Aritmética Política e a administração do estado português na segunda metade do século XVIII

July 27, 2017 | Autor: A. Santos | Categoria: Modern History, Pombalismo
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ARITMÉTICA POLÍTICA E A ADMINISTRAÇÃO DO ESTADO PORTUGUÊS NA * SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII Antonio Cesar de Almeida Santos Departamento de História/UFPR – CEDOPE/UFPR Resumo: Os princípios da Aritmética Política tiveram larga influência na administração portuguesa na segunda metade do século XVIII, abrangendo políticas aplicadas no reino e nos territórios ultramarinos. Essa influência pode ser identificada no reinado de D. José I (1750-1777) até, pelo menos, os anos iniciais da regência do príncipe D. João (1792-1807). Dados estatísticos sobre a população, sobre a distribuição das terras e das culturas, sobre os negócios etc. forneceriam informações necessárias para a tomada de decisões políticas. Deste modo, a Aritmética Política alcançava tanto as práticas econômicas como as de governo, de tal modo que a aplicação de seus princípios implicou no desenvolvimento de novas técnicas administrativas, as quais solicitavam uma crescente profissionalização de seus agentes. Pretende-se, portanto, identificar e discutir alguns projetos políticos que mostram a presença e a difusão desse conhecimento na administração portuguesa daquele período. Palavras-chave: aritmética política, pombalismo, administração Abstract: The principles of political arithmetic had a large influence over Portuguese administration in the second half of the 18th Century, including policies applied to both the kingdom and the overseas territories. Such influence can be identified in D. José I rule (1750-1777) until, at least, the first years of prince D. João regency (1792-1807). Statistical data about populations, land and crop distribution, trades etc., would provide the necessary information for political decisions to be made. So, the political arithmetic reached both economic and government practices, in such a way that the use of his principles generated the development of new administrative techniques, which demanded a growing profissionalization of its agents. We therefore intend to identify and discuss some political projects which show the presence and knowledge dissemination in the Portuguese administration of that period. Keywords: political arithmetic, pombalism, administration

Em texto da década de 1980, Carlo Ginzbug discutia a presença de um conhecimento 1 conjectural, o qual “manifestava a originalidade do procedimento histórico em geral”. Em sua discussão, o historiador italiano contrapunha a este tipo de conhecimento baseado em uma “compreensão do individual”, uma abordagem que buscava “alcançar um padrão de generalização mais ou menos rigoroso e mais ou menos matemático”. O trajeto construído para este último tipo de abordagem, inicialmente “aplicada pelas ciências naturais e só muito mais tarde pelas assim chamadas ciências humanas e sociais”, conduziu “ao estudo do típico mais do que o excepcional”, buscando-se uma explicação geral do “funcionamento da natureza”. A prevalência dessa abordagem provocou, desde o século XVII, diversas “tentativas de aplicação do método matemático” para o estudo de fenômenos humanos: Não é surpreendente que a primeira e a mais bem sucedida [dessas tentativas] se referisse à aritmética política e tomasse como seus objetos aquilo de mais predeterminado – biologicamente falando – das atividades humanas: nascimento, procriação e morte. Este foco drasticamente exclusivo permitia a investigação rigorosa e, ao mesmo tempo, satisfazia os objetivos militares ou fiscais dos estados absolutistas, cujos interesses, dados os limites de suas operações, eram integralmente numéricos.2 * Este texto decorre de pesquisas financiadas pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Ministério da Educação - Brasil) e pela Fundación Carolina (Espanha). 1 REVEL, Jacques. História ao rés-de-chão. in LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 19. 2 GINZBURG, Carlo. Chaves do mistério: Morelli, Freud e Sherlock Holmes. in ECO, Humberto et al. (Orgs.). O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 112-115. Outra versão deste texto foi publicada sob o nome de Sinais: raízes de um paradigma indiciário, in GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais – morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 143-179.

