Arqueologia da Persuasão: Estudo Arqueológico da Primeira Igreja Rococó da América

June 9, 2017 | Autor: J. Nara Júnior | Categoria: Symbolism, Archaeology of Architecture, Rio de Janeiro, Rococo visual culture, Saint Rita of Cassia
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA

JOÃO CARLOS NARA JÚNIOR

ARQUEOLOGIA DA PERSUASÃO: ESTUDO ARQUEOLÓGICO DA PRIMEIRA IGREJA ROCOCÓ DA AMÉRICA

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Linha de pesquisa: Estudos de Cultura Material Orientadores: André Leonardo Chevitarese e Flávio dos Santos Gomes

Rio de Janeiro 2016

Rio de Janeiro, 2015 (dissertação defendida a 3/2/2016)

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Arqueologia da Persuasão: Análise simbólica da primeira igreja rococó da América de João Carlos Nara Júnior está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional. Podem ser disponibilizadas autorizações adicionais às concedidas no âmbito desta licença em http://santarita.hypotheses.org/.

N218a

Nara Júnior, João Carlos Arqueologia da persuasão: estudo arqueológico da primeira igreja rococó da América / João Carlos Nara Júnior. — Rio de Janeiro, 2015. 220 p. : il. ; 30 cm. Orientadores: André Leonardo Chevitarese e Flávio dos Santos Gomes. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Arqueologia, 2016. 1. Arqueologia. 2. Arquitetura de igrejas. 3. Rio de Janeiro. I. André Leonardo Chevitarese, orient. II. Flávio dos Santos Gomes. III. Título. CDD 913.031

ARQUEOLOGIA DA PERSUASÃO ESTUDO ARQUEOLÓGICO DA PRIMEIRA IGREJA ROCOCÓ DA AMÉRICA Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional

Linha de pesquisa Estudos de Cultura Material Rio de Janeiro 2016

No 450º aniversário de fundação da Mui Leal e Heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, dedico esta dissertação à saudosa memória de meu pai, que gostava de me levar a passear, em meus tempos de criança, pelas velhas ruas do Rio.

Agradeço aos Professores André Chevitarese e Flávio Gomes pela segura e competente orientação, assim como pela amizade e estímulo com que me guiaram nesta pesquisa. Agradeço de forma particular ao André por me reabrir as portas da Academia e por descortinar novos caminhos quando me encontrava em meio a tantas dificuldades. Um especial agradecimento vai ao ilustre corpo docente do Museu Nacional e à nossa Diretora, Professora Cláudia Rodrigues Carvalho; e aos meus queridos colegas discentes, que sempre contribuíram com sua cordialidade e disponibilidade. Também agradeço aos demais colegas servidores da UFRJ, pelo apoio e boa-vontade, especialmente a querida Claudine, sempre solícita e atenciosa. E, é claro!, como esquecer dos amigos do Escritório Técnico? — Maurício, Eliara, Agenor, Igor, Lívia, Ricarte, Gil e Marta, Lisane e Frederico, Mozart, Cerix, Rodrigo, Leonardo, Renata, Cris, Alexandre, Miguel, Paulo, e tantos outros que colaboraram com seu apoio, paciência, sugestões… e livros! Das Bibliotecas e Arquivos em que pesquisei, sou grato a todos os funcionários que auxiliaram na elaboração de minha pesquisa, assim como aos servidores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, pela disponibilidade e a atenção dispensada. Uma lembrança particular vai ao amigo José Luiz Macedo de Faria Santos, do Arquivo Nacional. Igualmente agradeço ao reverendo Padre Wagner Toledo, pároco da freguesia de Santa Rita de Cássia, que me recebeu com paciência e cordialidade, assim como aos amigos que trabalham na referida paróquia e na Irmandade do Santíssimo Sacramento: sr. Rogério, Josias e Jacira. Uma lembrança toda especial vai ao constante amigo Padre Silmar Fernandes, grande colaborador de todas as horas, que sempre valorizou meu trabalho. Minha gratidão vai também, entre outros, a Monsenhor Sérgio Costa Couto, ao Cônego Pedro Nunes e aos Padres Luís Madero, Marcos Santini e Alexandre Antosz. Recordo especialmente daqueles dois que me inspiraram coragem para começar esta pesquisa: os Professores Jorge Pimentel Cintra e Renato José de Moraes. Também

agradeço de coração àqueles que generosamente me prestaram seu auxílio: ao amigo Professor Mateus Rosada, que sabe tudo de barroco e cujas fotografias abrilhantaram esta dissertação; ao ilustre Catedrático Gonçalo de Vasconcelos e Sousa, que sempre confiou em minhas aventuras acadêmicas; ao Professor e companheiro de lide Daniel Pêcego; à Antropóloga Raquel dos Santos Sousa Lima, que me “apresentou” à Santa Rita; e à corajosa Arqueóloga Hilziany de Gois Dourado, que me incentivou e enriqueceu com generosa bibliografia. Minha lembrança vai também àqueles Professores que, de algum modo, me estenderam a mão ao longo desta caminhada: Johannes Meier, Rodrigo de Almeida Bastos, Renata de Castro Menezes, Daniel Justi, Rosina Trevisan, Vítor Teixeira, Matheus Oliva da Costa e Patrícia Ferreira dos Santos. Estendo a gratidão a tantos amigos — cujos nomes todos seria impossível assinalar —, pelo enorme incentivo e disponibilidade para ajudar a todo momento: Ricardo Miyashita, Andrei Rosas, Júlio César Chaves, Walter dos Santos Rodrigues, Alexandre Gonçalves, Henrique Elfes, Luciano Menegaldo, Luís Fernando Oliveira, Adriano Domeny, Gustavo França, Leonardo Barbosa, Rafael Loureiro, Sílvio Almeida, Ignacio Íñiguez de Onzono, Armando Gonçalves, Herbert Missaka, João Eduardo Bastos Malheiro de Oliveira, Rafael Medeiros, Ítalo Marsili, Victor Surerus, Cathy Freitas, Isaac Newton Raitz, William West Johnson, Marcos Nicodemos, Rafael Zelesco Barretto, Lucas Carvalho, Antônio Silva, José Flávio Ribeiro, Felipe Pouchucq, Hugo de los Santos Rojas, Daniel Forain, Brehnno Galgane Ferreira, Leonardo Talina, Victor Limonta, Mário Magela, Tatiana do Rego Monteiro Gonçalves. Deixo meu agradecimento cheio de afeto a Baru, sem cujo apoio e interesse, insistência e sabedoria, estima e cumplicidade, teria sido impossível chegar até aqui. Finalmente agradeço aos meus familiares, que sempre acreditaram nas minhas conquistas, particularmente a Mamãe, Yolanda, Izabelle, Fabrício, Carlinhos, Gabriela, Jamile e Tatiana. Incluo com saudades a Márcia e ao Papai que, com certeza, me acompanharam desde o céu. E como não podia deixar de ser, agradeço devotamente à santa mística italiana,

Rita de Cássia, para quem não há impossíveis.

A tarefa do arqueólogo não é uma tarefa fácil. Poucos de nós temos o amplo conhecimento e a capacidade de síntese que perfazem o mestre, mas todos nós podemos adquirir uma perspectiva dos fatos razoavelmente acurada. A dificuldade começa quando os fatos devem ser colocados em seus lugares na história do desenvolvimento arquitetônico. Na raiz de todo estudo deste tipo, esconde-se a admiração sobre como as coisas teriam sido antes. Para a História, a arquitetura não nasce pronta da cabeça do arquiteto. Está fundada na tradição local, foi enriquecida por mãos alheias, sofreu adaptação para atender a novos requerimentos. É nascida da terra, vem da imitação, cumpre uma função. GERTRUDE LOWTHIAN BELL

Amado Jesus, fazei-me participante de algo das dores de vossa Paixão. SANTA RITA DE CÁSSIA

A Matriz de Santa Rita de Cássia é o único templo barroco da cidade do Rio de Janeiro que conserva como bem integrado um conjunto original e completo de talha rococó do século XVIII, constituindo a primeira aparição do estilo na América. Além disso, o edifício, tombado a nível federal em 1938, possuiu em seu Largo contíguo um cemitério para pretos novos, anterior ao do Valongo. Esta dissertação investiga o vasto conjunto indiciário a respeito do Rio de Janeiro setecentista, propiciado pelas singularidades urbanas, arquitetônicas e simbólicas do monumento em questão. Com efeito, a análise de sua arquitetura, tomada como metáfora material, assim como a interpretação do seu simbolismo decorativo a partir de métodos pós-processuais, complementam as fontes documentais sobre o período colonial carioca. Os monumentos arquitetônicos, tomados como remanescentes de cultura material, oferecem um campo de estudo arqueológico privilegiado, reunindo símbolos, registrando tendências e conservando os traços das sucessivas intervenções. A pesquisa aborda principalmente a talha da igreja, devido ao seu valor particular, artístico e tipológico. Palavras-chaves: Arqueologia da Arquitetura. Rococó. Simbolismo. Santa Rita de Cássia. Rio de Janeiro.

Santa Rita Parish is the unique baroque temple in the city of Rio de Janeiro which conserves an original and complete roll of integrated rococo carvings from the 18th century, kicking off a new phase in American colonial art. Under federal protection since 1938, the building also had a burial ground for pretos novos (slaves not sold before their death), older than Valongo cemetery. This investigation of its singularities bolic ones

urban, architectonic and sym-

offers an array of indicia and facilitates a peculiar approach to 18th century Rio

de Janeiro. Its architectural analysis, seen as a material metaphor, and the interpretation of its decorative symbolism, complement the documental sources about the carioca colonial period. In fact, architectonic monuments, as material culture remains, are a privileged archaeological study field which retains symbols, registers tendencies and conserves traces from successive interventions. The investigation focuses mainly on the church carvings because of its artistic and typological particular value. Keywords: Archaeology of Architecture. Rococo. Symbolism. Saint Rita of Cassia. Rio de Janeiro.

Figura 1: Santa Rita de Cássia no Largo de Santa Rita, com a igreja matriz ao fundo, litografia de Alfred Martinet, 1853-1858 (BN). ......................................................................... 26 Figura 2: Quadro de Santa Rita do início do século XVIII e restaurado em 1912. .................. 41 Figura 3: Sarcófago de Santa Rita de Cássia (século XV). Rita aparece à esquerda do Cristo morto, que tem a Madalena à sua direita. ................................................................................43 Figura 4: Imagem de Santa Rita (1710-1719). ................................................................................ 44 Figura 5: Lavabo barroco da sacristia, com a águia bicéfala, símbolo do Quinto Império. .45 Figura 6: Efígie de Santa Rita de Cássia da fachada da Matriz, com a data 1728. ................. 48 Figura 7, A e B: Desenho a bico de pena, 1825 (Coleção Cândido de Paula Machado). Rua do Ourives (atual Miguel Couto), fundos de Santa Rita. A foto é do mesmo lugar. ......... 52 Figura 8: Interior da Matriz de Santa Rita (foto de Mateus Rosada, 2014). ............................56 Figura 9: Destaque para o arco cruzeiro de Santa Rita. A foto (FERREIRA, 2000) mostra a capela-mor sem o altar coram populo acrescentado pela reforma litúrgica pósconciliar. .......................................................................................................................................... 57 Figura 10: Retábulo principal dedicado à Santa Rita. O altar que está em primeiro foi introduzido com a reforma litúrgica pós-conciliar................................................................58 Figura 11: Coluna torsa do altar-mor. ........................................................................................... 59 Figura 12: Atual portada da igreja de Santa Rita. ........................................................................ 60 Figura 13: Largo de Santa Rita, vinheta de Thomas Ewbank, 1846 (Life in Brazil; or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. Nova Iorque: 1856, p. 312). .... 61 Figura 14: Eduard Hildebrandt, Santa Rita, 1844. ....................................................................... 62 Figura 15: Obras urbanísticas no antigo Largo de Santa Rita, 1904 (AGCRJ). Vê-se ao lado do quiosque o esguicho de ferro que substituíra a antiga fonte.......................................... 64

Figura 16: Como seria o Porto do Rio em 1817 visto do Norte, segundo Guta (Carlos Gustavo Nunes Pereira). Santa Rita aparece ao meio, entre os Morros de São Bento e Conceição, atrás do bairro da Prainha (atual Praça Mauá). .................................................. 65 Figura 17: Matriz de Santa Rita (foto de Mateus Rosada, 2014)............................................... 90 Figura 18: Possível evolução do edifício (andar térreo), com base nos testemunhos documentais. Sem escala. ........................................................................................................... 121 Figura 19: Planta-baixa do térreo da igreja. Sem escala. .......................................................... 121 Figura 20: Empena sobre o arco cruzeiro com luneta e candelabros (foto de Mateus Rosada, 2014). ...............................................................................................................................122 Figura 21: Nave da igreja. Destacam-se, entre pilastras, os retábulos laterais com as tribunas, e o púlpito da Epístola. ..............................................................................................122 Figura 22: Tapete de azulejos. ........................................................................................................ 123 Figura 23: Frontão (foto de Mateus Rosada, 2014). .................................................................... 123 Figura 24: Fachada frontal (foto de Mateus Rosada, 2014)...................................................... 124 Figura 25: Anjos de Santa Rita (foto de Mateus Rosada, 2014). ..............................................134 Figura 26: Elementos do retábulo (desenho de Lúcio Costa). .................................................136 Figura 27: Intradorso do arco cruzeiro e capela-mor (Foto de Mateus Rosada, 2014). .......139 Figura 28: Fundo da igreja, com o coro sobre o arco do nártex (foto de Mateus Rosada, 2014). ............................................................................................................................................. 147 Figura 29: Igreja de Santa Rita, foto de Augusto Malta, 1904. ................................................ 148

Tabela 1: Correlações epistemológicas........................................................................................... 37 Tabela 2: Tipos de tropo. ..................................................................................................................91 Tabela 3: Aplicações da Arqueologia cognitiva ao fenômeno arquitetônico. ........................115 Tabela 4: Arqueologia da Arquitetura: síntese interpretativa da igreja de Santa Rita. ...... 120 Tabela 5: Ficha descritiva dos bens integrados. .......................................................................... 128 Tabela 6: Tipologia dos retábulos. ............................................................................................... 140

AAS

Acta Apostolicæ Sedis. Disponível em .

AGCRJ

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

BN

Bibliotheca Nacional.

DH

Enchiridion symbolorum, definitionum et declarationum de rebus fidei et morum (DENZINGER & HÜNERMANN, 2007).

IPHAN

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

*Gn, Ex, etc. Gênesis, Êxodo, etc. (Para os demais livros bíblicos, vide as siglas empregadas na Edição da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.)

Introdução .................................................................................................. 19 Arqueologia patrimonial.......................................................................... 19 Arqueologia aboveground ....................................................................... 22 Potencial simbólico da arte e do estilo ..................................................... 24

1

HISTÓRIA E CULTURA MATERIAL — A FREGUESIA DE SANTA RITA ............... 27 1.1 Decoração religiosa como fonte indiciária ............................................ 27 Indícios e fatos........................................................................................ 27 Arqueologia histórica .............................................................................. 32 Abordagem pós-processualista ................................................................ 34 1.2 Santa Rita, suas crônicas e fragmentos ................................................ 38 Sítio Valverde ......................................................................................... 38 O cemitério de Santa Rita........................................................................ 49 A primeira fábrica rococó ........................................................................ 56 1.3 Corpo barroco, alma pombalina, espírito rococó .................................. 67 Cultura material derivada da Reforma tridentina...................................... 67 Arte de crise, não crise da arte ................................................................. 77 De França à Paris dos Trópicos ............................................................... 86

2

ARQUEOLOGIA DA ARQUITETURA — A IGREJA DE SANTA RITA ................... 91 2.1 Arquitetura como metáfora material ................................................... 91 Mundo, corpo, palco ............................................................................... 92 O templo enquanto “espaço de poder” ................................................... 103 Metáforas e metanarrativas.................................................................... 107 2.2 Desenvolvimento arquitetônico das igrejas cristãs .............................. 109 Elementos originários ........................................................................... 109 Distribuição funcional ........................................................................... 110 Elementos específicos das igrejas barrocas ............................................. 111 2.3 “Arqueotectura” .............................................................................. 115 Metodologia da Arqueologia da Arquitetura ........................................... 115 Técnicas e abordagens interpretativas .................................................... 116 Análise “arqueotectônica” da igreja de Santa Rita ................................... 119

3

ARQUEOLOGIA DA IMAGEM — A TALHA DE SANTA RITA .......................... 125 3.1 Iconologia ....................................................................................... 125 A abordagem empregada ....................................................................... 125 O método iconológico ........................................................................... 126 Estilo e outras categorias ....................................................................... 127 3.2 Tipologias ....................................................................................... 129 Gramática visual.................................................................................... 129 Sonho e alegoria .................................................................................... 132 A talha ornamental ................................................................................ 136 3.3 Análise contextual ........................................................................... 141 Ambivalência......................................................................................... 141 Eloquência ............................................................................................ 143 Audiência .............................................................................................. 145

Considerações finais .................................................................................. 149 Arqueologia da transição ....................................................................... 149 Arqueologia underground ...................................................................... 150 Política de memória ............................................................................... 151

Referências ............................................................................................... 153 Bibliográficas ........................................................................................ 153 Arquivísticas, cartográficas e iconográficas ............................................. 178

Glossário .................................................................................................. 181

Apêndice A — Inventário simbólico ............................................................ 195

Apêndice B — Cronologia .......................................................................... 219

19

Introdução Pode-se falar de uma grande obnubilação da memória no nosso mundo contemporâneo; de fato, a busca da verdade é uma questão de memória, de memória profunda, porque visa algo que nos precede e, desta forma, pode conseguir unir-nos para além do nosso «eu» pequeno e limitado; é uma questão relativa à origem de tudo, a cuja luz se pode ver a meta e também o sentido da estrada comum. (Francisco, Encíclica Lumen fidei)

Edifícios históricos reúnem símbolos, registram tendências e conservam os traços das sucessivas intervenções. Mas não só: sua relação com a cidade aporta indícios da cultura citadina, da importância política da região e da evolução de seu uso. Ou seja, os edifícios constituem simultaneamente documento e signo, porquanto são pluriestratificados, acumulam tipologias e dialogam com o entorno. Arqueologia patrimonial Um dos elementos mais caraterísticos da produção arquitetônica colonial brasileira foi a ornamentação das igrejas com talha de madeira, típica do Barroco. A representatividade da talha torna-a um objeto privilegiado de estudo, pois “o ornamento, mais do que um remanescente de uma técnica construtiva obsoleta, é um tropo de eventos sociais, políticos, econômicos e religiosos, permitindo-lhes serem compreendidos através de metáforas corpóreas” (DRAKE, 2003, p. 43). Por sorte, o Brasil foi pioneiro no enaltecimento do Barroco, longamente descurado pelas pesquisas realizadas em outros países do Ocidente: O grande volume de empreendimentos materiais da cultura barroca hispânica na América é extraordinário: dúzias de catedrais, centenas de monastérios e milhares de igrejas, muitas delas ricamente adornadas com esculturas, pinturas e trabalhos de metal. Toda essa atividade artística é a expressão de um grande esforço cultural que também teve aspectos religiosos e intelectuais como, por exemplo, a fundação das universidades e as vidas de grandes missionários e santos. Nada disso recebeu atenção adequada por parte dos historiadores da cultura e da arte, e apenas nos dias de hoje estão sendo feitas tentativas para proteger ou tombar os monumentos sobreviventes. A causa de tal negligência é, em parte, a falta geral de apreço, no século XIX, pela cultura barroca e todas as suas obras, agravada ainda mais pela ruptura catastrófica no desenvolvimento cultural após as guerras de independência e separação da América Latina espanhola. A cultura barroca da América Latina não era somente uma cultura colonial, era uma cultura altamente centralizada e hierarquizada, que derivava todo o ímpeto de dois centros, a Igreja e o Estado. O conjunto do edifício central era sustentado por uma intensa força de vontade por

20 parte de uma classe governante muito pequena, e quando tal esforço foi interrompido por circunstâncias históricas, todo o edifício foi estilhaçado de cima a baixo. (DAWSON, 2014, p. 256-257)

Especificamente no que concerne à fábrica religiosa carioca, a historiadora da arquitetura Sandra Alvim realizou um vasto estudo comparativo de plantas, fachadas, volumes, revestimentos, retábulos e talhas, tornando-se referencial teórico obrigatório para quantos investigam este tema. Com base em sua análise, talvez seja possível descrever a construção colonial do Rio de Janeiro como a conjunção de uma arquitetura pobre com uma decoração rica. A talha servia não apenas para ornamentar, mas também para delimitar, compartimentar e indicar os diversos espaços dentro das igrejas; assim, o efeito visual do décor interno desfaz a impressão de se estar em um grande galpão (ALVIM, 1999, v. 2, p. 26-27). Segundo a autora, “a talha, tanto quanto a construção propriamente dita, explicita as mudanças da vida econômica, social e religiosa das ordens e irmandades do Rio, assim como as tendências de gosto” (ALVIM, 1999, v. 1, p. 132). Assim, após a difusão no Rio de Janeiro de uma primeira tipologia barroca, vinculada às preferências das ordens religiosas, generalizou-se a tipologia rococó em meados do século XVIII, associada ao surgimento das irmandades. Na maioria das igrejas, contudo, tal tipologia foi transformada durante o século XIX num terceiro tipo eclético característico da nova escola local, conforme o gosto da elite da cidade (cf. ALVIM, 1999, v. 1, p. 152). Existe, porém, uma chamativa exceção: a matriz paroquial de Santa Rita de Cássia1, no Centro histórico da cidade, junto da esquina da Avenida Marechal Floriano com Rua Miguel Couto, a qual manteve sua talha rococó original, simples e elegante, de caráter pioneiro e inovador, apesar de suas insuficiências e adaptações. Em seus trezentos anos de história, o templo presenciou significativas transformações sociais, econômicas e urbanas, dentre as quais destaca-se a instalação — no próprio Largo da igreja — de um cemitério para escravos recém-chegados à Colônia. Com relação à inserção urbana, surpreende sua sobrevivência às reformas operadas pelo prefeito Pereira Passos no início do século XX, que fizeram tormentosa sua articulação com o entorno cada 1

A freguesia de Santa Rita possui outras seis capelas em sua circunscrição, que abarca os bairros da Gamboa e da Saúde: Anjo da Guarda, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora do Parto, São Francisco da Prainha e Nossa Senhora de Monserrate.

21 vez mais descaracterizado. Como ocorre com os demais exemplares da arquitetura religiosa carioca, embora tombadas, “a maioria delas acha-se inserida na malha urbana, não mais se destacando frente às grandes edificações vizinhas” (ALVIM, 1999, v. 2, p. 30). Contra isso, alertava Gustavo Giovannoni (1925, p. 172): “Talvez [as condições ambientais] tenham tal importância, que ‘alterar a perspectiva’ de um monumento equivale quase à sua completa destruição”. O templo, de propriedade da Mitra, conserva o Lignum Crucis e relíquias de Santa Rita. O imóvel tem área aproximada de 1200 m², com capacidade para acolher 250 fiéis sentados. Foi tombado a 15 de julho de 1938, a nível federal2, em caráter voluntário por despacho do diretor do Serviço, com todo o seu acervo (azulejaria, pinturas, janelas e portas de época, mobiliário de época, detalhes arquitetônicos e esculturas)3. O tombamento, ocorrido no primeiro ano de funcionamento do órgão máximo de custódia do patrimônio nacional, foi concomitante ao da igreja de São Pedro dos Clérigos, sendo esta última então considerada o mais belo remanescente do período Rococó. Rosana Najjar e Maria Cristina Duarte (2002, p. 11) explicam no Manual de Arqueologia Histórica em Projetos de Restauração: Quando um bem cultural é tombado pelo Poder Público, isto se dá devido ao seu valor (histórico, artístico, arqueológico, etnográfico, paisagístico, etc.), que foi reconhecido como merecedor de destaque e, portanto, de ações que o preservem, para que cumpra seu papel de transmitir à sociedade sua participação na construção do Brasil. Assim, um projeto de Restauração / Conservação de um bem cultural da Nação deve ter como objetivo, dentre outros, a recuperação e a socialização da história deste bem. […] As edificações são, assim, produto e produtoras de relações sociais, as quais pretendemos desvelar para melhor conhecermos o bem que temos o dever de preservar. A partir deste conhecimento, poderemos melhor realizar o nosso papel de contadores da história do Brasil.

Não obstante, a fim de permitir a construção da Avenida Presidente Vargas em 1944, operou-se o destombamento da igreja de São Pedro dos Clérigos, a despeito da resistência da cidadania, que reconhecia seu valor e desoladamente lamentava a sua destruição (cf. HOLLANDA, 2007). Embora existam no Rio de Janeiro outros remanescentes rococós, cujos exemplos mais maduros e significativos podem ser encontrados nas igrejas de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé e de Nossa Senhora de Montserrate, com a desaparição da

2

IPHAN, Processo 16-T-38, Livro Histórico (livro 2, inscrição 079) e Livro de Belas Artes (livro 3, inscrição 165).

3

Cf. Resolução do Conselho Consultivo da SPHAN, de 13/08/85, referente ao Processo Administrativo nº 13/85/SPHAN.

22 igreja de São Pedro a talha rococó de Santa Rita passou a primeiro plano de importância. Apesar de o ecletismo acadêmico do século XIX considerar a exibição de áreas em branco algo excessivamente despojado, o rococó de Santa Rita é o único exemplar preservado que não sofreu acréscimos, o que permite um estudo sistemático do estilo. Além disso, Myriam de Oliveira (2003, p. 183) sublinha que a igreja de Santa Rita representa a primeira aparição do estilo no país, o que lhe confere uma importância histórica ainda maior: O Rio de Janeiro foi a primeira cidade brasileira a conhecer as manifestações do rococó, introduzido a partir de 1755 na talha da matriz de Santa Rita, praticamente na mesma época em que fazia suas primeiras incursões em Lisboa. Dez anos mais tarde seu domínio nas decorações internas das igrejas cariocas era fato consumado, domínio esse que deveria prolongar-se por quase um século, enfrentando vitoriosamente a concorrência de outros estilos, notadamente o pombalino e o neoclassicismo.

Não há registro de igreja rococó mais antiga em toda a América. Este tipo de decoração também apareceu nos Estados Unidos, em Cambridge, Massachusetts, a partir de 1759, e na cidade de Nova Iorque a partir de 1763, porém aplicado à arquitetura residencial (cf. HECKSCHER, 1992, p. 17). Arqueologia aboveground Ora, é um fato reconhecido que a aplicação do método iconográfico ao estudo da arquitetura colonial concentrou-se nos motivos ornamentais, mas descuidando seu conteúdo simbólico (cf. BRAZÓN, 2001, p. 233). Com efeito, “as origens formais da talha, assim como as de suas filiações estilísticas e de sua simbologia […] envolvem um estudo específico” (ALVIM, 1999, v. 1, p. 129) ao qual, infelizmente, Sandra Alvim não pôde dedicarse. Sendo a cultura material simbolicamente constituída (cf. HODDER, 1982), as singularidades da igreja de Santa Rita convidam a um estudo do simbolismo de sua talha de madeira e de outros bens integrados. Como a Arqueologia também lida com cotas positivas e constitui um campo privilegiado para a interpretação simbólica da cultura material, justifica-se uma abordagem de viés arqueológico. Por outro lado, é costume publicarem-se estudos gerais sobre a arquitetura religiosa, nos quais algumas igrejas comparecem como exemplos ilustrativos, ou são apresentadas

23 sumariamente ao lado de outras semelhantes. Não obstante, existem monografias importantes como a de Mário Barata (Igreja da Ordem Terceira da Penitência, 1975), Mateus Ramalho Rocha (O mosteiro de São Bento no Rio de Janeiro, 1991), Dom Clemente da Silva Nigra (Construtores e artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, 1950), etc. Semelhantemente, a peculiaridade da igreja de Santa Rita recomenda que a pesquisa de seu simbolismo seja monográfica, não comparativa. Um projeto de Arqueologia da Arquitetura sempre contribui para a restauração e conservação de edifícios e espaços urbanos que fazem parte do patrimônio histórico arquitetônico. O edifício pode ser “mais ou menos complexo, isolado ou inserido num conjunto edificado, bem conservado ou em ruína, relativamente original ou profundamente alterado, intervencionado no seu todo ou apenas em parte” (SANTOS, 2013, p. 3): em qualquer caso, a recuperação global de sua história atribui valor ao bem tombado, como destaca o supracitado Manual de Arqueologia Histórica em Projetos de Restauração: Um projeto de Restauração / Conservação de um bem cultural da Nação deve ter como objetivo, dentre outros, a recuperação e a socialização da história deste bem. No caso das edificações muito antigas, como as dos primórdios da nossa colonização, normalmente não existem registros históricos disponíveis que cubram toda a sua existência. Nessas situações, mais do que nunca, a Arqueologia se mostra uma ciência eficaz no trabalho de recuperação histórica, não só para suprir a ausência de dados bibliográficos, mas também para dialogar com os parcos documentos escritos existentes. Um projeto de Arqueologia dentro de um projeto de Restauração / Conservação deve, portanto, buscar produzir dados relevantes que venham a deixar claro que uma edificação é um super-artefato, construído pelo homem que, necessariamente, está inserido num dado tempo e espaço e, deste modo, carregado de valores e simbolismos. (NAJJAR & DUARTE, 2002, p. 11)

Em sentido contrário, no caso de projetos de conservação, cujas intervenções têm reduzido impacto no bem protegido, a ação do restaurador também pode propiciar informações significativas para a produção de conhecimento arqueológico, o que “permite, inclusive, uma revisão nos resultados do projeto de conservação, como, também, uma melhoria na gestão deste bem protegido” (NAJJAR & DUARTE, 2002, p. 15-16). Subjaz à identificação do edifício histórico como “super-objeto” uma visão pósprocessualista da arqueologia, distinta da ótica histórico-culturalista vigente até meados do século XX, em que o contributo do trabalho arqueológico servia apenas de auxiliar nos

24 projetos de restauração, fornecendo informações sobre os objetos que integravam as construções. Potencial simbólico da arte e do estilo A avaliação arqueológica da igreja de Santa Rita a ser realizada nesta dissertação — isto é, o levantamento do seu potencial funcional simbólico e suas implicações sociais — apoia-se em seis princípios: a) Sua arquitetura e ornamentação são uma produção artística do século XVIII, representativa da transição do Barroco ao Rococó (Capítulo 1). b) A análise empregada é indutiva; a interpretação dos dados, qualitativa; e as evidências empregadas, múltiplas. c) A questão que se indaga é o potencial documental do simbolismo material. d) A metodologia proposta consiste na inventariação e interpretação do simbolismo inerente aos bens integrados da igreja. e) O marco teórico arqueológico empregado é pós-processual, o qual valoriza a agência humana, o caráter significativo da arte, a organização social, a experiência estética e os reflexos ativos no presente. No entanto, para efeitos práticos, aceita-se também a classificação tipológica e a periodização estilística da abordagem histórico-cultural. f) Abordagens extradisciplinares, da Antropologia, Arquitetura, Linguística ou Sociologia, devem comparecer para auxiliar a compreensão do objeto de pesquisa. Duas abordagens têm importante ressonância para a cultura atual: a social e a cognitiva (Capítulo 2). Segundo a primeira delas, a economia seria a base estrutural da sociedade, de forma que a arte seria uma estratégia política para gerar reação estética não racional, manipular, manter o controle e reforçar o poder. A arte faria parte de um discurso ideológico criado para mascarar, justificar e perpetuar as desigualdades (cf. SMITH, 2014, p. 443444). É evidente o reducionismo mecanicista e teleológico que há em encarar a arte como mera reprodutora da economia. Contudo, como esse tipo de abordagem é muito recorrente, merecerá uma atenção especial. A outra abordagem — a cognitiva — provém da comunica-

25 ção visual e dá atenção à forma (simetria, dimensão, etc.): detalhes, omissões, contexto cultural, memória e organização (cf. SMITH, 2014, p. 445). Encontra-se na base da Arqueologia da Arquitetura. Tal abordagem será complementada pelas análises semiótica e simbólico-expressiva (Apêndice A), bastante apropriadas para o estudo da ornamentação e da imaginária. A semiótica permite decodificar as informações contidas nos símbolos; a interpretação simbólica explica o uso pragmático que se faz dos mesmos símbolos. Existe um repertório comum de motivos, um modo convencional de dispô-los e técnicas costumeiras de composição: são estes aspectos que definem um “estilo”, embora não esteja claro em que medida o estilo seja independente da função (Capítulo 3). ************* A maior parte das fotografias são da lavra do Professor Mateus Rosada. As demais imagens sem crédito são do próprio autor da dissertação. Para os termos arquitetônicos, basta recorrer ao Glossário no final do texto. Textos em português arcaico foram harmonizados e modernizados. Todas as citações em língua estrangeira foram traduzidas. Autores clássicos foram nomeados em versalete, com referência à numeração consagrada de suas obras (as quais costumam ser de fácil acesso, via web ou mediante múltiplas edições). As Sagradas Escrituras foram citadas de acordo com a versão normativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

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Figura 1: Santa Rita de Cássia no Largo de Santa Rita, com a igreja matriz ao fundo, litografia de Alfred Martinet, 1853-1858 (BN).

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1 História e cultura material — A freguesia de Santa Rita 1.1 Decoração religiosa como fonte indiciária Ab assuetis non fit passio. (“Não se faz caso das coisas habituais.”)

Indícios e fatos A escola dos Annales — fundada na primeira metade do século XX por Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, entre outros —, aportou tendências básicas à prática historiográfica seguindo uma perspectiva construcionista. A presente pesquisa identifica-se precisamente com esta linha, em especial com os pontos 3, 4, 5 e 7 do resumo epistemológico proposto por Ciro Cardoso: 1. A crença no caráter científico da história […]. 2. O debate crítico permanente com as ciências sociais […]. 3. A ambição de formular uma síntese histórica global do social, explicando a vinculação existente entre técnicas, economia, poder e mentalidades, mas também as oposições e as diferenças de ritmo e fase entre os diferentes níveis do social. 4. O abandono da história centrada em fatos isolados e também uma abertura preferencial aos aspectos coletivos, sociais e repetitivos do sócio-histórico […]. 5. Uma ênfase menor do que no passado nas fontes escritas […], favorecendo a ampliação do uso da história oral, dos vestígios arqueológicos, da iconografia etc. 6. A tomada de consciência da pluralidade dos níveis da temporalidade […]. 7. A preocupação com o espaço […]. 8. A história vista como “ciência do passado” e “ciência do presente” ao mesmo tempo […]. (CARDOSO; VAINFAS, 1997, p. 7 e 8)4

Contudo, é necessário indagar: seria viável fundar uma especulação macro-histórica em uma pesquisa micro-histórica? Em outras palavras: seria possível aceder a conclusões globais por meio do estudo de fatos correntes? Para o linguista alemão Wilhelm von Humboldt, parece que tal procedimento seria impossível, pois “a plena percepção do que é específico pressupõe sempre o conhecimento do geral que o subsume” (HUMBOLDT, 2010, p. 91). Com efeito,

4

Os autores revisaram sua obra quinze anos mais tarde, detectando outras tendências historiográficas oriundas da escola dos Annales: “(1) ausência de uma instituição central unificadora da sociedade; (2) ruptura com a noção historicista tradicional de um tempo uniforme em progressão linear, em favor de temporalidades múltiplas; negação da existência de um único ponto de referência temporal; (3) forte institucionalização da tendência a partir de 1946, com a consequente interdisciplinaridade, cientificismo e hermetismo; (4) positivismo e estruturalismo; (5) preferência pelo pré-moderno” (CARDOSO; VAINFAS, 2012, p. 10-1).

28 as macronarrativas — porquanto implicam profundidade temporal, permanência e transcendência — articulam-se dificultosamente com eventos de curto prazo. Não obstante, Carlo Ginzburg pretendeu realizar inferências gerais a partir de particularidades, identificando nas novas elites do poder econômico e político esforços para suprimir a cultura secular camponesa mediterrânea. Mesmo sem entrar no mérito do paradigma de pós-guerra defendido pelo historiador italiano, é possível reter-lhe o método: Ginzburg assume — secundando a retórica de Aristóteles — que os indícios justificam uma historiografia. O uso que Carlo Ginzburg faz da obra do Estagirita levanta a indagação acerca das causas de o método aristotélico ter sido tanto tempo desaproveitado, apesar de estar recolhido no “mais antigo tratado de retórica que chegou até nós” (GINZBURG, 2002, p. 48). Conforme a explicação de Enrico Berti (2002), desde Francis Bacon costumava-se reduzir a lógica de Aristóteles apenas ao silogismo dedutivo. Por isso, era normal contrapor ao método aristotélico as “experiências” galileanas ou o “rigor” cartesiano. Nesse sentido, tanto Hegel quanto os manuais escolásticos desprezaram a lógica aristotélica, considerandoa uma mera ciência do pensamento abstrato. Depois que a crise pós-moderna pôs em juízo o valor e os limites da razão iluminista, outras formas de racionalidade foram demandadas. Daí que muitos filósofos não aristotélicos publicaram livros sobre o Filósofo: Aubenque (heideggeriano), Perelman (teórico da argumentação), Gadamer (hermeneuta), Ritter (hegeliano). Mesmo os pós-modernos Derrida e Lyotard recorreram a Aristóteles para justificar a “polissemia do ser”. Não obstante, no pensamento europeu latino atualmente ainda existe resistência ao Filósofo, talvez devido à repulsa cultural pela Igreja Católica e pelo pensamento de São Tomás de Aquino, tido por São João Paulo II um “guia e modelo dos estudos”, “um autêntico modelo para quantos buscam a verdade”, o qual soube dialogar com “o pensamento árabe e hebreu […] numa época em que os pensadores cristãos voltavam a descobrir os tesouros […] da filosofia aristotélica”5. O próprio Ginzburg (2002, p. 57-58) resume os motivos pelos quais a reconstrução do passado com base em indícios é uma operação legítima: a) a história humana pode ser reconstruída com base em rastos, indícios, σήμεια; 5

São JOÃO PAULO II, Encíclica Fides et ratio, 14/9/1998, n. 43 e 78.

29 b) tais reconstruções implicam, implicitamente, uma série de conexões naturais e necessárias (τεκμήρια) que têm caráter de certeza: até que se prove o contrário, um ser humano não pode vivei duzentos anos, não pode encontrar-se, ao mesmo tempo, em dois lugares diferentes etc.; e c) fora dessas conexões naturais, os historiadores se movem no âmbito do verossímil (εἰκός), às vezes do extremamente verossímil, nunca do certo — mesmo que, nos seus textos, a distinção entre “extremamente verossímil” e “certo” tenda a se desvanecer.

Existe, portanto, uma tensão entre o conhecimento do elemento individual e uma generalização mais ou menos rigorosa. Já que os fenômenos históricos não podem ser quantificados nem repetidos, só há duas possibilidades para a História: “ou assumir um estatuto científico frágil para chegar a resultados relevantes, ou assumir um estatuto científico forte para chegar a resultados de pouca relevância” (GINZBURG, 1989, p. 178). No campo da arqueologia, em sentido análogo, pode-se dizer que o “positivismo arqueológico” reduziu muito o “espaço heurístico”, isto é, a capacidade de inventar fatos através da aproximação progressiva à cultura material. Por isso, se a Arqueologia e outras artes afins6 pretendem “conjecturar o invisível a partir do visível, do rasto” (GINZBURG, 2002, p. 58), o saber indiciário de cunho retórico lhes é imprescindível. Ginzburg situa seu método no campo da Retórica, cujo discurso, aliás, condiz à prática historiográfica: Os historiadores sempre contaram histórias. De Tucídides e Tácito a Gibbon e Macaulay, a composição da narrativa em prosa acurada e refinada sempre foi considerada sua mais elevada ambição. A história era tida como um ramo da retórica. Nos últimos cinquenta anos, contudo, a função de contar histórias ganhou péssima reputação entre os que se consideravam na vanguarda do ofício, os praticantes da assim chamada “nova história” que surge depois da Segunda Guerra Mundial. Na França, contar histórias foi descartado como l’histoire événementielle. Agora, contudo, percebo as evidências de uma corrente que anda atraindo muitos “novos historiadores” proeminentes de volta a um certo tipo de narrativa. (STONE, 2013, p. 9).

Segundo Aristóteles, em quem Ginzburg se apoia, existem três métodos de convencimento: Retórica, Dialética e Analítica7. A Retórica é “a outra face da Dialética”8, pois 6

“O termo ‘arte’ frequentemente é, para Aristóteles, sinônimo de ‘ciência’, […] a arte coincide exatamente com certo tipo de ciência, as assim chamadas ‘ciências poiéticas’, ou produtivas. Estas fazem parte, juntamente com as ‘ciências teoréticas’ e as ‘ciências práticas’, da famosa tripartição aristotélica das ciências (Tópicos VIII, 1, 157a 10-11) ou das formas de ‘racionalidade’ (Metafísica VI, 1, 1025b 25)” (BERTI, 2002, p. 163). 7

Vide ARISTÓTELES, Primeiros e Segundos Analíticos, Retórica, Tópicos e Refutações sofísticas.

8

Ἡ ῥητορική ἐστιν ἀντίστροφος τῇ διαλεκτικῇ (ARISTÓTELES, Retórica 1354a 1).

30 ambas têm o mesmo ponto de partida: o uso de opiniões consagradas (ἔνδοξα) reconhecidas como verossímeis. Distinguem-se, porém, na forma de exposição: a Dialética, como a Analítica, procede dedutivamente por raciocínios (συλλογισμόι), enquanto a Retórica se vale de longos discursos. Por sua vez, a Analítica não parte do verossímil, mas baseia-se em proposições “verdadeiras e primordiais” (ἐξ ἀληθῶν και πρώτων)9. Em resumo: a Retórica persuade, a Dialética argumenta, a Analítica demonstra. Seria possível classificar o discurso arqueológico da mesma forma que o discurso histórico? Em outros termos: há afinidade entre um discurso e outro? Mas a questão da viabilidade do método retórico para a Arqueologia supõe uma indagação anterior: o arqueólogo pode compor narrativas? Desde uma perspectiva processualista, o arqueólogo Jorge de Alarcão (1997, p. 21-22) respondia afirmativamente: Os arqueólogos podem, assim, produzir narrativas; mas, na maior parte dos casos, produzem-nas sem acontecimentos singulares, individualizados num ponto do espaço e do tempo. Se a história, como disse Paul Veyne, se presta mal a uma tipologia, o arqueólogo, por seu lado, tipifica os fatos, isto é, apreende-os sub genere, como o entomologista apreende este inseto como exemplo de uma espécie.

Mas Alarcão também explicitava que o objeto da narrativa arqueológica é distinto do objeto da narrativa histórica: Os arqueólogos, ao contrário dos historiadores que praticam a história acontecimentalista (histoire événementielle), não falam de sujeitos individuais, pessoais, mas de grupos: a Arqueologia não conhece dramatis personæ, não conhece as personagens que são essenciais à história acontecimentalista e à narrativa romanesca. O referente da Arqueologia, o sujeito de quem se fala, é coletivo, é uma comunidade. (ALARCÃO, 1997, p. 15)

Por isso — ainda conforme o arqueólogo lusitano —, a peculiaridade do discurso arqueológico consistiria na concatenação de mudanças culturais, na descrição da sucessão de “normas” ou “arquétipos”. Ou seja, Alarcão segue o pressuposto weberiano de que o instrumento metodológico das ciências seria o estabelecimento de uma tipologia ditada pela sociologia: Que é que me permite inferir, do particular, o geral ou, por outras palavras, tipificar? É a convicção de que o comportamento é normalizado, de que todos os homens se comportam da mesma maneira por virtude de regras sociais. […] Se, na natureza, os fatos obedecem a leis, no domínio da cultura obedecem a normas.

9

Cf. ARISTÓTELES, Tópicos 100a 27-30.

31 A narrativa arqueológica, geralmente, não entretece acontecimentos, mas comportamentos normalizados. (ALARCÃO, 1997, p. 22)

Finalmente, Alarcão concluía dizendo que no âmbito da Arqueologia a narração visa à exposição do processo sequencial dos fatos: A explicação é o que permite compor a narrativa. Mas a explicação, em Arqueologia, não é necessária ou exclusivamente a descoberta de causas. […] Como disse Ricœur, o homem pertence simultaneamente ao regime da causalidade e ao da motivação e a explicação ora recorre a causas ora a propósitos, intenções. (ALARCÃO, 1997, p. 22)

É necessário recordar, porém, que os praticantes de uma arqueologia pós-processualista censuram a abordagem acima apresentada e criticam o caráter restrito de uma ótica que não privilegie a agência humana. Conforme explica Matthew Johnson (2010, p. 108): O indivíduo é ativo. Os pós-processualistas não gostam da forma como lhes parece que “o indivíduo” fica perdido em muitas teorias arqueológicas. Eles se queixam de que os indivíduos são meras peças em um jogo de regras normativas, ou em sistemas adaptativos, ou em estruturas profundas. Eles argumentam que todas essas diferentes visões de mundo apresentam as pessoas como joguetes passivos que seguem as regras sociais cegamente.

