pensar. Parar. Falar. Desconversar. Rir. Impaciência. Gesticular. Folha. A3. Objeto. Brilhos. Sombras. Borracha. Inventar. Grafite. 8B. Ler. Formas. Volumes. Contrastes. Texturas. Traduzir. Descrever. Evidenciar. Continuar. Permanecer. Insistir. Gráfico. Desistir. Recomeçar. Desesperar. Mudar. Perspetiva. Objeto. Recomeçar. Corpo. Ritmo. Respiração. Coração. Ver. Calma. Ruído. Eliminar. Pulmões. Respirar. Inspirar. Traço. Expirar. Traço. Repensar. Compreender. Perder-se. Recomeçar… O corpo procura o ritmo no pulsar do coração que se move sob a respiração, nuns encontramos uma pulsação mais veloz, noutros mais pacífica. O ar penetra nos corpos pelo inspirar e, nesse ato, o traço surge, expira-se e outro traçar aparece, o cérebro, bombeado de oxigénio e sangue, pensa na observação que realiza e nas mil outras coisas em que podem os adolescentes pensar. Risca o que memorizou, ou na retina ou na memória, dos detalhes. Marca as diretrizes, traduzidas em finas linhas, guias de cegas proporções, provavelmente incorretas. Apaga, retorna ao exercício da visão, observa de novo, o objeto tornado referencial, descreve-o no suporte, com a grafite, pensa. Para. Desconversa, fatigado para trás, em risos impacientes, gesticula como quem já não suporta permanecer em frente a folha de tamanho A3. O objeto apresenta-se diferente, os brilhos mudaram, as sombras alteraram-se, não se procura compreender, em mente só uma solução. A amiga borracha, salvador de qualquer mártir. Solucionados os excessos, é necessário inventar novos, munidos dos ogres 8B, os mais negros, leem-se as formas e volumes, procura-se sem grande preocupação os contrastes e texturas, e traduz-se, descreve-se, evidencia-se, como sempre em demasia, sem a necessária ou esperada delicadeza. Continua-se nos excessos. Permanece-se na insistência da estupidez gráfica e por fim, desiste-se. Para tudo recomeçar, após uma pausa de desconversas, desesperos, muda-se o suporte, muda-se a perspetiva do objeto. Recomeça-se, o corpo procura o ritmo, no pulsar do coração que se move sob a respiração, nuns, mais veloz, noutros, mais pacífica. O ar penetra nos corpos pelo inspirar, e nesse ato o traço surge, expira-se e outro traçar aparece, o cérebro bombeado de oxigénio e sangue, pensa na observação que realiza e nas mil outras coisas em que podem os adolescentes pensar….

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“Nos séculos XV e XVI, foi mesmo considerado o princípio fundado da teoria, da aprendizagem e da actividade artística. Esta mudança radical na concepção do desenho e na relação deste com as outras artes, esteve directamente ligada à revolução no sistema de representação visual ocorrida durante o Renascimento. Nesta época, a arte passou a ter como exigência representar a realidade exterior com verosimilhança. Em face desta exigência, o desenho tornou-se o instrumento privilegiado para treinar o olho e a mão, para alcançar o rigor e a precisão na representação, para assimilar noções como as de perscpectiva e proporção, sem as quais qualquer tentativa de imitar a realidade se tornava vã. Saber desenhar passou a ser condição necessária e indispensável para um artista se poder afirmar como pintor, escultor e arquitecto. Neste contexto, o desenho fio instituído como disciplina obrigatória e basilar na aprendizagem artística e assumiu uma função selectiva.“ ( N.W. & N.F. in A indisciplina do Desenho, p. 15)

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O corpo a corpo. Esta luta entre dois corpos - desenho e aluno -, que lutam pela sua sobrevivência, não é surpreendente. Muito menos a dificuldade do corpo-aluno, corpo dócil, domesticado, que combate um corpo que tem uma natureza indisciplinada dentro de um programa disciplinado. Se o desenho se institucionalizou como uma disciplina imprescindível e indispensável para os futuros artistas, dentro do ensino artístico, ninguém se oporá a esta verdade nem mesmo à vitalidade dessa existência. Contudo, poderemos questionar as raízes e origens das suas práticas bem como as próprias práticas. Com certeza, é preciso treinar o olhar, treinar a mão, para que cada aluno possa, de forma rigorosa e precisa, representar e demonstrar a aquisição de noções sobre perspetiva e proporção, como o é exigido pelo programa. Mas o desenho não é apenas precisão, delicadeza ou realismo, representação fidedigna da realidade. O desenho é mais. Quando me referia anteriormente aos corpos, diferentes, do Desenho, reportava-me exatamente a estas questões. O corpo, a anatomia do Desenho enquanto disciplina não corresponderá, parcialmente ou na sua totalidade, à morfologia do Desenho entendido dentro do campo e da expressão artística. Poderá parecer-vos bizarra esta ideia. Entendo que há uma dimensão que é completamente ocultada ou colocada de lado quando nos referimos ao desenho enquanto disciplina, Corpo-dócil, que num Corpo-Emancipado – Desenho compreendido como expressão artística, tem uma posição movedora. Essa dimensão talvez seja a que permite uma pulsação, o respirar das criações, trata-se da dimensão emocional/sensorial. Atenção, que não me refiro à arte, ou, neste caso em específico, ao desenho como um espaço terapêutico, não! Desejo, desde já, afastar esse discurso ou qualquer ideia que se relacione com ele, embora se reconheça essa componente nas áreas artísticas. Essa visão parece-me reduzir, drasticamente, o seu potencial. Quando refiro o emocional, não me refiro apenas à dimensão afetiva, ao lugar dos afetos. Entendo que se trata igualmente da dimensão do eu. A subjetividade do aluno e o seu envolvimento no processo de criação.

Como tal, o corpo-emancipado do Desenho, não se apresentará igual para todos, porque depende da visão que cada sujeito tem sobre si e sobre a sua própria prática, sobre o seu próprio desenho. Entendo que, para alguns, a presença de um ritmo será mais importante e eficaz enquanto que, para outros, a observação será influente no seu confronto com o desenho. Compreendeis que, deste modo, não existirá apenas um Desenho ou um modo de fazer universal do Desenho. Para um projetista ou um arquiteto, por exemplo, entendo que os órgãos vitais da sua prática desenhista sejam o cérebro e o olhar, permitindo que ele deposite no papel, não apenas um espaço mas as ideias sobre esse espaço, a sua estrutura, a sua visão, de um modo que seja essencialmente eficaz para si. O Corpo-Desenho, a sua anatomia, enquanto corpo da disciplina de Desenho, segundo uma leitura do programa de Desenho A, poderá assimilar-se ao desenho – ver Figura III - que vos apresento, esboçado durante o estágio, numa aula de Desenho). As ligações do corpo omitem a existência de determinados órgãos, de determinados membros, como se estes, no processo do desenho, tivessem um papel secundário ou, em determinados casos, nulo. Que corpo construir para a disciplina do Desenho? Pergunto-vos, que experiências permitirão abranger todos os membros do nosso corpo nesse processo? Que valências poderemos retirar de um corpo-emancipador e emancipado? O desenho e a caligrafia são semelhantes, enquanto ato. Ambas linguagens, nunca poderão ser consideradas como um jogo estritamente privado/íntimo porque nelas reconhecemos a sua utilidade, as suas funções comunicativas. Ambos atos, inscrevem-se em gestos nossos, formas que convergem em símbolos, que objetivamente representam ou comunicam intenções. Enquanto a escrita necessita de regras, quer nos estejamos a referir à gramática ou à sintaxe, uma vez que, sem as quais, aquilo que escrevemos perde o seu sentido ou a sua comunicabilidade, tornando-se incompreensíveis ao leitor. No caso do desenho, ainda que possamos evidenciar a presença de uma gramática desta linguagem (variações tonais, cor, proporção, perspetiva, traço, matéria), esta pode ser anulada ou alterada no decorrer da incisão, sem que perca as suas “características sensíveis e comunicativas” (RODRIGUES, 2003: p. 40).

