Argumentação e História do Tempo Presente: Jornadas de Junho de 2013, Segurança Pública e Copa do Mundo em um programa de televisão

June 5, 2017 | Autor: Valdeci Cunha | Categoria: História do Tempo Presente, Argumentação, Jornadas de Junho de 2013
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ARGUMENTAÇÃO E HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: JORNADAS DE JUNHO DE 2013, SEGURANÇA PÚBLICA E COPA DO MUNDO EM UM PROGRAMA DE TELEVISÃO ARGUMENTATION AND HISTORY OF PRESENT TIME: JORNADAS DE JUNHO OF 2013, PUBLIC SECURITY AND WORLD CUP IN A TELEVISION SHOW Valdeci Silva Cunha1 Júlia Ferreira Veado2 Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar um debate apresentado em programa de televisão, TV Verdade, que foi ao ar em junho de 2014, e que teve como tema as Jornadas de Junho, a segurança pública e a Copa do Mundo. Diante deste quadro político permeado por manifestações que ressignificaram o espaço público, em que diversos pontos de vista emergiram e se chocaram, este texto procura enfatizar outras possibilidades de estudo ao ter como foco o trabalho transdisciplinar entre a história e a argumentação. Palavras-chave: Debate político, TV Verdade, História do tempo presente, Argumentação. Abstract: This article aims to analyze a debate presented in television show, TV Verdade, that aired on June 2014, and which theme was Jornadas de Junho, public security and the World Cup. Facing this political framework permeated by manifestations which has reframed the public space, where different points of view emerged and clashed, this paper tries to emphasize others possibilities of study having focus on the transdisciplinary work between history and argumentation. Keywords: Political debate, TV Verdade, History of present time, Argumentation.

Considerações iniciais Passados pouco mais de dois anos das manifestações que tomaram conta do país e ficaram conhecidas mundialmente como as Jornadas de Junho, talvez hoje o pesquisador, ou mesmo o leitor mais distraído, ainda encontre, nos mais diversos seguimentos da mídia, impressa ou virtual, os ecos e desdobramentos dos principais acontecimentos e fatos que se multiplicaram nas mais diversas cidades espalhadas pelo Brasil. Uma rápida pesquisa na internet, numa primeira visada, ainda nos dá um surpreendente arsenal de informações e balanços que foram sendo produzidos durante as manifestações dos acontecimentos e posteriormente. Este artigo tem como objetivo analisar um debate ocorrido em programa de televisão, o TV Verdade, episódio do dia 10 de junho de 2014, e cujo tema foi a 1

Doutorando em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG (2012). É pesquisador do Centro de Convergência de Novas Mídias/UFMG (NucUrb/CCNM), integrante do NECH (Núcleo de Estudos Cidades na História) e membro do Conselho Editorial da Revista Discente de História Temporalidades/UFMG. 2 Mestranda em Análise do Discurso pela Faculdade de Letras da UFMG. Bacharel em Letras Português pela Universidade Federal de Minas Gerais (2013). Pesquisador e integrante do Núcleo de Estudos sobre Transgressões, Imagens e Imaginários (NETII/PosLin/UFMG).

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segurança pública nas cidades e Copa do Mundo, que seria sediada no Brasil no mesmo ano. Diante desse quadro político, permeado por manifestações que ressignificaram o espaço público, desde as Jornadas de Junho, de 2013, diversos pontos de vista emergiram e se chocaram. Procurar-se-á, aqui, então, enfatizar as possibilidades de estudo de foco transdisciplinar entre a história e os estudos da argumentação. Em um primeiro momento, apresentaremos esse debate inserido em suas dimensões local e global, contextualizando-o. Em seguida, analisaremos mais detidamente a argumentação colocada em cena em um programa de televisão, que reuniu uma professora universitária (da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG), um policial militar (tenente-coronel da Polícia Militar de Minas Gerais) e um jornalista. Logo em seguida, apresentamos nossas considerações finais. Durante esse período das Jornadas de Junho, em que grandes mudanças urbanas geradas pelas Copas3 eram sentidas nas principais cidades do Brasil, várias questões foram levantadas, assim como diferentes respostas foram produzidas a fim de tentar compreender um fenômeno que ainda se mostrava em processo. Em função de sua atualidade, os debates que tematizaram esse assunto, em grande medida, desafiavam (e ainda desafiam) os padrões estabelecidos ou até então disponíveis de explicação, das ciências humanas, como um todo. A quantidade de pessoas que foram às ruas, somada às várias demandas colocadas e recolocadas no espaço público, laureadas por uma grande diversidade de opiniões e pontos de vista, confundiu, misturou e desestabilizou algumas certezas que até então pareciam povoar os imaginários dos vários movimentos sociais, da sociedade civil e dos órgãos responsáveis pela manutenção da ordem. Não obstante, assistiu-se também a um embaralhamento de práticas de reivindicações e dos usos de estratégias e táticas no ato de reivindicação por demandas e mudanças sociais. Algo que não era assim tão novidade para alguns grupos, como o uso/agenciamento das diversas redes sociais disponíveis, apareceu em cena como um dos pontos centrais ao desafio de entendimento das dinâmicas de organizações e de divulgação de ideias e comunicados. Talvez, para além de todas as formas de se pensar a temporalidade de um momento revolucionário dos estudos históricos, as manifestações colocaram em cena novos atores sociais, ressignificações das práticas de atuação e de uso espaço público, outras formas de conformação de estratégias de solidariedade entre manifestantes. Em outras palavras: desencadearam e colocaram na ordem do dia inúmeras/incontáveis vozes e temporalidades. Há muito, um desafio para os estudos culturais e linguísticos, o tempo presente já não se coloca para o pesquisador, de hoje, como um tabu. Fruto de mudanças de perspectiva teórico-metodológicos, a chamada história do tempo presente em muito tem contribuído para o alargamento de fronteiras, até então estanques, para se pensar as noções, as mudanças e permanências de acontecimentos instaurados no presente a vida dos fatos narrados. No âmbito de manifestações de caráter político, os diálogos com outros campos de conhecimento, como a antropologia, a história e as teorias da análise do discurso e da argumentação, têm se mostrado bastante frutíferos no sentido da construção de um conhecimento inter e transdisciplinar. Neste pequeno estudo, pretendemos explorar algumas possibilidades que verificamos dessas aproximações e desdobramentos. Se é possível afirmar, sem muito risco de erro, que a imprensa ainda é pouco 3

O Brasil foi o país sede de dois grandes eventos esportivos, a Copa das Confederações, em 2013, e a Copa do Mundo, em 2014. E em breve (2016), a cidade do Rio de Janeiro será sede das Olimpíadas.

