Arqueologia da repressão e da resistência

July 8, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Archaeology, Arqueología, Arqueologia, Military Dictatorship, Dictadura, Ditadura Militar
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ARQUEOLOGIA DA REPRESSÃO E DA RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA NA ERA DAS DITADURAS (décadas de 1960/1980)”. Pedro Paulo A.Funari Andrés Zarankin José Alberioni dos Reis (organizadores)

INDICE Introdução – Pedro Paulo A. Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni dos Reis 1.

Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a história do achado dos restos de Che Guevara - Roberto Rodríguez Suárez

2.

Riscando atrás dos muros: grafite e imaginário político-simbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela) - Rodrigo Navarrete S. e Ana Maria López Y.

3.

“México 1968”: entre as presepadas olímpicas, a repressão governamental e o genocídio – Patricia Fournier e Jorge Martínez Herrera

4.

Arqueologia e Esquerda na Colômbia – Carl Henrik Langebaek

5.

A Arqueologia do conflito no Brasil – Pedro Paulo A. Funari e Nancy Vieira de Oliveira

6.

Arqueologia e Antropologia Forense: um breve balanço – Luis Fondebrider

7.

Tortura, verdade, repressão, arqueologia – Alejandro F. Haber

8.

Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no Uruguai (1971-1985) José Mª López Mazz

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A materialização do sadismo: Arqueologia da Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina (1976-1983) Andrés Zarankin e Claudio Niro

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Sobre os editores Pedro Paulo A. Funari - nascido em São Paulo/Brasil, estudou na Universidade de São Paulo (USP) nos cursos de História, Antropologia Social e Arqueologia. Professor catedrático da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) é coordenadorassociado do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) e investigador do Núcleo de Estudos e Investigações Ambientais (NEPAM). Funari é também pesquisador-associado da Illinois State University (EUA) e da Universidade de Barcelona (Espanha) e investigador do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas do Brasil (CNPq). Professor em diversas universidades européias e norte-americanas. Suas experiências de trabalho de campo ocorreram na Inglaterra, Espanha, Itália, além do Brasil. Foi representante sênior sul-americano no Conselho Mundial de Arqueologia (WAC1994/2002) e secretário da mesma organização no período de 2003-2004. Autor de dezenas de livros e de centenas de artigos. Dentre os livros, destacam-se os seguintes: Historical Archaeology – back from the edge (Londres e Nova Iorque, Routledge, 1999); Global Archaeological Theory (Nova Iorque, Kluwer, 2005). Funari trabalha com a Arqueologia das minorias étnicas e dos grupos invisíveis para a história oficial. E-mail: [email protected] Andrés Zarankin – estudou na Universidade de Buenos Aires e na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente é professor de Arqueologia no Departamento de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atuou, também, como pesquisador do CONICET-Argentina, no Departamento de Investigações Pré-históricas e Arqueológicas do IMHICIHU. Em 2003 participou dos trabalhos de escavação do Centro Clandestino de Tortura ‘Club Atlético’, na cidade de Buenos Aires. É autor de diferentes livros. Dentre eles: Global Archaeological Theory – contextual voices and contemporary thoughts, junto com Pedro P.A.Funari e Emily Stovel (Nova Iorque, Plenum-Kluwe, 2005); Paredes que domesticam: arqueologia da arquitetura escolar capitalista – o caso de Buenos Aires (Campinas, IFCH-UNICAMP, 2002); Arqueologia da sociedade moderna na América do Sul, junto com Maria Ximena Senatore (Buenos Aires, Del Tridente, 2002); Sed Non Satiata – teoria social na Arqueologia Latinoamericana contemporânea, junto com Felix Acuto (Buenos Aires, Del Tridente, 1999). Seus principais temas de investigação são “Arqueologia da Arquitetura” e “Arqueologia Histórica”. E-mail: [email protected] José Alberione dos Reis – nasceu nos Campos de Cima da Serra Gaúcha/RGS. Estudou na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Atualmente é professor de História da Hominização e Arqueologia no Departamento de História da Universidade de Caxias do Sul. Já escreveu vários artigos em publicações nacionais e estrangeiras e, também, é autor do livro Arqueologia dos Buracos de Bugre: uma pré-história do Planalto Meridional (Caxias do Sul, EDUCS, 2002). Tem participado em vários trabalhos de campo nos âmbitos da Arqueologia Pré-Histórica e Histórica. E-mail: [email protected] SOBRE OS AUTORES

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Alejandro Haber – é professor da Universidade Nacional de Catamarca e investigador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas. É doutor pela Universidade de Buenos Aires. Dirige uma equipe de investigação na Puna de Atacama. Seu último livro é Para uma arqueologia das arqueologias sul-americanas (Bogotá, Uniandes, 2004). E-mail: [email protected] Ana María López de Korin – antropóloga, formada pela Universidade Central da Venezuela, em 2001. Mestre em História do Mundo Hispânico pelo Conselho Superior de Investigações Científicas de Madrid, em 2004. Atualmente, cursa doutorado na IIª Especialização em Museologia, na Universidade Central da Venezuela. Vem desenvolvendo sua atividade profissional nas áreas de investigação histórica, arqueológica e antropológica. Tem participado de diversos projetos em etnohistória e antropologia histórica. Tem apresentado trabalhos e participado de eventos acadêmicos, bem como tem sido autora e co-autora de publicações especializadas. E-mail: [email protected] Carl Langebaek – antropólogo da Universidade de Los Andes, em Bogotá. Cursou doutorado na Universidade de Pittsburgh (USA). Seus interesses incluem o desenvolvimento de sociedades complexas no norte da Sulamérica e a organização social das comunidades que se deparou com os espanhóis. Ultimamente está escrevendo uma história da imagem do índio na Colômbia. E-mail: [email protected] Cláudio Niro – é aluno do curso de Ciências Antropológicas – concentração em Arqueologia – da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. É jornalista. Durante a ditadura foi detido-desaparecido no Centro Clandestino de Tortura conhecido como El Vesubio. E-mail: [email protected] Jorge Martinez Herrera – especialista em Antropologia Física pela Escola Nacional de Antropologia e História, na Cidade do México. As principais linhas gerativas e de aplicação do conhecimento que atualmente desenvolve são Osteologia e Antropologia Forense. José María López Mass – é graduado em Ciências Antropológicas pela Universidade da República do Uruguai; mestrado em Arqueologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris; doutorado pela Universidade de Paris III (Sorbonne). Tem realizado investigações em Pré-história das Terras Baixas e no Período Colonial. Atualmente trabalha com Arqueologia e Direitos Humanos e com Patrimônio Cultural. É professor agregado de Arqueologia na Faculdade de Humanidades. E-mail: [email protected] Luís Fondebrider – é graduado em Ciências Antropológicas pela Universidade de Buenos Aires. É atual presidente e membro fundador da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), uma organização privada que, desde 1984, se dedica a documentação científica de casos de violência política na Argentina e em outras partes do mundo. Em sua qualidade de membro da EAAF, Fondebrider tem participado como perito em mais de 600 investigações na Argentina. Atua como consultor no exterior, tendo realizado investigações na Bolívia, Paraguai, Uruguai, Chile, Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, Guatemala, El Salvador, Haiti, Croácia, Bósnia, Kosovo, Romênia, Chipre, Iraque, Filipinas, Timor Oriental, Indonésia, África do Sul,

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Zimbabwe, Congo, Etiópia, Namíbia e Quênia. É docente da cátedra de Medicina Legal e Tanatologia da Faculdade de Medicina da UBA, E-mail: [email protected] Nanci Vieira de Oliveira – é professora de Antropologia e diretora do Laboratório de Antropologia Biológica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ-Brasil). É graduada em História, mestre em História Social (Arqueologia) pela Universidade São Paulo (USP-Brasil), doutora em História (Arqueologia) pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP-Brasil). É uma das fundadoras da Sociedade de Arqueologia Brasileira, além de autora de artigos e de capítulos de livros no Brasil e em outros países. Dirige investigações arqueológicas em diferentes estados brasileiros, tais como Rio de Janeiro, Santa Catarina, Mato Grosso, Goiás. Dentre elas, o Projeto Arqueológico de Angra do Reis, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected] Patricia Fournier García – doutora em Antropologia. Atua como professora e investigadora na Divisão de Pós-graduação da Escola Nacional de Antropologia e História da Cidade do México. As principais linhas gerativas e de aplicação de conhecimento que atualmente desenvolve são a Antropologia Simbólica, Arqueologia Histórica, Etnoarqueologia e Arqueometria. E-mail: [email protected] Roberto Rodríguez Suárez – doutor em Antropologia pela Escola Nacional de Antropologia e História do México. Trabalha no Laboratório de Arqueometria do Museu Antropológico Montané da Universidade de La Habana. Temas de investigação de seu interesse são os relacionados com a prospecção arqueológica e o estudo de áreas de atividade em sítios arqueológicos; a análise da função dos artefatos; inferência de paleodietas a partir da análise de ossos humanos; o estudo da diagênese óssea; métodos de datação. E-mail: [email protected] Rodrigo José Navarrete Sánchez – graduado na Escola de Antropologia da Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais da Universidade Central da Venezuela. Atualmente é professor do Departamento de Arqueologia, Etnohistória e Ecologia Cultural da Escola de Antropologia (FACES-UCV). Dirige um projeto de investigação, apoiado pelo IPC e pela UCV, denominado de Reconstrução Arqueológica e Etnohistórica do Povoamento Tardio da Depressão de Unare, ‘llanos’ orientais da Venezuela. Realiza estudos de pósgraduação, desde 1997, no Departamento de Antropologia da Universidade de Binghamton (State University of New York-USA). É membro fundador do grupo de investigação antropológica NAVE (Nova Antropologia Venezuela) da Escola de Antropologia da UCV. É presidente do Grupo de Estudos da Diversidade Sexual CONTRANATURA da UCV e membro do Comitê Organizador das II Jornadas Universitárias sobre Diversidade Sexual (UCV, junho, 2004) auspiciadas por Contranatura e pelo Programa de Cooperação Interfaculdades. Tem participado em eventos da especialidade e igualmente publicado e compilado para publicações periódicas especializadas, tanto em nível nacional como internacional. E-mail: [email protected]

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“Arqueologia da repressão e da resistência na América Latina na era das Ditaduras (décadas de 1960-1980)”, Pedro Paulo A. Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni Dos Reis Quando a maioria das pessoas pensa em Arqueologia, provavelmente, uma das primeiras idéias que vêm à cabeça é a relação com Indiana Jones ou com a busca de algum tesouro pertencente a uma remota civilização. Em outras palavras, uma visão de que a Arqueologia lida com coisas exóticas e distantes. Esta idéia tem uma base verídica, já que até algumas poucas décadas atrás, a Arqueologia centrava sua pesquisa, quase de forma exclusiva, no estudo de grupos e sociedades ditas préhistóricas. Devemos considerar também que as origens da disciplina estão associadas às aventuras imperialistas das grandes potências. Afortunadamente, esta situação tem mudado através do tempo, como resultado da influência de movimentos sócio-políticos e de mudanças epistemológicas no âmbito das ciências sociais. Desde o fim da segunda guerra mundial (1939-1945), movimentos pelos direitos civis, pela emancipação da mulher, entre outros, provocaram importantes transformações. Entre estas, destacamos o reconhecimento e o respeito pela heterogeneidade no interior de qualquer sociedade. Foi neste contexto que as ciências humanas e sociais começaram a se preocupar com o destaque e com a preservação da diversidade cultural. Isto gerou uma aproximação entre estas disciplinas e a sociedade. Materializou-se em programas epistemológicos novos e em uma crescente interação com grupos e comunidades locais. Na Arqueologia, por um lado, estas mudanças se expressaram a partir de 1980, com o surgimento e desenvolvimento de uma corrente teórica conhecida como Arqueologia Contextual ou Simbólica (Hodder, 1982;Funari, Zarankin e Stovel, 2005). Por outro lado, também com a criação do Congresso Mundial de Arqueologia, que contou com a participação de indígenas, grupos sociais e investigadores de diversas disciplinas. Desde estas novas perspectivas, a Arqueologia – a partir de agora entendida como o estudo das pessoas através da cultura material – oferece a possibilidade de gerar visões alternativas às da história escrita, independentemente de variáveis como tempo e espaço. Tradicionalmente, a História – ao trabalhar prioritariamente com fontes escritas concebidas desde o poder – apresentou uma visão parcial e sectária do passado. Deixou de fora de seus trabalhos, diversos grupos considerados marginais ou sem importância, tais como as mulheres, as crianças, os velhos ou grupos étnicos e religiosos diferentes e, é claro, as classes exploradas (Funari et al. 1997). Conformam o que o antropólogo Eric Wolf (1982) denominou de “pessoas e grupos sem história”. Ao contrário da História “tradicional”, a Arqueologia conta com o potencial de ser “democrática”. Particularmente, isso se associa ao fato de que trabalha com algo que todas as pessoas produzem: “restos materiais” – que, em muitos casos, costumamos chamas de “lixo”. Desta maneira, não só se torna possível construir relatos alternativos aos da história oficial, senão também dar voz aos grupos invisíveis, as minorias e aos oprimidos. Em outras palavras, surge a oportunidade de construir uma “história dos grupos sem história”. Na América Latina, a Arqueologia se viu afetada pelos contextos sóciopolíticos ocorridos na região, principalmente ditaduras, que dificultaram uma antecipada

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democratização da disciplina. Sem dúvida, desde mais de vinte anos, vem sendo produzida uma transformação libertadora que se reflete no desenvolvimento de novos aportes críticos sobre o estudo do passado recente em nosso continente. A repressão na Latino-américa nas décadas passadas Um caso paradigmático, no qual mais de trinta anos de história têm sido apagados e distorcidos, é a história da repressão na latino-américa entre as décadas de 1960 e 1980. Podemos dizer que existe uma “brecha” nos livros gerados pela história oficial relacionada a este período. As ditaduras latino-americanas surgiram dentro de um contexto político internacional claro, a Guerra Fria e a Revolução Cubana (1959). Estas perduraram até que os câmbios internos e internacionais permitiram estabelecer e consolidar as liberdades democráticas e o retorno dos civis ao poder. Durante o período repressivo, a oposição foi controlada por diversos métodos – tais como o exílio, a detenção e mesmo o assassinato. Estes dispositivos repressivos assentavam-se na limitação ao acesso a informação pelas pessoas comuns. Por sua vez, a documentação escrita sobre a repressão clandestina neste período, gerada desde o aparato repressivo do Estado, foi escassa e fragmentária. Por outra parte, foi comum no final dos governos militares que estes documentos fossem eliminados. Neste contexto, o aporte da Arqueologia, através do estudo dos vestígios materiais, pode trazer importantes resultados para ajudar a esclarecer procedimentos repressivos, a construir uma memória material do período e, inclusive, recuperar a história e os restos dos desaparecidos. Consideramos que os desaparecidos são, de alguma maneira, “pessoas sem história”. Gente que teve uma história, interrompida de maneira cruel e inumana pelo próprio fato do seqüestro-desaparecimento. A partir deste momento, não estão mais vivos e nem mortos, simplesmente não estão. Somos conscientes que as pessoas que participaram destes governos tiveram o poder de fazer desaparecer gente, de desaparecer a justiça e até a História. Sem dúvida, há algo que não importa quanto poder possuíram e que nunca poderão fazer desaparecer, o passado. Desde esta perspectiva, a Arqueologia tem muito que oferecer, assumindo um compromisso social e político claro ao lado das pessoas comuns e contribuindo para reconstruir, de maneira concreta, a história roubada e negada desde o sistema. Este livro reflete o esforço de diversos arqueólogos latinoamericanos que, desde distintas investigações, trabalham por este objetivo. Por outra parte, a decisão de gerar uma publicação que inclua colegas de vários países latino-americanos não é casual. Da mesma maneira que existiu o Plano Cóndor1 é importante gerar um livro que mostre este processo, não como resultado de decisões isoladas dos governos militares que atuaram em cada país, senão como uma prática consensuada entre os mesmos e que unificou a América Latina através do terror. “Arqueologia da repressão e da resistência na América Latina na era das Ditaduras (décadas de 1960-1980)” Este livro está composto por 9 artigos. Roberto Rodríguez Suárez, em ‘Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a história do achado dos restos de Che Guevara’, explica de maneira 1

As ditaduras militares que governaram os países do Cone Sul, nas décadas de 1970 e 1980, instrumentaram e

aplicaram um operativo de inteligência e de repressão extra fronteiriço que denominaram de Plano Cóndor.

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detalhada e minuciosa a história da busca e da localização dos restos de Che Guevara na Bolívia. A partir de seu relato, é possível conhecer os métodos analíticos e tecnológicos utilizados pela equipe de arqueólogos e de antropólogos físicos que participaram da busca dos restos de um dos personagens mais importantes do século XX, cujo paradeiro permaneceu oculto por mais de 30 anos. Rodrigo Navarrete e Ana María López, em ‘Riscando atrás dos muros: grafite e imaginário político-simbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela)’, exploram a aplicação de uma perspectiva arqueológica para a interpretação do imaginário carcerário, através do estudo dos grafites e outras expressões figurativas e textuais expontâneas, nas paredes e recintos do Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela). Estas são entendidas pelos autores como “manifestações parietais”, por estarem representadas sobre as paredes – ocasionalmente em assoalhos ou em tetos – dos diversos recintos da edificação. Patricia Fournier e José Martínez Herrera, em “México 1968”: entre as presepadas olímpicas, a repressão governamental e o genocídio’, analisam um dos massacres mais terríveis da história recente do México, o da ‘Plaza de Las Tres Culturas’, ocorrido em 1968. Naquele local, milhares de estudantes e pessoas comuns, foram massacrados pelo aparato repressivo estatal, enquanto realizavam uma manifestação pacífica contra o governo. Quase 40 anos depois, na intensidade de uma ferida que só pode ser cicatrizada com a verdade e com a justiça, os autores marcam a necessidade de se gerar um projeto interdisciplinar “para a recuperação da memória”. Entre seus objetivos principais estão a proposta de esclarecimento sobre os acontecimentos de violência e a contribuição para a localização dos mortos e dos desaparecidos. Carl Henrik Langebaek em “Arqueologia e Esquerda na Colômbia”, propõe estudar as relações entre marxismo e o estudo do passado pré-hispânico na Colômbia. Para isso, desenvolve uma mirada sociológica sobre a disciplina Arqueológica. Estabelece laços diretos entre o desenvolvimento da Arqueologia, principalmente aquela ligada as correntes marxistas, e a História política e acadêmica na Colômbia durante o século XX. Pedro P. Funari e Nancy Vieira em “A Arqueologia do conflito no Brasil”, discutem as bases epistemológicas de uma Arqueologia do conflito. A partir disso, analisam a situação particular que se estabeleceu no Brasil, desde começos da década de 1990, relacionada com a possibilidade de gerar um projeto arqueológico sobre os desaparecidos da ditadura militar. Luis Fonderbirder em “Arqueologia e Antropologia Forense: um breve balanço”, apresenta uma síntese sobre os ganhos e a experiência de mais de 20 anos, do trabalho da ‘Equipo Argentino de Antropología Forense (EAAF). Suas origens, resultados e desafios são claramente expostos pelo autor. Alejandro Haber em “Tortura, verdade, repressão, arqueologia”, estabelece uma comparação simbólica das representações da conquista européia da América no século XVI, que implicou o extermínio de grupos indígenas, com o genocídio das ditaduras militares no século XX. Sua discussão traça uma reflexão sobre os distintos regimes de verdade que existiram e existem na Arqueologia e como estes condicionam nossa mirada do passado. José López Mazz em “Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no Uruguai (1971-1985)”, reflete sobre as possibilidades de trabalho em relação a uma Arqueologia da repressão no Uruguai. Esta é entendida como uma aproximação arqueológica ao terrorismo de Estado visando gerar informação sobre fatos até agora invisíveis. Paralelamente, estabelece a possibilidade de discutir situações de resistência

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a esta repressão, através do estudo de fugas ou de pequenas condutas que permitiram que pessoas comuns escapassem da violência imposta pela ditadura militar. Andrés Zarankin e Claudio Niro em “A materialização do sadismo: Arqueologia da Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina (1976-1983)”, propõem discutir a partir de dois níveis, um teórico e outro corporal (destacando as experiências reais sofridas por um dos autores), a arquitetura e a organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção (CCD) na Argentina. Para isso efetuam uma série de reflexões sobre a materialidade destes lugares e suas implicações no processo repressivo. Utilizam como caso de análise o CCD conhecido como ‘Club Atlético’, assim como referências a outro CCD chamado de ‘El Vesubio’, onde Claudio Niro esteve detido. Em síntese, o livro que apresentamos ao leitor reflete um esforço por resgatar uma história que consideramos ainda pouco tratada. Ao mesmo tempo, estamos convencidos que discutir este tipo de problemáticas permitirá superar definitivamente os riscos positivistas e reacionários da Arqueologia. Nos interessa deixar claro que, contrariamente ao que se supõe, a mesma não só esta preocupada em ser uma ciência abstrata ou uma fonte de estudo de supostas “grandes civilizações”, senão que também se refere a nós mesmos, a nosso presente e futuro. Esperamos que este volume permita mostrar que o estudo da repressão não é um exercício histórico neutro, um tema a mais a ser explorado “objetivamente” pelo cientista, senão que um compromisso político que assumimos como investigadores. Somos conscientes que a situação de pobreza e de exclusão vivida na atualidade tem muito a ver com este passado próximo. Esperamos que este volume possa ajudar na difícil tarefa política e científica de compreender suas causas e funcionamento, como também seu trágico legado. AGRADECIMENTOS Agradecemos a todos os autores e, em especial, a Lourdes Domingues. Mencionamos também o apoio institucional da FAPESP, CNPq, Conicet e Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE/UNICAMP). A responsabilidade pela concepção do livro é só dos editores.