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Figura V- Uma anatomia do Desenho, rascunhos do pensamento.

“It is social actors who use the conceptual systems of their culture and the linguistic and the other representational systems to construct meaning, to make the world meaningful and to communicate about that world meaningfully to others. “ (HALL, 1997: 25)

Uma anatomia do desenho que potencia a aquisição de habilidades. Esta é, até ao momento, a visão que tem prevalecido nas práticas que tenho vindo a vivenciar ao longo do estágio, inscritas e prescritas pelo programa e que eu também vivenciei, enquanto aluna, no ensino secundário. Inevitavelmente, para que essa aquisição e para que os domínios se deem, as práticas devem estar inscritas num sistema metodológico cíclico, repetitivo e específico: o exercício da cópia. Ironicamente, a cópia está para as disciplinas práticas como a memorização está para as disciplinas teóricas. Não? Talvez seja uma guerra pessoal, um trauma, um recalcamento, mas não conseguiria escrever todas estas páginas sem mencionar o meu problema com as cópias. Se o corpo do desenho, enquanto disciplina, é um corpo que se apresenta imutável, com predominância anatómica dos olhos, mãos e cérebro, deve-se em parte à prevalência e insistência, a meu ver, da presença de exercícios de representação pelo método da cópia ou desenho à vista. A representação é parte crucial do desenho e de qualquer área ou intervenção artística. Sempre que produzimos, estamos inevitavelmente, até inconscientemente, a representar, quer se trate da realidade, de um objeto, ou até mesmo de um conceito ou ideia, etc. ... Representar é um processo de significação, de desenhar ou escrever símbolos. Representar é gerar semiótica. Contudo, quando representamos com a intenção de mimetizar, reproduzir da forma mais fiel possível, quer seja com a intenção de imitar, quer para consolidar conhecimentos sobre a aplicação da técnica ou o modo de fazer da realidade ou do objeto/obra observada, não estamos a atribuir ou a transpor outros ou novos significados aos objetos. Ou até mesmo aos observadores que verão o nosso desenho. Se desenhar “La Gioconda” de Da Vinci, ainda que a execute com infinita semelhança, nunca lá será minha, será sempre “La Gioconda” de Da Vinci. Estamos a perpetuar os métodos, as técnicas, os assuntos, as razões, e, de certo modo, as convenções que se tem sobre o desenho e o seu ensino - o sistema de representações. “Perspectival projection, however, is not synonymous with vision (see Berger 1972: 16, Brysson 1083:1-12, Jay 1994:54-60), but it has been taken to be so. Once this is appreciated, then we can argue that drawing ability is not defined by the ability to represent the way we see the world, but by a drawing’s correspondence with a particular representational system. Further, we can then see that ability in drawing is recognized and constructed within this dominant representational system.” (ATKINSON, 1998: 45)

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Poderíamos não ver nada de errado na perpetuação de um sistema representacional do desenho, entendido aqui como a repetição dos seus cânones, das noções de perceção e proporção, contudo são estas que dominam o campo das artes, a sua linguagem, e ditam as sentenças quando chega o momento da avaliação, da reflexão sobre o desempenho e aptidões dos alunos. Porque aqueles cuja habilidade é reconhecida serão sempre aqueles cujos desenhos se igualam ao referente, respeitando a gramática do programa. Não estará em causa a abertura para novas interpretações, nem mesmo modos de ver, nem novos significados. A representação que se afasta da possibilidade de uma desconstrução, construção ou mesmo reconstrução, de significados e símbolos é, do meu ponto de vista, contraditória às ideias que se tem sobre o que é ou que valências, que vontades são as de um ensino artístico. Afinal, procuramos ensinar homens para que se tornem técnicos ou para que construam uma identidade artística, um caminho próprio, uma linguagem íntima, uma expressão única? Procuramos que eles repliquem, como papagaios, as visões de outrem ou que façam jus dos seus próprios ideais, pensamentos e manifestem os seus modos de ver e percecionar não só o desenho, como também as artes e o próprio mundo? “A representação do Outro ou de si surge pois como manifestação de uma presença no mundo, como ponto de vista sobre esse mundo, mas também como forma de potencialmente recriar ou restaurar. Representar é sempre revolucionar. É sempre uma forma de protesto contra o desvanecimento do SER no tempo.” (MEDEIROS, 2000: 65)

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Talvez o que procuro ou idealizo seja um ensino do desenho, e até mesmo reportando-me para a globalidade do ensino artístico, onde a prática se consciencialize, em primeiro lugar, da necessidade, da importância e do impacto que modos diversificados de olhar o mundo possuem na construção do saber, do conhecimento e, mais do que essa consciência, incorporem e envolvam de igual modo os olhares daqueles a quem ensinamos – os alunos. Luís Filipe Rodrigues recorda no seu texto “O desenho para a construção do eu numa dialética interior/exterior”, publicado na revista PSIAX, que o desenho “conduz à estruturação de mecanismos mentais, a partir dos quais se criarão novas estruturas, é o produto da relação mente-mão-utensílio-suporte-exterior” (RODRIGUES, 2005: 27). Esta relação, existente em todos os campos artísticos, possibilita não só acréscimos de novas e diversificadas realidades e significações, pelos objetos e símbolos que ganham vida e lugar no mundo, como abre caminho para novas realidades internas – “produto da estruturação mental”. A estruturação mental não é mais do que a representação de uma autoconsciência, de autorrepresentação, da exaltação e amostra da subjetividade de cada sujeito, e da criação e processo de criação. As práticas circunscritas na representação do eu, no posicionamento deste eu perante o Outro e perante o mundo, possibilitam que o aluno se reveja não só nessa condição mas também como indivíduo, ser de múltiplos “eus”. A representação de si, a sua consciencialização, que não impede a implementação

da gramática do Desenho, que tanto salienta o programa, nesta prática de autodescobrimento.