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estudada, como fonte e objeto, pelos estudos históricos, o mesmo parece não se dar nos estudos das ciências da linguagem. Parte dessa constatação, por exemplo, pode ser evidenciada no lugar ainda ocupado e, praticamente insuperado, dos estudos do historiador Nelson Werneck Sodré no livro de História da imprensa no Brasil, trabalho que o ocupou por mais de uma década e publicado no ano de 1966. Em suas quase 600 páginas, o estudo se ocupou da história da imprensa desde antes da chegada da corte portuguesa ao Brasil, em seu período colonial, até o advento da “grande imprensa”, localizado na passagem do século XIX para o XX, marcados pelo fim do Brasil Império e o advento da República. Para as historiadoras Tania Regina de Luca e Ana Luiza Martins, A história do Brasil é repleta de peculiaridades. Nossa Independência foi declarada pelo filho do imperador português. Passamos a maior parte do século XIX sobre uma Monarquia, enquanto o resto do continente era republicano. Assim, não é de espantar que o primeiro jornal brasileiro tivesse sido publicado em… Londres. De fato, o Correio Braziliense surgiu em 1808. Oposicionista e crítico, o periódico era feito na Inglaterra, mas discutia os problemas da Colônia e atravessava o oceano Atlântico para circular por aqui. (LUCA; MARTINS, 2008, p. 7)

Certamente, os tempos são outros! Não precisamos mais editar as nossas críticas fora do país, não somos mais governados por um imperador e, enfim, somos uma república. Entretanto, talvez ainda precisemos melhorar as estruturas e os sentidos de uma sociedade que se quer, se pensa e se deseja democrática. Várias são as mensagens e sentidos que podemos derivar dos acontecimentos que por ora analisamos e que tiveram lugar na história recente do país. Podemos dizer que várias temporalidades saíram às ruas durante aquele junho de 2013, em que pese a ênfase e o foco dado aos supostos black blocs4 e seu tão amplamente divulgado “terrorismo”.5 Ali estiveram diferentes segmentos sindicais e partidários, grupos anarquistas, feministas, famílias moradoras de ocupações urbanas, militantes LGBTS, acadêmicos, estudantes secundaristas, enfim, que nos parece ociosa a tentativa de classificação e definição. O exercício que nos parece de relevância, entretanto, é o de pensar quais agendas, argumentos, repertórios e dinâmicas podemos acessar quando pesquisamos o evento, em sua totalidade, ou em e algumas manifestações localizadas, especificamente. Mapear os pontos de tensão e as linhas de força dos argumentos nos sugere uma das várias formas possíveis de acesso a essa memória recentemente produzida. Desenrolados os acontecimentos no espaço que cobriu praticamente a totalidade do território nacional, não podemos perder de vista as principais discussões e pesquisas que têm enfatizado a dimensão global das reivindicações sociais, as trocas e 4

O termo black bloc é uma tática de autodefesa autônoma, conforme define o professor da USP, Pablo Ortellado (2014). Consiste “na formação de linhas de frente para enfrentar a repressão policial”, além de bloquear ruas e praticar resistência pacífica” (Ortellado, 2014). Não se trata de um grupo de pessoas “mascaradas”, nem de uma organização, como normalmente se coloca. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1603. Acesso dia 20 de agosto de 2015. 5 Aqui, tomamos a noção temporalidade em sua dimensão e significação históricas. Ao mobilizarem reivindicações sobre o direito à moradia e a melhorias em mobilização urbana, os manifestantes reatualizaram (e re-ritualizaram) questões apresentadas em outros contextos da história nacional, como as lutas por direitos civis, dos anos 1960, ou movimentos pelo direito às cidades, dos anos 1990, apropriando-se das memórias e imaginários sociais disponíveis. Nesse sentido, afirmamos que vários tempos estiveram nas ruas, nas várias cidades onde se presentificaram manifestações públicas.

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fluxos informacionais que estão presentes em esfera mundial. Para Antônio Augusto Arantes Neto (2000), em livro intitulado Paisagens paulistanas: transformações do espaço público, fruto de pesquisas e do interesse de entender as dinâmicas entre o local e global na conformação dos espaços sociais contemporâneos, […] mesmo no caso das chamadas cidades globais e das megalópoles, onde impera a comunicação mediatizada e a assim chamada desterritorialização das práticas sociais, para se compreender adequadamente o modo como se estrutura a vida social, as identidades e o sentimento de participar de uma nação, o espaço importa. Importam as práticas por meio das quais estruturas físicas são transformadas em balizas de territorialidades, ainda que efêmeras, em marcos de lugar ou de vida social ressingularizada. (ARANTES NETO, 2000, p. 12-13)

