Argentina, Brasil e a independência do Paraguai: os troféus e a dívida de guerra do Paraguai na circular positivista de 1913

June 1, 2017 | Autor: F. Barcellos Teix... | Categoria: Historia, História do Brasil, Historia Argentina, Positivismo, Guerra do Paraguai, História do Brasil Imperial
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Argentina, Brasil e a independência do Paraguai: os troféus e a dívida de guerra do Paraguai na circular positivista de 1913 Fabiano Barcellos Teixeira⃰

Resumo: Fundado em 1881, o Apostolado Positivista do Rio de Janeiro foi muito mais que um local de doutrinação filosófica-religiosa da doutrina comteana. Entre o final do século 19 aos anos 1920, o Apostolado se tornou um centro de ideias sobre a política nacional e das relações do Brasil com os países platinos. No artigo será detalhada uma circular da Igreja Positivista de 1913, contendo mais de 50 páginas, que versa principalmente sobre os troféus, a dívida de guerra do Paraguai e a sua independência política em relação ao Brasil e a Argentina. Palavras-chave: Apostolado; Argentina; Brasil; Guerra; Paraguai; Positivismo. Abstract: Founded in 1881, the Positivist Apostolate of Rio de Janeiro was much more than a place of philosophical-religious indoctrination of Comtean doctrine. Between the late 19th century to the 1920s, the Apostolate became a center of ideas on national policy and the relations between Brazil and the Platine countries. Article will be detailed in a circular Positivist Church 1913, containing more than 50 pages, which mainly deals with the trophies, Paraguay's war debt and its political independence from Brazil and Keywords: Apostolate; Argentina; Brazil; War; Paraguay; Positivism.



O positivismo Desde 1889, com a proclamação da república no Brasil, o lema positivista “Ordem e Progresso” está grafado na bandeira nacional. O símbolo pátrio elucida a relevância transitória que a ideologia positivista criada por Augusto Comte (1798-1857) teve no contexto da escolha da forma de governo do Estado brasileiro, em substituição à monarquia, na qual dominaram as visões liberais. O positivismo teve uma significativa influência também na produção historiográfica brasileira. O positivismo procura ser uma ciência neutra como as ciências exatas da física, da química e da matemática, que despontaram fortemente no século 19, procura ser imune aos interesses e paixões, sobretudo das classes dominantes. Inicialmente o positivismo comteano era contra o tradicionalismo, principalmente clerical do Antigo Regime. O positivismo surgiu como proposta revolucionária, contra a ordem feudal, para logo a seguir se transformar em uma tese fortemente conservadora, com a vitória da ordem burguesa e crítica à última do mundo do trabalho.1 Podemos dividir a produção de Comte em duas etapas: a primeira, marcada pelo cientificismo e a segunda, marcada pela religiosidade. Na primeira fase, a obra Curso de filosofia positiva (18301842) expõe a base da doutrina comteana, cujos alicerces teóricos estão assentados na proposta de três estados do desenvolvimento humano e do conhecimento: o teológico, o metafísico e o positivo. O positivismo era, portanto, visão social evolucionista e mesmo dialética, ainda que em sentido mecanicista. Na fase teológica, o ser humano compreende o mundo a partir dos fenômenos da natureza conferindo a eles caráter divino, encerrando-se essa fase no monoteísmo. Na fase metafísica, a interpretação do mundo é alicerçada em conceitos abstratos, ideias e princípios. E na fase positiva o ser humano limita-se a expor os fenômenos e a fixar as relações constantes de semelhança e sucessão entre eles. Nessa fase, as causas e as essências dos fenômenos são deixadas de lado para se evidenciarem as leis imutáveis que nos regeriam, pois o conhecimento destina-se a Doutorando pelo PPG em História da Universidade de Passo Fundo – RS, bolsista Capes. Professor de história da rede pública da mesma cidade. E-mail: [email protected] 1 Löwy, M. (1994) As aventuras de Karl Marx contra o barão de Münchhausen. Marxismo e Positivismo na sociologia do conhecimento. 5 ed. São Paulo: Cortez. p. 18-22.

organizar e não a descobrir.2 O positivismo no Brasil: Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes Nos anos 1840, o pensamento positivista comteano chegou ao Brasil trazido por brasileiros que estudaram na França, sendo que, alguns deles, haviam sido alunos de Augusto Comte. No Rio de Janeiro, os principais meios educacionais, como a Escola Militar, o Colégio Pedro II, a Escola da Marinha, a Escola de Medicina e a Escola Politécnica, tiveram diversos trabalhos e teses defendidas, tendo como base teórica as reflexões oriundas do positivismo.3 Já o positivismo de vertente religiosa pôde ser atestado no Apostolado Positivista, a partir da criação da Sociedade Positivista em 1876 e especialmente devido a institucionalização e fundação definitiva do Apostolado em 1881. Entre 1881 e 1927, o Apostolado teve de 50 a 300 membros efetivos que contribuíam financeiramente com o “subsídio”. Aos domingos fazia-se exposição sobre o Catecismo Positivista aos participantes da Igreja. Sempre com base na doutrina comteana realizava-se também cerimônias cívicas a personagens da história brasileira como Tiradentes e José Bonifácio, por exemplo. Nessas cerimônias os ortodoxos confabulavam sobre os rumos que a Igreja Positivista devia adotar sobre os mais variados assuntos da política nacional, sempre sob a liderança de Miguel Lemos e ou Raimundo Teixeira Mendes.4 Miguel Lemos (1854-1917) nasceu em Niterói, Rio de Janeiro. Era filho de um oficial de marinha. Estudou na Escola Central, posteriormente transformada Politécnica do Rio de Janeiro, quando conheceu as ideias do positivismo comtiano, através de edições republicadas por Emile Littré. Em viagem à Europa, entre1878-1881, aderiu à linha completa de Augusto Comte, tornandose aspirante ao “Sacerdócio da Humanidade”. Voltando ao Brasil, trouxe novas determinações às atividades da sociedade, passando depois a dirigir o Apostolado. Raimundo Teixeira Mendes (18551927) nasceu em Caxias, no Maranhão. Oriundo de família católica de muitas posses, ele frequentemente é lembrado pela historiografia tradicional devido a sua autoria do dístico Ordem e Progresso da bandeira nacional. Ainda jovem, Teixeira Mendes foi para o Rio de Janeiro estudar em um colégio de jesuítas e depois no Pedro II, onde cursou matemática e filosofia se aproximando das ideias positivistas de Comte, através da influência do Dr. Antônio Carlos de Oliveira Guimarães, repetidor de matemática do Colégio Pedro II, e de Benjamin Constant.5 O grupo de positivistas ortodoxos brasileiros lutou por políticas que pensavam ser mais benéfica a excludente sociedade brasileira da época. Através de cartas aos jornais, de declarações, de folhetos, de manifestações, de comissões e de petições ao parlamento os seguidores de Comte defenderam políticas como o fim do incentivo a imigração chinesa ao Brasil, a não criação de uma Universidade pública no Rio de Janeiro, a secularização dos cemitérios, o combate ao ensino obrigatório, o asseguramento de direitos às populações indígenas, o fim do serviço militar obrigatório, a reforma ortográfica da língua portuguesa, a não obrigatoriedade da vacinação contra a varíola, uma maior integração com as nações latino-americanas, a entrega dos troféus militares e o perdão as dívidas de guerra do Paraguai, a revisão dos tratados de fronteira com o Uruguai, a condenação da repressão governamental a diversas greves, etc. Os temas mencionados eram debatidos pelo núcleo do Apostolado antes de ser expostos ao grande público também por meio de boletins e circulares, grande parte das vezes assinados pelos dois dirigentes mais influentes do período. As circulares anuais do Apostolado Positivista do Brasil, iniciadas em 1881 e plenamente ativas até os anos 1920, caracterizavam-se como documentos informativos da instituição, dirigidos 2