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“ (…) Quinta-feira, dia 26 de outubro, 2015 (última turma de Desenho A da manhã) Local – Escola Artística Soares dos Reis Primeiro bloqueio total. Leem-se, no meu diário de bordo, os seguintes apontamentos: Hoje fui incapaz de me pronunciar porque pareceu-me que qualquer abordagem discursiva iria comprometer a diversidade e multiplicidade de respostas que surgiam ao exercício proposto. Estranho, ou talvez não, quando explico que o exercício em causa se tratava de um exercício básico de transferência de uma imagem, igual para todos os alunos, com os respetivos claros-escuros, a grafite e conseguido através do auxílio de uma grelha. Observo que cada desenho tem singularidades, traço e expressões muito distintas. Um exercício de cópia deste tipo deixaria em aberto a possibilidade de um desenho tipo-máquina, um “produto” executado quase como quem fala de um plágio. Ainda que não seja esse o pressuposto, recordo-me de ouvir falar dessa palavra nesta mesma aula, ao escutar alguém ali presente, referindo-se ao exercício que decorria: “Vamos fazer um plágio.”, disse. (está escrito aqui, no meu diário). Reparo, com algum fascínio, não inteiramente novo, nem para mim nem para outro indivíduo, que este ato, este gesto de desenhar, tem qualquer coisa de caligráfico, qualquer coisa de nosso. Qual é, então, o meu dilema? Para que serve o exercício? Serve, a priori, para que os alunos aprendam a olhar, a observar, a VER o desenho que transferem, não identificando apenas os elementos que compõem a imagem mas sim prestando maior atenção às linhas, às áreas, aos vazios e cheios, às manchas, à ausência ou presença de luz, abstraindo-se da(s) forma(s) conhecida(s) ou da génese das mesmas. Outro alguém disse: “Estás a ver a mão, tens que abstrair-te. Vê apenas as linhas, uma a uma, e desenha-as.”

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O objetivo do exercício é então exercitar a forma como vemos, desenhamos e consolidamos estes dois atos. Trata-se de conseguir a transferência? Trata-se de realizar um plágio? Trata-se de compreender para que serve, assim como as possibilidades do uso da grelha que permite a transferência das formas? Trata-se de executar a técnica da grafite? Trata-se de ter a escala de claro-escuro de acordo com a imagem? “Posso utilizar a mesma grafite para fazer os claros e escuros? Uso diferentes?”, pergunta um aluno. “Estou a fazer bem?”, questiona outro aluno. O que é o “fazer bem” deste exercício? O que é o “fazer bem”? Não quis pronunciar-me porque vi em cada traço, em cada linha depositada nas folhas, uma riqueza infinita de respostas que, de algum modo, me deixou desconfortável para impedir que se continuasse. Um desenhava sempre depositando as manchas a 45º graus, outro num emaranhado de linhas com mais ou menos intensidade, outros esfumavam usando o material próprio, outros davam uso às suas próprias mãos (dedos), … A verdade é que cada um, à sua maneira, encontrou soluções para responder aos problemas com que se deparavam na realização do exercício, e essas mesmas traduzem, de certo modo, uma identidade singular do desenho. Então, em que campo estou? Para que sirvo? O que devo observar e corrigir? O que é o “erro” do desenho? Quais são os “erros do desenho”? Se falássemos de um desenho sem cópia, um desenho que se baseasse no ato de depositar linhas seguindo apenas um gesto, nunca estaria em causa a questão da comparação, muito menos do erro. O meu problema está aqui – na domesticação do gesto. Como é que leciono desenho sem disciplinar, sem “domesticar”? Como me afasto da tendência de tornar os alunos em reprodutores-máquinas de um modo de desenhar. “A ideia de que um desenho possa resultar de um gesto da mão tão controlado que anule qualquer vestígio do seu autor, uma espécie de máquina impessoal de riscar, é quase o próprio oposto do acto de desenhar.” (RODRIGUES, 2003: p. 65)

Regressando às memórias da aula: Juntaram-se os desenhos da primeira turma no quadro com o propósito de observar e comentar o trabalho em processo. Quando foi altura de recolhê-los, no término da aula, alguém retorquiu: “não sei qual é o meu”. --72

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A DISCIPLINA DO DISCIPLINADOR

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Sumário, lição n.º 20 educação x artes = caos2

Equações. Problemas. Soluções.

Pode o ensino resumir-se a isto? Não. A matemática é lógica, é cuidadosa, é exata. O ensino em nada se compara a este sistema, ainda que, em muitos casos se tentem aplicar fórmulas aritméticas. Exemplos? O caso da validação que se concede aos alunos aquando a avaliação dos seus desempenhos. O pesadelo das notas. Ai as notas, malditas notas… que tanto dizem de nós como, simultaneamente, nada dizem. Recordando um excerto do documentário de Silvano Augusto, “Di amore si vive”, uno bambino italiano, afirmava que “a nota nada tem que ver com a vida. Na vida existe o amor, o prazer, a felicidade, … descobrir a vida.” Nada disto é matemático nem quantificável, estúpido seria querer quantificar sentimentos como estes. Então porque teimamos, e a teima grande culpa tem neste processo, em classificar ou atribuir um número para diferenciar? Não é apenas nesse momento que os números ganham importância. Os alunos são, na fórmula do sistema, um modo de identificação. Não foi o aluno João quem faltou mas sim o aluno 7. Isto induz uma perda: a da identidade do indivíduo e, por consequente, da sua origem. A escola é entendida como um aparato, uma máquina composta por várias peças e engrenagens. Para que ela funcione de acordo com aquilo que é desejável por quem a configura tal e qual ela é, é necessário que estas peças encaixem de forma correta, exata e precisa. Tal é impossível pois as peças desta maquinaria são imperfeitas, diferentes, recortadas e formuladas no exterior da instituição. Embora não seja sobre esse assunto que o presente capítulo se desdobra, e já tenha referido ao longo do primeiro que, a escola enquanto instituição, vai suavemente naturalizando formas de estar no seio da própria, que encaminham para um despojar da identidade de cada um, começando por aquilo que os permite identificar – os números. Como pode o professor olhar para os jovens indivíduos que tem à sua frente como apenas mais uma fração, mais uma peça? Não pode. Não é real. Não é possível. Quando iniciei a elaboração da proposta didática que viria a apresentar e realizar com os alunos das turmas de 10.º ano de escolaridade, na Escola Artística de Soares dos Reis, não pude desligar-me das suas essências de seres humanos. Não via números, não via uma multidão. Via, sim, indivíduos com desejos, anseios, vontades, sonhos, preferências, questões, ambições, problemas enfim, SERES HUMANOS. Multiplicidades de singularidades, de biografias. Como então transpor estas individualidades para o espaço do

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ensino? Parece-me importante refletir sobre esta questão. Ser professor não se resume à tarefa de transpor e comunicar saberes de diversas fontes e naturezas, trata-se de saber introduzir o universo pessoal de cada aluno nessa transmissão, de modo a que os estímulos por aquilo que se aprende sejam maiores e mais cativantes. E, esta premissa, da presença da identidade do aluno no desempenho das suas funções de aluno, no desenrolar do seu papel, é, no ensino artístico, vital já que não se trata, neste cenário, apenas de ensinar técnicas, manuseamento de materiais e matérias diversas. Trata-se também de forjar, de iniciar a criação de uma autoria, de narrativas pessoais, únicas. Percebi, no decorrer do primeiro período, que a reação a determinados exercícios de Desenho rapidamente se transformavam em situações enfadonhas, cansativas e movidas ao vapor do desinteresse, o que me levava a questionar o porquê de tais manifestações de desespero por uma disciplina que é, ou deveria ser, no meu entender e na sua essência, livre, expressiva e comunicativa. Alguns alunos não entendiam, outros não queriam entender os referentes utilizados para a transmissão e aprofundamento de técnicas e modos de operar um desenho. Durer “é giro”, é desafiante a ideia de se poder, até certo grau, reproduzir uma imagem de um artista, “fielmente”, mas que ligação tem esta imagem que a ver com eles? Toda e nenhuma. É uma referência para os alunos, certo, é importante, ninguém o nega, que estes referenciais existam na vida dos alunos, compreendendo aquilo que foi feito e realizado no campo do Desenho e no campos das Artes Visuais ao longo do tempo mas e em termos de aproximação? De fascínio? De admiração? Paro por uns segundos estes raciocínios para recordar uma passagem do meu diário de bordo:

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Soares dos Reis Quarta-feira, dia 16 de Março 2016 Falta de filtro, parâmetros e limites dos alunos. Os jovens são seres fascinantes, alguns destemidos e despreocupados das consequências dos seus atos e discursos. Estávamos nós em mais uma aula de desenho, iniciava-se a nova proposta. Ilustração. Achava a proposta cativante já que se tratava de reinventar imagens para um conto/história pela qual todos nós já nos apaixonamos: Alice no País das Maravilhas. O bloqueio era geral, o esperado concretizava-se. Inevitavelmente, as referências aos filmes produzidos pela Walt Disney, ou ainda o mais recente realizado pelo Tim Burton, foram evocadas. Acaso dos acasos, nesse dia tinha decidido trazer uma série de livros de ilustradores diversos, uns nacionais e outros internacionais, para lhes sugerir novas e diferentes abordagens. O mesmo acontecera com a Professora Leonor, que lhes trazia umas “bíblias”, obras biográficas de diferentes pintores. Decidimos formar um círculo ao fundo da sala, expor os livros que havíamos trazido e discutir, folhear, questioná-los. A determinado altura, numa das turmas, o barulho e os palrares eram tantos que já não nos entendíamos. A Leonor questionou, nesse instante, uma das alunas sobre o que discutimos no momento. Mais uma vez, não ouvira nada, e respondeu sobre um assunto que havia sido debatido minutos atrás. Ia, no entanto, acrescentar algo quando a professora Leonor se antecipou e procedeu à explicação da técnica utilizada por um dos pintores que estávamos a analisar. Nesse momento, interrompe outra aluna, afirmando que aquilo que a anterior ia dizer era importante, que a professora deveria ouvi-la. Como tal, fez-se silêncio para escutarmos a “miss desatenta”. “Ó stora, isto é uma perda de tempo…. Já estamos atrasados. Isto não é importante.” Esbocei um sorriso, intrigada e contive o riso. ---

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Não passará de um referente. No entanto, volto a frisar, concordo com a presença deste e não lhes nego a sua importância, quer se trate de educar o olhar, de perceber o modo como a técnica foi aplicada para transmitir determinados conceitos como a composição, a perspetiva, a proporção, o claro-escuro, as manchas e texturas, … e ainda compreender a evolução das próprias técnicas, relações e motivações que levavam a criação de tais obras. A frustração é maior quando não igualamos a imagem que tentamos reproduzir. Ainda maior quando não lhe conseguimos atribuir nenhuma semelhança, porque não somos nós que ali estamos, é outro, que nos é desconhecido. No entanto, esta verdade não era aplicável no que via acontecer. Os alunos sem qualquer pudor ou medo, procuravam reproduzir as imagens da Disney, do Burton, despreocupados com a sua semelhança mas, no entanto, satisfeitos. Porquê? A familiaridade destas referências era óbvia. Aqui há gato e este não desaparece. Quando o enunciado parte do eu, eu como sujeito de múltiplas narrativas, múltiplas possibilidades, o cenário altera-se, drasticamente. A atenção que cada um dedica ao desenho é maior, mais preocupada, mais concisa e por vezes arriscada. Quando os pequenos desenharam um referencial que não era seu, desligaram-se da imagem, alguns com dificuldades, outros com destreza de malabarista, desenhavam de memória, não prestavam a mesma atenção, o referendo não lhes interessava, e tão pouco os desafiava. Quando eu passo a ser o referendo, tudo muda. Pelo menos, na maioria dos casos, pois não esqueçamos que nem todos reagem do mesmo modo, e que, no ensino, generalizar é quase um ato vulgarizado que, a meu ver, se torna bárbaro e desmedido. Não pretendo que a minha prática venha a ser ou tornar-se generalizante. Não vejo nisso qualquer tipo de escapatória para o impasse no qual se encontra o ensino atual - imóvel, redutor, sem futuro, despreocupado com as ambições e desejos dos jovens que educa diariamente.

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Dos encontros semanais com estes jovens, que já não vejo apenas como estranhos colocados no mesmo sistema pois, ainda que com propósitos e objetivos distintos, já se ausentaram da categoria de desconhecidos que ocupavam quando os conheci no primeiro dia. Tornaram-se algo mais, porque se criou uma relação, algo que, na verdade, não é neutro…. Uns abalam-nos mais, deixam-nos ir para casa com dores de cabeça, com sensação de desconforto, com um nó na garganta, porque não conseguimos chegar aos objetivos que tínhamos previsto para esse dia; outros ganham asas, arriscam, comprometem-se com o que executam, experimentam diariamente, deixando-nos caminhar para fora das paredes da escola com a sensação de satisfação, de trabalho concluído. Em todo o caso, o trabalho não terminou, muito pelo contrário, só se iniciou. As relações que se criam, são de compromissos. Eu comprometo-me a ensiná-los, mas para isso, também eu devo ultrapassar obstáculos. Tenho que entender o que os leva, por vezes, a desmotivar, o que os faz

sonhar… Não se entendem estas coisas com meras conversas de circunstância. É necessário criar laços, mais fortes, mais enraizados. Estas raízes não só apenas vinculadas aos saberes que temos de lecionar, nem apenas ao que eles gostariam de aprender, prendem-se também com as emoções, com as convicções, procurar o que cativa cada um enquanto indivíduo e todos enquanto coletivo. “Mas se tu me cativares passarei a ser único para ti e tu único para mim no mundo”, St. Exupery, em o Principezinho, dizia-nos algo como isto, e revejo um pouco deste pensamento na minha prática, na necessidade de cativar os alunos. De os conhecer. De os compreender. E o inverso. Para melhor ligar aquilo que eles têm de aprender, por obrigação, ainda que essa obrigação não seja sinónimo de aprendizagens menos prazerosas, estimulantes ou inspiradoras. Isto persuade-me a pensar que o professor não está no púlpito apenas a observar os comportamentos extremistas, os bons e maus alunos, quem se vira para trás para conversar, quem está atento à aula, quem se levantou para ir pedir material emprestado, quem levanta a mão para ir à casa de banho. Para que servem estas observações no final? Impossível será, para quem se debruça nestas questões, não recordar as ideias que Foucault evocava no seu livro Vigiar e Punir. A verosimilhança do aparato organizacional, quer nos estejamos a referir ao campo físico, quer ao campo comportamental de instituições como as prisões, hospitais e escolas. O modo rotineiro e sistemático como a ordem é imposta, diariamente. Os ciclos de tarefas repetitivos, a repartição do tempo, a fragmentação e divisão dos seres em espaços já de si fracionados, a imposição de regras que permitem ao sistema um maior controlo dos seus ocupantes, independentemente do seu papel. De que serve toda esta vigilância? Assegurar o seu bom funcionamento, assegurar que serve os seus propósitos, sejam estes os de domar indóceis corpos, ensinar os ignorantes, tornar útil a sua presença e atribuir uma razão para a existência destes corpos nestes mesmos espaços.