Em um contexto marcado pela afirmação do absolutismo, verifica-se que, ao lado desse conhecimento aritmético “das atividades humanas”, a administração do Estado vai requerer um mais exato conhecimento de seu território. Nesse sentido, Jacques Revel, ao discutir “a formação do espaço francês”,3 oferece uma interessante reflexão sobre o que vai designar por “inquéritos”, na medida em que considera que para os séculos XVII e XVIII, “o conhecimento do território tornouse inseparável do exercício da soberania”.4 Deixando de lado a itinerância por seus domínios, os monarcas europeus passaram a conhecer os territórios submetidos à sua autoridade por intermédio de cartas geográficas, descrições e números. Paralelamente a essa mudança de atitude, tornou-se necessário contar com um corpo de funcionários especializados que promovesse, por um lado, a presença simbólica do soberano e, por outro, uma administração mais eficaz no que se refere à produção de riquezas e exação das rendas devidas ao tesouro régio. Ainda segundo Revel, no interior dessas mudanças administrativas, podemos identificar “dois ramos divergentes da estatística, cujas características próprias se irão acentuando no último século do Antigo Regime”. Um desses ramos, de tradição “no mundo alemão”, toma o espaço como “objeto de análise” e se caracteriza como uma “estatística descritiva”, procurando abarcar todos os aspectos do local observado: “as condições naturais – um solo, um clima, uma vegetação, um regime de águas – como as condições sociais – o número de homens, o seu ´temperamento`, as suas atividades, o seu comportamento e as suas tradições. É a combinação variável destes diferentes fatores que define as particularidades do lugar”.5 Para Olivier Martin, essa “Statistik alemã tinha por ambição principal o conhecimento sintético de toda sociedade humana”, e seus resultados, “de natureza literária”, eram monografias mais descritivas do que explicativas. Notadamente, a partir da segunda metade do século XVIII, esses relatos monográficos passaram a ser produzidos “pela administração territorial que viu então aumentar seu empreendimento e, portanto, seu poder de coleta de informações”.6 Esse tipo de descrição, aliás, assemelha-se às memórias redigidas por 7 naturalistas portugueses ao final do século XVIII e início do século XIX . A essa tradição “alemã”, Revel contrapõe um modelo que, segundo ele, “se aproxima dos princípios da aritmética política à maneira inglesa”, que propunha inscrever dados numéricos em séries temporais: “os resultados destinam-se a ser comparados com dados futuros e este confronto permitirá destrinçar regularidades e tendências”. A aritmética política vai lançar sua atenção sobre “o número de homens, a produção das minas e das manufaturas, os recursos agrícolas, o comércio, as subsistências, os preços ou os salários”.8 Conforme Olivier Martin, a aritmética política inglesa aparece, em meados do séculos XVII, a partir de trabalhos de John Graunt, William Petty, Charles Davenant e Gregory King. Esses autores esperavam exprimir uma dada realidade em termos numéricos, “a fim de fornecer instrumentos matemáticos quantitativos aos governantes”9. Nesse 3 REVEL, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, s/d. Ver especialmente o capítulo IV, Conhecimento do território, produção do território: França, séculos XIII-XIX, p. 101-158. 4 REVEL, A invenção da sociedade, p. 121. 5 REVEL, A invenção da sociedade, p. 126. 6 MARTIN, Olivier. Da estatística política à sociologia estatística; desenvolvimento e transformações da análise estatística da sociedade (séculos XVII-XIX). Revista Brasileira de História, v. 21, n. 41, 2001, p. 20. 7 Ver, por exemplo: ALMEIDA, Francisco José de Lacerda e. Diário da viagem de Moçambique para os rios de Senna. Lisboa: Imprensa Nacional, 1889; COUTO, José Vieira. Memória sobre as minas da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994; FEIJÓ, João da Silva. Ensaio e memórias económicas sobre as ilhas de Cabo Verde. Lisboa: Instituto Caboverdeano do Livro, 1986; Memórias económicas da Academia Real das Sciências de Lisboa (1789-1815). Lisboa: Banco de Portugal, 1991. 5 volumes. 8 REVEL, A invenção da sociedade, p. 125. Revel aponta que, na França, em 1694, foi realizado um “recenseamento por cabeça ... para o estabelecimento da capitação nesse ano”. 9 MARTIN, Da estatística ..., p. 19.