Cf. Moraes Filho, E. de. (1957) Augusto Comte e o pensamento sociológico contemporâneo. Rio de Janeiro: Livraria São José. p. 15-20. 3 Lins, I. (1967) História do positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia editora nacional. p. 37. 4 Pezat, P. R. (1997) Auguste Comte e os fetichistas: estudos sobre as relações entre a Igreja Positivista do Brasil, o Partido Republicano Rio-Grandense e a política indigenista da República Velha. Dissertação de Mestrado em História – UFRGS. p. 79. 5 Costa, C. (1956) O positivismo na República: notas sobre a história do positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. p. 128.

aos cooperadores do subsídio e ao público em geral, sendo um dos fundos na manutenção e funcionamento do Apostolado. O site http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquivo contém dezenas das referidas circulares. Nas circulares comumente os positivistas ortodoxos afirmavam que o Brasil precisava modernizar-se. Como bons ativistas, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes e os seus pares procuravam influenciar a opinião pública e a tomada de decisões do governo na então capital federal, o Rio de Janeiro. Eles buscavam regenerar a sociedade brasileira marcada pelas chagas da escravidão, em um cenário social excludente para grande parte da população. O Apostolado ambicionava um novo ordenamento social para uma possível evolução do país sempre sob o prisma da doutrina positivista.6 Através de uma visão de mundo pró-burguesa, os positivistas ortodoxos, reunidos no Apostolado do Rio de Janeiro, expressavam o desejo por “sanear o país”, “educar o cidadão”, “moralizar a sociedade”, “organizar a família”.7 Os ortodoxos enfrentavam resistências sobretudo das forças oligárquico/latifundiárias que buscavam manter a hegemonia política e social nos anos finais do Império e na incipiente república, época de intensa atuação do Apostolado. No Brasil, os seguidores ortodoxos da doutrina de Augusto Comte, capitaneados por Miguel e Raimundo, deixaram um legado de ação política. As classes médias e os setores militares foram os meios mais receptíveis às propostas então modernizadoras do positivismo para o contexto brasileiro, embora, já fosse doutrina defasada se comparada aos avanços do marxismo na Europa, onde, por exemplo, o Manifesto Comunista fora publicado em 1848. Nos anos 1850 Comte desenvolvera a “religião da humanidade”, cuja liturgia sacralizava o credo à ciência positiva. Nesse processo, seus seguidores dividiram-se em ortodoxos, seguidores do chamado período religioso, e heterodoxos, fiéis apenas a etapa filosófica. A religião seria necessária para a regeneração dos costumes, pois Comte acreditava que naquele momento da história, pós-revolução francesa, a vida pública e privada estava desorganizada, pobres insurgiam-se contra os ricos, povos contra governos, filhos contra os pais, a infância contra as mães, etc. Com a crença no ser supremo, a Humanidade, a hierarquia coletiva estaria preservada, logo seu credo vangloriava os feitos dos grandes homens, como Homero para a poesia antiga, Aristóteles para a filosofia antiga, Arquimedes para a ciência antiga, São Paulo para o catolicismo, entre outros, todos eles homenageados no calendário positivista de 13 meses com 28 dias.8 Entre 1881 e 1903, Miguel Lemos foi o dirigente máximo da instituição, sendo que entre 1903 e 1927, Raimundo Teixeira Mendes o sucedeu, mesmo mantendo o cargo de vice-diretor. Também foram dirigentes atuantes do Apostolado, Joaquim Bagueira Leal, Joaquim da Silveira Santos, José Mariano de Oliveira, Mário Barbosa Carneiro e um núcleo de aparentados que formavam uma espécie de confraria familiar. Nas cerimônias da Igreja Positivista do Brasil, os ortodoxos confabulavam sobre os rumos que a Igreja Positivista devia adotar sobre os mais variados assuntos da política nacional e sul-americana. Como dito, através de cartas aos jornais, de comissões, petições ao parlamento e sobretudo através de boletins e circulares da instituição, os ortodoxos defendiam políticas como a condenação da guerra entre os povos, entre outros temas. No presente artigo analiso uma circular de 1913, contendo 57 páginas, intitulada “a confraternização Brasílio-argentina, a independência da nossa cara irmã a República do Paraguai, e o cancelamento da sacrílega dívida resultante, para esta, da guerra fratricida entre ela e o Brasil, a Argentina e o Uruguai”.9 6

