Arqueologia da Arquitectura: Conhecimento e sustentabilidade

August 11, 2017 | Autor: M. de Magalhães R... | Categoria: Archaeology of Buildings, Arqueología De La Arquitectura, Building Archeological Research
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Arqueologia da Arquitectura

Conhecimento e sustentabilidade Pretende-se, com este artigo, dar a conhecer uma nova metodologia de registo e análise do património arquitectónico a “Arqueologia da Arquitectura” integrando esta disciplina, oriunda da arqueologia, no desafio que representa nos dias de hoje a Reabilitação Urbana e o Desenvolvimento Sustentável.

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de desperdícios, a reutilização dos antigos materiais de construção ou a sua reciclagem, poderão, sem dúvida, representar uma mais valia quando se pensa em economizar energia, reduzir despesas e viver num ambiente ecologicamente mais equilibrado.

Património, reabilitação e sustentabilidade

Julgo que hoje não subsistem dúvidas sobre a necessidade urgente de alterarmos o nosso modo de vida no planeta Terra, nosso único e verdadeiro lar. Durante séculos a espécie humana usou e abusou dos recursos naturais procurando moldar à sua medida tudo o que a rodeava. Hoje, se estivermos atentos, é possível observar por todo lado os efeitos nefastos desse comportamento, tanto nas nossas paisagens, como nas cidades que habitamos ou até na nossa própria saúde. O planeta Terra aquece dramaticamente e as consequências desse desequilíbrio provocado por nós irá afirmar-se a cada ano que passa. Um dos meios mais eficazes para evitar que o processo destrutivo dos nossos recursos se acentue, é a aplicação da denominada política dos 3 R’s ou seja Reduzir, Reutilizar e Reciclar. De facto, se pretendemos manter os níveis de bem-estar alcançados na nossa sociedade, se não queremos perder o que nos é essencial, se desejamos deixar algo para as gerações que nos vão suceder, temos de mudar urgentemente de atitude em relação a muitos dos aspectos da nossa vida. Assim sendo, é nesta perspectiva que julgo que o tema da Reabilitação Urbana deverá ser abordado. A sustentabilidade do nosso sistema económico depende muitíssimo do modo como nos soubermos adaptar às circunstâncias mais adver-

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Figura 1 - Serra do Barrocal . Foto Maria Ramalho

sas. O futuro das nossas cidades, local privilegiado para a fixação humana, não está mais no crescimento contínuo de enormes manchas urbanas, gerando um desperdício de recursos não renováveis e um impacto mais do que negativo num território maioritariamente desordenado. Assim, a reabilitação urbana pode ser um dos principais vectores de desenvolvimento, ajudando a colocar o país no caminho da sustentabilidade. Neste contexto, a reabilitação deverá surgir também como uma oportunidade de aplicar a política dos 3 R’s de uma forma concreta e concertada, saindo da situação embrionária em que estamos, proporcionando um novo olhar para as potencialidades reais de cada edifício. Ou seja, a forma como se passam a aplicar os princípios da redução

Neste âmbito, é necessário desde já introduzir o tema da mais valia do conhecimento no planeamento de novas estratégias de intervenção ao nível do edificado existente. Para que tal suceda, temos então que fazer acompanhar esta urgente mudança de atitude, com um planeamento sólido e consistente das nossas acções. Não cabem nesta abordagem os pseudo projectos eco-sustentáveis, verdes, ecológicos que proliferam nos discursos dos promotores imobiliários e dos nossos dirigentes, sobretudo a nível regional. Só um espírito crítico nos fará distinguir a verdade da fraude de muitos desses projectos que alastram como manchas de óleo cobrindo de betão (mais ou menos camuflado de verde) o que nos resta de património natural e paisagístico. Da mesma forma é fundamental compatibilizar as novas leis criadas na perspectiva ambiental - certificação energética e qualidade do ar dos edifícios - com a necessidade de preservação do valor histórico dos imóveis, sobretudo aqueles que não se encontram abrangidos por qualquer tipo de protecção legal, correndo-se o risco de, ao procurar responder a uma necessidade fundamental, se colocar em causa a salvaguarda do nosso património e a defesa da sua autenticidade. Esta questão exige um debate urgente de todos os intervenientes, correndo-se o risco de depois ser tarde demais.

