Ariel e Caliban: dois lados de uma mesma moeda

May 26, 2017 | Autor: Camilla Silva | Categoria: Theatre Studies
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Ariel e Caliban: dois lados de uma mesma moeda

Camilla Silva
Aluna do Departamento de Artes Cênicas
Universidade de São Paulo – USP



















São Paulo
2015




Ariel e Caliban: dois lados de uma mesma moeda

Camilla Silva

Quando li a peça A Tempestade, de Shakespeare, confesso que no momento minha atenção não se demorou em nenhum detalhe e achei a peça um tanto quanto forçada, terminando com um final feliz para todos os personagens, nada shakespeariano. Um tempo depois, ao ler em Shakespeare Nosso Contemporâneo, do crítico polonês Jan Kott, o capítulo referente à peça me vi frente a um mar de suposições, observações e notas sobre o enredo da peça que antes me haviam passado despercebidos. Reli a peça e muitos recortes surgiram na hora de escolher um tema para esse ensaio: a magia de Prospero comparada à ciência moderna, elementos místicos da peça, uma comparação das atitudes de Ariel e Caliban ou as repetições do mesmo tema (usurpação do poder) sobre os diversos personagens da peça. Pensando em um pequeno texto que li que contrastava as características de Ariel e Caliban, resolvi adentrar esse recorte e descobrir os motivos pelos quais Jan Kott diz ser essa uma abordagem desprovida de interesse.
Nesse ensaio, através de explanações de trechos da peça shakespeariana, pretendo analisar ambos os personagens, suas falas e desenvolvimento a fim de entender por que sendo os dois habitantes da ilha e oprimidos por Prospero, reagem tão distintamente às suas situações.

DE MONTAIGNE A SHAKESPEARE

Em seu ensaio Dos Canibais, Montaigne afirma continuamente que o que é natural é sinônimo do que é bom e que a própria natureza deveria ser a luz pela qual a ação humana é guiada. Ele apresenta uma caracterização altamente idealizada dos nativos do Novo Mundo, percebe esses "canibais", como ele os chama, como homens que vivem do jeito que a Natureza pretendia, sem adornos e sem vestígios da civilização moderna. Montaigne vai tão longe a ponto de afirmar ter encontrado nestes canibais a "Idade do Ouro", falada tantas vezes por filósofos e poetas como meramente um sonho intangível. Corajosamente, afirma que no caráter dessas pessoas, todas as virtudes e propriedades estão vivas e vigorosas.
A caracterização de Ariel e Caliban em A Tempestade, de Shakespeare, é significativa em relação ao ensaio de Montaigne. Em ambas as obras há uma exploração da relação entre a natureza humana e a civilização moderna. A idealização dos canibais de Montaigne contrasta com o retrato antipático de Caliban, bruto, cujo nome mal disfarça a influência do ensaio de Montaigne. Enquanto os canibais deste são elogiados como "frutos silvestres" produzidos pela natureza em sua forma ordinária e sem qualquer artificialismo, o canibal de Shakespeare é um ataque direto contra a forma de idealização da natureza que Montaigne é tão afeiçoado. Em Shakespeare Nosso Contemporâneo, Jan Kott afirma: "Shakespeare não acreditava nesses 'bons selvagens' de Montaigne, assim como não acreditava nos bons reis." (KOTT, p. 339). No entanto, a complexidade de A Tempestade reside na sua ambiguidade, que decorre da justaposição do caráter bruto e às vezes patético de Caliban com o caráter enérgico e simpático de Ariel, ambos nativos da ilha e, portanto, podem ser pensados em termos dos canibais de Montaigne.

