Ariel e Caliban e a construção de uma identidade latino-americana

July 27, 2017 | Autor: Everaldo Andrade | Categoria: Latin American and Caribbean History
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ARIEL E A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE LATINO-AMERICANA
Everaldo de Oliveira Andrade


Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a obra Ariel do escritor
uruguaio Enrique Rodó como parte do contexto político e ideológico de crise
e reestruturação do discurso das burguesias latino-americanas na passgem do
século XIX para o XX.

1 Palavras-chave: Ariel – Rodó – América Latina

Abstract: The objective for this article is analisys the book Ariel of the
writer uruguayan Enrique Rodó how part of contexts ideological and
political for the crisis e reestructurations of the discourse this latin-
americans bourgeoisies in the passage of the century XIX to XX.
Keywords: Ariel – Rodó – Latin America

A publicação, na passagem do século XIX para o XX, da obra Ariel do
escritor uruguaio Enrique Rodó teve um significado para a História latino-
americana contemporânea que ultrapassa uma avaliação estritamente cultural
de suas implicações. O objetivo deste artigo é analisar Ariel dentro do
contexto político e ideológico de crise e reestruturação do discurso das
burguesias latino-americanas, atravessadas pelos impasses do
desenvolvimento econômico neocolonial do continente.
O sentimento de frustração e a busca de um novo caminho talvez tenha
sido o principal elemento que expressou a crise cultural e política das
burguesias latino americanas como classes dirigentes em relação à
construção de suas identidades nacionais. A consolidação de uma nova e
distinta etapa de expansão da economia capitalista a partir dos centros
hegemônicos – o imperialismo - restringia muitas das possibilidades outrora
acalentadas como possíveis para a modernização econômica do continente.
Embora as reações a este estado de coisas fossem se expressar no plano
cultural e político com cada vez maior intensidade por volta da segunda
década do século XX, a passagem do século já demonstrara os primeiros
sinais de mudança.
Ruben Darío, de sua pequena e remota Nicarágua, projetara uma reação
com seu célebre poema "Azul" que já encontrara na pena poderosa, ativa e
igualmente poética de José Martí uma exposição calorosa. A "Nuestra
America" martiniana já se tornara um grito continental desde o coração da
Cuba escravizada contra o Golias do Norte e as ameaças que pairavam sobre a
América Latina[1]. A Segunda Guerra de Independência de Cuba e a posterior
invasão da ilha pelos norte-americanos em 1898 provocou uma onda de temor e
choque entre as elites latino-americanas até então relativamente passivas
em relação ao avanço e consolidação da poderosa economia do Norte.
Até então o argentino Domingos Sarmiento através do seu emblemático
livro Facundo[2], pairava como talvez a matriz ideológica mais intensa da
crença nas possibilidades modernizadoras da reprodução do modelo de
desenvolvimento norte-americano e no repúdio ao mundo colonial, rural e
ibérico. Como quis demarcar Sarmiento, o barbarismo do ditador Rosas e
seu mundo das montoneras dos pampas argentinos deveria ser repudiado em
nome do progresso das ferrovias, dos telégrafos e das cidades urbanizadas,
da capacidade empreendedora tão bem absorvida por Sarmiento em suas longas
estadias em Nova Iorque. Antes de tudo, Facundo representou a busca por
setores nascentes das burguesias latino-americanas de suas identidades
nacionais e de um projeto de desenvolvimento do capitalismo que adequasse
as estruturas político-econômicas recém descolonizadas da América Latina.
Como destacou Antônio Mitre, os dois conceitos básicos em torno dos quais
se organiza a obra de Sarmiento - civilização e barbárie - que embora
tenham passado a nomear realidades culturais opostas - Europa e América –
não condizem com a tradição racionalista e é o tema da identidade dá um
significado universal a Facundo[3].
As reformas liberais empreendidas em diferentes países do continente
em meados do século XIX expressaram as conseqüências práticas destes ideais
modernizantes idealizados por Sarmiento. A passagem do século XIX permitiu,
por outro lado, um olhar e um balanço histórico sobre este passado recente.
A realidade em que se encontravam a maioria dos países do continente era
bem diferente daquela imaginada meio século antes. Em particular na
Argentina de Sarmiento e no Uruguai de Enrique Rodó a passagem do século
foi sentida pelas elites aristocráticas com sentimentos as vezes confusos e
contraditórios. A modernização possuía uma face desestabilizadora dos
valores tradicionais do mundo aristocrático. Modernidade que era almejada e
ao mesmo tempo temida.
O surgimento em 1900 da obra de Enrique Rodó – Ariel – teve um
impacto que só poderia, portanto, ser entendido plenamente nas
circunstâncias históricas do período. Trata-se de um pequeno livro no qual
o autor serve-se de referências aos personagens centrais da obra "A
tempestade" de Shakespeare – Próspero, Ariel e Calibã – para construir um
ensaio contemporâneo sobre a situação e os impasses da América Latina. Sob
a forma de uma longa explanação de Próspero aos seus discípulos em torno de
um busto de Ariel, Enrique Rodó projetou novamente a esperança que parecia
desaparecer das classes dirigentes do continente - uma reelaboração
ideológica do discurso burguês - e deu um novo sentido aos sentimentos e
interesses próprios das camadas urbanas dirigentes da América Espanhola que
se opunham em alguma medida ao avanço dos Estados Unidos:
"La ilusión de una America deslatinizada por propia voluntad, sin la
