Arménia: dois mil anos de lutas e perseguições

June 23, 2017 | Autor: Manuel de Sousa | Categoria: Armenian Studies, Armenian History, Ancient Near East
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Arménia: dois mil anos de lutas e perseguições MANUEL DE SOUSA

NAREKLM, CC-BY-3.0

altas montanhas e vales profundos, não surpreende que tenha sido difícil a homogeneização de tantos clãs que, ao longo de milhares de anos, erraram entre o Ocidente e o Oriente. Toda esta área constituiu, pelos tempos fora, uma gigantesca placa giratória, servindo a Europa e a vastíssima Ásia. Migrações e invasões foram registadas aos milhares pela arqueologia e pela história.

Localizada na Ásia Menor, entre os mares Negro e Cáspio, a Arménia é uma região montanhosa, com uma altitude média de 1.600 metros. Conta com importantes cumes de origem vulcânica, caso do monte Ararat onde, segundo a tradição, terá encalhado a Arca de Noé, após o Dilúvio. Na Arménia nascem rios com nomes conhecidos na história da antiguidade do Próximo Oriente: o Tigre, o Eufrates e o Aras. Inclui também os grandes lagos Van (na Turquia actual) e Úrmia (hoje parte do Irão). Habitada por um povo de origem indo-europeia, os Arménios, que após uma história bastante atribulada vêem hoje o seu país dividido politicamente entre a URSS, a Turquia e o Irão. Compreendendo uma região tão vasta e tão compartimentada por rios caudalosos, por

Só em 521 a.C., a história regista pela primeira vez a nome Arménia. O documento histórico é uma estela onde Dario I da Pérsia, notifica ter conquistado o país dos Arménios e o reino do Ponto (na Anatólia, hoje Turquia). Com a conquista do Império Persa por Alexandre, o Grande, a Arménia passou a apêndice do Império Macedónio. Após a morte de Alexandre, sob o governo de Antíoco III, a Arménia foi atraída para a esfera de influência dos Selêucidas da Síria. Com a vitória dos Romanos, primeiro em Termópilas e depois em Magnésia, o país dos Arménios foi dividido em dois reinos independentes. Tigranes II, rei arménio de cultura helénica, voltou a unificar o país sob o seu domínio, assistindo-se na Arménia a um período de raro esplendor.

Em virtude da posição do país, entre o Império Romano e a Pártia, estados constantemente em luta, a Arménia nunca pôde manter uma independência política completa. Por quase um século, o país foi palco e objecto de disputa entre Roma e a Pártia, e os reis arménios não passaram de joguetes nas mãos dessas duas potências. Após uma série de lutas, o rei Tirídates da Arménia, concluiu com o general romano Córbulo o tratado de Randeia (63 d.C.), pelo qual o trono arménio seria daí por diante ocupado por um arsácida, dinastia dominante na Pártia e na Pérsia. A respeito de disputas pela posse do trono, o próprio imperador romano Trajano invadiu o país (114) e anexou-o como província romana. O seu sucessor, Adriano, renunciou ao governo directo da Arménia e permitiu que lá se formasse um estado cliente. Com Marco Aurélio, nova guerra eclodiu na Ásia Menor. A Arménia foi ocupada e a sua capital, Artaxata, completamente destruída. Em 217, Macrino reconhece Tirídates II como rei da Arménia, mas com a ascensão dos Sassânidas ao trono da Pérsia, Tirídates foi deposto e assassinado. O trono foi então ocupado por um vassalo dos Persas até que, sob Diocleciano, os Romanos voltaram a colocar no poder um arsácida, Tirídates III. Foi Tirídates III que, ao converter-se ao Cristianismo, o transforma em religião do Estado, erguendo para sempre uma barreira entre a Arménia e a Pérsia. Com a invenção do alfabeto arménio e a tradução da Bíblia pelo bispo Mesrob, surgiu e desenvolveu-se uma literatura cristã que teve papel relevante na manutenção do espírito de unidade nacional. Em 451, o IV Concílio Ecuménico da Calcedónia condena o monofisismo como herético, em favor da doutrina da natureza dupla de Cristo, formulada por Santo Agostinho e defendida pelo papa Leão I. Em 554, reunidos no Concílio de Dwin, os altos dignatários da Igreja Gregoriana Arménia, aceitam a fórmula monofisista, afastandose ideologicamente do Ocidente, tal como a

adopção do Cristianismo os havia afastado do Oriente. Outro poder ia, porém, surgir no tabuleiro da história – o dos Árabes. Com o poder islâmico, todo o Próximo Oriente iria mudar. Conquistada a Síria e o Império Sassânida da Pérsia, foi a vez do reino cristão da Arménia. A primeira invasão árabe do país ocorreu em 643, mas os invasores retiraram perante a adversidade dos homens e do clima. A história da Arménia foi, durante séculos, uma sequência de torturas e genocídios. Cada invasão, de Árabes ou de Bizantinos, saldavase por milhares de mortos e a captura dos sobreviventes como escravos. Em 885, vários senhores feudais elegeram rei Asócio I, reconhecido pelos Árabes como príncipe dos príncipes, o qual iniciou um novo período áureo na história do país. As relações dos Bizantinos com o Islão, que sob os Fatimidas tinham sido toleráveis, mudaram quando os turcos Seljúcidas conquistaram o califado de Bagdade e ameaçaram, a partir de 1057, as fronteiras orientais do império. À cavalaria árabe do deserto, sucede a cavalaria turca das estepes. Muito mais feroz e implacável para com os vencidos. Aos cruéis ataques dos Turcos, seguiram-se morticínios das populações cristãs. Em 1064, os Turcos arrasaram a capital da Arménia, Ani, sendo ocupada a maior parte do país. No século XII, muitas regiões arménias do norte foram absorvidas pela Geórgia mas, entre 1236 e 1242, esta, bem como toda a Arménia turca, caíram nas mãos dos Mongóis. Com a invasão dos Mongóis, as guerras contra Bizantinos e Turcos e as lutas entre pretendentes ao trono e senhores feudais, a Arménia afunda-se na maior anarquia e inicia-se a diáspora do povo Arménio. Que ainda hoje existe. Um dos êxodos maciços faz-se em direcção à Cilícia (nas costas da Mediterrâneo), onde surgiu um Estado efémero que passou a chamar-se Pequena Arménia.