Se o espaço público novamente retorna como lugar das disputas pelo político, como lugar de debate, da formação e da conformação da construção de noções de cidadania e pertencimento, por que não pensar que são de ideias de nação que estamos falando? Nesse sentido, quantas “nações” caberiam dentro de uma mesma e coincidente nação? Como entender, lidar e absorver uma multiplicidade de interesses e desejos? Ou, por outro lado, seriam apenas manifestações sem sentido em função de ser de um “bando de gente” (horda?) carente de orientação ideológica, manipulado pela “grande mídia”, pelos partidos políticos, “analfabetos políticos” que querem apenas ir para as ruas fazer confusão num “clima de paquera”?6 Tendo em vista que não há discurso puramente objetivo, alheio às nossas preferências particulares, às nossas filiações políticas e independente das paixões que nos motivam e movimentam, um denominador comum parece se impor: faz-se necessário agenciarmos outras formas de pensar e entender o nosso tempo presente para que não caiamos em explicações redutoras ou generalizações sem fundamentação. O desafio é homérico, mas, nem por isso, menos importante. Se, como nos afirma David Harvey (2012), “[…] a cidade tradicional está morta, assassinada pelo desenvolvimento capitalista desenfreado, vítima de sua necessidade insaciável de dispor de mais valia ávida de inversão em crescimento urbano rápido e ilimitado” (HARVEY, 2012, p.13-14), em uma dinâmica que redunda em uma completa falta de importância com as possíveis consequências sociais, ambientais ou políticas, o chamado das ruas se mostra cada vez mais premente e necessário. As ruas em rede e na TV Em decorrência da emergência desse apelo, a escolha feita para este trabalho concerne um debate ocorrido em um programa de televisão o qual se propôs a discutir os confrontos entre polícia e manifestantes, ocorridos no Brasil em junho de 2013. Nessa ocasião, o país assistiu uma série de manifestações tomarem as ruas. Era o momento em que se sediava a Copa das Confederações e preparava-se para receber a Copa do Mundo, no ano seguinte. Enquanto essas pequenas revoltas populares eram 6

A escolha desses termos foi inspirada na constante recorrência em que são empregados nas diversas redes sociais disponíveis e que são de fácil constatação. Vale ressaltar, especialmente, que eles são constantemente encontrados nos espaços destinados às manifestações dos leitores de revistas e jornais de grande circulação nacional, em suas versões para a internet, mobilizados em sentido negativo ou desqualificador.

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duramente repreendidas pelas polícias militares, a figura dos black blocs emergiam como “vagabundos”, “depredadores”, “vândalos”. Em meio a esse contexto, a TV Alterosa, emissora de Minas Gerais, preparou uma edição7 de seu programa TV Verdade dedicada a debater a questão da segurança pública em grandes eventos. “Olá, boa tarde, está no ar a TV verdade, aqui somente a verdade, nada mais do que a verdade”. Foi com esta declaração que Ricardo Carlini, jornalista e apresentador, abriu o programa TV Verdade8 do dia 10 de junho de 2014. A fala de Carlini, ao destacar o valor que a “sinceridade” representa para o programa, sugere reproduzir importância socialmente atribuída ao imaginário da verdade. Essa relação aponta-nos para existência do resquício de uma perspectiva predominantemente essencialista, segundo a qual a ação de argumentar é necessariamente uma prática em que a razão prevalece. Uma argumentação prototípica, na qual pelo menos dois participantes e múltiplos pontos de vista se esbarram, somente seria entendida como produtiva se alguém, no final, tivesse razão. Pelo viés dessa tradição, a finalidade de um debate consiste no alcance de uma conclusão soberana, ideia essa que encontra amparo no imaginário social vigente. Dessa forma, o argumento final que sobressai em um diálogo é justamente o que soa como mais correto, isto é, o que independe da interpretação, ou seja, é definitivo. No entanto, no caso de um debate centrado em torno de um tópico polêmico, dificilmente as paixões deixam de aflorar e os argumentos correspondem estritamente a informações factuais. E mais, uma argumentação permeada por pontos de vista mais subjetivos, ao contrário do que comumente se pensa, não pode ser tomada como fraca e sem fundamentos. Se o caminho trilhado pela Retórica levou-a a ser esvaziada e entendida como a mera “arte do falar bem”, atualmente a argumentação voltou a ser tema de estudo. A “Nova Retórica”, que surgiu em meados do século XX,9 propôs e propõe uma revisão da distância entre a argumentação e a lógica. De acordo com essa recente proposta, o caráter essencialista da argumentação perde campo para uma visão pluralista, que segue um viés mais tolerante e relativista. Para essa linha, a argumentação nos moldes objetivistas não corresponde à realidade de um debate social, sendo mais apropriado e enriquecedor pensá-la como uma prática interacionista, entendida como situação de troca, que admite a pluralidade e cuja ordem seja a do “preferível” e não mais a do “evidente”. Entretanto, conforme Grácio (2013), a proposta que considera a verdade como o desfecho preferível de uma argumentação é a que predomina em nosso imaginário, o que poderia ser caracterizado como um obstáculo à prática de um diálogo produtivo. Essa forma intransigente de participar de um debate foi também trabalhada pelo comunicador social Wayne Brockriede. Ao propor uma categorização dos participantes de uma interação argumentativa, Brockriede (1972, citado por Grácio, 2015), distingue três tipos: os “violadores”, os “sedutores” e os “amantes”. À exceção do último grupo, os dois anteriores assumem atitudes que condizem com essa forma de relacionamento com a verdade: defendem-na, ora usando de práticas incisivas, ora de artimanhas mais “escusas”. Essa postura sugere uma filiação à proposta de a argumentação ser um fenômeno comprometido com o alcance da verdade, única e 7

Disponível para assistir em: https://youtu.be/O69ip1Ilz_Q. Acesso em: 25 de agosto de 2015. Atração que vai ao ar pela Rede Alterosa de Televisão, de Minas Gerais. 9 Diversos estudiosos podem ser associados a essa releitura, como Christian Plantin, Chaïm Perelman, Lucie Olbrechts-Tyteca, Michel Meyer, Wayne Brockriede, Marc Angenot, dentre outros. 8