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Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a história do achado dos restos de Che Guevara Roberto Rodríguez Suárez Introdução O ano de 1997 marcou um fato no âmbito internacional quanto ao significado da figura de Ernesto “Che” Guevara e seus companheiros de guerrilha. A foto amplamente difundida, em que aparece sua gloriosa figura, captada magistralmente pelo fotógrafo cubano Alberto Korda, converteu-se em um símbolo de luta de não poucas gerações que transcendeu o âmbito latino-americano para se tornar internacional. Sem dúvida, a imagem do guerrilheiro cubano-argentino e seus ideais se elevam, transformando-se em algo tangível, com o anúncio ao mundo do achado de seus restos mortais. A Arqueologia, como forma de reconstrução da memória antiga e de um passado recente, se constituiu em um instrumento metodológico útil que permitiu, com participação multidisciplinar, sustentar a busca dos restos dos guerrilheiros que caíram durante a contenda boliviana de 1967. Como era de se esperar, o tempo transcorrido e o silêncio que envolveu a localização dos restos dos guerrilheiros exigiam uma veemente abordagem do processo da busca, no qual se fazia necessário estabelecer uma proposta que se contrapusesse a tais limitações. De tal maneira que, se descreverá aqui o que constituiu tal busca. Ainda que não se limite a esta proposta, representa um modelo adequado, com um nível de generalização apreciável para aqueles casos com características similares. Os métodos, os instrumentos utilizados e os resultados obtidos dão fé de sua validez e da possibilidade de aplicá-los, ainda que em contextos de enterramentos dessemelhantes, pois serão adaptáveis como uma função da “filosofia” com a qual se abordem os casos particulares. Isto é, sob quais condições se aplicam e o que se busca. O contexto ‘vallegrandino’ A província Vallegrande localiza-se na região Sul Ocidental da Bolívia, a 241 quilômetros do Departamento de Santa Cruz de La Sierra. Originalmente estava habitada por uma população de 26.027 habitantes. Tem uma superfície de 6.414 quilômetros quadrados e está situada a uma altura media de 1.970 metros acima do nível do mar. Esta região dos vales ‘cruceños’, antes da ocupação colonizadora por parte dos espanhóis, recebeu a incursão do povo quechua, principalmente oriunda das províncias vizinhas de Carrasco e Campero, do Departamento de Cochabamba. A referida região, que foi ocupada por iniciativa de Tupac Inca Yupanqui e continuada por seu sucessor Huayna Kapac durante o século XVI, enfrentaria as tribos Chiriguanas e Yuracares que saíram dos bosques do noroeste da província e que também se deslocavam por estes vales. Seguindo a fundação das primeiras cidades, no que hoje é a Bolívia, tais como La Plata, La Paz, Cochabamba, Santa Cruz e Salinas del Río Pisuerga o Mizque, a partir de 1538, a comunicação entre ocidente e oriente se intensificou. Porém, nesta parte intermediária desta via de comunicação, as incursões cada vez mais freqüentes e ousadas por partes das hostes chiriguanas-yuracares, constituíam um verdadeiro perigo 10

para os viajantes que se arriscavam pelo caminho inca. Isto determinou que o presidente da Real Audiência de Charcas, Lic. López Cepeda, acedendo a repetidas petições, facilitasse a fundação de centros de população intermediários que, de alguma maneira, garantiriam a segurança dos viajantes. Estes antecedentes deram lugar a que, em 30 de março de 1612, fosse expedido o documento oficial de concessão, mediante o qual o Vice-rei do Peru encomendava ao capitão Pedro Lucio Escalante de Mendoza, a fundação de duas cidades nestes vales. O capitão Pedro Lucio Escalante de Mendoza, sobrinho do Vice-rei do Peru, Dom Juan de Mendoza y Luan, recebeu deste o encargo de fundar uma cidade de brancos que serviria de ligação entre Charcas e Santa Cruz. No cumprimento deste mandato saiu de Lima com 30 famílias de espanhóis, as quais se somaram outras em Potosí até se completar o número de 200 famílias. Quando Escalante de Mendoza chega, em 30 de março de 1612, para fundar a cidade de Jesús de Montes Claros de los Caballeros, já encontrou alguns espanhóis ali assentados. As primeiras casas daquele povoado se encontravam resguardadas por uma muralha de norte a sul. Protegia seus habitantes do constante assédio das tribos chiriguanas que defendiam seus territórios, desde 1583, quando levantaram suas armas contra os espanhóis. Em janeiro de 1584, na recém fundada a vila de San Miguel de la Laguna, relativamente próxima de Vallegrande, haviam aniquilado os primeiros colonos. A cidade de Jesús de Montes Claros de los Caballeros, hoje Villagrande, apresenta as características construtivas típicas de todas as cidades fundadas pelos colonos espanhóis na América. Situa sua Plaza de Armas, onde se constrói o Cabildo, a igreja e se assentam as autoridades correspondentes. Com o transcurso do tempo, inúmeros chiriguanos optam por depor as armas e se integram a esta cidade. Esta fusão cultural se complementa quando, durante a guerra de independência, Vallegrande acolhe os negros fugitivos provenientes de Santa Cruz que se revoltaram contra seus amos e adotaram a bandeira da pátria, içada em 1809. (Diaz Oropeza 1997)2 Com a construção da estrada Cochabamba-Santa Cruz, Vallegrande ficou relegada, perdendo em importância no intercâmbio comercial leste-oeste e como centro agropecuário. Devido à incorporação de novas terras ao longo da estrada aos grandes projetos agro-industriais na zona tropical, algumas delas banhadas por vários rios, durante a Revolução Nacional e auge do petróleo, houve um grande estímulo de forte corrente migratória desde esta província a estas terras e fundamentalmente para a planície ‘cruceña’ (Peña 1997). Hoje em dia apenas está habitada por umas 6000 pessoas devido, entre outras causas, ao esquecimento dos governos que passam e a falta de fontes de trabalho. Como conseqüência, as pessoas migraram para cidades de maior prosperidade econômica, como Santa Cruz, e para outros países vizinhos, como é o caso da Argentina.

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http://www.hoybolivia.com/turismo/30vallegrande.htm, 2005. (3) http;//comarapa.com/Historia.htm. Consultado em

15 de julho de 2005.

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Atualmente, Vallegrande perde sua aprazibilidade na época das festas datadas (procissões, carnavais, festas cívicas, etc.) e se enche de gente que, com suas raízes no povoado vêm, principalmente de Santa Cruz, a estas celebrações. Cobrando nova vida, se reabrem casas que estiveram fechadas durante boa parte do ano, acolhendo as pessoas durante estas celebrações. Como parte de seu atrativo, não se pode menosprezar o interesse que suscita para nativos e forâneos a existência, nesta região e em outras próximas, de espaços relacionados com os fatos da guerrilha de 67. Já visitados durante muitos anos, agora mais intensamente, a partir do achado dos restos do Che e seus companheiros, em 1997. Bolívia nos anos 1960 A partir de 4 de novembro de 1964 começa, para a Bolívia, outro longo tempo de poderio militar. As Forças Armadas, regidas pela Doutrina da Segurança Nacional, ocupam o papel principal. O general de aviação, René Barrientos Ortuño, desenvolve uma campanha para confundir as massas, sendo os camponeses os principais tributários desta, por ser a classe de menor desenvolvimento político. Como parte da campanha, acatou a Lei da Reforma Agrária e, inclusive, propiciou o adiantamento da fase jurídica para a entrega de títulos concedendo, além disso, aos antigos proprietários enormes indenizações furtadas do erário nacional. Distancia os trabalhadores urbanos das decisões políticas, mantendo espaços no gabinete presidencial, sem os defender para eles (Pérez Guillen 2004). Os espaços não defendidos foram aproveitados pela aliança camponesa-militar, tomando corpo a implementação e colaboração das milícias camponesas e dos regimentos do exército na pacificação das numerosas revoltas operárias. A projeção militar da “Aliança Para o Progresso”, com o nome de Ação Cívica, teve como fim inutilizar as forças insurgentes com o apoio dos Estados Unidos que colaborou no treinamento e equipamento de milhares de recrutas, convertendo os militares em administradores de uma parte de seus fundos. Através desta política, adicionalmente se utilizaram os soldados, máquinas e veículos militares visando obras sociais, apoiando a construção de escolas, caminhos, estradas e pontes. A presença militar nos campos se tornou habitual para seus habitantes. Os soldados apareciam como coparticipantes do esforço para o desenvolvimento das zonas rurais historicamente esquecidas. A cumplicidade se estendia a toda a instituição, de maneira que Barrientos se aproveitou das circunstâncias e, em meio à efervescência das eleições, em Cochabamba, em 11 de abril, promulgou o Pacto Anticomunista Militar Camponês. Apesar da popularidade do presidente nas zonas rurais, o certo é que foram tomadas decisões que atentavam contra as conquistas mais recentes dos camponeses. Elementos vinculados a antigos latifundiários ocuparam cargos de autoridade no campo e se, até então, a entrega de títulos de propriedade da terra havia sido lenta, com Barrientos se deteve tudo. No plano internacional, a década dos anos 1960, resultou numa etapa convulsa, tanto nos países mais desenvolvidos como nos do chamado Terceiro Mundo. Nestes últimos se vivia a luta contra a colonização. Em pleno século XX, ditava seus destinos que

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provocavam inconformidade que se traduziram na criação e desenvolvimento de guerrilhas que pouco a pouco iam estendendo seu campo de ação (Pérez Guillen 2004). No caso particular da região andina, que até o momento só havia sido utilizada como zona de passagem ou assentamento temporal de outros focos guerrilheiros, aos finais de 1966 se completa o quadro de relacionamento com movimentos de libertação nacional no âmbito continental. Ernesto Che Guevara, uma das figuras célebres da Revolução Cubana, teórico da Guerra de Guerrilhas, conhecedor profundo da realidade imperante na Latinoamérica, ideólogo antiimperialista, escolheu a Bolívia, por circunstâncias conjunturais, para iniciar a luta que depois se irradiaria por toda a América. A zona de Ñancahuazú, de extensas serras, vegetação pouco densa, com um clima irregular e muito úmido seria o cenário onde os guerrilheiros começariam suas ações. O Che, combatente de vanguarda, julgava o cenário natural agreste das zonas rurais como o ideal para a formação do exército popular. Nestas condições, se preservava o núcleo dirigente da revolução, composto pelos mais radicais e, em torno a ele, as novas forças que se incorporavam com o desenrolar das práticas de combate. As discretas, porém persistentes vitórias contra o inimigo que seguiriam o treinamento e reconhecimento da zona de operações, deveriam propiciar o debilitamento do inimigo e os enfrentamentos de maior envergadura onde as forças guerrilheiras sairiam airosas. Nos primeiros meses, os combatentes estabeleceram seu acampamento e receberam treinamento que, além da preparação militar, incluía o reconhecimento da zona de operações. O processo inicial de formação da guerrilha perseguia a criação, antes de tudo, de uma consciência de luta e de moral combativa. Para isso, sua máxima organização baseava-se na disciplina e na moral do guerrilheiro e na força de seu próprio exemplo (Pérez Guillen 2004). Neste contexto sócio-político da Bolívia tem lugar o desenvolvimento das ações da guerrilha do Che, até que as circunstâncias que rodearam a existência da mesma levaram aos acontecimentos de outubro de 1967. Arqueologia de uma busca Desde o momento em que se produz o aprisionamento do grupo comandado pelo Comandante Ernesto Che Guevara, na Quebrada del Churo, em 8 de outubro de 1967 e, na posterior execução dos guerrilheiros, o destino de seus corpos, tendo em conta o velamento estendido sobre esta manobra, em um ambiente de segredo militar, resultou em uma incógnita até novembro de 1995. Transcorreram 28 anos para que, finalmente, se desvelasse o paradeiro do Comandante da América e a possibilidade real do achado de seus restos. Uma histórica revelação do general boliviano aposentado, Mario Vargas Salinas, desencadeou a busca dos restos de Ernesto Che Guevara e de seus companheiros de guerrilha. Suas declarações foram publicadas pelo New York Times, em 1995, a partir de uma entrevista ao jornalista norte-americano, John Lee Anderson e, nelas, acentuava-se que o Che havia sido enterrado em uma fossa comum, na área da pista velha do aeroporto de Vallegrande, o que se contrapunha com a versão de que seus restos haviam sido incinerados. Mantida esta versão, já correndo notícias anteriores de outro teor, adquire agora outra dimensão, tendo em conta as características do testemunhante, um chefe militar de alta patente.

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Uma vez dada a conhecer a notícia, a Associação de Desaparecidos da Bolívia (ASOFAMD) solicitou ao governo que se empreendesse a busca. Tal reclamo teve a resposta esperada e, mediante o Decreto Supremo do presidente da República, se formou uma comissão encarregada de dar o cumprimento a esta solicitação. Dita comissão solicita o apoio profissional da Equipe Argentina de Antropologia Forense, representada, inicialmente, pelo antropólogo Alejandro Incháurregui e, ao qual se incorporaram depois, seus colegas Patrícia Bernardi e Carlos Somigliana. Estes são apoiados por soldados, os quais empreendem escavações na antiga pista do aeroporto de Vallegrande, que começam em princípios de dezembro de 1995. As escavações se iniciam em uma área da zona sul do aeroporto, atrás de um cemitério, e se estendem até meados de dezembro. Em apoio a estes trabalhos, se incorpora um georradar operado por técnicos argentinos, não se obtendo resultados positivos em relação ao achado do lugar do enterramento do Che. Paralelamente, se localizam os restos de 3 guerrilheiros na zona da Cañada de Arroyo, a uns 5 km do aeroporto de Vallegrande, a partir de informação obtida de uma testemunha. Nesse ínterim, se incorpora a esta investigação o Dr. Jorge González, como representante dos familiares dos guerrilheiros cubanos caídos na contenda boliviana. Os labores de prospecção e escavação efetuados entre dezembro de 1995 e fevereiro de 1996 não aportaram os resultados esperados em relação à localização do enterramento dos restos do Che e de seus companheiros de guerrilha no aeroporto de Vallegrande, nos prazos esperados. Assim, a equipe argentina se retira do cenário por falta de financiamento, enquanto se forma uma equipe cubana de investigadores para continuar a busca. Uma busca arqueológica. Proposta metodológica. A possibilidade do achado dos guerrilheiros em Vallegrange esteve fadada pelo tempo transcorrido desde o momento dos enterramentos e pelas circunstâncias em que estes foram produzidos. Tanto do ponto de vista político-militar quanto pelas transformações do entorno que provocaram mudanças na fisionomia do terreno, tais situações fizeram com que os próprios protagonistas de tais enterramentos e seus possíveis testemunhos apontassem para desorientações. Não se deve também descartar a dimensão tomada pela figura do Che em escala internacional, em tempos onde pronunciar seu nome resultava um perigo no interior das condições sócio-políticas que imperavam na Bolívia. Este cenário, até os momentos em que se desvela, por Vargas Salinas, o possível lugar do enterramento e pela não disposição de informação oficial, entorpeceu em alguma medida a investigação histórica para precisar o possível lugar de enterramento. Sob tais circunstâncias, não havia dúvidas de que a investigação se fazia complexa. Em função disso, tomou-se a decisão de se esboçar uma proposta metodológica na qual se contemplava uma participação multidisciplinar que tornaria factível reduzir a um mínimo os espaços a investigar em detalhe, para o alcance dos objetivos propostos. Assim, uma vez que os investigadores cubanos assumiram a responsabilidade do trabalho, se determina conformar um Comitê de Especialistas com a finalidade de estabelecer uma metodologia. Nesta, se considerava como ponto de partida os possíveis “ruídos” que a passagem do tempo e as condições do terreno dos prováveis locais de

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enterramento podiam originar e que, de alguma maneira, impediram ou entorpeceram os achados. Um fundamental objetivo estava claro: encontra-los todos. Para a criação deste Comitê de Especialistas estiveram envolvidas mais de 15 instituições científicas que, por suas características, poderiam embasar elementos técnicos e pessoal científico. Permitiram conformar uma metodologia de trabalho que delimitaria as áreas de estudo, partindo do princípio de que a abertura de fossas para a inumação de cadáveres provoca alterações no terreno que originam anomalias suscetíveis de serem detectadas. Por outra parte, a margem da informação fornecida pelo general Vargas Salinas, a decisão de encontrar todos os guerrilheiros exigia uma minuciosa investigação histórica que ampliaria a informação acerca dos lugares de enterramento dos diferentes grupos de guerrilheiros que foram inumados no entorno de Vallegrande e em outras áreas fora desta região. Este foi um processo chave no êxito da busca. Como resultado desse esforço, se conformou uma proposta para a busca não só em Vallegrande, mas também em todos os cenários onde se inumaram guerrilheiros e que constou de cinco etapas fundamentais, a saber: • INVESTIGAÇÃO HISTÓRICA • ESTUDOS BÁSICOS • PROSPECÇÃO • ESCAVAÇÃO ARQUEOLÓGICA • IDENTIFICAÇÃO DOS RESTOS HUMANOS Parte importante do esboço metodológico firmava-se na ‘filosofia’ que o sustentava: sabendo que não existem métodos diretos para a detecção de restos humanos, o que se tratava era não de “encontrar uma agulha no palheiro”, pelo contrário, havia que encontrar o “palheiro” no qual descansava a “agulha”. Com este objetivo foi que se realizou o trabalho de campo. Expressava o que era imprescindível: encontrar um lugar no terreno que teria sofrido alterações em sua estratigrafia por efeitos de alguma escavação. A fase inicial da proposta, por tanto, se assentava firmemente na investigação histórica. A investigação histórica Ao mesmo tempo em que eram empreendidos os trabalhos de prospecção na área do aeroporto de Vallegrande examina-se com atenção, para se obter mais precisão, os locais que as versões apontavam como sendo o lugar de enterramento do Comandante Guevara. Tem-se que levar em conta que além da revelação do general Salinas acerca do possível local de enterramento, foram compiladas uma centena de versões em relação ao tal lugar de inumação. Como antes foi dito, o tempo transcorrido e as mudanças na fisiografia da zona do aeroporto não permitiram que, inclusive, o próprio Salinas, de novo no lugar dos fatos, pudesse localizar a área precisa em que estes se produziram. Assim, a investigação histórica esteve dirigida para a busca, análise e confirmação de informações relacionadas com as circunstâncias e com os lugares em que se produziram as inumações dos guerrilheiros. Era evidente que se fazia necessário a localização das pessoas que, de alguma maneira, estiveram relacionadas ou envolvidas direta ou indiretamente com tais acontecimentos. Isto é, oficiais, soldados, familiares destes e possíveis testemunhos que aportassem elementos confiáveis acerca dos lugares de enterramento em Vallegrande e em todo o país.

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Esta fase inicial da metodologia que tinha antecedentes em abril de 1996, quando já tinham iniciado as pesquisas, se fazia difícil em razão do obscuro acúmulo de informação que resultara. Desta maneira, se afinaram os métodos de investigação, nos quais o cruzamento de informação permitia ir-se decantando versões, como resultado da avaliação da confiabilidade das fontes em relação ao nível de vinculação com os fatos. Este processo foi muito útil e os resultados mostraram a sua validez. No caso particular da fossa do Che existiam fortes indícios, resultantes de várias conjeturas: tinha sido escavada com um buldôzer que permite mover grandes volumes de terra; na madrugada, quando se produziu o enterramento estava chovendo; a profundidade podia ser superior aos dois metros para inumar sete cadáveres. Já se sabia, mediante documentação obtida, o número de pessoas e os nomes dos que tinham caído junto com o Che, de maneira que haveria de se confirmar com o achado se, em realidade, todos haviam sido ali enterrados, pois não se tinha certeza total. Por certo, existia a possibilidade de que tivessem sido enterrados em pequenos grupos, o que teria complicado muito mais o trabalho de localização. Como depois se verá, houve plena coincidência entre os achados e o resultado da investigação histórica. Os trabalhos de prospecção começaram em janeiro de 1997, em uma área de vinte hectares do aeroporto, da qual, em função dos resultados da investigação histórica, ficaram circunscritas doze zonas de 25 x 30m cada uma, somando um total de 9000m!. Estas, por sua vez, foram estudadas com intervalos de amostragem de um metro, persistindo com este nível de detalhamento nas zonas 7 – 8 e 9, de acordo com as fontes. Os estudos básicos Nesta fase era necessário adquirir informação acerca das características do terreno. Visavam clarear respostas que poderiam ser esperadas na etapa seguinte de prospecção que indicaria alterações sugestivas da existência de uma anterior escavação. Por isto, propusemos o estudo aprofundado dos solos de Vallegrande. Com tal objetivo, diferentes especialistas foram incorporando-se a investigação. Contou com um edafólogo e um físico de solos, os quais aportaram um volume de informação que permitiu acumular dados sobre a estratigrafia, geologia, geomorfologia e características físicas dos solos, não somente na área do aeroporto, bem como de outras limítrofes a esta, permitindo um quadro geral o mais completo possível. A exaustividade dos estudos levou a uma caracterização geral da área que abarcou uma boa parte da história geológica de Vallegrande, praticamente os últimos 10.000 anos de sua existência. Ainda que pareça exagerado, este nível de detalhamento permitiu literalmente ‘tomografar’ os terrenos do Vale e, por conseqüência, entender o comportamento das leituras das diferentes técnicas utilizadas na fase de prospecção obtidas durante sua aplicação. Paralelamente, se realizou o levantamento topográfico da área do estudo com a finalidade de obter o controle rigoroso dos espaços investigados e das escavações realizadas. O trabalho de prospecção Nesta fase do trabalho foi selecionado um conjunto de provas, dentre as quais se incluiriam: • Foto aérea • Técnicas geofísicas

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• Técnicas geoquímicas Foram tomadas fotos aéreas de baixa altura empregando-se película normal e infravermelho. Tinham por finalidade determinar possíveis contrastes no terreno. Indicaram modificações resultantes de movimentação da terra, tais como: umidade e temperatura diferenciadas e ou mudanças de cor que poderiam ser detectadas mediantes tais procedimentos. Das técnicas geofísicas disponíveis foram aplicadas as de Capametria, Resistividade Elétrica, Sísmica, Georradar e Condutividade Elétrica. Em todos os casos foram utilizados equipamentos de ponta, em concordância com o desenvolvimento tecnológico dos mesmos. Adicionalmente, foram realizadas provas de Penetrabilidade, mediante o emprego de trados mecânicos e manuais. Estas poderiam elucidar a respeito do nível maior ou menor de compactação do terreno, apontando a possibilidade de alteração desta característica, apesar do tempo transcorrido. Como posteriormente se constatou, estas perfurações resultaram úteis. No trabalho geral com estas finalidades, através de perfurações a intervalos de 20m até um máximo de 4m, sempre que possível, foram obtidas amostragens de solo a profundidade controlada, as quais foram submetidas posteriormente a estudos físico-químicos. Um detalhe importante a ressaltar e que resultou vantajoso está relacionado com o comportamento da estratigrafia do terreno. Apresentou-se bastante homogênea e com a presença de “fragipán”, uma camada intermediária, pouco eficaz e com características muito particulares de cor, dureza e permeabilidade, resultando, assim, em um guia diagnóstico da estratigrafia. Além disso, acrescentaram-se os resultados das leituras dos equipamentos geofísicos empregados. A profundidade média em que se encontrava dita camada em toda zona de estudo - entre 0,80 a 1,20m desde a superfície – orientava em relação a qualquer mudança nos parâmetros geofísicos avaliados. Assim, tendo por base os dados obtidos das fontes, era de se esperar, por um lado, que o maquinário empregado para cavar a fossa teria quebrado o ‘fragipán’ e, por outro lado, que os corpos haviam sido enterrados a uma profundidade superior a 2m. Portanto, tal alteração poderia ser detectada pelas diferentes técnicas geofísicas. Nisto tudo, levandose em conta que a maioria das técnicas empregadas produz emissões de algum sinal sobre o solo, das quais se espera uma resposta como uma função de suas atribuições. No caso em estudo, alterações da condição natural do solo pela presença de restos humanos e pelas mudanças que a abertura de uma fossa possam produzir. Nenhum detalhe escapou. Foram estudados modelos de escavação realizados com este tipo de maquinário, nos quais se levou em conta, por exemplo, o trajeto necessário de entrada e de saída de uma vala, a uma profundidade de mais de 2m, com a finalidade de informar as possíveis dimensões da fossa e de outras caraterísticas. Em relação às provas geoquímicas utilizadas nesta investigação, as mesmas têm demonstrado sua utilidade na investigação arqueológica para a determinação de acumulações orgânicas e delimitação de áreas de atividades. Dentre as provas, nesta metodologia, se empregaram duas que estão muito relacionadas com alterações do solo resultantes da ocupação humana: a determinação de fosfatos e medição do pH. Incluímos também a determinação da cor como prova adicional, levando em conta as