sentido, Charles Davenant considerava a aritmética política como “a arte de raciocinar por números as matérias que se relacionam com o Governo. Não se duvida que esta arte em si mesma seja muito antiga, mas William Petty foi o primeiro que a aplicou ao comércio e às finanças. (...) Ele lhe forneceu as regras e o método”.10 Do mesmo modo, para os autores da Enciclopédia, a aritmética política seria a responsável em fornecer “pesquisas úteis à arte de governar os povos”11. Este tipo de levantamento estatístico também não ficou desconhecido da administração portuguesa da segunda metade do século XVIII. De fato, desde o início do reinado de D. José I, várias ações administrativas estiveram voltadas para fornecer um conhecimento mais exato do reino e dos domínios ultramarinos portugueses. *** Ao assumir a secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, Sebastião José de Carvalho e Melo deparou-se com uma urgente tarefa: dar cumprimento às disposições contidas no Tratado de Madri, que fora assinado por D. João V, em janeiro de 1750. Assim, dentre outros assuntos, o estabelecimento dos limites entre as possessões espanholas e portuguesas na América ocupava a atenção das autoridades metropolitanas. Nesse contexto, em setembro de 1751, Carvalho e Melo enviou instruções para o governador da capitania do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade, que fora nomeado Comissário para a demarcação dos limites estabelecidos pelo Tratado na parte sul. Nessas instruções secretas, Carvalho e Melo informava que o governador devia tomar as medidas necessárias para o povoamento das fronteiras, com o intuito de garantir a defesa delas frente aos espanhóis.12 Ao norte, o cargo de Comissário português coube ao governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Embora guiados por informações cartográficas (o “Mapa das cortes”) e um extenso memorial dos acidentes geográficos que serviriam para demarcar os limites, as comissões de demarcação deveriam produzir novos mapas,13 fornecendo uma mais exata informação dos territórios portugueses no novo mundo. Como sabemos, as demarcações não prosperaram e foram, finalmente, interrompidas em 1759. A Coroa portuguesa, porém, não estava interessada apenas na cartografia dos limites oeste de seus domínios americanos. Em 1756, Diogo Mendonça Corte Real, secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (1750-1756), informava ao governador da capitania de Pernambuco que ele deveria encarregar aos ouvidores das comarcas dos governos do Rio de Janeiro e Minas que ordenem a todas as câmaras das mesmas comarcas, que façam cada uma delas uma relação dos lugares e povoações dos seus distritos, com os nomes e as distâncias que há de umas às outras, praticando-se a mesma descrição dos rios que pelas ditas povoações passam, individuando os seus nascimentos, e os que são navegáveis. E em cada uma das vilas se declararão as distâncias de léguas, ou de dias de jornada que há das outras vilas circunvizinhas.14

10 DAVENANT, Charles. De l´usage de l´Arithmétique politique dans le commerce et les finances (1698). in Le négotiant anglois. Dresde, 1753, v. 1, p. clix. Charles Davenant (1656-1714), considerado um fiel seguidor de Petty, foi comissário de impostos, inspetor de importação e exportação e membro do Parlamento britânico (1698-1707). 11 Apud MARTIN, Da estatística ..., p. 19. Segundo o autor, “O triunfo do ´espírito de cálculo` durante o século das Luzes teve como resultado reforçar o interesse que os sábios e eruditos traziam à abordagem científica quantitativa inglesa, e o progresso das ciências matemáticas (cálculo das probabilidades) permitiu aos aritméticos políticos alcançar respostas a seus questionamentos”. 12 Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo para Gomes Freire de Andrade. Lisboa, 21 de Setembro de 1751. Apud MENDONÇA, Marcos Carneiro. Rios Guaporé e Paraguai: primeiras fronteiras definitivas do Brasil. Rio de Janeiro : Xerox do Brasil, 1985. p. 49. 13 Ver artigos IV a XI do Tratado de limites assinado entre El-Rei Dom João V de Portugal e El-Rei Dom Fernando VI de Espanha, em Madri a 13 de janeiro de 1750. Apud GUEDES, João Alfredo Libânio. História administrativa do Brasil – volume IV (da Restauração a D. João V). Rio de Janeiro: DASP, 1962. 14 ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (AHU). Códice 582. Carta de Diogo Mendonça Corte Real ao governador de Pernambuco, 13 de junho de 1756.