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absoluta, e nos permite observar a permanência dicotomia razão X emoção em nosso imaginário. Uma pesquisa feita por Jean Goodwin (2005) revelou que seus alunos guardavam uma visão de argumentação que associava tal prática à discussão, desavença verbal e até mesmo à briga. É possível aproximar os resultados encontrados através desse estudo à proposta de Brockriede, mencionada acima, uma vez que a maior parte dos estudantes avaliados por Goodwin (2005) trazia como modelo típico de argumentadores os “violadores”, ou seja, aqueles debatedores cuja postura é mais agressiva e intolerante. E essa forma de representar os envolvidos em uma argumentação, assim como o desenrolar do debate em si, segundo a autora, torna-se um entrave para a prática e o ensino da argumentação. Propondo refletir acerca desse modelo de interação, Grácio (2013) descortina a ideia de pensar a argumentação ligada à tradição que encara a retórica a partir do paradigma persuasivo. De acordo com o autor, a argumentação deveria ser pensada como um fenômeno episódico e multidimensional, não sendo proveitoso restringi-la apenas a uma busca pela verdade, sendo esta a chave que indicaria o fechamento de um debate. Assim, o caráter episódico diz respeito à ideia de “inconclusão” da argumentação, pois muitas vezes esta pode terminar sem necessariamente ter-se um fechamento formal. Ou seja, pode ser encerrada por diferentes motivos, como simplesmente a falta de tempo ou o desinteresse dos envolvidos em prosseguir. A multidimensionalidade decorre do fato de uma argumentação se compor de vários níveis, ou seja, de essa ser uma interação em que diversos aspectos, de variadas esferas, se cruzam e criam a tensão necessária para desencadear o debate. Tratando-se, portanto, de um episódio dialógico e multidimensional, o qual pode levar ao confronto de interesses e afetos, uma forma de contrabalançar os abusos cometidos em nome da persuasão monológica, encontra-se na ideia da multilateralidade, conforme propõe Jeanine Czubaroff. Através dessa sugestão, os envolvidos em uma situação de argumentação passam a ter “[...] a disponibilidade e a responsabilidade, a vontade de permanecer no seu próprio terreno e de conceder ao outro o mesmo direito” (CZUBAROFF, 2007, citada por GRÁCIO, 2013, p. 43). Em uma direção semelhante, Goodwin (2005) propõe pensar que, a partir da exposição dessa visão deturpada que se tem a respeito da prática argumentativa, visão esta que reduz tal fenômeno à ideia de desavença, “bate-boca”, disputa de territórios, pode-se sublinhar que a argumentação é um meio para “nos posicionar mais solidamente no mundo” (GOODWIN, 2005 citada por GRÁCIO, 2015). Por essa notação, pode-se traçar uma retomada da proposta advinda da Grécia Antiga na qual essa prática conferia aos indivíduos a chance de serem cidadãos engajados, participantes ativos da polis. Diante disso e também da proposta de a argumentação ser um fenômeno multidimensional, vale pensar que estar bem informado sobre o que nos cerca, as diversas temporalidades e interesses, e saber discursar e debater sobre tais temas sugere uma forma de civilidade. E essa habilidade não implica em sair “vitorioso” dos debates, mas sim em ter a consciência de que uma argumentação não deve ser reduzida a essa ideia de disputa pelo “troféu” da razão, ao contrário, que ela aceita inclusive a discordância como desfecho. Além disso, através desse modo de participar de uma situação argumentativa, corrobora-se com a ideia de que se trata de um indivíduo com perfil de um argumentador “amante”: um interlocutor que vê na argumentação uma troca e um caminho para o conhecimento. Diante da relação entre argumentação e cidadania, procurou-se escolher um

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objeto que englobasse um evento recente de nossa história e que tivesse um caráter polêmico. Feita a opção pelo episódio “Segurança e Copa do Mundo”, do programa TV Verdade, partir-se-á para a análise do debate, de acordo com os critérios de um viés discursivo-argumentativo e da noção de tempo histórico, pleiteando avaliar os diversos níveis que compõem uma situação de argumentação, e não apenas os argumentos em si. Dessa forma, em primeiro lugar, realizar-se-á a transcrição do debate travado neste episódio. Em seguida, a análise irá contemplar o mapeamento de quem são os convidados presentes à mesa, as imagens de si (ethos prévio e discursivo10) e suas autoridades. Além disso, procurar-se-á traçar uma análise acerca de suas atuações enquanto sujeitos, o que inclui tanto a postura que assumem, como a escolha dos termos os quais empregam em suas falas. A presente proposta mostra-se como um exercício de contextualização, interpretação e análise, pois, se em um debate, o argumento e o discurso de um é avaliado por outro (participante), suscetível às impressões subjetivas, o mesmo pode ocorrer nesta análise, corroborando com a ideia de que nem o discurso produzido nem sua recepção11 são imparciais e objetivos. O desafio é, portanto, apesar de nossas próprias predileções, tentar mostrar que esse olhar carregado de referências anteriores e externas (conhecimentos extralinguísticos) e paixões (pathos) pode ser embasado, configurando um movimento de abandono da visão essencialista e da atitude que desconsidera informações que escapam à esfera do factual.12 Os eventos de 2013 se enquadram na esfera do polêmico, visto que havia uma disputa acirrada de interesses “em jogo” e isso reverberou nas ideias que circulavam, seja na imprensa, seja na “boca do povo”. Dentre os protagonistas dessas disputas, pode-se listar, de uma ponta, os envolvidos em uma aliança entre setor público e privado, como governantes e empresários ligados à FIFA13 e aos patrocinadores, os quais tinham relação direta com as obras de infraestrutura realizadas para a ocasião; de outra, a parcela da população (diretamente) atingida por essas obras, os black blocs e os demais manifestantes. Claramente, dois pesos, duas medidas: os “cartolas”14 e a massa. Além dessas duas partes, no meio do conflito achavam-se outros participantes: a polícia, cuja função social é de garantir a segurança dos cidadãos; e uma outra parcela da população, não tão prejudicada por essa disputa e que tende a ser pouco informada, confiando em versões pronunciadas por veículos que aparentemente detém maior autoridade, ou seja, a mídia institucionalizada. O programa TV Verdade, cuja proposta é ser isento e imparcial e revelar “somente a verdade nada mais do que a verdade”, estruturou, para o episódio em questão, um debate centrado em abordar esse conflituoso momento. A fim de guiar o 10