Cf. Pezat, P. R. (1997) Auguste Comte e os fetichistas: estudos sobre as relações entre a Igreja Positivista do Brasil, o Partido Republicano Rio-Grandense e a política indigenista da República Velha. (p. 77-102) Porto Alegre: UFRGS, (Dissertação de Mestrado) 7 Silva, J. C. (2008) O Amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim: As propostas do Apostolado Positivista para a educação brasileira (1870-1930). (p. 6) Campinas: UEC, (Tese de Doutorado). 8 Soares, M. P. (1998) O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. (p. 79-83) Porto Alegre: AEG. 9 Mendes, R. T. (1913) A confraternização Brasílio-argentina, a independência da nossa cara irmã a República do Paraguai, e o cancelamento da sacrílega dívida resultante, para esta, da guerra fratricida entre ela e o Brasil, a Argentina e o Uruguai. Rio de Janeiro: Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, (57 p.). Disponível em: http://docvirt.com/docreaderFGV/docreader.aspx?bib=Igreja_Pos&pasta=IP140f

Figura 1: Capa da circular positivista de 1913, A confraternização brasílio-argentina [...], detalhada no artigo

Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/arquiv o. Acesso em março de 2016.

Telegramas de Assunção e Buenos Aires Em 11 de setembro de 1912, o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, publicou o seguinte telegrama, do dia anterior, enviado de Assunção: “O dr. Brugada, entrevistado por um jornalista, declarou que não é partidário do perdão da dívida do Paraguai pelo Brasil. Disse mais, que a considerava necessária à integridade e existência de seu país, pois que era uma espécie de hipoteca, e a situação da América do Sul é muito delicada e cheia de incertezas. Acrescenta: permaneci longos anos no Rio de Janeiro e em Buenos Aires e minhas impressões são todas pessimistas. Posso afirmar que o perdão jamais será uma realidade.”10 O advogado, político e jornalista Ricardo Brugada (1880-1920) desempenhou funções diplomáticas também no Chile e no Uruguai. No Brasil, o “advogado dos pobres” teve boa relação com a “comissão Benjamin Constant”, seção parlamentar criada em 1899 sob a presidência de Raul do Nascimento Guedes, com o objetivo de obter a devolução dos troféus e o perdão das dívidas de guerra do Paraguai. Em 1903, no Rio de Janeiro, dr. Brugada publicou “Paraguay-Brasil”, livro de pouco mais de 300 páginas onde expôs dados gerais sobre as nações que deram nome a obra, como personalidades da história e instituições diversas. Dedicada ao então vice-presidente paraguaio, Manuel Domínguez (1868-1935), a referida obra contém uma série de discursos, documentos e telegramas trocados entre e autor e alguns políticos brasileiros e personagens eminentes da sociedade carioca. Destaque-se também a exposição na obra de um acervo acerca do Paraguai depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.11 Em 15 de setembro de 1912, o Jornal do Comércio publicou telegrama, do dia anterior, enviado de Buenos Aires: “La Prensa, em seu número de hoje, responde a breve nota publicada pelo Jornal do Comércio, em sua edição da tarde, sobre o perdão da dívida do Paraguai.” O La Prensa afirmava “que não deprime a dignidade de uma nação o fato das outras que lhe fizeram guerra, desejando oferecer-lhe franca amizade, resolverem não se considerar mais credoras dela, 10 11

Idem, p. 2. Disponível em: https://archive.org/stream/brasilparaguay00bruggoog#page/n12/mode/2up

embora a dívida seja simplesmente moral, sem caráter exigente.” O periódico fez “várias considerações sobre o assunto e termina por dizer que continua a sustentar que o perdão da dívida do Paraguai é a única forma delicada de libertá-lo economicamente.” Por fim, “acrescenta que bastam três semanas para se firmar nesse sentido um acordo voluntário entre a Argentina e o Brasil, dando um grande exemplo de fraternidade sul-americana e provando as nações mais poderosas que a América Latina jamais teve o propósito de aplicar ao povo irmão a frase célebre de Breno [gaulês que liderou saque a Roma no século 4 a.C]: „vae victis!‟ [ai dos vencidos]”12 Em desacordo com o telegrama assinado pelo dr. Brugada, Raimundo Teixeira Mendes declarava que seria um dever ao Brasil e a Argentina seguir o exemplo do Uruguai e cancelar a dívida, cuja origem só seria comparável “aos maiores crimes ocidentais, como o aniquilamento e a escravização dos aborígenes da África, da América e da Oceania.” Sendo assim, ele reproduzia o apelo de 16 de abril de 1912, dirigido ao então presidente do Brasil, o Marechal Hermes da Fonseca (1855-1923) e ao presidente argentino, Roque Saenz Peña (1851-1914), para em seguida, realizar as considerações apresentadas em 13 de maio daquele ano a propósito do segundo aniversário da ratificação do tratado Mirim-Jaguarão, ocorrido em 7 de maio. A parte inicial da circular terminava com a prédica de 15 de setembro de 1912 “para dissipar especialmente as objeções constantes do primeiro dos telegramas acima [anteriormente] descritos.”13 Aos presidentes Marechal Hermes da Fonseca e Roque Saenz Peña Além de dedicar a comunicação aos dois mencionados presidentes, Lauro Müller (18631926), ministro das relações exteriores do Brasil de 1912 a 1917, também foi citado. Iniciou-se com uma frase que teria sido dita por Sáenz Peña a Manuel Ferraz de Campos Sales (1841-1913), presidente do Brasil entre 1898 e 1902: “A América espera de nós alguma coisa mais do que produtos e riquezas materiais; exige exemplos e demanda progressos espirituais. Seja a paz a consagração perdurável do nosso estado social e política; seja a justiça o nosso ideal...”14 Em seguida, condenava-se cabalmente a Grande Guerra do Prata (1864-1870), um crime só comparável com a execrável “escravização da raça africana”. A criminalização da “Guerra do Paraguai” foi constante em toda a circular estudada. Complementado a iniciativa do Uruguai, e seguindo o projeto patrocinado por Benjamin Constant, os governos de Brasil e Argentina deveriam restituir ao Paraguai, “os cruentos troféus da execrada guerra fratricida em que ela sucumbiu, e desistam da dívida cruel que a tem acabrunhado até agora.”15 Brasil e Argentina deveriam superar “um lutuoso passado de deplorabilíssima rivalidades” e “caminhar desassombradamente para o futuro; abolindo todos os vestígios do regime militar”, pela doutrina positivista uma fase provisória e preparatória para a suposta evolução da humanidade. Deveria-se ter uma conduta “realmente pacifista”, sobretudo com as nações de origem ibéricas, assinalava Teixeira Mendes. Então iniciaria a “era da fraternidade universal, onde a virtude só animará a poesia, a ciência e a indústria”, completou o autor, em 16 de abril de 1912.16 Barão do Rio Branco e os tratados altruístas com Uruguai e Peru Em “A propósito do segundo aniversário da ratificação do tratado Mirim-Jaguarão” de 7 de maio de 1912 foi enaltecida as ações do recém falecido barão do Rio Branco que teria tido “a glória de iniciar, no Brasil, decisivamente, a verdadeira diplomacia republicana, inaugurando, ao mesmo tempo, a reparação dos erros e culpas da diplomacia brasileira”.17 Em homenagem ao político transcreveu-se uma carta enviada a ele em 28 de abril de 1910, precedida por considerações constantes da circular de 1909. Em seguida transcreveram-se também os telegramas posteriores, por ocasião do primeiro aniversário do referido tratado. 12

Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 3. Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 3-4. 14 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 4. 15 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 5. 16 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 6. 17 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 5. 13

Agradecia-se a “benévola remessa dos exemplares dos tratados com a República do Uruguai e do Peru”, sobre os limites de ambas com o Brasil. Teixeira Mendes escreveu que era “extremamente grato poder enfim cumprir tal dever, sobretudo tendo em vista o tratado sobre o condomínio da Mirim e do Jaguarão. Agradecia-se também ao falecido presidente Afonso Pena e ao presidente do Rio Grande do Sul Carlos Barbosa pela ação altruísta, ou seja, “a anulação da dívida da República do Uruguai com o Brasil, por um lado, e, por outro lado, a restituição dos troféus e a anulação da dívida da nossa tão cara irmã a República do Paraguai. Esta última medida vos proporcionaria o mais feliz ensejo para instituir com a nossa irmã, a República Argentina, laços de verdadeira fraternidade, que dissipem para sempre as cruéis animosidades que têm dilacerado a América Latina.”18 Em escritos reflexivos acerca do “falecimento do barão do Rio Branco”, de 13 de maio de 1912, condenava-se as rivalidades nacionalistas que agiam sob a “ilusão do patriotismo”, saudandose as boas relações diplomáticas que a Argentina e o Brasil estavam passando naquele momento. Transcreveu-se novamente a já citada frase que o presidente argentino Saenz Peña disse no discurso de recepção de Campos Sales sobre o “progresso espiritual” liderados pelos dois países na América.19 Para Teixeira Mendes a manutenção da dívida imposta ao Paraguai era “um sinal de desconfiança para com a nossa irmã a República Argentina e, portanto, um estimulante fatal das rivalidades surgidas entre esta e o Brasil, no decurso da evolução de ambos.” Pois “a persistência de tal dívida indica o propósito de manter um suposto obstáculo ou uma suposta garantia contra qualquer tentativa de incorporação do Paraguai à República Argentina. E o mesmo dá-se em relação ao Brasil, quanto à manutenção da dívida do Paraguai à Argentina. Pois se imagina que as vistas ambiciosas relativas a tal incorporação ao Brasil serão contidas pela perspectiva da aceitação da semelhante dívida. É, pois, evidente que só a desistência dessa dívida patenteará de fato a dissipação de semelhantes cálculos e desconfianças. Sejam quais forem as intenções dos governos de ambas as Repúblicas, em um dado momento, enquanto tais dívidas existirem, estas estarão – embora latentemente como agora – alimentando os pendores egoístas de ambos os povos. De sorte que constitui uma ameaça permanente a fraternidade que deve unir ambos.”20 Apelava-se para que o governo brasileiro de imediato extinguisse a dívida. Seria um “monumento à memória do barão do Rio Branco, fazendo com que ele realize subjetivamente o desenvolvimento da política regenerada que o tratado Mirim-Jaguarão inaugurou.” A pregação se encerrava determinando que “a verdadeira glória só existe no altruísmo.” Pela independência do Paraguai Na prédica de 15 de setembro, sempre de 1912, recomendava-se uma cláusula “declarando que a dívida só ficava cancelada enquanto a nossa irmã a República do Paraguai continuasse a ser nação plenamente autônoma, fora de qualquer aliança política com qualquer outra nação: 1º quer por protetorado, 2º quer por federação, 3º quer por tratados militares de aliança defensiva ou ofensiva, 4º quer por tratados industriais (agrícolas, fabris, comerciais ou financeiros) celebrados com exclusão do Brasil e da Argentina, ou preferência entre estas.”21 Apelava-se ao general Julio Argentino Roca e a Campos Sales “a fim de envidarem decisivamente todo o seu prestígio político e todas as véras (sic) de suas almas, no conseguimento urgente de tão sublime ideal.” Didaticamente, Teixeira Mendes assinalava que “a solene restituição dos troféus fratricidas e o cavalheiresco cancelamento da dívida monstruosa constituem a síntese desses exemplos e desses progressos espirituais que do Brasil e da Argentina, hoje exige, não só a América, mas a Humanidade... Oxalá não demorem, por mais tempo que o Brasil e a Argentina em escutar esse apelo regenerador que, há tanto, lhes bradam a América, o Ocidente e a