O Bispo de Pernambuco recebeu ordens nesse mesmo sentido, devendo solicitar que cada pároco de sua diocese fizesse uma relação dos lugares e povoações da sua freguesia, as distâncias que há de umas a outras, e os seus nomes, declarando também os rios que pelas ditas povoações passam, os nomes com que se denominam, se são navegáveis, e os seus nascimentos. As léguas e dias de jornada que há de um rio a outro, declarando-se também as pessoas que há de comunhão nas suas freguesias e capelas anexas a elas, cuja diligência manda o dito Senhor recomendar muito a V. Excia.15

As razões para tais ordens foram expostas por Diogo Mendonça Corte Real nos seguintes termos: “Todas estas notícias topográficas são necessárias para se formar uma carta geral de todo o Brasil, com individuação das terras estabelecidas nos sertões, para cujo efeito manda o mesmo Senhor recomendar a V. Sª a brevidade desta diligência”. Em 1761, essa questão foi reiterada por Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Em carta dirigida a Gomes Freire de Andrade, governador do Rio de Janeiro, o então secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos (1760-1769) informava que é o mesmo Senhor servido que V. Excia. mande à sua Real Presença uma coleção de todas as cartas corográficas e topográficas, que tiver, e puder alcançar, das capitanias do Brasil, caminhos e lugares delas, vindo com a maior brevidade possível, ainda que não sejam copiadas com a maior perfeição, porque, na verdade, se não devem fiar de estrangeiros, nem ainda de portugueses, que deixam nas suas mãos cópias que com o tempo se possam divulgar.16

Embora essa solicitação de Mendonça Furtado inscreva-se num contexto muito específico, a guerra com a Espanha, ela se prende a uma orientação mais ampla, que as cartas anteriores de Diogo Mendonça Corte Real permitem inferir: a Coroa estava interessada em conhecer seus domínios americanos e avaliar suas potencialidades. Esse interesse estava expresso na preocupação em medir distâncias, identificar rios e outros acidentes geográficos, nomear territórios e contar a população. Em relação a esse último ponto, o gabinete de D. José I considerava que “a força e a riqueza de todos os países consiste principalmente no número e multiplicação da gente que o habita”17. As populações coloniais receberam, de fato, grande atenção das autoridades metropolitanas. Segundo Carvalho e Melo, essa atenção devia-se a uma estrita observância dos princípios da Political Arithmetick, de William Petty,18 com os quais havia tomado contato durante sua estada em Londres (1738-1744). É possível acompanhar a influência da aritmética política inglesa nas ações administrativas do reinado de D. José I, por intermédio da sua explícita e contínua referência nas correspondências expedidas por Carvalho e Melo e pelos demais secretários de estado. A presença e disseminação das idéias de Petty no âmbito da administração do reinado de D. José I é corroborada por dois textos de Carvalho e Melo, nos quais ele propõe apresentar “as matérias que devem constituir as regras do mecanismo político”, oferecendo “à mocidade portuguesa uma suficiente instrução sobre os interesses do Estado (no que pertence ao comércio e a agricultura), cujos

15 AHU. Códice 582. Carta de Diogo Mendonça Corte Real ao Bispo de Pernambuco, 13 de junho de 1756. 16 AHU. Códice 566, fls. 2-2v. Carta de Mendonça Furtado ao Conde de Bobadela, 14 de outubro de 1761. 17 Carta de Sebastião José de Carvalho e Melo para Gomes Freire de Andrade. Lisboa, 21 de Setembro de 1751. Apud MENDONÇA, Rios Guaporé e Paraguai, p. 49. 18 Esse “economista” inglês do século XVII, médico por formação, acabou exercendo o cargo de avaliador de terras na Irlanda, na época de Cromwell. Nessa ocasião, demonstrou grande familiaridade com cálculos matemáticos e, a partir dessa sua experiência, passou a produzir textos de natureza econômica, dentre os quais a obra Political Arithmetick, publicada em 1690, após a sua morte. Segundo Franklin Baumer, William Petty, em sua Aritmética Política, construiu um sistema que aliava o raciocínio baconiano ao matemático, propondo que as decisões políticas fossem tomadas “por meio da análise quantitativa, de estatísticas da população, propriedade das terras, negócios, clima, e quejandos”. BAUMER, Franklin. O pensamento europeu moderno, séculos XVII e XVIII. Lisboa: Edições 70, 1990. v. 1, p. 134.