O ethos prévio corresponde à imagem que o sujeito que enuncia traz consigo antes da tomada de palavra. Em outras palavras, é a impressão atribuída ao ser de fala de antemão. Já o ethos discursivo diz respeito à imagem que se constrói durante a fala do sujeito. 11 Aqui, percebe-se um duplo valor dessa recepção: vale pensar nos envolvidos diretos da cena argumentativa (os presentes à mesa do TV Verdade), assim como no público-alvo a atração, onde nos incluímos. 12 Nesse sentido, o olhar que aqui pretende-se lançar sobre tal materialidade, enquanto “contaminado” por afetos e valores, não deve ser invalidado a priori. 13 O termo FIFA é um acrônimo para Federação Internacional de Futebol. 14 “Cartola”, no sentido figurado, diz respeito aos homens importantes ou aos dirigentes de clubes desportivos que geralmente se aproveitam de sua situação para obter privilégios. Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/cartola . Acesso em: 23 de junho de 2015.

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telespectador para acompanhar o debate e de certa forma fazê-lo se sentir inserido nele, é feita a seguinte pergunta: “O que você acha das manifestações?”15 A partir desse recurso e através de uma mesa composta por diferentes vozes, o TV Verdade parece se colocar como fiel à ideia de uma argumentação plural, dando espaço para diversos pontos de vista e convidando até mesmo quem está apenas observando a também se posicionar. A atração sugere adotar uma linha receptiva, inclusiva e tolerante. A mesa composta contava com a presença de um civil, o “cidadão Eder” (figura recorrente no programa), uma professora universitária, a Profª Drª Regina Helena Alves da Silva (Lena), “[...] a pessoa mais indicada e apontada por todos, uma pessoa séria, que pode falar de manifestações, pode falar da dinâmica dos protestos que aconteceram e que vão acontecer. É a professora e historiadora, ela é professora da UFMG”.16 E, fechando a bancada, um policial militar, o tenente-coronel Alberto Luiz, “o chefão da comunicação da PM”,17 que comparece ao programa devidamente fardado.18 Logo no começo do episódio, os convidados são apresentados ao público e, nesse primeiro momento, pode-se perceber uma tentativa de Carlini e do programa que ele comanda (e representa) de instituir autoridade aos participantes. Para quem não os conhece, a primeira fonte,19 que garante a legitimidade necessária para que eles estejam ali, advém da apresentação feita por Carlini. Dizer de onde esses debatedores vêm, isto é, a quais instituições estão ligados, é uma maneira de lhes garantir poder de fala e, consequentemente, facilitar que o que eles digam tenha uma (maior ou menor) credibilidade. Adiante, o apresentador pontua: “[...] Peço muita calma de todos vocês, muita tranquilidade pro programa de hoje. Este programa não está aqui nem pra defender a polícia militar, nem pra defender vagabundo. Então vamo com muita calma, conversando e vocês vão tirando as dúvidas conosco”. Carlini tenta ressaltar uma aparente imparcialidade que, no entanto, não se sustenta, pois a escolha do termo “vagabundo”, para se referir aos black blocs, expressa sua orientação pessoal e, consequentemente, a do programa. É então aberto um espaço para a professora fazer suas primeiras considerações e, a medida que ela discorre, uma nova pergunta é mostrada na tela: “Você aprova as quebradeiras da manifestação?”. A escolha por um termo não se dá ao acaso e possibilita ao espectador notar um posicionamento por parte da atração exibida pela emissora. Assim como “vagabundo”, “quebradeira” também carrega um valor negativo. Como pontua Christian Plantin (2010), a palavra atua de duas formas: designando e orientando. Assim, esta não pode ser entendida como imparcial e inofensiva. Diante dessa perspectiva que concebe a linguagem como social e a argumentação, incluindo aí as palavras, como uma conciliação que compreende orientação e avaliação, o historiador Luiz Arnaut (2013) pontua que [...] a forma do texto, os vocábulos, as construções, as condições de enunciação, as expressões utilizadas são elementos que nos fornecem importantes pistas/indícios sobre a sociedade, o contexto, o acontecimento 15

A pergunta aparece escrita na tela, em destaque. Forma como Carlini apresenta a convidada. 17 Como o apresentador do programa se refere ao policial. PM é um acrônimo para Polícia Militar. 18 É importante salientar que por essa atitude, o coronel antecipa o lugar de onde fala, ou seja, a que instituição pertence, e, consequentemente, procura conferir a si mesmo uma autoridade prévia. 19 Com exceção do policial, pois a farda já revela seu lugar de origem. 16

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e/ou a época em que foi produzido, escrito ou falado. A língua não é somente um recurso técnico para a transmissão de ideias. Ela é tanto uma prática quanto uma relação social. As formas de comunicação variam de acordo com faixas etárias, grupos sociais, regiões, situações e relação entre os falantes. (ARNAUT, 2013, p. 19)