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arqueologia A intervenção num edifício histórico obriga a uma tomada de consciência que o pré-requisito fundamental para um bom projecto é possuir um conhecimento profundo do nosso objecto de intervenção. Precisamos de saber exactamente com o que lidamos, qual o valor intrínseco do edificado, não esquecendo também a importância que o mesmo tem para todos os que mais directamente com ele se relacionam. São infelizmente inúmeros os casos em que o projectista se confronta, já no decurso da obra, com surpresas desagradáveis, muitas vezes denominadas de “ambiguidades”, falhas ou erros da construção original, sem que por um momento se questione que talvez a ambiguidade esteja no tipo de atitude de quem pretende reabilitar. Julgo que a filosofia subjacente a uma intervenção de reabilitação tem de se centrar no objecto e não no sujeito. O projectista não deverá sobrepor o seu “ego” à necessidade imperiosa de conhecimento, de um verdadeiro estudo prévio à intervenção, sem receios do que esse estudo possa vir a revelar. Ao alcançar essa libertação do medo, o responsável pela intervenção será provavelmente obrigado a optar por soluções mais exigentes mas certamente mais criativas e inovadoras. Deixar o edifício contar primeiro a sua história antes de afirmar a contemporaneidade inegável de qualquer intervenção de reabilitação em pleno século XXI, é certamente um dos desafios mais estimulantes que poderão enfrentar as equipas que trabalham com património arquitectónico. Muito recentemente tive a oportunidade de conhecer, em artigo publicado, o projecto para a reabilitação de um antigo Matadouro em Madrid (Matadero Lagazpi), da autoria dos arquitectos Arturo Franco Diaz e Fabrice Van Teslaar, destinado a ser um novo foco cultural de vanguarda da cidade, sendo o promotor a própria Câmara Municipal. Pareceu-me este projecto um excelente exemplo de uma forma de conjugar a preservação da memória histórica, com a política dos 3 R’s e a vanguarda criativa, inaugurando talvez até uma nova estética, uma nova forma de encarar a intervenção em património. Dizem-nos os próprios autores: “Desde início, assumimos a intervenção como uma oportunidade para explorar as possibilidades da recuperação. Tratou-se de trazer uma nova postura à intervenção no património histórico, uma postura radical, uma experiência sobre os limites, os limites da não actuação, reduzir ao mínimo indispensável a intervenção. A tradicional insegurança e indefinição teórica que afecta continuamente as actuais intervenções no património, com

So to be free from our ego-state, we need to become deeply aware of it and of its usual functioning within us. Hôgen Yamahata

resultados a meio caminho entre o que deve e não deve fazer-se, desapareceu logo no início do projecto. (…) Estabeleceu-se um diálogo constante entre o novo e o antigo, sem os misturar, juntos mas não confundidos. Estas duas linguagens mostram-se e olham-se de perto, com o novo a potenciar o valor do antigo e o antigo a potenciar o valor do novo. Duas posturas confrontadas, manifestadas ambas na sua máxima crueza. (…) utilizámos materiais procedentes directamente da indústria, sem qualquer transformação, de medidas estandardizadas. (…) Um mundo de materiais industriais carregados de densidade capaz de estabelecer uma comunicação aberta com o velho, com o antigo, alcançando ambos a sua expressividade máxima”

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A Arqueologia da Arquitectura como via de conhecimento

A Arqueologia da Arquitectura, como novo método científico de abordagem do património arquitectónico, tem vindo a revelar-se uma ferramenta essencial em projectos de reabilitação, de conservação ou de restauro.

Matadero Lagazpi. Foto: Carlos Fernandez Piñar / Caleidoscópio

De uma forma breve diríamos que esta disciplina nasce em Itália, nos anos 70, quando se intensificam os debates sobre metodologias de restauro em monumentos. É então que se afirma a convicção de que os edifícios históricos são, indubitavelmente, arquitecturas estratificadas. Ou seja, no âmbito dos projectos de intervenção em monumentos tornou-se claro que era imperioso conhecer previamente todo o seu percurso histórico,

Fig. 2 - Mosteiro de Tibães. Foto Arquivo IGESPAR/Luís Alves

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Fig. 5 – Marcas do passado no Convento dos Vilares em Marialva. Foto Maria Ramalho Fig. 3 - Pousada de Vila Nova da Cerveira, sujeição do edifício original ao projecto de arquitectura. Foto Maria Ramalho

Fig. 4 - Espectáculo de dança integrado no Festival “Alkantara” em Lisboa. Um bom exemplo da adaptação de um espaço de interesse patrimonial (Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos), a novos usos. Foto Maria Ramalho

particularmente aquele que deixa um “rasto” visível no edificado. Este “rasto” é o resultado de um complexo percurso de remodelações, reutilizações, ampliações, destruições etc. Ora, para se conseguir descodificar esse código secreto, para se compreender os testemunhos “aprisionados” na matéria, entendeu-se ser necessário aplicar um método rigoroso que desse resposta a todas as questões que fossem surgindo.