Feito este excurso sobre a existência de uma “narrativa” arqueológica (quer seja processual, quer seja pós-processual), convém retornar à questão do estatuto de tal narrativa dentro da distinção aristotélica entre Retórica, Dialética e Analítica. Admitindo-se que o arqueólogo possa compor tanto narrativas processuais quanto narrativas antropológicas, seria realmente legítimo afirmar que o estatuto do discurso arqueológico é o retórico persuasivo? Não parece mais adequado defini-lo como dialético argumentativo? A escassez documental — ou, melhor, o silêncio material — parece recomendar o discurso dialético, que consta de perguntas técnicas. Além disso, aparentemente o discurso retórico carece de rigor formal, pois é baseado em entimemas. “Um entimema é um silogismo logicamente abreviado pela omissão de uma proposição, seja a premissa maior, seja a premissa menor ou a conclusão” (JOSEPH, 2002, p. 168): portanto, não oferece plena certeza por carecer de rigor formal (por elidir premissas consabidas) ou teórico (por utilizar argumentos apenas prováveis). Assim mesmo, é forçoso admitir que o discurso da Arqueologia é análogo ao da História. Com efeito, se “a dialética lida com questões filosóficas e

32 gerais”, a Arqueologia deve recorrer à Retórica, que “lida com questões particulares e específicas” (JOSEPH, 2002, p. 261), submetendo dados quantitativos à análise qualitativa. Ao situar no campo da Retórica o discurso histórico e, por extensão, o arqueológico, deve-se atentar para observação feita por Carlo Ginzburg, diante de uma hoje surpreendente afirmação de Aristóteles, para quem a poesia é “atividade mais filosófica e mais elevada do que a história”10: A história da qual falava Aristóteles não é (com exceção do nome) a mesma de que falamos hoje. No seu último livro, Finley observou que a pesquisa de arquivo, que para os gregos se encaixava na “arqueologia” e não na historiografia propriamente, foi iniciada pelos discípulos de Aristóteles. No trecho da Poética, o vocábulo “história” (ἱστορία) é tirado de Heródoto, o qual Aristóteles critica, na Retórica, por seu estilo antiquado. (GINZBURG, 2002, p. 56-57)

Ou seja, o que Aristóteles chamava de “história” (ἱστορία) é o que hoje se chama antiquariato. A dimensão pretérita da Antropologia, quer praticada pela História, quer pela Arqueologia, salvaguardada a ênfase de cada ciência, situa-se propriamente no marco da Retórica. Já no século XIX, Wilhelm von Humboldt (2010, p. 83) seguia a mesma linha de associação entre Poética e História: Pode parecer duvidoso fazer com que se toquem, mesmo que o seja em um ponto, as áreas do historiador e do poeta. As atividades de ambos, porém, têm afinidades inegáveis, pois, se a exposição feita pelo historiador, como já foi dito antes, só atinge a verdade do acontecimento se houver complementação e articulação do que à observação imediata se mostra incompleto e fragmentado, tal conquista só é possível ao historiador, caso ele, como o poeta, use a fantasia.

Em paralelo, Humboldt (2010, p. 91) alertava para o risco das explicações pretensamente totalizadoras: A abordagem filosófica representa uma ameaça muito maior para a autenticidade histórica do que o tratamento poético, pois este pelo menos está acostumado a dar livre curso ao material com que lida. A Filosofia dita um objetivo aos eventos, e, assim, esta busca por causas finais, sejam elas deduzidas da essência da natureza ou do próprio homem, perturba e falsifica toda visão livre sobre a ação própria das forças.

Arqueologia histórica Ao estabelecer tal analogia entre o discurso arqueológico e a narrativa histórica, é oportuno aludir mais amplamente à condição da Arqueologia histórica, a qual, na expressão 10

Διὸ καὶ φιλοσοφώτερον καὶ σπουδαιότερον ποίησις ἱστορίας ἐστίν (ARISTÓTELES, Poética 1451b 5-6).

33 de James Deetz (1996), preocupa-se com as pequenas coisas esquecidas, coisas que abundantemente devem povoar os textos dos arqueólogos. A Arqueologia não pretende fazer uma história neutra, mas uma história interessada. Do contrário, sem interesse na História, narraria uma história sem interesse. Dentro do espectro das discussões sobre o tema, o renomado historiador angloamericano Moses Finley postou-se entre os que pensam que a Arqueologia histórica não faz História, apenas a ilustra: “É evidente que a possível contribuição da Arqueologia para a História é, grosso modo, inversamente proporcional à quantidade e qualidade das fontes escritas disponíveis” (FINLEY, 1989, p. 96). Como comentou Anders Andrén (1998, p. 126), “esta atitude foi criticada por muitos arqueólogos, mas a situação da pesquisa atual realmente confirma as palavras de Finley”. O arqueólogo sueco também reconheceu que “se artefato e texto forem tidos como idênticos, então a criticada visão desagradável de Finley é válida: quanto mais fontes escritas houver, menos necessidade há de arqueologia” (ANDRÉN, 1998, p. 145). E a análise de Finley não se restringia à quantidade das fontes; levava em conta também seu aspecto qualitativo: Se muitas vezes ocorre que a utilidade da arqueologia para a história cresce com o aumento da documentação, é também verdade que certos tipos de documentação tornam a arqueologia mais ou menos desnecessária. (FINLEY, 1989: p. 104-105)

Em sua severa avaliação, Finley criticou ferrenhamente os arqueólogos que se preocupavam com resultados quantitativos e minimizavam a interpretação, nomeadamente a David Clarke (cf. FINLEY, 1989, p. 94-95). O proeminente arqueólogo britânico tinha declarado em seu monumental Analytical Archaeology que não se deve produzir “livros de imitação de história” (CLARKE, 1978, p. 1), pois “dados arqueológicos não são dados históricos e consequentemente Arqueologia não é História” (CLARKE, 1978, p. 11). O que era a Arqueologia para ele então? “Arqueologia é a disciplina que visa à recuperação, descrição sistemática e estudo da cultura material no passado” (CLARKE, 1978, p. 10) — escavação (coleta), descrição (classificação) e síntese (modelagem) —: não um resgate histórico, mas um levantamento científico. Contudo, o próprio Clarke (1978, p. 16) reconhecia os limites epistemológicos desse empreendimento: O grau de confiança que justificadamente depositamos em muitas generalizações arqueológicas é amiúde solapado pela não-especificação nem da proporção dos

34 casos observados, nem da diversidade de circunstâncias, nem da existência de exemplos conflitantes.

Há muito tempo que se tornou assaz costumeiro apontar a debilidade das ilações arqueológicas. Christopher Hawkes (1954, p. 161-162), por exemplo, propôs uma escala com grau de incerteza crescente: inferência das técnicas de produção, inferência do sistema econômico, inferência das instituições sociais e políticas, inferência das instituições religiosas e da vida espiritual. Ora, sendo a dedução tão débil na Arqueologia, como justificar e requisitar uma teoria interpretativa? Abordagem pós-processualista Chegado a este ponto, é preciso recorrer a uma abordagem pós-processual da Arqueologia, conforme descrita por Ian Hodder (1994, p. 190): A arqueologia pós-processual implica a superação de dicotomias estabelecidas, pressupostas, e abre o caminho ao estudo das relações entre norma e indivíduo, entre processo e estrutura, entre o ideal e o material, entre o objeto e o sujeito. Ao contrário da arqueologia processual, não defende um só enfoque, nem afirma que a arqueologia deva desenvolver uma metodologia aceite. Por isso, a arqueologia pós-processual é simplesmente “pós”. Parte de uma crítica do anterior, construindo sobre essa senda, mas ao mesmo tempo divergindo dela. Supõe diversidade e falta de consenso. Caracteriza-se pelo debate e pela incerteza acerca dos problemas fundamentais pouco discutidos anteriormente pela arqueologia. É uma proposta de perguntas, mais do que uma provisão de respostas.

O pós-processualismo assim entendido não se coloca contra o processualismo, mas o transcende, pois “certos aspectos da arqueologia processual e pós-processual são complementares” (HODDER, 1995, p. 149). Seja aqui retomado um pensamento conciliador de Jorge de Alarcão (1994, p. 213-214): A Arqueologia processualista não tornou obsoleta a Arqueologia histórico-culturalista, nem foi, por seu lado, superada pela Arqueologia contextualista. […] Não podemos tratar estas correntes como estádios progressivos, mas devemos antes acentuar a sua contemporaneidade, as suas conexões e interações. Aquilo a que temos assistido não é à substituição de um paradigma por outro, à maneira kuhniana, mas é antes o que designarei por alargamento ou aprofundamento da nossa competência interpretativa, por diversificação dos recursos teóricos e metodológicos para a interpretação do passado.

O cerne da Arqueologia histórica do mundo moderno consiste na descrição dos meios e da forma com que a cultura material foi apropriada e ressignificada na América, a partir

35 do período pós-colombiano, quando se encontraram a expansão europeia e a cultura indígena. Muito já se debateu sobre essa classificação — empregada por Robert Schuyler e James Deetz —, a qual conteria uma forte carga eurocêntrica. Não obstante, Orser Jr. (1996) entendia, em sentido contrário, que essa forma de fazer arqueologia era uma crítica à modernidade colonialista, capitalista e etnocêntrica. Mas a expressão “Arqueologia histórica do mundo moderno” também costuma ser simplesmente aplicada às pesquisas que utilizam fontes arqueológicas, etnográficas e históricas em proporções equivalentes. Indica, portanto, a existência de um campo de pesquisa compartilhado num contexto acadêmico marcado pela especialização e pela segregação: “é um desastre cultural […] que não exista uma única palavra para a pesquisa acadêmica em todos os campos — um desastre porque isso cria uma divisão onde não poderia existir nenhuma” (HARVEY, 1983, p. 74, apud ARNOLD, 1986, p. 32). Através da cultura material, a Arqueologia estuda a emergência, a manutenção e a transformação de sistemas socioculturais ao longo dos tempos. Nesse sentido, qualquer segmento do meio físico culturalmente apropriado pode ser avaliado num sentido amplo (LIMA, 2011). Postulando que a análise arquitetônica se constitui numa excelente fonte material que agrega relevantes informações à investigação de determinado período histórico e à compreensão da sociedade que nele existiu, é cabível tomar os monumentos arquitetônicos como campo de estudo privilegiado, remanescente de cultura material. O estudo da talha de madeira da igreja de Santa Rita enquadra-se no viés analítico da Arquitetura e das Artes Plásticas, assim como serve de matéria para a Antropologia da imagem. Concomitantemente, a talha também pode ser tratada como artefato arqueológico, enquanto remanescente da “cultura material, que tem funções tanto práticas quanto representativas” (ANDRÉN, 1998, p. 149). Uma das mais importantes contribuições da escola sociológica francesa foi afirmar que as representações coletivas, mentais ou simbólicas, revelam as sociedades e permitem classificá-las. Nesse sentido, o fenômeno religioso seria, para Durkheim (2000), expressão do ordenamento social. Dentro dessa perspectiva, Michel de Certeau pesquisou as relações entre doutrina teológica e sua repercussão histórica na cultura. O erudito francês apontou

36 a necessidade de a História superar uma análise das ideologias como mero epifenômeno social ou acontecimento casual: A história religiosa parece marcada por duas tendências: uma, originária das correntes espirituais, fixa o estudo na análise das doutrinas; a outra, marcada pelas “Luzes”, coloca a religião sob o signo das superstições (CERTEAU, 2008, p. 3435).

A história da difusão de uma doutrina seria a história da sua adaptação? Ou seria apenas uma sintomatologia, isto é, a história da busca de soluções espirituais alternativas diante de novas conjunturas desafiadoras? Mas como o pensamento arqueológico deve trabalhar, por sua vez, com tais questionamentos? A cultura material é capaz de expressar transformações ideológicas? Segundo o mesmo autor, … numa sociedade, os símbolos coletivos e as “ideias” não são nem a “causa” nem o “reflexo” das mudanças. […] Estas mudanças parecem se manifestar, ao nível das práticas, por uma série de funcionamentos novos que ainda não são acompanhados de expressões teóricas adequadas nem de esboroamentos espetaculares. (CERTEAU, 2008, p. 152-153)

Para Certeau, é possível rastrear as mudanças na função, não na gramática das coisas: Este indício […] mostra que a ideia […] se insinua no interior dos símbolos coletivos tradicionais, que ela os altera do interior, sem dar lugar a um tipo de expressão que lhe seja própria. Ocorre aí uma perversão interna da linguagem e não a criação de uma formalidade nova. […] O que “se produz” surge e se diz na linguagem, sem que se venha a fazer uma linguagem para “produzir” acontecimentos. […] Neste caso, os discursos (verbais, icônicos, gestuais) não têm a mesma função e, portanto, não têm a mesma significação. (CERTEAU, 2008, p. 184)

A tese da ressignificação da cultura material é uma explicação que condiz com a teoria da agência humana, a qual estabelece modelos sistemáticos de comportamento. Segundo John Robb, a abordagem processual (em que as mudanças sociais são resultado de atores políticos em busca de poder) e a abordagem pós-processual (em que os atores simultaneamente dependem das estruturas e as perpetuam) têm convergido numa visão sintética da agência humana baseada em quatro princípios: a) Os homens reproduzem suas relações através de práticas diárias. b) Essas práticas dialogam com a cultura material. c) Essas práticas dialogam com os valores herdados do passado. d) Os homens reinterpretam e redefinem a cultura material e os valores herdados.

37 A avaliação da talha da igreja de Santa Rita pressupõe, portanto, a distinção entre sua função simbólica almejada pelo contratante, a estabelecida pelo artífice e a praticada pelos seus “usuários” de ontem e de hoje. Ainda assim, convém matizar o alcance dessa abordagem, como o faz Ian Hodder (2012b, p. 116-117): A particularidade da experiência material e o seu significado derivam não só da diversidade da vida humana, mas também das diferentes possibilidades de se identificar os objetos materiais. […] Outra razão para a incapacidade de produzir um dicionário da cultura material provém da dificuldade das pessoas em discursar sobre o simbolismo material. Os significados geralmente permanecem tácitos ou implícitos. […] Os significados simbólicos dos materiais podem nos levar a uma dose de experiência vivida, mas esta não pode ser facilmente articulada.

************* À guisa de conclusão, pode-se afirmar quatro coisas sobre a retórica do discurso arqueológico: pressupõe a possibilidade de fazer inferências; vale-se de abordagens transdisciplinares da cultura material; consiste em uma narrativa analítica; deve oferecer uma gama de interpretações alternativas. A Tabela 1 procura compendiar e harmonizar as considerações feitas até aqui para fundamentar epistemologicamente a abordagem adotada nesta dissertação. FASE ARQUEOLÓGICA (CLARKE) Escavação ou coleta de dados Descrição ou classificação

ABORDAGEM

MÉTODO Logístico

Histórico-culturalista Tipológico

FASE RETÓRICA (ARISTÓTELES) Verossimilhança dos dados

Síntese ou modelagem

Simétrica

Estatístico

Interpretação

Contextual

Científico

Discurso retórico composto de entimemas e exemplos

Teoria explicativa

Pós-processual

Filosófico

Persuasão

Tabela 1: Correlações epistemológicas.

38

1.2 Santa Rita, suas crônicas e fragmentos Sou obstinado. Não desisto. Moro no Largo de Santa Rita, na casa onde nasci, com a janela da sala aberta para a década de 1830, quando sonhava com os Morros de São Bento e Conceição. Era o começo do mundo. (Marco Lucchesi, O Bibliotecário do Imperador)

A história da igreja matriz de Santa Rita já foi alvo de muitos relatos e crônicas, recheados de peripécias, que dão constância tanto da devoção dos seus fundadores e suas pretensões políticas, quanto de aspectos pitorescos do dia a dia carioca nos tempos do reinado. O levantamento histórico realizado pela Mesa Administrativa da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Santa Rita (NETTO, 1933), os relatos coligidos pelos memorialistas cariocas e as crônicas esparsas nos jornais encontram-se resumidos no inventário da igreja de Santa Rita organizado pelo IPHAN. A seguinte compilação11 deixa patente algumas incertezas que bem merecem aprofundamentos ulteriores, particularmente a data exata de construção da igreja e a autoria da sua talha e das suas imagens. Sítio Valverde A família Nascentes Pinto Realizava-se no Rio de Janeiro a 6 de maio de 1697, o casamento de Manoel Nascentes Pinto e D. Antônia Maria, nascida e batizada na Freguesia de São Nicolau, do Patriarcado de Lisboa, proprietária — por mercê dada em carta, datada no Reino a 29 de novembro de 1694 — dos ofícios de meirinho do mar, guarda e porteiro, da Alfândega do Rio de Janeiro, herdados do tio, Domingos Rodrigues Lisboa. Falecido em 1693, solicitara Domingos Rodrigues Lisboa, oito anos antes, em 1685, permissão para nomear serventuário do primeiro daqueles empregos — autorização obtida também por D. Antônia Maria em 1694, para provimento, enquanto não se casasse, dos cargos legados pelo tio. Certificado no mês seguinte, a 19, por Luz Lopes Pegado, Provedor da Fazenda Real, haver Manoel Nascentes Pinto contraído núpcias com D. Antônia Maria, e possuir, o marido, capacidade para exercer os ofícios doados à mulher, outorga-lhe carta, assinada em Lisboa, a 18 de setembro de 1697 — a mercê de propriedade concedida à D. Antônia três anos antes, na posse da qual se investe Nascentes, por ato de 9 de abril de 1698 (TUPPER, 1966, p. 13)

11

A recopilação do material aludido, cotejada com outras referências, já fora parcialmente apresentada no XII Congresso Internacional de Reabilitação do Patrimônio Arquitetônico e Edificado (NARA JR.; CHEVITARESE, 2014) e no XVI Encontro Regional de História da ANPUH Rio (NARA JR., 2014).

39

Mapa 1: Planta da Cidade de São Sebastiao do Rio de Janeiro, com suas Fortificações, 1714, do Brigadeiro João Massé (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa). Após as invasões francesas do início do século XVIII, foram projetadas fortificações para a cidade. A muralha a oeste une o Morro do Castelo ao Morro da Conceição, delimitando a área urbana com a baía de Guanabara. A região do Sítio Valverde ficaria dentro da faixa sombreada, mais especificamente na área circulada.

Portanto, pelo menos desde 1697, dom Manuel Nascentes Pinto vivia com sua mulher em uma chácara ampla, não distante da Alfândega, e próxima à vala que conduzia as águas da Lagoa de Santo Antônio até a Prainha12. A residência do casal ficava em uma região do Centro do Rio de Janeiro que era, à época, um bairro rural denominado Sítio do Vale Verde (ou Valverde), o qual se estendia da praia na altura da Rua das Violas (atual Teófilo Otoni) até as faldas do Morro da Conceição (Mapa 1). De forma lacônica, porém, Vieira Fazenda (2011, v. 3, p. 46) oferece dois logradouros como as referências do “antigo sítio Valverde (Largo de Santa Rita e Beco do João Batista)”. O referido beco não existe mais, pois foi englobado no quarteirão delimitado pelas ruas Marechal Floriano, Miguel Couto, Teófilo Otoni e Uruguaiana (Mapa 3 infra). Em outra passagem (FAZENDA, 2011, v. 5, p. 665), o autor acrescenta o Beco dos Cachorros (atual Alcântara Machado). O Valverde 12

Cf. IPHAN. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. 6ª S.R., Módulo I, Rio de Janeiro I, Igreja de Santa Rita. No entanto, segundo outros autores, a transferência de dom Manuel ao Brasil tivera por fim uma missão encomendada por Dom João V, cujo reinado se estendeu de 1706 a 1750 (MAURÍCIO, 2008, p. 159).

40 possuía plantações e olarias, e por ali se fazia o serviço de cargas e produtos agrícolas das zonas suburbanas. Os primeiros agricultores preferiram as partes mais altas do vizinho Morro da Conceição, pois desde o século XVII o vale tinha a fama de reunir arruaceiros. A parte urbanizada do Rio de Janeiro de então compreendia a várzea situada entre quatro colinas: Conceição e São Bento, a norte; Santo Antônio e Castelo, a sul. O Valverde era na parte norte da várzea, mais distante do Morro do Castelo em que propriamente ficava sediada a cidade13. O casal, proprietário de ofícios na Alfândega, representa bem a passagem da economia seiscentista para a setecentista. Com efeito, ao cabo do primeiro quartel do século XVIII, as ligações entre o Rio de Janeiro e as rotas comerciais ultramarinas e no interior da América se alargaram: A cidade estava abandonando sua antiga base agrária para se converter num ponto de convergência dos fluxos comerciais do império português. Mais do que isso: definitivamente, o controle dos nervos da economia escravista mercantil da capitania estava passando para as mãos dos negociantes de grosso trato (FRAGOSO & alii, 2007, p. 39).

Além de cavaleiro professo da Ordem de Cristo — Ordem militar instituída em Portugal no século XIV com elementos oriundos dos extintos Templários —, o fidalgo dom Manuel era … natural da Freguesia de São João da Foz, Bispado do Porto; filho de outro Manoel Nascentes Pinto, também fidalgo, e de D. Maria Pinto de Paiva, ambos lusitanos; selador-mor ainda da Alfândega, além das ocupações citadas — todas vitalícias, privativas dos descendentes até o ano de 1822 — exercia Manoel Nascentes Pinto a de selador, e arrendava as demais. (TUPPER, 1966, p. 13)

Uma ordem regular de cavalaria consiste em uma confraria que combina a insígnia militar com os privilégios monacais, o que supõe reconhecimento tanto por parte do Estado quanto da Igreja. Seus cavaleiros respondiam diretamente ao Papa, tinham seus próprios cemitérios e capelas com clero separado da jurisdição secular ordinária, e eram livres de dízimo. Como todo cavaleiro, exercitava-se na disciplina da Ordem: recitação da Liturgia das Horas, adoção de indumentária e dieta específicas, submissão ao regime interno de governo, etc. Homem piedoso, dom Manuel trouxera consigo de Portugal uma pintura a óleo

13

Para uma noção esquemática da evolução urbana, vide infra os mapas 4 a 8.

41 retratando Rita de Cássia (Figura 2), taumaturga italiana beatificada setenta anos antes e cuja devoção rapidamente se estendera à península Ibérica, graças à divulgação de sua vida promovida pelos agostinianos (LIMA, 2014, p. 48). Por vários anos a imagem seria venerada no solar da chácara, introduzindo no Brasil o culto à “Advogada dos Impossíveis”14. O quadro de Santa Rita dá conta de que ele sofreu reparos, conforme se lê escrito sobre a própria tela: Antiquíssimo quadro de Santa Rita, venerado na antiga Capela anterior à Matriz. Restaurado em 1912. Vig.º Cônego Dr. Victor.

Contudo, são desconhecidos o artífice, a cidade de origem e a data de execução da imagem, que é provavelmente anterior a 1697. Seria interessante proceder a um exame arqueométrico para avaliar seu atual estado de conservação e averiguar se há pinturas escondidas sob a composição. Como a peça está razoavelmente bem preservada, é protegida por lei e tem uso habitual na paróquia, conviria utilizar — de preferência in locu — um método não destrutivo que identifique os elementos químicos presentes, a fim de inferir os pigmentos empregados e os materiais usados nos retoques. Como o quadro é escuro e Santa Rita cos-

Figura 2: Quadro de Santa Rita do início do século XVIII e restaurado em 1912.

tuma ser representada de hábito negro, uma eventual análise provavelmente restringir-seia a seu rosto e às mãos, assim como ao símbolo da palma15.

14

Segundo Raquel Lima (2014, p. 48), o título de “Advogada das Causas Impossíveis” difundiu-se no século XVII a partir da cidade de Cádiz, mas foi realçado no século XIX devido às curas milagrosas reconhecidas durante o processo de canonização de Rita de Cássia, de modo que ela também passou a ser chamada de “protetora dos casos desesperados”. 15

São três as técnicas elementares não destrutivas mais indicadas para esse estudo: Fluorescência de Raios X (XRF), Espectroscopia no Infravermelho Transformada de Fourier (FTIR) e Radiografia computadorizada (CR/DR).

42 Rita de Cássia Margherita Lotti, cognominada Rita (1377-1457), natural de Cascia na Úmbria, Itália, tornou-se um símbolo da superação da escalada da violência da vendeta, em virtude da qual veio a perder o marido iracundo, cuja mansidão conquistara à custa de oração e paciência. Após a morte dos filhos, tentou reiteradamente ingressar na Ordem agostiniana, sendo rechaçada pelas irmãs; estas depois cederam quando Rita apareceu no interior das muralhas do convento de Santa Maria Madalena, para lá transladada em voo místico. Após uma vida religiosa de austera penitência, durante a qual recebeu na testa o estigma de um espinho da Paixão de Cristo, Rita faleceu, seu corpo permanecendo incorrupto (cf. LIMA, 2006, p. 30-45; 2014, p. 39-47). Seu sarcófago (Figura 3) é emblemático e traz em código icônico um resumo da sua vida e santidade, representando-a associada a Maria Madalena, cujo culto, aliás, experimentaria … uma renovação durante o Barroco porque teria sido pecadora, tornando-a um modelo mais próximo para os católicos correntes (especialmente as mulheres), do que os santos que viveram piedosas vidas de perfeição. Assim a Madalena se tornou um dos mais populares temas no Barroco. (BAILEY, 2012, p. 74)

Tal identificação da “Madalena” (Lc 8,2s) com a “pecadora” que ungiu de lágrimas os pés de Cristo (Lc 7,36-50) só foi comum entre os intérpretes latinos; entre os gregos, porém, as personagens são tidas por distintas16. Enquanto no Ocidente as relíquias de Maria Madalena são cultuadas em Marselha desde o século VIII, no Oriente elas são veneradas em Constantinopla, para onde teriam sido transferidas desde Éfeso no século IX. Logicamente, Rita foi representada ao lado da Madalena tanto por ter sido religiosa do convento a ela dedicado, quanto por se considerada participante da Paixão de Cristo em virtude de seu estigma, à semelhança da santa de Magdala, que esteve ao pé da cruz (Jo 19,25). No entanto, alguns autores viram na associação à Madalena uma alusão, sem fundamento, ao pretenso caráter “impuro” (?!) do matrimônio contraído por Rita (cf. LIMA, 2014, p. 42).

16

Para outras abordagens contemporâneas sobre Maria Madalena, vide CHEVITARESE, A. L. Jesus no Cinema. Um Balanço Histórico e Cinematográfico entre 1905 e 1927. Rio de Janeiro: Klíne, 2013, pp. 145-152.

43 A beatificação de Rita ocorreu em 1627, sob o pontificado de Urbano VIII, o qual, coincidentemente, era natural da mesma diocese da Santa. Raquel Lima (2014, p. 48) refere que, em virtude da piedade popular, desde 1545 estava estatuída em Cássia a festa a 22 de maio em homenagem a Rita, a qual inclusive já teria sido retratada com auréola em um quadro datado de 1564. Devido aos avatares e dificuldades da Ordem agostiniana, a canonização tardou até o Jubileu de 1900, quando finalmente Leão XIII propôs Rita de Cássia como modelo universal de santidade feminina (LIMA, 2006, p. 46-50; 2014, p. 49-52). Apesar de bastante querida no Brasil, na Itália e na Península Ibérica, apenas em 2002 a celebração litúrgica de Rita de Cássia foi introduzida no Calendarium Romanum como memória facultativa. Ora, os Nascentes Pinto, com muita confiança e simplicidade, abriam anualmente sua residência senhorial aos concidadãos cariocas no dia 22 de maio, a fim de honrar a Santa. Diferentemente das casas nobres, em que se exibem os quadros dos antepassados, e das casas burguesas, em que se ostentam imagens dos próprios proprietários, a família oferecia aos visitantes o quadro de Rita de Cássia. A devoção doméstica gradativamente alargou-se à vizinhança, que se familiarizou com a efígie da mística italiana, entronizada na sala entre

Figura 3: Sarcófago de Santa Rita de Cássia (século XV). Rita aparece à esquerda do Cristo morto, que tem a Madalena à sua direita.

44 velas e adornos. Provavelmente no ano de 1702 — visto que a afluência de nobres e populares que se abeiravam à residência para fazer suas rezas e pedidos tornava-se cada vez maior —, o casal decidiu erigir uma ermida próxima à sua propriedade. Encomendaram a um entalhador de Portugal uma nova imagem de madeira (Figura 4) na década de 1710 — hoje localizada na sacristia da igreja —, da qual também se ignoram o artífice e a data de execução17. Contudo, em vez de posta como orago da ermida, mandaram-na colocar para veneração dos fiéis na Candelária, então sede paroquial, enquanto não se construísse uma igreja condigna. Anualmente, a 13 de maio, a talha era conduzida para a casa dos Nascentes Pinto, onde era ricamente vestida adornada de joias. Ao cabo da novena, à véspera da festa da Santa, a

Figura 4: Imagem de Santa Rita (1710-1719).

imagem tornava para a Candelária. As crônicas narram que, em uma dessas oportunidades, a talha foi alvo de um assalto sendo então despojada de seus ricos adereços… A construção da igreja A primeira pedra [da igreja] foi lançada pelo Ex.mo Senhor Bispo D. Francisco de S. Jerônimo, antes de 1720, como algum [sic] tanto vagamente diz o Dr. Mello Moraes, em a Chronica geral e minuciosa do Império do Brasil.18

17

Uma radiografia da mesma permitiria avaliar seu estado de conservação ao exibir sua estrutura interna e possíveis rachaduras; e uma Espectroscopia Raman realizada in situ poderia ser útil para a identificação dos pigmentos, pois, “como a cronologia dos pigmentos mais utilizados é bem documentada, conhecer sua composição permite caracterizar um pigmento mediante a concentração de constituintes e, consequentemente, estabelecer a procedência, período histórico e autenticidade de uma pintura” (CALZA, C.; PEDREIRA, A.; LOPES, R. T. Analysis of paintings from the nineteenth century Brazilian painter Rodolfo Amoedo using EDXRF portable system. X-Ray Spectrometry, Hoboken, v. 38, p. 327-332, 2009). 18 ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DA ARQUIDIOCESE DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO. Resumo histórico, dados e informações sobre

a Egreja Matriz de Santa Rita, Rio. Série Relatório Paroquial, 245, volume 2. In: Freguesia de Santa Rita, 1773-1986, p. 1-2.

45 Não está claro se a primeira pedra a que se refere esta citação do Relatório Paroquial é a da antiga ermida ou a da ulterior igreja. Parece que o alegado lançamento apenas consistiu na reapresentação material da ermida anteriormente existente — a qual corresponderia à atual capela-mor, construída às expensas do patrimônio familiar —, e que seria ampliada com a nave cujos alicerces estavam principiados (PIZARRO E ARAÚJO, 1822, v. 5, p. 73). Como realçava Sandra Alvim (2014, p. 100), a pobre planta da ampliação ainda era “filiada aos exemplos incipientes da centúria anterior e contrasta com as plantas das igrejas octogonais ou curvas do mesmo período”. A documentação disponível, com grifos no original, alude à “conta que deu o reverendo Bispo

Figura 5: Lavabo barroco da sacristia, com a águia bicéfala, símbolo do Quinto Império.

do Rio de Janeiro de ter erigido novamente em Freguesia a Igreja de Santa Rita daquela Cidade…”19 No ano anterior, com efeito, o templo já vinha mencionado em cartas de aforamento do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia20. O único remanescente da construção barroca original é o lavabo de embrechados de mármores policrômicos da sacristia (OLIVEIRA, 2008, v. 3, p. 24), a qual, aliás, traz por emblema a águia bicéfala (Figura 5), a qual talvez constitua uma referência ao milenarista Quinto Império de Cristo na Terra (cf. TRINDADE, 2010).

19 INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. 20

IPHAN. Op. cit., p. 4.

Arquivo do Conselho Ultramarino — 1741/1754 apud IPHAN. Op. cit., p. 3-4.

46 Conforme atesta Moreira de Azevedo (1877, v. 1, p. 171), em auxílio da família tinham concorrido “os moradores da cidade com esmolas, e em pouco tempo estavam edificados a capela-mor, a sacristia e o consistório”. O fato deve ser tido por verídico, pois todas as igrejas da época colonial no Rio de Janeiro foram construídas por iniciativa popular, exceção feita à de São Sebastião, levantada pelos jesuítas em 1565 na Cidade Velha que ficava na praia de Fora de São João, junto ao Morro Cara de Cão, antes da transferência para o Castelo do Morro de São Januário. Mesmo as Ordens religiosas que se instalaram sucessivamente no Rio de Janeiro se valeram de ermidas e capelas pré-existentes, levantadas pela devoção dos primeiros cariocas. Os beneditinos se instalaram provisoriamente na ermida de Nossa Senhora do Ó (anterior à atual Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé), de 1586 a 1590, quando se transferiram para o Morro de São Bento. No mesmo ano, os carmelitas ocuparam a ermida de Nossa Senhora do Ó, deixada pelos beneditinos; quando os carmelitas foram desalojados por Dom João VI, a ocuparam a capela de Nossa Senhora do Desterro, então em construção, que passou a chamar-se Nossa Senhora do Carmo da Lapa. Os franciscanos se fixaram inicialmente a antiga ermida de Santa Luzia, junto ao mar em 1592, antes de construírem seu convento no Morro de Santo Antônio. As teresianas só chegaram ao Rio de Janeiro em meados do século XVIII, e o seu convento foi construído no Morro de Santa Teresa, onde existia anteriormente uma ermida dedicada à Nossa Senhora do Desterro. De todo modo, a 13 de março de 1721 os Nascentes Pinto fundaram a Irmandade de Santa Rita, para a qual cederam o terreno, o templo inacabado e uma dotação de ornamentos e alfaias, obrigando-se o casal a contribuir cada ano com 32 contos de réis (PIZARRO E ARAÚJO, 1822, v. 5, p. 73). Ora, as irmandades eram confrarias compostas por leigos com finalidades religiosas e outros fins particulares, nomeadamente trabalhistas, educacionais e econômicos. Regidas por compromisso aprovado tanto pela Igreja quanto pelo Estado, estavam vinculadas a uma freguesia. Exigia-se-lhes um mínimo de trinta membros e os recursos necessários à administração e custo das festas e paramentos. Entre as irmandades do Rio colonial, três eram Ordens Terceiras, ou seja, ligadas a uma Ordem religiosa conventual e reconhecidas pela Santa Sé. Tratam-se das Veneráveis Ordens Terceiras de São Francisco da Penitência, anexa ao convento de Santo Antônio; de Nossa Senhora do Carmo, da Ordem Carmelita; e de São Francisco de Paula, sem referência conventual no Rio.

47 Dentro de uma diocese era costume que cada irmandade tivesse um santo diferente como patrono; no entanto, as irmandades chamadas sacrossantas (do Santíssimo, do Espírito Santo, ou das Almas) podiam ser erigidas em várias freguesias de uma mesma circunscrição (CAVALCANTI, 2004, p. 206-215). Assim, a Irmandade do Santíssimo Sacramento tradicionalmente era responsável, ao lado da administração paroquial e da irmandade padroeira, pelo culto realizado na capela-mor; participava ativamente das comemorações da Semana Santa auxiliando o Senado da Câmara na realização da procissão de Corpus Christi. Além das irmandades do Santíssimo Sacramento e do santo que dava nome à igreja e tinha lugar de honra na capela-mor, as matrizes coloniais também costumavam albergar uma irmandade dedicada às Almas do Purgatório, que visava à misericórdia com os mortos, dando enterro cristão aos justiçados e realizando o ofício de Finados. A devoção era expressamente recomendada nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia21, documento pelo qual a Igreja no Brasil era regida desde 1707, como fruto do primeiro concílio provincial brasileiro. Um padroado particular Supreendentemente, porém, os Nascentes Pinto fizeram a doação da capela de Santa Rita … reservando para si, além de outras condições exaradas na escritura, o título de padroeiros perpétuos, que passaria a seus descendentes, preferindo o varão, e uma sepultura na capela-mor para eles e seus descendentes. (AZEVEDO, 1877, v. 1, p. 172)

Desta feita, a família requeria diversos privilégios: o controle das nomeações eclesiásticas, a precedência nas solenidades, o recebimento de alimentos em caso de indigência, etc. O privilégio mais importante e apreciado dos padroeiros — útil, mas também oneroso — era o direito absoluto de apresentação, ou seja, de nomeação para os cargos, ainda que houvesse outros modos de adquirir essa capacidade (por acordo entre a Santa Sé e Estados Nacionais, ou ainda por contrato com pessoas físicas ou jurídicas). A Canonística entende

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Título LX, Cláusula 869 (VIDE, 1853).

48 que o direito de padroado é basicamente uma mostra de gratidão da Igreja aos seus benfeitores (CORONATA, 1947, p. 396). Àqueles que cediam áreas para edificação de igrejas ou as construíam ou lhes dotavam do necessário para o sustento do culto, a Igreja lhes concedia o direito de padroado, com algumas obrigações e privilégios anexos. Não se tratava, portanto, de uma manifestação de justiça estrita, mas antes de uma concessão, um privilégio (LIMA, 2001, p. 23). Esse direito de padroado poderia ser derivado de um título nobiliárquico ou anexo a uma propriedade (padroado real) ou, num padroado pessoal, pertencer a uma pessoa física (MIGUÉLEZ, 1969, p. 654-567). Historicamente, no Ocidente, o Sínodo de Orange (441) reconheceu certo direito de apresentação a bispos fora de sua diocese. No século VII, tal direito foi estendido a leigos pelo Sínodo IX de Toledo (655). Visando afastar os abusos contra a liberdade da Igreja, Alexandre III (papa de 1159 a 1181) definiu melhor os contornos do direito de padroado. Tal legislação — que em sua origem relacionava-se com o Direito germânico da Alta Idade Média — permaneceu praticamente inalterada até a entrada em vigor do Codex iuris canonici de 1917 (CORONATA, 1947, p. 399), o qual proibiu a criação de novos privilégios22. Não obstante, o bispo dom Francisco de São Jerônimo de Andrade negou veementemente o reconhecimento do título de “padroeiros” aos Nascentes Pinto, pois desejava designar a igreja de Santa Rita como sede de freguesia e alegava que só o Rei de Portugal podia ser padroeiro de igrejas no Brasil. Ora, justamente dom João V (★1689) atribuía à Santa Rita a cura de uma grave doença em sua vista, motivo pelo qual no mosteiro de Cássia foi colocada como ex-voto uma inscrição com as armas portuguesas, e o retrato régio em prata com uma pedra preciosa debaixo do olho esquerdo. Secundando o desejo do Rei Magnânimo, o papa Bento XIII — único pontífice descendente

Figura 6: Efígie de Santa Rita de Cássia da fachada da Matriz, com a data 1728.

da família real portuguesa — concedeu em 1725 a necessária autorização para a ereção da

22

O antigo Código regulava o ius patronatus nos cânones 1448 a 1471, proibindo ulteriores concessões: Nullum patronatus ius ullo titulo constitui in posterum valide potest (cânon 1450). O Código atual (1983) não faz menção ao tema.

49 igreja da então bem-aventurada no Rio de Janeiro (LIMA, 2014, p. 50, 55-56), cuja imagem desde 1728 — terminus ante quem — passou a ser exibida na fachada (Figura 6). Tenha-se presente que, quando uma pessoa é proposta como modelo de santidade para os fiéis católicos, recebe sucessivamente os títulos de Serva de Deus (aquela cuja abertura do processo de canonização foi admitida), Venerável (aquela cujas virtudes foram oficialmente reconhecidas pela autoridade eclesiástica), Bem-aventurada e Santa (aquelas cujo culto público foi autorizado de acordo com as peculiaridades do Direito). O culto tributado aos Bem-aventurados tem caráter permissivo dentro de determinada região, e consiste num ato administrativo da autoridade competente. Pelo contrário, o culto tributado aos Santos presume-se ato infalível e irreformável da suprema autoridade da Igreja (Papa ou Concílio Ecumênico), tendo caráter prescritivo e universal. Por isso, sendo apenas beata no século XVIII, Rita de Cássia não poderia receber culto no Rio de Janeiro sem privilégio especial. No entanto, a questão do padroado particular da família Nascentes Pinto ficaria irresoluta mesmo depois da morte do prelado carioca em 1721, assim como do falecimento de dom Manuel por volta de 1731 (cf. TUPPER, 1966, p. 14). Neste ínterim, porém, o destino do Largo diante da igrejinha já estaria determinado por Ayres de Saldanha, governador do Rio de Janeiro entre 1719 e 1725. O cemitério de Santa Rita Lugar de “passagem” Segundo Vieira Fazenda (2011, v. 1, p. 426-427), “ainda em 27 de maio de 1722 (documento do Arquivo Público) o rei mandava o governador informar o pedido do Cabido, sede vacante, para se instituir no Rio de Janeiro, um cemitério exclusivo de escravos”. Tal cemitério, instalado no Largo de Santa Rita, seria destinado aos pretos novos, isto é, os “escravos que morriam após a entrada dos navios na Baía de Guanabara ou imediatamente depois do desembarque, antes de serem vendidos”23. Consta que então o lugar era uma área pantanosa, de charcos, mangues e alagadiços, tanto que o Morro de São Bento, pouco mais ao norte, chegava a ficar ilhado em tempos de cheia (FAZENDA, 2011, v. 5, p. 663); ao

23

Prefácio de José Murilo de Carvalho a PEREIRA, 2007 (p. 9).

50 que parece, vinha mesmo sendo utilizado, desde o século XVII, por ser desabitado, para enterramentos de escravos batizados24. Com efeito, poucos eram os negros trazidos pagãos ao Brasil; os que assim chegavam, principalmente da região da Costa da Mina, eram imediatamente evangelizados. Com o aumento da população, o início do tráfico negreiro no século XVII e os surtos de mortandade, fizera-se necessária a adoção de pedaços de terra maiores, pois os cemitérios já não comportavam o grande número de sepultamentos. Júlio César Pereira (2007, p. 36-37) apresenta um elenco dos campos santos destinados aos marginalizados: A vida rude na Colônia, tanto de colonos como de escravos, estava entregue nas mãos do serviço, praticamente voluntário, do hospital da Santa Casa da Misericórdia, que havia sido fundada em 24 março de 1582, no Rio de Janeiro, pelo padre José de Anchieta. Ao lado do hospital, em terreno contíguo, foi erguido um cemitério para o sepultamento das pessoas que lá morriam, os injustiçados e escravos; o de Santo Antônio, que estava sob os cuidados dos Franciscanos, onde é hoje o Largo da Carioca, e que também sepultava escravos; “o dos pretos novos, no antigo Largo de Santa Rita, onde até 1825 houve um cruzeiro”; e o dos mulatos, que se situava no Campo do Rocio e depois Largo de São Domingos, já “desaparecido”. A estes dois últimos, Cruls chamou de “mais ou menos clandestinos”, uma vez que os seus corpos eram deixados “à flor da terra”.

Interessaria perquirir o motivo principal da criação do cemitério de Santa Rita. É provável que tenha sido justificado pelo aumento demográfico do Rio de Janeiro, que dobrou para 25.000 pessoas sua população urbana apenas durante a primeira metade do século XVIII; no mesmo período, o porto carioca recebeu mais de 6.000 escravos por ano, destinados às regiões meridionais da Colônia (cf. FRAGOSO & alii, 2007, p. 38). No entanto, consta que o cemitério do Largo da Carioca, 57 anos mais antigo que o de Santa Rita, tivera relação com o ciclo variólico de meados do século XVII, que dizimara cerca de 20.000 escravos no Brasil: Por causa desses surtos, os franciscanos constroem em 1665 no Rio de Janeiro, no atual Largo da Carioca, o primeiro cemitério para sepultamento de escravos índios e negros, cujos cadáveres soíam ser abandonados nas ruas. Afora a eventual caridade cristã, a medida, imitada pela Câmara de Luanda, se guiava pela prática profilática que atribuía a epidemia de varíola às emanações dos corpos putrefatos. Até pouco tempo atrás o chão do Rio de Janeiro não havia esquecido da mortandade, e ossadas da época ainda surgiam à flor do solo na década de 1950, quando a prefeitura fazia obras no Largo da Carioca. (ALENCASTRO, 2008, p. 131)

24

Cf. IPHAN. Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. 6ª S.R., Módulo I, Rio de Janeiro I, Igreja de Santa Rita, p. 6.

51 Por aquela época, o sepultamento de escravos cristãos — assim como o dos pobres e dos fiéis não vinculados a irmandades — era feito no adro das igrejas, já que o interior dos templos era reservado pelas pessoas de maior prestígio, que inclusive adquiriam túmulos privados e perpétuos, para si ou para seus familiares. Tornou-se lugar-comum afirmar que a preferência por covas próximas ao altar-mor advinha da crença em uma maior “possibilidade de salvação” para as pessoas ali sepultadas, o que não é exato à luz da escatologia cristã. Na verdade, além do status, tal localização permitiria uma maior proximidade às relíquias dos mártires e santos, que então era habitual depositar sob o altar25; portanto, a esperança era a obtenção de mais frequentes sufrágios, coisa que outros fiéis almejavam obter pedindo para serem sepultados próximos à pia de água benta ou junto à porta de entrada da igreja (cf. SILVA, 2003, p. 56-57). Avalia Cláudia Rodrigues (1997, p. 224): As igrejas do Rio de Janeiro foram, até 1850, […] o “cemitério cristão”. Nelas, os mortos residiam em urna relação de proximidade com os vivos que as frequentavam. Esta familiaridade entre vivos e mortos foi urna característica essencialmente cristã, surgida […] ainda no final da Antiguidade, contrariando a antiga repulsa aos mortos.