CARACTERIZANDO OS PERSONAGENS

Ao analisar a caracterização desses dois personagens em relação a Prospero, chega-se mais perto de determinar como A Tempestade responde e desafia o ensaio de Montaigne.
Ariel e Caliban podem ser vistos como os colonizados de Prospero e as diferentes atitudes desses sujeitos em relação ao seu mestre é indicativo das diferentes formas em que a natureza humana responde a civilização moderna. Ambos são indivíduos subjugados por Prospero, mas cada um desenvolve uma relação diferente com seu mestre com base em seu caráter natural, bem como as suas circunstâncias anteriores. As cenas de A Tempestade são estruturadas de modo a enfatizar as diferentes caracterizações de Ariel e Caliban em sua relação com Prospero. Ao longo da peça, as interações entre Ariel e Prospero vem imediatamente antes ou depois das interações entre Caliban e Prospero. A natureza contrastante dessas interações que ocorrem de forma dramática retrata o contraste entre as atitudes desses personagens.
A primeira aparição de Ariel já estabelece seu caráter como a de um sujeito gentil e submisso. Sua linguagem é a de um escravo que se liga a seu mestre, sem dúvida:
"Ariel: Saúde, poderoso senhor! Nobre senhor, saúde! Venho pôr-me às tuas ordens, seja para voar, para nadar ou para meter-me no fogo e para cavalgar as nuvens acasteladas. Submete às tuas soberanas ordens Ariel e todas as suas aptidões." (SHAKESPEARE, p. 17)
A disposição de Ariel para servir Prospero contrasta fortemente com a atitude de Caliban de rebeldia sarcástica exibida na mesma cena. Enquanto Ariel cumprimenta Prospero com uma afirmação de sua grandeza, Caliban cumprimenta-o com uma maldição:
"Caliban: Que sobre vós ambos caia o mais nocivo orvalho que jamais minha mãe aspergiu com penas de corvo mergulhadas em repulsivo pântano! Que um vento do sudoeste sopre sobre vós e vos cubra de pústulas!" (SHAKESPEARE, p. 25)
O ódio aparente de Caliban é evidente em grande parte de seu discurso, que consiste predominantemente de maldições semelhantes a esta. Especialmente na relação entre Prospero e Caliban vê-se a força destrutiva que se exerce quando um ser humano toma para si o controle de outro. O jogo de palavras de Shakespeare ao nomear seus personagens enfatiza essa ideia. Da mesma forma que o nome Caliban pode ser reorganizado como "Canibal", as letras no nome de Prospero podem ser rearranjadas para soletrar "Oppressor". Isso dificilmente pode ser visto como coincidência, pois no relacionamento entre os dois, é fácil perceber que Prospero impõe sua inteligência, modernidade e magia como forças opressoras.
Nestes encontros iniciais, os aspectos antagônicos dos relacionamentos são enfatizados. Ariel é retratado como um servo submisso e Caliban, como rebelde e rancoroso.
O primeiro discurso de Caliban explica o conflito que surge da falta de gratidão para com seu mestre. Prospero, tendo levado Caliban para longe de sua selvageria e em direção à modernidade acredita que ele lhe deve uma dívida de gratidão. Na verdade, Caliban primeiramente amou Prospero, mas era autonomia que este professava querer, não escravidão. O primeiro discurso de Caliban relata acontecimentos antecedentes ao drama: após atacar e tentar violentar Miranda, filha de Prospero, é jogado num rochedo e feito escravo sujeito a sofrimentos físicos como cãibras, cólicas e beliscões.
"Caliban: [...] Esta ilha é minha, por Sycorax, minha mãe e tu roubaste-ma. A princípio, quando aqui chegaste, acariciavas-me e estimavas-me muito; [...] Eu então queria-te bem, [...] Maldito seja eu, que tal fiz! [...] Eu constituo, só por mim, todos os vassalos que tendes, e antes disso, era o meu próprio rei. E aqui me encerrais neste rochedo nu, ao passo que me roubais a resto da ilha." (SHAKESPEARE, p. 25-26)
Ao contrário de Ariel, Caliban não tem uma promessa futura de liberdade que vai justificar uma atitude respeitosa. Sua rebeldia é uma reação a seu sentimento de que está sendo dominado e usado injustamente.
É a arte de Prospero que controla tanto Ariel e Caliban, vinculando-os à sua autoridade. Tal arte mágica pode ser vista como resultado de sua ligação com a civilização moderna. Pode-se ver como ele utiliza sua arte, semelhante à tecnologia moderna a fim de suprimir e subjugar. Retratado como um colonizador explora a inocência de seus súditos para sua própria vantagem, usa seu poder sobre Caliban de forma maliciosa e vingativa, influencia-o com intimidações e ameaças de desconfortos corporais e aborrecimentos.
Já o relacionamento de Prospero e Ariel é de natureza completamente diferente. Enquanto Prospero usa a sua magia a fim de maltratar Caliban, ele a usa para libertar Ariel da maldição de Sycorax. A atitude submissa de Ariel decorre da dívida que este gera em si para o seu mestre. Quando Ariel se torna tão ousado a ponto de pedir a Prospero quando ele deve ser libertado de sua autoridade, Prospero tem apenas que lembrá-lo dessa dívida e a atitude submissa de Ariel é restaurada:
"Ariel: [...]Então já que me dais tantos encargos, lembrar-vos-ei que o que me prometeste ainda não foi cumprido.
Prospero: Que desejas pedir-me?
Ariel: A minha liberdade.
[...]
Prospero: Se tornas a murmurar, abrirei um carvalho e nas suas nodosas entranhas permanecerás encerrado até que te lamentes durante vinte invernos.
Ariel: Perdoa-me, senhor; obedecerei às tuas ordens e de bom grado desempenharei as minhas funções de espírito."
(SHAKESPEARE, p. 20,23)
Ariel contenta-se em servir seu mestre apenas na medida em que esse garante a sua libertação futura. Em certo sentido ele está reembolsando de bom grado a dívida que tem com Prospero, subjugando-se a ele. Caliban é bem diferente a este respeito, pois não sente nenhuma dívida para com Prospero. Sem qualquer sentimento de débito, desenvolve, assim, a atitude rebelde e acusatória que o caracteriza por grande parte da peça.



A LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO DOS PERSONAGENS

Uma das diferenças mais significativas que separa Ariel de Caliban é a forma como cada um utiliza a linguagem. Enquanto Caliban comunica-se quase inteiramente por meio de maldições vulgares e reclamações, Ariel comunica-se através da poesia e da música. Tais abordagens de cada personagem para a linguagem é um indicativo de suas diferentes atitudes e modo de pensar. A linguagem de Ariel é ordenada e estilística, expõe uma mente à vontade com o seu ambiente, um espírito em que a criatividade e a sagacidade tem espaço suficiente para se desenvolver. A linguagem de Caliban, por outro lado, é o produto de uma mente claramente em estado de desconforto geral e infelicidade. Caliban, aparentemente, não tem uma mente capaz de produzir algo semelhante à poesia ou música, pois rejeitou inteiramente a própria linguagem, vide a passagem:
"Caliban: Ensinaste-me a falar e o único proveito que daí retiro é o de saber amaldiçoar. Que a peste rubra vos devore por me haverdes ensinado a vossa linguagem!" (SHAKESPEARE, p. 27)
Isto é significante na medida em que, ao rejeitar a linguagem, Caliban está rejeitando o próprio conhecimento. Com o conhecimento vem a realização de uma inadequação e Caliban prefere permanecer nesse estado mais primitivo de ignorância. Isto não é surpreendente, pois Prospero deu a Caliban as ferramentas de comunicação mas não foi capaz de dar-lhe a liberdade necessária para apreciá-la.
Quando comparados os discursos dos dois habitantes da ilha, a diferença é significativa. As canções de Ariel estão cheias de rima e métrica, uma linguagem agradável e musical, produto de uma mente inteligente, porém nenhum discernimento e implicação, característica de personagens semelhantes em outras obras de Shakespeare como o bobo da corte em Rei Lear.
Não é até a segunda metade de A Tempestade que se pode fazer qualquer julgamento exato sobre esses dois personagens. O encontro de Caliban com Stephano e Trínculo traz uma compreensão sobre seu caráter e sua atitude. Da mesma forma, a mágica de Ariel é significativa na definição de seu papel. É possível visualizar Caliban na primeira metade da peça como um escravo que está se rebelando contra seu mestre opressivo. Essa caracterização é precisa, evidenciada pela medida em que sua linguagem expressa seu ressentimento e falta de vontade de servir Prospero. No entanto, quando Caliban encontra Trínculo e Stephano com seu "licor divino", voluntariamente submete-se a eles; n o lhes pede sua liberdade, como seria de esperar. Ao invés disso, pede a Stephano que seja seu mestre, mesmo seu deus. Mostra-se, nesse momento, incapaz de autonomia. Em sua relação com Stephano, Caliban torna-se patético, mais ainda do que em sua relação com Prospero, pois abandona sua atitude rebelde para agir em uma de adorador e rastejante. Ao colocar-se voluntariamente em escravidão a Stephano, que não é mais que um bêbado, Caliban mostra-se verdadeiramente em um estado ridículo, de causar pena. As maldições cruéis que constantemente enviava a seu antigo mestre agora são substituídas por pedidos de lamber o sapato. Um bêbado Caliban ainda tenta elaborar uma canção poética, pela primeira vez:
"Caliban: Viveiros de peixes
não mais travarei
nem da lenha os feixes
ao ombro trarei.
Nem mesas nem bancos para eu esfregar,
nem pratos nem loiças eu hei de lavar.
'Ban, 'Ban, Caliban
Outro amo já tem." (SHAKESPEARE, p. 72)