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Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 6. In: Extrato da Circular anual de 1909, p. 18-21, do mesmo autor. Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 7. 20 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 9. 21 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 10. 19

Humanidade.”22 Em 1899, o presidente da Argentina, Júlio Roca, visitou o Rio de Janeiro, e no ano seguinte Campos Sales foi recebido em Buenos Aires em uma cerimônia assistida por cerca de 300 mil pessoas. Foi o primeiro presidente brasileiro a viajar para o exterior. Governou até 1902 e elegeu seu sucessor, o conselheiro Rodrigues Alves. Em seguida, foi eleito senador em São Paulo e diplomata na Argentina, onde trabalhou com o Júlio Roca.23 Sugeria-se ainda, especial atenção ao caso de limites entre Chile e Peru, pois “ambos os governos e ambos os povos, brasileiro e argentino, [teriam] o prestígio moral indispensável para aconselhar, ao da nossa irmã a República do Chile, a restituição de Tácna e Arica a nossa irmã a República do Peru.”24 Disputas territoriais e pela exploração do salitre desencadearam a Guerra do Pacífico (1879-83), perdida pelo Peru, em aliança com a Bolívia, frente ao Chile, apoiado por capitais ingleses interessados na exploração da área. Como resultado, Arica e Tacna passaram a pertencer ao Chile e a Bolívia ficou sem saída para o mar, algo que ainda tenta reaver nos dias de hoje. Pelo tratado de Lima, de 1929, o Tacna foi reincorporado ao Peru mediante pagamento de 6 milhões de dólares ao governo chileno.25 Otávio Rocha: um deputado pela causa positivista Em “A propósito do projeto ontem apresentado pelo cidadão Otávio Rocha, deputado federal pelo estado do Rio Grande do Sul, para restituição dos troféus paraguaios e o cancelamento da dívida da nossa caríssima irmã a república do Paraguai” transcreveu-se publicação do Diário do Congresso Nacional na qual foi apresentado o projeto. Pelo artigo 1º, o governo brasileiro estaria autorizado a convidar a Argentina para solicitar ao Paraguai que aceitasse a restituição dos troféus e o cancelamento da dívida da guerra “de que foi a maior vítima.”26 Pelo artigo 2º, os troféus seriam restituídos e a dívida cancelada como o cumprimento dos três povos irmãos. No artigo 3º, a independência do Paraguai seria preservada desde que ele garantidamente estivesse “fora de qualquer aliança política com qualquer outra nação”, tanto por forma de protetorado, federação, tratados militares ou industriais. Por fim, no artigo 4º apenas determinava-se que seriam revogadas as disposições em contrário.27 O mesmo Diário do Congresso Nacional reproduziu também o artigo de Teixeira Mendes que foi publicado na seção ineditorial do Jornal do Comércio, de 18 de setembro de 1912, “felicitando” o deputado Otávio Rocha pelo ato descrito.28 Em seguida, entre as páginas 18 e 22 da circular que está sendo minuciada no artigo, abordou-se a extensão territorial das futuras Repúblicas pacíficoindustriais, que deveriam substituir os atuais Estados “teo-metafísicos e militares”, para logo pós desenvolver a doutrinação do Catecismo Positivista. Em “Nota acerca de uma tentativa para restituição dos troféus e cancelamento da dívida paraguaios”, lembrou-se a visita oficial do general Roca presidente da Argentina ao Brasil, em 1899 e a formação da Comissão Benjamin Constant. Assinalou-se que o então deputado pernambucano Alexandre José Barbosa Lima (1862-1931) recordou da atitude do general Róca que respondendo a mensagem que lhe haviam dirigido os argentinos residentes no Paraguai mostrou-se “inteiramente favorável a ideia do cancelamento achando, porém, que ao Brasil cumpria a iniciativa”; lembrou ainda do episódio da restituição feita pelo Uruguai ao Paraguai das bandeiras e troféus da guerra de 1864-70.29 Por fim, apresentou-se o projeto pelo qual seria “declarada extinta a dívida de guerra 22

Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 11. Fausto, B. (2009) História do Brasil. 13. ed. São Paulo: EdiUSP. [1. ed. 1994] (p. 258). 24 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 12. 25 Cf. http://www4.congreso.gob.pe/comisiones/1999/exteriores/chile/TRALIMA.htm; http://veja.abril.com.br/noticia/mundo/cij-traca-nova-fronteira-maritima-entre-peru-e-chile; http://jornalggn.com.br/noticia/chile-x-peru-um-pedaco-de-mar-e-a-perigosa-guerra-fria 26 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 13-14. 27 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 14-15. 28 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 15-16. 29 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 23-24. 23

contraída pela República do Paraguai para com o Brasil pelo tratado de paz firmado em 9 de janeiro de 1872.” O documento datava de 16 de agosto de 1899, assinado por dez deputados, entre eles o orador Barbosa Lima. O projeto não teve andamento, e em novembro de 1900, o deputado pernambucano tentava retomar a discussão, novamente sem êxito. Teixeira Mendes acreditava que somente com o executivo plenamente envolvido na questão o projeto poderia ter sucesso.30 Resposta a Ouro Preto Em 13 de setembro de 1912, o empresário e jornalista carioca Vicente de Toledo de Ouro Preto escreveu editorial em A Época, jornal que era um dos proprietários. Lançado em 31 de julho de 1912 – em funcionamento até 1919 –, o periódico carioca era crítico ao governo do marechal Hermes da Fonseca (1910-14) e também aos jornalistas apoiadores daquele governo.31 O artigo de Ouro Preto seria uma resposta à campanha do Apostolado sobre os troféus e a dívida de guerra do Paraguai. Ouro Preto propunha três pontos. Em primeiro, ele não seria contrário, a princípio, ao perdão da dívida da guerra do Paraguai, apenas achava que aquele momento seria inoportuno para o debate. O Brasil deveria optar pelo esquecimento voluntário da dívida, assim se manter a independência do Paraguai e este não seria humilhado. Em segundo, o ato de perdão da dívida seria de incompleta reparação, pois se deveria devolver os territórios, então argentinos, de Formosa e do Chaco a situação anterior à guerra. Por fim, os troféus não deveriam ser restituídos “pois o que neles vê de glorioso não é a recordação do sangue que vertem os paraguaios para defendê-los, mas o heroísmo dos brasileiros que ofereceram a vida e sofrimentos para conquistá-los, e assim pensam os próprios paraguaios que acabam de erigir em festa nacional o aniversário de Curupaity, elevando uma estátua ao general [José] Eduvigis Díaz, o vencedor de Mitre [na batalha de Curupaiti, em 22 de setembro de 1866].”32 Figura 2: general paraguaio José Eduvigis Díaz (1833-67)