Não obstante, ao descrever o sepultamento dos escravos, Gilberto Freyre (2006, p. 527) tece uma dura crítica à falta de espírito cristão em consideráveis setores da sociedade colonial brasileira: Alguns senhores mandavam dizer missa por alma dos escravos de estimação; enfeitavam-lhes as sepulturas de flores; choravam com saudade deles como se chora com saudade de um amigo ou de um parente querido. Mas havia também muito senhor bruto. E na cidade, com a falta de cemitérios durante os tempos coloniais, não era fácil aos senhores, mesmo caridosos e cristãos, darem aos cadáveres dos negros o mesmo destino piedoso que nos engenhos. Muitos negros foram enterrados na beira da praia: mas em sepulturas rasas, onde os cachorros quase sem esforço achavam o que roer e os urubus o que pinicar. Maria Graham, na praia entre Olinda e Recife, viu horrorizada um cachorro desenterrar o braço de um negro. Segundo Mrs. Graham, nem mesmo sepulturas rasas se davam aos “negros novos”: estes, atados a pedaços de pau, eram atirados à maré. É um ponto, esse, em que se pode acusar a Igreja, os padres e as Misericórdias no Brasil de não terem cumprido rigorosamente seu dever.

A instalação do cemitério junto a Santa Rita traz consigo muitas indagações. Primeiramente, de índole urbana: O cemitério ocupou o Largo de Santa Rita, que fica adiante da entrada, e o adro lateral da igreja? As informações coletadas não são concludentes: 25

Costume apoiado em 2Rs 13,21; Ap 6,9.

52 … no antigo sítio de Valverde (hoje Largo de Santa Rita), nos terrenos que ficavam entre o antigo fosso ou vala e a testada da cerca dos beneditinos, a qual findava no depois Beco de Gaspar Gonçalves, dos Cachorros e hoje Travessa de Santa Rita [atualmente, Alcântara Machado], onde por muito tempo existiu um jogo de bola. (FAZENDA, 2011, v. 1, p. 427)

Por outro lado, terá havido alguma ligação entre a fábrica da igreja de Santa Rita e o cemitério de pretos novos? O fato de que não se tenha construído duas torres, como era costume no caso das igrejas matrizes (OLIVEIRA, 2008, v. 3, p. 25), seria justificado pela presença do cemitério na contigua Rua do Ourives (Figura 7)? Com efeito, há testemunhos de que a partir de 1765 mandaram abrir covas mesmo em plena rua. Outra questão é como se articulava o campo santo com o entorno, haja vista que o palácio episcopal lhe ficava extremamente próximo e a partir dali se fez a expansão urbana para o subúrbio. Enquanto não se faz um levantamento arqueológico da área, muitas destas questões permanecerão sem resposta, embora seja possível que a persistência ainda hoje de parte do

Figura 7, A e B: Desenho a bico de pena, 1825 (Coleção Cândido de Paula Machado). Rua do Ourives (atual Miguel Couto), fundos de Santa Rita. A foto é do mesmo lugar.

53 Largo de Santa Rita em região tão adensada do Rio de Janeiro se deva inicialmente à existência do cemitério naquela área. As crônicas silenciam o ocorrido até meados do século, exceto para referir em 1741 os atritos entre a Mitra e Inácio, filho herdeiro dos Nascentes Pinto, e para informar que, no ano seguinte, a Irmandade de Santa Rita “obteve a respectiva licença para a exposição do Santíssimo Sacramento em aquela solenidade”26, a saber, 22 de maio, dies natalis da padroeira. No período sucederam-se na sé carioca três bispos27, o último dos quais criaria a freguesia de Santa Rita a 31 de janeiro de 1751 e a delimitaria a 10 de maio de 1753, desmembrando-a da circunscrição de Nossa Senhora da Candelária28. Simultaneamente, criaria a freguesia de São José, desmembrada da de São Sebastião do Morro do Castelo. Da ereção da matriz ao fim do cemitério Como a divisão territorial das dioceses em freguesias ou paróquias servia igualmente à Igreja, à polícia e à municipalidade, … o aumento da população e da cidade levou o bispo a representar ao rei pedindo a criação de duas freguesias, além da do curato da Sé e da Candelária; em 9 de novembro de 1749 atendeu-se à requisição do bispo, que não só devia escolher as igrejas, que provisoriamente serviriam de matriz, precedendo o beneplácito dos donos ou padroeiros, como marcar os limites das freguesias. (AZEVEDO, 1877, v. 1, p. 166)

Pode parecer estranha a referência feita a supostos padroeiros; contudo, explica monsenhor Pizarro (1753-1830) em suas Memórias Históricas do Rio de Janeiro (1822, v. 5, p. 66-67): O Tribunal da Mesa da Consciência, e Ordens de Lisboa […] não ignorava, nem podia ignorar, que só o Senhor Grão-Mestre das Ordens Militares [o Rei de Portugal] é o Padroeiro das igrejas fundadas em terras das mesmas Ordens, como são todas as do Ultramar; pois que o Padroado das Milícias tem natureza dos bens da Coroa […]: mas, não obstante essa ciência, se ingeriu […] a cláusula do consentimento dos Padroeiros, supondo haverem alguns, por Graça, e privilegio particular, que sob esse título pudessem contrariar o novo destino das igrejas, de cuja objeção se originassem algumas controvérsias.

26

ARQUIVO DA CÚRIA METROPOLITANA DA ARQUIDIOCESE DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO. Op. cit., p. 1.

27

Antônio de Guadalupe (1725-1739), João da Cruz Salgado de Castilho (1739-1745) e Antônio de Nossa Senhora do Desterro Malheiro (1745-1773). 28 A sede

da primeira paróquia da Várzea fora escolhida em 1634: a capela de Nossa Senhora da Candelária, construída por um casal de espanhóis a título de ex-voto por terem sido salvos de um naufrágio.

54 Com efeito, já tinha havido precedentes de padroado particular no Rio de Janeiro. Em 1655, fora concedido à Irmandade de São José o placeat real para o padroado sobre a respectiva igreja (FAZENDA, 2011, v. 4, p. 140). E o bispo Dom Antônio de Nossa Senhora do Desterro Malheiro declarou, em Provisão de 15 de junho de 1750, que competia ao governador Gomes Freire de Andrada, conde de Bobadela, o direito de Padroeiro da capela de Nossa Senhora do Desterro e do convento de Santa Teresa, o que lhe conferia a regalia do padroado, cujo privilégio passaria aos seus sucessores. Explica Pizarro (1822, v. 5, p. 163): Antes do Concílio de Trento, tinham os Bispos a livre faculdade de permitir esse privilégio; mas depois dos decretos referidos no Cap. XII, Seção XIV de Reforma, e Cap. IX de Reforma, Seção XXV, que ab-rogaram quase todos os iurapatronatus, quæ non consisterent ex fundatione, vel dotatione, vel ex inmemoriali præscriptione, vel ex aliis modis generali lege comprobatis, privilegia huiusmodi sublata videntur. […] Devendo pois o R. Bispo executar os Decretos do Concílio, e quando muito, fazer conhecer a Gomes Freire por simples benfeitor, em razão das suas diligências nas obras da igreja e convento […]; foi contra eles, e muito mais, não tendo faculdade do Senhor Grão-Mestre das Ordens Militares para declarar padroeiros das igrejas edificadas nas terras do padroado das mesmas Ordens, outro algum, que não seja o Grão-Mestre delas.

Daí que Inácio Nascentes Pinto prosseguisse tenazmente suas demandas com a Mitra, requisitando a confirmação do padroado da igreja de Santa Rita. A querela teria levado dom Antônio do Desterro a ameaçar Inácio de excomunhão, o qual assim se viu obrigado a ceder o templo, embora mantendo a pendenga longos anos nos tribunais. Em 1753, a causa ficou resolvida de forma inusitada: Inácio caiu gravemente doente: paralítico, surdo e afônico. Fez à Santa Rita a promessa de encerrar o litígio em caso de cura, o que ocorreu quarenta dias após. Tendo exigido a seu filho Antônio que renunciasse perpetuamente à demanda, cumpriu a promessa e renunciou ao padroado, o que não foi óbice para que seu corpo, assim como os de seus pais, permanece até hoje enterrados na capela-mor. No mesmo ano foi instituída a Irmandade do Santíssimo Sacramento, que passou a dividir com a de Santa Rita o cuidado da igreja, viabilizando a execução de uma série de obras para dar ao templo uma aparência mais moderna, pois sua fachada branca com cunhais em pedra era um típico barroco jesuítico. Datam dessa época o frontão de linhas sinuosas, estampado de arabescos e motivos florais, o que lhe conferiu ainda mais verticalidade, e o coroamento bulboso da torre-sineira em arcada dupla. Durante o lustro seguinte foram

55 executados a talha rococó da nave e da capela-mor, de autoria não identificada. Uma nova imagem de Santa Rita — que está lá até hoje — foi entronizada em 1765. Em 1763, a Irmandade do Santíssimo Sacramento adquiriu uma série de casas na Rua das Violas para a ampliação da sacristia, sobre a qual se instalou o consistório, no segundo piso. A parte posterior da igreja de Santa Rita foi interligada às dependências da irmandade, onde também se instalou o consistório da Irmandade de São Miguel e Almas. O inventário da igreja organizado pelo IPHAN (p. 7) conta que, nesse mesmo ano, … na sacristia, sob o arco da primeira porta lateral esquerda, encontra-se um antiquíssimo poço, dito milagroso, cujas águas teriam potencialidades curativas, principalmente para os olhos. Já no início do século XVIII, era costume uma grande e constante romaria de fiéis vindos em busca de cura; muitos, de muito longe, pois a fama do poço ultrapassava as fronteiras da Paróquia. O poço foi fechado ao público no ano de 1763 para a colocação de uma escada, em pedra, que dá acesso ao consistório da Irmandade do SS. Sacramento, no segundo andar. Atualmente, o antigo e famoso poço, com profundidade aproximada de cinco metros, está encoberto por um simples armário, construído no lugar da antiga porta.

Os demais arredores também experimentaram melhoramentos: em 1758 foi erigida a capela de São Joaquim no final da Rua do Curtume, que passou a se chamar Rua Estreita de São Joaquim. Em 1763 foi aberta a Rua Larga de São Joaquim, ligando a mesma capela ao interior. Ambas as vias, a Larga e a Estreita, viriam posteriormente a ser unificadas para constituir a atual Avenida Marechal Floriano. Por outro lado, o cemitério de pretos novos já se manifestava exíguo. Ali estava erguido um cruzeiro pelas almas dos escravos, com a finalidade de chamar a atenção dos cristãos transeuntes em demanda de sufrágios, embora “quantos cadáveres de negros novos foram aí, durante anos, sepultados, é hoje difícil dizer” (FAZENDA, 2011, v. 1, p. 427). Quando, por volta de 1769, o vice-rei Marquês do Lavradio (1769-1779) ordenou a transferência do mercado de escravos da Rua Direita (atual Primeiro de Março) para a Rua do Valongo (hoje Camerino), o campo santo foi junto para a região da Saúde. As primeiras propostas de implantação de cemitérios externos surgiram trinta anos depois, mas apenas em 1850 a administração municipal do Rio de Janeiro proibiria definitivamente as inumações nas igrejas, devido a uma epidemia de febre amarela que atingira todos os extratos sociais (cf. SILVA, 2003).

56 A primeira fábrica rococó Pioneirismo anônimo Do eventual retábulo barroco da capela anterior à feitura da igreja definitiva nada se sabe. Mas a talha que forra o interior da igreja de Santa Rita (Figura 8) — manufaturada entre 1753 e 1759 (OLIVEIRA, 2003, p. 188; cf. FAZENDA, 2011, v. 4, p. 142) — inaugura uma nova fase da arte nacional em que foram preferidos elementos esculpidos menos rebuscados. Seria possível atribuir ao preço das folhas de ouro a decisão de dourar apenas as arestas das folhas de acanto, os frisos das colunas e outros poucos elementos entalhados. Ao mesmo tempo, grandes superfícies eram deixadas apenas pintadas de branco, sem forração; e faces de querubins são preferidas a anjos de corpo inteiro. Esta economia ocasiona uma aparência mais alegre e elegante, em que a douração destaca os detalhes de forma criativa. Eis o rococó, “estilo libertário por excelência, não portador de ideologias ou teorias artísticas ortodoxas, […] apto a absorver todo tipo de influências, incluindo a do barroco religioso” (OLIVEIRA, 2003, p. 296).

Figura 8: Interior da Matriz de Santa Rita (foto de Mateus Rosada, 2014).

57 Na igreja de Santa Rita sobressaem duas invenções operadas possivelmente pelos próprios entalhadores de sua oficina: a primeira é a decoração ao arco cruzeiro (Figura 9): Tanto a tarja quanto as aletas foram monumentalizadas para adaptação às dimensões do arco cruzeiro, recebendo as últimas requintado desenho rocaille, assim como os ornatos em talha dourada, aplicados na face interna das pilastras e no intradorso do arco. Essa primorosa composição ornamental, que além de possuir forte impacto visual tem o mérito de integrar visualmente as decorações da nave e da capela-mor, foi retomada no arco cruzeiro de outras igrejas, notadamente Mãe dos Homens, Lapa dos Mercadores, Ordem Terceira do Carmo e Santa Cruz dos Militares, transformando-se em marca distintiva do rococó religioso do Rio de Janeiro. (OLIVEIRA, 2003, p. 189)

Figura 9: Destaque para o arco cruzeiro de Santa Rita. A foto (FERREIRA, 2000) mostra a capela-mor sem o altar coram populo acrescentado pela reforma litúrgica pós-conciliar.

58

Figura 10: Retábulo principal dedicado à Santa Rita. O altar que está em primeiro foi introduzido com a reforma litúrgica pós-conciliar.

A outra inovação consiste no modelo dos cinco retábulos, a saber: o do altar-mor, principal (Figura 10), e os quatro da nave, secundários (vide Apêndice A). Esses retábulos laterais, inscritos em nichos de pequena profundidade, são: o de São Miguel Arcanjo, pertencente à Irmandade de São Miguel e Almas; o do Espírito Santo e de Sant’Ana Mestra, último a ser construído, pertencente à Irmandade do Divino Espírito Santo; o de Nossa Senhora das Dores (anteriormente de Nossa Senhora de Loreto), pertencente à Irmandade do Santíssimo Sacramento; e o dedicado à Nossa Senhora da Graça, pertencente à própria paróquia. Assim os comenta Myriam Andrade de Oliveira (2003, p. 190):

59 As colunas retas continuaram, portanto, vigorando nos retábulos do Rio de Janeiro, paralelamente às colunas torsas, introduzidas por Mestre Valentim, a partir de 1770, tendo permanecido na talha carioca até época bem tardia, como atestam os conjuntos do Convento de Santa Teresa, Nossa Senhora de Bom Sucesso e Santa Luzia, entre outros.

As colunas torsas com guirlandas do altar-mor (Figura 11) parecem contradizer afirmação de que esse modelo de coluna só foi empregado no Rio de Janeiro a partir de 1770. Isto exigiria contestar a datação oferecida pela historiografia, segundo a qual toda a obra de talha de Santa Rita teria sido concluída até 1759. Concomitantemente, na composição da talha também existem inconsistências tipológicas, identificadas por Sandra Alvim (2014, p. 100), que não se explicam pelas fontes documentais29. De qualquer modo, a de-

Figura 11: Coluna torsa do altar-mor.

coração parece conservar sua unidade estilística original. Por isso, deve-se reconhecer que escola carioca do rococó religioso necessita “ainda de pesquisas complementares para definição de tipologias, filiações e autorias, que constituem o campo específico da história da arte” (OLIVEIRA, 2003, p. 299).

29

Estas questões serão tratadas no capítulo 3.

60 O Largo de Santa Rita, ontem e hoje A igreja de Santa Rita sofreria reformas importantes durante o século XIX. A primeira foi em 1818, quando se criaram as catacumbas da Irmandade do Santíssimo Sacramento, ao longo da Rua Teófilo Otoni; após a proibição dos enterros intramuros, ali se instalou um armazém. A segunda intervenção significativa ocorreu em 1870, quando a portada barroca original foi trocada por uma neoclássica de lioz (Figura 12) e a antiga talha foi pintada e dourada. Todas os demais reparos e modificações (passadiço das tribunas, novo assoalho,

Figura 12: Atual portada da igreja de Santa Rita.

alargamento das janelas) não afetaram substancialmente o edifício e suas características originais (cf. FAZENDA, 2011, v. 4, p. 142). A proximidade do palácio episcopal no Morro da Conceição (Mapa 2) supunha uma fonte de preocupação para os sineiros da igreja, obrigados a saudar o bispo sempre que passava pelo Largo de Santa Rita com um repicar dos sinos cuja inscrição é célere: “De Santa Rita fui, de Santa Rita sou; o sr. capelão-mor me reformou”. À distância de uma quadra ficava a cadeia do Aljube, criada em 1733 por dom Antônio de Guadalupe; servia de prisão eclesiástica para os clérigos briguentos que o austero prelado não conseguia reconduzir ao caminho da caridade cristã. Com a chegada da Corte em 1808, tornou-se cárcere comum até 1840. Sendo a cadeia transferida para a Rua Frei Caneca nesse ano, o Aljube foi sucessivamente Tribunal do Júri, cortiço e, atualmente, é um estacionamento. Os sinos da igreja também dobravam para anunciar a justiça quando os condenados à morte eram conduzidos do Aljube à forca armada nas imediações — ora na Prainha (atual Praça Mauá), ora no Largo do Capim, ora no de São Domingos (ambos desaparecidos com a construção da Avenida Presidente Vargas). Os que seriam justiçados faziam suas rezas e recebiam as consolações

61

Mapa 2: Detalhe do Mapa Arquitetural da Cidade do Rio de Janeiro, 1874 (Acervo AGCRJ). Vê-se o Largo de Santa Rita, e a rua do Ourives (atual Miguel Couto), que dava acesso à ladeira do então Palácio episcopal (atual Major Daemon).

derradeiras em Santa Rita antes de padecerem; daí que a igreja fosse chamada capela dos malfeitores (MORALES, 2000, p. 483). No mesmo ano em que a cadeia foi transferida, em 1840, um chafariz com água da Carioca (Figura 13) foi encomendado para ocupar o lugar do já desaparecido cruzeiro de mármore da necrópole do Largo de Santa Rita. O tanque era octogonal, composto de quatro corpos sobrepostos, e possuía em seus ângulos externos fradinhos com mastro e lampiões de azeite.

Figura 13: Largo de Santa Rita, vinheta de Thomas Ewbank, 1846 (Life in Brazil; or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. Nova Iorque: 1856, p. 312).

62 Esta fonte foi a primeira das instaladas na cidade para atender às necessidades higiênicas em face das epidemias mortíferas. O ministro do Império Assis Coelho relatava então à Assembleia Legislativa30: Encomendou o governo para a Inglaterra um encanamento de chumbo da extensão de 3.290 pés ingleses, pondo à disposição do nosso Encarregado de Negócios, em Londres, a quantia de 8:000$000 para aquela despesa.

A fonte, que pouco mais adiante seria substituída por uma bica, é a que aparece no famoso quadro de Eduard Hildebrandt, datado de 1844 (Figura 14). Nele distinguem-se à esquerda as torres da Candelária, e as de São Pedro dos Clérigos à direita. Uma procissão caminha pela praça, evocando o espetáculo que costumava impressionar viajantes como o austríaco Johann Emanuel Pohl, que esteve no Brasil entre 1817 e 1821 e registrou as festas litúrgicas da cidade no livro Reise im innern von Brasilien (1832)31.

Figura 14: Eduard Hildebrandt, Santa Rita, 1844.

30

COELHO, Francisco Ramiro de Assis. Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na seção ordinária de 1840, p. 60.

31

POHL, Johann Baptist Emanuel. Viagem ao interior do Brasil. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1951.

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Mapa 3: Detalhe do mapa da Comissão Construtora da Avenida Central, 1904 (Arquivo do Patrimônio da União no Ministério da Fazenda — RJ). Sobreposição do novo arruamento e indicação dos lotes destruídos.

Durante as transformações urbanas promovidas pelo Prefeito Pereira Passos em 1904 (Mapa 3, Figura 15), a igreja quase foi destruída, mas graças à intervenção de engenheiro Paulo de Frontin, salvou-se a matriz e manteve-se o seu Largo, embora reduzido: “não foi atingida, porém, pela necessidade dos alargamentos a vetusta igreja paroquial de Santa Rita, para a qual nunca houve impossíveis” (FAZENDA, 2011, v. 4, p. 137). Diante dela se abriu a Avenida Marechal Floriano, e mesmo a bica deixou de existir. Como ironizou Vieira Fazenda (2011, v. 4, p. 136), “se algum antigo carioca ressuscitasse, certamente não reconheceria hoje o antigo sítio de Valverde”. Quanto aos escravos sepultados em Santa Rita e no Valongo, eles “têm sido despertados do eterno sono, acidentalmente, pelas alavancas, picaretas e alviões dos trabalhadores da City Improvements, da Companhia do Gás, das Obras Públicas e ultimamente da Telefônica” (FAZENDA, 2011, v. 1, p. 435).

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Figura 15: Obras urbanísticas no antigo Largo de Santa Rita, 1904 (Acervo AGCRJ). Vê-se ao lado do quiosque o esguicho de ferro que substituíra a antiga fonte.

O tombamento de 1938 cristalizou tantas outras histórias e memórias ausentes. Oxalá os prognósticos de Maria Pace Chiavari (1998, p. 13-14) para o lado de lá do Morro da Conceição também se apliquem ao lado de cá, para o Largo de Santa Rita: A praça é o lugar da ausência e é, ao mesmo tempo, o conjunto das coisas construídas que o definem. Os vazios da cidade são uma presença essencial. […] A recuperação do Largo de São Francisco da Prainha constitui uma das primeiras atuações na área portuária com o objetivo de experimentar uma estratégia baseada em intervenções concretas, embora modestas e pontuais, capazes de mostrar, através dos resultados obtidos, novas táticas para quebrar o isolamento de certos espaços urbanos, abandonados e divididos entre as suas diferentes partes. A vitalidade comercial readquirida pelo Morro da Conceição, e a parte plana, separada do porto pelo sistema viário, a partir de uma recuperação que leve em conta a história desse bairro.

65 É claro que se faz necessário matizar a ideia de uma “perda da memória” coletiva, entendendo o processo histórico como deslocamento ou ressignificação. Por enquanto, porém, o Largo de Santa Rita apenas consiste, como diz a autora, em um lugar da ausência. Mais do que nunca, lutar pelos lugares de memória torna-se uma exigência para os artífices do futuro.

Figura 16: Como seria o Porto do Rio em 1817 visto do Norte, segundo Guta (Carlos Gustavo Nunes Pereira). Santa Rita aparece ao meio, entre os Morros de São Bento e Conceição, atrás do bairro da Prainha (atual Praça Mauá).

Mapa 4: Mapa atual do Centro do Rio de Janeiro.

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Mapa 6: Rio de Janeiro, 1713 (sem escala).

Mapa 8: Rio de Janeiro, 1812 (sem escala).

Mapa 5: Rio de Janeiro, 1750 (sem escala).

Mapa 7: Rio de Janeiro, 1946 (sem escala).

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1.3 Corpo barroco, alma pombalina, espírito rococó A beleza dos corpos não consiste na sombra da matéria, mas na claridade e graça da forma; não na massa obscura, mas numa espécie de harmonia luminosa; não num peso inerte e estúpido, mas no número e na medida conveniente. (Marcilius Ficinus Florentinus, Carta a Giovanni Cavalcanti)

Cultura material derivada da Reforma tridentina É ponto pacífico que antes da chegada dos colonizadores não havia no Brasil civilização artística. Segundo o historiador Germain Bazin (1983, p. 217), a arte colonial brasileira — salvaguardada a eventual contribuição negra e indígena — “está mais próxima daquela da metrópole, embora as várias províncias da Colônia se distingam entre si e das escolas portuguesas mediante certas fórmulas próprias”. Não há consenso entre os autores quanto a contribuição de cada grupo étnico; o estudo da arte colonial comumente se apoia na descrição dos intercâmbios entre centro e periferias, acesso a repertórios normativos e adaptações locais. A transculturação levanta questões importantes sobre anacronismo, exotismo, qualidade e vulgarização (cf. BRAZÓN, 2001, p. 238-239). Por conta da escassez de informações, a análise formal foi o caminho natural de muitos estudiosos para sortear o anonimato virtual da arte colonial (cf. BAZIN, 1983, p. 47 e 156). Exceção é a escola arquitetônica de Minas Gerais, que consiste na “única que torna possível seguir-se com detalhes a evolução das formas e filiações dos templos, graças às numerosas indicações datadas, assim como à precisão quanto à autoria das obras, garantida pela documentação conservada” (BAZIN, 1983, p. 15). Apesar de sua forte matriz europeia, o barroco americano comumente se concebe como fenômeno regional. Os autores disputam se nessa afirmação há uma tentativa de valorizar o nativo com o rótulo europeu ou se nela está oculto um verdadeiro desprezo pelo elemento autóctone (cf. BRAZÓN, 2001, p. 237). Evitando a questão, mas enfocando o gênio português preponderante na arquitetura barroca brasileira, impõe-se uma questão fundamental: em que medida se pode afirmar que a matriz estética trazida pelos colonizadores ao solo brasileiro era oriunda da Reforma católica?

68 Ao se propor uma possível “genealogia” da criação artística, é pertinente recordar um alerta de Marc Bloch: o historiador francês denunciava uma “obsessão das origens” (BLOCH, 2002, p. 56), isto é, o equívoco de confundir começo, filiação e causa, assim como a pretensão de retomar passivamente elementos anteriores como se fossem uma “herança” pretérita ou uma “influência” no sentido biológico. No caso brasileiro, não pôde mesmo ter havido passividade na reprodução dos paradigmas europeus. Como afirmava Jérôme Baschet (2006, p. 32): Uma visão histórica mais global deveria, inevitavelmente, reconhecer o peso de uma dominação colonial surgida da dinâmica ocidental, que conduz à transferência e à reprodução de instituições e de mentalidades europeias, mas sem ignorar que uma realidade original, irredutível a uma repetição idêntica, toma forma nas colônias do Novo Mundo. Tratar-se-ia, então […] de articular de maneira global sociedade medieval e sociedade colonial e de captar a dinâmica histórica que as une, em um processo em que se misturam reprodução e adaptação, dependência e especificidades, dominação e criação.

O esplendor do culto cristão Feitas estas observações, torna-se possível considerar em sua justa medida os antecedentes e as consequências da Reforma tridentina, com seu impacto na arte e cultura europeias. Com efeito, o decorrente estilo decorativo visava à produção de uma atmosfera com intensos contrastes e de exaltação mística: suas talhas douradas e policromadas alimentam o fervor, despertam a devoção e elevam à contemplação; pinturas e imagens são postas a serviço da persuasão religiosa, da imaginação piedosa e da ilusão transformante. Como sentenciou Affonso Ávila (1997, p. 19), “a arte clássica mostra, a arte barroca demonstra”. Quando o Concílio de Trento reafirmou a doutrina sobre a Eucaristia frente à contestação protestante, o corolário foi proclamar a legitimidade do esplendor com que a Igreja sempre cercara o sacrifício eucarístico. Isto não implicava a definição de uma arte apropriada para o culto; apenas propugnava um estilo que fosse heurístico, ou seja, catequético e pragmático, emocionante e dramático32.

32 Tal

orientação segue vigente na Igreja: “que a formação na via pulchritudinis esteja inserida na transmissão da fé. É desejável que cada Igreja particular incentive o uso das artes na sua obra evangelizadora, em continuidade com a riqueza do passado, mas também na vastidão das suas múltiplas expressões atuais, a fim de transmitir a fé numa nova ‘linguagem parabólica’. É preciso ter a coragem de encontrar os novos sinais, os novos símbolos, uma nova carne para a transmissão da Palavra, as diversas formas de beleza que se manifestam em diferentes âmbitos culturais, incluindo aquelas modalidades não convencionais de beleza que podem ser pouco significativas para os evangelizadores, mas tornaram-se particularmente atraentes para os outros” (FRANCISCO, Exortação Evangelii gaudium, 24/11/2013, n. 167).

69 Sendo tal a natureza das pessoas que não se possa elevar facilmente a meditação das coisas divinas sem auxílios ou meios extrínsecos, nossa piedosa Mãe, a Igreja, […] se valeu de cerimônias como bênçãos místicas, luzes, incensos, ornamentos e outras muitas coisas deste gênero, por ensinamentos e tradição dos Apóstolos, com a finalidade de recomendar por este meio a majestade de tão grande sacrifício e excitar os ânimos dos fiéis por estes sinais visíveis de religiosidade e piedade à contemplação dos altíssimos mistérios que estão ocultos neste sacrifício. (CONCÍLIO DE TRENTO [ecumênico XIX], Seção XXII, 17/9/1562, Cap. V [DH 1746])

Indubitavelmente, tão solene ensinamento viria a produzir uma renovação do empenho artístico na construção das igrejas; contudo, os caminhos pelos quais princípios tão gerais calharam na nimiedade característica do barroco colonial são extremamente complexos e encontram-se fora do escopo desta dissertação, o que não impede alguma tentativa de periodização. Iconofobia protestante Martinho Lutero (1483-1546), após a fase inicial de crítica à Igreja Romana e a ulterior ruptura oficial, aprofundou as diferenças entre o protestantismo e o catolicismo resgatando as doutrinas anticlericais e antieucarísticas de John Wycliffe (1320-1384) e as subjetivistas Jan Hus (1369-1415), então já condenadas pelo Magistério eclesiástico33. Rejeitava, desta feita, a possibilidade de qualquer criatura ser feita por Deus instrumento da graça e, com isso, negava tanto a eficácia dos sacramentos quanto a cooperação salvífica dos Santos34. Andreas Rudolff-Bodenstein von Karlstadt (1486-1541) estendeu essa crítica ao uso de imagens no culto, eliminando-as dos templos da cidade de Wintemberg em 1522, com o que causou o desgosto do próprio Lutero, então refugiado no Castelo de Wartburg por não ter renunciado às suas teses na Dieta de Worms. As imagens eram indiferentes para Lutero, cuja “postura acerca da iconografia existente e suas tentativas de estabelecer orientações práticas para sua transformação foi cheia de contradições” (MICHALSKI, 1993, p. 36):

33 CONCÍLIO DE CONSTANÇA

(ecumênico XVI): 89ª sessão, 4/5/1415 (DH 1151-1155); MARTINHO V, bula Inter cunctas, 22/2/1418 (DH

1247-1279). 34

Vide a Confissão de Augsburg, XXI (1531), atribuída a Filipe Melanchton: “Do culto aos Santos os nossos ensinam que devemos lembrar-nos deles, para que imitemos sua fé e as boas obras conforme a vocação de cada um; assim o Imperador pode seguir, salutar e piedosamente, o exemplo de Davi, fazendo guerra aos turcos pela pátria. Pois ambos são investidos do ofício real. Entretanto, a Escritura não ensina a invocar os Santos ou lhes pedir auxílio; porque nos foi proposto um único Cristo mediador, propiciador, pontífice e intercessor”.

70 Também é verdade que elas são desnecessárias, e somos livres para tê-las ou não, embora seria melhor não tê-las. Não tenho preferência por elas. Uma grande controvérsia surgiu sobre o tema das imagens entre o Imperador e o Papa 35. O Imperador sustenta que ele tem autoridade para banir as imagens, mas o Papa insiste que elas devem permanecer, e ambos estão errados. Muito sangue foi derramado, mas o Papa apareceu como vitorioso e o Imperador perdeu. Porque tudo isso? Eles buscavam a obrigação naquilo que é livre e Deus não o pode tolerar. (LUTERO, Third Invocavit Sermon preached at Wittenberg in Lent, 1522)

Se a repulsa às imagens foram um problema marginal na Saxônia, o mesmo não se pode afirmar do sul da Alemanha e da Suíça. A partir de 1523, a atitude iconofóbica36 foi defendida, entre outros, por Leo Jud (1482-1542), Huldrych Zwinglio (1484-1531) e João Calvino (1509-1564), o que fez a sanha iconoclasta se estender à Genebra e à França dos huguenotes. Igualmente houve uma destruição geral de imagens na Inglaterra de Eduardo VI (1547-1553), assim como o Beeldenstorm nos Países Baixos (1566). “Como qualquer movimento de reforma, a iconoclastia se vê apoiada por um fervor belicoso, e o grito de união é o mais natural: abaixo os ídolos, as imagens sejam lançadas ao fogo”. Ainda assim, é verdade que “a iconoclastia não proscreve a arte. As decorações […] costumam ser substituídas por motivos vegetais ou animais […]. Porque estas imagens não incitam ao culto” (BESANÇON, 2003, p. 158). Contudo, a nova atitude iconoclasta tinha menos a ver com o resgate das origens cristãs do que com a afirmação de um novo modelo antropológico. Com efeito, se a reforma protestante passou a condenar as imagens, era porque propunha uma nova religião firmemente ancorada na relação direta e pessoal com Deus, mais ligada à Palavra ouvida, radicalizando a tese paulina de que “a fé procede da escuta” (Rm 10,7): A reforma religiosa foi, primeiro e acima de tudo, um forte revivalismo da pregação e o primeiro ato de qualquer comunidade que desenvolvia interesse por essas ideias era buscar um pregador para proclamar a “pura Palavra de Deus”. Não se acreditava ser suficiente ler tratados impressos, ou mesmo a Bíblia. O grande desejo era ouvir a Palavra. (WHITEHOUSE, 2000, p. 152)

35 36

Lutero se refere ao imperador Constantino V e ao papa Estêvão III, ambos do século IX, como se explicará mais abaixo.

O termo “iconofobia” pretende estabelecer diferenças de matiz com a iconoclastia bizantina e com a “aniconia” islâmica. Enquanto a iconoclastia foi uma heresia cristológica dos séculos VIII e IX, a iconofobia protestante foi consequência de pressupostos antropológicos propostos pelos reformadores. Por outro lado, a ausência de imagens no Islã corresponde a uma compreensão teológica radicalmente transcendente da divindade. Cf. MICHALSKI, 1993.

71 Ao mesmo tempo, os reformadores protestantes desconheciam a dinâmica joanina do “viu e acreditou” (Jo 20,8; cf. 11,40.45; 12,44s), ligada à Palavra visível. Tanto o “ouvir a Deus”, quanto o “vê-lo”, supõem a formação de alguma “imagem” interna (da paternidade divina, da providência divina, etc.), a qual, por mais abstrata que seja, é passível de experiência afetiva e interpretação intelectual. Por isso, o próprio Cristo afirma que Deus não pode ser visto nem ouvido através dos sentidos externos: “vós nunca ouvistes a sua voz, nem vistes a sua face” (Jo 5,37b). Interessante é que, para São Tomé, a fé lhe chegou pelo tato (cf. Jo 20,27s), que é o mais material dos sentidos externos: o único pelo qual se toca o objeto experimentado e ao mesmo tempo se é tocado por ele. Tal concepção protestante restritiva — denominada “iconofobia logocêntrica” por Harvey Whitehouse (2000, p. 155) — ocasionou um desacordo teológico cujos desdobramentos subsistem até hoje: O conhecimento da fé […] é apresentado pela Bíblia como escuta, aparece associado com o ouvido. […] A propósito do conhecimento da verdade, pretendeuse por vezes contrapor a escuta à visão, a qual seria peculiar da cultura grega. […] Mas tal suposta oposição não é corroborada de forma alguma pelos dados bíblicos: o Antigo Testamento37 combinou os dois tipos de conhecimento, unindo a escuta da Palavra de Deus com o desejo de ver o seu rosto. Isto tornou possível entabular diálogo com a cultura helenista, um diálogo que pertence ao coração da Escritura. […] Como se chega a esta síntese entre o ouvir e o ver? A partir da pessoa concreta de Jesus, que Se vê e escuta. (FRANCISCO, Encíclica Lumen fidei, 29/6/2013, n. 29 e 30)

Consequentemente, enquanto a evangelização católica na América esteve associada a um culto fortemente apoiado na imagem para propagar a fé entre a massa de iletrados, por outro lado, a nova “fé de alfabetizados”, dirigida ao aperfeiçoamento individual de cristãos cultos, levou a uma política etnocêntrica na colonização realizada pelas nações que se tornaram protestantes. Em especial nos países calvinistas, a reforma protestante varrera para longe os tesouros artísticos acumulados na Idade Média, o simbolismo religioso e destruíra o caráter litúrgico da cultura popular — o ciclo de festas e jejuns anuais e o teatro religioso. Não que a reforma protestante tivesse deliberadamente a intenção de secularizar a cultura; pelo contrário, desejava elevar o padrão do conhecimento e prática religiosos. Fizeram, no entanto, por meios totalmente intelectuais e racionais. A pregação assumiu o lugar da liturgia. A leitura da Bíblia, o lugar das imagens e simbolismo religiosos; o caráter comunal dos festivais medievais e peregrinações foram substituídos por um tipo individualista de piedade que era, contudo, 37

Para a relação entre o ouvir e o ver no Antigo Testamento, cf. 1Rs 10,6s; Jó 42,5; Is 29,18.

72 muito diferente do praticado pelo eremita ou asceta medieval, uma vez que inculcava o estrito cumprimento dos deveres sociais e econômicos. (DAWSON, 2014, p. 234-235)

Ora, a iconoclastia já tinha sido combatida pelos papas Gregório II (715-731) e Estêvão III (768-772), respectivamente em tempos dos imperadores Leão III Isáurico (717741), e de Constantino V Coprônimo (741-775), quando a Igreja oriental cedia às pressões do Estado Bizantino que pretendia usurpar as obras de arte eclesiásticas e ampliar a veneração à figura do imperador. Como até então as imagens cristãs tiveram função meramente docente, condenava-se o uso cultual que adquirira especialmente no Oriente. Segundo Constantino V, os ícones só seriam admissíveis se fossem consubstanciais ao modelo figurado; em outros termos, o imperador não reconhecia a semelhança do ícone para com seu modelo por ter nele uma participação deficiente. Após um período de paz, durante o qual o Concílio ecumênico de Niceia II (787) distinguiu os cultos de latria (λατρεία) e de dulia (προσκύνησιν)38, a perseguição iconoclasta retornou sob o imperador Leão V, o Armênio (813-820). A crise só terminaria a partir da regência de Santa Teodora (830 a 842) e com o IV Concílio ecumênico de Constantinopla (870)39. O pensamento medieval subsequente apenas consolidou esta doutrina. Nas Sentenças de Pedro Lombardo40, fartamente comentadas pelos Doutores41, aparecem reunidos os já tradicionais argumentos patrísticos. Por exemplo: Boaventura […] propôs que as imagens foram introduzidas em função da ignorância das pessoas simples, do entorpecimento das nossas emoções e dos lapsos da memória. Por extensão, ele asseverou que temos imagens: 1) para que os iletrados mais claramente sejam capazes de ler os sacramentos da fé nas esculturas e nas pinturas, como nos livros; 2) para que as pessoas que não se estimulam à devoção quando ouvem os feitos de Cristo, possam ao menos sentir-se estimuladas à devoção contemplando-o em figuras e pinturas, como se estivesse presente aos seus olhos corporais; e 3) para que vendo-as nos lembremos dos bens plasticamente apresentados a nós pelas virtudes dos Santos. (FREEDBERG, 1991, p. 163)

38 DH 601:

“Quanto mais frequentemente são eles contemplados nas imagens, tanto mais são levados à lembrança e ao desejo dos [modelos] originais os que os contemplam, e [movidos] a lhes tributar respeito e veneração [προσκύνησιν], sem que isto constitua uma verdadeira adoração [λατρείαν], que, segundo a nossa fé, é devida só à natureza divina…” 39

DH 653: “cânon 3: Determinamos que a sagrada imagem de Nosso Senhor Jesus Cristo, Libertador e Salvador de todos, deve ser adorada com a mesma honra que se dá ao livro dos santos Evangelhos”. 40 41

PEDRO LOMBARDO, Sententiarum libri quattuor, III, d. 9.

São TOMÁS DE AQUINO, Scriptum super Sententiis, lib. 3 d. 9 q. 1 a. 2 qc. 2 ad 3. São BOAVENTURA DE BAGNOREGIO, Commentaria in quatuor libros Sententiarum, lib. 3, d. 9, a. 1, q. 2, conclusio.

73 Com o ressurgir da nova iconoclastia, porém, a arte religiosa precisou ser outra vez defendida pelo Concílio tridentino, sete séculos depois do sínodo constantinopolitano: As imagens de Cristo, da Virgem Mãe de Deus, e de todos os outros santos, devem existir, principalmente nos templos, e a essas imagens deve ser dada a correspondente honra e veneração, não porque se creia que nelas existe divindade ou virtude alguma pela qual mereçam o culto, ou que se lhes deva pedir alguma coisa, ou que se tenha de colocar a confiança nas imagens, como faziam antigamente os gentios, que colocavam suas esperanças nos ídolos, mas sim porque a honra que se dá às imagens, se refere aos originais representados nelas, de modo que adoremos unicamente a Cristo por meio das imagens que beijamos e em cuja presença nos descobrimos, ajoelhamos e veneramos aos santos, cuja semelhança é espelhada nessas imagens. (CONCÍLIO DE TRENTO [ecumênico XIX], Seção XXV, 3 e 4 de dezembro de 1563, Decreto sobre a Invocação e Veneração às Relíquias dos Santos e das Sagradas Imagens)

Tais princípios orientadores, assaz genéricos, não impediram o nascimento de um padrão artístico relativamente homogêneo, o qual viria a ser chamado Barroco Católico: Assim, o século XVII viu a ascensão de uma nova arte religiosa que, por se tornar a linguagem artística corrente da Igreja, representou uma popularização de uma tradição renascentista mais aristocrática e moldou o gosto popular do mundo católico do México e Peru a Hungria e Polônia. […] Por tal razão, a época barroca criou uma nova unidade cultural baseada, como na Idade Média, em um fundamento religioso, porém não mais totalmente abrangente; procedia de uma sede mediterrânea em vez de um centro medieval no Norte da França. Não havia movimento semelhante na Europa protestante, devido ao divórcio entre arte e religião, e na medida em que o estilo renascentista penetrou na Europa Setentrional, preservou a tradição mais clássica da primeira Renascença. […] Essa capacidade da cultura barroca de assimilar estruturas estrangeiras é um dos seus traços característicos e a distingue nitidamente do estilo artístico e da cultura da área anglo-americana. (DAWSON, 2014, p. 226-229)

O novo estilo também foi denominado Realismo Eclesiástico porquanto abdicou do idealismo renascentista para retornar à piedade popular; e porque reteve o dramatismo maneirista, embora rejeitando-lhe os abusos subjetivistas: Seja desterrada completamente toda a superstição na invocação dos santos, na veneração das sagradas imagens e relíquias, afugente-se toda a ganância sórdida, evite-se também toda desonestidade, de modo que não se pintem nem adornem as imagens com formosura escandalosa nem abusem as pessoas, das festas dos santos, nem da visita às relíquias para conseguir propinas ou embriagar-se, como se o luxo e a libidinagem fossem o culto com que se devesse celebrar os dias de festa em honra dos santos. (CONCÍLIO DE TRENTO [ecumênico XIX], Seção XXV, 3 e 4 de dezembro de 1563, Decreto sobre a Invocação e Veneração às Relíquias dos Santos e das Sagradas Imagens)

74 Em suma, a orientação da Igreja Católica foi menos teológica e estética do que baseada na sua jurisprudência. Ademais, a aplicação do critério de conveniência das opções artísticas foi descentralizada e confiada à discrição dos ordinários locais: Finalmente, ponham os Bispos tanto cuidado e esmero neste ponto, que nada fique desordenado ou posto fora de seu lugar, ou de modo tumultuoso, nada profano, nada desonesto, pois é muito própria da casa de Deus a santidade. E para que se cumpram com maior exatidão estas determinações, estabelece o Santo Concílio que a ninguém seja lícito pôr ou permitir que se ponha qualquer imagem nua e nova em lugar algum, nem mesmo igreja que seja de qualquer modo isenta de modo a não possuir aprovação do Bispo. (CONCÍLIO DE TRENTO [ecumênico XIX], Seção XXV, 3 e 4 de dezembro de 1563, Decreto sobre a Invocação e Veneração às Relíquias dos Santos e das Sagradas Imagens)

Reação católica Ao se relacionar o Barroco com a contrarreforma, convém não perder de vista algumas etapas da formalização do novo cânone artístico, para cuja empreitada muitos teóricos vieram em auxílio do episcopado, aumentando o crivo da autoridade eclesiástica sobre o trabalho artístico. Com efeito: Embora os acadêmicos tradicionalmente encarem Trento como tendo um impacto negativo nas artes visuais, particularmente por sua condenação das descrições de “lascívia”, “beleza que estimula à luxúria” e “balbúrdia e bebedeira”, o Concílio foi de fato a mais ardente reafirmação da arte sacra em quase 800 anos. […] Não obstante, não houve nada nos decretos sobre estética ou estilo, o que pode ser constatado mais por sua função de inspirar os patrocinadores da Igreja na promoção da imaginária sacra, do que por sua influência direta sobre os artistas, a qual foi provavelmente insignificante. (BAILEY, 2012, p. 38)

Por um lado, surgiram tratados reacionários com sérias reservas à falta de pudor e de decoro da Renascença (cf. Due dialoghi degli errori de pittori, de Giovanni Andrea Gilio, 1564; De pictura sacra, de São Carlos Borromeu, 158242). Por outro, foi condenado o uso da mitologia (cf. De picturis et imaginibus sacris, pro vero earum usu contra abusos, do teólogo flamengo João Molanus, 1570). A disquisição sobre a melhor arte fez sua aparição mesmo na ópera Il Riposo do comediógrafo Raffaele Borghini (1537-1588). É de se notar que a ópera foi a grande criação cultural do período e inclusive a mais popular. Os aspectos visual,

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Em uma obra dez anos anterior, São Carlos Borromeu também acusava os templos renascentistas de plano centralizado de serem exemplos arquitetônicos oriundos de uma matriz pagã (cf. Instructionum fabricæ et suppellectilis ecclesiasticæ, Livro 1, capítulo 2).