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Sumário, lição n.º 21 As relações no discurso escolar: de Foucault a Rancière. “Percorrendo-se o corredor central da oficina, é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual; constatar a presença, a aplicação do operário, a qualidade do seu trabalho; comparar os operários entre si, classifica-los segundo as suas habilidades e rapidez; acompanhar os sucessivos estágios da fabricação. Todas essas seriações formam um quadriculado permanente: as confusões se desfazem; a produção se divide e o processo de trabalho se articula por um lado segundo as suas fases, estágios e operações elementares, e por outro, segundo os indivíduos que o efectuam, os corpos singulares que a ele são aplicados, cada variável dessa força – vigor, rapidez, constância – pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada, contabilizada e transmitida a quem é o agente particular dela. “ in Vigiar e Punir de Michel Foucault

Peço-vos que se sujeitem a este pequeno exercício de leitura. Retornem ao excerto referenciado anteriormente e, na presença de termos como operário ou operários, procedem a sua alteração, introduzindo a palavra aluno, alunos; no caso de oficina, leiam sala de aula. Surgira algo como: “Percorrendo-se o corredor central da sala de aula, é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual; constatar a presença, o empenho do aluno, a qualidade do seu trabalho; comparar os alunos entre si, classifica-los segundo as suas habilidades e rapidez; acompanhar os sucessivos estágios de aprendizagem. Todas essas seriações formam um quadriculado permanente: as confusões se desfazem; a produção se divide e o processo de trabalho se articula por um lado segundo as suas fases, estágios ou operações elementares, e por outro, segundo os indivíduos que o efectuam, os corpos singulares que a ele são aplicados, cada variável dessa força – vigor, rapidez, constância – pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada, contabilizada e transmitida a quem é o agente particular dela – o professor. “ “Lugares determinados se definem para satisfazer não só à necessidade de vigiar, de romper as comunicações perigosas, mas também de criar um espaço útil” in Vigiar e Punir de Michel Foucault.

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O professor deve ter um pouco a postura de flanêur, no sentido de deambular, momentaneamente, pelas fileiras, retirando aos seus passos o tom de castigo e acrescentando-lhe uma esfera de abertura, de descoberta, de atenção: maravilhar-se com conversas, e quiçá, participar nelas. O professor não tem apenas uma tarefa, o que pressupõe que não tenha apenas uma postura única.

Esta questão das explicações… que grande chatice. Introduz a ideia de obrigação, da necessidade de uma atenção desdobrada, de discursos prolongados e fatigantes, ….

Teorizar o desenho é para os alunos uma grande “seca”, citando o português destes jovens seres, que não poupa na expressividade e no descontentamento dos mesmos. Confesso que, até certo ponto, compreendo e vejo-me forçada a concordar com estas afirmações ainda que, por outro, este estado de “secura”, de indiferença e frieza, de onde nada germina se deve, sem dúvida, ao modo de apresentação, à “forma” - morfologia como é comunicada, em “modus operandis”, esse saber tornado convencional por um punhado de autores e ainda a linguagem escolhida pelo professor para transmissão de todas estas questões. Explicações. Espontaneamente, surge-me a imagem de um livro e de um adulto que explica o livro, o professor ou mestre, que tenta, no compasso da aula, traduzir por suas palavras aquilo que já fora traduzido por quem se encarregou de compilar e conceber esse mesmo artefacto. Irónico certo? Esta necessidade de sintetizar, mais e mais, simplificar, mais e mais, até que já só restem adjetivos para explicar? Necessitará todo o exercício de explicação? … ex•pli•ca•ção |eis| ou |es| 2 substantivo feminino 1. Exposição clara (de coisa difícil, obscura ou duvidosa); esclarecimento; interpretação. 2. Satisfação, desagravo. 3. Prelecção (feita pelo professor), sobre o texto. 4. Aula particular.

Expor conteúdos de forma clara. (Como expor com clareza o Desenho e a sua complexidade e multiplicidade… Como usar a linguagem para esclarecer questões que são do campo da visualidade, por vezes da intuição? …) Mestre explicador, não me parece que este papel seja o meu, pelo menos não no modo que seria expectável de qualquer professor segundo aquilo que se entende pela definição que Rancière nos devolve, em o Mestre Ignorante. Evitei um confronto pedagógico estilo passo a passo: 1- desenhar as linhas diretrizes; 2- desenhar as linhas exteriores (contorno); 3- desenhar as linhas interiores,

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- Definição de “explicação” retirada da página internet do Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

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etc.; ou, ainda pior, encarnar num desses fantásticos manuais cujo título “Desenho para totós”, aliciante por outras palavras, a um público que pensasse não possuir qualquer tipo de habilidade na matéria ou, ainda pior, qualquer tipo de inteligência. De nada servem estas pedagogias, a meu ver, até porque reforçam a opinião dos tolos que persistem, por teimosia, em achar que os alunos são cabeças ocas, vazias, tábuas rasas. (Inúmeras foram as vezes que recordo ter ouvido esta expressão no primeiro ano deste mestrado sobre o que os alunos são ou se pensa que são ou se pensava que eram…) Agrada-me pensar que, dentro desta minha primeira prática oficial, ainda que introduzida no seio do Estágio Curricular do Mestrado, tenha encontrado o meu lugar em algo que se possa assimilar a um mestre ignorante, como o de Rancière.

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Sumário, lição n.º 45 A lição das lições.

--Diário de estágio 21 de fevereiro de 2016 [ Power Point ] (O rato dirigia-se para cima do ícone alaranjado, ou vermelho, bem não sei, depende do ponto de vista, e em nada isto interessa, … um clique se fez ouvir.) Abria o programa para preparar a apresentação da proposta que iria começar no dia seguinte. [”DAS COISAS NASCEM COISAS”: DO AUTORRETRATO AO PADRÃO] Lia-se em grande, centrado no meio do diapositivo. Era o título desta nova unidade. Automaticamente, no diapositivo seguinte, iniciava uma listagem dos tópicos do programa que viriam a ser mobilizados ao longo desta unidade, assim como enunciava, simultaneamente, os exercícios que anunciavam as etapas ou processos para a concretização de toda a proposta. De diapositivo em diapositivo, a minha cabeça começava a embalar-se… Pensei que fosse o cansaço mas ainda que este fosse algum, o sono não chegava porque a ansiedade e nervosismo eram tantos, que o resultado fora uma noite mal dormida. Se não era o sono, então outra coisa seria… enquanto continuava nesta minha tarefa… o meu cérebro lançava-me sinais de fumo. O balançar dos meus olhos não se devia ao sono mas aos pequenos textos e imagens que me encontrava a compilar para o dia seguinte. Subitamente, vi os rostos destes que seriam os” pequenos adoráveis monstros” que enfrentaria amanhã, logo pelas 8h30. As suas expressões deixavam transparecer cansaço, outros espreguiçavam-se sobre os estiradores, sob uma luz fraca que tinha origem no exterior onde o dia ainda se abria aos poucos, sem luz artificial ligada, somente a de um projetor, onde estas mesmas palavras e imagens que compilava viriam a ser reproduzidas… Olhos fechados, roncos, ressonares… ALERTA SECA. ALERTA SECA. PARA! (Carregava novamente num ícone, desta vez uma cruz sobre um fundo branco. Uma janela abria-se: “Deseja guardar as alterações?”) Não…? NÃO! Isto dos power-