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mudanças que poderiam se esperar desta variável, pela remoção das camadas do terreno. Para tal, se empregou a tabela de cores Munsell. A análise de fosfatos é uma das técnicas de estudo de solo comumente usada e suficientemente comprovada em Arqueologia. Ainda que seu emprego tenha sido basicamente dirigido à agricultura e ramos afins, ao aplicar-se a problemas arqueológicos tem permitido alcançar informação muito valiosa relacionada com as atividades realizadas pelo homem. Dado que o fosfato provém do tecido ósseo, das fezes, de restos de carne e de pele, resulta óbvio sua utilidade como método de prospecção na detecção da presença de restos cadavéricos. Uma particularidade muito importante do fósforo, em forma de fosfato, é sua estabilidade química. Isto faz com que permaneça durante muito tempo no local em que foi depositado. Assim, passados muitos anos, é possível detectar a presença de fosfatos no solo. Por conseqüência, permite elucidar a presença de acumulações orgânicas que, certamente, podem corresponder ou não a restos humanos, dado que a técnica não discrimina a fonte de procedência dos mesmos. A ulterior escavação determinaria a origem da ‘contaminação’. Nesta investigação se utilizou uma prova semi-quantitativa suscetível de ser realizada em condições de campo. Outro parâmetro que se avaliou foi o pH do solo, conceito derivado da necessidade de quantificar a acidez e a alcalinidade. No caso particular dos solos, tal parâmetro varia de 4 a 9 em condições naturais. O pH é um bom indicador de áreas de atividades nas quais os restos humanos provocam alterações das características ácido-básicas do solo e permite determinar as condições de preservação dos materiais depositados. As medições realizadas foram obtidas com a utilização de um medidor de pH portátil (Barba, Rodríguez e Córdoba 1991). Relacionado com o pH, a acumulação de animais e de seres humanos produz alterações nas condições acido-básicas do solo como resultado dos processos putrefativos nos casos de enterramentos recentes e ainda quando se encontram em estado esquelético, como uma função da umidade do solo e dos intercâmbios que ocorrem pelos efeitos da diagênese. A mobilidade iônica e, por conseqüência, as variações do pH serão uma função da água circulante. No caso particular deste estudo – com a finalidade de aproveitar todas as potencialidades dos recursos disponíveis – as amostras de solo tomadas durante as perfurações permitiram caracterizar, mediante a análise das mesmas, os padrões de fosfato e do pH na área em estudo. Afortunadamente, os solos de Villagrande são muito pobres em fosfato e se caracterizam por valores de pH ligeiramente ácidos, próximos da neutralidade. Isto certamente resultava em uma vantagem, pois, a acumulação de restos cadavéricos necessariamente produziria valores contrastantes de fosfatos que, mediante a análise das amostras de solo extraídas durante as perfurações como as das planificadas a profundidade controlada, poderiam resultar diagnósticas da presença dos guerrilheiros. A escavação arqueológica Com o avanço dos estudos se pôde ir planejando a tática de trabalho em relação às escavações, uma vez que a análise cruzada da informação obtida com os métodos de prospecção apontara possíveis zonas onde poderia ser positiva a presença de enterramentos. Para isso, dispunha-se do instrumental necessário para proceder ao

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trabalho de exumação e controle das evidências, preparação de planos, de registro fotográfico e de embalagem dos restos. A identificação dos restos humanos Seria a etapa conclusiva. Estava garantida, em primeiro lugar, porque se dispunha de especialistas e de técnicas adequadas para a indubitável identificação de cada um dos guerrilheiros. Além disso, dispunha-se de fichas pessoais com dados dos guerrilheiros, enriquecidas com informações de detalhes particulares de cada um, fornecidos por seus familiares e parentes. Resultados da aplicação da metodologia proposta Em 28 de junho de 1997, as 09h30min, sob uma pertinaz chuva e baixa temperatura, se produziu o achado que, posteriormente, comprovou-se como sendo um enterro coletivo e que se tratava do grupo do Comandante Ernesto Che Guevara. A fossa se localizava aproximadamente a uns 50m de distância do muro posterior do cemitério velho do povoado, sobre a antiga pista do aeroporto de Villagrande. Ainda que as poucas linhas do parágrafo anterior sintetizem o resultado, na realidade, este foi possível graças ao empenho de um qualificado grupo de especialistas. Alguns, diretamente nos trabalhos de campo e outros na ‘retaguarda’, reunindo-se e discutindo, em uma relação biunívoca, toda a informação que se ia obtendo. Este foi, em verdade, um trabalho multidisciplinar que, em vista do tempo, teria sido difícil não alcançar resultados positivos, pelas minúcias de sua abordagem e com boa dose de empenho para se alcançar o objetivo estabelecido desde o início. Praticamente, não ficava de fora nenhum resquício que poderia impedir o achado. Antes de tudo, o gigantesco volume de informação histórica e seu processamento tornaram-se cruciais não só pela imediata localização da fossa, senão para a localização que se efetuou nesta cidade dos enterramentos posteriores. Além desta cidade, em áreas também limítrofes a ela e em outras mais distantes, levando em conta que os caídos iam sendo enterrados à medida que os guerrilheiros marchavam. Para o caso de Vallegrande, os combatentes foram emboscados na Quebrada del Churo e em zonas relativamente próximas. Eram levados para serem inumados na área do Regimento Pando, destacado para esta cidade, que por ser zona militar restringia o acesso e facilitava o encobrimento de atividades deste tipo que se faziam geralmente de madrugada. Esta prática marca seu começo a partir da eliminação do grupo de Vado del Yeso, em agosto de 1967. No caso particular do achado na pista antiga, que correspondia ao grupo em que se encontravam o Che e outros seis companheiros, confirmou-se a informação que já se dispunha anteriormente acerca da localização da fossa no entorno da pista velha do aeroporto. Tal situação foi reforçada com a declaração posterior do general Vargas Salinas, a qual permitiu, inclusive, precisar a forma de abordar a escavação. Os estudos básicos aportaram informação chave sobre as características físicomecânicas dos solos de Villagrande. Permitiram obter dados de vital importância em relação à avaliação posterior das respostas obtidas com os equipamentos geofísicos. Podiam ser explicadas, sobre tudo naqueles casos de algumas escavações preliminares, como sendo de testemunhos e também sugeridas pelos especialistas. Foram realizados em vários pontos da pista, como controle de qualidade e de padrões específicos que se foram apresentando.

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A análise da fotografia aérea não permitiu precisar áreas anômalas que sugeriria algum movimento de terra. Há que se ter presente que o nível de deteriorização do terreno, a formação de boçoroca por ações erosivas intensas em muitas zonas, o tipo e a pobre presença de vegetação, não permitiram a observação de contrastes. Já sobre o terreno, o conjunto de técnicas geofísicas mostrou, na prática, a efetividade de cada uma. Fundamentalmente o georradar e as diferentes variações dos métodos elétricos resultaram determinantes na precisão de anomalias sugestivas. No primeiro caso, usaram-se as antenas correspondentes para se conseguir a maior penetrabilidade do sinal. No segundo, se utilizaram os diferentes ajustes que permitiram ganhar informação, tanto vertical como horizontalmente. Os métodos Wenner e bipolar foram muito úteis. De um total de doze setores resultantes da avaliação na área do aeroporto de Vallegrande, como antes apontado, os numerados como 7 – 8 e 9 apresentaram as maiores possibilidades, de acordo com a análise dos resultados do cruzamento da informação oriunda das técnicas geofísicas. A escolha de um intervalo de amostragem de 1m, com separação de transects também de 1m, reduzia ao mínimo a possibilidade de exclusão. Isto é, não se descartou a existência de enterramentos individuais, pela qual se previu o emprego deste procedimento e da redução dos intervalos de amostragem quando se fez necessário. O conhecimento da possível profundidade onde poderia estar os restos esqueléticos e as características de dureza do terreno permitiu ganhar tempo na comprovação das anomalias detectadas no transcorrer do estudo. Determinadas condições sócio-políticas que se apresentavam na Bolívia, nestes momentos, tais como a mudança de governo que se avizinhava e a possibilidade de que o governo entrante interromperia os labores da busca, recomendavam acelerar as escavações. A este respeito, convém destacar, em detalhes, a justificação do proceder posterior. Em maio de 1997, Aleyda Guevara, filha do Comandante Guerrilheiro, recebe uma missiva de Gustavo Villoldo, chefe dos ‘Team CIA’ da época, na qual se oferecia para colaborar, por considerar-se um dos protagonistas e, segundo ele, porque os cubanos haviam demonstrado que careciam de um conhecimento exato do lugar onde poriam em prática suas investigações e sua falta de eficiência. Esta proposta não recebeu resposta, pois, conhecendo o personagem, o que se podia esperar era confusão e a intenção de deter a busca ou retardar os trabalhos até que tomasse posse Banzer, dado que a situação eleitoral pressagiava o triunfo do ex-ditador. Isto podia ocasionar que o Decreto Presidencial vigente que autorizava os trabalhos perdesse sua validez. Villoldo, então, escreve para as autoridades de La Paz. Diante destas circunstâncias, depois das gestões correspondentes, em 19 de maio se fez valer o Decreto Presidencial de novembro de 1995 que anulou um decreto emitido pelas autoridades municipais de Vallegrande, que havia interrompido as investigações por um espaço de quase dois meses. O consenso entre Cuba e Bolívia, com respeito às investigações, concedia uma margem de tempo para intensificar a busca voltando os esforços para as áreas onde os resultados da análise aportavam as maiores possibilidade de achado. De outra parte, o governo boliviano adverte que, se em um tempo limite não se produzisse o achado, recorreria a Gustavo Villoldo (Pérez Guillen 2004).

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Sob esta pressão e com este ultimato nos vimos obrigados a ganhar tempo e, por isso, se empregou uma retroescavadeira que, ainda que metodologicamente não fosse o adequado, na forma em que se utilizou minimizou ao máximo possíveis danos nos restos ósseos que poderiam aparecer. O proceder neste caso consistiu na vigilância estrita da velocidade e da profundidade que fincava a pá extratora. Esta foi empregada em modo de raspador, permitindo que só se insertaria seus dentes até 10cm de profundidade e a retração da mesma se fazia muito lentamente. Nos momentos iniciais, isto é, nos primeiros 150cm, a máquina foi utilizada em condições normais. A partir daí, procedia-se como acima explicado e sob a vigilância de, ao menos, um dos especialistas. Assim, uma vez que se avistaram os primeiros restos, eliminou-se o uso de tal máquina e se procedeu com os métodos usuais da Arqueologia. Uma característica que tornava difícil a escavação era a dureza do terreno. Salientando que, de acordo com as informações obtidas durante a investigação histórica, na madrugada em que se produziu o enterramento, chovia, o que implicou que os restos esqueléticos praticamente se encontravam cimentados. Por isso, empregaram-se martelos e formões, ao menos para delimitar os restos que progressivamente foram sendo encontrados. Uma vez ampliada a fossa para poder facilitar os labores - a preservação dos restos e a comprovada a existência de sete indivíduos -, esta foi quadriculada mediante uma grade de 3m x 4m, conformando-se 12 quadrículas de 1m x 1m para o controle e o registro das evidências. Posteriormente, continuou-se empregando o instrumental próprio da Arqueologia (brochas, pincéis, instrumental estomatológico, etc.) e se estabeleceu um nível zero convencional a partir do qual se expressaram as profundidades. Com o avanço das escavações, se pôde descobrir o piso original da fossa, que se encontrava a 1,93m de profundidade. Uma vez expostos e individualizados os restos esqueléticos se teve uma visão tafonômica de como ocorreu o enterramento. De acordo com a posição dos corpos encontrava-se correspondência com a versão de que haviam sido arrojados desde uma camionete, mediante um giro dos mesmos, colocando-se a camionete em uma posição de retrocesso que correspondia aproximadamente com a borda norte da escavação. Os restos esqueléticos de quatro indivíduos, numerados desde quatro até sete, encontravam-se uns sobre os outros, ficando individualizados os correspondentes aos três primeiros, o que facilitou os labores da escavação nestes últimos casos. Tendo em vista que havia coincidência entre a informação obtida acerca da composição do grupo que foi enterrado na madrugada de 10 de outubro de 1967 e os restos encontrados na fossa existiam altas possibilidades de que efetivamente nela se encontrava o Che. Isto é, tratava-se de um ‘grupo fechado’ o que facilitou o processo posterior de identificação. As escavações foram realizadas por uma equipe de cubanos e por três colegas argentinos que participaram nas atividades iniciais de busca, com larga experiência neste tipo de trabalhos. Em relação aos estudos geoquímicos, estes mostraram sua validez em relação à localização de acumulações orgânicas. Durante os trabalhos gerais de prospecção,

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quando se fizeram as perfurações com trado mecânico, foram tomadas amostras de solo para serem analisadas e, pelos resultados das análises, algumas escavações realizadas se justificaram pela presença de altas concentrações de fosfatos a determinada profundidade. Ainda que nestes casos não correspondessem aos restos dos guerrilheiros, todas as análises que se efetuaram puderam explicar a fonte da ‘contaminação’. No total se realizaram mais de 1.200 perfurações na área do aeroporto e umas 1.300 determinações de fosfatos. Uma dificuldade que se apresentou e que, em alguma medida, impediu de se detectar a fossa, utilizando a geoquímica, foi a impossibilidade se conseguir penetrar mais profundamente, tanto com o trado mecânico quanto o manual. Este procedimento foi empregado como método de avanço – pois se perfurou também a intervalos de um metro – na extremidade paralela ao talude da pista velha – zona provável do enterramento. Os trados utilizados se desgastavam e se aguçavam como um lápis devido ao poder erosivo do solo, o que impedia que penetrassem, apesar da colocação de peso sobre o motor que impulsionava a rotação (dois ou três homens). Muito menos nesta área se pôde tentar penetrar com o trado manual. Comprovou-se que nas zonas onde a Equipe Argentina de Antropologia Forense havia realizado escavações anteriores, não se apresentou dificuldade com a penetrabilidade dos trados e foi possível precisar a localização das mesmas, discriminando estas áreas na pista. Um estudo posterior à exumação dos restos permitiu comprovar que não tendo havido este impedimento, mediante estudos geoquímicos teria sido factível o achado tempos antes, pois várias perfurações coincidiram com o lugar do enterramento, porém, estas só alcançaram 0,90m de profundidade. Não obstante, uma vez realizada a exumação dos restos do grupo do Che, levou-se a cabo uma amostragem do solo da fossa, a intervalos de 0,25cm, em uma área de 12m! que correspondia à mesma. Foram obtidas 208 amostras. Foram submetidas a analise de fosfatos, de pH e de cor de solo. Permitiu corroborar que, potencialmente, era possível localizar os restos empregando estas provas. Os resultados obtidos foram plotados em mapas de isolinhas que, consideramos, resultarão em valor para futuros estudos, pois, expressam o padrão de contaminação que produz uma fossa coletiva e a dinâmica da mesma. (Fig. 1, 2, 3, 4, 5 e 6).

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Fig. 1 – Emprego do georradar que, junto aos métodos elétricos, resultou em técnicas úteis na determinação de anomalias que precisaram os lugares de enterramento. Fig. 2 – Anomalia detectada mediante georradar que indicou a possível presença de um enterramento, o qual foi confirmado com a escavação posterior. 23

Fig. 3 – Esqueleto correspondente a um dos guerrilheiros. Esta foi a evidência detectada pelo georradar que ilustra a figura anterior. Fig. 4 – Mapa de anomalias de concentração de fosfatos. As elevações correspondem a altas concentrações. Pode-se apreciar como estas se solapam em relação ao lugar onde jaz o corpo.

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Fig. 5 – Ilustram-se na área deprimida da figura os baixos valores de pH correspondentes à localização do corpo. Deve levar-se em conta o regime hídrico do solo que, em determinadas ocasiões, não expressa um padrão tão definido. Fig. 6 – Mapa da cor do solo e que também corresponde a um enterramento individual. Para poder realizá-lo, levou-se a cabo uma conversão da expressão alfanumérica de acordo com os registros da Carta de Cor Munsell, expressando as cores através de números. 25

Destas determinações pode-se constatar que: 1. Os altos níveis de fosfatos se circunscreveram a área que foi ocupada pelos corpos, entretanto, fora da beira da ‘contaminação’ intensa. As mudanças nas leituras permitem circunscrever com maior precisão a área de ocupação, o que resulta em vantagem, devido a que facilita a localização dos enterramentos. Isto corrobora a prática arqueológica em relação à imobilidade dos fosfatos. 2. Com relação ao pH, apreciou-se um gradiente nos valores como uma função do deslocamento dos líquidos orgânicos e os intercâmbios que têm lugar com o contexto, na dependência do regime hídrico circulante. No caso que nos ocupa, se destaca que no espaço onde descansavam os corpos produz-se os valores mínimos de pH. Entretanto, um gradiente que aumenta em direção a periferia expressa a mobilidade dos íons responsáveis pelas variações neste parâmetro. 3. No que diz respeito à cor, existe bastante uniformidade no piso da fossa. Somente algumas variações de tom se apresentam, provavelmente, pela mistura originada no atuar da máquina durante o processo de ruptura do terreno para a inumação dos cadáveres; pela presença dos próprios corpos com os aportes correspondentes ao processo de deteriorização dos mesmos; pelos materiais associados a eles e, posteriormente, ao produzir-se o material para cobri-los. Não foram apreciadas cores contrastantes que definam um padrão característico digno de ser levado em conta como elemento diagnóstico. Nos lugares onde os horizontes estratigráficos resultam mais complexos, a cor do solo tem mostrado seu valor como coadjuvante neste complexo de provas que se aplicou segundo experiências do autor. Detivemos-nos no aprofundamento destes detalhes devido ao fato de que o ‘padrão de contaminação’ originado pela acumulação de restos humanos é um fenômeno de importância relevante para sua localização e, portanto, pode servir de referência, tanto para a busca de enterramentos individuais quanto para coletivos. Aqui também incluímos gráficos de enterramentos procedentes de outras áreas, próximas da pista. Um deles expressa o comportamento dos fosfatos e do pH em outro enterramento coletivo, porém, de três indivíduos e, em outro, o padrão de um enterramento individual. No primeiro, é possível observar uma distorção no padrão que caracteriza o pH, por efeitos de água de infiltração procedente de uma das escavações realizadas na primeira etapa da busca, contígua e muito próxima a que comentamos, que ficou aberta e que se inundou. Este excesso de umidade provocou uma mobilização iônica adicional que modificou a ‘mancha’ do pH que identificaria as alterações produzidas por cadáveres. Dentro da fossa que analisamos poderá ser observado que, ao menos, em um dos indivíduos tal comportamento é esperado, ao menos neste contexto. Por sua parte, na fossa individual, a evidência geoquímica é representativa do padrão característico de um indivíduo depositado em decúbito dorsal direito que mostra o potencial para ser detectado em um contexto. Leve-se em conta que, sob estas condições – enterrado diretamente sobre o terreno – dispõe-se ao menos em direção a região proximal do corpo, de uns 45cm de solo contaminado, suscetível de aportar resultados positivos nos trabalhos de projeção geoquímica quando são tomadas amostras desde a superfície até uma profundidade controlada. Como foi comprovado na fossa coletiva, naquela em que descansavam três corpos, uma vez produzida a exumação, foi realizada uma sondagem com trado manual no lugar

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correspondente ao espaço onde descansava a zona torácica de um dos indivíduos, tomando-se amostras a intervalos de 10cm. Submetidas as mesmas a análise de fosfatos, pôde-se precisar que, quando as condições de drenagem são adequadas, dispõe-se de uma profundidade adicional de 40cm para encontrar altos valores de fosfatos representativos da presença de uma acumulação orgânica relacionada a efeitos prospectivos. Deve aclarar-se que as determinações geoquímicas que realizamos nesta proposta metodológica resultaram válidas em enterramentos contemporâneos, com uma antigüidade de 30 anos em solos com características específicas. Isto é, são válidas em si mesmas para estes fins. Porém, ao menos para o caso do pH e o da cor, deve levar-se em conta: as dinâmicas particulares dos contextos de enterramento, os processos de intercâmbio como uma função do tempo transcorrido, as circunstâncias dos enterramentos, possíveis materiais associados e regime hídrico, entre outros. Sem dúvida, os fosfatos apresentam um comportamento mais universal e, ainda naqueles solos onde estes são abundantes, a presença de restos humanos pode ser diagnosticada, passados milhares de anos. Em relação à exumação, uma vez que foram individualizados na fossa, foram tomadas fotos e vídeos do plano geral do enterramento. Posteriormente, procedeu-se a retirada de cada um, embalando os restos por região anatômica. Levados ao laboratório procederam-se a lavagem e restauração do material ósseo, quando secos, trabalhando sempre com um só indivíduo por vez. Nesta etapa final de exumação e posterior trabalho de identificação, participaram três especialistas cubanos e três argentinos. O processo de identificação seguiu, em uma primeira etapa, com a caracterização racial (tecnicamente falando) do grupo a identificar, partindo do conhecimento, da composição e por tratar-se de um ‘grupo fechado’. Isto é, do que se conhecia e quem eram, a partir da informação obtida na investigação histórica. O mesmo constava de sete indivíduos: quatro cubanos, dois bolivianos e um peruano. Isto facilitava a identificação, dado que aplicando o método de descarte ou de exclusão, podia-se separar um grupo de quatro, em que ficariam localizados os cubanos, e outro de três com os demais. Neste último caso, foi possível elucidar o padrão ameríndio que não seria possível no grupo cubano, a partir de características visualizadas no crânio, entre outras, a do ‘dente em pá’. Posteriormente, o estudo antropológico no qual se determina a tetralogia identificativa – idade, sexo, raça e estatura – aportou dados de importância neste processo. Somaram-se aqueles obtidos mediante o estudo de dentigramas, radiografias dentais e demais informações contidas nas fichas individuais que se dispunha. Também foram aplicadas técnicas especiais, tais como as de superposição craneofotográfica e DNA que possibilitaram a indubitável identificação de cada um dos componentes deste grupo. Da mesma maneira como foi aqui descrito, procedeu-se nas diferentes zonas onde a investigação histórica apontava a presença de enterramentos de guerrilheiros. Conclusões Antes de tudo, resulta importante destacar que para além do resultado obtido, que demonstrou a eficiência do modelo metodológico proposto para o cumprimento dos objetivos – o achado dos componentes da guerrilha –, o êxito da investigação descansou no labor multidisciplinar. Este pode ser considerado como um exemplo de trabalho em

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equipe. Neste, em nenhum momento, se destacou o protagonismo pessoal e, no qual, cada um assumiu o papel que foi necessário no curso da investigação. Precisamente um logro importante resultou da maneira em que cada um foi ativo colaborador dos demais quando sua especialidade era requerida. Constituiu uma via de aprendizagem. Em nossa opinião, as cinco etapas em que esta proposta foi concebida mostram um nível de generalização que as tornam suscetíveis de serem aplicadas em outros contextos e, certamente, de ser melhorada, partindo das experiências acumuladas no transcurso de sua aplicação. Uma vez mais fica demonstrada a eficiência da Arqueologia como ciência, na qual, a interdisciplinaridade joga um papel fundamental no estudo de atividades humanas, tais como, as relacionadas com a inumação de cadáveres, tanto em jazigos coletivos quanto individuais. Este proceder foi empregado na busca de todos os guerrilheiros, não só em Vallegrande, senão também em outras localidades da Bolívia. AGRADECIMENTOS O autor deseja sublinhar seu agradecimento a Dra. Maria del Carmen Ariet, pela revisão do manuscrito e apropriadas sugestões e a Lic. Daily Pérez Guillén, por seu apoio bibliográfico, ambas do Centro de Estudos Che Guevara. Ao engenheiro geofísico Noel Pérez por ceder-nos a imagem de georradar que ilustra este trabalho. BIBLIOGRAFIA Díaz de Oropeza, C. (1997): Enfoques. Revista mensual (julio) pp. 1-16. Bolivia Aguilar Peña, P. (1997): Vallegrande: Algo de historia. Inédito. Pp.1-8. Pérez Guillén, D. (2004): El vano intento de esconder la luz. Tesis de Licenciatura, Universidad de La Habana. Barba, L.; R. Rodríguez y J.L. Córdoba (1991): Manual de técnicas microquímicas de campo para la arqueología. Cuadernos de Investigación. IIA, UNAM, México.