Dessa forma, não se pode desconsiderar o efeito de sentido que uma nomeação confere ao objeto nomeado. No caso, o emprego dos termos “vagabundo” e “quebradeira”, para se referir ao que ocorreu nas manifestações de 2013, revela um tom e um posicionamento de desaprovação, por parte do TV Verdade, em relação às ações dos black blocs. Através dessa seleção, o discurso do programa sugere não ser fiel à ideia de “verdade, somente a verdade”, mas, ao contrário, mostra-se profundamente afetado por um ponto de vista, uma forma subjetiva e emocionada de abordar o assunto. Além dos itens lexicais selecionados, a entonação verbal dada a determinados termos também parece ser um indicativo dessa orientação pensada por Plantin (2010). Nos trechos transcritos, tentar-se-á marcar onde houve ênfase por parte dos falantes a fim de possibilitar essa análise. Após dar a chance de a professora traçar suas primeiras considerações acerca das manifestações, Carlini passa a palavra para o policial e pergunta-lhe sobre o material exibido no qual aparece um treinamento da PM. O tenente-coronel Alberto Luiz faz, então, a sua primeira intervenção,20 que é avaliada positivamente pelo apresentador: “Como o coronel falou bonito e falou bastante”. Vale ressaltar que após a fala de Lena, o anfitrião não faz nenhuma observação: a questão da preferência e da escolha por um ponto de vista fica clara. Passado esse primeiro momento de apresentações, entra-se em um debate como esperado. Carlini, para “atiçar” os presentes e provocar a discussão, exibe novamente um trecho do vídeo supostamente produzido pelos black blocs e convoca os telespectadores a ficarem atentos.21

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No momento em que pronuncia sua conclusão, o policial gesticula para a câmera, como se tivesse apontando o dedo para quem ele se dirige. 21 Nesse vídeo, uma suposta adepta da tática explica do que se trata o black bloc. Segundo Carlini, é um material muito bem produzido, que parece cinema e que ainda traz legendas em francês. O apresentador pede à produção do programa para exibirem o vídeo: “Cadê o outro trecho da black bloc? Quando ela fala, presta atenção. A menina fala o seguinte, que tem a manifestação, manifestação tá pacífica, mas que a tática se infiltra e o pau quebra. Deixa eu ver esse trecho”. Nesse momento, o gesto do apresentador é de apontar o dedo para a câmera e em seguida dar um leve tapa na mesa, num tom de indignação.

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Imagem 1: Frame retirado de um vídeo supostamente produzido pelos black blocs e exibido durante o programa TV Verdade.

Imagem 2: Momento em que Carlini anuncia a exibição de um trecho do vídeo produzido “por pessoas adeptas da tática” e convoca o telespectador a “prestar atenção”.

Após a exibição do material,22 chega a vez do cidadão Eder se pronunciar. O convidado se mostra totalmente contrário à tática, ainda que não se importe em como classificá-la. Para ele, a medida deve ser a repressão e defende de maneira irrestrita a atuação dos policiais: [...] é um absurdo uma coisa dessa. É um absurdo a pessoa fazer uma tática de guerra, isso não é guerrilha não, isso é uma guerra. Como provocar uma Fala da suposta black bloc: “Se você tem um protesto pacífico com cinco mil pessoas, ninguém vai falar sobre isso. Agora, se no meio dessa manifestação, você tem cinquenta black blocs quebrando suas propriedades corporativas, toda a mídia internacional vai falar sobre isso. O que eles vão falar vai ser ruim, mas pelo menos eles vão falar sobre isso”. 22

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destruição terrível no ano passado. Graças a Deus, a tropa PM, aquele pessoal que está na rua mesmo já está falando que a hora do black bloc vai chegar. Eu não quero saber se black bloc é nome próprio, é organização, se é técnica, o que que é que seja, só sei que isso é um câncer e como tal deve ser combatido [...] com remédio forte, muito forte.23

Seguindo uma postura aparentemente democrática, Carlini traz a professora Lena novamente ao palanque: “A senhora concorda com ele? Pode falar! Aqui é tudo liberado, a senhora pode falar o que a senhora quiser”. O apresentador parece, mais uma vez, tentar sustentar a ideia de que seu programa dá voz e ouve a todos. Diante da abertura, a professora coloca: Não. Uma tática não aparece, não pode ser personificada. […] O problema é que identificou o lugar errado, no momento errado, da forma errada; então criou um clima de guerra. Você tem uma série de depredações que não são feitas pelo mesmo tipo de grupo, nem pelo mesmo tipo de intenção. São por grupos distintos, que querem coisas diferentes, inclusive grupos que querem depredar. A tática black bloc ela ataca sim isso que eles chamam dos inimigos, os capitalistas. No caso do Brasil, se atacar, ataca só quem é financiador da Copa, mas ela não sai à rua para atacar, ela não sai à rua com esse propósito, é completamente diferente [...].24

Vale salientar que, além de abrir sua resposta com uma negação, as ênfases marcadas pela professora através dos termos ou dos momentos em que sua voz se eleva, permite-nos ver seu posicionamento contrário ao do policial, assim como ao de Carlini.

Imagem 3: O tenente-coronel toma a palavra e assevera sua opinião a respeito “desses intitulados black blocs ou mascarados”.

Mantendo a dinâmica, o tenente-coronel recebe o direito à fala: “[…] A professora Lena que me perdoe, eu respeito a opinião dela, mas eu não concordo seja lá que intenção seja. Ninguém tem o direito de depredar a cidade ou qualquer outro estabelecimento”. Diante dessa fala, a professora Regina Helena rebate: “[...] eu não tô 23 24

Grifos nossos, para marcar as ênfases (de entonação) que os locutores empregaram em suas pronúncias. Grifos nossos, para marcar as ênfases (de entonação) que os locutores empregaram em suas pronúncias.

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dizendo que alguém tem direito”. Nesse momento, pode-se notar a interpretação que o policial fez a respeito da afirmativa proferida pela professora. Como seus pontos de vista diferem-se radicalmente, essa leitura pode ter sido uma estratégia empregada pelo PM para desacreditar a construção que Lena vinha fazendo, ao mesmo tempo em que tenta se posicionar como mais coerente. Sua opinião sobre o que seriam os black blocs sugere um posicionamento bem demarcado: […] Inclusive esses intitulados black bloc […] eu digo para vocês o seguinte: vocês não sabem sequer o que estão interessados ou o que estão buscando.25 É manifestantes (sic) chapa branca. Estão aí sendo manipulados, são imbecis, são presunçosos, e são exatamente a manifestação de uma verdadeira esquizofrenia.26

O mediador do programa, Carlini, novamente se mostra parcial e elogia as palavras do policial,27 ao passo que a professora insiste em defender seu ponto de vista retomando uma colocação feita pelo tenente coronel. Essa medida parece funcionar como uma medida para estabelecer uma conexão entre as falas. […] é a manifestação realmente de uma esquizofrenia, por que assim, eles não são black blocs. Tão depredando, tão. Não tô dizendo que as pessoas têm o direito de depredar, eu não falei isso. Eu tô dizendo que a estratégia é errada. Eu estou dizendo que colocar tudo no meio bolo gera um clima de guerra, de insatisfação [...].