75 passional e lírico da ópera encontravam na pompa litúrgica seu paralelo religioso (cf. BOUYER, 1955, p. 7). À semelhança do eventual controle que se poderia exercer sobre a publicação de livros nocivos à fé, nos tempos sucessivos ao Concílio de Trento também se especulou acerca da pureza adequada à iconografia cristã. Nesse sentido, Gabriele Paleotti (15221597), cardeal de Bolonha, “codificou reformas que os artistas já estavam realizando independentemente” (BAILEY, 2012, p. 39). Foi Paleotti quem qualificou as imagens renascentistas de “profanas” em seu inacabado Discorso intorno le imagini sacre e profane, de 1582: Nós desejamos frisar ao leitor que as diferenças entre imagens sacras e profanas podem ser concebidas de dois modos: com respeito à figura mesma e com respeito ao espectador. Uma imagem propriamente classificada como sacra, em termos naturais e formais, não pode de nenhum modo ser vista sob outra luz por qualquer espectador. Isto ocorre porque o observador possui um conceito muito diferente em sua imaginação daquele que teve o artífice: a serpente de metal feita por Moisés a mando de Deus foi uma coisa sagrada e misteriosa para uns, um ídolo para outros. Assim é com as imagens: uma imagem pode, com respeito à sua aparência exterior, ser tida por uns como religiosa e sagrada e, por outros, como ímpia e perversa como um ídolo, e ainda, por outros tolos, como uma figura profana que serve apenas para a pilhéria. […] Portanto, a mesma imagem produzirá diferenças variadas conforme os vários conceitos delas derivadas pelos observadores. (PALEOTTI, 2012, p. 83-84 [Livro I, capítulo 10])

Para o arcebispo, os ícones deveriam ser contemplados “com os olhos da veneração e com os olhos da recordação”, enquanto as imagens profanas deveriam ser “empregadas como uma arte teatral da apresentação para a encenação nostálgica dos ícones antigos” (BELTING, 2007, p. 60), o que de fato foi feito em várias cidades europeias. Enquanto os espaços interiores do barroco rechaçavam o reconhecimento do virtuosismo [renascentista] e dissimulavam com muita arte o espaço real das igrejas, o poder da imagem se vinculou à herança das imagens originais. Apesar de uma situação verdadeiramente museológica, os ícones mantiveram firme a recordação da ontologia da imagem sacra no meio de um novo entorno visual e artístico. (BELTING, 2007, p. 61)

Por fim, refletindo e consolidando o entendimento da época, o papa Urbano VIII (1623-1644) recolheu em seu magistério uma série de orientações disciplinares a fim de que “estas coisas apresentadas aos olhos dos fiéis não sejam desordenadas nem estranhas, mas

76 fomentem neles a devoção e a piedade”43. Um tratado subsequente, A ideia do Pintor, Escultor e Arquiteto, do crítico Giovanni Pietro Bellori (1613-1696), publicado em 1672, mesmo estabelecendo um cânone moderno para a arte clássica, ainda faz eco às orientações tridentinas quanto ao caráter pedagógico e retórico das imagens. No mesmo sentido, impressiona no século XIX ainda ler Moreira de Azevedo (1877, v. 1, p. 199-200): Em geral, as imagens das nossas igrejas não primam pela perfeição e beleza, e algumas há em que a arte muito teria que notar; as melhores são as antigas; entretanto há grande utilidade em ornar-se os templos com objetos primorosos de escultura e pintura que impressionem o cristão, e despertem a sua contemplação, e sentimento religioso. Exalta a imaginação, eleva o nosso pensamento até Deus a obra primorosa do artista, e assim como influi muito sobre a sensação, que deve produzir em nossa alma, a maneira por que é iluminado um corpo, assim também os ornatos, os imagens, as estátuas, os painéis, que ornamentam os templos atraem, despertam-nos veneração, alimentam nossa fé; em cada linha, em cada contorno, em cada florão de um trabalho artístico lê-se uma ideia, aviva-se um sentimento, e repete-se uma oração; o homem crê, ora e louva ao Senhor, que deu-lhe a inteligência, e ensinou-lhe a fazer da madeira e do granito objetos maravilhosos. Vêse, pois, quanto convém enriquecer os templos com maravilhas, que a arte pode produzir; além disto é nos templos que se lê a história de um povo, que se aprecia seu sentimento religioso e também sua civilização e moralidade.

A título de resumo, fiquem registrados os três principais fatores através dos quais Louis Bouyer (1955, p. 5-7) explica a mentalidade barroca: ressignificação da moda neopagã da Renascença; rejeição da sobriedade e do ascetismo tracionais do Medievo; e um espírito católico de corte reacionário. Para Henrique Antoun (1992, p. 5), “o barroco foi a última tentativa de salvar a razão teológica, que terminou por transformar-se em razão humana”; por isso, compreender o Barroco não constitui tarefa trivial. Gilles Deleuze (1991, p. 58-63), renunciando a explicá-lo e preferindo descrevê-lo, elencou seis características: a dobra como sua forma de expressão; a tensão entre o interior e o exterior que se distinguem a partir da dobra; o interior que eleva e o exterior que rebaixa; a desdobra como continuação das dobras, um redobrar; a textura como dobra da matéria; a matéria como condicionante paradigmático do modelo da dobra. Daí a exuberância de ornatos, o movimento, a dramaticidade, os contrastes, o propósito de impressionar e impor-se mediante forte apelo emocional. A verborreia deleuziana, encerrada em seu próprio “barroquismo” estético, parece de fato inapta para explicar o Barroco. Seu hermetismo característico, misto de experimentação literária disfarçada

43

URBANO VIII, Carta Sacrossanta tridentina, §1, 15/3/1642.

77 de filosofia e de panfleto cultural transmutado em crítica política, inspirou explicações recentes do mesmo jaez, que não foram mais felizes. De fato, parece mais fácil atribuir significados ao Barroco do que depreendê-los do estilo. Ao concluir este tópico sobre as raízes teológicas do Barroco, vem a propósito a apreciação de Christopher Dawson (2014, p. 225): Visto do ângulo protestante e do Norte, a cultura barroca parece ser uma versão secularizada do catolicismo medieval; do próprio ponto de vista, no entanto, representa, sim, a “de-secularização” da Renascença e a reafirmação do poder da religião e da autoridade da Igreja na vida social. Todos os recursos da arte, arquitetura, pintura, escultura, literatura, música foram postos a serviço do catolicismo, e se para o homem do Norte o resultado parece teatral e digno de um meretrício, isso não se deveu à falta de espiritualidade. Era, no entanto, uma espiritualidade diferente. Era apaixonada, extática, mística, que pouco tinha em comum com o sóbrio pietismo do protestantismo do Norte, mas intensamente vital, como vemos pelas vidas e escritos dos santos e místicos espanhóis do século XVI, iniciadores do grande movimento do misticismo barroco que assolou a Europa católica na primeira metade do século XVII.

Arte de crise, não crise da arte Entre o desafio evangelizador e os interesses nacionais Já antes do Concílio de Trento, Dom Manuel o Venturoso (rei de Portugal de 1495 a 1521) tomara a si a causa catequética no Novo Mundo lusitano, conforme o reconhecimento de direitos por parte de Júlio II (papa de 1503-1513). Não obstante, a ausência de um plano missionário integrado ao expansionismo marítimo e comercial frustrou o alcance dos primeiros esforços de cristianização. Desde a bula Ea quæ pro bono pacis, os reis portugueses mais aproveitaram os direitos do Padroado Ultramarino que cumpriram os deveres contidos nas disposições pontifícias, deixando irrealizado o ideal de um império universal católico; o documento papal, datado de 24 de janeiro de 1506, confirmava a Capitulação da Petição do Mar Oceano, ou seja, o “Tratado de Tordesilhas” celebrado entre Portugal e Espanha a 7 de junho de 1494, o qual partilhava as terras descobertas pelos navegadores de um lado e de outro do meridiano a 370 graus a leste de Cabo Verde. Seguiram-se-lhe outras bulas e estreitamentos diplomáticos entre Santa Sé e Portugal. Com certa isonomia, Júlio II concedeu aos reis espanhóis o direito de Padroado Régio sobre a Igreja nas terras por eles

78 conquistadas44. Na verdade, o cristianismo acabou parecendo uma “importação europeia e ao abraça-lo os nativos tornavam-se suspeitos de terem abandonado suas nacionalidades, perdendo toda a força de atração para com seus compatriotas” (JEDIN, 1972, p. 803), pois as ordens e de caráter missionário que se instalaram nos territórios ultramarinos — capuchinhos, beneditinos, carmelitas, agostinianos — conservavam a tradição portuguesa, defendendo os interesses da Metrópole, a qual, inclusive, proibiu a abertura de novos conventos no país entre 1609 e 1624. Para dar conta de tão ingente empreendimento civilizatório, Dom João III (rei de 1521-1557) desejara a vinda de clérigos jesuítas, cuja disseminada presença na Colônia redundaria no sistema de reduções, através do qual o elemento indígena foi de fato catequizado, educado e administrado. “A principal cousa que me moveu a povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa santa fé católica”45, explicava a Tomé de Sousa, em 1548, Dom João III o Fundador do Brasil. O título lhe advém da opção estratégica pelo país como elemento fundamental do império português, em tempos de dificuldades nas Índias, crise financeira, ameaça protestante e muçulmana, e concorrência francesa, inglesa e espanhola. Os silvícolas eram ad Ecclesiam et vitam civilem assent reducti (“reduzidos à vida civil e à Igreja”) em vilas autônomas, geridas pela Companhia de Jesus, as quais originaram disputas armadas com os colonos na medida em que contestavam os métodos colonialistas permitidos pela Metrópole. Dentre os religiosos de então, eram os cultos jesuítas os mais imbuídos do espírito da Reforma católica, introdutores de um novo dinamismo moral “no mundo eclesiástico, há tanto paralisado pelas forças conflitantes de conservadorismo e reforma, os interesses escusos da oligarquia clerical e as ambições predatórias dos príncipes seculares” (DAWSON, 2014, p. 221-2). Eles implantaram o cristianismo pontilhando o país com sólidas e amplas construções artisticamente enriquecidas; eles não apenas importaram imagens pintadas ou esculpidas, azulejos, cantaria e mobiliário, como também trouxeram mão de obra especializada de diferentes nacionalidades. Quanto aos religiosos de

44

Cf. bula Universalis ecclesiæ regiminis, de 28 de julho de 1508.

45

Apud VAINFAS, 2000, p. 110.

79 outras Ordens — beneditinos, carmelitas, franciscanos —, seu estabelecimento definitivo no Brasil só veio a ocorrer com a União Ibérica, a partir de 1580. Do ponto de vista da arte e da piedade populares, as antigas esculturas de terracota, largamente utilizadas nos inícios da colonização, pouco a pouco foram sendo substituídas por peças de madeira. Ao mesmo tempo, o comércio com as Índias também trazia muitas imagens de santos em marfim cujo estilo peculiar teria incidência no gosto estético com seu toque oriental. Ainda não se pode falar de uma arte nacional, portanto. Seria prematuro afirma-lo em fase tão incipiente do processo histórico brasileiro. As estreitezas econômicas, o modelo do trabalho compulsório, a espoliação e a concentração das riquezas, a reprodução do urbanismo medieval português, tudo isso restringia a arte nativa e limitou o florescimento de uma arte autônoma. Afinal, a Colônia era uma sociedade de trânsito: breve permanência, rápido enriquecimento, pouca produção cultural. De qualquer modo, a modelagem do barro e o trabalho em madeira tinham preparado os indígenas brasileiros para o aprendizado das técnicas artísticas portuguesas. Ao mesmo tempo que as técnicas lusitanas se rendiam ao milieu do Novo Mundo, a produção artesanal nativa facilitou a adaptação tropical dos padrões estéticos trazidos pelos jesuítas, cujo principal recurso querigmático foi a arte, formando uma síntese brasileira. É recorrente, para completar essa síntese, também aludir ao aporte africano, com seu gosto pelas formas livres e orgânicas, sutilmente incorporadas ao modelo português. Artistas mestiços reinterpretavam os modelos ibéricos ao reproduzi-los, mas permanece difícil distinguir o que há de específico nesta fusão para além da ambivalência e da pluralidade. Seria interessante inquirir a realimentação que tal síntese brasileira acarretou para a cultura da metrópole, e se pode ser analogicamente considerada um exemplo pretérito de glocalização, isto é, da “interpenetração do global e do local resultando num único resultado em áreas geográficas diferentes” (RITZER, 2015, p. 215). De fato, o encontro da mensagem cristã com a cultura, em tese, pretende ser um caminho de mão dupla: “a inculturação46 é a 46 Não se deve confundir o conceito teológico de “inculturação” com o de “aculturação”. Aculturação tem matriz antropológico-

culturalista e designa os processos de modificação cultural de indivíduos, grupos ou povos que se adaptam a outra cultura ou dela retiram traços significativos. O conceito admite variações: “aculturação material envolve a coadunação de linguagem e outras ferramentas culturais enquanto aculturação formal envolve a coadunação de costumes e normas” (RITZER; RYAN, 2011, p. 3); “noutros casos, verifica-se um processo de sincretismo: populações pertencentes a duas culturas diferentes, colocadas em contato prolongado, elaboram outra, diferente das duas culturas de origem” (BOUDON & alii, 1989, p. 12).

80 encarnação do Evangelho nas culturas autóctones e, simultaneamente, a introdução destas culturas na vida da Igreja”47. Nesse sentido é que a catequese inaciana valorizara bastante os costumes, estações, preferências, crenças e linguagens dos nativos, na expectativa de oferecer-lhes um Evangelho palatável, teatral e artisticamente apresentado. Tal esforço se manifestou tanto no estilo da pregação (uso da língua geral, música, dramaturgia, recurso a imagens) quanto na assimilação dos elementos e representações autóctones na ornamentação dos templos, que adotaram a representação das ricas flora e fauna brasileiras. E assim, ao estilo dos quinhentos — sóbrio e geométrico, pouco decorado apesar dos douramentos — sucedeu, nos seiscentos, um barroco mais rico, com decorações entalhadas nas colunas de madeira laterais, festões espiralados e arcos. A despeito da evolução do décor interno, das portadas e fachadas, a arquitetura lusitana permanecia — ainda no século XVIII — com aspecto maneirista. Além disso, a repetida solução de nave única com capelas laterais evocava o românico tardio tipicamente medieval. É impossível não reconhecer que a arte barroca tem mais parentesco com a arte da Idade Média que o idealismo racional da Renascença clássica. […] Não significa simplesmente que a arte barroca tenha servido às mesmas funções religiosas e sociais e empregado o mesmo simbolismo religioso da Idade Média. [A arte barroca] é caracterizada pela exuberância extraordinária de imagens e ornamentos que utilizam todo o espaço disponível e transformam toda a igreja em um tesouro de simbolismo religioso. (DAWSON, 2014, p. 225-226)

A degeneração cortesã do Barroco Após um século de desconcertos pelos efeitos nocivos do direito do Padroado Régio e do Padroado Ultramarino, foi o papa Gregório XV (1621-1623) quem conseguiu finalmente armar a Igreja para uma eficaz ação evangelizadora, mediante a centralização pontifícia das missões através da Sacra Congregatio Christiano Nomini Propagando. O novo órgão da Santa Sé, vulgarmente conhecido como Propaganda Fide e fundado em 1622, levou seus missionários a um choque com os colonos lusitanos na América, estendendo o

47

CONCÍLIO VATICANO II (ecumênico XXI), Constituição pastoral Gaudium et spes, 44. Conforme outro documento, a inculturação consiste na “íntima transformação dos autênticos valores culturais mediante a sua integração no cristianismo e a encarnação do cristianismo nas várias culturas humanas” (SÍNODO DOS BISPOS, Relatório final do Sínodo Extraordinário por ocasião do 20º aniversário do encerramento do Concílio Vaticano II, 7/12/1985). Ou ainda, “o processo de inculturação pode ser definido como o esforço da Igreja para fazer penetrar da mensagem de Cristo um determinado meio sociocultural, convidando-o a crescer segundo os seus próprios valores, desde que estes sejam conciliáveis com o Evangelho. O termo inculturação inclui a ideia de crescimento e de enriquecimento mútuo das pessoas e dos grupos, pelo fato do encontro do Evangelho com um meio social” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Fé e inculturação, nº 11).

81 conflito às relações com as próprias autoridades eclesiásticas dependentes do padroado real português. Com efeito, nos territórios explorados pelos ibéricos, os missionários — quer oriundos das antigas Ordens, quer das novas congregações religiosas pós-tridentinas fielmente unidas a Roma — realizaram uma ação enérgica para a criação de um clero indígena, obsequiando a idiossincrasia dos povos conquistados. Embora não tenha conseguido neutralizar os massacres perpetrados nas colônias, os esforços da Propaganda Fide garantiram a miscigenação nessas terras, diferentemente do que ocorreu nos países conquistados por protestantes. Para alguns autores, tal ativismo dos missionários religiosos estaria na origem do empenho da Coroa portuguesa, ao longo dos setecentos, na promoção de sacerdotes seculares como agentes da monarquia, na limitação de doações de particulares às congregações religiosas e na restrição ao acesso de candidatos ao noviciado, medidas que produziram grave crise nas comunidades conventuais (cf. VAINFAS, 2000, p. 126). Subsequentemente, foi determinada a expulsão de quaisquer missionários do interior de Minas Gerais em 1721, assim como a ulterior exclusão dos jesuítas dos domínios portugueses em 1759, à época do Marquês de Pombal (1699-1782), sob o pretexto da criação de um estado teocrático nas reduções, embora estas fossem sujeitas a fisco e fossem visitadas pelos governadores. As razões da política pombalina são controversas (cf. SOUZA, 2008); alguns autores a interpretam como afirmação do regalismo, enquanto outros veem nela uma versão portuguesa das concepções jansenistas e galicanas; em ambos os casos, a atitude teria sido antijesuítica. Não obstante, o estudo das cartas e atas de visitas pastorais do século XVIII sugere que, ao estipular limitações à esmola e à vida religiosa, tanto o Estado quanto a Igreja procuraram, a um só tempo, impedir a evasão das contribuições e reprimir as heterodoxias praticadas por benzedores e curandeiros, condicionar a ação dos esmoleres e ermitães e incentivar a caridade institucional (cf. SANTOS, 2011). De qualquer forma, o certo é que as limitações impostas por Pombal, durante o terceiro quartel do século XVIII, à vida religiosa no país foram contornadas com o aparecimento e fortalecimento das Ordens Terceiras, irmandades leigas e Santas Casas de Misericórdia, cujo atendimento espiritual ficava a cargo do clero secular urbano, dependente do padroado real. Tais instituições estabeleciam estamentos

82 econômicos, sociais e raciais, mais fáceis de serem controlados pela Metrópole, e favoreciam a rivalidade a respeito da precedência nas procissões, indumentária, arquitetura e decoração. As consequências do regalismo para a religiosidade popular patenteavam-se tanto na liberdade com que as celebrações e as demonstrações de piedade escapavam facilmente à intenção litúrgica original, quanto na exterioridade de um culto sem fundamento doutrinal, devido à inibição do trabalho catequético. Os fiéis se agrupavam em irmandades e procediam com a hierarquia eclesiástica de acordo com a etnia e a gradação social, tendendo a um catolicismo laico e insubordinado entre as classes abastadas. O próprio clero padecia do esvaziamento do sentido do seu ministério sacerdotal e se ressentia das limitações geográficas e econômicas do país. O sincretismo viria a ser o reflexo necessário de tal situação (cf. VIEIRA, 2007, p. 41-45). Por outro lado, os primeiros seminários brasileiros surgiram no século XVIII, esforçando-se para adequar-se às determinações emanadas quase dois séculos antes pelo Concílio de Trento. A fundação e manutenção de ditos institutos também se ressentia da ambiguidade do Padroado Ultramarino, pois as Igrejas particulares dependiam do Estado para o seu sustento. A malha de paróquias, aliás, era muito larga e desigual em cada diocese, também por causa do padroado. Os bispos, abstendo-se do seu direito de criar paróquias, remediavam a situação estabelecendo curatos de comum acordo com os moradores das localidades, os quais sustentavam os sacerdotes na esperança de que o rei reconhecesse tais paróquias e as prouvesse. Assim, muitas paróquias brasileiras devem sua existência ao interesse dos fiéis e ao zelo do clero. Ao analisar algumas características da Igreja lusitana na época moderna, torna-se patente que os conflitos internos são recorrentes. José Pedro Paiva estabelece uma breve tipologia, não exaustiva, dessas altercações. Conflitos opondo setores do clero regular a setores do clero secular; divergências entre prelados e a Santa Sé ou alguns de seus máximos representantes; contendas entre bispos; desentendimentos entre bispos e respectivos cabidos diocesanos; confrontos no interior dos cabidos; disputas entre cabidos de dioceses diferentes; dissensões opondo prelados diocesanos a ordens religiosas ou militares; controvérsias entre bispos e a Inquisição. Tamanho universo de conflitos é suficiente para desfazer qualquer pretensão de dotar a Igreja de uma consciência de corpo tão perfeita que a permita agir sempre em bloco na defesa de alguma posição em relação ao Estado. (SOUZA, 2011, p. 208)

83 De fato, Portugal não fugira à dinâmica das nações majoritariamente católicas, cuja recepção da doutrina tridentina ia de permeio com as duvidosas consequências sociais do Antigo Regime: Como um fenômeno reflexo dos Estados confessionais protestantes, na área católica foram-se consolidando Estados confessionais católicos que, embora admitissem o conteúdo teológico do Concílio a respeito da liberdade moral dos cristãos, desconheceram as consequências de tal liberdade nos campos político e social. O crescente poder dos Estados nacionais fez que se visse a religião como um elemento de coesão social e de unidade política […], e se impulsionaram desde o alto políticas “oficialmente” católicas, que submeteram a Igreja a um controle institucional implacável. A consciência de possuir a verdade religiosa levou a pensar que os inumeráveis problemas sociais, políticos e econômicos exigiam uma única resposta, “católica”, para organizar as relações na sociedade. (FAZIO, 2006, p. 54-5)

Como explicita Michel de Certeau (2008, p. 153), “nos séculos XVII e XVIII ocorreu uma ruptura depois declarada, entre religião e moral, que tornou efetiva sua distinção e problemática sua conexão ulterior”. A partir daí, … é sintomático que a ordem social forneça, de agora em diante, à moral e à espiritualidade cristãs, o princípio de sua nova estabilidade e que a hierarquização dos ‘estados’ sócio-profissionais assuma, pouco a pouco, o papel até então representado por uma hierarquia das funções eclesiais e dos graus espirituais. (CERTEAU, 2008, p. 168)

Assim, por essa época o caráter exibicionista do Barroco também expressava a verticalização do poder absoluto da Metrópole e sua cristalização na estrutura social das cidades brasileiras. O que nascera para ser um estilo didático tornava-se meramente teatral: Se a arte cristã deixa de ocupar o lugar eminente que outrora lhe fora reconhecido, não é porque haja menos fé; é porque a própria atitude da sociedade para com a arte mudou. Pede-se-lhe menos o louvor de Deus, pois se espera mais dela a exaltação do Homem, e especialmente sob essa forma de deificação do Homem que é o culto real. Não há nenhuma proporção entre as somas gastas em Versalhes e as que, durante o reinado de Luís XIV, se consagra à construção de igrejas. E não é somente na França que esse observa esse fato. Os príncipes copiam Versalhes, tanto na Prússia como em Portugal, na Áustria e na Polônia. Andarão por 30.000 os palácios e solares de grande luxo que se erguem por toda a Europa entre 1660 e 1715. No palácio do Rei-Sol, o verdadeiro santuário será a capela ou antes a sala onde o rei recebe as homenagens dos seus fiéis? Portanto: laicização manifesta da arte, como do resto. Não tarda que se chegue a uma sensualização, que um dia consagrará o total divórcio entre a arte e a fé, como acontecerá no século XVIII. (DANIEL-ROPS, 2000, p, 332)

A alcunha Rococó parece ter sido criada em 1796 pelo pintor Maurice Quaï — pupilo de Jacques-Louis David, expoente do neoclassicismo —, para referir-se pejorativamente

84 ao estilo associado a Luís XV (cf. HECKSCHER, 1992, p. 1) e cuja entrada no Brasil se fará bem cedo: Não há mestres da qualidade de um Bernini, mas uma multidão de seguidores cheios de talento. Assim se torna possível construir e decorar ainda em estilo barroco centenas de igrejas e capelas, do Tirol à Sicília, de Portugal à Boêmia e até nas Américas de cultura latina. Arrastado pelo seu estranho gênio, o Barroco é cada vez mais exuberante, cada vez mais complicado e rebuscado, de certo modo cada vez mais gratuito e artificial. Já aí vem o rocaille, o rococó, que já pouco terá que ver com a inspiração cristã. (DANIEL-ROPS, 2000, p, 334)

Cri de cœur Juliana Poloni, ao comentar um artigo da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional publicado durante o Estado Novo, critica a ambiguidade teórica que levava os acadêmicos de então a radicar a criatividade do Barroco brasileiro nas insuficiências materiais da Colônia e na decadência ideológica do estilo europeu: A decadência do Barroco na Europa do século XVIII coincidiu com o apogeu dessa escola no Brasil. Mais: a grandiosidade ornamental do Barroco brasileiro careceu do propósito contrarreformista que caracterizou o movimento na Europa. Isto teria sido transplantado por pura tradição artística. Finalmente, a gritante pobreza arquitetônica do país teria limitado os horizontes criativos dos artistas barrocos, os quais, na maior parte dos casos, limitaram-se a procurar inspiração em igrejas existentes, nas representações disponíveis e em velhos missais. (POLONI, 2015, p. 345)

O fato é que o Barroco esteve intimamente ligado à vida colonial brasileira. No Rio de Janeiro, o aumento do comércio com a metrópole, o escoamento do ouro trazido das Minas Gerais, a criação do Tribunal da Relação em 1751 e a ascensão à sede do vicereinado a partir de 1763 contribuíram para a construção de igrejas de grande valor e opulência decorativa: Um espírito rococó luxurioso, ajustado às condições tropicais, permeou o modo de vida das cidades costeiras […]. O uso da estatuária, nunca tendo recebido grande favor, gradualmente foi descontinuado; a decoração se concentrou nos coroamentos e enquadramentos de portas e janelas. A construção eclesiástica pouco a pouco assumiu a elegância típica de um palácio real, mais ou menos. (KELEMEN, 1967, v. 1, p. 245)

Para o arquiteto argentino Damián Bayón (1982, p. 115), o Rococó americano é um fenômeno culto e aristocrático tipicamente brasileiro, de modo que não deve ser visto como mera continuação do Barroco. Teorias como essa, que relacionam estilo e mentali-

85 dade — note-se que Bayón é um historiador da arte adepto da “vontade de arte” (Kunstwollen) — serviram de suporte para pretensões raciais ou nacionalistas. Germain Bazin, porém, percebe menos “espírito de ruptura” no Rococó brasileiro, cuja elegância tem seus paralelos na Europa; para ele, a arquitetura lusa da segunda metade dos setecentos — denominada pombalina — foi “de certa forma, uma regulamentação neoclássica do Rococó” (BAZIN, 1983, p. 187). Tal é o dilema interpretativo do novo estilo: ser ou não uma ruptura do Barroco. Certo é que floresceu, difundiu-se e alcançou o Brasil quando circulavam mundialmente ideias iluministas, ares liberais e afirmações nacionalistas. Adalgisa Arantes Campos (2013, p. 201) atribui às agremiações laicais a “tendência em despojar a ornamentação do seu significado religioso e desbastar o excesso decorativo”. Portanto, segundo muitos autores contemporâneos, o Barroco tardio48 é “uma arte de crise, mas não uma crise da arte; ele expressa uma mentalidade e não uma consciência” (MARAVALL, 1997, p. 150): Se fosse preciso condensar meu pensamento em uma única frase, eu diria hoje, utilizando ainda os recursos da linguagem estruturalista, que essa proliferação sem limites do significado é para o homo barrocus um artifício, uma maneira de mascarar o enfraquecimento do significante. Há no inconsciente coletivo destes tempos uma perturbação profunda, devida ao obscuro questionamento do sagrado, o sagrado monárquico assim como o sagrado religioso. (ÁVILA, 1997, p. 19)

Resta saber se essa cri de cœur religiosa ocorreu realmente ou é uma projeção anacrônica do agnosticismo erudito contemporâneo. Entretanto, outra dúvida nada banal surge diante dessa decoração exuberante e bem ancorada na tradição iconográfica da Igreja Católica, indicativa da eminente cultura religiosa dos proprietários e artífices, contratantes e executores. Pois, sem dúvida, os entalhadores eram homens de fé; ao mesmo tempo, eram pessoas instruídas na simbologia cristã. O mestre dirigia uma equipe de artífices, ao mesmo tempo que formava os aprendizes nos ingentes trabalhos de entalhe, a fim de produzir um efeito ao mesmo tempo luxuriante e intimista. Na talha ficava a marca do artista, a fé e o amor que o levava a plasmar a decoração adequada ao serviço de Deus. Mas, por outro lado, como é sabido, o grau de formação do laicato — e mesmo do clero brasileiro — no século

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É notável o desacordo terminológico entre os estudiosos. Conforme a pena dos autores, barroco, rococó, pombalino, etc., ora fazem referência à época, ora ao estilo arquitetônico, ora ao estilo do décor. Por exemplo, Leopoldo Castedo (1980, p. 1618) identifica o Barroco com um período histórico (o século XVII europeu), com a fase decadente do Renascimento e com um estado de espirito associado a certas tendências nacionais.

86 XVIII deixava a desejar; os fregueses de Santa Rita seriam, portanto, capazes de compreender o simbolismo da decoração? Mais: alguns paroquianos eram escravos conversos cuja catequese sumária não parece apta para lhes oferecer os recursos hermenêuticos mínimos. Para realizar uma aproximação à capacidade de apreensão da arte sacra dos cariocas no século XVIII, há um bom roteiro na obra de Harvey Whitehouse. O antropólogo londrino detectou um constante dualismo nas descrições antropológicas das religiões aventadas por diversos pesquisadores49. Sintetizando e superando as particularidades dessas explicações, Whitehouse propõe dois “modos de religiosidade” fundamentais — o doutrinal e o imagético — que se relacionam com a memória respectivamente de forma reiterativa ou episódica. Segundo o autor, porém, esses modos de religiosidade são polos de um espectro, pois nunca se dão isoladamente. Em reproduções de longo prazo, através de pensamentos e ações de muitas pessoas, pode-se captar tendências para um ou outro modo (cf. WHITEHOUSE, 2004, p. 63-85). Para Whitehouse, o efeito do modo imagético não necessariamente intensifica o comprometimento com uma série de princípios codificados, mas apenas provê um substituto para tais princípios como principal motivação religiosa. Quanto menos participação no ensino religioso, mais profusão de práticas imagéticas. Ao mesmo tempo, sem a materialização imagética da experiência religiosa, os rituais rotineiros perdem sua justificativa persuasiva e a instrução dogmática desaparece. Afirmar que a proeminência do modo imagético entre pessoas sem educação ou despossuídas seja um sintoma de ignorância é tipicamente um discurso elitista. Daí se conclui que a preferência da Reforma católica pela imagem não pode ser aduzida como sucedâneo da ignorância religiosa: antes é um sinal de preocupação catequética, embora não se tenha garantia de eficácia pedagógica. De França à Paris dos Trópicos O Rococó começou na França como decoração de interior de residências e faz sua primeira incursão no Brasil, quase que paralelamente a Lisboa, através da talha da matriz de

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Religião rotineira ou carismática (Max Weber); apolínea ou dionisíaca (Ruth Benedict); literária-urbana ou imagética-rural (Ernest Gellner); letrada ou iletrada (Jack Goody); fértil-comunitária ou política-estrutural (Victor Turner); cúltica-central ou cúltica-periférica (Ioan Lewis); cúltica-regional ou cúltica-comunitária (Richard Werbner); religião com regime de líder guru ou com regime conjuratório coletivo (Fredrik Barth). Para uma explicação pormenorizada, vide WHITEHOUSE, 2000, p. 3.

87 Santa Rita no Rio de Janeiro, executada entre 1753 e 1759, contrastando, por sua luz e leveza, com a subsequente intensidade e frieza pombalinas. Enquanto estilo, com efeito, o Rococó não conseguiu ser exclusivo em sua época, tanto que houve coetâneos como o storm and stress e o pré-romantismo. E já em fins do século XVIII ocorreria um retorno às formas clássicas, submetendo a arte à ideologia e ao controle das Academias e Salões de exposição. Contudo, além de ser uma manifestação artística, o Rococó também denotava um estado de espírito no qual “prevalecem a intuição e a fantasia, a alegria de viver e a força do sentimento. A beleza adquire uma dimensão quase moral porquanto se lhe atribui o poder de despertar nossos sentimentos mais elevados” (YARZA, 2004, p. 94). Aparentemente, tal mentalidade contradiz o racionalismo ilustrado; contudo, “os acadêmicos têm questionado a suposta dicotomia entre o Rococó e os ideais iluministas” (BAILEY, 2012, p. 135). Com efeito, no início do século XVIII Shaftesbury (1671-1713) e Hutcheson (1694-1747) desenvolveram um deísmo antropocêntrico que confiava no sentimento como lugar da percepção do bem e da beleza50. Com base nesses pressupostos é que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) viria a propor a autonomia radical da natureza humana e o Iluminismo suprimiria definitivamente qualquer a referência a Deus: Procurou-se, então, depois do fim do Iluminismo, partindo da consciência do caráter irrenunciável do religioso, um novo espaço para a religião, no qual ela pudesse viver imune aos avanços dos conhecimentos da razão, como que em um planeta inalcançável e, por isso, não ameaçado pela razão. Por isso, atribuiu-se-lhe o “sentimento” como seu setor particular no conjunto da existência humana. Schleiermacher foi o grande teórico dessa nova concepção de religião, que ele definia assim: “Práxis é arte, especulação é ciência, religião é sentido e gosto pelo infinito”. (RATZINGER, 2007, p. 132)

Por um lado, o Rococó insere-se espiritualmente na reação ao jansenismo do século precedente. As cores do Barroco tornaram-se pastéis no Rococó: se o primeiro cultivara uma mentalidade mais voltada para o θάνατος do que para o ἔρως — uma cultura atenta ao martírio e à transformação operada pela mortificação —, o Rococó inverte esta relação. Durante o período, a piedade popular explodiu na França opondo-se aos hierarcas, geralmente autoritários, subservientes ao trono e arredios a Roma. Homens e mulheres de elite, sacerdotes

50 A questão da beleza assim como a

Querelle barroca sobre a arte antiga e moderna tornaram-se tão prementes que a Estética conquistou sua autonomia como disciplina filosófica em tal contexto histórico.

88 politizados, diplomatas e aristocratas, buscavam construir um pensamento que reconciliasse Deus e os prazeres, mundo e religião, sagrado e profano, piedade e urbanidade: “mais de 50 tratados e inumeráveis sermões publicados geralmente descartados pela literatura acadêmica foram especificamente dirigidos à sociedade polida” (BAILEY, 2014, p. 27). Inclusive o renomado orador Jacques-Benigne Bossuet (1627-1704) já escrevera em suas Méditations sur l’Évangile (apud BAILEY, 2014, p. 31) que “o propósito da humanidade é a felicidade, Jesus Cristo veio somente para nos prover dos meios para alcançá-la”, embora tivesse em vista a bem-aventurança celeste e não o naturalismo libertino típico dos setecentos. Por outro lado, os princípios rigoristas do bispo de Ypres, Cornélio Jansênio (15851638)51 — que estiveram na raiz da oposição dos religiosos da abadia de Port-Royal ao reinado de Luís XIV (1643-1715) — vieram a se misturar com o galicanismo, movimento político-religioso cujas contradições se prolongariam até a Revolução Francesa: O jansenismo não ia limitar-se a ser apenas uma doutrina da graça, à qual se ligava uma concepção coerente, completa e rígida da religião, e uma moral severa. Em breve, […] não demoraria a pôr em causa a disciplina, tanto ou mais que o dogma e a moral. Um terceiro jansenismo, que poderíamos designar por “jansenismo sectário”, viria a sobrepor-se aos dois primeiros. […] Desde os primeiros tempos, o jansenismo esteve em relações estreitas com os meios galicanos do mundo parlamentar, antirromanos por princípio, antijesuíticos por temperamento, e aí conquistou numerosas simpatias. Achou-as também em outras classes sociais, designadamente no baixo clero, cujo “sacerdócio presbiteriano” Jansênio exaltava, considerando-o tão depositário da graça quanto a Hierarquia eclesiástica. Assim se constituiu um “partido” jansenista […], cujos membros passaram a interessar-se cada vez menos pelas doutrinas agostinianas da graça e cada vez mais pela vitória da sua equipe. (DANIEL-ROPS, 2000, p, 356-357)

É curioso, mas o Rococó também não foi um espírito unicamente francês, tanto que recebia críticas por toda a Europa, sintoma de sua difusão. Censuravam-lhe o caráter irônico, luxurioso, hedonista. Voltaire assim o descreveu em 1736, no seu poema Le Mondain (v. 9-12): J’aime le luxe, et même la mollesse, Tous les plaisirs, les arts de toute espèce, La propreté, le goût, les ornements: Tout honnête homme a de tels sentiments.

51

Consta que, no mesmo dia de sua morte, Cornélio Jansênio entregou seu livro Augustinus para ser submetido ao juízo da Igreja antes de editá-lo. No entanto, o texto foi publicado em sucessivas edições, recebendo reiteradas condenações por parte da autoridade eclesiástica, as quais eram rejeitadas por teólogos rigoristas. A obra afirmava a impossibilidade de guardar os mandamentos, negava o livre-arbítrio, enfatizava a predestinação, negava que Cristo morreu por todos os homens, etc. (DH 2000-2007; 2010-2012; 2020).

89 De fato, os setecentos foram os anos cujo mote era “brilhar como a champanhe”. Seus motivos literários eram a coquete (mulher sedutora e leviana) e o petit-maître (homem amante do prazer galante sem nenhum esforço). As mulheres usavam décolleté e négligé, portavam leque e cuidavam da maquiagem em busca de flertes, cumprimentos, insinuações e olhares interessados de namorados chamativamente elegantes. Entreveem-se as modas de então nos versos das Verdades singelas de Paulino Antônio Cabral (1719-1789): Estas verdades singelas, Sem artifício, e conceito, Pode-as ler qualquer sujeito; E, se vir que alguma delas Lá pela roupa lhe toca, Tape a boca. […] Andar um para casar, Buscando uma entre mil Senhora rica, e gentil; E entender que há-de achar Por cima disso donzela; Bagatela. […] A que bebe sem vergonha, Que toma tabaco, e dança, Que do jogo não se cansa, Que é toda guapa, e risonha, Se por milagre é donzela; Ter mão nela.

Myriam Andrade de Oliveira (2003, p. 296-299) explica que o movimento estilístico francês se expandiu pela Europa através do mercado internacional de gravuras ornamentais; contudo, apenas no Danúbio ele foi empregado sem entraves na decoração religiosa. Assim, à já tornada tradicional arquitetura borromínica e às pinturas em perspectiva dos tetos, acrescentaram-se o uso da rocalha francesa, o primado da luz natural e a delicadeza dos ornatos dourados sobre fundo branco. A presença do arquiteto suevo Johan Ludwig (1670-1752) na corte de dom João V é mais um indício da influência alemã sobre a arte lusitana, patente no fato de que … os repertórios decorativos […] foram divulgados em Portugal por gravuras ornamentais germânicas, ainda hoje encontradas em abundância nos arquivos e bibliotecas de norte a sul do país. […] É lícito concluir que a utilização da tratadística e das gravuras ornamentais de fonte italiana, francesa e germânica tenha tido no Brasil papel similar ao desempenhado em Portugal. São comuns, com efeito, referências a coleções de estampas e gravuras em inventários de artistas setecentistas,

90 notadamente no Rio de Janeiro e Minas Gerais, bem como aos tratados de arquitetura e ornamentação, cujo levantamento sistemático nas coleções públicas e privadas do país ainda está por fazer. (OLIVEIRA, 2003, p. 297-298).

Arquitetos e artistas sem formação acadêmica e treinados nos próprios canteiros de obras por mestres locais transformaram os simples ambientes coloniais com azulejaria portuguesa e talhas douradas, estuques e painéis pictóricos, realizando obras de arte total. Se o público luso-brasileiro ainda não formava uma “opinião pública” dotada de representatividade, livre iniciativa e autonomia crítica, como nas sociedades de classes constituídas na Europa ilustrada, nem por isso carecia de um juízo ancorado no senso comum. Senso que era encomiástico para a Coroa e subordinado à “Ilustração católica” de Pombal, mas também tropicalmente festivo, pois o Rio de Janeiro é uma cidade rococó em que tudo é festa e a pobreza das paredes brancas se costuma engalanar com detalhes delicados e coloridos.

Figura 17: Matriz de Santa Rita (foto de Mateus Rosada, 2014).

91

2 Arqueologia da Arquitetura — A igreja de Santa Rita 2.1 Arquitetura como metáfora material Não é só o edifício em si mesmo que nos amarra mas também os modos através dos quais nós construímos e avaliamos os antigos edifícios. (Ian Hodder. Entengled)

Segundo Aristóteles, “metáfora é a transposição para uma coisa do nome que designa outra diferente”52. Consiste em na relação comparativa entre um referente e o referido; distingue-se da metonímia, na qual a relação comparativa é real por contiguidade material (sinédoque) ou conceitual (antonomásia). Também é entendida como uma espécie de tropo, isto é, de mudança do significado comum e próprio de uma palavra a fim de aumentar a sua vivacidade (cf. JOSEPH, 2002, p. 64-65; 278-280). Os principais tropos são apresentados na Tabela 2: Tropo

De causa e efeito

Metonímia (relação próxima)

Metalepse (relação remota)

Por divisão

Pelo contrário

Sinédoque

Ironia

Por similaridade

Símile (comparação)

Onomatopeia

Prosopopeia (personificação)

Antonomásia (substituição de nomes próprios)

Metáfora (identificação entre objetos de classes diferentes)

Tabela 2: Tipos de tropo.

A partir da constatação de que muitas das interpretações corriqueiras que se fazem do mundo são metafóricas, e de que a Arqueologia se vale pouco desse tipo de abordagem, Christopher Tilley propôs que os artefatos sejam encarados como metáforas sólidas, provendo “uma descrição detalhada e persuasiva de como a metáfora afeta a cultura material e cria ligações entre diferentes tipos de artefatos e domínios sociais” (HODDER, 2012a, p. 121). Entretanto, o arqueólogo britânico também alertou que “as metáforas sólidas não são 52

Μεταφορὰ δέ ἐστιν ὀνόματος ἀλλοτρίου ἐπιφορὰ (ARISTÓTELES, Poética, 1457b 6-7).

92 substitutas das metáforas linguísticas” (TILLEY, 1999, p. 263), pois os artefatos podem ser metaforicamente contraditórios. Nas seções seguintes ficará evidente a paradoxalidade das múltiplas interpretações que podem ser destacadas do mesmo objeto material, no caso, a igreja matriz de Santa Rita de Cássia. No que concerne à arquitetura, Tilley (1999, p. 43-44) fez emprego metódico da metáfora corpórea para a análise de residências. A partir da sua perspectiva, as quatro metáforas apresentadas a seguir irão explorar a analogia corporal em círculos cada vez mais amplos: o corpo no mundo, o corpo bem composto, a indumentária do corpo, o domínio do corpo. O antropomorfismo arquitetônico utilizado por Tilley é tópico antigo. Pode ser constatado tanto nas diretrizes de Vitrúvio acerca das proporções das colunas 53 quanto nos estudos fenomenológicos do lugar como extrapolação da postura corporal (cf. TUAN, 1983, p. 39-57). Na linha de Dawkins54, também é possível atribuir à arquitetura o sentido de “fenótipo estendido”, isto é, de manifestação extrassomática do corpo humano. Muitas vezes a analogia corporal foi aplicada à planta-baixa dos edifícios, a qual, embora esteja fora da experiência visual, não o está da experiência sensorial (RIBEIRO, 1990, p. 12-13). Mas o arquiteto venezuelano Graziano Gasparini critica a tendência a abordar o espaço construído de forma indireta e abstrata através de projeções arquitetônicas; para ele, a via objetiva é a da experiência direta (apud BRAZÓN, 2001, p. 112-113). Mundo, corpo, palco O templo enquanto “microcosmo” O símbolo é um fenômeno antropológico fundamental, consequência da tendência humana à comunicação: por isso, o primeiro símbolo antropológico da pessoa é o corpo, que se expressa a si mesma e a sua atividade expandindo-se nos lugares, nos objetos e nos instrumentos. O corpo serve de referência escalar dos espaços, como na teoria da comunicação proxêmica de Edward Hall (1966) sobre as diferentes distâncias (íntima, pessoal, social e pública). A aplicação correlativa das proporções corporais à cosmologia é recorrente, e se

53

VITRUVIUS POLLIO, De Architectura, IV, 1, 6-8 (VITRÚVIO, 2007, p. 202-203).