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Riscando atrás dos muros: grafite e imaginário políticosimbólico no Quartel San Carlos (Caracas/Venezuela) Rodrigo Navarrete e Ana Maria López O tema dos grafites e sua conexão com a Arqueologia. As manifestações rupestres são tão antigas quanto à história humana e, no caso dos petróglifos e pinturas rupestres americanas, testemunhos inigualáveis de nossa história indígena. De fato, a intervenção informal e espontânea sobre edificações e muros – o equivalente ao moderno grafite – se conhece desde o Antigo Egito e a Grécia. Porém, o grafite como fenômeno urbano é definitivamente moderno. Ao mesmo tempo, é um fenômeno típico do capitalismo tardio, ou para outros, pós-moderno, a partir da década dos anos 1970, nos grandes centros urbanos do mundo (Silva Téllez, 1987). Estas inscrições que aparecem nas grandes cidades de diferentes países, começaram a constituírem-se em vozes de tendências ideológicas, de comportamentos sociais, artísticos, políticos e filosóficos, não permitidos pelos canais oficiais. Em Nova York, por exemplo, aparecem na década de 1960. Enquanto que, na América Latina, o grafite e o mural político brotam nas paredes de nossas cidades. Utilizando o metrô de Nova York como lousa ambulante ou as paredes de Santiago do Chile, grupos de jovens subvertem a ordem, inscrevem seus nomes, projetam seu mundo político utilizando todo o tipo de artimanhas. Enfrentam a mais rígida perseguição empreendida pelos aparelhos político-repressivos ou pelas autoridades de transportes públicos (Silva Téllez, s/f). O grafite, neste sentido, se incorpora na paisagem pública como artefato e como mensagem transgressora dos espaços públicos e sua ordem. Em essência, representam artefatos e mensagens políticas profundamente identificadas, na América Latina, como mecanismos de difusão e de protesto contra aos aparelhos repressivos do Estado. Ocorrem tanto em regimes ditatoriais quanto em sistemas democráticos, como o venezuelano, o qual reprimiu sistematicamente a dissidência política, desde seus inícios, na época dos anos 1970 (James Quero, 2003; Navarrete, 2004). O grafite, como meio de comunicação visual, espontâneo, efêmero, impessoal, clandestino e alternativo tem se convertido em uma das expressões estéticas, políticas, em um dos artefatos culturais mais potentes e polivocais de nossas culturas urbanas ocidentais. Sua ação comunicativa e transgressora permite recuperar espaços de expressão e de resistência passiva ou ativa, frente a permanente repressão ideológica do sistema. Assim mesmo, constitui um espaço de comunicação alternativa, onde se expressa a memória urbana. Ventila publicamente, desta maneira, as paixões, conflitos e rivalidades conformadoras de nossas contínuas mudanças políticas e sociais. Nos últimos tempos, vem se caracterizando como um meio de comunicação aberto, de valor estético e identitário para certos grupos sociais, basicamente de jovens (García Canclini, 2001; Navarrete, 2005). Um dos espaços prediletos de afloramento dessa força interna dos agentes sociais são os espaços carcerários. Em seu duplo caráter de públicos e privados, converteram-se em espaços idôneos de comunicação indireta ou transferida por entre os indivíduos. De fato, os espaços internos das celas convertem-se em uma superfície branca, vazia, imagem de ‘página aberta’, que convidam o recluso – frequentemente sem outra alternativa comunicacional direta – a expressar privada, porém publicamente, suas mensagens, ansiedades e necessidades políticas, sociais, raciais, sexuais e de gênero. 29

Uma breve história da importância histórico-política do Quartel San Carlos O Quartel San Carlos localiza-se na denominada Planície de la Trinidad – zona noroeste da cidade de Caracas. Desde sua construção, durante todo o século XIX e primeira metade do século XX, funcionou como Casa de Milícias, com a finalidade de cumprir com as operações básicas de Quartel militar, ponto de defesa e resguardo, reduto estratégico-militar e depósito de armas durante grande parte do século XX. Denominouse de San Carlos, em honra a Carlos III, porém, logo foi chamado de Quartel de Veteranos (IPC, 2000). A esta estrutura associou-se a de estratégia de controle e de defesa militar que o Brigadeiro das Forças Reais, Agustín Cramer, criou com o duplo propósito de fortalecer o domínio do comércio europeu na capital venezuelana e, por sua vez, de começar a afrontar a conjuntura de crise política e de insurreição anticolonialista que assomava nos finais do século XVIII nesta colônia. Parte deste mesmo plano formava os fortins de San Rafael e San Andrés, na Cidade Bolívar, o fortim de Puerto Cabello, os fortins e o Caminho Real Caracas-La Guaira e os fortins da Barra de Maracaibo (Amodio et al. 1997). É uma estrutura, quadrangular originalmente, construída em taipa, com um pátio interno, rodeado de corredores e de galerias, com quartos separados ao menos em três alas – oeste, leste e sul – e com uma fonte no setor final norte do pátio central. Suas obras, projetadas por Fermín de la Rueda, chefe do Batalhão de Engenheiros da Província de Venezuela, se iniciaram em 1795 e culminaram em 1812(González 1998)

Foto 01: El Cuartel San Carlos representa un hito en la historia colonial y republicana de la ciudad de Caracas y un espacio de acción y coacción, y testigo inmueble de las convulsiones de la historia venezolana (Fuente: IPC 2000, pp.27-28)

É a partir do chamado período democrático venezuelano (1958-1999), depois da ditadura de Marcos Pérez Jiménez (1948-1958), que o Quartel San Carlos converteu-se em um local de retenção de presos militares, políticos e, em menor escala, comuns até o final do século XX. Depois da queda da ditadura de Pérez Jiménez, em 1958, formou-se uma coalizão de governo integrada pelos partidos de direita, Ação Democrática (AD), 30

União Republicana Democrática (URD) e Comitê de Organização Política Independente (COPEI), excluindo em suas reuniões iniciais o Partido Comunista Venezuelano (PCV), o qual jogou um ativo papel na derrocada da ditadura. Esta exclusão das forças de esquerda, do novo poder democrático, gerou uma nova fase de tensões e de sublevações que desembocaram na conformação de forças de guerrilha, armadas contra os governos de direita, os quais atacaram agressivamente estes grupos subversivos. Este período de enfrentamento se iniciou com Betancourt, intensificou-se profundamente durante o governo de Leoni e, finalmente, foi abruptamente cortado durante o governo de Caldera, com a detenção dos principais líderes, com a dissolução de suas unidades táticas rurais e urbanas. Seguiu-se com a militarização da Universidade Central da Venezuela, em 1970. Esta se destacava, em grande medida, como centro de operações clandestinas, na região da capital, de alguns daqueles grupos – e com a assinatura de um pacto de pacificação, ao qual foram acolhidos o Partido Comunista da Venezuela (PCV) e o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), mas, não outros, como o Movimento ao Socialismo (MAS) (Cadena Capriles, 2000).

Foto 02: Vista al patio interno desde una celda (Fotografía: Ezequiel Korin)

Foi assim que o Quartel San Carlos converteu-se em centro de reclusão de presos políticos e, em seus recintos, estiveram retidos e foram torturados numerosos membros das forças armadas guerrilheiras urbanas e rurais que enfrentaram os governos de Rómulo Betancourt (1959-1964), Raúl Leoni (1964-1969) e Rafael Caldera (19691974). Dentre tais forças guerrilheiras, destacaram-se as FALN (Forças Armadas de Libertação Nacional) e as UTC (Unidades Táticas de Combate). Em 1961, criou-se o Destacamento Misto de Polícia Militar n° 1, assentando-se o Departamento de Processados Militares de Caracas no Quartel San Carlos, por decisão do presidente Rómulo Betancourt. É durante este período, paradoxalmente denominado da democracia, que o Quartel recebe estruturalmente a maior quantidade de intervenções arquitetônicas associadas ao seu novo papel de presídio. Desenvolveram-se improvisadas inserções, agregações, reformas e remodelações que não somente mudaram estruturalmente o edifício. De fato, em termos de sua relação com o entorno urbano e, certamente, de sua percepção como espaço e representação material, evolui para um âmbito mais segmentado, com recintos cada vez mais restringidos e áreas de uso exclusivo para a reclusão. No ano de 1961, depois da criação do Departamento de Processados Militares de Caracas, foram transferidos ao Quartel San Carlos um grupo 31

de oficiais das Forças Armadas Nacionais. Estes se encontravam presos em diferentes cárceres do país, por estarem comprometidos nas tentativas do golpe de estado de 22 de julho e 7 de setembro de 1958, em Caracas. Assim como, no golpe denominado de Barcelonazo, por ter sido produzido na cidade de Barcelona, em 26 de junho de 1961. Outros eventos de insurreição cívico-militar regionais que alimentaram o ingresso de presos políticos – já não necessariamente militares senão que também civis – foram o Carupanazo e o Porteñazo, os quais combinaram forças militares e grupos de esquerda com a intenção de derrubar o presidente Rómulo Betancourt, no interior do país. Durante este governo, produz-se, em 5 de fevereiro de 1967, uma fuga massiva do Quartel, de um grande número de líderes destes movimentos. Devido à continuidade dos movimentos subversivos durante a década dos anos 1970, este Quartel continuou sendo prisão política de uma imensa quantidade de líderes revolucionários que ainda desenvolviam estratégias subversivas durante os governos, tais como o de Caldera ou de Carlos Andrés Pérez (1974-1979). Um evento importante na história democrática venezuelana e que ainda joga um papel central na memória política da nação e da cidade de Caracas. Corresponde a fuga dos líderes políticos Pompeyo Márquez, Teodoro Petkoff e Guillermo García Ponce, líderes comunistas retidos, por rebelião militar, em 5 de fevereiro de 1967, e, posteriormente, a fuga de 23 outros processados de esquerda em 15 de janeiro de 1975 (IPC, 2000; García Ponce, 1968). Também estiveram presos neste cárcere, pela explosão de um avião cubano, em 1976, outros dirigentes subversivos, dois dos quais escaparam também em 8 de agosto de 1982. Sem dúvida, um dos fatos mais importantes para nosso caso de estudo é a reclusão, nestes espaços, dos processados militares pela rebelião de 1992. Entre estes dirigentes reclusos nos espaços do quartel, entre outros, se conta o atual presidente da República Bolivariana da Venezuela, Hugo Chávez. Entre 3 e 4 de fevereiro de 1992, uma tentativa de golpe militar – denominada de Operação Zamora – mobilizou-se contra o governo do então presidente da República, Carlos Andrés Pérez. O movimento bolivariano (MBR 200), agrupação fundada clandestinamente, em 1983, no seio das Forças Armadas, pelos então capitães do exército, Hugo Chávez Frías, Luis Felipe Acosta Carlés e Jesus Urdanete Hernández, os quais atuavam como instrutores da Academia Militar, se responsabilizou pela ação. Devido ao fato de que, entre seus membros, figuravam oficiais de graduação média, tais como comandantes, majores, capitães, tenentes e tenentes-coronéis, o dito movimento ficou conhecido como COMACATES (Rodrigúez, 2000). Os oficiais golpistas apresentavam uma grande insatisfação com relação à gestão política e econômica do presidente Pérez, com a crescente corrupção e desigualdade social que a etapa democrática havia gerado no país. Representavam o descontentamento dos setores médios e baixos das Forças Armadas em função dos fatos de corrupção verificados nos altos mandatários militares, da utilização das Forças Armadas, em particular o Exército e a Guarda Nacional, na repressão ao levante popular e aos distúrbios do dia 27 de fevereiro de 1989 – denominados de Caracazo – e de outras razões políticas. A rendição dos insurgentes começou, uma vez que as tropas leais ao presidente retomaram o Palácio Miraflores, cerca do meio dia do dia 4, quando se entregou o líder da operação, o comandante Hugo Chávez Frías. O levante, que se 32

havia manifestado em outras cidades importantes como Maracaibo, Maracay e Valencia, em vista do fracasso das operações em Caracas, também depôs as armas. O comandante Chávez e os oficiais de maior patente envolvidos na insurreição foram recluídos no Quartel San Carlos de Caracas e, em seguida, no Cárcere de Yare, nos Valles del Tuy. Com o tempo, as causas de muitos dos militares foram sobrestadas, outros deram baixa e outros indultados pelo presidente Caldera, em 1994, sob a condição de solicitar dispensa das Forças Armadas, tal como sucedeu com os oficiais que dirigiram a operação (Rodríguez, 2000). Durante os últimos anos, o Quartel San Carlos tem sido foco de múltiplos projetos culturais, nenhum dos quais tem sido levado a termo feliz. Intentam restaurar a edificação como espaço para a cultura, as artes, a educação e, por conseqüência, simbolizar a liberdade e a democratização cultural. Declarado Monumento Histórico Nacional, em 6 de outubro de 1986, o Quartel San Carlos tem sido proposto como local do Museu Nacional de História (1986), do Centro Nacional de Culturas (1999) e da Universidade das Artes (2003) (IPC, 2000). Na atualidade, além dos projetos de escavações arqueológicas desenvolvidas em 1998 e 2004 (Sanoja, 1998a; 1998b; 1998c; Sanoja e Vargas, 1998), a edificação, sob a custódia do Instituto do Patrimônio Cultural (IPC), acolhe o Foro Latino-americano das Artes e, devido às circunstâncias de catástrofes naturais ocorridas no país, em 2004, é, neste momento, albergue de um numeroso grupo de desabrigados que requerem uma relocação habitacional em função de tais catástrofes trágicas. Todas estas intervenções, usos e reutilizações recentes da edificação, lamentavelmente, têm atentado, não só contra a integridade estrutural ou arquitetônica da edificação como têm afetado dramaticamente a integridade e presença das manifestações parietais que dizem respeito a este trabalho (grafite, murais, escrituras, etc.). A edificação do Quartel San Carlos representa um evento na história colonial e republicana da cidade de Caracas e da nação venezuelana. Desde sua própria construção, aos finais do século XVIII, até os mais recentes processos sócio-políticos da história nacional, esta edificação tem sido recinto, espaço de ação e coação, testemunho imóvel das convulsões da história caraquenha. Por sua vez, também formou parte integral da vida cotidiana e da memória coletiva no processo de conformação do contexto de nossa cidade capital. Em suas imediações, têm crescido bairros e comunidades que têm interatuado espacial e culturalmente com o dito edifício, assumindo distintos usos físicos e ou simbólicos de seus espaços. É precisamente, nesta conjunção da interação do Quartel San Carlos, por um lado, com eventos ou acontecimentos históricos que têm marcado nossa história e, por outro lado, com a conformação cotidiana dos cidadãos que formam a cidade, vemos a importância que deve ter para a identidade e consciência histórica do caraquenho, já que, por sua vez, o reintegrará à dinâmica da participação cidadã.

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Objetivos e metodologia do trabalho de campo Um dos elementos mais chamativos nos recintos internos do Quartel San Carlos é a abundância de expressões gráficas, tais como grafites e representações pictóricas como murais, presentes em suas paredes e outras superfícies. Grande parte destes grafites estão historicamente relacionadas com o período de encarceramento dos militares sublevados contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em 1992. Formam parte da história pátria contemporânea, mais próxima da etapa constitucional atual. Como representação comunicativa e estética, assim como manifestação cultural e política, a análise do grafite converteu-se em um tema crucial no campo dos estudos culturais. Ainda que existam alguns estudos já realizados sobre estas expressões no Quartel San Carlos, não apresentaram um enfoque sistemático ou abordaram o assunto desde uma perspectiva mais simbólico-cultural (Ramírez, 2000). É por isto que se fez necessária uma estratégia de registro controlado e integral, com cobertura total, destas manifestações culturais, mediante a aplicação de estratégias arqueológicas para o levantamento de evidências rupestres (De Valencia e Sujo, 1987). Esta consistiu na realização de um sistemático relevo fotográfico e gráfico dos grafites e de outras expressões pictóricas nas paredes e outras superfícies do Quartel San Carlos. Como produto final da aplicação desta metodologia obteve-se um inventário sistemático e detalhado das representações gráficas e ou pictóricas presentes nas paredes e outras superfícies do Quartel. Assim, podemos propor recomendações para sua conservação, valorização, possível musealização ou divulgação.

Foto 03: En estos mensajes se aprecia una búsqueda de reconocimiento, de salir del anonimato al dejar constancia que el autor del mensaje estuvo castigado en ese lugar por su “mala conducta” o su “carácter violento” (Fuente: IPC 2000, pp.42-43).

Ao abordar o estudo dos grafites do Quartel San Carlos nos enfrentamos, em primeiro lugar, com um contexto excepcional de produção de manifestações culturais que, em si mesmo, apresenta complexos níveis de significação. Em segundo lugar, as manifestações parietais que estes espaços albergam são produtos de diferentes momentos históricos, códigos morais, critérios estéticos e tecnológicos, discursos ideológicos e religiosos, rituais e das mais diversas histórias pessoais. 34

O trabalho de campo que sustenta esta investigação teve lugar no mês de julho de 2004. Começou com a realização de uma exploração sistemática dos espaços do Quartel San Carlos com a finalidade de gerar o pré-inventário dos grafites e das pinturas existentes no lugar, amparados numa metodologia arqueológica de resgate, inspirada na metodologia tradicional de relevo de manifestações rupestres. O pré-inventário foi organizado, tendo por base 41 unidades de análise. Estas unidades correspondem a uma entidade maior ou conjunto significativo de motivos que representam, em si mesmos, o principal objeto de estudo da investigação. As unidades de análise foram selecionadas dentro dos espaços internos da primeira e da segunda planta das edificações que compõem o Quartel San Carlos, na atualidade. Como recurso metodológico para a realização do pré-inventário era imprescindível configurar os possíveis esquemas organizativos dos lugares de concentração e de produção de grafite. Cada unidade evidencia motivos (grafite, desenhos, etc.) dispostos em distintos suportes ou estruturas materiais (pisos, tetos, paredes) que servem de base aos distintos motivos. Para o levantamento, efetuou-se um percurso espacial do desenho da planta original do Quartel San Carlos, seguindo o sentido horário, tanto em relação a cada unidade de significação quanto aos motivos presentes nestas (ver anexo 1). Em uma segunda fase de campo, realizou-se todo o registro fotográfico dos grafites, tanto de cada um dos motivos específicos como de pequenos conjuntos de motivos. Se bem que na maioria das unidades de significação, a ausência de um corpus coerente de motivos dificultou sua posterior análise e interpretação como conjunto, a agrupação de motivos nos permitiu realizar seu estudo com base na observação de semelhanças de atividades e convivência dentro dos espaços em questão. Um dos principais problemas a resolver, dentro da fase do registro gráfico, é que a grande maioria das manifestações está exposta a agressão de elementos climatológicos e sociais que as rodeiam. Em muitos dos casos, não é possível reconhecer sua forma expressiva. Por outra parte, no caso dos grafites do Quartel, há que se destacar que os suportes sobre os quais estão dispostos não são móveis e nem são separáveis de seu entorno. Portanto, a compreensão do motivo ou do conjunto de motivos depende de seu contexto físico. Igualmente, alguns destes suportes têm sido alterados estruturalmente ou têm sofrido a superposição de pinturas que tornam impossível a leitura de manifestações prévias. Por outro lado, para fins da investigação, os escritos mais recentes associados a visitas circunstanciais, unicamente foram revelados se estes se encontravam associados de maneira significativa às outras unidades históricas ou conjuntos de motivos. A terceira fase de campo caracterizou-se pelo registro sistemático de cada motivo reconhecível, mediante o registro em uma ficha de classificação, na qual se descreve sua localização, a temática abordada, o âmbito de produção e, se for o caso, realizou-se a transcrição dos escritos, muitos dos quais apresentam data de realização e autoria. Consideramos importante este registro exaustivo das manifestações, devido ao seu caráter efêmero, dadas às agressões climatológicas e sociais a que estão expostas. Além do mais, o mesmo permite realizar comparações entre os grafites registrados e estabelecer relações de semelhança ou de diferença, cronologias, características formais e âmbitos de produção que puderam ter relevância para os fins da investigação. Por outro lado, o trabalho de campo se viu reforçado mediante a análise contrastiva com os testemunhos escritos encontrados na escassa bibliografia e hemerografia existente,

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assim como também mediante entrevistas realizadas com pessoas que foram protagonistas de primeira linha, na história do Quartel San Carlos. Em definitivo, a metodologia implementada cobriu dois grandes campos de abordagem ao tema: por um lado, o trabalho de campo, o qual incluiu a prospecção dos espaços, a realização do préinventário dos grafites e das pinturas, as entrevistas pessoais, o registro fotográfico de manifestações, o registro de técnicas de produção e o processo de classificação. Por outro lado, a investigação documental, que compreendeu estudos cartográficos, bibliográficos, hemerográficos e de fontes da internet. O instrumento fundamental para a classificação das representações parietais consistiu em uma ficha de registro, composta por diversos itens informativos, que permitiu que cada uma das estruturas ou estratos documentados ficassem registrados na base de um catálogo numérico sistemático. Na fichas são descritas, localizadas e relacionadas às unidades. É estabelecida uma correspondência temporal e física em relação às estruturas que as suportam. Também se registram os traços tecnológicos, formais, ideográficos, simbólicos ou contextuais de cada motivo. Os campos compreendidos são os seguintes: unidade, conjunto, tipo de suporte, descrição formal ou transcrição -–os textos foram transcritos respeitando-se a grafia original -, temática abordada, técnica de manufatura, dimensões, data da realização, autor e estado de conservação do motivo (ver anexo 2). O que nos dizem? Análise das evidências As investigações realizadas nos espaços do Quartel San Carlos permitiram estabelecer, ao menos, dez categorias de classificação das mensagens dos grafites e das pinturas. Se bem que os relacionados com a política, os direitos humanos, a justiça e com a liberdade apresentam uma incidência significativa, não apresentam características de exclusividade e nem são os únicos eixos temáticos registrados neste espaço carcerário. A variabilidade de temas, de reflexões e de figurações representa um mundo de tensões, de convergências e de discrepâncias, visões de mundo compartilhadas pelos indivíduos que alguma vez estiveram reunidos nestes espaços. De alguma maneira, condensam parte do imaginário sócio-político nacional contemporâneo, integrado e filtrado, por sua vez, pelas intenções e necessidades de cada um dos indivíduos e dos coletivos, de acordo com as suas posicionalidades dentro contexto carcerário venezuelano. Um dos temas de maior recorrência dentro das celas de castigo, geralmente destinadas aos presos comuns, é a representação permanente da violência. Esta violência está referida tanto às experiências cotidianas da vida no interior do cárcere quanto à executada no além dos muros. Assim, nas manifestações que encontramos nestas celas condensa-se, reflete-se e resignifica-se a violência de um núcleo urbano capitalista tardio, altamente estratificado e agressivo como é a cidade de Caracas (García Canclini, 2001). Nas celas de castigo, popularmente conhecidas como “tigritos”, existe uma ampla variedade de motivos que, em certas ocasiões, se superpõem, dado o excessivo fluxo de reclusos por estes espaços. Entre as mensagens que se evidenciam nas paredes, tetos, pisos e marcos das portas destas celas de reduzidas dimensões ressaltam aquelas que expressam uma necessidade de destacar-se dentro de um grupo, ao mesmo tempo que atemorizar o resto da comunidade de reclusos. Isto é, conformar um espaço de identidade a partir da violência. Nestas mensagens, podemos apreciar uma busca de reconhecimento, de sair do anonimato, ao deixar constatado que o autor da mensagem foi castigado neste lugar por sua ‘má conduta’ ou seu ‘caráter violento’. Possivelmente, nestes espaços, algumas das mensagens refletem a chamada ‘lei da selva’ carcerária, na qual os mais fortes, duros e resistentes sobrevivem, prevalecem e são respeitados pelo

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resto da comunidade carcerária. Os escritos registrados denotam, ocasionalmente, uma atitude de rivalidade, pois, muitos dos autores, reincidiam no castigo e voltavam a deixar testemunho de sua passagem por estes espaços.