Imagem 4: Frame que mostra os convidados cidadão Eder e a professora Regina Helena discordando a respeito da questão black bloc.

A partir daí, o debate entra em um momento acirrado, em que as falas são diversas vezes interrompidas e os pontos de vista se mostram bastante incompatíveis, em especial as ideias defendidas pela professora em oposição às trazidas pelo PM, pelo cidadão e até mesmo pelo próprio apresentador. 25

Nesse momento, ouvem-se sons de batidas na mesa, muito provavelmente devido a gestos feitos pelo próprio coronel. 26 Grifos nossos, para marcar as ênfases (de entonação) que os locutores empregaram em suas pronúncias. 27 É possível ouvir ao fundo ele comentando “parabéns, coronel, parabéns”.

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Cidadão Eder: “Mas não foi isso que eles fizeram ano passado, professora?” Profª. Regina Helena: “Não, não foi. [...]” Cidadão Eder: “Foi, juntou uma turma lá e saiu destruindo. [...]” Profª. Regina Helena: “Sim, como aconteceu várias vezes nesse país e acontece sempre [...]” Cidadão Eder: “Então vai continuar acontecendo até a eternidade? […]” Profª. Regina Helena: “[...] Por que que é que no momento da Copa é interesse fazer isso?” Ricardo Carlini: “Aparecer pro mundo inteiro […]” Profª. Regina Helena: “Não deles, eu não tô falando deles. Quem que tá dando repercussão de algo que sempre aconteceu?” Cidadão Eder: “Eles. […]” Profª. Regina Helena: “Não.[...] Onde que tá a mídia? Onde que tá o treinamento? Onde que tá tudo isso?” Cidadão Eder: “Televisão, professora, televisão mostra o fato, notícia, televisão não inventou isso aí não” Profª. Regina Helena: “[...] Não. Televisão mostra o que ela quer.” [...] Nós sabemos disso. A mídia mostra o que ela quer”.

No trecho recortado acima, a última fala do cidadão Eder sugere uma defesa da imparcialidade do que se mostra na TV. Indo na mesma direção, o coronel declara28 “[...] a mídia é a vocalização da democracia. Contra fatos não há argumentos”. Essa ideia resgatada pelo coronel, cristalizada no imaginário social, permite observar a supremacia que se confere à evidência em detrimento da opinião, a qual provém da esfera da preferência. Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se ver mais uma vez a tentativa de fazer prevalecer uma única verdade, herança da perspectiva essencialista. Dessa maneira, a notícia, exibida nos meios de comunicação, ao mostrar os fatos, mostraria a verdade. Tal ideia é desconstruída em um dos momentos mais acalorados da discussão.29 Enquanto a professora defende que o Brasil é um país historicamente violento, o convidado cidadão Eder recusa-se a aceitar tal argumento dizendo que “[...] eu não conheço esse país, coronel, eu não conheço esse país que a professora está falando [...] é teoria [...] escrita para ganhar dinheiro [...] não aceito isso não [...] eu sou um cidadão brasileiro pagador de impostos”. Para tentar conter um pouco os ânimos, entra em cena o mediador.30 Ricardo Carlini: “Calma. Cidadão, professora. [...] eu fico imaginando o que vai ser na rua. Nós temos uma professora respeitadíssima, cheia de títulos, no exterior e tudo, e, e uma pessoa com várias universidades nas costas. Olha como eles discutem. Já imaginou eles na rua? Profª. Regina Helena: “Sim” Cidadão Eder: “Não aceito” Profª. Regina Helena: “Que bom. A gente não se bateu” Ricardo Carlini: “[...] já imaginou eles na rua na frente da polícia e o pau quebrando?” Profª. Regina Helena: “Isso se chama democracia. Nós estamos discutindo, não tamo batendo um no outro” Ricardo Carlini: “Sim. [...] mas então, se acender um fósforo aí ía voar...” 28

A afirmação de Eder se dá no minuto, já o PM faz esse resgate no minuto 34. Marcado inclusive por uma sonoplastia que inclui sons de sineta de ringue de boxe e miados de gatos em briga. 30 Ver minuto 32:45 29

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Profª. Regina Helena: “não, não vai [...] não” Cidadão Eder: “[...] a educação, a educação e o meu princípio pacífico não me permitem fazer isso” Profª. Regina Helena: “Isso, pronto. [...] Isso se chama discordar, a gente não pode ter medo disso”