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point em Desenho não faz sentido. Como apresentar a proposta então? Raios. Nada presta. Não quero ter um monólogo às 8h30 da manhã. Nesse momento, viajei para uns meses anteriores, para uma aula da Inês Moreira, na qual se falara de um projeto … qualquer coisa com árvores, conversas em torno de árvores, disposições de sala… REDONDO!! Neste caso, duas, desniveladas. Vou conversar com eles, resolvi. Pedirei um voluntário para ler a proposta e, à medida que este desmistificará os exercícios, eu mostrarei os que realizei em casa de acordo com os enunciados que lhes dei. ---

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Comecei, esclarecendo o jogo e as suas regras, não me coloquei no tão esperado púlpito. Não me agrada esse estado de altivez. Ao invés, sentei-me como igual, ao lado dos meus alunos, conversando com eles. Meus. Meus. Minha responsabilidade. As regras iam sendo proclamadas por um outro que não eu, voluntário predisposto a tal tarefa. Para meu espanto, não houve o habitual caos do início de aulas, nem as mil conversas cruzadas do costume. Cada um, atento ao que o colega dizia… Quando os ruídos se tornavam inconvenientes, alguém reclamava a ordem, pedindo silêncio. Os colegas com o olhar de culpa voltavam a calar-se e o silêncio se restaurava. Ia-lhes mostrando os meus desenhos à medida que Beta ou Alfa lia a proposta. Acredito que, para alguns, surja com alguma estranheza a minha própria sujeição ao enunciado. Parece-me necessário explicar-vos que, quando me confrontei com a tarefa da escrita de um enunciado, ressoaram na minha cabeça umas palavras soltas. Fui procurá-las: “Sendo assim, não basta reproduzir uma técnica para saber ensinar, mas o professor e artista deve ser um pesquisador com uma reflexão crítica. (…) precisa também de experimentar o processo artístico e compreender o aluno, saber refletir e discutir este fazer, precisa de tratar do processo e da emoção para transmitir o saber teórico […]” (WENDT, 2010: 21). Justificou-se esta experimentação para antecipar questões, para prever reações. Para instaurar um clima de calma e pacificidade, segurança, certeza e, por fim, possibilitar que eu me deslumbrasse perante novas e diferentes soluções. Na primeira turma o impacto foi engraçado. “Foi a stôra que fez?” Calmamente, respondi que sim, que tinha testado em casa cada exercício para lhes poder mostrar, visualmente, que tipo de possibilidades e interesses eles tinham. Alguém deixou escapar um “Que fixe!”. Outros mais preocupados com a duração de cada um perguntavam-me quanto tempo tinha demorado a fazê-los. Menti-lhes acrescentando mais uma punhada de minutos. Não lhes posso dizer toda a verdade, se lhes disser que fiz em 20 minutos eles vão deitar-se ali, à sombra da janela, já que não há bananeiras, e deixar andar….

Mas a minha insatisfação continua… Quero mais, quero ser mais… Quero outras experiências, quero outras vivências, outros conflitos. Conflito não é mau. Questionar é bom, é preciso permanecer nestas questões, nestas dúvidas… Não quero, nem acho que seja possível, definir um manual de procedimentos e práticas didáticas para os professores. Não. É necessário que cada um encontro o seu próprio caminho, as suas próprias metodologias. Esse processo não pode ser singular, tem de ser produzido por várias entradas, que não pode afastar os alunos das suas construções, pelo contrário necessita deles para existir. A proposta desenrolou-se, sem necessitar das minhas interpelações ou explicações,

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pelo menos não com a frequência que seria expectável de um professor. O propósito, residia na possibilidade de cada aluno, encontrar os seus meios de adaptação, de resolução, de interpretação do próprio exercício. Um pouco como em Telêmaco. Sem a necessidade de uma ordem explicativa, esmiuçadora. Então, poderíamos afirmar que morri, temporariamente. Ou ausentei-me do meu próprio papel, da minha função ou da ideia que se tem sobre ele. Criei um espaço de indagação, de reflexão, individual e coletiva que partia dos alunos, não de mim. As minhas preocupações passaram a ser outras, que não apenas a aquisição de um modo de construir módulos, nem tão pouco de aplicar conceitos como o figura e fundo, ou assegura a eficácia da cópia por via do métodos da grelha ou ainda, a execução correta dos materiais envolvidos nas fases do processo. Deixo-vos, no anexo I, a proposta de trabalho sobre a qual vos falo agora, se tiverem curiosidade. A minha inquietação tornou-se entender se, de facto, os alunos haviam compreendido a ideia chave que lhes procurava transmitir com um enunciado aberto a múltiplas possibilidades.

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RASCUNHOS, RABISCOS E GATAFUNHOS ou as considerações finais

Chega o tempo, inevitável tempo, de dar um término a esta escrita. Confesso que este momento talvez seja o mais complexo e igualmente ingrato. Ingrato porque nunca estaremos completamente certos de um fim. No meu entender, não existem fins, existem aberturas, novas, outras, novos começos ou recomeços … É, de facto, necessário que as reflexões aqui trazidas não sejam encerradas neste objeto, caindo no abandono ou no esquecimento. Que utilidade terá todo este trabalho de meses se assim o for? Cabe-me, então, recalcular as rotas, definir novas metas, direcionar o futuro para questões que não encontraram um sentido ou uma resolução aqui, porque não residia neste espaço o seu lugar. Talvez nem tenham apenas uma solução mas sim múltiplas, diversificadas e complexas respostas. Ou talvez, se ele – o relatório - não tivesse determinadas limitações, pudesse ter tido a oportunidade de mais explorações. A verdade é que a satisfação paira um pouco, por todas as páginas aqui devolvidas. Uma satisfação pelo desencadeamento dos fenómenos e episódios de um estágio enriquecedor, tanto no plano profissional, académico e pessoal que, inevitavelmente, trouxeram à luz do dia debates que não seriam estes, mas outros porque diferentes teriam sido as circunstâncias, as especificidades. Mais do que recapitular, porque esse exercício não tem muito mais do que a pretensão de resumir, de forma exageradamente breve, os discursos que foram sendo construídos aqui, faseadamente, em todo este objeto, pretendo sujeitar-me à reflexão sobre os questionamentos levantados pela minha própria escrita, esta escrita. Deste modo, o excerto que se seguirá, existiu recalcado, reprimido e encostado, ora nos intermédios, ora no final dos sumários, saltando de capítulo para capítulo, recuando por vezes à introdução para logo ser reencaminhado para o fim de um capítulo ou até mesmo de todo o documento. As associações possíveis eram, para mim, óbvias desde o momento em que recordei esse texto. Os lugares para a sua existência nunca se aparentavam adequados, oportunos, adiando a evocação deste. Creio que, por fim, encontrei o seu lugar. O tempo ajuda a esclarecer as dúvidas, por mais não seja pelo tempo que nos deixa a conviver com elas.