Foto 04: Algunos de los mensajes reflejen la llamada “ley de la selva” carcelaria, en la que los más fuertes, duros y resistentes sobreviven, prevalecen y son respetados por el resto de la comunidad carcelaria. (Fotografía: Ezequiel Korin)

Em várias destas celas ou ‘tigritos’ são recorrentes escritos em que rezam ‘a lei de Pedro Navaja’, ‘a lei do chuço’, ou ‘aqui esteve a maldade’, assim como a presença de desenhos de armas de fogo, de caveiras, de esqueletos, de suásticas, etc. Estas manifestações foram realizadas, quase de maneira exclusiva, mediante o uso de elementos alternativos a pintura. Na maioria dos casos evidencia-se o uso da técnica do raspado, a qual, intuímos, pode ser executada com o uso de pedras, lâminas de metal ou qualquer outro instrumento afiado. Indubitavelmente, a militância política conforma uma temática nodal e quantitativamente significativa dentro dos espaços do Quartel. Ainda que a maior parte dos motivos que poderiam ser classificados como mensagens transmitidas desde uma profunda militância política, são escritos, geralmente, inseridos em temas de conjuntura política e de protesto social. Há, também, uma ampla variedade de desenhos que caracterizam personagens relevantes e líderes da política e da história social (Martí, Bolívar, etc.). A recorrência permanente – escrita e gráfica – a figura de Bolívar, quase como uma maneira de culto teológico-político, está intimamente vinculada aos ideais, convicções e delineamentos dos líderes fundacionais do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR 200) (IPC, 2000; Rodríguez, 2000). Os desenhos de personagens ilustres, heróis pátrios, caudilhos locais e figuras revolucionárias,

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geralmente, têm grandes dimensões, a maneira de grandes murais, criando uma maior pregnância no olho da pessoa que o observa e captando a atenção de todo àquele que incursione nesse espaço. De fato, estas representações, frequentemente, ocupam as paredes principais e estão realizadas, combinando técnicas complexas de manufatura. Muitos dos desenhos e murais do Quartel San Carlos acompanham as letras. Dentro de um dos conjuntos, por exemplo, pode-se observar o rosto sobredimensionado de Simón Bolívar, destacado entre as assinaturas e mensagens dos reclusos, a maioria oficiais de alta patente, os quais protagonizaram o conhecido motim militar de 27 de novembro de 1992. Entre eles, encontra-se o general Francisco Visconti Osorio, chefe de logística do Estado Maior Conjunto, o contra-almirante Hernan Grüber Odermán de la Marina, o oficial de mais alta patente e de antigüidade dos sublevados, e o contra-almirante Luis Cabrera Aguirre (IPC 2000; Rodríguez, 2000). Com grande freqüência, os textos que acompanham estes murais aludem a valores de liberdade, justiça social, resistência armada e promovam a luta por uma sociedade mais igualitária e sem divisão de classes.

Foto 05: Rostro sobredimensionado de Bolívar, enmarcado entre las de firmas y mensajes de los reclusos, la mayoría oficiales de alto rango, quienes protagonizaron la conocida asonada militar del 27 de noviembre de 1992 (Fotografía: Ezequiel Korin)

No Quartel San Carlos, os motivos iconográficos e os textos que refletem algum tipo de militância política foram realizados mediante a utilização de diversas técnicas de manufatura – simples ou combinadas – nas quais se utilizaram pinturas, giz, lápis, ou carvões, já que seus autores, ao pertencerem, em sua maioria a institucionalidade castrense, teriam um privilegiado acesso a estes materiais. Entre as muitas mensagens registradas, podemos destacar as seguintes: “Vivan los boinas rojas!” “Bolívar bolivariano no es un pensamiento muerto ni mucho menos un santo para prenderle una vela”. 38

“La libertad los gobiernos no se compran y un verdadero hombre acepta sus derrotas y no se ciega ante un pueblo con tal de permanecer en el poder” “La lucha continúa, las rejas no callaron el grito de libertad” “Quien se para de frente es el que escribe la historia” Este último texto apresenta uma dramática relevância dentro da aura simbólica do Quartel San Carlos e, ainda mais, dentro do contexto político-social venezuelano, já que, ainda que não existam referências testemunhais confiáveis, sua produção é atribuída ao tenente-coronel Hugo Rafael Chávez Frías, atual presidente da República Venezuelana da Venezuela. De fato, este recinto é recorrentemente visitado pelas pessoas que vêm ao Quartel devido ao anedotário associado a este grafite. Profundamente relacionado com a temática exposta anteriormente está a da institucionalidade castrense. Entre estes motivos, encontramos ícones mais esquemáticos e de fácil execução, como os símbolos pátrios, selos pessoais ou sinais distintivos de agrupações militares e policiais, conformando um sistema de alianças e competição entre os distintos corpos e níveis de mando institucionalizados. A representação de escudos, emblemas, lemas e siglas distintas dentro do âmbito castrense são abundantes e interatuam, de maneira dialógica, com outras temáticas menos institucionais e informais. Manifestações parietais recorrentes desta temática são: “Ejército venezolano, forjador de libertades” “Sierra C/07” “Fuerte Tiuna grupo de la policia militar” “Power la fuerza de C/07 julio 92 cumplace armada Por outro lado, existem outras referências que pertencem a coletivos urbanos menos estruturados tais como as pandillas, ‘tribus’ e organizações informais, coletivos que estabelecem categorias de adscrição para se relacionarem, identificarem-se e diferenciarem-se de outras agrupações. Este tipo de organização também plasma sua marca identitária e defensiva dentro da cotidianidade carcerária, através de pinturas ou textos, compartilhando insígnias individuais e ou coletivas (um tipo de adaga, uma estrela, uma âncora, etc.), a maneira de sinais ou de marcas territoriais de ‘tribos’ que tratam de manter uma identidade comum para protegerem-se e sentirem-se mais poderosas. Neste sentido, em múltiplos motivos, conjugam-se imagens com lendas, recolhendo as aspirações de uma comunidade que intenta construir um sistema de hierarquias, lealdades e reconhecimento inter e intra-quadrilhas. Entre vários motivos, podemos destacar: “Mariuuana” “Dont walk here” “los capo de Cuar Sanca” Dibujo de estrella de cinco puntas “Death”

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Dibujo de daga Dibujo de cruz de malta “Ron pa todo el mundo y mariguana y perico y bazuco viva la droga”

Foto 06: Múltiples motivos conjugan imágenes con leyendas recogiendo las aspiraciones de una comunidad que intenta construir un sistema de jerarquías, lealtades y reconocimiento inter e intrapandillas (Fotografía: Ezequiel Korin)

Em outra ordem de idéias, as manifestações relacionadas com a mulher, o sexo e o amor, dentro dos espaços do San Carlos, diferenciam os espaços entre a população carcerária. Nos espaços destinados aos réus comuns, geralmente, áreas de confinamento reduzido e de isolamento, é onde se concentram, principalmente, as manifestações eróticas. Enquanto que, nas áreas dos presos políticos, de maior circulação e de acesso público, destinadas aos presos que, em sua categoria deveriam manter uma maior respeitabilidade e autoridade moral, os grafites e pinturas tendem a fazer referência ao amor para com a mãe ou a família. É por isto que, dentro das denominadas celas de castigo, cujas dimensões as convertem em unipessoais, é onde a sexualização do contexto carcerário tem sua maior expressão. Nestes espaços, ao deixar plasmada a sua obra, o artista não só sublimava sua excitação sexual no momento em que fazia os desenhos eróticos, senão que sentia um maior prazer ao permitir que suas pinturas e grafites fossem apreciados por outros reclusos. É desta maneira que esta sublimação converte-se, também, em um recurso de poder sobre o âmbito simbólico e físico da cela, já que o indivíduo não só ocupa o recinto, senão que o possui sexualmente e infringe esse poder sobre a representação em si mesma – por exemplo, as cicatrizes que se evidenciam sobre os corpos representados (Navarrete, 2004). Em outros casos, nestes espaços, também tinha lugar a objetivação do amor platônico ou a atração para com as mulheres, descritas ou desenhadas de acordo com sua atração sexual particular, usualmente dirigida desde uma perspectiva heterossexual e androcêntrica. Assim, em várias das celas do Quartel San Carlos existem desenhos de exuberantes mulheres nuas e, inclusive, com a intenção de reproduzir a corporalidade feminina. Em um dos desenhos, apresenta-se uma perfuração na área da vagina. Muitos dos desenhos estão acompanhados de frases carregadas de erotismo e de fantasia como 40

a do ‘corpo de delito’, que está localizada justo ao lado do desenho de uma escultural mulher nua. Outros estão carregados de contraditórios sentimentos, característicos da maneira como a sociedade moderna ocidental se aproxima da sexualidade: entre o desejo e a culpa, a bondade e a maldade, a virtude e o pecado e, nestes casos, temos encontrado o corpo nu associado com a frase “Satán” ou “a maldade”.

Foto 07: En los espacios destinados a los reos comunes, generalmente áreas de confinamiento reducido y aislamiento, es donde se concentran mayormente las manifestaciones eróticas (Fotografías: Ezequiel Korin y Rodrigo Navarrete)

No caso das celas cujos motivos expressam amor para com a família e com as alianças existem muito pouco desenhos e muitos escritos. Revelam arrependimento, remorso moral pela falta cometida, palavras de justificação/desculpa e, em muitos casos, poemas de amor que evocam eventos amorosos passados que vão pareados com profundo sentimento de desesperança ou, pelo contrário, sentimentos entremeados de tristeza, de ilusão pelo possível e ansiado reencontro com os familiares e com os amigos. É a esperança e, por sua vez, a representação do retorno a vida cotidiana, expressada em valores e emoções como a liberdade e o afeto.

Foto 08: Escritos que revelan sentimientos entremezclados de tristeza e ilusión por el posible y anhelado reencuentro con los familiares y amigos. Es la esperanza y a la vez la representación del retorno a la vida cotidiana expresada en valores y emociones como la libertad y el afecto. (Fotografía: IPC 2000, p. 39)

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Entre estas manifestações parietais, destacam-se: - desenho de coração dividido pela metade. Em cada uma dos lados diz “La mitad para la pure – para mi familia” - desenho de coração Zulay y Oscar” - desenho de mulher i“La belleza de la mujer y su cuerpo y estilo es la belleza del mundo. Dibujado con amor a las mujeres” -“Amor de madre” (desenho de mulher nua e de costas) “Cuerpo del Delito” - desenho de mulher “La mujer” “Modelo erotica” - desenho de coração com adaga atravessada “Amor y paz la ley del amor” Outra das temáticas amplamente observadas entre as manifestações parietais do Quartel são as inerentes a religião e a fé. Ao menos dentre os motivos registrados para fins de investigação, existe uma grande variedade de motivos iconográficos e de textos pertencentes ao âmbito do catolicismo. É certo, porém, que se registrou um conjunto minoritário de mensagens que estão estreitamente vinculadas com os santos. Entre as imagens mais comuns podemos mencionar as de virgens, de santos e de cruzes. Também aparecem textos de oração, de relatos bíblicos e de mensagens que pretendem dar testemunho de uma profunda convicção religiosa e de atos de fé. Neste sentido, a religião converte-se em um recurso emancipatório e de esperança para relevar a reclusão permanente. Alguns dos grafites registrados falam de amor a Deus e se registram petições de proteção a Virgem Patroa da Armada, como as seguintes: “Yo no tengo miedo, no quiero el terror. Dios es amor, en toda la creación no hay nada que teme. Yo tengo fe, quiero sentir fe”. “Virgen Reyna del Oriente del Valle Patrona de la Armada Cunplace 1981 La Patrulla de los Caballeros del Mar” “En el año 1955 se realiza el encuentro de la virgen del Valle y la virgen de (ilegible) en el puerto de la Guaira a bordo del destruto (¿?) ARV Nueva Esparta (dell) buque insignia de la armada de Venezuela Esta es la primera vez que la virgen abordan una unidad de la marina de guerra. Escrito por el PN Sierra Guevara” - desenho de virgem, a lápis, e datado de 91 e assinado “Los 7 poderes”

Foto 09: La religión se convierte en un recurso emancipatorio y de esperanza para sobrellevar la reclusión permanente (Fotografías: Rodrigo Navarrete y Ana María López)

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Outro, dentre os elementos evasivos comuns no imaginário destas representações parietais, corresponde ao humor, como sublimação das precárias condições de vida do presidiário. O humor quer seja em termos de ironia ou de subversão da ordem lógica das condições de existência, permite articular-se, de maneira lúdica, com a realidade e transforma-la, em nível simbólico, na busca de uma saída imaginária. Em muitos dos grafites e pinturas registrados no Quartel, evidencia-se uma alta dose de humor – usualmente denominado de humor negro – o qual faz uso das experiências traumáticas como recurso para burlar-las e ironizar sobre si mesmo. Supomos precisamente que, dentro do contexto carcerário, estas mensagens ajudariam os reclusos a neutralizarem uma série de circunstâncias que, de outra maneira, seriam muito destrutivas. Como polo oposto a estas mensagens, a desesperança forma parte do discurso, expressado em outras manifestações que refletem sentimentos aflorados desde a psicologia mais profunda do indivíduo em sua impotência e incapacidade de solucionar sua situação imediata. Ej. “Favor cerrar la puerta después de entrar. Pabellón 04” “Aquí también yo pasé mis ultimos dias como militar tan solo contando 10 lindos dias para hirme de baja porque mas vale la moral de delincuente que la de un millón de sapos porque no hay bala que mate la verdad cuando defiende la razón. No quiero lujo en nada pero tampoco indecencia. La vida es corta no se cuando la perdere. Un dia sin luz es irreparable”. “Artista plastico patrocinado por matel” (disenho do sol)

Foto 10: En muchos de los graffiti y pinturas registrados en el Cuartel se evidencia una alta dosis de humor –usualmente el denominado humor negro-, el cual hace uso de las experiencias traumáticas como recurso para burlarlas e ironizar sobre si mismo. (Fotografías: IPC 2000, p. 40 y Ana María López)

Um elemento especial, exclusivamente de caráter gráfico, que queremos ressaltar dentre os mecanismos de evasão dos espaços carcerários é a representação de uma série de artefatos e de paisagens. Está associada em nosso mundo ocidental com a idéia de liberdade, viagem ou evasão, tais como, a presença de barcos, de aviões, de paisagens abertas, de praias e de campos, nas paredes do Quartel. O valor emancipatório destas representações simbólicas vai mais além das paredes do recinto e comunica o presidiário com o mundo externo, com seus próprios referentes de liberdade e de fuga. A presença de aviões e de barcos poderia estar associada com o fato de que muitos deles vêm de uma instrução militar e, provavelmente, tal presença formava parte de sua

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competência profissional. Igualmente, as pinturas murais que representam campos, espaços abertos e praias – e não cidades aglomeradas e fechadas – não só vinculam-se com a relação simbólica moderna entre natureza e liberdade, senão com a possível proveniência de alguns destes reclusos de áreas rurais ou do interior do país, assim como também, com uma visão estética do paisagismo como arte.

Foto 11: El valor emancipatorio de estas representaciones simbólicas va más allá de las paredes del recinto y comunica al presidiario con el mundo externo y con sus propios referentes de libertad y escape. (Fotografías: Rodrigo Navarrete)

Dibujo de avión de hélice sobre mapa de Venezuela “Eduanny”. Dibujo de Barco sobre pintura roja Dibujo de atardecer en la playa con un barco zarpando. Agora, o tempo, mais do que o espaço – constrangido e literalmente limitado – converte-se no referente central do discurso. Assim, muitos motivos presentes nas celas são indicadores cronológicos dos dias transcorridos na prisão. Calendários, datas, traços, pauzinhos verticais, que não é outra coisa que a contabilidade, o dia a dia da condenação imposta em cada caso. Muitos dos motivos indicam uma data em concreto (dias, mês, ano), quiçá como testemunho da data da reclusão neste espaço. Em algumas das celas encontramos calendários completos, onde se leva em conta os dias transcorridos, ocasionalmente sublinhados – possivelmente semanas ou meses -, enquanto que em outras, encontramos escritos sobre o dia em que se cumprirá o final da condenação. Também há evidências que tão somente deixam a constatação do ser e do estar em situação de reclusão. Exemplos: “Sólo tengo 4 noches y 4 días y ya quiero salir de aquí” “Feliz Año nuevo 1989 les desea el Fusil 33 meses” desenhos de pauzinhos (conta)

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Foto 12: Calendarios donde es llevada la cuenta de los días transcurridos o que especifican día en que se cumplirá el final de la condena. (Fotografía: Ezequiel Korin e IPC 2000, p. 35)

Para uma visão mais integrativa da interpretação histórica – o estudo da cultura material e a cultura política contemporânea A implementação de uma estratégia arqueológica de recuperação sistemática da informação histórico-cultural e arquitetônica de uma edificação nuclear para a história político-social da nação e do contexto urbano caraquenho, tal como é o Quartel de San Carlos, redundaria em uma compreensão mais integral do patrimônio histórico nacional e na definição de estratégias de valorização mais de acordo com as condições estruturais, históricas e simbólicas do bem patrimonial imóvel. Quando nos referimos a uma perspectiva integral, estamos aludindo a incorporação do patrimônio histórico geral da edificação. Tanto dos seus restos e evidências materiais quanto da sua integração simbólica na história política e cultural do país, dentro de uma visão arqueológica que seja capaz de dar conta das histórias individuais e coletivas, acontecidas no sítio e expressadas em sua estrutura e atual posição física, valorizada dentro da atual cidade. Isto implica, por sua vez, a incorporação da edificação a história política da cidade. Assim como, também, a resemantização deste espaço para a cidadania, que requer e necessita recordar, tanto os monumentos heróicos quanto os processos de repressão e discriminação política, sucedidos na Venezuela, durante o denominado período democrático. Somente assim, podemos estabelecer uma verdadeira conexão entre a interpretação da cultura material como arqueólogos, a conscientização nacional sobre a história recente e a cultura política contemporânea. Consideramos que o afã de um antropólogo, como o de qualquer cientista social ou humano é precisamente humanizador. Em tal sentido, um estudo como os das manifestações culturais parietais nos recintos do Quartel San Carlos, representa um passo a mais na testemunhação, valorização social e reflexão coletiva sobre o passado, inclusive o mais próximo, e a experiência humana, para a construção de projetos políticos futuros, baseados nos conceitos de justiça e de liberdade sócio-política. AGRADECIMENTOS Agradecemos ao Instituto do Patrimônio Cultural pela colaboração prestada durante a realização do registro das manifestações parietais no Quartel San Carlos, especialmente, o antropólogo George Amaíz e a museóloga Maria Gabriela Martínez. Igualmente, os antropólogos Daniel Ramírez e Lilia Vierma pelas informações e imagens oferecidas,

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assim como, ao comunicador social Ezequiel Korin pelo trabalho fotográfico durante o processo de relevo de informação. BIBLIOGRAFIA Amodio E., Navarrete R. y Rodríguez Yilo A. (1997) El Camino de los Españoles. Aproximaciones históricas y arqueológicas al Camino Real Caracas – La Guaira en la época colonial. Instituto del Patrimonio Cultural, Caracas. Cadena Carriles ((2000) Cuadernos Historia de Venezuela. Cadena Capriles, Caracas. De Valencia, R. y J, Sujo. (1987) El diseño en los petroglifos venezolanos. Fundación Pampero, Caracas. Instituto del Patrimonio Cultural (2000) La Cultura Libera al San Carlos. Concurso Nacional de Ideas. La Transformación del Cuartel San Carlos en Centro Nacional de las Artes. IPC, Caracas. García Canclini, N. (2001) Culturas Híbridas. Estrategias para entrar y salir de la modernidad. Paidós, Buenos Aires. García Ponce, G. (1968) El Túnel del San Carlos. Caracas, Ediciones La Muralla, 1968. González, D. (1998) Estudio histórico patrimonial: Cuartel San Carlos, Parroquia San José, Caracas. Instituto del Patrimonio Cultural, Caracas. Jaimes Quero, H. (2003) Mentalidades Discurso y espacio en la Caracas de finales del siglo XX (Mentalidades venezolanas vistas a través del graffiti). Fundación para la Cultura Urbana, Caracas. Navarrete, R. (2004) “Graffiti XXX: visiones, imágenes y representaciones sexuales y de género en los baños públicos de la UCV” Ponencia presentada durante las II Jornadas Universitarias Sobre Diversidad Sexual “Género y Poder”, Universidad Central de Venezuela, Caracas.