princípios se reduzem a termos práticos e mecânicos”.19 As idéias expostas por Pombal nos dois textos reproduzem diversas passagens da Political Arithmetick, de Petty. Ademais, sua preocupação em demonstrar como “um pequeno país, com um abreviado número de povo”, poderia igualar-se em riquezas às maiores nações é a mesma do autor inglês, que se propôs, em relação à Inglaterra, a explicar porque “um país pequeno, com pouca gente, pode, por sua situação, por seu comércio e pelas políticas que adota, ser equivalente em riquezas e poderio a outro com território muito mais amplo e população muito maior”20. Para melhor dimensionar o alcance da aritmética política no âmbito da administração portuguesa, também são significativos alguns dos textos que Domingos Vandelli produziu para a Academia Real das Ciências de Lisboa, já no reinado de D. Maria I. Segundo José Vicente Serrão, a principal característica dos textos produzidos por Vandelli foi o seu “ecletismo teórico”, em que se fazem presentes influências de pensadores como Sully, Quesnay, Swift, Pietro Verri e Davenant.21 Necessário destacar que Vandelli, além de expor suas idéias em várias “memórias” publicadas pela Academia Real de Ciências de Lisboa, instituição que ajudou a criar, “consolidou o seu prestígio no seio da elite culta portuguesa e estabeleceu laços de influência sobre parte das novas gerações saídas da Universidade reformada”, onde foi professor da Faculdade de Filosofia, por cerca de 20 anos (1772-1791).22 O que queremos apontar aqui é que, como mencionado por Francisco Vaz, a aritmética política passou a fazer parte do vocabulário dos homens públicos e dos intelectuais portugueses da segunda metade do século XVIII,23 não obstante sejam indicadas as mais diversas fontes desse conhecimento que propunha traduzir a realidade em série de números, proporcionando as informações necessárias para a administração dos homens de estado. Joaquim José Rodrigues de Brito, por exemplo, formado pela Universidade de Coimbra reformada, em suas Memórias políticas, publicadas em 1803, referia-se explicitamente à Aritmética Política (Londres, 1771), de Arthur Young, e ao Essai d´Arithmétique Politique (Paris, 1799), de Antoine Dannyère, além de fazer menção a Mirabeau (L´ami des hommes, ou Traité de la population24) e outros fisiocratas.25

19 BIBLIOTECA NACIONAL-LISBOA/COLECÇÃO POMBALINA (BN/PBA). Códice 686, fls. 187 a 190v. e 191 a 199 (paginado posteriormente). São dois textos, identificados, respectivamente, pelos seguintes títulos: Apontados sobre as matérias que devem constituir as regras do mecanismo político e Mecanismo político no qual se oferece à mocidade portuguesa uma suficiente instrução sobre os interesses do Estado (no que pertence ao comércio e a agricultura), cujos princípios se reduzem a termos práticos e mecânicos. Estes dois textos autógrafos de Pombal, em suas 23 páginas (13 fólios), expõem os fundamentos da prática política pombalina e não foram, até o momento, objeto de atenção de pesquisadores interessados no estudo do período pombalino. Este desinteresse talvez seja devido ao próprio aspecto das anotações de Pombal, pois os dois textos não são mais que a proposta de um trabalho que deveria ser futuramente redigido. 20 PETTY, William. Aritmética Política. in Petty [e] Quesnay. São Paulo; Nova Cultural, 1996, p. 147. 21 SERRÃO, José Vicente. Introdução. In SERRÃO, José Vicente (dir.). Domingos Vandelli : aritmética política, economia e finanças. Lisboa: Banco de Portugal, 1994, p. XXXV. Ainda, segundo Serrão, as propostas de Vandelli oscilavam entre “a defesa da racionalidade económica privada e a defesa da utilidade pública regulada pelos interesses do Estado”. 22 SERRÃO, Introdução, p. XV. 23 VAZ, Francisco António Lourenço. Instrução e economia; as ideias económicas no dicurso da ilustração portuguesa (1746-1820). Lisboa: Colibri, 2002, p. 26. 24 MIRABEAU, Marquês de (Victor Riquetti). L´ami des hommes, ou Traité de la population. [Document électronique, réalisée par l'Institut National de la Langue Française]. “La vraie richesse ne consiste qu' en la population; la population dépend de la subsistance; la subsistance ne se tire que de la terre; le produit de la terre dépend de l' agriculture, d'où s'ensuit que tous autres moyens, le commerce, l'or, les sciences, les arts ne servent et n'établissent une prospérité fixe et indépendante, qu'autant qu'ils vivifient, encouragent, et éclairent l'agriculture, le premier, le plus utile, le plus innocent, et le plus précieux des arts”. 25 BRITO, Joaquim José Rodrigues de. Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza nas nações, e principalmente de Portugal (1803-1805). Lisboa: Banco de Portugal, 1992. p. 9-23.