extorsión de la conquista (...) a la imagen y semejanza del arquetipo del
Norte, flota ya sobre los sueños de muchos sinceros instrumentos de nuestro
porvenir..."[4]
Fernandez Retamar observou que a oposição de Ariel aos Estados Unidos
possuía um conteúdo marcadamente aristocrático que se expressava na
própria recriação e inversão do lugar original das personagens de "A
Tempestade". Calibã teria sido apresentado intencionalmente sob um caráter
equivocado, contraposto a Ariel. Ariel é o intelectual atrelado de modo
menos pesado que Calibã, mas também a serviço de Próspero. É a concepção de
um intelectual no qual está contida uma síntese, "mistura de escravo e
mercenário", elaborada pelo humanismo renascentista e retomada por Rodó. É
o ideal do intelectual aristocrático desinteressado pela ação e disposto à
aceitação da ordem constituída[5].
Em certa medida, as matrizes culturais de Rodó dirão muitas das
projeções sociais de seu discurso. Ele as vai buscar na reação
aristocrática européia à democracia. A matriz direta da obra de Rodó não é
"A tempestade" de Shakespeare. Nesta obra Ariel é o servo de Próspero e a
antítese de Ariel encarna-se na figura do escravo Calibã, criatura
elementar que acalenta sentimentos vulgares contra Próspero, que ocupara a
ilha outrora da soberania de Calibã. A trajetória destes dois personagens
ao longo dos séculos cristalizou dois significados opostos: Ariel seria a
razão, a disciplina, a ordem; e Caliban o instinto, a espontaneidade e o
caos. Embora Shakespeare tenha, como destacou Fernandes Retamar[6],
absorvido informações da descoberta da América em sua obra, a perspectiva
que Rodó busca para construir seu livro não o simpatiza com Calibã, o
dominado. A origem do livro Ariel de Enrique Rodó está na obra "Caliban",
escrita em 1878 por Ernest Renan e que representava o pensamento
aristocrático europeu, a tradição crítica aristocrática européia da
sociedade de massas da qual faziam parte também Friedrich Nietzchie e
Ortega Y Gasset.
O livro Ariel seria, ainda segundo a interpretação de Antônio Mitre,
uma reação de setores das burguesias latino-americanas ao surgimento de uma
sociedade de massas, assimilando-se, portanto, à tradição européia em sua
vertente aristocrática e crítica da sociedade de massas. Mais precisamente,
seria uma reação ao impacto do aluvião imigratório e não à modernização, em
particular se pensamos no Uruguai e na Argentina na passagem do século XIX
para o XX. Representaria o embate entre a tradição e a mudança, que
surgiria na obra Ariel através da crítica ao utilitarismo praticado nos
EUA e sua deformação democrática das virtudes, na vulgarização da cultura,
na apologia do ócio. De fato, vivia-se uma crise nas sociedades latino-
americanas modernas. A afluência imigratória torna-se o fato fundamental
que rompe um precário equilíbrio social, provocando tensões entre a velha e
a nova ordem com a dinâmica representada pelo ingresso dos estrangeiros. Há
uma perda de autoridade das elites tradicionais. Para estas a barbárie está
nas cidades e a ordem tradicional deve ser reformada e tornar-se porosa e
flexível, como o sistema educacional. Este é o discurso implícito em Ariel.
Sua reação à imigração e à desestabilização social traduz-se na inversão da
tese de Sarmiento: seu alvo passa a ser a barbárie urbana. É sob esta
perspectiva que ataca o utilitarismo dos EUA: seu desapego à tradição. Por
isso seria necessário preservar a tradição latina sem sucumbir à
"nordomania", a mania de imitar dos valores norte-americanos. Torna-se da
mesma forma importante combater a fúria cega do número ou a democracia em
seu sentido exacerbado e ameaçadora dos valores aristocráticos[7].
O lugar particular e aparentemente contraditório do tema da
democracia em Ariel decorre desta constatação. Rodó ataca o conservadorismo
de origem cristã que vê a democracia como uma afronta a uma ordem divina já
pré-estabelecida e o conservadorismo evolucionista que despreza os
fracos[8]. A democracia deve conter sempre um elemento aristocrático, de
preservação da tradição, ou a "aristocracia consentida" nas palavras de
Antônio Mitre[9], deve ser utilizada no interesse da preservação da
tradição aristocrática e dos interesses materiais das elites burguesas:
"Cuando se las conciebe de este modo, la igualdad
democratica lejos de oponerse a la selección de las costumbres
y de las ideas, es el mas eficaz instrumento de selección
espiritual en el ambiente providencial de la cultura." [10]
A busca de um novo equilíbrio social pelas burguesias latino-
americanas será marcada pela busca de uma nova identidade, ou melhor, de
uma nova ideologia. E a obra de Rodó torna-se uma referência deste esforço.
Como destacou Antonio Mitre:
"Os esforços de Rodó serão dirigidos à promoção de um ideal
medianeiro que permita a introdução de mudanças no sistema
social e político de maneira a ajustá-lo às novas
circunstâncias, conservando ao mesmo tempo a herança do passado
como matriz de identidade coletiva."[11]
O nacionalismo oligárquico das décadas seguintes do século XX buscará
seguir este caminho, rescrever a história de diferentes formas. É assim que
antigos adversários são absorvidos e reelaborados num novo discurso. O
gaúcho bárbaro, personagem ignorante e feroz invocado no Facundo de
Sarmiento, transfigura-se por exemplo na pluma do poeta Hernandez no
nostálgico e conformado Martin Fierro, expressão do sentimento poético da
sabedoria popular. As posições de cunho nacionalista se orientarão para
reforçar as instituições tradicionais e é neste sentido que Rodó ocupa um
lugar destacado com Ariel, ao ter sido capaz de contribuir decisivamente na
reelaboração do discurso das burguesias locais, adaptado às novas
necessidades destas.