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Navarrete, R. (2005) “¡El Pasado Está en la Calle!. Usos políticos y simbólicos del pasado en la Venezuela de hoy”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales. Universidad Central de Venezuela, Caracas: 2-2005 (en prensa). Ramírez, D. (2001) Imaginario militar carcelario. La dinámica imaginaria del Cuartel San Carlos. Trabajo Final de Grado para optar al Título de Antropólogo. Escuela de Antropología, Facultad de Ciencias Económicas y Sociales, Universidad Central de Venezuela, Caracas. Rodríguez, F. (2000) “4 de febrero de 1992”, Julio 2000, VenezuelaNet. http://www.venezuelanet.org/historia.htm (consultado 24/06/05). Sanoja, M. (1998ª) Proyecto Arqueológico Cuartel San Carlos. Primer Informe de Avance. Instituto del Patrimonio Cultural , Caracas. Sanoja, M. (1998b) Proyecto Arqueológico Cuartel San Carlos. Segundo Informe de Avance. Instituto del Patrimonio Cultural, Caracas. Sanoja, M. (1998c) Proyecto Arqueológico Cuartel San Carlos. Tercer Informe de Avance. Instituto del Patrimonio Cultural, Caracas. Sanoja, M. e I. Vargas. (1998) Cuartel San Carlos. Contribución al Estudio de la Arqueología de Caracas. Caracas, Informe Final de Proyecto, Instituto del Patrimonio Cultural, Caracas. Silva Tellez, A. (1987) “Sobre el Graffiti. Una Ciudad Imaginada. Graffiti, expresión urbana”. Boletín Cultural y Bibliográfico 12(xxxiv) Universidad Nacional de Colombia, Bogotá: 157-161. Silva Tellez, A. ( s/f) “La ciudad como comunicación. Elaboración de una teoría sobre el graffiti en las ciudades contemporáneas, con especial atención a ciudades colombianas y latinoamericanas, y la evolución de sus argumentos hasta la formulación de una tesis integral sobre la ciudad intercomunicada por territorios urbanos. Dia-logos, s/e, Colombia.

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Anexo 01. PRÉ-INVENTÁRIO DE GRAFITE Unidade IV: Cela 01 – corredor interno com arcos (pátio W) Suporte Localização Quantidade Descrição Motivo A Teto 18 Todos os 18 motivos no original, como autores. B Parede Norte 67 Todos os 67 motivos no original, como autores. C Parede Sul 65 Todos os 65 motivos no original, como autores. F Dintel da Todos os 04 motivos porta (direita no original, como do marco) autores. F Dintel da 01 Ilegível (1) porta (teto do marco) F Dintel da 01 “23” porta (esquerda do marco)

devem ser mantidos apresentados pelos devem ser mantidos apresentados pelos devem ser mantidos apresentados pelos devem ser mantidos apresentados pelos

Anexo 2. FICHA DE MOTIVO Unidade: IV Cela número 01, pátio Oeste Conjunto: C Tipo de suporte: Parede Sul Descrição formal ou transcrição: ‘Cuerpo de delito”, Amor de madre. Desenho de mulher nua, de costas, em branco sobre preto. A frase cuerpo de delito está enfatizada por encontrar-se entre aspas. Temática que aborda: combina sexualidade, amor materno-filial. Técnica de manufatura: raspado/ abrasão sobre pintura preta Dimensões: 10 cm x 13 cm Data da realização: s/d Autor: anônimo Estado de conservação: ótimo

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“México 1968”: entre as presepadas olímpicas, a repressão governamental e o genocídio Patricia Fournier e Jorge Martínez Herrera ¿quiénes los que agonizan, los que mueren? ¿los que huyen sin zapatos? ¿los que van a caer al pozo de una cárcel? ¿los que se pudren en el hospital? ¿los que quedan mudos, para siempre, de espanto? ... No busques lo que no hay: huellas, cadáveres ... No hurgues en los archivos pues nada consta en actas. ... Recuerdo, recordemos ésta es nuestra manera de ayudar a que amanezca sobre tantas conciencias mancilladas, sobre un texto iracundo, sobre una reja abierta sobre el rostro amparado tras la máscara. Recuerdo, recordemos hasta que la justicia se sienta entre nosotros. Rosario Castellanos, Memorial de Tlatelolco

Da antiga cidade do “tlatelli” à Praça das Três Culturas Tlatelolco - o lugar do montículo - segundo sua etimologia em nahuatl, localiza-se, atualmente, no coração da Cidade do México. Tem sido cenário de trágicos eventos no transcorrer dos séculos. A fundação pré-colombiana do assentamento, em uma ilhota no lago Texcoco, data do século XIV de nossa era. Floresceu economicamente sob a hegemonia asteca como sede do mercado mais importante que existia no Novo Mundo (Gibson 1980). Não obstante, estes desenvolvimentos se viram truncados com a queda das cidades gêmeas de Tenochtitlan e de Tlatelolco, em 13 de agosto de 1521, ao concretizar-se a conquista espanhola. Os vencidos ficaram recluídos na segunda urbe citada e os espanhóis na de México-Tenochtitlan (Berlin e Barlow 1980:75). Uma vez constituído Tlatelolco como um povoado de índios, manteve-se, marginalmente, perdendo hierarquia política e econômica frente à Cidade do México, sede dos poderes vicerreinais. De qualquer maneira, desde 1531, os franciscanos colocaram-se na tarefa de catequizar os naturais, de construir um templo a Santiago e de fundar, tanto um convento quanto um “colégio para dar estudo aos índios”. Tais edificações conformaram um conjunto na parte central do assentamento, em torno de sua grande praça (Barlow 1987; Villaseñor y Sanchéz 1980 [1748]). Passada a independência, em 1821, e uma vez que se aboliram as repúblicas dos índios, Tlatelolco manteve-se como um bairro empobrecido, com casas em ruínas. Revitalizou-se paulatinamente no transcorrer do século XX. Nos inícios da década de 1960, deu-se um impulso a um amplo projeto de renovação urbana com a construção de edifícios apartamentais, do arranha-céu da Secretaria de Relações Exteriores e da habilitação de uma zona arqueológica. Nesta se deixaram a descoberto muitos dos edifícios do recinto sagrado da cidade pré-hispânica (González Rul 1988), armonizando-os com os imóveis da unidade próxima ao centro da Cidade do México, Distrito Federal.

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Assim, ficou conformada a chamada Praça das Três Culturas, no núcleo do conjunto arquitetônico, onde se integraram as raízes indígenas com os símbolos da conquista espanhola e com os do México moderno (figura 1). Em 2 de outubro de 1968, a dez dias da inauguração dos XIX Jogos Olímpicos, a primeira olimpíada celebrada na Latinoamérica, esta praça seria o cenário do espantoso e repugnante morticínio de estudantes (Labastida 1998), por parte do aparelho repressivo do Estado. De um genocídio que, por meio do assassinato, cobrou mais vidas do que o terremoto de 1985, quando as forças da natureza provocaram o desmoronamento de vários dos edifícios da unidade habitacional de Tlatelolco.

Figura 1. Panorâmica da Praça das Três Culturas mostrando, em primeiro plano, as estruturas da cidade pré-colombiana e o templo de Santiago. Ao fundo, o edifício ‘Chihuahua’ da unidade habitacional de Tlatelolco (foto de Jorge Martínez Herrera).

Pobre México, tão longe de Deus e tão próximo dos Estados Unidos3 A história moderna do México, desde que se instaurara um regime presumivelmente democrático, na década dos anos 1920 do século passado, tem se tingido continuamente com a cor do sangue de operários, de trabalhadores, de opositores ao governo, de camponeses, de indígenas, de integrantes de partidos políticos de oposição e de estudantes (Labastida 1998). No transcorrer o século XX, por mais de sete décadas, diferente do ocorrido em muitas nações ibero-americanas, um só partido político (o ‘PRI’, Partido Revolucionário Institucional) manteve em suas mãos as rédeas do México, garantindo sua vitória nos 3

Frase ainda vigente. Refere-se a jugo estadunidense sobre o México e que foi alcunhada desde o século XIX, posteriormente a guerra México-Estados Unidos.

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processos eleitorais mediante toda a classe de mecanismos ilícitos e nada transparentes (Reding 1995; Story 1986). Esta ditadura partidária sustentou-se, em grande medida, no controle das principais organizações operárias e camponesas do país, na infiltração de agentes governamentais nas organizações estudantis, assim como, em um intrincado manejo setores produtivos e das arenas políticas em benefício de dinastias que monopolizaram o poder e a riqueza. Toda a informação de acesso público, por tais circunstâncias, passava pela peneira oficial, ficando os meios informativos a mercê do autoritarismo e da censura ou do bem comprado silêncio (Monsiváis 2001; Reding 1995). Por conseqüência, os eventos da história mexicana ficaram pré-estabelecidos. Em tal situação, a cada mudança administrativa sexenal, o grande vizinho do norte, os Estados Unidos da América, pouco tinha que preocupar-se com estabilidade sóciopolítica e com frear ameaça comunista em sua fronteira sul. A partir da Guerra Fria e da caça aos “vermelhos”, as instâncias repressivas governamentais deram calorosas bemvindas aos assessores militares e agentes da CIA. Os informes e as atividades, tanto do FBI como da CIA, possibilitavam – o talvez ainda possibilitem – manter tanto o equilíbrio do país quanto a segurança das inversões estadunidenses, capitalizando em cima da pobreza da maioria dos mexicanos. Nas palavras de Agee (1975:503), detrator da CIA, as operações efetuadas na Latinoamérica, em finais da década de 1960 e início dos anos 1970, para suprimir os movimentos de esquerda, visavam, no final das contas, fortalecer as minorias no poder, vinculadas com os negócios e com o governo estadunidense, cujos interesses compartilhados eram a estabilidade e a obtenção de dividendos nas inversões econômicas. A distribuição desigual da riqueza e das condições sempiternas de miséria das massas eram, por conseqüência, a resposta lógica que impulsionava a organização de movimentos extremistas, com idéias socialistas. Era indispensável extermina-los, por constituírem graves ameaças ao sistema capitalista. Tudo é possível na paz A industrialização e o desenvolvimento econômico do México moderno durante a década dos anos 1950 e inícios dos anos 1960, propiciados pelas inversões estrangeiras e pela exploração dos abundantes recursos naturais do país, o converteu em um candidato adequado para postular que a capital federal fora sede dos XIX Jogos Olímpicos, em 1968. Foi um ano convulsivo, de movimentos sociais de protesto na Europa e na América, no qual os jovens foram os principais protagonistas. Gustavo Díaz Ordaz, como presidente da República, buscou, com avultados capitais transnacionais e dilapidando as arcas fazendárias [a cifra oficial é de 140 milhões de dólares (Mabry 1982)], que os recursos requeridos para celebrar os programas desportivos e culturais estivessem dispostos para a vinda dos contingentes de todo o orbe, desde setembro daquele ano. Sob o lema “tudo é possível na paz”, chegaria, desde a Grécia, a tocha que iluminaria o flamante estádio remodelado, da Universidade Autônoma do México (rebatizado como Estádio Olímpico), na magna inauguração em 12 de outubro de 1968. O êxito das olimpíadas devia garantir, a qualquer custo, que a ditadura partidária obteria o reconhecimento internacional pela manutenção, durante décadas, da estabilidade política e uma imagem de progresso econômico sob o manto (‘cobijo’4) do 4

Manto curto, de uso comum no México.

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imperialismo norte-americano (Paz 1970). Não obstante, para além da demagogia governamental, a realidade era outra. Apesar da imagem de bonança e de abundância, o México era, naquele então, “um país com vinte milhões de famintos e dez milhões de analfabetos, um país em que só uma camarilha que está no poder impõe sua verdade e sua lei” (Ramírez 1998a:218[1969a]). O movimento estudantil de 1968, no México (figura 2), foi a conseqüência histórica de uma década de repressão governamental sobre as instituições educativas e sobre os operários. Tal repressão conseguiu, através do desmantelamento paulatino do financiamento destinado a educação popular, a dissolução de greves e as detenções extrajudiciais de líderes de sindicatos progressistas, que se converteram em presos políticos.

Figura 2. Agrupamento e organização de estudantes do movimento de 1968 (Anaya 1969: 16).

Para 1968, os estudantes se organizaram, em um primeiro momento e de maneira espontânea, seguindo uma visão geral dos problemas universitários e educativos do país. Posteriormente, desafiaram e combateram as formas despóticas e de controle do PRI, como resposta as ações repressivas do Estado, no contexto de um agudo autoritarismo político (Álvarez Garín 2002:165,167 [1998]). Tratou-se de uma crítica ao sistema de dominação e ao despotismo governamental, derivada da imperiosa necessidade de abertura ao diálogo entre o Estado e a sociedade. Demandava mudança para um regime de liberdade e de democracia (Montes 1998) que, sob o mando do PRI, com todas as luzes, era inexeqüível. Não obstante, em absoluto pretendia-se a derrubada do governo, mesmo com a participação de militantes de organizações e de partidos políticos de esquerda que se incorporaram à estrutura democrática do movimento e às instâncias dirigentes (Álvarez 2002 [1998]). Na raiz de uma casual escaramuça entre alunos pré-universitários de instituições públicas rivais, que ocorrera nas proximidades do centro da Cidade do México, em 22 de julho de 1968, a polícia e o exército atuaram sucessivamente e de forma violenta, inclusive com o uso de bazucas, contra os estudantes e nas instalações educativas que os jovens haviam ocupado em sinal de protesto. Nos finais deste mês, os detidos chegavam a 1200, os feridos a 400 e, se falava, de até 200 mortos. Além disso, o grosso da sociedade reprovava que agentes policiais e militares tivessem agido com violência em

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reuniões do Instituto Politécnico Nacional (IPN) e da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) (Menéndez Rodríguez 1968a). Nos inícios de agosto, constitui-se o Congresso Nacional da Greve (CNG), formado por estudantes e professores da UNAM, do IPN, bem como de múltiplas escolas e universidades, tanto privadas como do governo, com sede na capital e em vários estados do país, que, em seu conjunto, interromperam suas atividades docentes (Menéndez Rodríguez 1968a; Ramírez 1998b:81 [1969]). Para o 04 de agosto, o movimento estudantil já havia elaborado documento peticionário com os seguintes pontos (Menéndez Rodríguez 1968b): 1. Liberdade aos presos políticos. 2. Anulação dos artigos do Código Penal Federal, nos quais se instituía o delito de dissolução social, que constituía a base jurídica para que o governo dissolvesse qualquer ato público no qual se congregara estudantes.5 3. Dissolução do corpo policial de choque, conhecido como granadeiros. 4. Destituição dos chefes policiais. 5. Indenizações aos familiares de todos os mortos e feridos desde o início do conflito. 6. Esclarecimento das responsabilidades dos funcionários culpados dos fatos sangrentos. Aos clamores dos estudantes (figura 3) se uniram os dos trabalhadores das estradas de ferro nacionais, dos professores, dos intelectuais, dos militantes políticos de esquerda e de outros setores da sociedade, em um movimento de resistência a partir da indignação moral, da consciência da sociedade civil, do combate anti-autoritário e da luta pelos direitos humanos (Ponce 1998).

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O delito de dissolução social foi incorporado do Código Penal Federal, em tempos de guerra, facultando ao governo atuar contra aqueles que consideraram perigosos, com base em simples suspeitas. Por tal situação, qualquer indivíduo de tendências de esquerda podia ser encarcerado sem maiores acatamentos (Scherer e Monsiváis 2004:11).

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Figura 3. Volante de protesto do movimento estudantil de 1968 (coleção particular).

Foram várias as manifestações das massas em agosto e setembro, com a concorrência de até 300.000 pessoas, em uma marcha que chegou ao ‘Zócalo Capitalino’, frente ao Palácio Nacional, no centro da urbe. Continuamente havia numerosos policiais, fazendo-se passar por estudantes, que atuavam como agitadores. Pretendiam fechar com a ultra-esquerda e cometiam atos vandálicos. Tinham por finalidade que a opinião pública aplaudisse as medidas repressivas do governo, que alegava que a essência do movimento estudantil era uma conjuração comunista6 (Menéndez Rodríguez 1968a). Não houve resposta positiva as demandas do CNG que, em sua maioria, foram desqualificadas por Díaz Ordaz. Este se negou ao diálogo. Proferiu ameaças de que estava mais do que qualificado para dispor de todas as forças armadas da Federação para garantir a segurança interna. A presidência fez clara a sua intenção de conseguir, a qualquer custo, a realização das olimpíadas, sem contratempos (Ramírez 1998a[1969a]). Por conseqüência, a repressão continuou. No dia 18 de setembro, o exército ocupou o campus da UNAM, com a conseqüente violação da autonomia universitária. Continuaram as mobilizações e os enfrentamentos entre as corporações, tanto policiais quanto militares, e os estudantes, aos quais se haviam unido múltiplas pessoas (Ramírez 1998a[1969a]; 1998b [1969b]). Com a indignação social aumentando, a manipulação oficial dos fatos com o ocultamento das cifras acerca dos detidos e dos mortos, assim como o mutismo da Presidência da República para dar solução ao documento peticionário, o CNG convocou um comício com a finalidade de efetuar uma marcha de

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O Estado culpava os estudantes de tentarem gerar o caos durante as olimpíadas, de tratar de derrocar o estado burguês, de formar centros de resistência e de guerrilhas urbanas, de converter escolas em quartéis e das ruas em campos de batalha, de acusar Díaz Ordaz de ser um títere do imperialismo, de retomar ideal da revolução cubana, de lutar junto à classe operária pelo socialismo, de programar atos de terrorismo para destruir instalações públicas da Cidade do México e de hastear bandeiras marxistaleninistas para provocar o colapso do governo de Díaz Ordaz (Corona del Rosal 1995).

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protesto. Fixou-se a data de 2 de outubro, às 17 horas, na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco (figura 4). Era uma extensa área para alojar um amplo contingente, onde já se haviam efetuado imensas reuniões em 07 e 27 de setembro (Ramírez 1998a[1969a]). Nem os organizadores e nem as milhares de pessoas que assistiriam o comício suspeitavam que Tlatelolco estava por converter-se no cenário de um dos mais aberrantes atos genocidas da história moderna do México.

Figura 4. Plano da zona Centro-Oeste da Cidade do México, Distrito Federal, com a localização dos principais lugares mencionados no texto. 1) Palácio Nacional; 2) Tlatelolco: Praça das Três Culturas; 3) 3ª Delegacia do Ministério Público; 4) Serviço Médico Forense; 5) Cruz Verde (Hospital Rubén Leñero); 6) Cruz Vermelha; 7) Campo Marte; 8) Panteão Civil de Dolores; 9) Campo Militar nº 1.

Não lutamos pela vitória, lutamos pela razão7 Em anos recentes têm saído à luz textos e imagens que contribuem para o esclarecimento, em parte, dos fatos ocorridos em 2 de outubro de 1968. O general Marcelino García Barragán, secretário da Defesa sob o governo de Díaz Ordaz, legou, por ocasião de sua morte, documentos militares e outros reveladores documentos “para a história, já que esta se escreve a longo prazo” (Scherer e Monsiváis 2002). Em 1998, uma importante cadeia televisiva, deu a conhecer menos de 10 minutos das mais de 20 horas de material fílmico, com cenas que captaram várias câmeras que, por instruções da Secretaria do Governo, colocaram-se nos arredores da Praça das Três Culturas, no dia dos trágicos eventos (Canal Seis de Julho 2002; Gallegos 2000; Montemayor 1999: 429). Há, ademais, imagens fotográficas que sobreviveram a depredação que sofreram todos os diários da capital e que, El Universal, publicou em 2002 (Almazán 2002a; Rodríguez Reyna 2002). Igualmente, as impactantes tomadas de um fotógrafo (parecendo cumprir ordens do Secretário de Governo) que captou as vexações, das quais foram objeto estudantes que se abrigaram no edifício “Chihuahua” de Tlatelolco (Martínez 2001a; Gil Olmos 2001 a). Conta-se também com novos testemunhos de quem, por temer a repressão governamental, não tinha se atrevido a relatar o que viveu em 1968 e, por fim, romper o silêncio. Ressaltam, assim mesmo, o acesso público aos documentos desclassificados da CIA, do FBI, do Departamento de Defesa e da embaixada dos Estados Unidos da América, no México (Doyle 2003). Da mesma 7

Este e os subseqüentes subtítulos são lemas e consignas do movimento de 1968.

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maneira, os arquivos das extintas Direção Geral de Investigações Políticas e Sociais, assim como os da Direção Federal de Segurança (DFS), que constam de milhares de caixas com milhões de documentos, ainda que mutilados, nos quais se registram ações repressivas associadas ao massacre de Tlatelolco (Scherer e Monsiváis 2004). Ao fato de que estas peças que conformam um intrincado quebra-cabeças começam a unir-se, vem sendo reconstruída a história da matança de Tlatelolco. Com essas bases e fontes adicionais apresentamos uma versão canônica, onde se incorporam os fatos essenciais. A demonstração foi programada originalmente para marchar desde a Praça das Três Culturas8 até o local de umas das principais reuniões do IPN, relativamente perto. Os oradores do CNG haviam eleito o balcão do terceiro piso do edifício “Chihuahua”, da unidade de habitacional Tlatelolco (Figura 5), por sua altura e localização privilegiada, frente a grande explanada. Microfone a mão, fizeram saber aos assistentes que se cancelava a marcha por temor às ações de agitadores que levariam a repressão dos manifestantes. Prosseguiram, expondo a situação política e tinham a intenção, ademais, de relatar sobre a solidariedade internacional que vinha recebendo o movimento e os avanços das brigadas informativas, entre outros aspectos (Álvarez Garín 2002:85 [1998]).

Figura 5. Panorâmica da Praça das Três Culturas, desde o edifício “Chihuahua”, mostrando, em primeiro plano, as estruturas pré-colombianas da cidade de Tlatelolco e o templo de Santiago, parte do edifício da Secretaria de Relações, à esquerda. No centro, a explanada da praça com o monumento comemorativo aos caídos em 02 de outubro de 1968. Ao fundo, o edifício do ISSTE (foto de Jorge Martínez Herrera).

Pelas 17h30min horas do dia 2 de outubro de 1968, uma multidão, que chegou a ser calculada ao redor de 10.000 pessoas (Gil Olmos 2001b:18), cobria por completo o amplo espaço. De pé ou sentados no solo, congregaram-se pacificamente homens, mulheres, crianças, velhos, estudantes, professores, trabalhadores, jornalistas, uma

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“A praça ... é um retângulo de laje elevado de dois ou três metros sobre o nível geral do piso. Está rodeada pelas ruínas de Tlatelolco, ao poente; pela igreja de Santiago e, atrás delas, o edifício da Secretaria de Relações Exteriores, pelo sul; pelo edifício da Escola Vocacional nº 7, do IPN e por alguns edifícios de habitação da unidade, no norte; pelo edifício Chihuahua, no Oriente. Seus acessos principais são dois corredores estreitos e uma escada central de 25 a 30 metros de largura. Somente pelo lado norte o desnível é menor e pode-se sair facilmente” (Álvarez Garín 2002:86).