Fonte: http://www.portalguarani.com/126 1_hugo_mendoza/21954_curupayt y__guerra_de_la_triple_alianza_20 13__por_hugo_mendoza.html

Vicente de Ouro Preto colocava-se à disposição para ajudar em uma campanha para o perdão da dívida e pela devolução dos territórios conquistados pela Argentina. Limitava-se, portanto, ao 30

Ibidem. Cf. Brasil, B. “A Época (Rio de Janeiro)”. Disponível em: . 32 Mendes, R. T. (1913) “A confraternização brasílio-argentina, (...). Ob. cit., p. 25 31

perdão da dívida, segundo suas condições descritas. Teixeira Mendes lamentava as colocações de Ouro Preto. Não se tratava de simples perdão da dívida, mas de “arrependimento de uma culpa e de sua fraternal reparação.”33 Quanto à independência do Paraguai, tratava-se de um receio quanto à pretensões de conquista do Brasil e da Argentina. O vice-diretor do Apostolado afirmava que se deveria voltar, sobre a questão de limites, à situação anterior da guerra, para todos os envolvidos nela. O maranhense indagava: “[…] porque querer terminar unicamente as questões de dinheiro e manter aquelas que afetam ao patriotismo e estão relacionadas ao sagrado solo nacional?”34 As camadas dominantes do Paraguai seriam assemelhadas às do Brasil, de herança ibérica que há tempos não eram mais de povos fetichistas (primitivos). Portanto, devería-se abstrair os preconceitos nacionalistas para se encarar os supremos interesses humanos, assinalou Teixeira Mendes. O autor fez uma ressalva quanto às comemorações da batalha de Curupaity das camadas dirigentes paraguaias e os limites territoriais. “O próprio fato das atuais camadas dominantes do povo paraguaio estarem comemorando a guerra fratricida de que esse povo foi a principal vítima, – a exemplo, aliás, do que fazem as camadas dominantes no Brasil e na Argentina – constitui uma prova irrecusável de que a humanidade nada lucraria em alterar-se o fato consumado, há perto de meio século, para aumentar o domínio político de tais camadas. A independência política do Paraguai não se liga, aliás, a esse engrandecimento territorial, e nem ficaria mais garantida por isso.”35 Os positivistas ortodoxos eram contra a guerra, não defendiam uma vitória paraguaia, que levaria ao “imperialismo” paraguaio. As grandes nacionalidades eram aberração histórica aos discípulos de Auguste Comte. A ruptura política dos povos americanos com Portugal e Espanha seriam exemplar nesse sentido, destacava Teixeira Mendes.36 A bravura guerreia, muitas vezes salientadas nas ocasiões rememorativas a guerras, era algo desumano, típico de animais ferozes, que apenas em estágios mais atrasados da humanidade foi inevitável como proferiu Augusto Comte quanto a batalha de Lepanto (século 16), última glória do instinto guerreiro, ponderou Raimundo Teixeira Mendes. Ele assinalou que a rapidez da tramitação e votação da lei da abolição da escravatura, em uma semana em maio de 1888, deveria exemplar em relação ao perdão da dívida e restituição dos troféus de guerra paraguaios.37 A doutrina fraternal Citando o possível auxílio do Apostolado à constituição “política ditatorial federativa para a república brasileira”, em janeiro de 1890, Teixeira Mendes lembrava dos tratados celebrados com o Uruguai, em 1851, e a República Argentina, em 1857. Em ambos impunha-se a “devolução dos escravos pertencentes a súditos brasileiros que, contra a vontade dos seus senhores, fossem por qualquer maneira para o território” das referidas repúblicas. O tratado de 1857, no entanto, não foi ratificado pelo governo argentino. Teixeira Mendes destacou que no Esboço Biográfico de Benjamin Constant, de 1892 [página 395], ele lembrou que o projeto da restituição dos troféus foi sugerido pelo capitão José Bevilacqua (1863-1930), genro de Benjamin Constant. Mas o projeto não obteve andamento. Assim, Teixeira Mendes previa “nossos filhos, esclarecidos sobre a verdade histórica, escutarão a voz do fundador da República brasileira, não só restituindo os aludidos troféus, mas até eximindo o Paraguai da dívida que lhe impusemos, por uma guerra que foi a sua ruína, e deve ser o nosso remorso enquanto não resgatarmos as faltas dos nossos pais.”38 Sempre em alusão à doutrina comteana, Teixeira Mendes recordava escritos de 13 de janeiro de 1904, sobre a questão do Acre: “A sociologia positiva demonstra, assim, que no futuro só existirão pátrias pequenas, com um território menor que Portugal e uma população média de um a 33