Nesse contexto pós-pombalino, na regência de Dom João, o desembargador José Antonio de Sá propôs a realização de um cadastro, ou “mappa arithmetico-politico do reino”. Este cadastro seria formado a partir de dados que permitissem avaliar e indicar os melhoramentos necessários para a prosperidade do reino “relativamente à agricultura, ao comércio, à povoação, às artes, à polícia, aos estabelecimentos de bem comum, à justiça e fazenda e a outros objetos de administração pública e econômica”.26 Conforme Francisco Vaz, além de “leituras de autores franceses”, foram importantes na formação acadêmica do desembargador José Antonio de Sá os “ensinamentos de Domingos Vandelli”. Este, que foi um ativo participante da ação reformista levada à efeito no reinado de D. José I, também fez, como mencionamos, sua profissão de fé aos princípios da aritmética política: Sendo certo, que todos os ramos da ecomonia civil, para que esta seja útil ao reino, devem ser regulados por princípios deduzidos de uma boa aritmética política; assim não se devem seguir sistemas, sem antes examinálos, e confrontá-los com as actuais circunstâncias da nação. No último reinado seguiu-se o sistema de Colbert, subministrando somas consideráveis aos fabricantes; não deixando porém no mesmo tempo perder de vista a agricultura. Mas no estado, no qual se achava o reino, necessitado de uma total reforma; não podia um sábio rei, e um hábil ministro, senão dar gerais movimentos a todos os amos da pública administração, ficando aos vindouros aperfeiçoar, e aproveitar esses grandes impulsos, que hão um dia fazer a felicidade da nação.27

Em relação à aritmética política, Francisco Vaz informa que ela foi um “dos fundamentos” do pensamento de José Antonio de Sá, o que “facilmente se nota em qualquer das [suas] obras”. No domínio da “arte de aplicar o cálculo aos objectos do Governo”, António Sá [...] usa permanentemente a linguagem objectiva dos números, seja para dar o estado da “povoação”, o primeiro dos objectos a ter presente e a numerar com rigor [...]. Nada melhor do que os números para uma ideia precisa sobre a realidade, quer seja demográfica, social ou económica. Esta sedução pelo número integra-se no contexto de um forte impulso das matemáticas e, tanto quanto permitem comprovar as nossas pesquisas, os autores que o terão influenciado, além de Vandelli, foram Louis Necker, Biefeld, Quesnay, Mirabeau e Arthur Young.28

Retomemos, então, a proposta do “mappa arithmetico-politico” de José Antonio de Sá, a qual permite discutirmos a utilização de dados estatísticos para a tomada de decisões políticas. Nesse sentido, A Aritmética Política posteriormente achada e observada é a única ciência por meio de que se pode obter o prospecto geral, ou Cadastro do Reino, ainda na falta de notícias exatas, que se não devem pretender nem esperar deste gênero de averiguações, suprindo-se pelas aproximadas; o dito prospecto servirá ao Príncipe Nosso Senhor para ver num golpe de vista o estado atual do seu reino, e aquele melhoramento de que é suscetível em benefício dos seus fiéis vassalos.29

O que chama a atenção, todavia, são as considerações que José Antonio de Sá faz sobre a necessidade de se “formar uma descrição exata” daquilo que for observado pelos encarregados de procederem ao levantamento dos dados. Ou seja, sua proposta aproxima-se em muito do modelo da Statistik alemã. Os dados, assim, precisavam ser contextualizados, para melhor expressarem a realidade observada: Tendo mostrado a experiência nos conhecimentos de povoação, que os que se reduzem dos nascidos, casados, ou mortos, comparativamente com os de certas vilas, onde também se arrolaram os habitantes, é medida em