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delegação dos trabalhadores ferroviários que apoiava o movimento estudantil (Mendoza Gaytán 2004), gente comum como “vendedores ambulantes, empregadas domésticas com os filhos nos braços, habitantes da Unidade, transeuntes que se detiveram a curiosar, os habituais espectadores e muitas pessoas” (Poniatowska 1969). Ninguém suspeitava o motivo do por que, paulatinamente, chegavam tropas e policiais, inclusive tanques do exército, que se postavam nos principais pontos de acesso e ao redor da praça (Montemayor 1999). Tudo parece indicar que o grosso dos integrantes destes corpos desconhecia qual seria seu papel histórico. Além de manter a segurança pública era o de “desalojar os estudantes da Praça das Três Culturas empregando a prudência” (Scherer e Monsiváis 2002:111) e o de “repelir as ações dos grupos subversivos, no caso de que se apresentasse uma situação com armas de fogo, pondo especial cuidado em evitar, dentro do possível, desgraças com pessoas inocentes” (Rodríguez e Lomas 2001). Desde dias anteriores, os altos mandatários do governo haviam orquestrado uma operação cujos responsáveis era Díaz Ordaz, o Estado Maior Presidencial e, muito provavelmente, o Secretário de Governo, Luis Echeverría Álvarez, que se converteria em presidente, em 1970. De fato, na corrida pela sucessão, assegurou que Díaz Ordaz lhe dera a candidatura ante outros rivais, dos quais se avantajava em capacidades repressivas no fatídico ano de 1968, garantindo a continuidade de uma política de controle (Flores 2002; Petrich 2004). Echeverría usaria, ademais, suas influências e suas relações com a CIA para impulsionar sua carreira presidencial (Agee 1975). Em torno das 18h10min horas, um helicóptero lançou bengalas como sinal de início da operação por parte de franco-atiradores do Estado Maior, os quais não portavam uniformes e se encontravam localizados em vários edifícios, incluindo o “Chihuahua”. Também estavam no teto abobadado da igreja colonial (Figura 6). Dispararam indiscriminadamente contra civis e militares. Feriram o general que comandava os efetivos quando, com um megafone portátil, exortava aos assistentes do comício que se dispersassem (Álvarez Garín 2002:86 [1998]; Montemayor 1999:46). Os francoatiradores alimentaram o desconcerto com o objetivo de desatar uma escalada de violência no exército que repelia a agressão, assumida como responsabilidade de estudantes radicais. Os tanques ligeiros do Esquadrão Blindado avançaram sobre a praça esvaziando cargas de metralhadoras contra o contingente e na direção do edifício “Chihuahua”. Intervieram, ademais, o Batalhão de Fuzileiros Paraquedistas e o Batalhão de Guardas Presidenciais (Montemayor 1999:48), entre outros. Entre fogos cruzados, os civis fugiram apavorados para a igreja, transformada em paredão, ou bem, tratando de dirigirem-se para a saída lógica, localizada em um corredor entre a praça e o edifício “Chihuahua” (Álvarez Gárin 2002:86 [1998]), para serem interceptados por soldados que os atacavam com baionetas caladas, transpassando-os, crivando-os de baionetaços. Eram homens, mulheres, anciãos, crianças e, inclusive, mulheres grávidas (García Hernández 1998; O’Donell 2003). Caiam feridos em qualquer parte, sangrando, sem que ninguém lhes prestasse ajuda (Rodríguez 2002) ou desfaleciam sem vida. Os disparos alcançaram, inclusive, residentes de alguns apartamentos. Em um lapso de escassos dez minutos, a praça converteu-se em uma ratoeira e o edifício “Chihuahua” na armadilha. (Gil Olmos 2001b: 18).

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Figura 6. Localização dos franco-atiradores em vários imóveis circundantes à Praça das Três Culturas e direcionamento dos disparos. 1) Praça das Três Culturas; 2) Edifício “Chihuahua”; 3) Igreja de Santiago; 4) Escola do IPN; 5) Edifício da Secretaria de Relações Exteriores.

Paralelamente, nesse imóvel, os integrantes do Batalhão Olímpia9, membros da milícia sob o comando da Guarda Presidencial, vestidos de civis e que portavam como distintivo uma luva branca na mão esquerda, ou, quando na sua falta, um paninho branco atado com nó, cumpriram ordens claras e cirúrgicas: bloquear o edifício “Chihuahua”, deter os membros do CNG, tomar o segundo e o terceiro andar e atirar contra a multidão (Taibo 1998). Dentro do imóvel labiríntico, dispararam à queima roupa e impunemente contra os populares que buscavam refúgio dos apocalípticos balaços na praça. Neste local, o tiroteio prolongou-se por 90 minutos, atingindo alguns na planta baixa do edifício. Na praça, o tiroteio tornou-se esporádico. Intensificou-se, novamente, em torno das 11h00min horas da noite. Já pela madrugada, os soldados formaram uma montanha de corpos sem vida que depois foram transladados em veículos sem sigla nenhuma (Alcántara 2002b; Castillo 2003). Posteriormente, os bombeiros entrariam em ação. No meio de intensa chuva limparam os rios de sangue que corriam pela praça. Esta se encontrava atapetada com peças de vestuário enegrecidas pela pólvora - perfuradas pelas descargas das armas ou pelas baionetas -, sapatos, volantes do movimento estudantil, restos de crânios, dedos de pessoas (Almazán 2002c; Rodríguez 2002). Durante horas, o Batalhão Olímpia entrou à força nos apartamentos dos edifícios, em particular do “Chihuahua”, onde muitos estudantes se haviam refugiado nos terraços ou encontravam acobertamento com vizinhos. Foram detidos, golpeados, forçados a se despojarem de suas roupas, ficando apenas em trajes menores (Álvarez Garín 2002: 88 [1998]; Gil Olmos 2001a:12-13). Até pode ser confirmado, grande parte dos jovens que ficaram detidos extrajudicialmente foram transladados para instalações do exército (Almazán 2002b, 2002c; Scherer e Monsiváis 2004:25). A violência está contra nós, não em nós Desde a madrugada do dia 03 de outubro, os familiares daqueles que haviam desaparecido em Tlatelolco tentaram indagar sobre seu paradeiro em hospitais, tais como o Rubén Leñero de La Cruz Verde ou o da Cruz Vermelha, bem como, nas instituições judiciais e forenses da cidade. Em muitos casos, não tiveram êxito. Vários familiares foram obrigados a aceitar que se expedissem certificados de falecimento onde

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“O Batalhão Olímpia havia sido incorporado, em fevereiro de 1968, com a missão de custodiar as instalações e exercer serviços de ordem nas futuras Olimpíadas. Dependia diretamente, em linha de comando, do Estado Maior Presidencial e, por tanto, da Presidência da República. Havia sido formado por contingente oriundo de tropas de todo o país e tinha um número de suboficiais mais alto do que o normal. ...em 2 de outubro havia sido reforçado por duas seções de cavalaria” (Taibo 1998).

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constava que a morte tinha sido por causas naturais, condição para que lhes fosse entregue os corpos (Ramos Pérez 2002; Taibo 1998). Testemunhas da época viram como cadáveres de dezenas de crianças, jovens, mulheres e adultos, que concorreram ao comício de Tlatelolco, desfigurados e destroçados pelas balas expansivas de alto calibre e com baionetaços em suas costas (Almazán 2002c), jaziam no Serviço Médico Forense (SEMEFO) e na 3ª Delegacia do Ministério Público (Figura 7), entre outros centros e nosocômios. Poucos chegaram de ambulância ou em táxis. A maioria em caminhão do exército, nos quais seriam transladados os indivíduos que haviam falecido e que careciam de documentos que permitisse identifica-los, na tarde de 03 de outubro (Rodríguez Reyna 2002). Tal situação é altamente provável que teria acontecido em múltiplos casos, dado que seus executores os despojaram de suas roupas e pertenças pessoais. Até hoje em dia, é um enigma quantos morreram como resultado dos ferimentos que receberam na Praça das Três Culturas e o que ocorreu com o destino dos cadáveres.

Figura 7. Jovens massacrados na Praça das Três Culturas (Álvarez Garin 2002:35 [1998]).

Muitos dos ativistas que sobreviveram à matança na Praça das Três Culturas foram perseguidos. Houve inúmeros seqüestros. Centenas de pessoas ficaram isoladas e detidas sem ordem de prisão, atrás das grades, em instalações militares. Posteriormente, a maioria foi recolhida em penitenciárias. As vítimas foram objeto de todo o tipo de atrocidades e torturas, golpes e pressões morais, para obrigá-las a prestar declarações que coincidiriam com a história oficial dos fatos. Provas em contrário foram forjadas (Álvarez Garin 2002:112-113 [1998]; Correa 2001:31) e, inclusive, executadas sumariamente. A imprensa foi obrigada a calar-se. Agentes da Secretaria do Governo saquearam arquivos para garantir que desaparecessem as evidências gráficas: “estavam roubando a história” (Almazán 2002c). Todavia, continuava o massacre em Tlatelolco, quando, tanto nos noticiários quanto em quase todos os meios de comunicação, se dava conhecer a versão oficial apresentada pelo governo. Com poucas variações, assim consistia: o exército havia sido atacado por estudantes que atuaram como franco-atiradores. Não houve mais outra alternativa do que iniciar o combate diante de tal provocação (Álvarez Garin 2002:89 [1998]) daqueles que se dizia que eram terroristas e que pretendiam derrubar o governo de Díaz Ordaz. Os vitimários convertiam-se em vítimas.

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Os agentes do governo estadunidense acompanharam com suma atenção todas as fases do movimento estudantil, prévias ao massacre. Primeiro, com a convicção de que eram verazes os informes do governo do México acerca de que grupos comunistas estrangeiros assessoravam os mexicanos ‘subversivos’. Depois, passado o 02 de outubro, com a certeza de que nunca houve essa classe de incitadores nem conjura comunista alguma para ser refreada. Os espiões deixaram assentado em suas comunicações confidenciais, enviados aos seus superiores de Washington, que o ocorrido em Tlatelolco era um indício da torpeza do governo Díaz Ordaz e de que os dirigentes da milícia não acataram corretamente as ordens. Agregaram aos informes, sem nenhum questionamento, que os estudantes acusados como franco-atiradores haviam sido os responsáveis pela resposta do exército (Doyle 2003). Praticamente em um contexto de estado de sítio evitou-se qualquer ação coletiva dos estudantes, de maneira que os pressupostos “terroristas” não alterassem a “segurança pública”. Assim mesmo, houve várias marchas e comícios de protesto. Eram encabeçadas, inclusive, pelas mães dos desaparecidos (Figura 8), dos principais líderes estudantis que estavam encarcerados e dos ativistas ocultados, como precaução para não caírem presos. Com o medo generalizado, o movimento foi sendo desarticulado a passos gigantes diante do autêntico terrorismo imposto pelo Estado, já que o pensamento político que o fundamentou deixou semeada a semente em outros movimentos (Álvarez Garín 2002:199 [1998]).

Figura 8. Manifestação de outubro de 1968 encabeçada pelas mães dos desaparecidos (Scherer e Monsiváis 2002:148).

Calcula-se que, na matança em Tlatelolco, que foi um sangrento crime de Estado, intervieram mais de 8.000 efetivos de soldados, granadeiros, policiais da Cidade do México, polícia secreta de todas as categorias, polícia judicial e federal, Polícia Montada, integrantes do Batalhão Olímpia, bombeiros e 300 veículos (tanques, carros de combate, blindados e jipes com metralhadoras). A cifra de feridos alcançou o número de 700, enquanto que o número das pessoas que perderam a vida no massacre segue sendo tema de especulações. O saldo de estudantes e de trabalhadores que foram detidos chegou a 2000. Alguns deles foram postos em liberdade, passadas horas ou dias. A maioria sairia até dezembro de 1968. Mais de 800 indivíduos ficariam formalmente em

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prisão, sem julgamento algum, até que Echeverría decretou, desde a presidência, uma anistia, em 1971 (Taibo 1998; Zarco 1998). Em setembro de 1969, Díaz Ordaz assumiu publicamente sua responsabilidade dos fatos, legitimada nas atribuições constitucionais conferidas ao presidente da República. Anos depois, declararia seu orgulho de ter servido a nação, em 1968 (Canal Seis de Julho 2002). A final de contas foi sua mão dura que mobilizou as forças coercitivas do Estado. Garantiu que ao som das fanfarras e aos olhos das potências estrangeiras, desenrolaram-se os XIX Jogos Olímpicos, as ironicamente chamadas de “olimpíadas da paz”. Por meados de 1970, um ex-agente da CIA (Agee 1975) relataria que o governo mexicano destruiu o movimento de protesto e, provavelmente, várias centenas de vidas. O sucedido na Praça das Três Culturas estava ocorrendo em todo o mundo, entre as pessoas que tratavam de mudar o sistema. O exército é para defender o povo, não para agredi-lo As dimensões sociais e culturais da repressão no México são as que investem de poder e de significado o que é evidente, pelo fato de que o Estado está facultado para manipular a dicotomia da violência (Scheper-Hughes e Bourgois 2005:1-2), segundo o que está estipulado na legislação do país. Assim, a violência desatada pelo governo era legítima frente ao movimento estudantil. Este foi declarado ilegítimo a partir de provas artificiais10: sob tortura foram obrigados a assinar declaração na qual aceitavam, por exemplo, ter realizado delitos de incitação a rebelião, associação delituosa, sedição, dano em propriedade particular, ataques a vias de comunicação, roubo, despojo, porte de armas, homicídio e lesões contra agentes da autoridade (Martínez 2003). Por conseqüência, a resposta das forças públicas ‘da ordem’ era permissível e as ações dos ‘agitadores’ estavam sujeitas a sanções por serem ilícitas. A mesma construção de uma narrativa histórica oficial, o roubo da história, constituiu um ato violento. Nos atos repressivos e sanguinários do governo, as recordações são selecionadas e controladas para extirpar tudo o que se relacione com a indignação moral. Por acréscimo, elimina-se da memória histórica. Qualquer protesto é etiquetado como subversivo. Manipula-se a contagem dos cadáveres até volatilizá-los. A amnésia forçada constitui um instrumento coercitivo do Estado (Monsiváis 2001: 21-22). O desaparecimento forçado de pessoas é um crime contra a humanidade, segundo o direito internacional. Nos sistemas políticos democráticos, ainda que sejam nas aparências, como no caso de mais de 70 anos da história mexicana, os crimes que comete o governo contra setores inconformados da população, devem ser categorizados como terrorismo do Estado. Tal circunstância gera a impunidade, ao impedir o prosseguimento nas investigações que aporte provas para perseguir e castigar os culpados dos atos genocidas, como o de 2 de outubro de 1968 (Martínez 2001b:29,31). O genocídio, segundo tratados internacionais subscritos pelo México, inclui aqueles atos que se cometem com a intenção de eliminar, em seu conjunto ou em parte, grupos

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Para o Estado, a finalidade do movimento estudantil era “derrubar o governo constituído na República Mexicana e substitui-lo por um regime comunista de operário, estudantes e camponeses” (Castillo et all. 2002).

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nacionais, étnicos, raciais ou religiosos; de assassinar membros destes grupos ou causarlhes sérios danos físicos e mentais e, inclusive, submeter o grupo a condições de existência que acarretem sua destruição física, total ou parcial (United Nations 1951 [UN]). Além do mais, é preciso considerar que os desaparecidos não estão mortos. Estão desaparecidos: ...considera-se desaparição forçada, a privação da liberdade a uma ou mais pessoas, qualquer que seja a sua forma, cometida por agentes do Estado ou por pessoas ou por grupos de pessoas que atuem com a autorização, o apoio e a aquiescência do Estado, seguidas da falta de informação ou da negação em reconhecer dita privação da liberdade ou de informar sobre o paradeiro da pessoa, com o qual se impede o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes (Comissão Inter-americana de Direitos Humanos 1995 [CIDH]). A prática de desaparecimentos forçados, na América Latina, data de princípios do século XX. Consolidou-se na década dos 1960. A lógica desse mecanismo, se é que a tem, é que, ao desaparecerem as vítimas, não há vitimário e nem delito. Esta política repressiva instaurou-se, principalmente, por ditaduras militares. Foi aplicada, no caso de alguns países - o México, a Colômbia e o Peru, por exemplo - por governos “democraticamente” eleitos (Molina Theissen 1998). No México, a mascarada ditadura do PRI e o poder de todo o seu aparato de Estado, incluindo centrais operárias e camponesas, solidificou um marco de submissão social que afeta todos os setores do país. Possibilitou que, dentro de um marco jurídico nacional, as desaparições fiquem impunes até o presente. A partir de dezembro de 2000, a ascensão à presidência de Vicente Fox, do Partido da Ação Nacional (PAN), representou esperanças de que ocorreria a “mudança” democrática, prometida em sua campanha como candidato. Da mesma forma, geraram-se expectativas entre os familiares e amigos dos desaparecidos e do povo mexicano em seu conjunto. A instauração, em 2002, da Fiscalização Especial para Movimentos Sociais e Políticos do Passado (FEMOSPP) parecia responder as demandas que nunca foram atendidas com rigor e transparência. No entanto, os avanços têm sido limitados e a impunidade persiste, não só com os casos do passado, senão que a estes se somam outros de desaparições forçadas e de execuções extrajudiciais, no atual regime (Anistia Internacional Seção Mexicana 2005; Avilés Allende 2002; Castillo 2005; Correa 2002; Granma 2004; Sullivan 2005). Os desaparecidos do movimento estudantil de 1968 podem ser caracterizados como pessoas privadas de sua liberdade por agentes do Estado ou com autorização deste, de tal forma que não se lhes pode considerar, em definitivo, como mortos. Organizações de familiares dos desaparecidos exigem a volta de seus familiares, com consignas como a do Comitê “Eureka”11: “Vivos os levaram, vivos os queremos” (Herrera e Castillo 2003). Ou declarações como:

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Comitê Pró Defesa de Presos, de Perseguidos, de Desaparecidos e de Exilados Políticos. É uma das primeiras organizações de direitos humanos que se constituiu no México (Anistia Internacional 2002).

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Não decidiremos que estão mortos. Isto simplesmente não se decide. Eles estão desaparecidos. É precisamente o que o mau governo espera de nós. Que assumamos o pior, sem dizer e nem assumir responsabilidades. Que esqueçamos. Que sintamos que este é um assunto do passado, em de vez um, dilacerante, de nosso presente (HIJOS-MÉXICO 2005). Com isto, é factível pensar que não só deve-se determinar o paradeiro daqueles que sucumbiram ante os balaços da Praça das Três Culturas, senão que, também daqueles indivíduos que tenham ficado sob a categoria de desaparecidos. Dentre estes, um número indeterminado foi assassinado, daí a pertinência de delinear um plano de investigação forense que chegue a contribuir para com o esclarecimento dos fatos. Não mais armas do que seu sangue As fontes documentais coincidem em que, na madrugada de 03 de outubro, os soldados estavam empilhando uma infinidade de cadáveres na Praça das Três Culturas (Alcántara 2002b). Um general declarou ter visto 38 cadáveres de civis na explanada da praça, corpos de 4 soldados nesse mesmo lugar, além de uma criança que sucumbiu com balaços no edifício “Chihuahua” (Corona del Rosal 1995). Vários dos manifestantes sobreviveram, ao ficarem protegidos pelos corpos dos caídos no tiroteio. Foi o caso de um jovem sul-americano que conseguiu cobrir-se com os corpos sem vida de um ancião e de uma mulher, dois, dentre a centena dos cadáveres que viu (Anonymus 1968:16). Por um testemunho de um ex-piloto da empresa paraestatal PEMEX (Petróleos Mexicanos), o qual diz ter participado no translado de corpos de Tlatelolco, sabe-se que houve cadáveres que foram arrojados no mar. Tal informação coincide, em parte, com a documentação integrada as investigações da Comissão da Verdade, nas décadas dos anos 1990, onde se faz constar que aviões militares arrojaram corpos no Golfo do México (Taibo 1998). Existem testemunhos sobre o que, paralelamente, ocorria nos hospitais, aonde chegaram bastante feridos, inclusive de morte. Segundo relata um fotógrafo, o qual “recorda muito a um jovem ... atirado em um dos corredores. Um balaço havia rebentado o estômago. Sou da Universidade de Sinaloa, diz o jovem ao fotógrafo. Queres que avise a alguém? Não, vão se enfurecer. Em um momento, quando regressei para tirar outras fotos, o jovem seguia estendido no piso, já morto” (Almazán 2002c). A brutalidade com que foram massacradas centenas de pessoas ficou evidenciada nos testemunhos dos médicos que atendiam aos feridos nos nosocômios. Recordam o ocorrido no Hospital Leñero da Cruz Verde que, “... era um rastro, chegavam ensangüentados, sem mãos, baleados” (Aguirre 2002). Ajudantes no SEMEFO foram testemunhas da matança cometida. Afirmam sobre os corpos. “Têm algo em comum: mostram o uso adestrado das baionetas e dos disparos de armas de fogo com balas expansivas. Sabiam onde atacar. As feridas não estão nos braços, nas pernas ou em um pé. Estão no coração e nos órgãos vitais”. Inclusive, para eles, era impressionante ver que “os cadáveres tinham destroçado o tórax”. Mostram o “crânio desfeito por instrumento cortante-contundente”. É evidente um “traumatismo brutal”. Observa-se em um corpo uma “ferida por projétil expansivo na cabeça”. As “feridas apontam para o coração”. Há “grande fluxo de sangue sobre o abdômen”...”Eram balas do exército. O soldado na batalha tem um propósito: destruir, matar...” (Rodríguez Reyna 2002).

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A crueldade repressiva manifestou-se nos nosocômios ante a impotência dos médicos e das enfermeiras que tratavam inutilmente de cumprir com seu dever. Pois “os granadeiros e os [policiais] secretos vinham e nos tiravam os jovens dos quirófanos, onde os estávamos operando, e os levavam. Onde foram estes jovens e se morreram, ninguém o sabe” (Taibo 1998). Diz-se que na 3ª Delegacia do Ministério Público havia mais de 40 cadáveres de jovens entre os 18 e 20 anos (Canal Seis de Julho 2002) cujo paradeiro se desconhece. Na maioria destes casos, mesmo pelo que apontaram os vizinhos do bairro que, comentaram que durante os dias posteriores da matança “cheirava a carne queimada, pois, diziam, estavam queimando os jovens em fornos” (Almazán 2002b). Muitos dos corpos que se encontravam no SEMEFO, em 03 de outubro, despojados de suas roupas e de identificações12, foram desaparecidos pelo exército, pois: Entravam militares. Vinha falar com o diretor. Baixavam os militares, subiam... As instalações estavam como que tomadas por militares. O controle tinham eles. Metiam-se no anfiteatro, estavam ali. Assomavam-se... Na tarde, chegaram veículos do Exército a recolher os corpos que não tinham identificação. A ordem foi que os levassem ... (Rodrigo Reyna 2002). Surge a pergunta: para onde transladaram os cadáveres e o que se fez com eles? Para tanto há que se levar em conta uma série de testemunhos que falam da possibilidade de que alguns corpos foram cremados e outros enterrados pelo exército, em instalações militares da Cidade do México, como o Campo Marte, o Campo Militar nº 1, no Panteão Civil de Dolores, próximo ao último campo citado. Também nas faldas de um vulcão extinto que se encontra relativamente próximo da Cidade do México. Cabe destacar que, antes do massacre de 02 de outubro e em meio à repressão que havia desatado o governo contra os estudantes “a um correspondente estrangeiro que perguntou se já se haviam identificado alguns dos estudantes que se diz que morreram o comitê [de greve] lhe disse que, de um lado ‘ao governo não lhe convém apresentar os corpos’, de outro, ‘ temos notícias de que os corpos foram cremados no Campo Marte” (Ramírez 1998a:202 [1969a]). Adicionalmente, entre os ativistas da época, soube-se que depois dos sangrentos eventos em Tlatelolco, vários corpos foram transladados em veículos militares e em carros de combate, para o Campo Militar número 1, onde foram incinerados. Neste local, da mesma forma, inclusive alguns indivíduos feridos, ainda vivos, pois “desses veículos saiam, todavia, lamentos e assim os queimaram ... sobre eles agiram nossos soldados mexicanos” (Alcántara 2002a). Acrescentado a estes terríveis testemunhos, causa suspeita que os altos mandatários do exército sigam pretendendo que não houve cremação de cadáveres em instalações da milícia e, menos ainda, em tal Campo: Diziam que se utilizou, para incinerar, cinco mil cadáveres. Ponho-me a pensar que, para cremar um cadáver se demora três horas e, em primeiro lugar, aí não existe incineradores. Em segundo lugar, e, o mais importante, onde estão estas cinco mil mães. Porque diziam que houve esse número de mortos em Tlatelolco, 12

Em um informe do diretor do SEMEFO, com data de 17 de outubro de 1968, registra-se que somente houve “26 vítimas reconhecidas” (Cuellar 2003).