54

Cf. DAWKINS, Richard. The Extended Phenotype. Oxford: Oxford University Press, 1982.

93 tornou típica no homem vitruviano de Michelangelo (1475-1564), ou ainda antes no homem sinfônico da profetisa Hildegarda von Bingen (1098-1179), para quem “tudo está estabelecido na forma corpórea do homem”55. O corpo, de fato, constitui o termo médio da tríplice metáfora edifício — corpo — mundo. Desde uma ótica cientificista, porém, a relação entre o corpo e o mundo ultrapassa a metáfora, é quase uma prosopopeia56. Segundo o historiador Alois Riegl, assim como para seu discípulo Wilhelm Worringer (1997), a psicologia do homem primitivo era marcada por uma “agorafobia” espiritual: sua angústia diante das forças naturais buscaria na religião uma forma de tornar o mundo caótico em um mundo cósmico. A humanização do mundo seria um modo de exorcizar a paisagem. De forma semelhante, para Mircea Eliade (1992) o mundo humano é fundado pelas rupturas efetuadas no espaço desumano. Talvez o mundo seja amplo demais, e para muitos, o horizonte do século ultrapasse em rara ocasião a cidade, que é ordenadora, balizadora e totalizadora para qualquer sociedade (CERTEAU, 2014, p. 160-163). Assim, se no âmbito urbano a cidade é corpo, então o edifício é um órgão, uma célula. Sob tal pano de fundo, e aplicando-se analogicamente à igreja de Santa Rita o método de Tilley, podem-se ponderar seis aspectos anatômicos da arquitetura em sua relação com a cidade: a)

Orientação: a direção das aberturas e a posição das partes em relação umas com as outras provê um marco referencial para a cidade e o mundo. A igreja matriz tem uma planta peculiar, com pátio lateral a modo de cisterna, o que propicia sensação de acolhida e de refúgio frente à confusão da cidade.

b) Silhueta: o objeto é identificado pelo seu perfil distintivo. A singela fachada da paróquia continua a contrastar com os edifícios contíguos, apesar do aspecto brutalista e dissonante das atuais construções. c) Sequência: representação ordenada de ideias e narrativas. É clara a divisão interna da igreja, em sucessiva aproximação ao altar-mor, tema a ser explorado com mais detalhe pouco mais adiante nesta dissertação.

55 56

Omnia hæc in forma hominis signata sunt (Santa HILDEGARD VON BINGEN, Livro das Obras Divinas, I, 4, 14).

Prosopopeia ou metagoge é o tropo pelo qual se atribuem características peculiares dos seres humanos aos animais e às coisas inanimadas.

94 d) Materialidade: a qualidade dos materiais indica diferentes lugares, épocas e status. A riqueza dos adornos rococós ressalta a importância dos elementos por eles embelezados. e)

Ação: a organização espacial dimensiona a função cultual. O alcance da ação desenvolvida no interior do templo depende diretamente do grau de liberdade oferecido pela distribuição dos espaços.

f)

Transição: linhas imaginárias que segregam funções. A compartimentação espacial propicia uma clara especificação de papéis e a dignidade de cada um.

O que de imediato salta à vista é a recorrente alusão ao espaço na análise metafórica apresentada por Tilley. Não poderia ser diferente, pois a categoria espacial teve larga acolhida na teoria da Arquitetura, a ponto de praticamente ser identificada como sendo uma de suas propriedades definitórias. Segundo Graziano Gasparini (apud BRAZÓN, 2001, p. 112), o espaço seria exatamente o que distingue a Arquitetura dentre as Belas-Artes. A arquitetura não provém de um conjunto de larguras, comprimentos e alturas dos elementos construtivos que encerram o espaço, mas precisamente do vazio, do espaço encerrado, do espaço interior em que os homens andam e vivem. (ZEVI, 1998, p. 18)

Não obstante, segundo o arquiteto Rodrigo Bastos (2013), a espacialidade é um conceito moderno reiteradamente utilizado para avaliar de forma insatisfatória os edifícios antigos. Ausente da tratadística tradicional, a valorização excessiva da noção de espaço extensivo teria enviesado a criação, a percepção e a interpretação da Arquitetura. Como também afirma Júlio Vieira (2015, p. 30), “o uso do termo ‘espaço’, associado à Arquitetura, não se deu antes da década final do século XIX”. Ora, para a escolástica, o espaço absoluto ou infinito vazio é um mero ente de razão, isto é, algo só possível no intelecto humano. Das dez categorias aristotélicas, apenas três podem ter relação direta com o espaço: quantitas (quantidade extensiva), ubi (localização) e situs (situação). As demais categorias são: substância, qualidade, relação, tempo, hábito, ação e paixão57. Contudo, após a revolução cartesiana da filosofia, que trouxe o subjetivismo a primeiro plano e reduziu o âmbito da racionalidade à mera razão instrumental, o espaço

57

Cf. ARISTÓTELES, Categoriæ, IV, 1 b.

95 tornou-se “real”. Desde então, realistas e idealistas altercaram se extensão espacial é concreta (Descartes, Spinoza, Newton) ou representação do espírito (Bergson). Dentro deste último grupo estava Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), de quem proveio uma grande contribuição para a discussão sobre a natureza do espaço: antecipando-se ao idealismo kantiano, o pensador alemão entendia o espaço e o tempo como fenômenos, isto é, um modo de aparição da realidade: [Espaço é] a ordem que torna os corpos situáveis, e através da qual, existindo juntos, eles têm um posição relativa entre si, do mesmo modo que o tempo é uma ordem análoga em relação à sua posição sucessiva. Mas, se não existissem criaturas, o espaço e o tempo só existiriam nas ideias de Deus. (LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Quarta Carta a Clarke, § 41, apud REALE; ANTISERI, 1990, v. 2, p. 456)

As definições ulteriores do espaço, ou se tornaram devedoras da limitação dimensional dos fenômenos, ou tentaram extrapolar o âmbito da categoria. Milton Santos (2006, p. 12), por exemplo, descreve o espaço como “conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações”. Bruno Zevi (1998, p. 192) afirma que o espaço inclui “todas as realidades de um edifício”; e Ricardo Bianca de Mello (2007, p. 13-14) propõe os seguintes desdobramentos: [O espaço é] uma extensão indefinida, muitas vezes identificada como uma extensão dimensional indefinida. […] A espacialidade simbólica é para nós aquela qualidade espacial que amarra ao lugar um determinado valor simbólico. […] Em Arquitetura há múltiplas espacialidades, múltiplas qualidades do espaço”.

Com tal noção de espaço, a modernidade opera a releitura da arquitetura a partir de uma categorização que, apesar de legítima, não faz jus às suas características genéticas. Em outros termos: o espaço é um corolário na prática da Arquitetura, e não necessariamente o seu fim. Por outro lado, o que diferencia os espaços e a sua percepção não se reduz à reação sensível e subjetiva que os ocupantes possam experimentar diante do décor: As categorias utilizadas para o tratamento da arquitetura e, em geral, das demais artes são de um tempo posterior às suas fábricas. São categorias caudatárias, portanto, mais das ideologias modernas que as produziram, nos séculos XIX e XX — como a “originalidade” do autor e da obra, a “evolução” das formas, “volumes” e “partidos arquitetônicos”, a “autonomia” da arte, o “progresso” e a “decadência” dos estilos, a “libertação” das regras e costumes —, do que das circunstâncias, procedimentos, preceitos e finalidades que efetivamente fundamentaram as práticas artísticas daquele tempo. Até mesmo os estudos de caráter historiográfico em geral preferem se ancorar nas categorias modernas da arquitetura e da história da arte, sobretudo nas classificações dedutivas do “barroco” e corolários, e simpatizam mais, portanto, com as circunstâncias pós-iluministas, idealistas e românticas que

96 as justificam do que com as representações da antiga sociedade de corte que se quer compreender. (BASTOS, 2013)

Estas constatações abrem caminho para uma metáfora corpórea mais profunda, em que não importa tanto a quantidade extensiva, mas sim a articulação orgânica. O templo enquanto “corpo místico” Rodrigo Bastos patenteou a grandeza do regime mimético do barroco colonial em sua pesquisa dedicada à compreensão da fábrica artística de Minas Gerais nos setecentos, respeitando os condicionamentos ideológicos contemporâneos à sua construção. Suas conclusões, fundadas em ampla pesquisa documental e material, contestam as opiniões de Bruno Zevi (1998), para quem o Barroco consistiria na libertação das regras dos tratadistas. Para o pesquisador, a poética retórica barroca exige que se abra mão das noções anacrônicas iluministas e românticas do espaço e se reconstituam inúmeros conceitos alijados do discurso artístico atual, mormente a noção de decoro: O decoro representou, desde a antiguidade até o advento do chamado “romantismo” — quando a normativa poético-retórica das artes foi considerada inadequada a uma pretensa manifestação subjetiva e autêntica do artista — um dos preceitos mais importantes não apenas da arquitetura, mas de todas as artes, as belas letras, poesia e retórica, pintura, escultura, música, teatro, etc. (BASTOS, 2013, p. 32)

A recuperação do conceito de decoro traz pistas para uma velha questão: a apreciação estética atual difere sensivelmente da antiga? Quando Gosden (2001, p. 166) sugere que o arqueólogo “desaprenda” o próprio sensorium para apreciar o entorno sensorial do sítio em estudo, está presumindo que a arte é inapta para a proposição de categorias universais e que as preferências estéticas podem conduzir a julgamentos etnocêntricos. Ora, esta convicção de que o juízo estético envolve um sentimento subjetivo produzido diante do objeto de percepção é de origem kantiana e não corresponde à noção clássica de beleza como transcendental58. O decoro possui uma dimensão interna e outra externa. O decoro externo consiste na adequação da fábrica arquitetônica à expectativa do seu ocupante. O decoro interno é 58

Para uma exposição detalhada do tema, vide AERTSEN, Jan A. Medieval philosophy and the transcendentals. The case of Thomas Aquinas. Leiden: Brill, 1996, especialmente o capítulo 8: Beauty: a forgotten transcendental?

97 determinado pela adequação das partes ao todo, conforme os preceitos estabelecidos por uma autoridade a ser imitada. Os artífices não se concebiam como românicos, renascentistas, maneiristas, barrocos, românticos, neoclássicos, etc., mas como artistas capazes de atender à demanda de seus contratantes e de compor à imitação das autoridades. Aqui o conceito de autoridade deve ser distanciado da acepção moderna do termo, pois a noção mercadológica de originalidade veda o plágio em nome da proteção da autoria. A qualidade da imitação admitia três níveis: decalque, mera repetição de estilo e emulação. A arte é latente na emulação; mas soa artificial na repetição e é falsa na cópia. Na emulação, a imitação rivaliza com a obra autorizada e surpreende o destinatário capaz de reconhecer a perícia do artífice. Muitas vezes, o processo de copiar e imitar é complexo, envolvendo a ideia de que a cópia obtém certo poder de sua matriz. O problema do “estilo” na arqueologia foi longamente debatido, e eu tenho argumentado que o estilo frequentemente tem forte caráter social e ativo. A semelhança e a dessemelhança estilísticas estão relacionadas com questões como o prestígio, emulação e afiliação. Nunca copiamos as coisas cegamente. Na proporção que fazemos, utilizamos e reproduzimos as coisas através de rotinas práticas, ao mesmo tempo lidamos com objetivos e propósitos mais amplos que ultrapassam o escopo do material e o domínio da lógica estrita. (HODDER, 2012a, p. 123)

Além disso, o decoro exigido para as igrejas correspondia a normas canônicas legitimamente estabelecidas: “Ainda que seja coisa muito pia e louvável edificarem-se capelas [...] convém muito que se edifiquem com tal consideração que [...] nos deem primeiro conta por petição”, pois cabia à autoridade eclesiástica garantir “que o lugar é decente e que se obrigam a fazê-la de pedra e cal”59. Neste assunto, deve-se evitar um falso dilema entre a liberdade dos executores e os cânones impostos pelos contratantes; como se ri Yu-Fu Tuan (1983, p. 115), “este contraste entre o construtor primitivo e o arquiteto moderno é, certamente, um exagero: o primeiro não está totalmente preso ao costume e o segundo não tem uma escolha ilimitada”. Contudo, o problema da originalidade, intimamente ligado à questão da liberdade de criação,

59

Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Livro IV, Título XVII, Cláusula 692 (VIDE, 1853).

98 segue dividindo os estudiosos: os que concebem a originalidade à maneira moderna (Germain Bazin, John Bury, Graziano Gasparini) defendem a existência de uma autonomia expressiva na arquitetura colonial brasileira. Por outro lado, o decoro arquitetônico era derivação de distintas ordens decorosas — quer eclesiásticas, quer estatais —, referidas habitualmente como corporações: “corpo da irmandade”, “corpo capitular”, “corpo de mesa”, “corpo de câmara”, etc. Todos os corpora buscavam apresentar e representar dignamente na colônia o poder régio confessional. Deste modo, a metáfora corpórea aplicada a todos os níveis sociais fazia referência explícita à analogia suprema do “Corpo Místico de Cristo”: a Igreja Católica e, dentro dela, Portugal. A clássica doutrina paulina da Comunhão dos Santos60 fora desenvolvida no Medievo até ser sintetizada na definição de que Cristo-Cabeça e Igreja-Corpo constituem “como que uma pessoa mística”61. Tal evolução teológica invertia o sentido de uma clássica equação: o corpus mysticum (o mistério da Eucaristia) nutre o corpus verum (da verdadeira Igreja). A doutrina medieval, porém, passara a afirmar que o corpus verum (de Cristo verdadeiramente presente na Eucaristia) nutre o corpus mysticum (o mistério da Igreja)62. Uma vez que os reformadores protestantes rechaçavam as variadas manifestações visíveis dessa personalidade mística — a Eucaristia e os demais sacramentos; a Igreja enquanto estruturada hierárquica e organicamente; a iconodulia; etc. —, a tendência da contrarreforma foi adotar uma índole ferrenhamente “substancialista”, realçando o decoro eucarístico. Portanto, para que a metáfora do corpo da Igreja como corpo de Cristo seja persuasiva e eficaz, faz-se necessário que tudo no templo, símbolo da Igreja universal, convirja para a Eucaristia, pão supersubstancial (BASTOS, 2013, p. 22-23). Como pregava Vieira (2014, v. 2, p. 153-176) em 1645, no Sermão do Santíssimo Sacramento, na igreja de Santa Engrácia: Os templos do Santíssimo Sacramento são os mais fortes muros, são as mais inexpugnáveis fortalezas das cidades e dos reinos. Edifique-se, leve-se por diante esta fábrica que ela será os mais fortes muros de Lisboa, ela será a mais inexpugnável fortaleza de Portugal.

60

Cf. Rm 12,4s; 1Cor 10,16s; 12,12-28; Ef 1,22s.

61

“Caput et membra sunt quasi una persona mystica” (São TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologiæ, IIIa, q. 48, a. 2, ad 1; cf. ibidem, IIa-IIæ, q. 83, a. 16, ad 3; In Ep. ad Colos., c. 1, lect. 6). A possibilidade metafísica de objetivamente existir uma personalidade corporativa na Igreja foi estudada por Jacques Maritain, que a chama de “subsistência sobrenatural criada” (Il contadino della Garonna. Brescia: Morcelliana, 1980, p. 266). 62

Uma equilibrada crítica da polêmica pode ser lida em Introdução ao espírito da liturgia (RATZINGER, 2014a), p. 75-80.

99 Além de se aludir ao decoro eucarístico, é comum insistir na teatralidade da arquitetura barroca que serviria de “cenário” para a liturgia. De fato, conforme explica, Ángel García Ibáñez (2009, p. 340), “algumas correntes da teologia pós-tridentina falaram de representação (repræsentatio) […] do sacrifício da cruz, sustentando que a missa é essencialmente sacrifício porque nela se realiza uma representação in figura do sacrifício cruento do Gólgota”. Após demonstrar que essas teorias eram um tanto redutivas, o teólogo explica que “o Magistério do período […] precisou que se tratava de uma reapresentação ou de uma renovação sacramental, incruenta, mística, do sacrifício da cruz”. Portanto, a repræsentatio da Eucaristia é uma reapresentação, não uma representação. E mesmo que se tomasse a liturgia eucarística no sentido de uma reprodução do sacrifício da cruz, isto se faria no plano alegórico do rito, jamais numa pantomima litúrgica. Assim, o eventual caráter “teatral” da arte barroca deve ser buscado a outra parte, não como “pano de fundo” do culto sacramental. O templo enquanto “cenário barroco” Como indicado, a mentalidade dos setecentos se valia teatralidade não só para a persuasão religiosa. A retórica dos séculos XVII e XVIII frisava o aspecto visível da Igreja através da arquitetura, mas também se estendia à imagem dos Estados confessionais católicos, como o lusitano. O auto litúrgico era simultaneamente um auto cívico. Portanto, o templo serve como teatro de ações, cujo “espaço é a base mística no mundo visível sem a qual todas as condutas ordenadas ou autorizadas pelo ius (direito humano) e de maneira ainda mais geral todos os comportamentos humanos, são incertos, perigosos e até fatais” (CERTEAU, 2014, p. 191-192). Conforme Jacques Le Goff (1999, p. 323-4), pode-se afirmar que o período barroco tem muita semelhança com a Idade Média, época que “ignora um lugar especializado para o teatro. […] Toda a sociedade medieval se representa a si mesma”. Apesar das suas contradições, a vinda da família real para o Brasil estendeu até o século XIX a razão de Estado católica, que reclamava um aparato teatral de práticas de representação em flagrante contraste, não só com as ideias políticas de Maquiavel (14691527), mas também com os primeiros ventos liberais. Tal sociedade assim era descrita por Norbert Elias (2001, p. 82-83):

100 O aspecto exterior como instrumento da diferenciação social, a representação do nível hierárquico pela forma, tudo isso caracteriza não só as casas, mas também a organização da vida da corte como um todo. A sensibilidade desses homens para as ligações entre o nível social e a configuração visual de tudo o que faz parte de sua esfera de atuação, incluindo seus próprios movimentos, testemunha e expressa a situação social em que eles se encontravam. […] Numa sociedade em que cada manifestação pessoal tem um valor socialmente representativo, os esforços em busca de prestígio e ostentação por parte das camadas mais altas constituem uma necessidade de que não se pode fugir. Trata-se de um instrumento indispensável a autoafirmação social, especialmente quando — como e o caso na sociedade de corte — todos os participantes estão envolvidos numa batalha ou competição por status e prestigio.

Resta saber se no Rio de Janeiro dos setecentos havia bons conhecedores da verdadeira emulação artística e se a originalidade dos artífices era reconhecida no mercado de bens culturais da Colônia. Para avaliar o decoro teatral da matriz de Santa Rita, método semelhante ao de Rodrigo Bastos poderia ser aplicado ao caso carioca, cuja arquitetura sagrada também se destaca, como a mineira, pela necessidade de compartimentar e ornamentar os espaços com talhas de madeira. Além de proceder à análise da cultura material, conviria rastrear os termos com que a descreveram em tempos idos. Na ausência de tal fonte documental — cuja busca, aliás, iria além do escopo desta dissertação —, resta pelo menos anotar uma surpreendente crítica do professor Moreira de Azevedo, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sua censura, que claramente minorava o valor artístico de Santa Rita, traz a marca do século XIX, exemplificando o anacronismo romântico denunciado por Rodrigo Bastos: A igreja não tem adro63, o pórtico é de mármore, e são pequenas as janelas do coro; sobre o entablamento há um óculo com varões de ferro; segue-se um segundo corpo que apresenta no centro arabescos de alvenaria, e fecha a fachada um frontão curvo com uma cruz de granito. A torre, ao lado direito, é menos saliente que o corpo da igreja; tem uma porta no primeiro pavimento, uma janela na direção das do coro, o mostrador de um relógio que não existe, a abertura dos sinos e o coruchéu de forma piramidal. […] A talha que orna o templo interiormente é muito antiga, de mau gosto e de estilo barroco. Da capela-mor passa-se para a sacristia, onde se veem um arcaz muito velho, um nicho igual ao arcaz, um esguicho antiquíssimo, e um relógio bastante velho. […] Pertence ao gosto barroco a igreja de Santa Rita, que é pequena e de aspecto mesquinho. Em uma capital tão importante como é a cidade do Rio de Janeiro não devia servir de paróquia uma simples capela construída por devotos; a igreja paroquial, que guarda o sacrário e o batistério, deve ser vasta e elegante, para conter os paroquianos e patentear o gosto artístico do povo. (AZEVEDO, 1877, v. 1, p. 173-178)

63

Na verdade, possui um adro lateral.

101 O uso proficiente dos recursos artísticos, arquitetônicos e simbólicos abarcaria três vertentes: o esplendor do culto divino, a funcionalidade litúrgica e a plena inteligibilidade catequética. Segundo a apreciação transcrita acima, os dois primeiros objetivos teriam sido alcançados de forma sofrível, respectivamente devido ao mau gosto estilístico e ao apoucamento da edificação. Ora, o estilo barroco (e seu derivado rococó) — assaz afetado se comparado às formas clássicas — sofreu críticas ácidas por parte de acadêmicos internacionais até finais dos anos 1940, embora suas técnicas, composições e ilusões fossem revividas desde meados do século XIX (BAILEY, 2012, p. 413). Norbert Elias explicava que havia “uma determinada antinomia nessa sociedade [barroca]. O que hoje em dia aparece como luxo, numa consideração retrospectiva, não é nada supérfluo numa sociedade assim estruturada” (2001, p. 82-83). Por isso, … não obstante sua grande importância histórica, a cultura barroca não tem recebido muita simpatia ou apreço dos historiadores modernos, em grande parte graças aos preconceitos nacionais ou religiosos e às próprias limitações. A própria palavra “Barroco” possui um sentido pejorativo64 tanto para os classicistas rigorosos como para os homens do renascimento gótico. De fato, chamar a cultura barroca de “Contrarreforma” sugere, inevitavelmente, que foi um movimento retrógrado, negativo, oposto ao fluxo do progresso; contudo, a cultura barroca foi imensamente profícua — na arte, na literatura e na música. (DAWSON, 2014, p. 225)

A reabilitação internacional do Barroco ganhou ainda mais força no final do século XX por um motivo inopinado: A queda da Cortina de Ferro e o consequente ressurgir do Catolicismo e da Ortodoxia na Europa Central e Oriental conferiram ao Barroco uma inesperada função de símbolo da liberdade religiosa e intelectual. A Lituânia e a República Tcheca ressuscitaram sua identidade barroca restaurando igrejas e palácios dos séculos XVIII e XIX, de Vilnius a Brno, e seus responsáveis pelo turismo promovem viagens temáticas “barrocas”, muitas vezes combinadas com peregrinações religiosas. Este revivalismo tem sido fortemente percebido pelas escolas de arte, à medida que as obras-primas da arte e da arquitetura do leste europeu estão atraindo cada vez mais a atenção dos admiradores ocidentais. (BAILEY, 2102, p. 414)

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Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o termo originário é emprestado do francês baroque (rebuscado) e do primitivo ibérico barroca (terreno irregular). Designa o que é falso ou de mau gosto; extravagante, excessivo; insólito. Contrário à perfeita sobriedade e harmonia renascentistas, o Barroco é dramático, complexo, contraditório, passional, expressivo.

102 No Brasil, entretanto, a conotação negativa do Barroco só perdurou até o Estado Novo. Secundando o impulso nacionalista, o estilo foi reinterpretado como popular e tradicional. Tornou-se unânime a exaltação dos artistas mestiços, e particularmente de Aleijadinho. Conforme observa a arqueóloga Juliana Poloni (2015, p. 340), o objetivo teria sido “criar um sentido de continuidade histórica para a nação e para assinalar o nascimento da ‘brasilidade’ [… que] estabelece a ligação do país ao universal e ao moderno”. É possível entrever certa relação entre as ideias nacionalistas sobre o Barroco e o ensaísmo otimista de Gilberto Freyre (2006), pois a construção da identidade e do patrimônio nacionais inicialmente girou mais em torno ao Barroco “mestiço” (cf. POLONI, 2015, p. 342) do que da herança arqueológica brasileira: O fato de a Arqueologia ter permanecido alheia ao desenvolvimento da ideia de cultura nacional não torna irrelevante a análise desses debates para a Arqueologia como campo científico. Pelo contrário, o desenvolvimento desse discurso deve ser percebido como uma construção histórica e argumentativa que influenciou as imagens do passado e da cultura material ao longo do tempo e do espaço do marco da nação brasileira. (POLONI, 2015, p. 349)

Finalmente, Juliana Poloni (2015, p. 346-347) explica que as especulações da época também eram devedoras das teorias de história da arte então em voga, que oscilavam entre as visões formalista de Heinrich Wölfflin (a arte como autônoma e independente da história)65, a esteticista de Max Dvořák (a inovação artística como transformadora das ideias) 66 e a historicista de Leo Balet (o ímpeto artístico como consequência das transformações históricas), cuja obra obteve maior preponderância no Brasil. A discussão sobre as relações entre a Arte e a História abre caminho para uma última metáfora, de cunho marxista, e que em certo sentido constitui uma releitura das anteriores: a metáfora do poder.

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Graças aos estudos do historiador suíço (vide Renascença e Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1989), o Barroco foi compreendido e valorizado como época histórica e como categoria estética oposta ao clássico. Apesar de ter defendido a existência de uma “vontade de arte” (Kunstwollen), o próprio Wölfflin admitiu que “formas isoladas podem nascer da técnica”, embora “a técnica não crie jamais um estilo” (1989, p. 91). Segundo Ian Hodder (2012b, p. 122), Heinrich Wölfflin “foi crítico da visão hegeliana e procurou um sentido mais robusto da coerência e unidade no campo visual”. 66

O historiador da arte tcheco é devedor do pensamento de Alois Riegl, para quem a “vontade de arte” coletiva (Kunstwollen) depende da “visão de mundo” de cada época (Weltanschauung).

103 O templo enquanto “espaço de poder” Espaço controlado James Delle, Mark Leone e Paul Mullins (1999, p. 1108) entendem — desde uma perspectiva marxista — que o escopo da arqueologia histórica deve ser ampliado para abarcar as instituições e a economia, através da análise dos mecanismos de submissão dos indivíduos. Assim, não surpreende que esses arqueólogos tenham descoberto pretensas relações entre o pan-óptico de Jeremy Bentham (1748-1832) e o a arquitetura barroca. O pan-óptico é o modelo ideal de penitenciária, desenvolvido pelo iluminista londrino em fins do século XVIII, e repetidamente citado por Foucault em sua obra Surveiller et Punir: naissance de la prison (Vigiar e Punir: nascimento da prisão), de 1975. Segundo esses autores, “a ordem barroca é uma combinação de teoria política e ambiente físico produzido”, pois “expressa mediante determinado estilo arquitetônico a decoração interior e a paisagem urbana e rural”. Em um mundo descentralizado, o Barroco visaria a “sustentar uma hierarquia pública estatal onde há conflito entre muitos centros de opulência instituídos e os desejos do centro de poder. No cerne da teoria barroca há uma tensão interna nas tentativas do Estado de criar lealdade uniforme” (DELLE & alii, 1999, p. 1112). Através do entorno barroco construído, a autoridade governava comandando a visão dos indivíduos. […] O propósito dessa arquitetura barroca seria impressionar os nativos […]. Em grande escala, portanto, a arquitetura barroca acompanhou a instabilidade política. (DELLE & alii, 1999, p. 1136)

Por sua vez, a mentalidade subjacente ao pan-óptico teria sido uma evolução do pensamento barroco, ao migrar o controle do âmbito social — realizado através da etiqueta e da disciplina comportamental — para o âmbito individual (DELLE & alii, 1999, p. 1116). Apoiados em Foucault — para quem a Igreja, o Estado e a prisão seriam instituições primariamente repressivas67 —, Delle, Leone e Mullins chegam ao paradoxo de afirmar que a torre

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Sobre a temática, é interessante a defesa apresentada por Joseph Ratzinger (2014b, p. 84-85): “Quando tentam nos impor a pueril lógica marxista segundo a qual a autoridade é poder e o poder é um instrumento de opressão, temos que resistir a essa mistura de verdade e falsidade. O poder tem muitas faces. Uma de suas formas fundamentais é a capacidade de formar opiniões, sequestrar o homem através dos gigantes da opinião pública. A auctoritas, no sentido original da palavra, não se opõe à liberdade, mas é um aspecto da ordem interior da liberdade. Ela age enquanto tal como livre vínculo moral e nisso é o contrário de uma coerção externa. Podemos abusar da autoridade, mas ela em si não é um abuso”.

104 oitavada de uma igreja, ou um simples púlpito68, teria uma “função pan-óptica”! (cf. DELLE & alii, 1999, p. 1137) Sem dúvida, a arqueologia histórica deve incluir aspectos institucionais e econômicos em suas explanações; mas isso não implica que essas dimensões solapem todas as demais facetas da realidade. Tal é o risco da abordagem sincrônica estruturalista, cuja epistemologia híbrida acarreta uma forte e duvidosa carga interpretativa. Conquanto seja possível aventar discursos deste gênero e estabelecer sedutoras correlações a partir da cultura material, há de se convir que a tese supracitada não resiste diante de qualquer conhecimento elementar de arquitetura, arte, história ou liturgia. Isto mesmo poderá ser comprovado com o desenvolvimento desta dissertação. Espaço alienado Ainda dentro do marco teórico marxista, é mister citar o filósofo existencialista Henri Lefebvre (1901-1991), cuja obra The production of space tornou-se uma referência para a sociologia rural e urbana. O cerne da crítica desenvolvida por Lefebvre — igualmente empregada pelo geógrafo marxista David Harvey — é a alienação do quotidiano na modernidade. Contra a banalidade, Lefebvre propunha o homem total que se completa ao assumir seus “momentos” minados pelo ritmo da vida capitalista, ou seja: experiências, sensações, amores e esforços. Mediante uma robusta argumentação, o livro insere o tema do espaço na discussão marxista sobre a “apropriação”; rompendo com a tradição sociológica, o espaço vem apresentado como uma expressão dos modos de produção em vez de uma mera expressão de territorialidade. Para Marx, “o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”69.

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Uma torre oitavada pode meramente fazer referência às oito bem-aventuranças (cf. Mt 5,3-12). Na fábrica barroca, o zimbório oitavado servia de referência à ressurreição de Cristo, mormente instalado sobre a Eucaristia e sua custódia (cf. BASTOS, 2013, p. 156). Como não serve de posto de vigia, a pretensa função “pan-óptica” de um zimbório só poderia existir para pessoas com mania de perseguição… Quanto ao púlpito, é evidente que sua concepção responde à necessidade acústica da pregação e não a uma suposta obsessão “pan-óptica” do pregador. 69 MARX, Karl Heinrich. Contribuição para a Crítica da Teoria Política (1859), Prefácio, apud PEREIRA, Júlio César R. Epistemologia

e liberalismo. Uma introdução à filosofia de Karl R. Popper. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, p. 135.

105 Primeiramente, Lefebvre distingue três espaços: o concebido pelo projetista (espace concu), o percebido pelo ocupante (espace percu) e o vivenciado e conservado na memória (espace vecu)70. Em seguida, explica como o espaço pode ser alienado: Um espaço existente pode fugir ao seu propósito original e à razão de ser que determina suas formas, funções e estruturas; ele pode inclusive tornar-se vacante e suscetível de ser invertido, reapropriado e destinado para um uso bastante diferente do inicial. (LEFEBVRE, 1991, p. 167)

Dentre as consequências da alienação espacial, conta-se a subtração do tempo. Lefebvre denuncia que o tempo humano e histórico foi dominado pelo espaço capitalista: Com o advento da modernidade, o tempo foi banido do espaço social. Ele só é registrado por instrumentos de medida, em relógios que são isolados e especializados como o próprio tempo. O tempo vivido perde sua forma e seu interesse social — exceto o gasto no trabalho. O espaço econômico subordina o tempo a si mesmo; o espaço político o expulsa como obscuro e perigoso (para o poder). A primazia do econômico e acima de tudo do político implica a supremacia do espaço sobre o tempo. (LEFEBVRE, 1991, p. 95)71

Mas Lefebvre não se contenta com o limitado horizonte econômico marxista e recorre à compreensão do poder em Nietzsche para ir além. “O que é uma ideologia sem um espaço a que se referir…? […] O que restaria da Igreja se não houvesse igrejas? […] O Estado e cada uma das instituições que o compõem reclamam espaços” (LEFEBVRE, 1991, p. 44). Portanto, o resgate do espaço deve superar os três aspectos que, conforme sua análise, são típicas do espaço capitalista:

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O laureado geógrafo Edward Soja desenvolveu, a partir da classificação proposta por Lefebvre e do conceito de heterotopia de Michel Foucault, a ideia do thirdspace, isto é, um espaço híbrido que consiste na experiência do espaço real mediado pelas expectativas do espaço concebido. Cf. SOJA, Edward W. Thirdspace. Journeys to Los Angeles and Other Real-and-Imagined Places. Cambridge: Blackwell Publishers, 1996. 71

Há um interessante o paralelismo entre as apreciações de Lefebvre e as seguintes palavras do papa Francisco (Exortação Evangelii gaudium, 24/11/2013, n. 222 e 223): “Existe uma tensão bipolar entre a plenitude e o limite. A plenitude gera a vontade de possuir tudo, e o limite é o muro que nos aparece pela frente. O ‘tempo’, considerado em sentido amplo, faz referimento à plenitude como expressão do horizonte que se abre diante de nós, e o momento é expressão do limite que se vive num espaço circunscrito. Os cidadãos vivem em tensão entre a conjuntura do momento e a luz do tempo, do horizonte maior, da utopia que nos abre ao futuro como causa final que atrai. Daqui surge um primeiro princípio para progredir na construção de um povo: o tempo é superior ao espaço. Este princípio permite trabalhar a longo prazo, sem a obsessão pelos resultados imediatos. Ajuda a suportar, com paciência, situações difíceis e hostis ou as mudanças de planos que o dinamismo da realidade impõe. É um convite a assumir a tensão entre plenitude e limite, dando prioridade ao tempo. Um dos pecados que, às vezes, se nota na atividade sócio-política é privilegiar os espaços de poder em vez dos tempos dos processos. Dar prioridade ao espaço leva-nos a proceder como loucos para resolver tudo no momento presente, para tentar tomar posse de todos os espaços de poder e autoafirmação. É cristalizar os processos e pretender pará-los. Dar prioridade ao tempo é ocuparse mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos de uma cadeia em constante crescimento, sem marcha atrás. Trata-se de privilegiar as ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificarem em acontecimentos históricos importantes. Sem ansiedade, mas com convicções claras e tenazes”.

106 a) uma “lógica da visualização” geradora da “sociedade do espetáculo”72; b) um novo decoro geométrico e homogêneo de cunho euclidiano; c) e uma dimensão fálica, isto é, erigida com violência autoritária. Como aplicar essas especulações à igreja matriz de Santa Rita? Haveria realmente uma perversa lógica capitalista oculta na materialidade do edifício? O teatro barroco e a sociedade de corte seriam as primeiras manifestações da “sociedade do espetáculo”? Espaço sequestrado Essas perguntas se inserem em uma indagação ainda mais ampla acerca da conciliação do marxismo com o fenômeno artístico. Embora Marx não tenha dedicado ao tema um texto exclusivo, fez recorrentes referências à arte e à literatura ao abordar os processos históricos, evidenciando … a relação desigual do desenvolvimento da produção material com, por exemplo, o desenvolvimento artístico. […] Na arte, é sabido que determinadas épocas de florescimento não guardam nenhuma relação com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, portanto, como o da base material, que é, por assim dizer, a ossatura de sua organização (MARX, 2011, p. 62).

Infelizmente, Marx comenta no Prefácio de 1859 para a Contribuição à crítica da economia política que suprimira da obra uma introdução geral sobre os temas artísticos, pois considerou seu pensamento pouco amadurecido (cf. MARX, 2008, p. 45). Mesmo sem outras informações, o fato é que, para parte da intelligentsia materialista, a arte parecia fadada a desaparecer da sociedade. Gyögy Lukács, pelego do partido comunista húngaro, criticou essa interpretação, a qual, não obstante, condiz com pretensão marxista de explicar cientificamente toda a realidade: O marxismo vulgar identificou imediatamente a gênese social da arte com a sua essência, chegando por vezes a conclusões absurdas, como, por exemplo, à afirmação de que na sociedade sem classes as grandes obras de arte criadas nas sociedades classistas cessariam de ser compreendidas e apreciadas (LUKÁCS, 1970, p. 265).

72

“A ideia da cidade como teatro, como um lugar de espetáculo, não é nova. Ela moldou o planejamento urbano ao redor do mundo desde os tempos antigos até o presente” (O’KEEFFE, Tadhg; YAMIN, Rebeca. Urban historical archaeology. In: HICKS; BEALDRY, 2006, p. 92).

107 Lukács foi o teórico que pretendeu dar conta do fenômeno estético a partir do cerrado horizonte marxista. Seu enorme e inconcluso livro Aesthetik foi um esforço coerente para atribuir à arte um papel transformador da consciência do indivíduo. Exemplo radical de aplicação da sua proposta é o teatro de Bertolt Brecht, em que o espectador toma consciência dos problemas encenados e é convidado a decidir e a colaborar na libertação do homem. Por outro lado, em diversos outros ensaios Lukács reduz a manifestação artística a uma mera projeção sociológica, negando sua transcendência espiritual. Fiel ao princípio de que “a classe que dispõe dos meios da produção material dispõe também dos meios da produção intelectual” (MARX; ENGELS, 2001, p. 48), para Lukács a produção estética visaria à satisfação de interesses econômicos e nunca proviria da iniciativa criadora pessoal. Aqui se palpa um desacordo irredutível entre o materialismo e a visão humana da arte. Todo este arrazoado não passa de um discurso ideológico cujos pressupostos foram indevidamente universalizados: a metáfora marxista torna-se a imposição totalitária de uma “metáfora morta”…73 Metáforas e metanarrativas A tradição artística valorizou as transformações da Arquitetura ao longo do tempo, tornando o estilo uma força dominante dentro da metanarrativa da disciplina. A abordagem da Arqueologia crítica74, pelo contrário, tendeu a interpretar as tipologias estabelecidas com um discurso de aceitação ou resistência, como se pôde comprovar acima. Embora renunciando ao materialismo subjacente a alguns desses enfoques, é razoável associar a importância cultural dos edifícios à atividade política neles desempenhada. As edificações de fato têm uma função para a construção das identidades sociais e para estabelecer suas relações com o poder instituído. As próximas seções apresentarão outros recursos de analíticos de que a Arqueologia pode se valer ao estudar os remanescentes arquitetônicos, para além da análise metafórica.

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Metáfora morta é aquela “em que o sentido figurado suplantou completamente o que fora o sentido literal” (JOSEPH, 2002, p. 64). 74

Uma exposição geral sobre a abordagem crítica da paisagem em arqueologia pode ser lida no capítulo Landscapes, ideology and experience in historical archaeology, de Lu Ann De Cunzo e Julie H. Ernstein, publicado em The Cambridge Companion to Historical Archaeology (HICKS; BEALDRY, 2006), p. 255-261.

108 Não obstante, ao se inquirir o que subjaz de forma latente na cultura material, quer de índole trópica, quer de cunho fenomenológico ou de qualquer outro gênero, é preciso precaver-se dos problemas inerentes aos discursos explicativos que serão construídos a partir daí. Afinal: O estilo é mais tributário da agenda ou da agência? A arte é fruto da história ou a alimenta? Indagações como essas dividiram os teóricos e aparentemente não encontraram respostas satisfatórias ou definitivas, embora muitos pretendam justificar teorias totalizantes. Peter Burke alertava para isso ao criticar os conceitos de “religiosidade popular”, “práticas oficiais” e demais classificações equívocas: Como saber aquilo que os “ignorantes” pensavam, ou sentiam, acerca da sua religião? Se recorrermos à literatura religiosa popular, por exemplo, corremos o risco de ignorar os analfabetos e ainda de confundir as produções “do povo” com aquilo que era produzido para ele. Mesmo que pudéssemos ter a certeza de que um grupo de camponeses, artesãos ou mulheres, lia ou ouvia ler urna determinada obra de devoção, não temos meios de saber como a compreendiam. Obtemos este tipo de informações no caso dos de heresia, urna vez que a Inquisição transcreveu as suas respostas (e também os seus gestos) com tal minúcia que os seus registos chegaram a ser comparados a gravações ou até mesmo a videoteipes; mas devemos estar de sobreaviso quanto a perguntas “diretivas”, e ter em conta o problema da tipicidade. A Inquisição interrogava apenas urna minoria. Podemos seguir o exemplo de Le Bras e estudar as estatísticas das confissões e comunhões pascais a partir dos dados recolhidos por um número crescente de bispos a partir do Concílio de Trento; mas o significado das suas flutuações permanece incerto. Podemos virar-nos para a cultura material e estudar as imagens religiosas e até mesmo a disposição do interior das igrejas de aldeia, acrescentando aos problemas restantes o de traduzir em palavras a linguagem dos objetos. Qualquer destas abordagens tem as suas vantagens; todas foram praticadas por algum dos historiadores […]; todas têm as suas limitações, e a combinado de todas elas, a solução que parece à primeira vista mais evidente acarreta, por sua vez, novos problemas. Contudo, trata-se da melhor opção possível para levar avante a ambiciosa tentativa de recuperar os pressupostos não ditos. (BURKE, 1992, p. 113-114)

Talvez, seguindo Bruno Latour (in: GALISON; JONES, 1998, p. 435), seja preciso concluir que o melhor modo de interpretar imagens consista em abdicar de “uma interpretação simbólica que pudesse estar escondida sob o uso popular e metafórico. Ao contrário das aparências, tal forma de ler é excessivamente cientificista”, pois a questão imagética não versa sobre mensagens, mas sobre os mensageiros. Da mesma opinião é Michel de Certeau (2008, p. 184): As pesquisas sobre a iconografia religiosa conduzem de fato aos fabricadores […]. Em acréscimo, referem-se a uma expressão particularmente conservadora ou a temáticas e estruturas cultuais que se mantêm, frequentemente, apesar da evolução ambiente, e não são muito bons testes de mudança. (CERTEAU, 2008, p. 184)

109

2.2 Desenvolvimento arquitetônico das igrejas cristãs Em cada estrutura, no contexto litúrgico, existe uma dupla função: aquela prática, em relação com a ação material que a envolve, e a simbólica, expressa pela celebração do mistério entendido como lugar da ação. (Vincenzo Gatti. Arte e spazi liturgici)

A despeito de as ferramentas apresentadas nesta dissertação propiciarem uma pauta interpretativa para a Arquitetura, necessário é recordar, no caso da matriz de Santa Rita, as características do edifício enquanto sendo o de um templo católico, colonial e barroco. Somente a partir do conhecimento histórico, artístico e litúrgico deste tipo de edifício que podem ser justificadas as metáforas e convalidadas as interpretações. Para isso, convém tratar sucessivamente dos elementos distintivos das igrejas, de sua evolução e inovações. Deve-se ter em conta que a captação dos elementos constitutivos das igrejas não está necessariamente ligada à classificação tipológica dos edifícios, pois os mesmos componentes podem ser encontrados em inúmeras plantas diferentes, agrupadas em três tipos pela tradição75: longitudinal (basilical), centralizado (circular), e misto (cabeceira circular com nave longitudinal). Elementos originários Ainda que conservem traços oriundos do modelo das sinagogas judaicas da Antiguidade, os templos cristãos sofreram uma significativa transformação ao longo dos séculos. Orientadas para Jerusalém, as sinagogas tinham uma estrutura dupla: de um lado a “cátedra de Moisés” (onde se assentava o rabino) e, de outro, o “propiciatório” (uma arca com o rolo da Lei mosaica). De forma semelhante, as primitivas igrejas cristãs articulavam-se em torno à sede do bispo (em que se assentava o celebrante principal) e ao ambão (ou “trono do Evangelho”, de onde se proclamavam as leituras do texto inspirado). O referencial jerosolimitano foi logo substituído pela orientação a leste, que era assinalada pela presença de um novo elemento: o altar no qual se oferece a Eucaristia76. Ainda que não houvesse altar na sinagoga,

75 76

Cf. FRANCESCO DI GIORGIO MARTINI, Trattato di architettura civile e militare, IV, 2.