Ariel, em que pese suas motivações aristocráticas e conservadoras, foi
lido em sua época como um manifesto antiimperialista e humanista. A
influência ampla e difusa da obra espalhou-se por toda a América Latina.
Estava destinado a despertar a consciência da intelectualidade jovem a
respeito dos perigos que a crescente influência norte-americana
representava para os valores da tradição humanista do continente.
As repercussões foram poderosas, em particular na Argentina, onde
ajudou a chamar a atenção para a questão da identidade nacional impactada
pelo aluvião imigratório. O artista Paul Groussac buscou nesta sua obra a
linha de identidade nacional através de uma integração entre o exótico
europeu e o indianismo. Da mesma forma no Peru surgia em 1905, na
Universidade de San Marcos, uma "geração arielista" baseada na oligarquia
progressista ilustrada e defensora de uma renovação cultural nacional.
Neste caso, a migração interna do mundo indígena da Serra Andina, até então
apartado do mundo urbano europeu de Lima, tornava-se o móvel da reação
oligárquica limenha que encontrou em Ariel um instrumento consistente para
sua crítica.
A permanência de Ariel não deve no entanto, ser vista restringida a
uma apropriação conservadora. A obra ultrapassou as intenções iniciais de
seu autor. Segundo Leopoldo Zea, a permanência de Ariel deveu-se a um tema
de transcendência universal. Zea destacou a capacidade que teve Rodó de
retomar o tema do progresso, tão caro aos liberais do século XIX, desde a
perspectiva do humanismo, ou do sonho como possibilidade de realização. O
idealismo do homem da América – não o sonho do homem que não somos, nem
ideais educativos que nos deformam ou imitações de um mundo distante. Por
isso Enrique Rodó não aceitava e se opunha à América deslatinizada, buscava
a integridade do homem original da América como um exemplo não mutilado de
humanidade na qual nenhuma nobre faculdade do espírito ficasse
esquecida[12].
A volta ao passado latino empreendida por Rodó em busca de uma
renovada esperança animava-se da fusão cultural e racial – o homem pleno e
sem amputações. E querer ser outro como queriam no século XIX equivalia a
uma amputação. A questão da identidade nacional e da democracia se
recolocam sob novos termos: assegurar um lugar subalterno às grandes massas
populares, embora sob um discurso modernizador e latino-americanista. Já
não era mais possível negar o multicolorido racial e cultural da América
Latina. Integração e fusão tornavam-se os únicos caminhos possíveis para
preservar a tradição e a propriedade privada, e neste sentido Ariel
antecipou-se futuros embates da História.