26 SÁ, José Antonio de. Instrucções geraes para se formar o cadastro, ou o mappa arithmetico-politico do reino. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1801, p. 3. 27 VANDELLI, Domingos. Memória sobre a preferência que em Portugal se deve dar à agricultura sobre as fábricas. in SERRÃO, Domingos Vandelli, p. 143. 28 VAZ, Instrução e economia, p. 365-366. O terceiro capítulo do tabalho de Francisco Vaz é todo ele dedicado ao estudo das idéias de José António de Sá. 29 SÁ, Instrucções geraes, p. 5.

que pouco se pode ter confiança, sem precederem primeiro as averiguações locais de todas as terras, pois que os nascimentos, casamentos e mortes diferem consideravelmente entre uns e outros países.30

Nesse aspecto, e considerando “que o quadro jurídico existente tinha todos os ingredientes para reformar a sociedade”, José Antonio de Sá defendia que “o país necessitava era de ser viajado, por viajantes filósofos”. Este seu entendimento, aliás, derivava dos ensinamentos de seu mestre Vandelli.31 Antes da proposta do mapa aritmético-político, o mesmo José Antonio de Sá publicou, em 1783, o Compêndio de observações que formam o plano da viagem política e filosófica, que se deve fazer dentro da pátria, dedicado ao príncipe D. João, a quem era lembrado que “o estudo do governo, que penetra até as entranhas da sociedade, e de lá mesmo deduz os fiéis planos que formam os alicerces das nações, tem ocupado maduramente o vasto gênio de V. Alteza [...] que conhece claramente que a teoria por si só não basta”.32 Importante apontar que Vandelli, em 1779, havia redigido uma espécie de manual para os naturalistas que, saídos da Universidade de Coimbra, receberam a missão de percorrer os domínios portugueses para os descreverem.33 Ou, nas palavras do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, tratava-se “das instruções necessárias que, sobre o método de observar, recolher, preparar e 34 conservar as produções e os seres naturais, lhes ditara em Coimbra o primeiro lente de Filosofia”. A proposta de José Antonio de Sá, entretanto, parecia mais completa, e estava dividida em dois “ramos” principais: a viagem política e a viagem filosófica. A primeira ocupar-se-ia dos aspectos humanos, das leis e costumes, das produções, do comércio e dos transportes; a segunda, por sua vez, estaria mais voltada para a geografia dos lugares visitados, assim como para a observação da fauna, flora e recursos minerais. A prática dessas viagens e das observações delas decorrentes encontrava justificativa na medida em que suas utilidades para o Estado “são presentemente conhecidas a todo o bom político”. Aliás, afirmava: “todo o país que pretende reformar-se, deve ser viajado. Dita isto a melhor razão e a prática das nações o mostra”.35 Nesse aspecto em particular, José Antonio de Sá apresenta exemplos dessa “prática das nações”, especialmente no que se refere à exploração dos recursos minerais: “numa palavra, tal é o parecer dos melhores políticos. As nações culta e potentes têm abraçado este caminho [a produção de cartas mineralógicas]; a maior parte dos soberanos da Alemanha sentiram assaz o quanto é útil a uma república procurar as substâncias que fecha a terra no seu seio [...]. essa mesma tem sido a prática de Inglaterra, Holanda, Suécia etc.”.36 Não obstante a minúcia de seu “plano de viagem política e filosófica”, determinando, inclusive, que o viajante deveria ter uma “boa formação jurídica e científica”, José Antonio de Sá não abandona a aritmética política, “outra dominante” de seu pensamento. Nesse sentido, Francisco Vaz entende que as idéias enunciadas no Compêndio, “a começar pela definição dos objetos a inventariar e do imperativo reformista”, são retomadas quando da redação das Instruções gerais para se formar o cadastro, ou mapa aritmético-político.