De uma forma muito resumida diria que o método da Arqueologia da Arquitectura, pressupõe a concretização das seguintes tarefas:

Olhando para o caminho percorrido até aos dias de hoje, julgo que apesar de coexistirem inúmeras formas de registo e análise do passado histórico dos nossos edifícios, parece claro que o método estratigráfico é aquele que integra não só o registo mais rigoroso, como possibilita os melhores resultados.

• Proceder à análise e interpretação estratigráfica do edificado, identificando períodos, etapas, materiais e técnicas construtivas ;

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• Efectuar uma pesquisa histórico/documental do imóvel e do seu contexto; • Executar o levantamento gráfico e fotográfico rigoroso do edifício;

• Caso seja necessário, deverá também proceder-se a intervenções ao nível do

Fig. 6 - O impacte de uma intervenção - adaptação do Convento da Graça de Tavira a Pousada, Foto Maria Ramalho

subsolo, elaborando um plano de escavações arqueológicas orientadas, sobretudo, para as exigências do projecto ; • Construir uma hipótese sustentada cientificamente do que foi o percurso histórico do edifício.

Simultaneamente, será necessário cruzar os dados da investigação arqueológica com o contributo de outras áreas de conhecimento (análises físico-químicas, estudo de patologias, etc.), num verdadeiro diálogo interdisciplinar, que faça com que a totalidade dos resultados obtidos se convertam em matéria mais do que suficiente (e profundamente aliciante) para o desenvolvimento de um projecto mais seguro e fundamentado.

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Fig. 7 – Exemplo da aplicação da Arqueologia da Arquitectura a um monumento – Sé de Idanha-a-Nova. Projecto coordenado por Luís Caballero Zoreda.

para que o responsável pelos projectos em património arquitectónico, tenha a coragem de trilhar o caminho do conhecimento prévio do edifício procurando, com o auxílio de uma equipa pluridisciplinar, que o produto desse conhecimento apoie a sua reflexão. Como tudo na vida, esta tarefa exige, antes de mais, bom-senso e grande criatividade, saber compatibilizar a conservação do passado com as necessidades do presente, tendo em mente que a nossa forma de intervir deve ser cada vez mais pautada pela necessidade de enquadrar a nossa acção nos novos padrões de sustentabilidade.

AZKARATE, A., CÁMARA, L., LASAGABASTER, J. I., LATORRE, P., Plan Director para la restauración de la catedral de Santa María de Vitoria-Gasteiz, Vitoria, 2001; CABALLERO, Luís Caballero; SÁEZ Fernando Lara – La iglesia Mozárabe de Santa Lúcia del Trampal Alcuéscar (Cáceres). Arqueologia e Arquitectura. Ed. Junta de Extremadura, 1999; CABALLERO ZOREDA e ESCRIBANO VELASCO, Luís e Consuelo (eds.) - Arqueologia de la Arquitectura. El método arqueológico aplicado al proceso de estudio y de intervención en edificios históricos, Actas, Junta de Castilla y León, Burgos. 1996; Ramalho, Maria de Magalhães Ramalho – Arqueologia da Arquitectura. O método arqueológico aplicado ao estudo e intervenção em património arquitectónico. In Revista Estudos/ Património. Nº 6, Lisboa: IPPAR, p. 19-29. Revista Estudos/Património - Património Arquitectónico. Registo, Interpretação e Critérios de Intervenção. Nº 9. Lisboa: IPPAR, 2006, p.5 a 89;

Neste âmbito, e relembrando as palavras de Alexandre Alves Costa, não considero que exista, no contexto das intervenções em património, uma “ espécie de arquitectura do silêncio”, onde o arquitecto, de travo amargo na boca, abandona o mausoléu que criou . Pelo contrário, parece-me que qualquer tipo de intervenção deixa sempre marcas relativas às opções que se tomaram, ou às estéticas que se seguiram. Uma aparente não intervenção pode, por vezes, esconder uma atitude talvez até mais intervencionista. O que se propõe neste pequeno texto, não é tanto reflectir sobre os tipos de intervenção, mas antes sobre os modos de intervir, alertar

Bibliografia Archéologie du Bati, Editions Errance, 2005;

Revista de Arqueología de la arquitectura, ISSN: 1695-2731, Periodicidad: Anual, editada por la Universidad del País Vasco y el Consejo Superior de Investigaciones Científicas, CSIC: Instituto de Historia (Inicio: 2002 - 4 volumes); Revista Archeologia dell`Architettura, (supplemento ad “Archeologia Medievale”, XII), Edt. All`Insegna del Giglio, Firenze (vários volumes); 2ª Bienal de la Restauración monumental (Vitoria-Gasteiz, 2124 de noviembre de 2002), Vitoria-Gasteiz, 2004..

Maria de Magalhães Ramalho Arqueóloga Funcionária do IGESPAR I.P. Divisão de Arqueologia Preventiva e de Acompanhamento ([email protected])

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