Ibidem. Idem, p. 26. 35 Ibidem. 36 Idem, p. 26. 37 Ibidem. 38 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 34. 34

três milhões de habitantes. Todo o esforço atual dos estadistas retrógrados e sanguinários, como Napoleão, Bismarck, etc., para a construção de grandes nacionalidades, é um esforço tão vão como os dos imperadores romanos para evitar o ascendente catolicismo. Somente essa decomposição há de ser realizada pacificamente se a religião da Humanidade triunfar a tempo de impedir as irrupções proletárias que a cegueira dos governantes e governados está preparando para nossos filhos e talvez para nós mesmos. A independência política das colônias americanas marca o início irrevogável dessa fragmentação dos grandes Estados cuja formação só a decomposição do regime católico-feudal tornou possível. A vista dessa apreciação, que temos lembrado constantemente no decurso de nossa propaganda, e que se acha reproduzida no opúsculo de 1884, ninguém pode ter dúvida de que não partilhamos em nada dos preconceitos revolucionários correntes acerca da integridade do território das pátrias modernas. Nós sabemos que essa integridade há de desaparecer em futuro tanto mais próximo quanto mais depressa se der a regeneração social; e não só para o Brasil, como para a Bolívia, Peru, etc. e mesmo para quase todos ou todos os atuais Estados do Brasil.”39 Raimundo Teixeira Mendes explicava que na época da independência, o povo brasileiro seria constituído pela combinação do português, com o aborígene da América e o africano. Depois se formaram, no território nacional, núcleos de populações de origem italiana, germânica, chinesa e japonesa. Tais núcleos de populações “só porque se acham dentro dos limites do Brasil seriam mais irmãos dos brasileiros do que os núcleos de população das outras nações americanas de origem ibérica combinada com os selvagens e os africanos?”, indagava. Para Teixeira Mendes a “unificação da espécie humana” seria o apogeu da sociedade. “O que forma o caráter distintivo de um povo é a comunidade das tradições das famílias que o compõe. Essa comunidade traduz-se na unidade da língua. A diversidade dos idiomas, mesmo reduzido a dialetos, demonstra o concurso de povos distintos, assim como a analogia dos idiomas manifesta o parentesco próximo das civilizações, senão dos povos. A realidade, é que, por toda parte, hoje os diversos núcleos de população acham-se em fusão, preparando a unificação da espécie humana, sob a presidência do ocidente. No seio dessa posteridade, terão desaparecido as distinções atuais dos povos, representados, desde então, pela colaboração de cada um para a constituição da virtude, da poesia, da ciência e da indústria, em uma palavra, da Religião final.”40 Seguia a doutrinação assinalando que “a excelência da um povo não se mede pelo número dos indivíduos, nem pela extensão ou riqueza do território, mas sim pela eficácia do seu concurso moral, mental e técnico, na existência da Humanidade. Nós americanos não temos, portanto, que nos orgulhar do nosso número nem da extensão e da riqueza do solo que os nossos pais usurparam aos aborígenes. O que nos cumpre é reparar os erros e culpas dos nossos antepassados e nossos, renunciando a todas as paixões e preconceitos guerreiros, para votar-nos, de todo o coração, à vitória da fraternidade universal.”41 Por fim, “as reflexões precedentes não deixam, segundo cremos, a mínima dúvida que a restituição dos troféus e o cancelamento da dívida da nossa caríssima irmã a República do Paraguai, constitui o passo mais urgente, no desempenho de missão tão sublime, por parte do Brasil e da nossa caríssima irmã a república Argentina.”42 Um general na guerra contra ela? Em nota post script, de 25 de setembro de 1912, o vice-diretor da Igreja Positivista Brasileira, Raimundo Teixeira Mendes, propõe dedicar à memória do general Manuel Luís Osório (1808-1879) o projeto de devolução dos troféus e cancelamento da dívida de guerra do Paraguai. Citando o livro História do General Osório, de Fernando Luiz Osório (filho do general), o comandante da Grande Guerra do Prata teria dito que o seu maior desgosto era ver sua pátria em luta, e ele estar em um campo de batalha, sendo que sua maior felicidade ocorreria no dia em que os povos civilizados 39

Idem. p. 39. Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 40. 41 Idem. p. 41. 42 Ibidem. 40

queimassem os seus arsenais.43 A proposta de homenagem ao general Osório tinha ainda mais embasamento. “Fiquei envergonhado [...] da grande quantidade de mortos do inimigo, no campo de batalha de 24 de maio de 1866 (batalha de Tuiuti).”44 Segundo Teixeira Mendes, tal passagem dita por um comandante imperial na guerra do Paraguai merecia ser esculpida em bronze. Destaque-se que o general é uma personagem festejada da guerra do Paraguai pela historiografia nacional-patriótica brasileira. Seria um comandante corajoso, esteve no front por duas vezes, sempre fazendo “questão de retornar as batalhas”.45 A proposta de Teixeira Mendes merece um estudo minucioso, no mínimo mais divulgação devido à nova perspectiva lançada à carreira do militar sul-rio-grandense, patriota insuspeito, desconhecida ou ignorada por boa parte da patriótica historiografia brasileira. O pósescrito foi encerrado retomando que Brasil e Argentina deveriam desistir de cobrar a dívida paraguaia de guerra, sendo que algum dos dois países tomasse a dianteira e seguisse o nobre exemplo do Uruguai.46 Pela evolução comteana A seguir, Teixeira Mendes transcrevia novamente suas “reflexões complementares a propósito do artigo editorial d‟A Época de 27 de setembro de 1912” onde expôs seu desacordo com o jornalista carioca, conforme já apresentado no artigo. Em seguida, o autor da circular reiterava a defesa à independência do Paraguai, o cancelamento da dívida e a devolução dos troféus de guerra por Argentina e Brasil. Teixeira Mendes propunha o desarmamento e a transformação do Exército e da Armada em simples polícia. Em seguida, lembrava novamente a questão com o Peru, de 1904, para retomar suas reflexões sobre o positivismo comteano. “Só uma doutrina altruísta pode permitir penetrar cientificamente o passado para prever o futuro e, portanto, compreender o presente como ele é realmente, através de todas as aberrações contemporâneas, isto é, como o laço entre o passado e o futuro. Ora, conquanto os estadistas atuais e o público não adirem a Religião da Humanidade, isso não os impede de aceitar os ensinos positivistas no que concernir o presente, em virtude justamente da realidade e da utilidade de tais ensinos. Porque, seja qual tenha sido a dificuldade de chegar a semelhantes ensinos, o bom senso vulgar, só o ascendente dos pendores altruístas, permite constatar essa realidade e essa utilidade. É o que se tem dado até hoje com toda a evolução científica, cujas aplicações práticas são logo assimiladas pelas pessoas alheias a uma iniciação sistemática. [...] A teoria que invocamos é o desenvolvimento e a sistematização científica das aspirações femininas, bem como dos sublimes pressentimentos dos mais antigos teocratas, poetas e filósofos, consolidados pelos ensinos morais e políticos do sacerdócio católico, ensinos conservados até hoje pelas melhores almas do ocidente, através da revolução moderna. Ao passo que a teoria a que o governo brasileiro se apega é constituída pelo acervo incoerente de alegações diplomáticas, feitas pelos governos ocidentais, depois que a dissolução da fé católica na massa masculina deixou sem órgãos políticos os corações femininos e entregou aos povos modernos as inspirações da cobiça, do orgulho e da vaidade. Mas isso não quer dizer que os princípios preferidos pelo governo brasileiro sejam mais reais do que aqueles que sustentamos. Os próprios exemplos acima citados provam que o ascendente do egoísmo nas meditações políticas conduz a tomar as quimeras pela realidade; ao passo que os ideais inspirados pelo altruísmo caracterizam justamente apenas a percepção da realidade através das perturbações egoístas que tendem a vendá-la. Nem admira que assim seja; porque, a evolução humana, tendendo a desenvolver e existência social, vai fazendo prevalecer a cada instante a situação mais altruísta. E é justamente por preferido até hoje a solução mais egoísta para os problemas que os assoberbam, que os governos modernos se vêm continuamente, cedo ou