30 SÁ, Instrucções geraes, p. 6. 31 VAZ, Instrução e economia, p. 375 e 384. 32 SÁ, José Antonio de. Compêndio de observações que formam o plano da viagem política e filosófica, que se deve fazer dentro da pátria. Lisboa: Oficina de Francisco Borges de Souza, 1783. 33 VANDELLI, Domingos. Viagens filosóficas, ou dissertação sobre as importantes regras que o filósofo naturalista nas peregrinações deve principalmente observar (1779). ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA. Códice 405 (Série Vermelha). Desde a década de 1780, as viagens filosóficas tornaram-se um instrumento político do estado potuguês. 34 Apud MENDES, João Ribeiro. Instruções relativas à viagem philoso-phico effectuada pelo naturalista dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, nos anos de 1783-92. Revista da Sociedade Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, Tomo 53, 1946, p. 47. 35 SÁ, Compêndio de observações, p. 1-8. 36 SÁ, Compêndio de observações, p. 11.

Era, portanto, um conhecimento rigoroso, não só da população, mas também do território e administração pública, que devia resultar deste levantamento. [...] Deste modo, as partes em que divide estas instruções ou os conhecimentos que se devem recolher são: a povoação, estado das terras; estabelecimentos de bem comum, estabelecimentos literários, estabelecimentos eclesiásticos, produções naturais (agrupadas pelos três reinos), justiça e fazenda. Trata-se dum levantamento em que sobressai não só o reformismo econômico jurídico, mas também as preocupações com a saúde dos cidadãos, mesmo dos que estão presos e até do próprio meio ambiente.37

Acompanhando as observações de Francisco Vaz sobre a obra de José Antonio de Sá, surpreende a ausência de referências a William Petty, especialmente se considerarmos o freqüente uso do “termo Aritmética Política, tributário das idéias e obra de William Petty (1623-1687), que entre nós se vulgarizou a propósito dos factos económicos e demográficos”38. Também surpreende que, em sua proposta de um “mappa arithmetico-politico do reino”, José Antonio de Sá não mencione nenhuma ação semelhante levada à efeito durante o reinado de D. José I, ainda que os tempos fossem outros e que Pombal tivesse caído em desgraça. Nesse sentido, o autor do texto A administração de Sebastião José de Carvalho e Melo, informava que, visando melhorar a produção dos gêneros necessários ao aumento da população e, conseqüentemente, o crescimento do comércio e da riqueza nacionais, Pombal havia ordenado a realização de “um inventário das terras, designando nele todas as províncias e distritos; procurou saber quais se achavam cultivadas, assim como as que estavam incultas, informando-se não só do que umas produziam, mas também do proveito que das outras seria possível tirar”39. Mesmo alguns detratores de Pombal reconhecem a realização dessa ação; o que diferencia é a avaliação que estes fazem dos resultados e dos objetivos buscados.40 Enfim, não obstante as particularidades dos autores, consoante os propósitos e a extensão de suas idéias reformistas, o que pudemos observar foi a aplicação, desde o início do reinado de D. José I, de práticas administrativas orientadas por máximas derivadas da aritmética política. De certo modo, como afirmou o autor do texto A administração de Sebastião José de Carvalho e Melo, a ação do homem de Estado “deve ser relativa ao físico do país, ao clima frio, quente, temperado que se habita, à qualidade do terreno, à sua grandeza, às suas produções, às suas riquezas, ao engenho do seu povo, aos seus costumes, às suas maneiras, às artes, ao comércio e à indústria dos seus habitantes”.41 Estes aspectos que deveriam ser considerados para a tomada de decisões políticas – e que, segundo o autor daquele texto, foram observados por Pombal, que percebeu ser necessário adotar princípios de governo que considerassem o conhecimento exato da nação –, correspondem às proposições que William Petty expôs em seu tratado Political Arithmetick.

37 VAZ, Instrução e economia, p. 388-389. 38 VAZ, Instrução e economia, p. 26. 39 A administração de Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, Marquês de Pombal, Secretário de estado, e primeiro ministro de Sua Majestade Fidelíssima o Senhor D. José I, rei de Portugal, traduzida do francês, por Luís Inocêncio de Pontes Ataíde e Azevedo. Lisboa: Typ. Lusitana, 1841. Tomo I, p. 208. Segundo o Inventário da Coleção Pombalina, o texto original é atribuído ao Cavalheiro Desoteux, enviado da França em Portugal. 40 Nesse registro, ver, por exemplo, Representação contra o Marquês de Pombal (s/d). ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA. Códice 930 (Série Vermelha). Memórias para a vida do Marquês de Pombal. 41 A administração ..., Tomo I, p. 5.

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