Além da orientação para leste e a aparição do altar, Joseph Ratzinger (2014a, p. 59-63) fala de outras duas diferenças significativas entre a igreja e a sinagoga: a presença das mulheres e a colocação dos Evangelhos junto à Torah. Quanto à necessidade

110 o altar cristão remete àquele referido no Antigo Testamento, estabelecendo uma relação tipológica entre o sacrifício de Cristo e a oferta de Abel, Melquisedec ou Abraão. Embora a inter-relação dos três elementos tenha variado muito ao longo da história bimilenar da Igreja, o jogo altar — ambão — sede teologicamente sempre representou os tria munera de Cristo-Sacerdote: o altar da Eucaristia simboliza sua missão santificadora; o ambão das leituras, seu profetismo; a sede episcopal, sua realeza77. Distribuição funcional Além de atender à tríplice função litúrgica, os templos também costumam responder à função de congregatio, ou seja, de acolher os fiéis, e à função de martyrium ou memoriæ, isto é, de recordação e culto dos mártires e dos santos. A partir do período barroco, a franca maioria das igrejas católicas de rito romano são tributárias da igreja de Gesú de Roma, executada por Giacomo Vignola e por Giacomo della Porta (PEVSNER, 1982, p. 220), na qual foram cristalizados os séculos de evolução formal em três espaços principais interligados: o átrio ou nártex, que funciona como antessala; a nave, que é o compartimento mais avantajado no qual permanece o povo; e o santuário ou presbitério, cuja peça central é o altar e onde ocorre a parte principal da ação litúrgica. Geralmente, junto ao nártex há um adro para separar a igreja do espaço público. Antes da proibição dos enterramentos em igrejas, era no adro que os fiéis costumavam ser sepultados. Por outro lado, nas laterais da nave (que inclusive pode ser mais de uma), difundiu-se a prática de se construir altares secundários, mormente em nichos dedicados a Santos de alguma devoção particular, sem prejuízo do altar principal (altar-mor). No período barroco, foi comum privilegiar a nave única, o que facilita a audição dos sermões. A estrutura espacial nártex — nave — presbitério também guarda um simbolismo muito explorado pela catequese barroca, pois alude às três “idades” ou “etapas” da vida cristã: a via purgativa, representada pelo nártex, o qual na Antiguidade servira de vestíbulo dos

da disposição da celebração para oriente, a utilização de um o crucifixo acima do altar pode substituir esse referencial (idem, ibidem, p. 72-73). 77

A teologia católica chama de “ofícios de Cristo” ao tríplice múnus de sua mediação sacerdotal: santificar, ensinar e governar (munus sanctificandi, munus docendi, munus regendi). Cf. São TOMÁS DE AQUINO, Expositio in Ps. XLIV, n. 5; In Ep. ad Hebr. I, 4; In Ep. ad Rom. I, 1.

111 catecúmenos e penitentes; a via iluminativa, representada pela nave, ao longo da qual se vislumbram as efígies dos Santos e os símbolos das devoções; e a via unitiva, representada pelo presbitério, no qual a Eucaristia é confeccionada e dada em comunhão78. Elementos específicos das igrejas barrocas O retábulo As igrejas coloniais brasileiras mantêm as características gerais das igrejas cristãs e incluem a aparição e a assimilação de novos elementos cultuais79. Dentre eles, destaca-se o uso do retábulo, de notável importância no período barroco, ainda que tenha surgido com bastante anterioridade, no início do segundo milênio. Com efeito, São Gregório Magno (540-604) tivera a iniciativa de colocar o altar sobre um estrado em cima das relíquias dos santos, articulando o repouso dos mártires (cf. Ap 6,6) com o sacrifício eucarístico (VAUCHEZ, 2013: p. 12). Desde fins do século IX introduzira-se no Ocidente o costume de se instalarem sobre os altares relíquias de Santos. Duzentos anos depois, como nem todas as igrejas tinham acesso a tais relíquias, a lacuna foi contornada com a construção de retábulos, especialmente nos altares laterais. O retábulo (retro-tabula) consistia num pequeno quadro retangular removível que ficava adossado sobre o altar. Podia ser de pedra ou metal, e pintado na madeira ou sobre tela, representando Cristo, Maria ou os Santos. Durante o período gótico (séculos XIIXIV), os retábulos cresceram em proporção, tornando-se inclusive monumentais, a ponto de ficar consagrado o uso de grandes retábulos fixos em cima do altar-mor ou atrás dele. Tal uso implicou, a partir de fins do Medievo e até o século XVIII, que o altar fosse transladado ao fundo da abside80, tornando-se, na prática, um mero acessório do retábulo, desde então transformado em monumento de proporções grandiosas, composto de estátuas, anjos, colunas, etc. Por isso, do ponto de vista artístico, os retábulos

78

Sobre esta interpretação alegórica do espaço sagrado, vide BASTOS, 2013, p. 373-379. Veja-se a distribuição espacial de Santa Rita na Tabela 4 infra. 79

Só no século XX, graças ao movimento litúrgico e à reforma operada após o Concílio Vaticano II, é que a arquitetura religiosa recebeu nova orientação, em busca de uma restauração dos elementos originários do culto cristão. 80

Nicho ou recinto semicircular ou poligonal, de teto abobadado, geralmente situado nos fundos ou na extremidade de uma construção ou de parte dela. No caso das igrejas, situa-se na extremidade da nave, do coro ou do transepto.

112 … são considerados os principais elementos das igrejas nos diversos países em que esta arte se desenvolveu. Os retábulos constituem uma categoria de bem cultural que se destaca, por sua forma, função e pelo contexto em que se encontram. Adquirem muitas vezes grandes dimensões, tornando-se parte indissociável da arquitetura, constituindo em certos momentos, uma unidade espacial quase autônoma. (RIBEIRO, 2009, p. 16)

O sacrário A par das funções celebrativa, comunitária e martirial, as igrejas também servem para a reserva da Eucaristia81. Nos inícios, a reserva se fazia num pequeno vaso chamado árcula, guardado num quarto particular. No tempo das basílicas, difundiu-se a praxe de conservar o Santíssimo Sacramento em uma torre de prata ou em uma colomba de ouro; na época românica, surgiu um terceiro vaso sacro, a píxide, que podia ter qualquer tamanho e formato. Os três tipos de custódia (torre, colomba ou píxide) ficavam ou suspensos sob o altar e envolvidos num véu, ou guardados ao lado em um armário ou edícula82. Desde o século XVI, porém, um sacrário fixo passou a ser instalado sobre o altarmor, destacando para os fiéis a reserva eucarística: a praxe materializava a exigência pastoral de afirmar a doutrina católica sobre a transubstanciação83 e a presença real de Cristo na Eucaristia frente a opinião contrária dos reformadores protestantes84. Essa evolução, iniciada no norte da Itália, espalhou-se pelos demais países no século XVIII e se fez normativa no século XIX85.

81

Diz o Concílio de Trento: “É tão antigo o costume de guardar a Santa eucaristia no sacrário, que já era conhecido no século em que foi celebrado o Concílio de Niceia. É certo que além de ser muito conforme a equidade e a razão, se tenha ordenado em muitos concílios, e observando por costume muito antigo da Igreja Católica, que se leve a Sagrada Eucaristia para administrá-la aos enfermos, e com essa finalidade a eucaristia deve ser cuidadosamente guardada nas igrejas. Por este motivo, estabelece o Santo Concílio que necessariamente este costume tão saudável deve ser mantido” (Seção XIII, 11/10/1551, Cap. VI [DH 1645]). 82

A Admonitio Synodalis, importante documento do século X, prescrevia para todo o Ocidente que no altar “só deve permanecer a urna [com as relíquias] dos Santos, o evangeliário e a píxide com o Corpo do Senhor” (apud PIACENZA, 2004). 83

A explicação da doutrina da conversão de toda a substância do pão no Corpo de Cristo e de toda a substância do vinho no seu Sangue procede do Concílio ecumênico IV de Latrão, celebrado em 1215 (DH 802). Foi confirmada pelo Concílio de Trento, que declarou o termo transubstanciação conveniente e apropriado para descrever o mistério eucarístico (DH 1642 e 1652). 84

Lutero defendia que o corpo e o sangue de Cristo se identificam com o pão e o vinho (presença consubstanciada). Para Zwinglio, a Eucaristia apenas “significa” o corpo e o sangue de Cristo (presença in signo). Para Ecolampádio (1482-1531), a Eucaristia tem somente aspecto “figurativo” (presença in figura). E, para Calvino, Cristo apenas “atua” na Eucaristia (presença in virtute). Cf. GARCÍA, 2009, p. 290. 85 Atualmente, a Instrução Redemptionis Sacramentum, de 2004, prescreve (n. 130):

“De acordo com a estrutura de cada igreja e os legítimos costumes de cada lugar, o Santíssimo Sacramento será guardado em um sacrário, na parte mais nobre da igreja, mais insigne, mais destacada, mais convenientemente adornada e também, pela tranquilidade do lugar, apropriado para a oração, com espaço diante do sacrário, assim com suficientes bancos ou assentos e genuflexórios. Atenda-se diligentemente,

113 A existência de um tabernáculo (“pequena casa”) para as espécies eucarísticas dentro da domus Dei (“casa de Deus”) tem propriamente um caráter devocional e, de certo modo, compete com a celebração litúrgica ao fazer cruzar as duas funções. O recato da adoração exigida pela presença eucarística parece em contradição com a movimentação inerente à celebração da missa. Não à toa, ocorreram no período barroco a criação e o desenvolvimento da Solene Exposição e Bênção do Santíssimo Sacramento, cerimônia concorde ao sentimento da época, de estilo cortesão, expressivo, extasiante e apaixonado, como uma grande ópera dedicada à Divina Presença Eucarística. Contrariamente, a complexa liturgia da missa incluía muitos elementos em desarmonia com o gosto do período (BOUYER, 1955, p. 7). Arquitetonicamente, convém assinalar que a desproporção do volume do sacrário sobre o altar-mor das igrejas barrocas fez que surgisse em bastantes lugares o “sacráriotrono”, integrado ao retábulo monumental. Uma consequência desse processo multissecular foi a perda da singularidade, do simbolismo e da dignidade do altar, que deixou de ser cúbico e central. Além disso, esta nova disposição da ara86 habitualmente ocultava da vista dos assistentes à missa o mistério da Eucaristia, contribuindo para que as indicações tridentinas sobre a liturgia “não fossem suficientes para garantir a participação consciente, ativa e frutuosa dos fiéis no sacrifício eucarístico” (GARCÍA, 2009, p. 294)87. Talvez não seja arriscado afirmar que, para as igrejas de planta basilical, herdeiras das primitivas “igrejas domésticas” (ecclesiæ domesticæ) ou “casas da igreja” (domi ecclesiæ)88,

além disso, a todas as prescrições dos livros litúrgicos e às normas do direito, especialmente para evitar o perigo de profanação”. 86

Com a reforma do rito romano auspiciada pelo Concílio Vaticano II, a Igreja Católica procurou recuperar a centralidade do altar na arquitetura das igrejas (cf. CONGREGAÇÃO DOS RITOS, Instrução Inter Œcumenici para a implementação das normas litúrgicas. Roma: 26 de setembro de 1964 [Acta Apostolicæ Sedis 56], n. 91). Desde então, porém, tornou-se lugar comum falar de celebração da missa “de costas” ou “de frente para a assembleia”; tal abordagem é simplista e confunde a localização espacial com a intenção litúrgica, pois a orientação da celebração nem é coram populo nem é versum absidem, mas sempre coram Deo (cf. RATZINGER, 2014a, p. 65-73). Atualmente, está claramente estabelecido que a legislação canônica deve ser interpretada no sentido de que circunvagar o altar é uma possibilidade, não uma obrigação (cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS, Institutio Generalis Missalis Romani, 2008, n. 299). 87

Ángel García Ibáñez (2009, p. 294-295) também enumera, entre as razões para o empobrecimento da participação litúrgica dos católicos na missa ao longo do período pós-tridentino: a fraca catequese sobre o sacerdócio comum dos fiéis; o uso exclusivo da língua latina; a forma então vigente do rito romano ser pouco dialogada, a recitação das partes mais importantes da celebração ser feita em voz baixa; a não previsão de o povo se unir ao coro nas missas cantadas; e a baixa frequência à Comunhão (a qual foi tida erroneamente como devocional por muitos fiéis, exigia rigoroso jejum e chegou a ser evitada por influência do jansenismo). 88 Chamam-se domus ecclesiæ

2009, p. 141-146.

os edifícios preexistentes adaptados ao culto cristão antes da Paz Constantiniana. Vide ÍÑIGUEZ,

114 a reserva eucarística tenha sido responsável pela consolidação e pelo realce do seu caráter de “templo” ou “casa de Deus” (οίκος θεού). Com efeito, originalmente a igreja cristã era como a sinagoga: uma “casa da assembleia” com âmbito de convivência cultual. Os templos, por sua vez, tanto na história religiosa da humanidade quanto na tradição veteritestamentária, são lugares interditados ao povo, porquanto reservados à divindade (RATZINGER, 2014a, p. 55). Em resumo: em seus inícios, o espaço litúrgico servia apenas para propiciar a celebração do mistério cristão89 e acolher a assembleia90 cuja reunião tem caráter sacerdotal91. Por outro lado, a dedicação do edifício a Deus e à memória dos santos, assim como a reserva cultual da Eucaristia, constituem funções não ligadas ao uso precípuo do edifício, mas foram acolhidas por motivos pastorais e doutrinais. Neste contexto se insere uma aguda observação de Rodrigo Bastos (2013, p. 8586): Não é por acaso que as matrizes eram, conforme regra e estilo (costume), erigidas, conservadas e aumentadas peremptoriamente pelas irmandades do Santíssimo Sacramento. Distinta entre as mais, a dita confraria representava a Eucaristia […]. Além da integração hierárquica ao corpo místico do reino, as irmandades sediadas nas matrizes proporcionavam comodidades corporativas e assistenciais muito aptas a aumentar a “paz” e o “sossego”, valores de que dependiam a subordinação, a concórdia e o bem comum da república católica.

Tal foi o caso de Santa Rita, na qual se instituiu a referida irmandade dois anos após ser elevada à condição de sede paroquial.

89

“Isto é o meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19b; cf. 1Cor 11,24b). “Este cálice é a nova aliança no meu sangue. Todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em minha memória” (1Cor 11,25b). 90

“Onde dois ou três estiverem reunidos no meu nome, lá estou no meio deles” (Mt 18,20).

91 “Do mesmo modo, também

vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo. […] Mas vós sois a gente escolhida, o sacerdócio régio, a nação santa, o povo que ele conquistou, a fim de que proclameis os grandes feitos daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,5.9; cf. Ex 19,5s).

115

2.3 “Arqueotectura” Uma arquitetura que já não está feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado para fazer visíveis quem se encontra dentro. (Michel Foucault. Vigiar e punir)

Metodologia da Arqueologia da Arquitetura A Arqueologia da Arquitetura é uma das aplicações da Arqueologia cognitiva (Tabela 3), que visa a estudar as formas passadas de pensamento a partir da investigação dos vestígios materiais. Praticada há algumas décadas na Itália e na Península Ibérica, admite uma variedade de matizes relacionados à política patrimonial, ao interesse pela cultura técnica, à psicologia ou ao paisagismo.

marco teórico disciplina escopo

Arqueologia cognitiva

Arqueologia da Arquitetura

preservação e restauro

análise estratigráfica

Arqueologia da Construção implantação, organização e gestão de obra

Arqueologia do Ambiente Construído

padrões de comportamento

âmbito de comportamento

Arqueologia Urbana

paisagem

Tabela 3: Aplicações da Arqueologia cognitiva ao fenômeno arquitetônico.

Para a Arqueologia da Arquitetura, entretanto, não basta atribuir um estilo ao objeto nem se deter unicamente nos aspectos formais da arte, sem ter em conta seu contexto: “há algo que, por agora, diferencia qualquer História da Arte de qualquer Arqueologia da Arquitetura: o elemento instrumental, metodológico” (ARCE, 2009, p. 13). No caso, a Arqueotectura se vale de quatro ferramentas: documentação, tipologia, estratigrafia e análise. Todavia, antes de passar a descrever tal metodologia, há de se frisar que a quase unanimidade dos estudiosos afirma que o barroco arquitetônico e o barroco decorativo devem ser estudados conjuntamente, pois perfazem uma unidade significante (cf. BRAZÓN, 2001, p. 237); portanto, parece necessário que à Arqueotectura se agreguem outras abordagens que valorizem os aspectos não espaciais da Arquitetura (e é o que será contemplado no capítulo seguinte).

116 Como foi dito, os métodos da Arqueologia da Arquitetura se articulam em quatro fases. As três primeiras fornecem os dados necessários para a última e principal: a composição de um modelo analítico, interpretativo, cronológico e funcional do edifício estudado. Na fase inicial, faz-se o resgate documental e iconográfico do monumento em questão (cf. Capítulo 1). Em seguida, procede-se ao levantamento pormenorizado dos elementos arquitetônicos remanescentes. Finalmente, todos os elementos construtivos (estruturas, fechamentos, escadas, vãos, etc.) são classificados de acordo com o escopo da pesquisa (registro cronológico do edifício, reconstituição de técnica construtiva, política de conservação e manutenção). A denominação desta terceira fase não é isenta de discussão entre os especialistas: “estratigrafia mural”, locução emprestada da geologia, parece equívoca; “análise arquitetônica” reduz a abrangência do estudo. A expressão mais comum vem a ser leitura de paramentos, embora “leitura seja um termo demasiado linguístico e amplo, e paramento demasiado concreto e com o qual se perde a unidade contextual do edifício” (ZOREDA, 1995, p. 38). A partir de um simples rastreio da edificação é possível estabelecer um modelo evolutivo básico, que se complementa com a descrição cronológica das fases construtivas, a análise funcional dos espaços e a interpretação sociocultural. No entanto, ainda é possível aplicar ulteriores abordagens espaciais, elaboradas por estudiosos de diversas orientações teóricas. A título de exemplo, apresentam-se a seguir alguns destes instrumentos; outras interpretações analíticas do espaço podem ser buscadas nas obras de Bruno Zevi (teoria visual) e Francis Ching (teoria formal). Técnicas e abordagens interpretativas Sintaxe espacial Os arquitetos ingleses Bill Hillier e Julienne Hanson (1984) foram os pioneiros da sintaxe espacial, uma série de técnicas de representação, quantificação e interpretação da configuração espacial de cidades e edifícios. Embora haja desacordo quanto à validade da teoria da lógica social do espaço (que é seu marco teórico subjacente), e se lhe tenham apontado alguns paradoxos matemáticos, muitos arquitetos e urbanistas, engenheiros, geógrafos e arqueólogos aplicaram em suas pesquisas várias técnicas baseadas na sintaxe espacial.

117 Dentre as ferramentas de análise desenvolvidos por Hillier, Hanson e seus continuadores, destacam-se: os gráficos analíticos de visibilidade (entre espaços abertos e fechados)92, o modelo Gamma ou análise de acesso (que explicita o modo de o edifício controlar as relações entre seus ocupantes e visitantes) 93, a análise arquitetônica com a lógica Fuzzy (que leva em conta fatores sensoriais), etc. Abordagem da experiência arquitetônica O arquiteto e geógrafo sino-americano Yi-Fu Tuan aliou análise espacial e questões comportamentais em seu delicado livro Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Segundo o autor, “o lugar é segurança e o espaço é liberdade: estamos ligados ao primeiro e desejamos o outro. […] O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos e o dotamos de valor” (TUAN, 1983, p. 3 e 6). Com uma perspectiva semelhante à de Yi-Fu Tuan, mas de sinal contrário, Michel de Certeau (2014, p. 184) entende o espaço como “lugar praticado”. Hans Belting (2007, p. 78), ademais, explica que na “concepção antiga, um lugar estabelecia o princípio de sentido para seus habitantes. [...] Na Modernidade avançada, [...] os espaços de trânsito teriam dissolvido a antiga geografia de lugares fixos. [...] Os lugares eram lugares da memória, como os chamou Pierre Nora. Mas na atualidade se converteram em lugares na memória”. As breves interpretações de Yi-Fu Tuan valorizam a dimensão estética da experiência espacial, que “pode ser direta e íntima, ou pode ser indireta e conceitual, mediada por símbolos” (TUAN, 1983, p. 6-7). Interessante sua explicação sobre o simbolismo das igrejas: A alguns símbolos os fiéis respondem com um ato mais ou menos automático, como ajoelhar-se. Outros símbolos evocam ideias específicas. A cruz sugere sofrimento, expiação e salvação. Finalmente, a catedral como um todo e em seus detalhes é um símbolo do paraíso. O símbolo, para a mente medieval, é mais do que um código para os sentimentos e ideias que podem ser facilmente traduzidos em palavras. O símbolo é direto e não requer mediação linguística. Um objeto se torna um símbolo quando sua própria natureza é tão clara e tão profundamente manifestada que, embora seja inteiramente ele mesmo, transmite conhecimento de algo maior que está além. […] Os próprios símbolos têm perdido muito de seu poder

92

Cf. TURNER, Patrick Alasdair Fionn & alii. From isovists to visibility graphs: a methodology for the analysis of architectural space. In: Environment and Planning B. Planning and Design, v. 28, p. 103-121, 2001. 93 O modelo foi aplicado por Andrés Zarankin e Cláudio Niro no estudo dos centros clandestinos de detenção da ditadura militar

argentina (cf. FUNARI, Pedro Paulo; ZARANKIN, Andrés; REIS, José Alberioni dos. Arqueologia da repressão e da resistência na América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980). São Paulo: Annablume, 2008).

118 de reverberar na mente e no sentimento, pois este poder depende da existência de um mundo coerente. (TUAN, 1983, p. 129-130)

Abordagem do uso simbólico do espaço O arquiteto polonês Amos Rapoport assume que espaço e objetos comunicam identidade, status e poder (cf. RAPOPORT, 2000, p. 80-86): Primeiramente a atenção se dirige a elementos que se diferenciam do contexto. Eles se tornam perceptíveis, sugerindo com força que possuem um significado especial. A leitura dos significados requer algum conhecimento cultural, que é, não obstante, relativamente simples; por exemplo, a presença do esquema “igreja” ou, mais geralmente, “edifícios importantes”, “edifícios sagrados”, e por aí vai. (RAPOPORT, 1990, p. 41)

Baseado na teoria da estruturação de Anthony Giddens, Rapoport enfatiza a relação dialética entre as ações humanas e a estrutura espacial. Por um lado, o ambiente construído e seu uso dependem do contexto cultural de uma determinada sociedade em uma determinada época; por outro, o entorno construído serve de dispositivo mnemônico, cujo roteiro estimula o comportamento apropriado: Em certo sentido, quando o público leigo reclama que igrejas, correios, bancos, etc. não se parecem com igrejas ou com o que for, uma das coisas que dizem é que o comportamento esperado não é claro e também que os projetistas negligenciaram o significado captado pelos usuários. A discussão acima relaciona interação e comunicação. Em muitas sociedades tradicionais, a eficiência das pistas sutis depende da sua consistência. (RAPOPORT, 1990, p. 188)

Secundando essa abordagem, a arqueóloga britânica Louise Revell escreveu um interessante capítulo sobre a representação do poder na Bretanha romana, em que constata que “o significado da arquitetura, como de qualquer outra cultura material, não é fixo nem estável, antes vem inscrito no espaço e é dali captado através do desempenho das atividades rotineiras que nele ocorrem” (REVELL, 2007, p. 137). Índices para análise simbólica e funcional O arqueólogo britânico Richard Blanton (1993, p. 31-37) propôs uma série de índices de análise da estrutura arquitetônica: a escala (que mede o tamanho da estrutura), a integração (que estabelece o tipo de comunicação e de circulação dentro da estrutura) e a complexidade (que qualifica a distribuição e o isolamento dos espaços).

119 Seguindo a esteira de Rapoport, Blanton identificou duas dimensões na comunicação não verbal da Arquitetura: a canônica e a indiciária, respectivamente paralelas às formas de experiência propostas por Yi-Fu Tuan, conceitual e íntima. Mesmo para quem não conheça um edifício, este exerce uma comunicação indiciária, vinculada à identidade social de seus ocupantes. Pela comunicação canônica, porém, as categorias culturais e as estruturas sociais são experimentadas sensorialmente e expressadas simbolicamente. Um edifício une ideias e eventos, estabelecendo um marco em que pensamentos e atividades divergentes adquirem coerência e se consolidam (BLANTON, 1993, p. 9). Tal comunicação simbólica … envolve a criação de um entorno construído que manifesta as divisões sociais baseadas no gênero, geração, e nível, ligados a esquemas cosmológicos que expressam oposições categoriais como ordem/desordem, elite/povo, pureza/perigo. (BLANTON, 1993, p. 10)

Análise “arqueotectônica” da igreja de Santa Rita Aplicando-se à matriz de Santa Rita o método e as diversas abordagens citadas, apresenta-se agora uma síntese interpretativa (Tabela 4), seguida de uma breve descrição física, formal e espacial do edifício. Como está fora do escopo desta dissertação, o emprego de índices analíticos foi substituído por simples explanações. Além disso, no caso da presente pesquisa, a leitura de paramentos diverge da abordagem comumente adotada com ruínas arquitetônicas, haja vista que a igreja paroquial sob estudo é um imóvel tombado e bem conservado. Ainda que intervenções não invasivas pudessem ser realizadas na mole (como exames microanalíticos, por exemplo), preferiu-se adotar uma análise parietal visual, ou seja, de cunho meramente interpretativo e tipológico dos elementos murais, em particular da ornamentação com talhas de madeira (Capítulo 3).

120

Análise simbólica e funcional

Análise da percepção

Análise da circulação

TIPO DE ANÁLISE

COMENTÁRIOS E OBSERVAÇÕES

Diagrama de permeabilidade

Gradação do espaço sagrado: ① nártex – ② nave – ③ presbitério. Espaços intermediários (laranja): nave da capela-mor e batistério. A sacristia ④ se ressente da comunicação com a área administrativa (marrom) e com os acessos (verde).

Configuração da circulação interna

A nave ① orienta para a capela-mor. Uma das entradas encontra-se fechada atualmente. O adro ② é o lugar mais permeável (inclusive não possui cobertura). A sacristia ③ hoje serve de secretaria e se tornou um lugar de passagem.









① ③



Relações sociais induzidas

Para quem entra, o comportamento esperado é orientar-se para a capela-mor ou para a sacristia.

Visibilidade e privacidade

As dependências administrativas das irmandades e o armário da sacristia (atrás da capela-mor) são espaços alheios à percepção do visitante.

Percepção dos espaços construídos

Nota característica da igreja de Santa Rita é sua iluminação: natural no adro, zenital na capela-mor, lateral na nave através das tribunas e lunetas. As talhas douradas sobre as paredes lisas e brancas dão um toque alegre ao ambiente. Quanto ao conforto acústico, tanto o para-vento quanto o adro amortecem o ruído exterior.

Estrutura

Apesar da velha crítica ao pequeno porte do templo para sua função de matriz paroquial, sua escala é aconchegante. Portas generosas integram os espaços e facilitam a circulação. A multiplicidade de acessos e interligações não compromete o isolamento dos recintos.

Comunicação não verbal

A comunicação indiciária indica claramente que a igreja é dedicada à Santa Rita de Cássia. A comunicação canônica remete especialmente ao culto eucarístico, mediante uma profusão de símbolos (cf. Apêndice A).

Experiência espacial

A nave inspira recolhimento e convida à oração silenciosa. A simbologia das talhas é de fácil leitura, embora exija um mínimo de formação cristã para a sua compreensão conceitual.

Tabela 4: Arqueologia da Arquitetura: síntese interpretativa da igreja de Santa Rita.

121 A planta da igreja (Figura 19) é tradicional, compondo-se

de

nave

única retangular e capelamor alongada. O adro e a sacristia dispõem-se longitudinalmente na lateral esquerda da igreja. A base do campanário serve de porRua Miguel Couto

taria para o adro. Acede-se à nave desde o adro, mas a entrada principal é através de um pequeno nártex sob o coro. À esquerda do nártex fica um batistério de mármore. A evolução do templo (Figura 18) já tinha

Avenida Marechal Floriano

sido explicada no Capítulo precedente.

Figura 19: Planta-baixa do térreo da igreja. Sem escala.

Figura 18: Possível evolução do edifício (andar térreo), com base nos testemunhos documentais. Sem escala.

122 Solução incomum nas igrejas brasileiras do século XVIII, acima do arco cruzeiro há uma empena (Figura 20) com pintura de anjos, no meio da qual uma luneta exibe um vitral da Santíssima Trindade. De cada lado da empena, um candelabro de

Figura 20: Empena sobre o arco cruzeiro com luneta e candelabros (foto de Mateus Rosada, 2014).

nove velas. Provavelmente, o flanco cego foi uma decorrência necessária de a antiga capelamor ter sido adossada à mole da nova nave quando de sua ampliação no segundo quartel do século XVIII. A nave (Figura 21), com talha pontual, é dividida por pilastras que se estendem até a cimalha, acima da qual o teto é abaulado. Possui quatro retábulos e dois púlpitos, além de

Figura 21: Nave da igreja. Destacam-se, entre pilastras, os retábulos laterais com as tribunas, e o púlpito da Epístola.

123 tribunas. Os elementos escultóricos extrapolam os limites dos suportes de forma elegante. Azulejos do século XIX, feitos com transfer print, formam um tapete em toda a parte inferior nave (Figura 22). A capela-mor também tem o teto abaulado com lanternim e belas pinturas com cenas da vida de Santa Rita (cf. infra Figura 27). Ao

Figura 22: Tapete de azulejos.

fundo, o retábulo de talha contínua traz o majestoso trono da Padroeira, ladeado por nichos com dois pares de colunas torsas, que guardam as imagens de Santo Agostinho, à esquerda, e a de Santo André Avelino, à direita. Entre as colunas e mísulas, há pedestais. Na sacristia encontram-se: à esquerda, o lavabo barroco de embrechados de mármore policrômicos, cuja fonte de água se considerava milagrosa para os olhos (atualmente desligada); e, à direita, um nicho para o primevo orago de Santa Rita. Também há uma espécie de alcova, detrás da capela-mor, com seteiras para a rua. Nos fundos da sacristia, à esquerda, fica o consistório da Irmandade de São Miguel e Almas. O consistório da Irmandade do Santíssimo Sacramento fica no segundo pavimento, com acesso pelo adro.

Figura 23: Frontão (foto de Mateus Rosada, 2014).

124 O frontão é rococó (Figura 23), com cimalha em curva reversa, óculo, volutas, cruz sobre o acrotério, pináculos e arabesco de motivo floral. A fachada barroca (Figura 24) com cunhais de cantaria apresenta portal de lioz em arco pleno encimado pelo medalhão de Santa Rita (antes possuíra um frontispício decorativo). No andar superior há duas janelas coroadas por vergas em arco abatido. À esquerda fica a única torre sineira, menos saliente que o corpo da fachada e arrematada por pináculos e coruchéu bulboso. Possui porta no térreo e janela no andar superior; acima, relógio e ventana dupla para os sinos.

Figura 24: Fachada frontal (foto de Mateus Rosada, 2014).

125

3 Arqueologia da imagem — A talha de Santa Rita 3.1 Iconologia

A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. (Bachelard, L’Eau et Les Rêves)

A abordagem empregada A partir do resgate documental da igreja de Santa Rita (Capítulo 1) e do conhecimento arquitetônico e litúrgico consentâneo ao tipo de edifício (Capítulo 2), é chegado o momento de apresentar uma análise congruente da sua interpretação material. Visando ao levantamento iconográfico e à análise iconológica de uma seleção de elementos decorativos (cf. Apêndice A), este capítulo pretende fundar três pressupostos: a) que o estilo é um fator ativo na produção e manipulação da cultura material; b) que o símbolo sempre é decodificado quando está presente sua chave hermenêutica; c) que a função operada pelo objeto pode ser explicitada pela iconologia. Não é acidental o paralelismo desta proposta com o método iconológico desenvolvido por Erwin Panofsky (1892-1968). O historiador da arte alemão relacionou a inovação da perspectiva geométrica de Albrecht Dürer (1471-1528) com a passagem do transcendentalismo e do teocentrismo para o humanismo e o antropocentrismo na Renascença (cf. PANOFSKY, 1972). Contudo, seu feito mais sugestivo foi estabelecer uma relação entre a escolástica medieval e a arquitetura gótica (cf. PANOFSKY, 2001). Panofsky reconhecia que fora alvo de críticas por apresentar conexões entre âmbitos diversos do saber, mas rebatia afirmando a necessidade de se verificar — e não pressupor — o contexto cultural ao estudar a arte. Seu método, portanto, é uma ferramenta de cunho histórico, como ele

126 mesmo o atesta: “Iconografia é o ramo da História da Arte que se ocupa do conteúdo temático ou significado das obras de arte, enquanto algo distinto de sua forma” (PANOFSKY, 1972, p. 3). Evidentemente, Panofsky não foi o único a projetar meios de análise das sociedades através das suas manifestações culturais. O contrário desta atitude seria afirmar que a linguagem, a arte, a literatura, etc. é que modelam a sociedade, ao invés de serem seu reflexo — o que conduziria à esterilidade do desconstrutivismo. Por isso, a história social da linguagem é uma via bastante promissora no panorama historiográfico: Essa é precisamente a via possibilista que levou Johan Huizinga a ler a última Idade Média por meio das pinturas dos irmãos Van Eyck; a via que Lucien Febvre enveredou no seu estudo sobre a incredulidade do século XVI, ao demonstrar que o ateísmo era impossível nessa época por faltar conceitos abstratos no idioma francês que sustentassem essas posições; a que George Duby realizou no seu estudo sobre os valores do século XII numa sugestiva analogia entre a ideologia de São Bernardo e as ponderadas formas da arte gótica […], a que Otto Georg von Simson utilizou para estabelecer as conexões entre a estética das catedrais góticas e o conceito de ordem das Summa teológico-filosóficas medievais e, finalmente, a que Simon Schama tentou regenerar, recentemente, com o seu Rembrandt’s eyes. (AURELL, 2010, p. 196)

O método iconológico Esquematicamente, a proposta de Erwin Panofsky para o estudo das imagens consiste em três etapas: a) História do estilo, isto é, a descrição pré-iconográfica ou análise pseudoformal. Consiste na identificação dos conteúdos primários — fáticos (objetos naturais) ou expressivos (gestos, atitudes, atmosferas) —, com base em fontes documentais, comparação com outras imagens, experiência prática, etc. b) História dos tipos, isto é, a análise iconográfica das imagens e alegorias. “Constitui o campo da iconografia em sentido estrito” (PANOFSKY, 1972, p. 6), visando à identificação dos motivos e composições (motivos artísticos combinados), secundários ou convencionais, a partir de fontes literárias. c) História dos símbolos, ou seja, a síntese iconológica pela qual se interpreta o significado intrínseco da iconografia como produto histórico, social e cultural, revelando “a atitude básica de uma nação, um período, uma classe, uma crença

127 religiosa ou filosófica — qualificados inconscientemente por uma personalidade e condensados numa obra” (PANOFSKY, 1972, p. 7). Note-se como neste ponto o historicismo de Panofsky afasta-se do psicologismo de Alois Riegl, para quem a percepção da forma depende da “visão de mundo”. Não vem ao caso, porém, especular se a “vontade de arte” (Kunstwollen) está no “olho” do observador ou se é proveniente da época histórica. Para efeitos desta pesquisa, basta sustentar a viabilidade de apresentar analogias intrínsecas entre fenômenos esparsos, oriundos de campos distintos. Estilo e outras categorias A fim de proceder à análise do simbolismo da talha e de outros bens integrados da igreja de Santa Rita, foi elaborada uma ficha descritiva (cf. Tabela 5 infra) que — sem pretender esgotar o inventário — contemplasse não apenas suas notas artísticas (qualidade e estilo), o contexto histórico e as citadas três etapas do método de Panofsky (identificação, descrição e síntese explicativa), mas também levasse em conta seus aspectos funcionais. Acerca deste último item, deve-se ter presente que não existe consenso quanto às relações entre função e estilo. Isto não impede, porém, que o estilo seja entendido — dentro dos marcos social e pós-processual — como um fator ativo na produção e manipulação da cultura material. Para trabalhar com o conceito, a antropóloga norte-americana Polly Wiessner (1983) definiu duas categorias chave: estilo emblemático (variedade formal que conscientemente transmite informação sobre filiação a um grupo) e estilo assertivo (variedade formal que transmite informação sobre a identidade individual). Semelhantemente, William Macdonald (1993) propôs os conceitos de referência protocolar (estágios de produção dentro de um marco estilístico) e de referência elegante (habilidade de um indivíduo transpor os limites protocolares a próprio critério). James Sackett (1977) já tinha estabelecido com anterioridade as categorias dicotômicas de variação isocréstica (escolha inadvertida entre variantes funcionalmente equivalentes) e variação iconológica (escolha da forma hábil para a comunicação intencional). Dispensando o aspecto estatístico de que as análises realizadas por estes autores eventualmente se revestem, é possível valer-se da categorização por eles criada para ultrapassar o mero marco histórico-artístico das descrições iconológicas.

128 Explicação da estrutura da composição e das características formais (sem levar em conta aspectos históricos ou contextuais): claro-escuro, cores, geometrização. Eventualmente, interpretação do grau de invenção estilística (mais influxo do autor do que característica do objeto) e descrição do roteiro das escolhas realizadas

Análise artística

Identificação prévia Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Análise funcional

Identificação dos motivos com base nas fontes documentais, comparação com outras imagens, etc.

Distinção entre alegoria e representação

Interpretação do significado intrínseco da iconografia como produto histórico, social e cultural

Diálogo com o contexto histórico

Estilo

Emblemático (transmite informação sobre filiação a um grupo)

Assertivo (transmite informação sobre a identidade individual)

Referência

Protocolar (estágios de produção dentro de um marco estilístico)

Elegante habilidade para transpor limites protocolares a próprio critério)

Variação

Isocréstica (escolha inadvertida entre variantes funcionalmente equivalentes) ou Iconológica (escolha da forma hábil para a comunicação intencional)

Tabela 5: Ficha descritiva dos bens integrados.

Por outro lado, haja vista a grande variedade de acepções dos conceitos tratados, convém lançar mão de uma nomenclatura que evite equívocos e seja adequada para a análise iconológica. Por finalidade prática, as categorias podem ser agrupadas aos pares, cujo segundo membro evidencia o aspecto figurado do símile: a) Símbolo: anuncia um plano de consciência diverso da evidência racional. Alegoria: faz referência figurativa a uma realidade de outra índole. b) Emblema: representa um conceito de forma convencional. Atributo: aplica um distintivo a um personagem ou a uma coletividade. c) Parábola: sugere lições morais alheias ao seu próprio conteúdo narrativo. Apólogo: ensina através de fábula construída didaticamente.

129

3.2 Tipologias É próprio da arte alcançar a verdade primordial, para tornar audível o inaudível, para enunciar a palavra primordial, para reproduzir as imagens primordiais (Ernst Walter Andræ apud Ananda Coomaraswamy, Christian and Oriental Philosophy of Art)

Gramática visual O segundo pressuposto empregado nesta análise consiste em que o símbolo sempre é decodificado quando se faz presente sua chave hermenêutica. Muito se poderia falar acerca dos símbolos, mas basta referir que a atitude para com eles estabelece uma linha divisória entre os arqueólogos. De um lado, postam-se os que acreditam no símbolo, ou como vínculo entre significante e significado (sensu SAUSSURE, 2006), ou como contêiner de informações (sensu LAKOFF & JOHNSON, 2003). De outra parte, encontram-se aqueles que consideram os símbolos irrelevantes para os sistemas maiores que estruturaram a vida humana. Ora, “o mundo arqueológico é um mundo cultural” (ROBB, 1998, p. 331), e não há remanescente cultural que não seja simbólico. Portanto, o recurso aos símbolos efetivamente dá acesso a uma compreensão mais cabal da realidade. Partindo desta alegação, o arqueólogo britânico John Robb emprega três metáforas para descrever as correntes teóricas favoráveis ao estudo dos símbolos: a) Teorias que abordam os símbolos como tokens (chaves): instrumentos de comunicação que podem ser produzidos, trocados, monopolizados, subvertidos e destruídos. Indicam liderança política, prestígio econômico, status social. b) Teorias que abordam os símbolos como girders (estruturas): elementos estruturantes do mundo mental e da ação social. c) Teorias que abordam os símbolos como tesserae (peças de mosaico): cujo significado provém da interação entre pessoas e artefatos. As três abordagens têm pontos fortes e fracos e conduzem a compreensões extremas, quer arbitrando o sentido dos símbolos pela vontade do intérprete (tesserae), quer tomando-os como discursos insofismáveis (girders), quer como ferramentas de controle (tokens). A conclusão de John Robb (1998, p. 341) é que “não há, portanto, um único método

130 específico para a Arqueologia dos símbolos. Em vez disso, o ponto chave para a pesquisa é descobrir quais são as perguntas corretas a serem feitas”. Logo, que indagações devem ser levantadas diante da simbologia empregada na igreja de Santa Rita? — John Robb dá algumas sugestões, parte das quais já foi abordada ao longo desta dissertação: a) Significado das relações entre os símbolos. b) Significado da representação icônica dos símbolos e suas variações formais94. c) Aspectos da percepção dos símbolos e o sentido desta experiência95. d) Conotações sociais implicadas96. e) Técnica da manufatura do artefato simbólico e seu ciclo de vida. f) Aspectos econômicos da produção do símbolo97. g) Diferença de compreensão e níveis de interpretação no uso dos artefatos98. h) Presença de ambiguidade, enganos e ironias. Quanto à técnica de manufatura e ao ciclo de vida das talhas (alínea e), basta remeter às obras especializadas99 que explicam o trabalho dos entalhadores100. Destarte, resta abordar o significado estrutural ou relacional dos símbolos (alínea a) e os seus múltiplos níveis de interpretação (alínea h). Para se compreender a estrutura relacional dos símbolos em Santa Rita, é fundamental distinguir representações alegóricas e representações icônicas, correspondentes às duas coordenadas com que tradicionalmente a Igreja Católica procurou transmitir a fé, ou seja, em sua dupla dimensão ideogramática (cristalizada em fórmulas e símbolos) e histórica (encarnada em pessoas e testemunhos). Assim, é necessário examinar separadamente: a talha da

94

Vide Apêndice A.

95

Vide Capítulo 2, seção 3.

96

Vide Capítulo 2, seção 1.

97

Vide Capítulo 1, seção 2, especialmente o item “A primeira fábrica rococó”.

98

Vide Capítulo 1, seção 3, em particular o item “Arte de crise, não crise da arte”.

99

Cf. ALVIM, 1999 (2 v.), 2014; BONNET, 2009; RABELO, 2001, 2006; RIBEIRO, 2009; ROSADA, 2012; SMITH, 1962.

100

“Oficial de obra de talha, que representa em madeira laçarias, flores, folhagens, brutescos, etc., de meio relevo” (LIMA, 2008, p. 286).

131 matriz de Santa Rita com sua simbologia; e as imagens dos Santos com seus valores exemplares. Tal abordagem respeita as teses de Nelson Goodman (2006), para quem a representação ou é predicação (relação atributiva entre significante e significado) ou é denotação (relação objetiva entre significante e significado). Igualmente respeita “as características identificadas por Aristóteles […] de metáfora (μεταφορά) e símile (εἴκων) [o que nos] conduz diretamente aos conceitos fundamentais da representação simbólica” (CREUZER, 2000, p. 1147). Por fim, enquadra-se nos dois primeiros itens da classificação de Charles Sanders Peirce, que propunha uma tricotomia de sinais: o símbolo, no qual a relação entre o signo e seu referente é convencional (palavras ou placas de trânsito); o ícone, no qual o signo mantém relação direta com o referente (chão molhado indica chuva); e o índice, em que o signo possui semelhança ou analogia com o referente (a fotografia e seu modelo). Sob tal esquema, a maior parte das linguagens seria “simbólica”, ou seja, puramente convencional; mas as artes figurativas seriam mais propriamente icônicas. O primeiro caso, o da dimensão alegórica, tem função emblemática, para utilizar a nomenclatura de Polly Wiessner (1983). Está exemplificado no simbolismo da talha, em suas divisas e insígnias, em sua hierarquia formal, na suntuosidade, na admiração que causa, no enlevo que produz, na lógica cultual que orienta. Serve para declarar … o núcleo do acontecimento [cristão]. São a expressão da identidade cristã, a “profissão” propriamente dita, graças à qual nos reconhecemos mutuamente e nos podemos reconhecer diante de Deus e dos homens. (RATZINGER, 2011, p. 203)

No segundo caso, o da dimensão icônica, fica plasmada … a tradição sob a forma de narrativa [que] reflete diversas tradições, ligadas a portadores diferentes, sem critério vinculativo em todos os aspectos particulares, mas [que] devem ser consideradas como testemunho válido que dá conteúdo e forma à fé. (RATZINGER, 2011, p. 212)

Tais tradições narrativas estão exemplificadas nas pinturas do forro da capela-mor (que retratam o estigma da fronte de Rita e o milagre da rosa aparecida em pleno inverno)

132 e nas demais peças da imaginária da igreja. Como habitual, as imagens também apresentam adereços alegóricos que identificam os Santos ou explicitam uma invocação específica101. Sonho e alegoria Não se quis fazer aqui confusão entre símbolo e alegoria, embora exista muita semelhança entre ambas as categorias. Segundo Giulio Carlo Argan (1966), enquanto no símbolo há uma fusão total do objeto com a ideia, na alegoria só há similitude. O orientalista Georg Friedrich Creuzer (2000, p. 1148) sugeria duas características peculiares ao símbolo: O símbolo se caracteriza justamente por este estado de suspensão, por uma condição de indeterminação entre forma e essência. […] A habilidade dos símbolos de estimular e de nos provocar está conectada a outra importante propriedade, que é a brevidade. Um símbolo é uma aparição repentina, um clarão de luz que momentaneamente brilha nas trevas da noite.