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“Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo nela quem têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites Não é tudo isto verdade? Ainda mal. “ (VIEIRA, 1654: 2) Pois bem…Pois mal! “Ainda mal”. Eis o problema: a educação carece de pregadores; os pregadores carecem de sal e de vontade de salgar; o sal carece de sabor; a terra carece de sal e de vontade de se deixar salgar. Nada mudou. António Vieira pregava aos pregadores e à terra para que salgassem e se deixassem salgar. Continuamos a pregar as mesmas doutrinas, embora os tempos sejam outros. Deveríamos recordar, com mais convicção, as palavras de Camões: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Continuamos com um desejo de salgar para que cada indivíduo se converta à aventura da sua expansão intelectual e psíquica, para que parta à conquista de novos territórios, descubra novas culturas e se emancipe, de si próprio, do outro e do mundo. Talvez os pregadores devessem deixar de servir a Cristo e, desse modo, pregar novas doutrinas, para quebrar feitiços e antigas artimanhas e cessar de sucumbir às vontades de um ídolo. Compreendeis que me refiro aos docentes e à sua relação com as políticas educativas e com os fantásticos manuscritos que intitulamos de programas. É preciso “desconfiar de qualquer nostalgia por uma origem perdida: subjetividades inteiriças, consciências lúcidas, saberes imaculados, comunidades solidárias, sociedades integradas. Não existe nenhuma origem perdida a ser recuperada, nenhum passado mítico ao qual regressar, nenhum tempo feliz a ser revivido” (CORAZZA, 2003: 9). O professor deve desprender-se de si, das suas práticas e metodologias, deve questionar-se, interrogar-se e reinventar-se. Morrer. Não, não me refiro a uma morte literal mas sim a uma morte impulsionada pela possibilidade de um renascer. Um renascimento direcionado para um outro e diferente eu. Fala-se da Morte do autor, em Foucault, quando não atribuímos ou reconhecemos a presença deste ser na leitura da obra. Quando dele já nada parece restar senão um nome que ressoa quando recordarmos excertos. Ainda que dele tenha surgido a escrita que propicia pensamentos, questões, enredos e narrativas…

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ele apresenta-se ausente, apresenta-se esquecido, um pouco como numa pintura, ainda que a ela se

atribua a questão da autenticidade, da expressão,… tais termos existem igualmente, de aspeto cru, na escrita. O que nos é devolvido não é ele – o autor – mas o ato do seu pensamento, da sua

imaginação, das suas angústias e dúvidas. Ele deixa-nos o seu legado, questionando, vivendo e revivendo-o connosco, sem que por vezes nos recordemos. Eis, talvez, o lugar do professor. O lugar do morto. Não, não me refiro ao posicionamento do professor nas relações com os agentes educativos do Triângulo de Houssaye, ainda que deste exemplo se possa concluir que necessitamos do docente bem vivo no processo de aprendizagem. E, já que esbarrei sobre o assunto, deixai-me tecer algumas considerações. Os triângulos são formas territoriais. Definem fronteiras. Interior e Exterior. Dentro e fora. Ligações entre vértices. É nas relações da forma geométrica que Houssaye se baseia quando expõe as suas ideias sobre as relações pedagógicas. Eu, no entanto, gostaria que olhássemos para essas mesmas relações não só a partir de um, mas sim de várias triângulos. Triângulo apenas nas extremidades, já que as peças que compõem o objeto pelo qual gostaria que observássemos o ensino, são de forma retangular e preferencialmente talhadas de material reflexivo como o vidro. Caleidoscópio. Este objeto acompanhou a realização de uma das propostas desenvolvidas com as turmas que acompanhei ao longo do estágio, pelo que indubitavelmente marca a sua presença nesta reflexão, pois permitiu-me ver o universo escolar de um outro modo. Permitiu-me concentrar a atenção sobre os detalhes, sobre pormenores de um objeto ou assunto observado, possibilitando uma visão fragmentada e multiplicada, complexificada. “Não há pormenores, não há pontos insignificantes no mundo, há apenas sujeitos desatentos” (TAVARES, 2013: 380). Talvez seja não só uma metáfora para a necessidade de eliminar determinadas fronteiras pedagógicas, permitindo um interpolamento, entre assuntos, entre modos de ver e pensar, como também um modo de potenciar deslocamentos pluridirecionais, em movimentos de caráter cíclico, que não necessitam de seguir uma ordem lógica, avançando ora no sentido dos ponteiros do relógio, ora no sentido inverso (mesmo que nos desloquemos para trás, esse movimento não terá de ser forçosamente entendido como um recuo), conjugando e misturando as visões tanto do professor, como do aluno para criar novos significados, novos saberes e novas práticas, mais do que assentar na perpetuação das previamente existentes. Paro. Regresso ao início. É um recuo temporal que se traduz num avançar do texto. Quando fui recebida na Soares dos Reis, a primazia da minha ação residia na potencialidade da observação. Na observação dos pormenores. Das miniaturas. Regresso ao momento em que não tinha apenas um cooperante mas dois. Os assuntos e episódios quotidianos da Soares foram empurrando-me levemente para o encontro com a Leonor Soares. No entanto, assisti ainda a algumas aulas da disciplina de Projeto, do curso de Design de Produto, lecionadas pelo Artur Gonçalves. Nessa primeiras aulas, observava os alunos, observava o quadro de docentes que acompanhavam o Artur na sua missão educativa. Prestava-me apenas a uma função, a da observação. Observava a sala, os espaços

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cheios e os vazios, tudo. Na primeira aula, o meu olhar reteve-se num cartaz, de escrita tosca, que salientava um título a verde: SALADA VERDE DE MUNARI. O objeto afixado na parede que se encontrava de frente para a plateia de alunos recordava, desta maneira, a metodologia projetual de Bruno Munari que ele defende e apresenta no seu livro Das coisas nascem coisas. “O meu amigo Antonio Rebolini diz: «Quando um problema não se pode resolver, não é um problema. Quando um problema se pode resolver, também não é um problema». E com efeito é verdade. Mas esta afirmação origina algumas observações: é necessário antes de tudo saber distinguir se um problema é resolúvel ou não. E para o saber é preciso ter a experiência, sobretudo técnica, que tem o meu amigo Antonio.” (MUNARI, 1982: 39)

Devo agradecer, confesso, a quem colocou essa folha sobre o manto branco da sala, ação que me reencaminhou para a necessidade de adquirir o livro e consultá-lo, perdendo-me em reflexões sobre modos de ação e procuras de problemas. Coisa que por norma evitamos. Com efeito há, nas palavras de Munari, uma veracidade inegável. Um problema que seja solucionável não é um problema, do mesmo modo que um problema que não tenha solução não o é. A educação é um problema sem solução, logo dispensa ser definida como tal. Não existe uma solução. Atenção ao uso do singular. Há, no entanto, a incontestável necessidade de múltiplos e diversos questionamentos, de ações (re)inventivas e reflexivas sobre o lugar da educação e sobre o seu exercer. A experiência de um estágio, numa escola como a Soares dos Reis, não me possibilitou apenas permanecer durante um período de tempo no exercer de uma espécie de lugar oscilante entre o de docente e o de aluno, com vista a complementar ou aperfeiçoar uma formação iniciada no primeiro ano do MEAV. Potenciou, do mesmo modo, fases, estados de espíritos diversificados, que marcaram o meu envolvimento, as minhas perdas e ganhos, construindo uma consciência e olhar, ou uma panóplia deles, sobre a educação artística, e não só. A convivência com subjetividades e modos de operar diferentes, numa comunidade que preza e instiga a criação de modos de ver e percecionar o mundo, mais complexos e ricos, devolvendo-nos ecos de várias sonoridades, possibilitou-me a crença de uma possível salvação. Salvação inscrita em práticas respigadoras. “(…) porque l@s espigador@s actuales no sólo recogen muestras y fragmentos de la cultura visual de todos los lugares y contextos para coleccionarlos y «leerlos», sino para crear narrativas paralelas, complementarias y alternativas. Para transformar los fragmentos en nuevos realtos mediante estrategias de apropriación, parodia y cita. Relatos que les permiten reinventar y transformarse, alejados de dualismos, subordinacio94

nes y limites.“ (HERNÁNDEZ, 2007: 16).