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Este reino cristão, constituído com o auxílio dos Cruzados, a caminho da Terra Santa, e organizado segundo padrões ocidentais, conheceu um grande desenvolvimento comercial. Na encruzilhada das rotas caravaneiras que vinham da Índia, transitando pelo Império Mongol, chegou mesmo a rivalizar com Constantinopla. Com a ruína do Império Mongol, no final do século XIV, interromperam-se os contactos comerciais entre o Ocidente e o Oriente. Dilacerada por lutas internas e exposta aos ataques dos Mamelucos do Egipto, por volta de 1375 já quase nada restava desse Estado. Nesse ano, os Mamelucos invadiram o país e capturaram o último rei da Pequena Arménia. Ocupada por Gengis Khan e depois pelos Turcos Otomanos, a Arménia tradicional (ou Grande Arménia) foi, em 1502, ocupada pelo xá da Pérsia, Ismail. A partir daí, e durante quase todo o século XVIII, a região foi disputada por Persas e Turcos. Com a morte do xá Abas I da Pérsia, a constante luta entre Turcos e Persas permitiu que um grupo se revoltasse e conseguisse alcançar, na região montanhosa de Nagorno-Karabakh, um curto período de independência (17221730). No século XVIII, a Rússia dos czares voltouse para a Ásia. Em 1768, explodiu a guerra intermitente entre os Russos e os Persas. Em 1813, pelo acordo de Gulistão, os Persas cederam à Rússia a Geórgia, o norte do Azerbaijão e Nagorno-Karabakh e, depois de nova guerra, Erevan (capital da actual República Socialista Soviética da Arménia) e Naquichevão. Por serem cristãos, os Russos foram encarados pelos arménios como libertadores. No entanto, não alcançaram a liberdade tão almejada. À suserania dos senhores persas, seguiu-se uma administração centralizada que os mantinha solidamente unidos ao Império Russo. O contacto com o pensamento liberal ocidental favoreceu, todavia, o renascimento da cultura arménia no século XIX.

Na Turquia, Abdul Megid, na sequência de um movimento conhecido por tanzimat (isto é, “reorganização”), organizou em novos moldes a administração do Império Otomano, dividindo-o em províncias. O elemento muçulmano, contudo, era sempre privilegiado, mesmo onde os Arménios constituíam a maioria da população. Na segunda metade do século XIX, o problema das minorias arménias apaixonou a diplomacia internacional e a Questão Arménia tornou-se uma das preocupações centrais das políticas europeias. Em 1860, os Arménios das montanhas de Zeitun revoltaram-se e só foram dominados ao fim de dez anos. Pela guerra russo-turca de 1877-1878, distritos fronteiriços foram anexados pela Rússia. No tratado de paz de San Stefano, a Turquia compromete-se a proceder a reformas. Pouco depois, surgem comités revolucionários na Arménia turca. Perante isto, o governo otomano incentiva a rivalidade dos Curdos contra os Arménios. Em 1894, ocorre um primeiro massacre da população arménia. A partir desta data, a crise turca adquire, novas dimensões: as populações cristãs arménias, búlgaras e gregas, passam a reivindicar autonomia administrativa, protecção contra as arbitrariedades dos funcionários turcos e reformas fiscais. No Inverno de 1895-1896, após uma manifestação em Constantinopla, foram cometidos morticínios sistemáticos nas províncias. Em Agosto, quase 100 mil pessoas foram massacradas. Esta crise não podia deixar de ter repercussões internacionais. Os choques de interesses das grandes potências impediram todavia que qualquer atitude comum fosse tomada. Durante a Primeira Guerra Mundial, os Turcos temendo que os Arménios se revoltassem e se unissem aos Russos, decidem deportá-los para a Síria e a Mesopotâmia. Durante esta operação, acompanhada de cenas de brutalidade sem paralelo, estima-se

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que tenham morrido 600 mil arménios, vítimas de maus-tratos, doença e fome. Entre 1894 e 1916, cerca de um milhão e meio de membros da comunidade arménia foram massacrados ou morreram em consequência directa de perseguições e deportações. Os Russos, em 1916, conquistam a Arménia turca, contudo, após a Revolução de Outubro, o tratado de Brest-Litovsk (1918), fez da Arménia um Estado independente. Em

1920, o tratado de Sèvres criou uma Grande Arménia, reunindo os territórios russos e turcos. Teve existência efémera. Em Dezembro do mesmo ano, a Turquia de Kemal Atatürk ocupou as regiões de Kars e Ardahan e os bolcheviques proclamaram a República Socialista Federativa Soviética Transcaucasiana que, em 1936, a República Socialista Soviética da Arménia, no seio da União Soviética.

Manuel de Sousa “Arménia: dois mil anos de lutas e perseguições” in O Primeiro de Janeiro, separata Domingo, 28-01-1990, p. 4

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