Pode-se dizer que a alegoria — em sentido lato — se opõe à representação histórica, ou melhor, sobrepõe-se. Se a história consagra valores, a própria natureza é alegórica e aponta para o Criador. Não à toa, os objetos trabalhados pelo homem sempre foram enriquecidos por ornatos que manifestam — para além de seu mero valor estético — algo transcendente. Os repertórios decorativos abarcam formas geométricas (canelura, gota) e naturais (óvalo, voluta, onda, palmeta, gomo), elementos reais (acanto, coração, florão) e alegóricos (guirlanda, troféu, cornucópia), além de seres fabulosos (sereia, quimera, grifo). Entre os gregos, por exemplo, a alegoria servia-lhes para contar a vida e as gestas dos deuses e heróis. Muito já se falou acerca da dificuldade do homem contemporâneo para aceitar a alegoria e sobre a sua preferência pelo onírico. Se o método científico for “insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação” (BACHELARD, 1978, p. 184), então o sonho apreenderia as coisas no plano poético. Mas … é o movimento romântico alemão que fará observações tendendo a depreciar a alegoria em relação ao simbolismo. “Símbolo resfriado…” afirmará Göethe da alegoria. Tais concepções tendiam a identificar o simbólico com o poético (aberto, não traduzível em conceitos), relegando ao alegórico o papel de puro exercício didático. (RIBEIRO, 1990, p. 125)

101

As imagens religiosas também variam de proporção conforme a função (imagem de retábulo, de conjunto cenográfico, de sacristia, de uso doméstico, etc.). Outras variações dependem do porte escolhido (imagem de vulto ou de roca) ou da teatralidade almejada (imagem estática ou articulada).

133 Para o cristianismo, na verdade, a alegoria não é um quebra-cabeça nem uma mística criptografada: é um efeito especial exercido em busca da lucidez. Seu objetivo prático é prover imagens visuais claras e imbuídas de significado. Alcuíno de Iorque (735-804) e seu discípulo Amalário de Metz (780-850) foram os primeiros a explicar as cerimônias, orações, gestos, ornamentos e objetos da liturgia romana através do método alegórico, isto é, mediante aquele procedimento retórico e exegético que expressa o sentido recôndito de um texto, ou uma imagem, ou um rito. A própria dinâmica sacramental da Igreja pode ser compreendida em termos de alegoria, porquanto os sacramentos têm caráter de memorial (tradição permanente e recordação recíproca pelas quais se renovam e reforçam os laços entre Deus e o homem) unido a um sinal profético (ato simbólico que evoca, explica, anuncia e propõe a união entre Deus e o homem). Portanto, o templo cristão reclama uma decoração concorde e proporcionada à ação litúrgica, que sirva à memória e à piedade. Entretanto, a par do rechaço romântico às alegorias, também ocorreu no Ocidente católico — especialmente após a reforma litúrgica propugnada pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) — uma reação de despojamento diante da sufocação produzida pelo falso simbolismo, o decorativismo antiquado, a teatralização, o didatismo, o sentimentalismo e o mau gosto das imagens anônimas de gesso. Nesse sentido, São Josemaria Escrivá chegava a ser irônico: “Não empregueis no culto imagens de ‘série’; prefiro um Cristo de ferro tosco a esses crucifixos de massa repintalgada que parecem feitos de açúcar”102. Em casos extremos, o movimento chegou a ser anti-icônico. Combatendo esta espécie de neoiconoclastia, a legislação canônica atual regula o uso litúrgico das imagens e a sua restauração artística, além de reservar à Sé Apostólica a licença para sua eventual alienação ou transferência 103. Especialistas autorizados ainda auspiciam uma reforma que supere a decadência histórica causada pela fragmentação funcional da arquitetura cristã, cujo objetivo mistagógico foi sendo sucessivamente substituído por motivos catequéticos, narrativos e devocionais (cf. GATTI, 2003). Tudo isto tornou difícil o procedimento hermenêutico para a compreensão

102

São JOSEMARIA ESCRIVÁ, Caminho, 542.

103

Cf. Codex iuris canonici (1983), cânones 1188 a 1190.

134 do significado espiritual de elementos que até há bem pouco tempo tinham conotação moral, histórica ou dogmática. (Fala-se de conotação moral quando os símbolos indicam virtudes; histórica quando referem a aspectos da vida de Cristo; dogmática quando indicam o mistério da salvação.) Tanto a imagem quanto a visão nunca estão livres de contaminações culturais. Por isso, é mister cultivar uma atitude de estranhamento diante do encontro com a alteridade de um cristianismo diverso do atual se se quer interpretar o rococó eclesiástico. Tal atitude transforma o olhar sobre si mesmo e sobre o outro, estabelece uma distância para com a própria sociedade e permite trazer para perto o distante universo social do século XVIII. Excurso: os anjos de Santa Rita Embora uma seleção da imaginária esteja tratada no Apêndice A, convém fazer um breve aparte sobre a representação decorativa dos anjos. Muitos arqueólogos vêm disputando a conotação do uso icônico das criaturas angélicas em diversos contextos coloniais (cf. HEINRICH, 2014). James Deetz, por exemplo, atribuía à secularização a gradual substituição dos anjos por símbolos neoclássicos; outros estudos, porém, desabonam a relação entre a moda artística e o fervor religioso. Tal discussão frequentemente se restringiu a âmbitos de cultura protestante, onde o uso de imagens sempre

Figura 25: Anjos de Santa Rita (foto de Mateus Rosada, 2014).

teve caráter problemático. De qualquer modo, o fato é que muitas vezes os anjos barrocos, mesmo sendo chamados de “querubins”, eram representados como jovens cupidos (Figura 25). Segundo o arqueólogo Adam Heinrich (2014, p. 43-44), à medida em que o rococó infiltrava na cultura material, … o querubim tornou-se uma parte importante do léxico decorativo da nova moda, assim como o putto. Putti, crianças aladas, mantiveram a popularidade […] na amplidão da Europa continental e da Inglaterra durante o Renascimento e o Barroco. A grande difusão de modelos arquitetônicos e decorativos impressos a partir do segundo quartel do século XVIII ajudou a vulgarizar a imagem dos putti

135 para os artesãos. […] A incorporação de símbolos clássicos alegóricos com o estilo naturalista de meados dos setecentos foi o epítome do gosto e da moda.

Com relação à recepção das figuras angélicas no rococó, convém observar a opinião contrária de Nancy Rabelo (2001, p. 194), para quem “este elemento foi mais recorrente no barroco do que no rococó, estilo mais afeito ao caráter decorativo cortesão do que à persuasão barroca”. De qualquer modo, Adam Heinrich frisava a ambivalência da figura alada, cujo significado dependeria do contexto: O que o querubim, ou o putto, significou para as pessoas de então é incerto, se foi visto como uma imagem alegórica clássica ou se representava um ser celestial judeo-cristão. […] Qual deles eram, dependia simplesmente do tema da pintura ou da escultura: se religioso (sagrado), eles são querubins; se secular ou mítico (profano), eles são putti. (HEINRICH, 2014, p. 44-45)

A questão não tem fácil solução, uma vez que certa linha da tradição judaica atribuiu um aspecto pueril aos querubins do Templo salomônico. É possível que os putti renascentistas sejam oriundos desta interpretação e não dos cupidos (ἔρωτες) greco-romanos, os quatro filhos de Afrodite (Eros, Anteros, Himeros e Pothos). Contudo, tal tradição é tardia104, não foi conhecida por Flávio Josefo105 e contradiz o próprio dado bíblico. Na Escritura, com efeito, o quarteto dos querubins106 é parecido ao quarteto dos serafins107, a ponto de até um autor como Dante Alighieri confundir ambas as castas108. Ezequiel (1,5b-7) afirma acerca dos querubins: “Este era seu aspecto: Tinham forma humana. Cada um apresentava quatro faces e tinha quatro asas. Quanto às pernas, tinham pernas retas e patas como as de bezerro; reluziam como o brilho do bronze polido”. Além disso, as faces eram de boi, de homem, de leão e de águia… — Nada parecidos com os putti das igrejas barrocas!

104

Provém de um aggadah (texto rabínico não jurídico) que dá ao termo “querubim” o significado de “semelhante a uma criança” em aramaico (Talmud, Sukkah 5b). 105

“Dificilmente se poderia imaginar a forma desses querubins” (FLÁVIO JOSEFO, Antiguidades Judaicas, VIII, 2, 327). O nome parece provir do termo acádio karibu (literalmente, “ser próximo”: orante, intercessor) e faria referência ao gênio alado da mitologia babilônica com corpo de animal e rosto humano, guardião dos palácios e assessor dos deuses. 106

Ez 1,5-14.22-28; 10,8.14.20-22.

107

Is 6,2s; Ap 4,6-8.

108

Cf. DANTE ALIGHIERI, Commedia, Purgatorio, XXIX, 92-104.

136 A talha ornamental Tarja

Angra

Anjo

Trono Capitel

Dossel Fuste Nicho Peanha

Plinto

Sacrário

Mísula

Mesa do altar Pedestal

Altar (sarcófago) Figura 26: Elementos do retábulo (desenho de Lúcio Costa).

A retórica ornamental é uma forma de discurso persuasivo não verbal. Não à toa o ponto fulcral da ornamentação das igrejas pós-tridentinas era o retábulo109. Os ornamentos eram sua expansão, a ponto de tomar a extensão da igreja, modificar o aspecto da nave, integrar os espaços arquitetônicos e conferir complexidade a volumetrias simples. Nos templos cariocas com decoração rococó, a distribuição dos ornamentos tendeu ao pontual, diferentemente de outros períodos em que a talha contínua forrava todas as superfícies. Motivos abstratos, geométricos, figurativos, humanos, animais e vegetais concentram-se nos altares, tribunas, púlpitos e pilastras, demarcando e compartimentando os espaços com leveza. Os elementos escultóricos podem extrapolar os limites definidos por seus suportes sem ferir a simetria do conjunto. Para qualquer caso, Rodrigo Bastos (2013, p. 26) recorda que

109

Vide Capítulo 2, seção 2, item “Elementos específicos das igrejas barrocas”.

137 … fundamental foi sempre a interpretação decorosa dos templos: o reconhecimento das imitações e agudezas da arte, a reconstituição das iconografias e sentidos das partes e do todo, orientados sempre pela luz da conveniência. A análise desses corpos de arquitetura é indissociável da compreensão das demais práticas artísticas nela acomodadas, pintura, talha, escultura etc., porque torna a conveniá-las no fundamento mesmo que as justificava a perfeição de todo o corpo. As representações se integravam e adquiriam sua razão de ser nos lugares próprios e adequados da arquitetura, contribuindo cada parte ao desempenho do teatro sacro como um todo.

Desde uma perspectiva dramática, o retábulo arquitetônico-escultórico (Figura 26) destaca-se entre os diversos elementos da igreja porque perfaz um fundo cenográfico apoteótico para a liturgia desenvolvida à sua frente. Deixando de parte alguns exageros a respeito da sua função estética e didática110, pode-se afirmar com segurança que esse elemento se presta — com suas colunas, bases e entablamentos, apliques, volutas, conchas e espirais — a estimular o enlevo dos fiéis, arrebatando-lhes a atenção ao plano sobrenatural mediante o esplendor das formas, do douramento e da policromia. Devido à sua especificidade, os pesquisadores procuraram distribuir os retábulos morfologicamente (Tabela 6 infra). Após a classificação seminal proposta por Lúcio Costa (1941), alguns dos principais autores que se dedicaram ao estudo dos retábulos foram Paulo Santos (1951), Robert Smith (1962), German Bazin (1983) e Sandra Alvim (1999). Enquanto Paulo Santos seguiu de perto o esquema de Lúcio Costa, Robert Smith e Bazin realizaram um levantamento mais detalhado. A nomenclatura de Robert Smith — nacional, joanino, rococó — foi consagrada por Affonso Ávila (1996). Desde outro enfoque e tendo por referência a estrutura do retábulo, Bazin distinguiu doze tipos portugueses. Por sua vez, a arquiteta Sandra Alvim (1999, v. 2) cingiu-se apenas aos exemplares cariocas e propôs até cinco tipologias formais, conforme a articulação entre base, corpo e coroamento111.

110

Até mesmo já foi dito que o retábulo servia de “cenário” para o sermão, realçando-lhe o caráter persuasivo (cf. RIBEIRO, 2006, p. 7-8). A assertiva é imprecisa, haja vista que a homilia costumava ser proferida do púlpito, instalado na lateral da nave, o que permitia melhor acústica em tempos que não havia sistema de microfonia. 111

Três das tipologias propostas por Sandra Alvim aparecem na Tabela 6, que cobre até o século XVIII. Na classificação da arquiteta, a quarta tipologia é típica do século XIX: base com mesa; corpo com trono, camarim e peanhas; coroamento com arranques, volutas, resplendor e moldura de arremate. A seu ver, porém, o quinto grupo de exemplares por ela estudado não chegaria a constituir propriamente uma tipologia separada.

138 No que tange a Santa Rita (Figura 27), a dificuldade é que — a despeito do testemunho documental sobre a confecção dos ornamentos da igreja entre 1753 e 1759 — Sandra Alvim (2014, p. 100) identificou hibridismo em seus retábulos: eles são da quarta tipologia, com coroamento da segunda e trono da terceira. Portanto, teria Vieira Fazenda (2011, v. 4, p. 142) cometido um erro histórico de ao afirmar que a antiga talha fora apenas pintada e dourada no século XIX? É possível que novos detalhes ornamentais tenham sido agregados à fábrica de Santa Rita? Ou a matriz realmente manteve incólume a sua unidade estilística original? E o retábulo-mor: conservaria algo da construção primitiva, anterior à ereção da paróquia? São questões que ficam por responder. Todavia, deve se ter em conta que a classificação dos retábulos feita por Sandra Alvim é meramente formal, não cronológica; com efeito, a autora propõe uma cronologia para a decoração em geral, dentro da qual o modelo dos retábulos podia variar. A igreja de Santa Rita é tipicamente rococó e o fato de seus retábulos não se enquadrarem nos padrões formais das outras igrejas cariocas significa tão somente que correspondem a uma fase de transição ou que, devido à sua originalidade, não se enquadram nas demais tipologias. Os retábulos de Santa Rita, cuja origem é presumivelmente lisboeta, são assim descritos por Nancy Rabelo (2001, p. 87): … apresentam colunas de fuste reto e quartelões nas laterais nicho; no coroamento, frontão sinuoso ladeado por anjos ajoelhados sobre arranques de frontão curvos. É provável que o arremate superior do arco desses nichos, que erguem duas angras laterais à tarja central, tenham originado o repertório tipicamente carioca que se instituiu a partir de então na decoração dos arcos-cruzeiro. […] Este modelo, fundamental para o estudo do rococó religioso carioca, por ser a origem provável da decoração da maioria dos arcos-cruzeiros cariocas, não foi o referencial integral das formas dos retábulos de altar-mor que se seguiram. Uma outra vertente tipológica afloraria no início do século XIX, resgatando a coluna de fuste reto de Santa Rita.

139

Figura 27: Intradorso do arco cruzeiro e capela-mor (Foto de Mateus Rosada, 2014).

140 Pesquisador

Contrarreforma

Renascença

ênfase

Lúcio Costa (1941) arquitetura jesuítica Classicismo

Cercadura (simples moldura) Proto-barroco (feição plateresca, formas arredondadas)

Início do século XVII 16201650 Romanicismo (nacional-português)

Barroco

16701730

Barroco-seiscentista (partido românico-bizantino)

16801720 Goticismo (joanino)

Barroco-setecentista (formas movimentadas)

17251750

17601778

17701800

German Bazin (1953) estrutura / Portugal Plateresco (estrutura gótica em prata)

Século XVI

16201670

Rococó

Paulo Santos (1951) partido de inspiração

Renascentismo (rococó)

Contrarreforma (estrutura para receber escultura e embutidos de pinturas) Clássico (quadro grande ou sacrário grande, com divisões laterais) Maneirista (monumental e ornamental) Românico parietal (arco largo, brasão no topo, toros retorcidos) Românico com moldura de arquivolta (portal, colunas salomônicas em ressalto) Frontal (painel, esculturas sobre colunas salomônicas) Dom João V com baldaquino (arquitraves e volutas)

Primeira tipologia (base ao nível do sacrário; corpo com nichos laterais sobrepostos e o central pouco significativo; coroamento com elementos curvos)

Segunda tipologia (base com mesa e pedestais; corpo com colunas laterais e trono central; coroamento com arcos concêntricos)

Baldaquino com concheados (rocalha ornamental)

Arquitetônico (corpo projetado em plano curvo) Barroco-rococó (estilo de passagem para o comedimento neoclássico)

Sandra Alvim (1999) forma / Rio de Janeiro

Baldaquino neoclássico (colunas livres)

Tabela 6: Tipologia dos retábulos.

Terceira tipologia (base com mesa em linhas de contorno; corpo com trono escalonado conjugado aos desníveis do piso; coroamento com dossel, sanefas, figuras e resplendor)

141

3.3 Análise contextual A iconografia pode ser reputada como uma ciência curiosa e estéril, uma arte de catalogar, a menos que evoluamos da denotação para a descoberta e a assimilação do significado último dos símbolos empregados. (Ananda Kentish Coomaraswamy, Elements of Buddhist Iconography)

Ambivalência O terceiro e último pressuposto empregado para a análise simbólica é a possibilidade de que a multiplicidade de funções operadas por um objeto seja explicitada. Tal ambivalência significativa, com efeito, é peculiar às metáforas sólidas112. Para Christopher Tilley (1999, p. 266), “diferentes níveis de significado […] não podem ser necessariamente privilegiados como mais ou menos importantes ou significativos. O poder da imaginação está radicado em sua capacidade de condensar referências”. Daí a convicção de que seja possível depurar o olhar para alcançar a intuição própria de outra época. No campo estrito da arqueologia, Lewis Binford (1962) já discutira as propriedades estilísticas que atravessam as três maiores subclasses da cultura material: tecnômica, sóciotécnica e ideo-técnica. Uso (tecnômica), estrutura (sócio-técnica) e conteúdo (ideo-técnica) correspondem a três níveis de compreensão, o terceiro dos quais é mais sujeito à arbitrariedade. No âmbito da semiologia, a ambivalência também foi trabalhada por Louis Helmslev, que admitira que os signos (significante mais significado) são capazes de receber conotações para além de seu sentido denotativo. Roland Barthes entendeu que essas conotações podem se acumular umas sobre as outras: para isso, os signos prévios são reduzidos a significantes, aos quais se acrescentam novos significados posteriores. Em tal processo há aspectos convencionais e arbitrários, mas também decodificáveis. Exemplo clássico é a Iconologia de Cesare Ripa (1593), livro de códigos alegóricos renascentistas. Sem dúvida, as identidades às vezes não são concretizadas com clareza por seus marcadores, pois seu “código é constituído pelos sinais que permitem aos membros de um grupo reconhecer-se entre si e excluir aqueles que não fazem parte dele; a sutileza desses sinais de reconhecimento escapa normalmente ao não iniciado” (AURELL, 2010, p. 192).

112

Vide Capítulo 2, seção 1.

142 Daí a importância de se conhecer o registro, isto é, o contexto em que se insere um discurso. Mas a tentação do desconstrutivismo pretende convencer de que o significado sempre é convencionado e de que não existem significações transcendentes. Mesmo Gombrich parece ter quase acreditado nisto durante certo tempo (vide seu livro de 1956, Art and illusion). No caso específico do simbolismo religioso, o símbolo — ao tentar saltar o abismo entre a representação artística e o conteúdo transcendente do numinoso — contém em si a consciência da própria insuficiência. Tal insuficiência, porém, não impede o numinoso de se fazer presente através de tão pobre acesso: por isso os símbolos dizem mais do que dizem. Como escrevia o Areopagita113: Se aceitarmos essas alegorias como figurações de realidades que não podemos conhecer nem contemplar, julgaremos que as imagens usadas pelas Sagradas Escrituras […] são inadequadas ao seu objetivo […]. Não importa qual imagem possa servir de ponto de partida para a bela contemplação, o que importa é que possamos nos apoiar em figurações materiais […] na condição de nunca esquecermos a grande diferença existente…

Portanto, é a compreensão do contexto o que permitirá evitar tanto o reducionismo romântico (que despreza a alegoria em nome do simbolismo), quanto o radicalismo desconstrutivista (que esvazia o símbolo de qualquer significado transcendente). Mas basta apenas evitar os excessos ou as reduções para conseguir apreender o sentido dos símbolos a partir de outras fontes? Criticando Ginzburg, para quem as imagens apenas ilustram o conhecimento adquirido por outros meios, William Mitchell (2005) foi além e cogitou inquirir o que as imagens desejam… Ora, cingir-se ao contexto social e religioso da época da fábrica de Santa Rita para avaliar satisfatoriamente a sua simbologia parece se opor a descobrir o que as imagens querem. Por exemplo: na águia bicéfala do lavabo barroco de Santa Rita talvez se entreveja o regalismo que contaminava a Igreja portuguesa — e que também se fazia sentir na Colônia — durante o século XVIII. Portanto, o que a águia bicéfala quer poderia ser a promoção do padroado (cf. TRINDADE, 2010). No entanto, o próprio William Mitchell alertava que sua questão não é uma “ventriloquia inconsciente” (2005, p. 29) — uma projeção do espírito humano sobre os objetos —, mas provém de outro plano: de uma compreensão freudiana segundo a qual as atitudes tradicionais para com os objetos

113

Pseudo-DIONÍSIO AREOPAGITA, De cœlesti hierarchia, II, 2 e 4.

143 permanecem sendo, na modernidade, a da idolatria, do fetichismo e do totemismo. Portanto, o objetivo da pergunta sobre o querer das coisas não pretende ser um inquérito iconoclasta, mas sim uma revelação do abuso humano: As imagens certamente não são destituídas de poder, mas elas são muito mais fracas do que pensamos. O problema é refinar e questionar nossa estimativa sobre o seu poder e o modo como atuam. É por isso que eu migrei a pergunta de como as imagens agem para o que elas querem, do poder para o desejo, do modelo do poder dominante para o modelo do subalterno que deve ser interrogado ou (melhor) ser convidado a falar. (MITCHELL, 2005, p. 33)

O que o simbolismo da igreja de Santa Rita deseja falar, a despeito da surdez dos homens? O que pretende, apesar de qualquer instrumentalização — regalismo, exibicionismo, etc. — que o tente deturpar? Além disso, tal simbolismo fala para quem? Que audiência ele almeja? A ambivalência significativa das imagens torna patente que o processo de ressignificação tanto pode dificultar o acesso à mensagem original quanto obnubilar sua atual compreensão. Mas a ambivalência também indica que o significado não é um problema a ser resolvido: antes é um conjunto de contrastes, um âmbito para as ações e as relações. Por isso, a função pode ser disputada, pode ser melhorada, pode ser perdida. O estético abre as portas para o ético, ou inclusive as fecha: constitui um desafio moral. O que as imagens “querem” é uma situação ideal cuja realização dependerá dos homens de cada geração. Por conseguinte, aquilo que o historiador da arte Denis McNamara (2008, p. 963) auspiciava para as igrejas, em grande medida é responsabilidade dos que as frequentam: [A arquitetura sagrada] não é […] um cenário neutro para as atividades horizontais de um mal compreendido “Povo de Deus” ou uma “pele para a ação litúrgica […]”. Preferivelmente, a arquitetura litúrgica deveria ser capaz de se tornar parte do agrupamento de símbolos que compõem o rito litúrgico. Em outras palavras, ela deveria ser considerada sacramental, tornando presente, por meio de um antegozo, as bodas do casamento do Cordeiro na Jerusalém Celeste.

Eloquência Rudolf Otto (2007, p. 105-110) elencou seis meios de expressão do numinoso na arte: a excelência, o símbolo, a escuridão, o silêncio, o vazio e o tremor. Para o teólogo alemão, o símbolo causa uma impressão atenuada do sagrado, como que em “estado bruto”,

144 surpreendendo com sua força irracional. Associado à experiência do excelso, típica da arquitetura, o símbolo fica iluminado e se transforma em transparências do “totalmente Outro” (das ganz Andere). Os críticos da experiência religiosa tropeçam quando Rudolf Otto se vale de formulações kantianas para afirmar que o sagrado é “uma categoria estritamente a priori” (2007, p. 150); os críticos das categorias universalizantes também tropeçam porque Rudolf Otto apontou a irracionalidade como uma das características do numinoso. Seu grande feito foi contestar as abordagens iluministas e exógenas da religião, que a queriam reduzir a uma manifestação secundária do pensamento, da economia, da ética ou da evolução. No entanto, é realmente possível falar de uma experiência absoluta, que possa ser compartilhada por homens diferentes, ou de épocas diversas? A experiência religiosa não seria coisa exclusiva de místicos e inclusive perigosa para uma ortodoxia preocupada com a sua própria difusão na coletividade? Pretendendo dar conta desta dificuldade, von Balthasar (1982, p. 300) defendeu, no âmbito católico, a “homogeneidade radical entre experiência mística e fé”. Segundo o erudito suíço, a experiência seria tão eclesial quanto a fé: existe uma experiência arquetípica cuja vivência individual consiste no privilégio de participar da própria experiência que Cristo tem de Deus. Neste caso, a questão deve ser recolocada de outra forma: existe realmente uma experiência metaempírica do numinoso através dos símbolos? O fato é que o simbolismo das igrejas nunca foi totalmente ignorado pelos fiéis. Embora pareça sabido que a igreja de pedra representa a Igreja das almas, tal percepção costuma ser secundária e superficial, incapaz de mover muito além da curiosidade. A razão está em que a simbologia convencional não passa de um artifício humano, uma imitação dos verdadeiros símbolos, que são espirituais. Para aqueles que construíram a catedral e para os fiéis que nela rezavam, o edifício, provavelmente, não precisava de maiores explicações literárias. Nessa época de símbolos concretos, as pessoas podiam aceitá-la como o átrio do paraíso, um artefato belo em si mesmo e, no entanto, revelador de um reino muito mais nobre. (TUAN, 1983, p. 131)

Este ponto tem sido descurado mesmo na Academia, onde tem sido comum atribuir ao simbolismo cristão o mero objetivo de frisar a existência e o poder de Deus, ou de

145 evidenciar a tensão entre a eternidade e a temporalidade na vida dos fiéis114. Embora análises deste jaez sejam recorrentes, não refletem corretamente a fé das pessoas que criam e consumem tal arte; com efeito, a fábrica artesanal — por melhor que seja — raramente alcança imitar a profundidade da alma humana ou a beleza da natureza, caminhos comuns pelos quais o homem se alça à contemplação de algo mais sublime. Portanto, parece que verdadeiramente há uma experiência metaempírica do divino, acessível àqueles que, mediante a fé, elevam-se dos véus materiais do simbolismo à realidade suprassensorial do totalmente Outro. Parodiando Guimarães Rosa, o símbolo não fala sobre um quê, mas discursa sobre o Quem das coisas115. Audiência “Sem uma audiência, a arte pode existir?” — indagava-se Marit Munson (2011, p. 71). Postulando que “espaços diferentes demandam determinados tipos de atenção da audiência” (2011, p. 74), a arqueóloga propõe três abordagens para estudar as audiências: a) Comportamental, que “vê a audiência como recipientes de uma mensagem suficientemente simples e direta” (MUNSON, 2011, p. 74) e, portanto, passiva e uniforme; b) Da incorporação e resistência, a qual “enfatiza a audiência como variada e ativa, estruturada pelas categorias de raça, classe e gênero” (MUNSON, 2011, p. 75); c) Do espetáculo e desempenho, que “também enfatiza a construção social (e reconstrução) da audiência, embora neste caso o foco esteja mais na formação da identidade” (MUNSON, 2011, p. 75). Aplicando-se tal categorização à decoração de Santa Rita, é possível afirmar relativamente à sua audiência: é uma decoração comportamental, porque se dirige a uma assistência de “ouvintes fiéis”; é incorporadora, porquanto emblemática para grupos sociais (as irmandades); e é espetacular, na medida em que produz a admiração típica do barroco sobre

114 115

Cf. RIBEIRO, 2006, p. 8; RABELO, 2001, p. 21-24.

“Ele queria uma ideia como o vento… que relembra os formatos do orvalho… E bonitas desordens, que dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade. Não-entender, não-entender, até se virar menino. Jogar nos ares um montão de palavras, moedal… Era só uma claridade diversa diferente… Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!” (ROSA, João Guimarães. Corpo de Baile. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1960², p. 367)

146 todo aquele que a contempla. Conclui-se que — à semelhança da discussão acerca do significado — a audiência é múltipla e o seu alcance, insuficiente. Nem toda audiência será comportada, nem todo grupo será promovido, nem toda identidade será sensibilizada. Esta insatisfação seria decorrência da pequena qualidade da fábrica artística? Afinal, em Santa Rita “a obra é de boa qualidade, mas não consegue subverter o espaço rígido e sem maior expressão da nave e da capela-mor” (ALVIM, 2014, p. 100)116. A resposta, porém, também tem analogia com o que já foi afirmado sobre a insuficiência comunicativa do símbolo: o símbolo diz justamente porque não consegue dizer, assim como a audiência ouve justamente porque o símbolo não consegue falar. A comunicação que ocorre é apofática, ou seja, obtida por meio de negação. O silêncio da palavra é um silêncio místico (de μύω, mudez da boca e oclusão dos olhos) que se concentra no único necessário, que abre os ouvidos, que recolhe os sentidos, que apazigua o coração, provendo um ponto de partida para a prece, a meditação e a contemplação. Portanto, o símbolo tem função mais dispositiva do que comunicativa. Ele predispõe o indivíduo para a transcendência, mas o indivíduo não é o seu destinatário direto. Quanto mais despojado for o símbolo, quanto menos retiver em si a atenção, melhor desempenhará o seu papel. A transparência do símbolo acontece quando ele é transfigurado pelo numinoso, que deve ser a sua verdadeira audiência. São Josemaria Escrivá fazia-o notar, e o exemplificava muito bem, ao descrever suas visitas à catedral de Burgos, Espanha, de cuja arquitetura tirava consequências práticas para a vida cristã: Gostava de subir a uma torre para que vissem de perto a pedra trabalhada das cumeeiras, um autêntico rendilhado de pedra, fruto de um trabalho paciente e custoso. Nessas conversas fazia-lhes notar que aquela maravilha não se via de baixo. E para concretizar o que lhes tinha explicado com repetida frequência, comentava: isto é o trabalho de Deus, a obra de Deus: acabar a tarefa pessoal com perfeição, com beleza, com o primor destas delicadas rendas de pedra. Compreendiam, perante essa realidade que entrava pelos olhos, que tudo isso era oração, um formoso diálogo com o Senhor. Aqueles que tinham gasto as suas energias nessa tarefa sabiam perfeitamente que das ruas da cidade ninguém veria e apreciaria o resultado do seu esforço: era só para Deus. Compreendes agora como a vocação profissional pode aproximar do Senhor? Faz tu o mesmo que aqueles canteiros e o teu trabalho será também operatio Dei, um trabalho humano com entranhas e perfis divinos.117

116

Vide outras críticas no Capítulo 2, seção 1, item “O templo enquanto ‘cenário barroco’”.

117

São JOSEMARIA ESCRIVÁ, Amigos de Deus, 65, 3.

147 ************* A modo de conclusão, inferem-se três coisas acerca da decoração religiosa: a) Sua função precípua exige que não seja usada por abstração, ostentação, preciosismo ou extravagância. b) Dada a sua natureza litúrgica, necessita certo significado “sacramental”, que indique a presença de Cristo na assembleia reunida, na pregação do ministro, nos ritos realizados. c) Porque integra o espaço litúrgico, a decoração não serve apenas à instrução catequética, mas principalmente é também um ato de culto que materializa a gratidão pelas magnalia Dei: só pode anunciar a Palavra de Deus na medida em que o louva por causa da mesma Palavra. A fábrica de Santa Rita ainda alcança esses objetivos atualmente? Tais objetivos já estavam presentes na sociedade dos setecentos? — A resposta é positiva em todos os sentidos. A decoração rococó de Santa Rita não é mera frivolidade devocional afeita a um gosto de época. Do contrário, como explicar a vitalidade do templo e a sua persistência, a despeito do acanhamento arquitetônico, das limitações urbanísticas, das transformações políticas, sociais e econômicas, do descuido para com o patrimônio, da carência do lastro da memória?

Figura 28: Fundo da igreja, com o coro sobre o arco do nártex (foto de Mateus Rosada, 2014).

148

Figura 29: Igreja de Santa Rita, foto de Augusto Malta, 1904.

149

Considerações finais Que faz este homem assim esticado no caminho, com a cabeça para a casa da Morte, os pés para a banda da doença e os lados do corpo para o lugar da desavença? (Reginaldo Prandi, Mitologia dos Orixás)

Arqueologia da transição Após discorrer sobre as peculiaridades da igreja de Santa Rita — história, funcionalidade, bens integrados — e propor um método para a análise de seu simbolismo, é forçoso olhar para seu entorno. Não somente o entorno físico, a rua, a praça, a vizinhança; mas também o que se encontra para além do liame do tempo presente. Pois a incólume sobrevivência da acanhada matriz barroca às agruras da modernização carioca é um desafio do passado para o tédio do presente. Ao passar da Rua Visconde de Inhaúma para a Avenida Marechal Floriano, muitos transeuntes percebem o cunhal da igreja forçando uma curva em um logradouro que se pretendia retilíneo. A teimosia do edifício contrasta com a pressa de pessoas que olham sem reconhecer, que veem sem distinguir, que não têm memória da cidade. Se esta dissertação ajudou a migrar do ver ao conhecer, então é chegada a hora de também conhecer o que não se vê. E uma das coisas que não se vê é precisamente o cemitério dos pretos novos. Os cemitérios do Rio de Janeiro foram pesquisados, entre outros autores, por Cláudia Rodrigues (1997) e Júlio César Medeiros da Silva Pereira (2007), com atenção particular ao do Valongo, igualmente pertencente à paróquia de Santa Rita, mas posterior àquele do Largo da Matriz. Vieira Fazenda narra como o pároco esforçou-se por conservar o benefício da nova necrópole, demandando que o Valongo permanecesse em seu território mesmo após o desmembramento da freguesia. A questão ficaria resolvida apenas em 1836, quando “foram designados novos limites, ficando no distrito de Santa Rita toda a marinha desde quase o fim da Rua do Valongo até o Saco da Gamboa, em cujo meio fica o suspirado e interessante cemitério” (FAZENDA, 2011, v. I, p. 428). A presença do campo santo no Largo de Santa Rita não foi efêmera. Sendo um cemitério “de passagem” para os africanos recém-chegados ao porto do Rio de Janeiro e

150 destinados às Minas Gerais, presume-se que lá não haveria crianças enterradas, caso não tenha sido utilizado antes de 1722, o ano a partir do qual os pretos novos foram ali oficialmente sepultados. O cemitério católico ilustra o esforço da Igreja por manter a comunhão mesmo após a morte. Por um lado, a forma de inumar denota um rechaço do paganismo 118; por outro, a exclusão dos pagãos do cemitério cristão vem referendada pelos mais antigos cânones119. No entanto, o cuidado — ou o descuido — com os enterramentos pode revelar muito do espírito cristão da sociedade. A este respeito, Gilberto Freyre (2006, p. 527) denuncia que, no Brasil de então, “os negros, é claro, não se enterravam envolvidos em sedas e flores, nem dentro das igrejas. Enrolavam-se seus cadáveres em esteiras”. Apenas a escavação do cemitério de Santa Rita poderá comprovar os testemunhos, explicar as condições da transferência para o Valongo, evidenciar as interferências causadas pelos antigos chafarizes e manifestar as cicatrizes deixadas pela reforma do Prefeito Pereira Passos. Tendo em vista que o cemitério atendia precipuamente a escravos destinados a outras paragens, também é possível praticar ali uma Arqueologia da transição, isto é, uma pesquisa sobre as formas e estratégias de antropização do espaço ao longo do tempo, contribuindo para a compreensão da crioulização no Brasil. Arqueologia underground A eventual descoberta de remanescentes do cemitério de pretos novos proporcionará um campo amplo de estudo para a bioarqueologia a partir da análise osteobiográfica: a dieta dos escravos, sua idade, sexo, padrão de saúde, características físicas, expectativa de vida, impacto fisiológico da escravidão, problemas de paleopatologia (doenças infecciosas, hormonais, nutricionais, metabólicas, tumores, estresse mecânico ou inflamação dos tecidos moles), etc. Também a antropologia forense encontra campo de estudo para a causa mortis,

118 Vide CARLOS MAGNO, Capitulatio de partibus Saxoniæ, VII: Si quis corpus defuncti hominis secundum ritum paganorum flamma

consumi fecerit et ossa eius ad cinerem redierit, capitæ punietur (“Se vierem a fazer que, em conformidade com os ritos pagãos, o corpo e os ossos dos defuntos que sejam consumidos pelo fogo até a incineração, sejam punidos”). 119

Vide PSEUDO-TEODORO, Pænitentiale, 35, cânon: 2, 12: Quia de communione privatis et ita defunctis in epistula Leonis papæ ita scriptum est: […] Nos autem, quibus viventibus non communicavimus, mortuis communicare non possumus (“Porque também a respeito da comunhão particular com os defuntos está escrito na carta do papa Leão: ‘Nós, porém, que não podemos ter comunhão com eles enquanto vivos, quando mortos também não podemos’”).

151 às vezes ocasionada pela disputa violenta entre os próprios escravos, crioulos e africanos. Deste modo, as informações reavidas dos cemitérios não estão facilmente à disposição e tornam-se dados demográficos de particular interesse para as regiões cujos censos são parcos ou não privilegiam grupos sociais marginais. O resgate dos restos mortais geralmente traz consigo a recuperação das evidências associadas: além de esqueletos, também é possível encontrar outros objetos reveladores da cultura dos adventícios e artefatos associados àquelas pessoas ou à sua etnicidade. A defesa da identidade cultural pode servir-se de tais remanescentes materiais como catalizadores de demandas sociais, tornando a Arqueologia “da repressão e da resistência” uma Arqueologia “do tempo presente”. Com efeito, para os grupos não documentados a cultura material é politicamente inclusiva. Não existe História sem as pessoas. Contudo, a Arqueologia da diáspora africana procura manifestar o obrigado interesse por pessoas sem história120. Política de memória A igreja de Santa Rita é um imóvel tombado que, em tese, confere importância ao seu entorno. Nesse sentido, a vida em uma cidade que acumula traços de contextos históricos alheios aos atuais interpela seus cidadãos: — O que pode ser destruído ou reciclado? Como selecionar as lembranças? O que deve ser assimilado ou ressignificado? Para dar resposta a estas perguntas, pode auxiliar a classificação das formas de memória aventada por Emmanuel Carneiro Leão (2003, p. 11): Na vida humana e no curso de sua história operam muitas memórias: uma memória individual, engramática, que grava engramas, conteúdos de percepções; uma memória coletiva, cultural, que aciona possibilidades comunitárias e convoca experiências de participação; uma memória histórica, monumental, que celebra a continuidade das transformações e as consagra para o futuro.

A segunda forma elencada reclama um esforço consciente, pois a herança do patrimônio cultural só se torna propriedade cognitiva quando há identificação pessoal e associação emocional com o lugar. A memória monumental — representada em edifícios históricos — é apenas um primeiro passo rumo à memória coletiva. Os verdadeiros lugares de memória supõem uma consequente vontade de memória (sensibus Nora, 2008). Uma política 120

Sensu WOLF, Eric R. Europe and the People Without History. Berkeley: University of California Press, 1982.

152 contrária seria mnemotécnica falida, ars memorativa decadente, mero acúmulo patrimonial cuja rasoura abole qualquer hierarquia de valores e faz tudo valer a pena… ou nada. Lugares que guardam memórias podem e devem servir à memória coletiva. Na cidade das lembranças sociais, há carência de “parques da memória”, âmbitos em que as pessoas possam construir suas identidades, encontrar justiça, fomentar a reconciliação e forjar a própria memória individual e engramática. No entanto, a política patrimonial frequentemente congela a história em vez de promovê-la. Por isso, é missão dos preservadores virar ao avesso os lugares da ausência. Sem dúvida, preservar já é superar a amnésia política; mas este é apenas o primeiro passo para a memória. Como comentava Massimo Borghese (2008): A memória é luta contra a morte, escreve-se porque se quer que algo permaneça, um pequeno sinal que desafie o tempo confiando-o às próximas gerações. Sobre isto se funda toda civilização e toda cultura, assim como toda obra de arte. A criatividade é um desafio à morte e um testamento confiado às gerações futuras. A tradição ou é isto ou, quando não é isto, cai na pura arqueologia.

A Matriz e o Largo de Santa Rita sempre desafiaram a criatividade. Mas… e atualmente? Constituem um “parque de memória” para a cidade do Rio de Janeiro? — Após percorrer sua história, reconhecer seu pioneirismo e constatar sua resistência, ainda resta o convite para futuras descobertas e, principalmente, projetos promissores. *************

153

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181

Glossário Ábaco Parte superior do capitel de uma coluna, sobre a qual assenta a arquitrave. Abóbada Teto ou cobertura côncavos. Abside

Construção de planta semicircular, quadrangular ou poligonal, abobadada ou co-

berta de madeira, situada ao final da nave de uma igreja, limitada pelo transepto, destinada ao presbitério e ao altar. Acanto

Estilização da folha do acanto espinhoso,

utilizada como motivo decorativo (mais típico no capitel coríntio). Simboliza o sacrifício. Acrotério

Pequeno

pedestal na extremidade do

frontão para suporte de uma cruz ou outro elemento. Adossado

Diz-se do elemento arquitetônico apoi-

ado a uma parede de maior superfície ou a uma mole Folha de acanto

maior.

Adro Espaço aberto à frente ou em torno à igreja, geralmente murado. Aleta arquitetôn Alfaia Objeto de culto: paramentos, vasos, castiçais etc. Almofada

Peça saliente ou superfície de pequena extensão contornada por moldura e fi-

letes desnivelados, em portas, móveis, muros. Altar mesa elevada sobre a qual se oferece o sacrifício eucarístico. Altar coram populo

Denominação equívoca dada ao novo altar instalado em antigas

igrejas por ocasião da reforma litúrgica de Paulo VI, ocorrida durante a década de 1970. Nesses casos, o antigo altar-mor perde o status de altar e passa a ser considerado mera mesa do retábulo. O novo altar é instalado centralizado e isolado, à entrada da abversus

182 absidem. Não existe obrigação de se acrescentar um novo altar às antigas igrejas, cujo altar-mor mantém sua legitimidade e funcionalidade. Altar-mor

Altar principal de uma igreja, quando ocorria haver outros altares. Nos tem-

plos barrocos, geralmente ficava situado na capelaAltar colateral

Altar secundário situado na parede frontal da nave da igreja, ao lado do

Altar lateral Altar secundário situado nas paredes laterais da nave da igreja. Alvenaria Ambão O lugar da Liturgia da Palavra. Angra

Aleta decorativa nos arcos.

Anjo

Elemento ornamental que re-

presenta as criaturas angélicas. Cada um dos tradicionais nove coros (serafim, querubim, trono, dominação, virtude, potestade, principado, arcanjo, anjo) tem figuras e atributos Angra

próprios, inspirados nas descrições bíblicas. Vide Putti.

Anjo tocheiro Escultura de anjo portador de tocha ou castiçal. Apainelado Superfície composta de painéis ou almofadas definidos por molduras de madeira. Aparelho Disposição aparente dos elementos pétreos de uma estrutura arquitetônica. Arcada Arco Elemento estrutural curvo que cobre um vão. Arco cruzeiro ou triunfal Vão em arco, normalmente de grande dimensão, que estabelece a ligação en Arquitrave Arquivolta

-

Viga que repousa diretamente sobre colunas. que remata um portal.

183 Atlante

Escultura em forma humana que sustenta coluna, pilastra, coro, etc., inspi-

rada no mito de Atlas. Atributo

Símbolo, insígnia ou qualquer elemento que, numa escultura, pintura ou gra-

vura, serve para identificar determinado personagem. Átrio Vestíbulo, pátio ou adro frontal. Baixa-voz

Elemento escultural instalado acima do púlpito.

Balaustrada mão. Balaústres

Pequenos elementos verticais para vedação ou segurança, compostos por pe-

destal, fuste com contracurva e capitel. Baldaquim (baldaquino)

Elemento que nobilita um altar, um trono, um túmulo, uma

imagem, etc., cobrindoBanda Faixa, friso ou moldura horizontal. Banqueta Base Batistério Espaço ou capela onde se encontra a pia batismal. Beiral

Extremidade mais baixa de uma água de telhado que se projeta para fora da pru-

mada da parede externa a fim de protegê-la. Borla Motivo ornamental esculpido imitando tufo de franjas. Brutesco (ou grotesco)

Pintura ou escultura que representa plantas ou animais fantásti-

cos. Cabeceira

ando existente) .

Cachorro

184 Caixotão dorso de uma cobertura ou vão, limitado por moldura, normalmente poligonal, pintado ou entalhado. Camarim Parte interna do retábulo onde se coloca o trono para a imagem ou a relíquia de um santo. Canelura (estria)

Sulco linear de seção em meia co-

, Caixotão no intradorso do arco cruzeiro

, balaústre, etc.

Cantaria Obra de pedra aparelhada de forma geométrica e regular. Canteiro Oficial ou mestre que desbasta, corta e

Capela

Templo de pequeno porte ou depen-

dente de uma matriz paroquial. Recinto de uma igreja onde há um altar. Capela-mor

Capela principal, onde fica o altar-

mor de uma igreja. Capitel Capitel da pilastra, com folhas de acanto

Carranca Cabeça ou máscara do imaginário fantástico, esculpida em pedra, madeira ou metal, utilizada como motivo decorativo. Cartela

Superfície lisa emoldurada ou enqua-

drada para gravação de inscrição ou ornato. Chave Fecho de um arco ou de uma abóbada, muitas vezes decorado. Chave sob o arco do coro

185 Chinesice (chinoiserie) Elemento decorativo de inspiração chinesa. Cimalha

Moldura superior da

no alto e

Coluna Peça vertical de sustentação em uma construção, geralmente cilíndrica, constitu-

Coluna torsa ou salomônica Coluna cujo fuste é helicoidal ou espiral. Colunata

Concha Objeto ou ornato de feitio análogo à concha. Consolo

Peça saliente e ornada para sustentar escul-

turas ou apoiar cornijas e sacadas. Contracurva Curva na extremidade de um arco, que se prolonga em direção oposta à dele, formando outro Concha

arco.