43

Idem. p. 41-42. Idem, p. 42. 45 Doratioto, F. “Eterno General”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Jan. 2011. Disponível em: . 46 Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 43-44. 44

tarde, frustrados nos seus cálculos.”47 Baseado em dogmas da doutrina comteana, Teixeira Mendes considerava um grave problema a questão diplomática do Brasil e também da Argentina no referente ao Paraguai, após o conflito de 1864-70. Seria um dever ao dois maiores Estados da América do Sul reaver as penalidades impostas ao Paraguai, nação derrotada e mais prejudicada pela guerra. Quase meio século depois do último tiro, o Paraguai continuava sendo castigado pelos poderosos países irmãos e seus vencedores, sustentava o líder ortodoxo. Considerações finais Com a desorganização do movimento ortodoxo, devido à Revolução de 1930 e ao golpe getulista de 1937, à exceção da referência ao dístico “Ordem e progresso” na bandeira nacional, mais comumente, a cultura brasileira registra apenas os aspectos vistos como exóticos e folclóricos do positivismo – a luta contra a vacinação obrigatória, contra o alistamento militar obrigatório, etc. Impôs-se um silêncio sobre a primeira e arguta crítica revisionista, de Raimundo Teixeira Mendes, quanto ao grande conflito do Prata. Em 8 de maio de 1943, a dívida de guerra do Paraguai foi perdoada no governo Vargas, que procurava melhorar as relações diplomáticas com as nações vizinhas. A Argentina perdoou quase um ano antes, em 11 de agosto de 1942. Há mais de meio século que ela fora extinta pelo Uruguai, em 1883.48 Em 1972, troféus de guerra conquistados no Paraguai, como bandeiras e armamentos, entre eles a espada de Solano López, foram devolvidos a sua pátria original, em um gesto de boa vontade entre as ditaduras militares irmãs do Brasil e do Paraguai, em negociação para a construção da usina hidrelétrica binacional de Itaipu. O canhão El Cristiano (O Cristão) exposto no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, segue sendo requerido pelo governo paraguaio. No entanto, a arma de 12 toneladas, que teria sido fabricada do metal dos sinos das igrejas de Assunção e usada durante dois anos para conter o avanço das tropas brasileiras sobre a capital paraguaia, permanece no Brasil e é objeto de um imbróglio diplomático entre os dois países acirrado nos últimos anos.49 A guerra parece não ter findado, Teixeira Mendes. Referências bibliográficas Brasil, B. “A Época (Rio de Janeiro)”. Disponível em: . Costa, C. (1956) O positivismo na República: notas sobre a história do positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional. Doratioto, F. “Eterno General”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Jan. 2011. Disponível em: . Fausto, B. (2009) História do Brasil. 13. ed. São Paulo: EdiUSP. [1. ed. 1994] Lins, I. (1967) História do positivismo no Brasil. São Paulo: Companhia editora nacional. p. 37. Löwy, M. (1994) As aventuras de Karl Marx contra o barão de Münchhausen. Marxismo e Positivismo na sociologia do conhecimento. 5 ed. São Paulo: Cortez. Mendes, R. T. (1913) A confraternização Brasílio-argentina, a independência da nossa cara irmã a República do Paraguai, e o cancelamento da sacrílega dívida resultante, para esta, da guerra fratricida entre ela e o Brasil, a Argentina e o Uruguai. Rio de Janeiro: Igreja e Apostolado Positivista do Brasil, (57 p.). Disponível em: http://docvirt.com/docreaderFGV/docreader.aspx?bib=Igreja_Pos&pasta=IP140f Moraes Filho, E. (1957) Augusto Comte e o pensamento sociológico contemporâneo. Rio de Janeiro: Livraria São José. Pezat, P. R. (1997) Auguste Comte e os fetichistas: estudos sobre as relações entre a Igreja Positivista do Brasil, o Partido Republicano Rio-Grandense e a política indigenista da República Velha. Mestrado em História – UFRGS. Silva, J. C. (2008) O Amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim: As propostas do Apostolado Positivista para a educação brasileira (1870-1930). (p. 6) Campinas: UEC, (Tese de Doutorado). Soares, M. P. (1998) O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. (p. 79-83) Porto Alegre: AEG. Yegros, R. S.; Brezzo, L. M. História das Relações Internacionais do Paraguai. Brasília: Funag, 2013. Disponível em: . 47

Mendes, R. T. (1913) Ob. Cit. p. 55-56. Cf. Yegros, R. S.; Brezzo, L. M. História das Relações Internacionais do Paraguai. Brasília: Funag, 2013. Disponível em: . 49 Cf. . 48

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