Bibliografia:


FERNANDES RETAMAR, A . Caliban e outros Ensaios, SP, Busca Vida, 1988
FOGELQUIST, Donald F. Españoles de América y americanos de España. Madrid:
Gredos, 1968.
MARTÍ, José. Nossa América. São Paulo: Hucitec, 1991.
MITRE, Antônio. O dilema do Centauro, Belo Horizonte: Humanitas, 2002.
RODÓ, Enrique. Ariel, Buenos Aires, 1944.
SARMIENTO, Domingos. Facundo: civilización y barbarie. Madrid: ed.
Nacional, 1975. Há edição em português.
ZEA, Leopoldo. Rodó Y el Ideal Humanista de Latinoamerica. México: Revista
de la Universidad de México, outubro, 1971.

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[1] Acerca da obra de Darío ver: FOGELQUIST, Donald F. Españoles de
América y americanos de España. Sobre José MARTÍ, Nossa América, pp. 194-
201.
[2] Cf. SARMIENTO, Domingos. Facundo: civilización y barbarie. Há edição
em português.
[3] MITRE, Antônio, O dilema do Centauro, p. 42
[4] Rodó, Enrique. Ariel, p. 96
[5] FERNANDES RETAMAR, A . Caliban e outros Ensaios, pp. 25-26.
[6] FERNANDEZ RETAMAR, op cit, pp. 25-26
[7] RODÓ, E. op cit.
[8] MITRE, Antônio, op cit, p 104
[9] MITRE, Antônio, op cit, p.112
[10] RODÓ, E. op cit, p. 82
[11] MITRE, op cit, p.105
[12] ZEA, Leopoldo. "Rodó Y el Ideal Humanista de Latinoamerica", Pp. 9-
10.

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