Cornija arrematam a parte superior de uma construção. Coro Espaço da igreja destinada aos cantores dos ofícios. Coroamento

Elemento que termina ou remata uma estrutura arquitetônica

bulo, uma peça de mobiliário, etc. Corpo Espaço médio do espaço sagrado da igreja

Cornucópia Vaso em forma de corno recurvado contendo frutos, flores, moedas, etc. Atributo mitológico da abundância. Coruchéu Arremate pontiagudo que encima a torre ou o campanário. Cruzeiro -

central). Cruz erguida nos adros,

cemitérios, largos, praças etc. Cunhal Quina ou encontro de duas paredes, em ângulo externo.

186 Dossel Cobertura colocada à meia-altura no interior de uma peça ou para recobrir um elemento (como o púlpito, por exemplo). Douramento Aplicação de folhas de ouro sobre a superfície esculpida e devidamente preparada. Embasamento

Base que sustenta um edifício,

uma peça de mobiliário. Emblema Imagem composta de elementos com significado simbólico convencionado. Pode ser Dossel de nicho

acompanhado de legenda.

Empena Parede ou flanco cego rematado em ângulo num edifício coberto por telhado. Encarnação

Pintura feita sobre imagens ou estátuas de pedra ou madeira, simulando a

cor da pele. Entablamento Parte do edifício ou do retábulo, acima das colunas. Entorno Área adjacente ou próxima a uma construção. Epístola (lado da) Lado direito de um templo, quando observado da entrada principal, no qual se faz a leitura da Epístola na forma extraordinária do Rito Romano. Vide Evangelho (lado do). Espagnolette Guarnição de bronze com busto de mulher para o mobiliário. Estria Vide Canelura. Estuque

Argamassa de revestimento ou acabamento de grande resistência, feita com

gesso, para decoração interna. Evangelho (lado do)

Lado esquerdo de um templo, quando observado da entrada princi-

pal, no qual se faz a leitura do Evangelho na forma extraordinária do Rito Romano. Vide Epístola (lado da). Ex-voto

Representação pictórica ou escultórica com que se presenteia um templo, em

cumprimento de um voto.

187 Extradorso

Festão

Ornato em que são representadas

flores, folhas e frutos entrelaçados e suspensos em curva, fixado em cada extremidade por uma laçada. Festão

Filactério

Rolo de pergaminho com textos

sagrados. Fitomórfico

Ornato ou motivo decorativo

em forma vegetal. Florão

Ornato em feitio de flor que aparece

geralmente em teto, abóbada, volta de arcocruzeiro ou coroamento de retábulo. Friso

Frontal (de altar)

Face principal e dianteira

de uma mesa de altar. Frontão mento de estrutura arquitetônica ou decoraFlorão

tiva (edifício, porta, janela, nicho, etc.).

Frontispício (Frontaria) Fachada principal de uma construção. Fuste Gomo Ornato alongado e convexo que lembra os gomos de certas frutas. Grifo Animal fabuloso com cabeça e asas de águia e corpo de leão. Grotesco Vide Brutesco.

188 Guarda deira, chapa ou pedra) para proteção de escadas, balcões e janelas. Guarnição

Limite decorativo de uma composi-

ção. Em azulejaria diz respeito à delimitação de painéis por fiadas simples, duplas ou compósitas. Guirlanda Inscrição Conjunto de caracteres gravados em diversos suportes, nomeadamente na pedra, que indiGuarda ou balaustrada

cam o destino de um monumento, recordam um fato ou uma data. Intradorso

Laçaria

Face côncava interna de

Entalhes ou pinturas representando flo-

res, frutos, folhagens, etc., agrupados e presos por laços de fitas. Lanternim Pequena construção cilíndrica ou prismática, em forma de pequena torre, vazada lateralmente para iluminação do espaço interior. Laçaria

Lavabo ou refeitório.

Lambrequim

Rendilhado de madeira recortada para a decoração das extremidades de

Lioz Pedra calcária branca e dura, usada em estatuária e no revestimento de edifícios.

189 Luneta Abertura para iluminação acima das paredes de onde nasce o teto abobadado. Marco Parte fixa que guarnece o vão de portas e janelas. Vide Ombreira e Padieira. Mármore fingido Pintura imitando mármore. Medalhão Pintura ou escultura circular. Mísula , e que pode Mísula

servir de peanha. Modilhão

Modinatura

O conjunto das diferentes molduras de

uma construção. Nártex

Nave

Espaço longitudinal de uma igreja, situado entre -mor, no qual pre-

Modilhão com putti, concha e folha de acanto

ferencialmente ficam os leigos. Nicho

Cavidade ou vão em parede, muro, retábulo,

arco-cruzeiro, etc., para colocação de objetos ou imagens. Óculo (ou olho-de-boi) Janela ou abertura de forma circular ou oval nas fachadas. Olho-de-boi Vide Óculo. Ombreira Onda

Orago Imagem do santo ao qual é dedicada uma igreja. Ordem arquitetônica Conjunto formado por coluna e entablamento. As ordens arquitetônicas clássicas são cinco: dórica, jônica, coríntia, compósita e toscana.

190 Óvalo (óvano)

Motivo ornamental em relevo oval

capitéis. Padieira

mbreira.

Padrão Composição decorativa definida pela repetição de um módulo. Palmeta Estilização da folha de palma utilizada como motivo decorativo. Panejamento Roupagem de figuras pintadas ou esculpidas. Para-vento

Anteparo de madeira que se coloca geralmente após a porta principal de uma

igreja, entre o vestíbulo e a nave central, para resguardo do vento. Paramento litúrgicas. Partido

Organização geral de uma edificação, forma de distribuição e articulação dos es-

paços, de modo que se pode identificar um estilo. Peanha Pequeno pedestal. Pilar Elemento vertical estrutural de seção circu. Pilastra com função decorativa. Pináculo

Pirâmide ou cone alto e estreito para

coroar muros, torres e objetos. Pintura mural

Pintura executada num muro ou

parede. Peanha

Planta(-baixa)

Desenho arquitetônico que re-

presenta um edifício em seção horizontal. Platibanda

Mureta elevada sobre o topo das paredes de uma construção para encobrir o

telhado. Plinto (alaque, dado, soclo, soco) coluna ou de um pedestal.

Elemento quadrangular no qual se apoia a base de uma coluna.

191

Policromia

Policromia Portada Grande porta enquadrada por composição ornamental. Portal

Porta principal ou conjunto de portas principais de uma igreja ou outro edifício,

geralmente artisticamente trabalhadas; frontispício ou fachada, onde fica a porta principal. Pórtico Antecorpo de portal de igreja. Cobertura em pedra para proteger das intempéries. Potências

Três raios que se põem na cabeça das imagens de Cristo para simbolizar o trí-

plice múnus de sua mediação sacerdotal: santificar, ensinar e governar. Presbitério Púlpito

Parte elevada da capela-mor, destinada aos sacerdotes.

Mobiliário eclesiástico destinado às leituras e à pregação, geralmente erguido

192 Putti (putto)

Figura decorativa de menino nu, rechon-

chudo e alado, ou apenas de sua cabeça. Quartela Peça que em estrutura ornamental serve de sustentação a outra. Vide Consolo. Querubim Anjo do segundo coro da primeira hierarquia, com quatro asas e quatro rostos, assaz confundido com os putti. Putti ou querubim

Quimera

Animal fabuloso com cabeça de leão, corpo de

cabra e cauda de dragão. Relicário

Objeto destinado à guarda de relíquias em

forma de busto ou outras. Remate

Elemento que coroa uma estrutura arquitetô-

Resplendor

Auréola com raios de metal que se põe em

imagens, crucifixos, custódias etc. Rocalha

Retábulo

Estrutura pintada ou entalhada, de caráter de-

vocional, instalada atrás do altar-mor, geralmente adossado à parede. Risco Desenho, prospecto ou plano de uma construção ou mobiliário. Rocalha (rocaille)

Elemento ornamental concheado, introduzido na ornamentação de

portadas, arcos cruzeiros, retábulos, painéis, molduras, etc. Sacrário Caixa, cofre ou vão com porta onde se reserva a Santíssima Eucaristia. Sacrário fingido

Falso sacrário, que pode com.

Sacristia

Casa anexa a uma igreja, ou dependência

dela, onde são guardados os paramentos e outros objetos de culto.

Sacrário fingido

193 Sanefa Faixa decorada que cobre a

verga de um vão ou a

parte superior de um cortinado. Santuário

Parte da igreja em

que se realiza a Liturgia Eucarística. Sarcófago

Monumento fúne-

bre esculpido que representa o ataúde, mas que não contém o Sanefa

cadáver. Sede

Assento do bispo ou

presbítero celebrante. Seteira Janela esguia, estreita e alta, fenda. Sigla

Marca de canteiro gra-

vada nas peças da construção, destinada a assinalar a autoria, quando o trabalho era pago à jorna. Marca de posição que se destinava à colocação das peças na construção.

Seteira

Talha

Revestimento em madeira esculpida por meio de cinzel e goiva, em alto-relevo ou

baixo-relevo.

douração ou policromia. Compõe a arquitetura do edifício,

sendo considerada, para efeitos patrimoniais, um bem integrado. Tapete

Repetição de padrões nos revestimentos parietais, aplicados em grandes áreas,

normalmente delimitado por molduras. Tarja Faixa esculpida ou pintada em que se ostenta escudo ou inscrição. Terracota Tipo de cerâmica feita com uma pasta porosa sem uso de esmalte. Tímpano costuma receber escultura.

portais

194 Torêutica Arte de cinzelar e esculpir em metal, madeira ou marfim. Toro Moldura saliente de seção circular. Tramo

Cada uma das partes em que se divide a

porte da cobertura. Transepto Área transversal nas igrejas que se situa Tribuna eucarístico. Troféu

Ornato que representa um conjunto de

atributos militares agrupados em torno a um capacete, um escudo ou uma armadura para simbolizar o Tramos da nave

triunfo.

Trono eucarístico

-mor,

organizada em degraus sucessivos que gradualmente vão diminuindo em tamanho, destinada à exposição da Eucaristia. Ventana Janela, arco da torre sineira ou campanário, que recebe o sino. Verga las. Voluta descreve, em seção, um movimento espiralado. Zimbório

195

Apêndice A — Inventário simbólico Este inventário abarca apenas uma sucinta seleção de vinte e três peças, escolhidas dentre os bens integrados da igreja de Santa Rita: seus mais significativos ornamentos, símbolos e imagens. Para cada item foi aplicada a ficha interpretativa proposta no Capítulo 3, seção 1, com as oportunas adaptações, conforme o caso.

DEPENDÊNCIAS Sacristia

Ficha 1: Quadro de Santa Rita Ficha 2: Lavabo da sacristia Ficha 3: Águia bicéfala do lavabo da sacristia

Ficha 10: Retábulo de São Miguel e Almas (lado do Evangelho) Ficha 11: Retábulo de Nossa Senhora das Dores (Lado da Epístola) Ficha 12: Retábulo do Espírito Santo (lado da Epístola) Arco cruzeiro

Ficha 4: Oratório do orago original de Santa Rita

Ficha 13: Emblemas do extradorso do arco cruzeiro

Ficha 5: Cimalhas do oratório de Santa Rita e da porta do adro

Ficha 14: Fênix do intradorso do arco cruzeiro

Consistório do Santíssimo Sacramento

Capela-mor

Ficha 6: Altar de Nossa Senhora do Loreto

Ficha 15: Palma coroada

Ficha 7: Detalhe do teto do consistório do Santíssimo Sacramento

Ficha 17: Os milagres de Santa Rita

IGREJA

Ficha 16: Emblema do coração inflamado Ficha 18: São Mateus Evangelista Ficha 19: São Marcos Evangelista Ficha 20: São Lucas Evangelista

Nave

Ficha 8: Púlpito Ficha 9: Retábulo de Nossa Senhora da Graça (lado do Evangelho)

Ficha 21: São João Evangelista Ficha 22: Símbolo e alegoria eucarísticos Ficha 23: Santo Agostinho e Santo André Avelino

196

Ficha 1: Quadro de Santa Rita Fotografia:

FERREIRA, 2000

Análise artística Identificação prévia Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica Estilo

Análise funcional

Referência

Variação

Data:

2000

Óleo escuro, que dá destaque especialmente ao rosto e às mãos Santa Rita contempla o crucifixo As três coroas da palma aludem à vida exemplar de Rita nos estados de donzela, esposa e viúva (ou religiosa) ou a seu marido e dois filhos falecidos Representa Rita como religiosa (o hábito) e mística (o crucifixo); a palma é uma alegoria de seu martírio místico (devido ao estigma) Pintura anterior a 1697, com os dizeres: “Antiquíssimo quadro de Santa Rita, venerado na antiga Capela anterior à Matriz. Restaurado em 1912. Vig.º Cônego Dr. Victor.” Emblemático Assertivo O hábito negro faz referência O crucifixo faz referência à à Ordem agostiniana devoção de Rita à Paixão de Cristo Protocolar Elegante Rita não aparece com o tradicional A palma com três coroas apenas estigma na testa, tema que se repousa sobre seu seio, realçando tornaria preferido no século XIX seu caráter simbólico Iconológica Rita, representada com o hábito negro da ordem agostiniana, porta como atributos o crucifixo e a palma, alusão ao seu “martírio” (cf. Ap 7,9-17) através da compaixão, isto é, uma peculiar participação na Paixão de Cristo

197

Ficha 2: Lavabo da sacristia Fotografia:

FERREIRA, 2000

Análise artística Identificação prévia Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica Estilo Análise funcional

Referência Variação

Data:

2000

Esguicho de embrechado de mármore policrômico Temática aquática conferida pelas sereias nas ombreiras e pelos golfinhos nas bicas. Duas aves com ramos no bico ladeiam os golfinhos. Golfinho: o animal marinho mais usado na arte cristã, por ser mais forte e dinâmico, é alegoria de Cristo e da ressurreição. Sereia: demônio feminino alado da mitologia grega, que habita os recifes; desde o Medievo, mulher mortífera com cauda de peixe, alegoria da tentação. Alusão ao Batismo (Rm 6,4; Cl 2,12), sacramento pelo qual se morre nas águas (sereias) para viver uma nova vida (golfinhos). As aves evocam a pomba que Noé soltou da arca para saber se o dilúvio terminara (Gn 8,11). Única peça barroca remanescente, anterior à ereção da paróquia Emblemático Assertivo A cruz sobre o acrotério dá o Vide Ficha 3 sentido cristão da composição Elegante As sereias não exibem a cauda, mas estão recobertas de joias. Os golfinhos são replicados na torneira. Iconológica Os golfinhos transmitem sensação de movimento e profundidade através das caudas entrelaçadas

198

Ficha 3: Águia bicéfala do lavabo da sacristia Fotografia:

FERREIRA, 2000

Análise artística Identificação prévia Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica Estilo Análise funcional

Referência Variação

Data:

2000

Águia bicéfala com cinto, coração inflamado e palma Emblema imperial despojado de insígnias políticas, mas associado a outros atributos A águia é uma alegoria da ressurreição, pois voa fitando o sol e mergulha na água, renovando sua plumagem periodicamente (Sl 103,5; Is 40,31). O cinto, a palma e o coração em brasa são atributos de Santa Rita. Interpretação do significado intrínseco da iconografia como produto histórico, social e cultural Durante o período barroco, a águia bicéfala parece ter servido, tanto ao episcopado como às Ordens religiosas, como referência ao Império de Cristo na Terra Emblemático Identifica a pertença de Santa Rita à Ordem agostiniana Protocolar O cinto é perfeito: tem furos e fivela Isocréstica A possível referência ao Quinto Império evoca o litígio do doador da ermida com a Mitra para conseguir seu padroado particular

199

Ficha 4: Oratório do orago original de Santa Rita Fotografia:

Mateus Rosada

Identificação prévia Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

29/11/2014

Altar de sacristia com oratório de relíquias. Orago feito de roca, com encarnação pálida.

Análise artística

Análise iconográfica

Data:

Referência

Variação

Putti ladeiam o nicho do orago em que está a imagem da santa com seus tradicionais atributos (palma e crucifixo)

Vide Ficha 1

O oratório alberga o orago confeccionado no Porto e trazido ao Rio de Janeiro entre 1710 e 1719, o qual permaneceu na Candelária enquanto a ermida era ampliada, mas que foi substituído pela atual imagem do retábulo-mor em 1765. As joias originais da Santa (cruz e resplendor de ouro, e tríplice coroa de pedras preciosas) foram extraviadas por assaltantes antes de a igreja ficar pronta. O oratório também guarda o Lignum Crucis e uma relíquia de Santa Rita. Assertivo Há uma profusão de flores nas ombreiras e na cimalha, evocando o milagre da rosa de Santa Rita Elegante Protocolar Os putti não têm asas. Cabeças Rita exibe o estigma na testa de putti encimam as ombreiras, como se fossem capitéis. Isocréstica Santa Rita, como as demais agostinianas do século XIV, não vestia negro, mas bege

200

Ficha 5: Cimalhas do oratório de Santa Rita e da porta do adro Fotografia:

Mateus Rosada

Análise artística Identificação prévia Análise Descrição iconográfica tipológica Síntese iconológica Análise histórica

Estilo Análise funcional

Data:

29/11/2014

Cimalha adornada por três flores Uma grande rosa ladeada por uma margarida e outra flor que parece um botão de rosa A rosa é uma alegoria do amor formoso; aberta significa vida plena. A margarida é uma alegoria da inocência. Provável alusão aos três estados de vida santamente assumidos por Rita: donzela (margarida), esposa (botão) e religiosa (rosa) A margarida foi mais comum na tapeçaria e no mobiliário neoclássicos, especialmente durante os estilos franceses Diretório (1795-1804) e Imperial (1804-1815). É provável que a peça seja pouco posterior a esta época. Assertivo As flores evocam o milagre da rosa de Santa Rita, que ela fez florescer em pleno inverno

Referência



Variação



201

Ficha 6: Altar de Nossa Senhora do Loreto Fotografia:

FERREIRA, 2000

Identificação prévia Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

2000

Belíssimo altar com almofadas azuis, retábulo verticalizado, pináculo com acantos sobre as angras, e querubins nas guarnições. A imagem é da Senhora de Loreto, de braços ocultos, mas com o Menino ao colo.

Análise artística

Análise iconográfica

Data:

Referência Variação

Altar de consistório para veneração da imagem de Nossa Senhora (antes das Dores, agora do Loreto) O sacrário fingido traz os atributos da Paixão de Cristo. A multiplicidade de anjos ao pé da imagem alude à piedosa tradição do translado aéreo da Santa Casa de Nazaré à Europa, no século XIII, pouco antes da queda do Reino cruzado de Jerusalém. A devoção a Nossa Senhora do Loreto foi forte desde a Renascença. A devoção à compaixão de Maria, porém, teve notável crescimento nos tempos modernos. O uso da decorativo da folha de acanto entrou no mobiliário luso-brasileiro por influência inglesa. O retábulo albergava originalmente a imagem de Nossa Senhora das Dores, que passou a ficar sobre o retábulo da nave da igreja desde 1864. As imagens foram definitivamente trocadas em 1920. Assertivo O manto de Maria traz uma medalha com o monograma , AM (Auspice Maria: “sob os auspícios de Maria”), o qual também costuma ser interpretado como duplo MM (Mater misericordiæ). Protocolar Os querubins das guarnições lembram espagnolettes. Iconológica O tom azulado, presente tanto nas almofadas do altar quanto no fundo do retábulo, é um atributo mariano por excelência.

202

Ficha 7: Detalhe do teto do consistório do Santíssimo Sacramento Data:

Análise artística Identificação prévia Análise Descrição iconográfica tipológica Síntese iconológica

Afresco pintado na almofada do forro Alegoria da adoração do Cordeiro místico O Cordeiro redivivo porta o báculo pascal e olha a reguardant. Só ele pode abrir o livro dos sete selos (Ap 5,1–8,1). A combinação do livro e do Cordeiro evoca a dupla mesa da Palavra e da Eucaristia O consistório foi instalado em 1763 em casas da Rua das Violas (atual Teófilo Otoni), adquiridas para a ampliação da sacristia

Análise histórica Estilo

Análise funcional

2014

Referência

Variação

Emblemático Decoração eucarística condizente ao consistório da Irmandade do Santíssimo Sacramento Protocolar As palavras do Batista Elegante (cf. Jo 1,29), anotadas em baixo O quarteto de serafins que adora em língua vernácula, o Cordeiro místico (Ap 5,14) estão no plural como prevê foi convenientemente o texto do Missal substituído por um par de putti. que as aplica à Eucaristia. O livro sete vezes selado Na faixa superior aparecem as de Ap 5,1 obviamente é um rolo, mesmas palavras iniciais, não uma brochura. porém em latim. Isocréstica O báculo sempre é representado na pata direita, mas aqui foi erroneamente colocado na esquerda

203

Ficha 8: Púlpito Data:

Púlpito em balanço sobre a nave (há outro igual do outro lado)

Análise artística Identificação prévia Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Plataforma de onde se proclama a Palavra de Deus ou o Pregão Pascal O emblema eucarístico destaca-se na composição. A presença dos putti nas guarnições parece, porém, ter caráter meramente decorativo. Simboliza o sepulcro de Cristo, onde foi feito o primeiro anúncio da Ressurreição pelas Virtudes angélicas —

Estilo

Análise funcional

2014

Referência

Variação

Emblemático Púlpito vinculado à Irmandade do Santíssimo Sacramento Elegante Há uma pequena nuvem sob o Cálix eucarístico, o que reforça o aspecto alegórico do emblema (cf. o maior realismo proporcionado pela representação de uma mesa de apoio na Ficha 22) Iconológica Seria de se esperar encontrar um símbolo relacionado à Palavra de Deus ou ao anúncio pascal, típicos da finalidade do púlpito. A solução adotada, porém, realça a conexão entre a Liturgia da Palavra e a Liturgia eucarística: na Eucaristia, a Palavra se faz pão.

204

Ficha 9: Retábulo de Nossa Senhora da Graça (lado do Evangelho) Fotografia:

Mateus Rosada

Análise artística

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Altar com o monograma (Auspice Maria: “sob os auspícios de Maria”), coroamento com a pomba (emblema do Espírito Santo), tarja com estrela e coroa imperial (do Divino) Há um cruzamento de atributos marianos e pneumatológicos Maria, Mãe do Autor da graça criada, é Esposa da Graça incriada, o Espírito Santo Único retábulo não pertencente a uma irmandade

Estilo Análise funcional

29/11/2014

Vide Capítulo 1, seção 2, item “A primeira fábrica rococó”

Identificação prévia Análise iconográfica

Data:

Referência Variação

Assertivo A estrela remete a Maria, Estrela da manhã — Isocréstico É o único dos retábulos laterais que não traz no coroamento o símbolo da Trindade

205

Ficha 10: Retábulo de São Miguel e Almas (lado do Evangelho) Fotografia:

Mateus Rosada

Análise artística

Análise iconográfica

29/11/2014

Vide Capítulo 1, seção 2, item “A primeira fábrica rococó”

Identificação prévia Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Altar com a balança, coroamento com o triângulo, tarja com espada, cruz e âncora, a modo de armas O triângulo alude à Santíssima Trindade; as armas, às virtudes teologais As almas são postas na balança por São Miguel, Príncipe da milícia celeste. As armas para vencer na prova são a fé (espada), a esperança (âncora) e a caridade (cruz) Pertencente à Irmandade de São Miguel e Almas

Estilo Análise funcional

Data:

Referência Variação

Emblemático A balança faz referência às Almas do Purgatório, por quem sufragava a Irmandade de São Miguel Elegante As armas estão elegantemente adornadas de flâmulas, fitas e borlas Iconológica O fato de na balança de São Miguel serem representadas as almas indica a antiguidade da imagem, pois se deixou de fazer (cf. CAMPOS, 2013, p. 201)

206

Ficha 11: Retábulo de Nossa Senhora das Dores (Lado da Epístola) Fotografia:

Mateus Rosada

Análise artística

Análise iconográfica

29/11/2014

Vide Capítulo 1, seção 2, item “A primeira fábrica rococó”

Identificação prévia Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Imagem de Nossa Senhora das Dores e a imagem do Senhor Morto no sarcófago Tanto o altar quanto o sacrário fingido trazem símbolos da Paixão de Cristo: a cruz, a lança, o hissopo Este retábulo, diante do outro de Nossa Senhora da Graça, indica como a Maternidade Divina de Maria lhe supôs não somente o gozo de gerar Jesus, mas também a dor de vê-lo morrer Retábulo pertencente à Irmandade do Santíssimo Sacramento

Estilo Análise funcional

Data:

— Protocolar

Referência Retábulo com referência à Santa Casa de Loreto na tarja (vide Ficha 6) Variação

Isocréstica O triângulo (emblema da Trindade) do coroamento carece de botões nos vértices para representar as Pessoas divinas, como acontece nos outros retábulos

207

Ficha 12: Retábulo do Espírito Santo (lado da Epístola) Fotografia:

Mateus Rosada

Análise artística

Análise iconográfica

29/11/2014

Vide Capítulo 1, seção 2, item “A primeira fábrica rococó”

Identificação prévia Descrição tipológica Síntese iconológica

O símbolo do Divino Orago está no altar, na tarja e no camarim. No camarim também está a imagem de Sant’Ana Mestra. O Espírito Santo vem representado pela pomba e pelas asas que ladeiam o coração inflamado O primeiro dom do Espírito Santo é a sabedoria, representada na cena de Sant’Ana a instruir Nossa Senhora Menina Último retábulo a ser concluído, em 1759, doado à Irmandade do Divino pelo vigário João Pereira de Araújo Azevedo

Análise histórica Estilo Análise funcional

Data:

Referência Variação

Emblemático O coração inflamado alude à Ordem dos agostinianos — Isocréstica Dos três emblemas triangulares da Trindade no coroamento do retábulo, este é o que tem os vértices com botões mais salientes para a representação das Pessoas divinas

208

Ficha 13: Emblemas do extradorso do arco cruzeiro Fotografia:

Mateus Rosada

Data:

29/11/2014

Emblemas sacrificiais do extradorso do arco cruzeiro Análise artística Identificação Do lado do Evangelho, sobre nuvens, um altar com radiâncias. Do lado da Epístola, um altar inflamado também sobre nuvens. prévia

Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

Referência

Variação

O altar em chamas remete ao culto veteritestamentário, cujos sacrifícios em grande parte eram realizados por meio do fogo. O altar radiante remete à “luz eucarística” do Novo Testamento. O par de emblemas serve para indicar a santidade do santuário, a modo de pórtico da capela-mor, onde do nascer do Sol até o ocaso se realiza o sacrifício perfeito, a oblação santa (Ml 1,11) Era uma exigência pastoral do período posterior ao Concílio de Trento a reafirmação do caráter sacrificial da Missa, o que se buscava através do uso tipológico de figuras do Antigo Testamento, neste caso, o altar. Emblemático A Irmandade do Santíssimo Sacramento era corresponsável pelo culto realizado na capela-mor, razão pela qual multiplicam-se os símbolos eucarísticos Elegante Protocolar O altar do Antigo Testamento A nuvem serve, em ambos os recorda o aspecto do elevado casos, para reforçar o aspecto altar dos holocaustos, enquanto alegórico dos emblemas o do Novo Testamento parece mais raso, como uma mesa —

209

Ficha 14: Fênix do intradorso do arco cruzeiro Fotografia:

Mateus Rosada

Análise artística Identificação prévia Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Análise funcional

Estilo Referência Variação

Data:

29/11/2014

Cartela com emblema da fênix Ave mítica de grande beleza com plumas vermelhas, púrpuras e douradas, e olhos semelhantes a gemas. Oriunda da selva arábica, segundo Heródoto (História, II, 73). Periodicamente queima-se a si mesma numa pira funerária, da qual renasce das próprias cinzas, começando um novo ciclo de vida. Introduzida no simbolismo cristão por São Clemente Romano (Epístola Primeira, 25–26). Associada à palingenesia. Representa a ressurreição, a fé e a constância Foi símbolo comum na Idade Média, mas raro no Renascimento. Seu retorno no Barroco talvez seja uma chinesice, pois a fênix na China representava a Imperatriz: equivalente ao pássaro chamado Fung (feminino Hwang) constituído de vários elementos (cabeça de galo, dorso de pássaro, olhos de sol, bico em lua crescente, asas de vento, calda de árvores e flores, pés de terra) e considerado o epítome das aves. No taoismo, é um dos numina (quarteto de animais fantásticos) que guardam os pontos cardeais. — — —

210

Ficha 15: Palma coroada Fotografia:

Mateus Rosada

Identificação prévia Descrição tipológica Síntese iconológica Análise histórica

Atributo de Santa Rita As três coroas da palma aludem à vida exemplar de Rita nos estados de donzela, esposa e viúva (ou religiosa) ou, menos provável, aos seus filho e marido falecidos O crucifixo e a palma aludem ao seu “martírio” (cf. Ap 7,9-17) através da compaixão, isto é, uma peculiar participação na Paixão de Cristo, tanto nas agruras da vida quanto na estigmatização —

Estilo Análise funcional

29/11/2014

Emblema presente no intradorso do arco cruzeiro, na tarja da capela-mor, no altar-mor e no altar coram populo

Análise artística

Análise iconográfica

Data:

Referência Variação

Assertivo Devido à dignidade do orago, seu emblema fica do lado do Evangelho no caso do intradorso Elegante O cinto característico da Ordem agostiniana às vezes é representado enlaçando a palma —

211

Ficha 16: Emblema do coração inflamado Fotografia:

Mateus Rosada

Análise artística Identificação prévia Descrição Análise tipológica iconográfica Síntese iconológica Análise histórica Estilo Análise funcional

Referência Variação

Data:

29/11/2014

Emblema como chave do camarim do retábulo-mor Cartela com coração inflamado Alegoria do coração como receptáculo de amor Cristo teria se revelado a Santa Rita, poucos dias antes da sua morte, dizendo-lhe: “Sou teu celestial esposo, que acendeu em teu coração o fogo do amor divino e encheu tua alma de virtudes, conforme teus ardentes desejos” O emblema da ordem agostiniana consiste em um coração inflamado e flechado sobre um livro Assertivo Atributo de Santa Rita Elegante Provavelmente, o atributo de Rita mantém relação com o emblema da Ordem agostiniana Isocréstica O fogo no topo do coração não está bem caracterizado

212

Ficha 17: Os milagres de Santa Rita Data:

Análise artística Identificação prévia Análise iconográfica

Afrescos de cenas da vida de Santa Rita no forro da capela-mor Dois êxtases de Santa Rita: na estigmatização e no seu trânsito

Descrição No primeiro afresco, Santa Rita recebe na fronte o estigma da coroa de espinhos ao pedir a Jesus uma participação especial em sua Paixão. tipológica O segundo afresco representa o seu trânsito. Síntese iconológica

Análise histórica Estilo Análise funcional

2014

Referência

Variação

Santa Rita é coroada de espinhos pelo anjo para simbolizar o estigma que recebeu ao contemplar o crucifixo. No leito de morte, outro anjo oferece a palma dos mártires à Santa Rita, que divisa a aparição de Jesus e Maria enquanto duas irmãs de hábito a assistem portando rosas, em alusão ao milagre operado em vida pela santa (quando fez florescer uma rosa em pleno inverno rigoroso). O forro da capela-mor foi pintado pelo artista Comte durante a reforma ocorrida entre 1905 e 1907 Assertivo O atributo da palma com três coroas aparece em ambos os quadros Protocolar Elegante A nuvem serve, Os anjos que ladeiam Santa Rita em ambos os casos, quando estigmatizada para representar podem representar a irrupção do numinoso seus dois filhos Isocréstica Santa Rita recebeu o estigma ao contemplar o afresco de Cristo crucificado que havia em sua cela, não um crucifixo de mesa

213

Ficha 18: São Mateus Evangelista Data:

Análise artística Identificação prévia Análise Descrição iconográfica tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

Referência Variação

2014

Uma das pinturas dos quatro evangelistas em tamanho natural É costume representar os Evangelistas na capela-mor, fazendo paralelo ao quarteto dos animais seráficos da corte divina Além do atributo seráfico tradicional, cada evangelista é retratado com o rolo de hagiógrafo O homem alado indica que o Evangelista em questão é Mateus, o qual começa seu Evangelho pela genealogia do Homem Jesus Cristo A exegese patrística, interpretando a corte celeste de Ap 4 em chave litúrgica, relacionou cada serafim com um Evangelista. A partir de fontes antigas (cf. Santo IRINEU, Adversus hæreses III, 11, 8), a iconografia às vezes identifica o leão com Mateus, pois revelou a realeza de Cristo; e o boi com Marcos, que revelou seu desejo sacerdotal de servir. O homem é identificado com Lucas, que exprimiu a humanidade do Redentor; e a águia com João, que mostrou sua glória e divindade. Não é o caso aqui, que segue chave escriturística. Assertivo Ao pé do Evangelista encontram-se anotações fiscais que indicam sua anterior profissão de publicano Protocolar Como todo santo escritor, Mateus porta o livro e a pena Isocréstica O livro de Mateus foi representado como brochura

214

Ficha 19: São Marcos Evangelista Data:

Análise artística Identificação prévia Análise Descrição iconográfica tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

2014

Uma das pinturas dos quatro evangelistas em tamanho natural É costume representar os Evangelistas na capela-mor, fazendo paralelo ao quarteto dos animais seráficos da corte divina Além dos atributos tradicionais, cada evangelista é retratado com o rolo de hagiógrafo O leão indica que o Evangelista em questão é Marcos, que inicia seu Evangelho no deserto, habitat do leão A exegese patrística, interpretando a corte celeste de Ap 4 em chave litúrgica, relacionou cada serafim com um Evangelista. A partir de fontes antigas (cf. Santo IRINEU, Adversus hæreses III, 11, 8), a iconografia às vezes identifica o leão com Mateus, pois revelou a realeza de Cristo; e o boi com Marcos, que revelou seu desejo sacerdotal de servir. O homem é identificado com Lucas, que exprimiu a humanidade do Redentor; e a águia com João, que mostrou sua glória e divindade. Não é o caso aqui, que segue chave escriturística. Assertivo A paisagem atrás de Marcos é convenientemente egípcia, como o demonstram as pirâmides, pois o Evangelista foi o primeiro bispo de Alexandria

Referência



Variação



215

Ficha 20: São Lucas Evangelista Data:

Análise artística Identificação prévia Análise Descrição iconográfica tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

Referência Variação

2014

Uma das pinturas dos quatro evangelistas em tamanho natural É costume representar os Evangelistas na capela-mor, fazendo paralelo ao quarteto dos animais seráficos da corte divina Além dos atributos tradicionais, cada evangelista é retratado com o rolo de hagiógrafo O touro indica que o Evangelista em questão é Lucas, que principia com a descrição de um sacrifício mosaico A exegese patrística, interpretando a corte celeste de Ap 4 em chave litúrgica, relacionou cada serafim com um Evangelista. A partir de fontes antigas (cf. Santo IRINEU, Adversus hæreses III, 11, 8), a iconografia às vezes identifica o leão com Mateus, pois revelou a realeza de Cristo; e o boi com Marcos, que revelou seu desejo sacerdotal de servir. O homem é identificado com Lucas, que exprimiu a humanidade do Redentor; e a águia com João, que mostrou sua glória e divindade. Não é o caso aqui, que segue chave escriturística. Assertivo Junto de Lucas vê-se uma paleta de pintor, pois se diz que ele foi retratista da Virgem Maria — Iconológica No chão está o outro livro da lavra de Lucas: os Atos dos Apóstolos

216

Ficha 21: São João Evangelista Data:

Análise artística Identificação prévia Análise Descrição iconográfica tipológica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

Referência Variação

2014

Uma das pinturas dos quatro evangelistas em tamanho natural É costume representar os Evangelistas na capela-mor, fazendo paralelo ao quarteto dos animais seráficos da corte divina Além dos atributos tradicionais, cada evangelista é retratado com o rolo de hagiógrafo A águia indica que o Evangelista em questão é João, em cujo prólogo de seu Evangelho “voa” até as alturas do Verbo de Deus A exegese patrística, interpretando a corte celeste de Ap 4 em chave litúrgica, relacionou cada serafim com um Evangelista. A partir de fontes antigas (cf. Santo IRINEU, Adversus hæreses III, 11, 8), a iconografia às vezes identifica o leão com Mateus, pois revelou a realeza de Cristo; e o boi com Marcos, que revelou seu desejo sacerdotal de servir. O homem é identificado com Lucas, que exprimiu a humanidade do Redentor; e a águia com João, que mostrou sua glória e divindade. Não é o caso aqui, que segue chave escriturística. Assertivo A paisagem aquática alude à permanência de João na cidade costeira de Éfeso e a seu exílio na ilha de Patmos Protocolar João, o Apóstolo adolescente, aparece imberbe, mesmo tendo escrito o Evangelho na ancianidade Iconológica Outros rolos no chão indicam os demais opúsculos deixados pelo hagiógrafo: três Epístolas Católicas e o Apocalipse

217

Ficha 22: Símbolo e alegoria eucarísticos Data:

Análise artística Identificação prévia Análise iconográfica

Descrição tipológica Síntese iconológica

Análise histórica Estilo

Análise funcional

Referência

Variação

2014

Afrescos eucarísticos do forro da capela-mor O Pão e o Vinho consagrados. O Cordeiro redivivo porta báculo e se assenta sobre o livro dos sete selos (Ap 5,1–8,1) A combinação do livro e do Cordeiro evoca a dupla mesa da Palavra e da Eucaristia A frase do Batista (Jo 1,29) na flâmula (Ecce Agnus Dei), que é utilizada na Missa, indica que no Pão e Vinho consagrados está realmente presente o Cordeiro de Deus, com seu Corpo e Sangue, Alma e Divindade O forro da capela-mor foi pintado durante a reforma ocorrida entre 1905 e 1907 Emblemático Decoração eucarística condizente ao consistório da Irmandade do Santíssimo Sacramento Protocolar Para a representar o Pão Elegante consagrado, foi grafado o Um arranjo de trigo e uvas cristograma IHC, as iniciais gregas envolve o cálice de Vinho do Nome de Jesus (Ἰησυς). consagrado O báculo é representado na pata direita do Cordeiro. Iconológica Fez-se a fusão da figura do Cordeiro místico do Apocalipse com o título de Cordeiro de Deus dado a Cristo por João Batista

218

Ficha 23: Santo Agostinho e Santo André Avelino Fotografia:

FERREIRA, 2000

Análise artística Identificação prévia Descrição Análise tipológica iconográfica Síntese iconológica

Análise histórica

Estilo Análise funcional

Data:

2000

Imagens policromadas dos nichos laterais do retábulo-mor Santo Agostinho de Hipona (mitra e livro) e André Avelino (casula e manípulo) — Santo Agostinho de Hipona, Bispo e Doutor da Igreja, guia espiritual de Santa Rita, tem a precedência do lado do Evangelho. Santo André Avelino, protetor do clero, está do lado da Epístola. Santo André Avelino (1521-1608) foi sacerdote italiano da Ordem dos Clérigos Regulares (Teatinos), beatificado em 1624 e canonizado em 1712. Ambas as imagens foram mandadas esculpir pelo pe. Antônio José Correia, pároco de 1765 a 1801. Emblemático Assertivo Santo Agostinho é o padroeiro Coincidentemente, da Ordem agostiniana, Santo André Avelino foi da a que pertencia Santa Rita mesma região de Santa Rita

Referência



Variação



219

Apêndice B — Cronologia 1377

Em Roccaporena, Itália, nasce Margherita (Rita) Lotti, filha de Antonio Lotti e de Amata Ferri.

1389

Rita é desposada por Paolo Ferdinando Mancini.

1441

Após a morte do marido e dos filhos, Rita faz profissão de vida religiosa sob o hábito agostiniano no mosteiro de Santa Maria Madalena, em Cascia, Itália.

1457

A 22 de maio, Rita de Cássia morre de tuberculose em Cascia.

1627

Rita de Cássia é beatificada sob o pontificado de Urbano VIII.

1634

No Rio de Janeiro, é erigida, no plano da várzea sob o morro do Castelo, a paróquia de Nossa Senhora da Candelária.

1697

Núpcias de Dona Antônia Maria e Dom Manuel Nascentes Pinto. Instalam-se numa chácara da região carioca do Valverde e difundem na vizinhança a devoção à Bem-aventurada Rita de Cássia, cuja efígie pintada a óleo exibem à veneração.

1700

Dom Frei Francisco de São Jerônimo de Andrade instala seu palácio episcopal no Morro da Conceição, diante do atual Largo de Santa Rita.

1702-1719 Os Nascentes Pinto erigem a ermida dedicada à Bem-aventurada Rita de Cássia. 1706

Dom João V o Magnânimo é coroado rei de Portugal.

1710-1711

Du Clerc e Duguay-Trouin invadem o Rio de Janeiro.

1710-1719

É encomendada a um artífice do Porto uma nova imagem de madeira de Santa Rita, a ser instalada na Candelária enquanto a ermida não é ampliada.

1719

Ayres de Saldanha é empossado Governador do Rio de Janeiro.

1720

Lançamento da pedra fundamental da nova igreja que ampliaria a antiga ermida.

1721

O Governador institui um cemitério de pretos novos na região do Largo de Santa Rita. É criada a Irmandade de Santa Rita de Cássia, que recebe o terreno, a igreja em construção, e uma dotação para alfaias. Dom Manuel Nascentes Pinto oferece a igreja à Mitra com a condição de ser padroeiro; Dom Francisco de São Jerônimo de Andrade nega-se a aceitar o padroado particular.

1723

Dom Antônio de Guadalupe é eleito bispo do Rio de Janeiro.

1725

Luís Vahia Monteiro, o Onça, é empossado Governador do Rio de Janeiro.

1731

Falece Dom Manuel Nascentes Pinto. Seu filho Inácio continua as diligências junto à cúria para garantir o padroado da família.

1733

Dom Antônio de Guadalupe funda a cadeia eclesiástica do Aljube, no Valverde.

1739

Dom Frei João da Cruz Salgado de Castilho é eleito bispo do Rio de Janeiro.

1741

Inácio Nascentes Pinto cede a igreja à Mitra diocesana, mas leva à Câmara o pleito pelo padroado particular.

1745

Dom Antônio de Nossa Senhora do Desterro Malheiro Reimão torna-se bispo do Rio de Janeiro.

220 1751

A igreja de Santa Rita é elevada à condição de matriz paroquial a 31 de janeiro. É criado o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro por carta régia de 16 de março.

1753

O território de Santa Rita, desmembrado à freguesia da Candelária, é delimitado a 10 de maio. Inácio Nascentes Pinto desiste do litígio com a Mitra. Começa a execução da talha da Matriz, em estilo rococó, pela primeira vez nas Américas.

1755

Terremoto de Lisboa.

1756

Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branc do Rio de Janeiro.

1759

Concluem-se a confecção da talha da igreja e as obras do frontão e da torre.

1763

A Irmandade do Santíssimo Sacramento interliga uma série de casas na Rua das Violas à igreja de Santa Rita, onde também se instala o consistório da Irmandade de São Miguel e Almas.

1765

Novo orago de Santa Rita é entronizado no altar-mor. Autorizam-se inumações em plena rua, porque o cemitério de pretos novos já não comporta mais covas.

1769

O vice-rei Marquês do Lavradio ordena a transferência para o Valongo do mercado de escravos da Rua Direita e do cemitério de pretos-novos de Santa Rita.

1773) é eleito bispo

1765-1801 São esculpidas para a igreja as imagens de Santo Agostinho e São André Avelino. 1818

Construção das catacumbas da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

1825

Remoção do antigo cruzeiro de mármore do cemitério.

1842

Instala-se um chafariz no Largo de Santa Rita.

1850

Surto de febre amarela e consequente proibição dos enterros intramuros no Rio de Janeiro. A catacumba da Irmandade do Santíssimo Sacramento é transformada em armazém.

1864

A imagem de Nossa Senhora das Dores passa a ser venerada no lugar do sacrário fingido do retábulo de Nossa Senhora do Loreto.

1884

O chafariz do Largo de Santa Rita é substituído por uma fonte de ferro.

1900

Rita de Cássia é canonizada por Leão XIII durante o Ano Jubilar.

1904

O prefeito do Rio de Janeiro, Pereira Passos, remodela o Centro da Cidade e abre diante da igreja de Santa Rita a Avenida Marechal Floriano.

1905-1907 A Matriz passa por pequena reforma e ganha afrescos no forro da capela-mor. 1920

A imagem de Nossa Senhora das Dores é entronizada no retábulo de Nossa Senhora do Loreto. A imagem do Loreto passa a estar entronizada no altar do consistório da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

1938

A igreja de Santa Rita é tombada pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendo inscrita no Livro Histórico e no Livro de Belas-artes.

1994-1999 Restauração completa da Matriz e de seus bens integrados. 2002

A memória facultativa de Santa Rita de Cássia é acrescentada ao Calendário litúrgico do Rito Romano, estendendo-se o seu culto a toda a Igreja Latina.

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