Aos meus ‘emprestados’ alunos, devo a gratidão de me provocarem a desafiá-los, em confissões e desabafos seus, que nas suas entrelinhas se tornaram nossos. Se não fosse o caráter selvagem, insaciável e ávido destes, os meus caminhos não teriam sido estes. É preciso escutar. É preciso escutar com atenção. É preciso escutar os detalhes. Nesse exercício, pude ouvi-los, com uma atenção redobrada, de um modo que talvez só fosse possível na condição de estagiária. Uma triste verdade. A nossa realidade, as nossas ‘experimentações’, puderam encontrar um lugar e um sentido devido à hospitalidade e cedência da Leonor Soares, às nossas aventuras pedagógicas. Uma liberdade que talvez, dificilmente, encontraria lugar numa outra escola. Fizeram de mim, respigadora. Que felicidade e que desafio! Respigadora não só das minhas próprias práticas e experiências como, de igual modo, da nossa cultura visual, com a missão de criar as tais narrativas paralelas, complementares e alternativas de que fala Hernández. Neste processo, prestei-me a um exercício similar ao da construção de um puzzle, justapondo fragmentos retirados de contextos diversificados, criando imagens de apropriação. Talvez, as imagens que estejam em falta. A motivação desses atos surgia da necessidade evocada pelos alunos, de respirar outros ares. Uns ares menos poluídos por convenções e imagens estanques da arte, do desenho. Respirações que procuravam “revelar que qualquer um, em determinado momento, pode pensar como um artista, e que, por motivações, podemos ultrapassar procedimentos meramente técnicos inventando e produzindo modos distintos de ver, de falar sobre arte e sobre si mesmo” (GONÇALVES, 2002: 53). As habilidades e o domínio das técnicas será sempre uma preocupação do programa que, no entanto, não invalida as possibilidades práticas, resoluções, procedimentos outros. Respirar. Respirar… Expirar e Inspirar. Como se desenham esses gestos? Foi partindo de uma prática específica, um exercício proposto pelo docente Paulo Almeida na unidade curricular intitulada de Processos Retórico e Performativos, que se deu aquilo que foi a minha última atividade prática oficial, inserida no estágio. Embora não tenha envolvido a totalidade das turmas às quais se dirigia, este revelou-se uma prática emancipadora, ao sabor de Rancière que expandiu um pouco mais, pelo menos assim o sugeriram as manifestações dos alunos envolvidos, as visões sobre as operações inventivas implicadas na arte e, mais especificamente, no campo do desenho. O exercício original tratava do desenho enquanto transferência-de-uso (ver Anexo II) ou, por outras palavras, da transferência dos gestos de ação de verbos selecionados para o campo do desenho. É necessário salientar que não devolvi aos alunos o enunciado-mãe, sem antes proceder a alterações, reorientações dos propósitos que me levaram a propor-lhes este exercício. Desta forma, os alunos responderam a um enunciado que os questionava sobre a natureza do desenho e dos gestos envolvidos no mesmo, levando-os à compreensão,

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ao longo do processo, de que estes – o desenho e o gesto - não estão circunscritos apenas ao uso da mão ou de materiais externos ao corpo, mas que todo o corpo pode estar implicado e presente no processo. O desenvolvimento do exercício, em vez de solitário e individual, como o tinha sido apresentado para mim, gerou-se na cooperação e no trabalho de pares. Porque ninguém disse que o desenho deveria ser uma prática solitária. Cada par encontrava-se de costas, um para o outro, devendo, no mesmo espaço de tempo, reproduzir o gesto/ação do verbo que ambos deviam transferir para a folha, tendo, contudo, uma preocupação inscritas nas questões do enunciado original: reter a atenção para a anatomia do gesto e o modo como os músculos estão implicados na realização do mesmo; compreender as direções que são tomadas e a força exercida; preocupar-se com o tempo e, implicitamente, com os ritmos, pausas, ondulações; observar as manchas, marcas ou outras inscrições depositadas pelo gestos, procurando compreender a sua natureza. Delicioso exercício, deliciosas experiências. Maravilhei-me não só pela ausência de resistência, que temia se fosse expor e impedir o decorrer do exercício, como pelas soluções, audazes que surgiam. Os questionamentos e interrogações sobre os modos de fazer, que espontaneamente, cada aluna assumia para com o seu par, no sentido de compreender as razões existenciais de cada desenho. Não houve descontentamentos, nem sequer indagações sobre utilidade do enunciado que lhes apresentará. Resta-me esperar, contudo, que este exercício não caia num canto esquecido do subconsciente daquelas alunas, e se cair, que ele possa recordado, em práticas futuras. Estou certa de que Corremos sempre este risco. Quero terminar agora. Neste preciso momento, feliz. A escola não é uma infelicidade. Até é, diria, o momento mais feliz, por mais que não seja, por representar estados de ingenuidade, de preocupações menores, de liberdade de espírito. Não posso, contudo, deixar-vos desta forma… Não seria correto da minha parte, nem para com vocês, nem mesmo para com ela – a dissertação.

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O amargo sabor da despedida. Senti-o, quando me despedia dos alunos. Daqueles rostos risonhos, antes desconhecidos. Talvez seja demasiado sensível, tenho um certo receio quanto aos afeiçoamentos mas quero dizer ao meu futuro eu, que não há nada de mal quanto a isso. Foi esse estado de preocupação e um certo sentido materno, que me levou a dar mais de mim, naquilo que eram as minhas obrigações, perante este lugar de docente, reinventando-me nesta jornada de meses, colocando-me em lugares nunca antes visitados. Desta experiência, ressalva-se a necessidade de mais experiências, de mais espaços de questionamento, mais ambíguos, mais profundos. Com eles, constroem-se novos paradigmas, novos sentidos para a educação artística. Aqui reside o segredo de uma educação verdadeiramente eficaz, preocupada e integradora. Tudo o que não está contemplado aqui será considerado em futuras investigações, em futuros desafios, pois não termina aqui a

minha vontade. Porque o meu corpo não é dócil, ainda que outrora o tenha sido, por isso navegará selvagem, por outros mares, e caminhará por outras terras, na busca insaciada de encontrar, lugares, outros, desta carreira, profissão à qual aspiro – professor.

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