Alegremente, em sua mente embriagada, Caliban elogia sua nova situação como "liberdade", sem saber que ele está simplesmente entrando em outro conjunto de correntes, desta vez, as do álcool. Torna-se um personagem mais simpático na segunda metade da peça, sua fraqueza torna-se mais aparente e a facilidade com que é manipulado mostra como ele é vítima de suas circunstâncias, possuindo uma natureza enfraquecida pela subjugação e opressão.
Enquanto a caracterização de Caliban mostra que ele é um personagem digno de piedade, a caracterização de Ariel mostra o contrário. Ariel ocupa o papel mais importante da peça durante os dois últimos atos. É Prospero que concebe as ideias para encantar os italianos, mas ele só pode realiza-las com a ajuda do espírito (antes considerado "demasiado delicado" e agora, agente, executor do espetáculo encenado por Prospero). Da mesma forma que Ariel é dependente de Prospero para obtenção de sua liberdade, Prospero depende de Ariel para a realização de seus planos. Dessa maneira, o caráter de Ariel é expandido para além de servo voluntário. Seu papel como executor de estratégias de Prospero faz dele essencial para o sucesso dos planos de seu mestre. Isto implica uma inversão um tanto quanto significativa das funções a partir do momento que Ariel torna-se o único no controle, pois é o seu poder de encantamento que move grande parte dos acontecimentos da ilha. Vinculado a esta inversão de papéis há um aumento da confiança e autoridade na linguagem de Ariel. Em seu discurso a Alonso, Antônio e Sebastião, no terceiro ato, Ariel condena os três no mesmo tipo de linguagem autoritária que tinha sido anteriormente reservada apenas a Prospero.
"Ariel: Pobres dementes! Eu e meus companheiros somos ministros do Destino. A matéria de que vossas espadas são forjadas podem tanto ferir os ruidosos ventos ou cortar com golpes insanos as inseparáveis águas, como fazer cair o menor átomo da penugem da minha plumagem. Os que me assistem são como eu, invulneráveis." (SHAKESPEARE, p. 93)
O uso da linguagem como um meio de intimidação é bem diferente de seus poemas e canções enérgicos dos dois primeiros atos. Sua mudança de uso da linguagem é evidência de uma mudança de atitude. Conforme Ariel chega mais perto da liberdade, seu comportamento se torna mais confiante e menos submisso. Ele está se tornando mais independente e, portanto, mais forte em caráter. Assim, enquanto a segunda metade da peça mostra Caliban cada vez mais pobre e ridículo, ela também mostra um Ariel cada vez mais auto afirmativo e autônomo.
Pode-se dizer que Shakespeare, na conclusão de A Tempestade, não destoou tanto do discurso de Montaigne. Mesmo não acreditando na teoria do "bom selvagem", deixa a natureza gentil de Ariel quase intacta e mostra, ao fim da peça, que os habitantes da ilha terão destinos melhores com a partida dos europeus. Ariel encontra sua liberdade e Caliban será outra vez o senhor da ilha. E ao mesmo tempo em que estão bem, estão mudados. Foram, de certo modo, aprisionados pelo feitiço da modernidade – inteligência, tecnologia e licor- e encontram-se em estados diferentes do começo da história.
"Todos aguentaram a tempestade e encontram-se agora mais ponderados. Até mesmo Caliban." (KOTT, p. )









REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SHAKESPEARE. A Tempestade. Tradução direta da ed. de Collins rev. por João Gravev. 2. ed. Lisboa: Porto, 1926.

KOTT, Jan. Shakespeare Nosso Contemporâneo. Lisboa: Portugalia Editora, 1961

MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. Tradução por Luiz Antonio Alves Eva. São Paulo: Alameda, 2009

LAPOUJADE, Maria Noel. Ariel e Caliban como protótipos da espécie humana. Cronos, Natal-RN, v. 8, n. 1, p.203-214, jan/jun. 2007. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 201

CENTENO, Y. K.. Shakespeare; Caliban ou as fulgurações da linguagem. Disponível em: . Acesso em: 27 nov. 2015






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