Em um programa cujo mote central é mostrar a verdade e que propõe isso por via de um debate democrático, é possível notar certas incoerências, o que dificilmente não ocorreria, pois, enquanto uma discussão envolve parâmetros relativos, valorativos e afetivos, essa noção de verdade tem filiações exatas, lógicas. Ou seja, parece complicado, ou se não ingênuo, acreditar que seja possível alcançar uma certeza consensual e irrefutável através de uma argumentação nos moldes ali colocados. Tanto a forma como o debate foi estruturado, as pessoas que foram chamadas à mesa, assim como as intervenções realizadas por Carlini, tudo isso guarda uma relação com as escolhas feitas, o que aponta para o distanciamento que há entre uma perspectiva essencialista e uma pluralista. Em uma argumentação, com participantes reais colocados em uma situação concreta, não se pode esperar um funcionamento estritamente lógico. Além das paixões que vêm à tona através dos discursos e que vão dando os direcionamentos, as imagens e as posturas dos participantes também são devedoras do lugar aos quais essas pessoas estão atreladas. Pode-se perceber que, dentre os presentes à mesa, a professora sustenta um ponto de vista que os demais debatedores não conseguem aceitar, nem mesmo uma parcela dele. O policial, o cidadão e até mesmo o apresentador insistem em considerar a tática black bloc como um movimento composto por “vagabundos” que se acham “no direito de depredar”. Em relação ao desempenho de cada um dos presentes, a fala da professora, por exemplo, parece ser mais diplomática, permeada por traços acadêmicos, o que a torna uma debatedora mais didática. Ela se mostra mais paciente e diversas vezes, ao resgatar uma fala do outro, tenta explicar para os demais algum aspecto do assunto que, a seu ver, estava sendo mal interpretado. Já o policial parece sustentar um tom mais incisivo, o que de certa forma corresponde à postura esperada de alguém com sua posição. Além disso, boa parte de seus argumentos nos parece condizentes com o imaginário social que se tem acerca da corporação a qual ele pertence. Ele claramente sai em defesa dos demais policiais e da manutenção de uma “ordem”, como quando toca na questão do “ethos do homem, do guerreiro [...] que protege o cidadão”, nas palavras do tenentecoronel. Finalmente, o cidadão Eder, no papel de belo-horizontino, assim como o apresentador Carlini, que, no papel de mediador, deveria se manter imparcial, são figuras que revelam uma preferência: ambos sustentam um ponto de vista que se aproxima e muito das ideias colocadas pelo tenente-coronel. Isso revela que o TV Verdade não capta tanto assim a “verdade e somente a verdade”, mas, pelo contrário, mostra-se suscetível aos argumentos que lhes parecem ser mais razoáveis. Há assim uma incoerência, pois, enquanto defende-se uma postura objetivista, os argumentos do programa e de seus convidados apontam justamente para a ideia de que o debate não poderia ser encerrado com o alcance de um consenso. O que se viu foram participantes tentando traçar uma leitura de um momento conturbado, recentemente vivenciado no país. Esses argumentadores pareciam buscar, conforme Angenot (2008, citado por Grácio, 2013, p.17) se situar “[...] frente às razões dos outros, testando a força e a coerência que imputam às suas posições”.

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Considerações finais Diante de uma perspectiva transdisciplinar, que buscou relacionar história do tempo presente aos estudos da argumentação, pretendeu-se mostrar que uma argumentação objetiva, racional, entendida como liberta de afetos, e que se abstenha de escolhas da ordem do preferível não parece corresponder ao uso social da linguagem. Esse fenômeno linguageiro deve ser pensado como um diálogo que atenda e que esteja atento às condições reais de comunicação, sendo, portanto, sujeito às crenças e às paixões (pathos) e ligado a noções como valores e preferências. Partindo das propostas da multidimensionalidade e da multilateralidade argumentativa, a persuasão, embora comumente associada à finalidade de uma argumentação e vista como indício de que um diálogo não foi em vão, pode ser entendida de maneira diferente. Os envolvidos podem ouvir os pontos de vista diferentes do seu, mas não tem o dever se concordar com eles. Nessa troca, é permitido manter-se fiéis às suas ideias, sem que isso seja um problema. Assim, a finalidade de um debate não se colocaria como uma revelação da verdade (“nada além da verdade”), mas sim um saber se colocar e colocar suas ideias, confirmando sua cidadania e a vigência de um sistema democrático. De uma forma esquemática, os lugares de enunciação ocupados pelos três convidados – um policial militar, uma professora universitária e um “homem do povo” –, e os discursos por eles enunciados nos sugeriram, também, um pequeno quadro das várias temporalidades e formas de entender os eventos que tiverem palco em vários lugares do Brasil. No âmbito da vida prática, podemos pensar que as pessoas não têm, cotidianamente, o hábito de dialogar ou identificar em ocupantes de cargos em instituições, como as polícias civil e militar, cidadãos abertos e dispostos ao diálogo. Mesmo entendendo que, durante o desenrolar do programa, tanto a professora quanto o “cidadão”, não tenham insinuado estarem constrangidos, a presença de um policial fardado na “bancada democrática” do programa não é algo a ser desconsiderado. Assim, podemos afirmar que há uma hierarquia implicitamente afirmada no âmbito situacional dos lugares de fala. Nesse sentido, podemos considerar que, de uma forma geral, os gestos, as expressões, as entonações, etc., também configuram elementos importantes, como mencionado em alguns momentos do estudo, para a compreensão das situações comunicacionais. Além disso, o debate proposto pelo programa TV Verdade deixa ver o caráter episódico da argumentação, visto que este se encerra de maneira abrupta uma vez que uma atração televisiva tem, via de regra, uma duração determinada e não costuma se estender para além desse tempo. Diante disso, se pode inferir que os envolvidos, dados os lugares ocupam e as vozes autorizadas que representam/encarnam, saíram do mesmo jeito que chegaram, cada uma com seu próprio ponto de vista, confirmando o caráter de multilateralidade ou, como sintetiza a professora Regina Helena durante o debate, “isso se chama discordar, a gente não pode ter medo disso”. Já o público, por sua vez, pode ser considerado como mais beneficiado, dado que foi travado um confronto de ideias de figuras que se dispuseram a ocupar um espaço da esfera pública e opinar, em que pese as condições discutidas neste artigo. Entretanto, e se os vários diagnósticos que hoje se emitem sobre o silêncio ou a completa ausência de intelectuais ou figuras representativas do mundo das ideias nos principais debates travados no seio das comunidades em que vivem, consideramos um ganho, e não de pequena monta, a configuração de um cenário tão rico e complexo

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como esse analisado. Enfim, a Copa veio para o Brasil, as pessoas e as polícias foram para as ruas, as temporalidades novamente se encontraram em seu lugar por excelência: a esfera pública. E ela, sim, é forçoso e nunca demais insistir, não pode deixar de existir.

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