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..., que lutariam como as Mães da Praça de Maio, na Argentina. Se alguém é culpado, que se o acuse (Garduño y Pérez 2001). Por outra parte, o já citado Luiz Echeverría Álvarez, titular da Secretaria de Governo em 1968, e que, como possa parecer, teve uma participação ativa na matança de Tlatelolco, já como presidente do México, orquestrou outra operação. Em 10 de junho de 1971, uma manifestação estudantil pacífica foi reprimida pelos “Falcões”, grupo paramilitar sob as ordens diretas do governo, com um saldo extra oficial de até 125 mortos (Ramírez Cuevas 2003). Desta quinta, do Corpus Christi de 1971, há um testemunho de que o presidente fez circular instruções telefônicas acerca do que devia fazer-se com os aprisionados e com os mortos. Echeverría, talvez com base em suas experiências em outubro de 1968, foi enfático: Feridos? Leve-os ao Campo Militar. Não permitam fotografias ... Ferido um dos nossos? Morto? Ao Campo Militar. Existem mais enfrentamentos, muitos mortos? Todos para o Campo Militar. Para a Cruz Verde? Não, não. Não permitam fotos. “Queime-os” ... Queimem os mortos. Que não reste ninguém. Não permitam fotografias (Scherer e Monsiváis 2004:52-53). Ainda quando a referência não se associa de maneira direta com o massacre de Tlatelolco, indicaria que a cremação de corpos dos opositores ao sistema era uma prática utilizada e conhecida pelos altos mandatários do governo. Devido ao fato de terse feito desaparecer os cadáveres com a destruição dos restos ósseos pela ação do fogo, a investigação forense enfrentaria obstáculos intransponíveis. Por conseqüência, entre as instalações militares, destaca-se uma em particular, sobre a qual se faz referências em relatos do exército13 (Rodríguez e Lomas 2001), alem de que é recorrente nos testemunhos dos que ficaram atrás das grades, em outubro de 1968. Um de nossos informantes foi detido semanas antes do evento sangrento, por fatos não vinculados com o massacre de Tlatelolco, em função de suas ligações com organizações de esquerda desde muito tempo. Depois de sofrer torturas físicas, ficou preso, isolado e incomunicável em um cubículo localizado num compartimento subterrâneo, no Campo Militar número 1. Segundo relata, a pior tortura que quase o enlouqueceu foi que ninguém falava com ele. Este silêncio foi quebrado por um soldado, com o qual tratava de obter informação acerca de atividades guerrilheiras e sobre o movimento universitário. Dito soldado, o informou que, por ter falado com ele, os seus superiores o haviam castigado. Isto é, não o enviaram a Tlatelolco, apesar de seu “desejo de matar estudantes”. Até a madrugada de 3 de outubro, foram aprisionados neste cubículo, centenas de participantes na manifestação da Praça das Três Culturas, alguns feridos. Dias depois, ele e outros dos detidos, foram liberados, uma vez que se obrigaram a vestir uniformes do exército. Para seu assombro, entre as listas de desaparecidos e mortos na noite de 2 de outubro, encontrou seu nome. Seus companheiros o aconselharam que, para seu próprio bem, evitasse esclarecer diante das corporações policiais que continuava vivo. 13

Assim como em outros dos fatos ocorridos em 1968, as fontes governamentais são contraditórias. Há o caso de um general que nega categoricamente que no Campo Militar número 1 houvera torturas e que lá desapareceram os estudantes capturados em 2 de outubro de 1968. Presumivelmente, só ficaram detidos de forma transitória e, deste local, simplesmente conduzia-se os estudantes as autoridades civis, cujas instalações careciam de espaço adequado (Garduño e Pérez 2001). Um testemunho adicional, de alguém que se diz ser irmão de um soldado, relatou que nesse campo militar há milhares de cadáveres em fossas clandestinas.

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Dentre os ativistas do CNG que ficaram presos até janeiro de 1969, no Campo Militar número 1, para depois serem liberados, um deles nunca mais foi visto. Trata-se de um caso de desaparecimento forçado, como conseqüência direta da repressão estudantil de 1968 (Castillo e Méndez 2005). Estes testemunhos complementam a outros análogos. Evidenciam que, possivelmente, alguns dos desaparecidos foram executados extra judicialmente por seus captores: Alimentaram-nos muito bem, porém, na noite ouviam-se disparos e alguns dos que nos vigiaram diziam que estavam formando ‘quadro’, que estavam matando a alguns ... no Campo Militar número 1 nos levaram a cubículos com camas de metal. Despertaram-nos pela meia noite e nos diziam que iam nos fuzilar. Havia ferroviários, funcionários de banco, estudantes. Golpeavam-me muito. A tortura também era psicológica. Retiravam pessoas e se ouviam tiros. Todos temiam. Nunca vi que regressassem (Gil Olmos 2001a). Com relação à inumação daqueles que foram assassinados, tempos atrás, um dos integrantes do movimento estudantil de 1968, já desafortunadamente falecido, comentou, com seus companheiros de luta, que os coveiros do Panteão Civil de Dolores o haviam informado que ali se depuseram corpos do massacre de Tlatelolco. Estavam em tumbas legalmente registradas e, inclusive, mostraram em que zonas do campo santo se encontravam os cadáveres. Não obstante, o dado preciso desta informação, perdeu-se com a morte deste ativista. Por tal situação, carece-se de segurança com relação a esta localização. Além disso, um afamado caricaturista mexicano, cuja obra se centra na sátira política, declarou que foi seqüestrado nos inícios de 1969 (Sánchez González 2004) e esteve a ponto de ser executado por agentes da DFP, os quais o confessaram que “em um local do Nevado de Toluca havia umas árvores marcadas com cruzes, debaixo das quais estavam enterrados alguns dos desaparecidos de 1968” (Aranda 2002). Por conseqüência, com base nas fontes documentais e nos testemunhos, é altamente provável que, ao menos no Campo Militar número 1, no Panteão Civil de Dolores e em um ponto indeterminado do Nevado de Toluca, poderia ser factível recuperar restos ósseos de alguns dos indivíduos que perderam a vida no massacre de Tlatelolco. Da mesma maneira os restos de outros que ficaram detidos e foram executados tempos depois. Porém, cabe questionar de quantas pessoas poderia tratar-se. O governo confeccionou e impôs uma história oficial em torno dos fatos ocorridos em Tlatelolco. Em definitivo, é difícil estimar quantos morreram entre 2 e 3 de outubro de 1968, entre julho e estas datas, quando dos enfrentamentos entre as forças da ordem e os estudantes, ou, posteriormente, ao menos até os inícios de 1969. Em meados de 1970, o ex-presidente Díaz Ordaz, freava sardonicamente as tentativas de esclarecer o número dos caídos sob os balaços: ... mencionam centenas de mortos, desgraçadamente houve alguns, não centenas. Tenho entendido que passaram de 30 e não chegaram a 40, entre soldados, amotinadores e curiosos. Dir-se-á que é muito fácil ocultar e diminuir, porém, eu intimo a

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quem tenha valor de suas próprias opiniões e sustenta que foram centenas, que apresente alguma prova, ainda que não seja direta e concludente. Poderia-nos bastar com o seguinte. Que nos faça uma lista com os nomes. Poderá dizer como já se disse em outras ocasiões, que se deseja ... fizeram-se desaparecer os cadáveres, se ocultaram clan... sepultaram-se clandestinamente, se incineraram, isso é fácil; não é fácil fazê-lo impunemente, porém é fácil fazê-lo ... (Canal Seis de Julho 2002). Causa assombro o evidente descaramento e a prepotência nestas palavras, “tenho entendido que passaram de 30 e não chegaram a 40”. Como se a diferença entre um número e outro, na perda de vidas humanas, não fosse importante. Na madrugada de 3 de outubro de 1968, estas cifras foram impostas pelos agentes governamentais que tomaram as instalações dos jornais, para destruir as crônicas dos eventos e levar os materiais fotográficos, gritando: “Las fotos, cabrón, las fotos!... Nada mais do que 33 mortos, 33! Ah? Essa é a cifra oficial! ... São ordens do Governo, de Echeverría! ... É uma ordem presidencial! Díaz Ordaz quer ocultar tudo! Ocultar tudo!” (Almazán 2002c). A partir deste momento, durante muitas décadas, essa foi a quantidade de mortos no massacre. Foi predeterminada pelo governo, ainda que com inconsistências. Porém, os sobreviventes e as testemunhas começaram a falar e a mencionar que haviam visto muitos corpos no edifício “Chihuahua”, onde “... havia vários cadáveres empilhados, na saída. Um soldado me disse que não continuasse dando voltas e, de relance, consegui ver os cadáveres, um em cima do outro. Estavam seminus” (Gil Olmos 2001a). Um pai, desesperado, tratava de localizar seu filho. Afirmou ter visto 121 vítimas sem vida (Jardón 2003:38). Enquanto isto, no SEMEFO “... já começava a se juntar gente, buscando seus familiares. Toda essa madrugada houve enormes filas de carros fúnebres. Eu devo ter visto mais de 500 cadáveres, todos mortos por balaço” (Almazán 2002c). Este cálculo se reforça com o que comentou um soldado com um dos estudantes estrangeiros detidos no Campo Militar número 1, orgulhoso de que os militares haviam matado “500 de vocês, comunistas” (Anonymous 1968). Entre os ativistas do CGG, tem-se falado, recentemente, de 635 estudantes que foram assassinados na Praça das Três Culturas (Alcántara 2002a), enquanto que Agee, detrator da CIA, recorda que na Embaixada dos Estados Unidos no México o rumor era de que tinham sido crivadas 82 pessoas, podendo passar de uma centena ou mais de mil (Rocha 2002). A constante ausência de denúncias, desde aquela época, foi o resultado de que o governo e os envolvidos nos fatos têm mantido sob ameaças, as testemunhas, os sobreviventes, os familiares e os amigos de todos aqueles que desapareceram, para garantir seu silêncio. “... nos dias, semanas, meses e anos que se sucedeu a matança de Tlatelolco era comum escutar as denúncias dos familiares das vítimas. ‘Além de nosso penar, nos ameaçam com a morte’. Muitos ... cessaram na busca pela justiça, outros, organizados ou não continuam nela” (Alcántara 2002a). Vemos-nos forçados, portanto, a regressar a pergunta que formuláramos. A mesma segue sem resposta, já que a DFS incorreu em contradições ao maquiar a história oficial e, com sangue, “arredondou” para 30 o número de pessoas assassinadas. Nas listas expedidas em 4 de outubro de 1968, o saldo era de 26 mortes que, incluíam 4 mulheres e um soldado. No entanto, na lista de 31 de janeiro de 1969, figuravam 26 civis, 2 militares e mais uma criança cujo nome aparecia tanto na relação dos mortos quanto na

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dos feridos (Jardón 2003: 38). Em 6 de outubro de 1968, integrantes do CNG declararam que, até este momento, se sabia que 100 pessoas haviam perecido, ainda quando se considerava que o saldo final dos mortos em Tlatelolco não tinha sido fechado (Ramírez 1998b:410 [1969b]). No estrangeiro, os meios de comunicação falavam de 130 estudantes e de até 325 mortos (Jardón 2004:40). Cálculo semelhante fez um operador de câmera de acordo com o número de caminhões nos quais se transportaram os corpos, uns 300, desde a Praça das Três Culturas, na madrugada de 3 de outubro (Caballero 2003). Além do mais, há que se levar em conta os documentos desclassificados, dos serviços de inteligência norte-americana, entre os quais existe um relatório confidencial onde se menciona que “... como é típico no México, as estatísticas precisas com respeito ao número de mortos na batalha de 2 de outubro, não se pode determinar. Os informes que se tem recebido alcançam até 350 mortos. O melhor cálculo da embaixada é que esta cifra vai de 150 a 200” (Defense Intelligence Agency 1968:9). De tal forma, a versão do governo fica claramente superada por outras fontes e testemunhos disponíveis que indicam que, como resultado dos fatos violentos do 2 de outubro, tal vez se perderam 500 vidas humanas. No saldo definitivo haveria, além disso, que agregar um número indeterminado de pessoas que foram executadas extra judicialmente no Campo Militar número 1, em datas posteriores. Também um número em torno de 200 mortos que se reportou para fins de julho (Ménendez Rodríguez 1968a), dos quais se desconhece sua sorte, já que, ao que se parece, um número indeterminado de cadáveres foram cremados. Ficaria, então, por elucidar qual foi o destino de, talvez, cerca de 700 ou mais pessoas que pereceram em mãos do governo nos fatos violentos que se iniciaram em julho de 1968. Unidos venceremos! Para além das demarcações do campo de ação das diferentes ciências forenses ou da aplicação de heurísticas específicas, a concorrência de disciplinas no esclarecimento dos fatos violentos que resultaram na morte de seres humanos está determinada pelos sistemas jurídicos vigentes em cada país que, restringe, anulam ou promovem a participação de especialistas nos estudos (Boddington et all. 1987; Hunter et all. 1996; Joyce e Strover 1991; Rodríguez 1994; Sanford 2003; Skinner et all. 2003; Stewart 1979). No que diz respeito ao México, a Arqueologia é competência do Estado e do exercício profissional. De tal maneira que, através de legislação relacionada com o patrimônio cultural pré-histórico pré-hispânico e histórico (até os últimos anos do século XIX), em seu conjunto, é propriedade da nação. Os arqueólogos são os únicos facultados para levar a cabo investigações enfocadas no estudo dos materiais do passado. Estes incluem bens móveis e imóveis, assim como restos humanos, em cuja recuperação podem intervir antropólogos físicos, sempre e quando for dentro de um marco de projetos supervisionados por arqueólogos. Desde a prospecção, passando pela escavação, até a análise dos materiais, os projetos, programas de trabalho e informes são sancionados pelo Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH). É o organismo federal através do qual o Estado pode impedir a consecução de estudos específicos com base nas disposições regulamentares do mesmo INAH. As intervenções em contextos arqueológicos que datam do século XX ficam, por conseqüência, legalmente excluídas da investigação arqueológica no país. Para tal, não se conta com um marco jurídico que

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sustente a Arqueologia Forense como parte da estratégia de investigação da Arqueologia Histórica, como ocorre em outros países (Cox 2001; Crist 2001). A Antropologia Forense também se encontra em um limbo legal. Nela participam antropólogos físicos em análises forenses, fundamentalmente de laboratório. Estão sujeitadas aos delineamentos do SEMEFO e da Procuradoria Geral da Justiça ou, em sua falta, das procuradorias estatais, que marcam que nas ações periciais, os médicos forenses, nos processos penais, devem intervir e expedir quaisquer ditames para possam ser avaliados ante o Ministério Público e as autoridades judiciais. Em condições especiais, a Suprema Corte da Justiça pode autorizar que atuem peritos especiais externos as instâncias governamentais, via pela qual, eventualmente, poderiam incorporar-se tanto arqueólogos quanto antropólogos físicos em investigações que pudessem contribuir com a definição do que ocorreu com aqueles que desapareceram na raiz do movimento estudantil de 1968. Por conseqüência, se requereria implantar um projeto arqueológico interdisciplinar, no qual, participariam ativamente tanto arqueólogos quanto antropólogos físicos, criminalistas, médicos, historiadores, sociólogos, economistas, especialistas em legislação nacional e internacional em matérias de crimes contra a humanidade e de violação dos direitos humanos. O objeto teórico e as repercussões práticas deverão centrar-se na explicação dos fatos associados com os crimes de Estado e sobre qual é o paradeiro das pessoas que foram objeto de desaparecimentos forçados. Os especialistas existentes no México têm sido formados no próprio país. Em determinadas ocasiões têm complementado seus conhecimentos no estrangeiro. O que falta é a disposição política do Estado, para empreender um estudo científico do massacre de Tlatelolco e de suas seqüelas. Para realizar investigações desta classe seria necessário organizar um projeto acadêmico e social de recuperação da memória histórica. Seria integrado por especialistas nos diferentes campos a investigar, por sobreviventes e por familiares dos desaparecidos. Os estudos se enfocariam em tratar de esclarecer os fatos de violência e suas causas, analisando os antecedentes do movimento estudantil e suas fases, reconstruindo os contextos históricos, políticos, sociais, econômicos e militares. Uma das metas seria a identificação tanto dos atos quanto dos atores da violência e do terrorismo desde o Estado: as vítimas da repressão como grupos e em nível individual, além da localização dos mortos e dos desaparecidos (Echeverria 2004; United Nations [UN] 1991), para assim, definir as bases que possibilitem ajuizar os responsáveis pelos crimes. Com relação ao movimento estudantil de 1968, estas tarefas são extremo complexas. O Estado destruiu ou, todavia, mantém oculta a documentação que deveria aportar provas que sustentem os fatos, incluindo listas completas com os nomes daqueles que foram vitimados. Isto porque os amigos e familiares das vítimas têm preferido calar ante as ameaças do governo e continuam sem apresentar denúncias (Castillo 2004:7). Ainda quando existem testemunhos acerca de alguns locais onde possivelmente se inumaram corpos (Campo Militar número 1; Panteão Civil de Dolores e o Nevado de Toluca, ao menos), até o presente, não se conseguiu realizar intervenções arqueológicas por serem instalações do exército que estão sob o foro militar, de maneira que não tem sido factível corroborar a presença de fossas clandestinas. Este tipo de investigações poderia efetuar-se em dois sentidos. Por um lado, haveria que recolher informação entre os funcionários governamentais que foram protagonistas ou

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co-participantes dos fatos, desde a cúpula, dado que o presidente é o chefe supremo das forças armadas e responsável pelas políticas seguidas dentro do país. Na mesma linha, desde os mandos médios e baixos, passando por todas as autoridades federais, locais, judiciais e militares, assim como, com os empregados e prestadores de serviço de saúde nos casos muito específicos. Por outro lado, pode-se investigar os fatos desde baixo. Baseando-se nos testemunhos dos sobreviventes, dos executores e daqueles que estiveram envolvidos como indivíduos ou coletivamente nos atos de violência e repressão ou que foram objeto de vexações, tratando de reconstruir os eventos que ocorreram. O trabalho de Arqueologia e Antropologia forenses, em particular, se centraria na recuperação dos restos ósseos daqueles que foram massacrados na Praça das Três Culturas. Assim como, daqueles que foram detidos e posteriormente desapareceram ao serem assassinados pelos seus captores, considerando que seus corpos foram depositados em lugares clandestinos. Os estudos constariam de cinco fases básicas e de uma complementar, de apoio aos familiares e aos sobreviventes: 1. Histórica: recuperação de fontes documentais de arquivo, hemerográficas, filmográficas, fotográficas e audiofônicas. 2. Testemunhal: recopilação e processamento da informação obtida de maneira oral dentre as testemunhas dos fatos ou dentre aqueles que tiveram conhecimento destes, através de terceiros, mantendo, com este procedimento, o anonimato daqueles que revelaram dados. 3. Legal: apresentação de denúncias, solicitações e trâmite de permissões para realizar trabalhos de campo (prospecção e escavação) condizentes com a exumação de restos, expedição de ditames de acordo com os requerimentos do aparato judicial, entre outros. 4. Arqueológica: prospecção geofísica e escavação de depósitos, definição dos processos naturais e culturais de formação dos contextos de enterramento (Schiffer 1987), registro detalhado, recuperação controlada de evidências materiais, seleção de amostras do campo para análises específicas de especialistas, reconstrução da posição anatômica dos indivíduos em campo e em laboratório, assim como análises de artefatos em laboratório. 5. Antropológica: recuperação in situ dos restos ósseos, análises de laboratório, principalmente as osteométricas, osteológicas, odontológicas, genéticas e químicas, requeridas para a identificação dos indivíduos e para a determinação das causas que provocaram as mortes. 6. Psicológica: tratamento de saúde mental, incluindo os tanatológicos quando necessário, de apoio aos familiares das vítimas. Os resultados das intervenções fariam parte de um informe técnico no qual se detalhariam todas as tarefas realizadas e o processamento dos dados analíticos que se conjugariam com os testemunhos e com os registros pessoais das vítimas. Além disso, a explicação das razões que permitiram a identificação de indivíduos quando tenha sido factível.14 Com base nestes informes, conforme o correto, poder-se-ia apontar responsabilidades e requerer os delitos, segundo o caso, tarefa que corresponderia a juristas e a outros especialistas.

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Equipe de Antropologia Forense da Escola Nacional de Antropologia e História (EAFENAH) que, em 1998 e 1999, elaborou uma metodologia quando participou no estudo de restos ósseos de desaparecidos na República da Guatemala.

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A cor do sangue jamais é esquecida No México, o passado se inserta no presente, no imaginário coletivo e nas lutas sociais ao tratar-se de eventos que ensangüentaram o país. Preserva-se e se reproduz a memória dos fatos violentos dirigidos pelo governo para truncar ações reivindicatórias daqueles que pugnam por aberturas políticas e libertárias. O Estado cala as vozes de protesto pela via da força através da imposição do terror e do assassinato. Desde anos até o presente, mantêm-se os privilégios de um regime corrupto e corruptor (Reding 1995). Apesar dos clamores que exigem justiça e o castigo dos responsáveis por assassinatos políticos, desaparecimentos forçados, torturas e genocídio, prevalece a impunidade dos executores15. Vitimários que orquestraram massacres negociaram e executaram ordens para matar inocentes, cujo único pecado foi externar sua opinião contrária a governamental. Apesar de que desde 2001 existe um marco de presumível abertura e acesso a informação, o direito a verdade das causas de incidentes passados se parcializa, pois, mutilam-se os poucos acervos documentais abertos à opinião pública, enquanto que outros se conservam em arquivos secretos do Estado (Scherer e Monsiváis 2002, 2004). Organismos, como a Anistia Internacional, reportam que continuam as apreensões ilegais, a tortura, a violação dos direitos humanos e o desaparecimento de pessoas (Anistia Internacional 2001, 2002) que se atrevem a impugnar o status quo, de participantes de movimentos políticos tanto nos âmbitos urbanos quanto nos rurais. Para massacres como o de 2 de outubro de 1968, a impunidade dos altos mandatários do país, do exército, da presidência mesma, tem sido cimentada ao silenciar os executores de menor categoria, nulificando e inclusive assassinando testemunhas e atores que poderiam ter implicado seus superiores (Maza 1988). Outra via para evitar que se faça justiça, sustenta-se em um marco jurídico ambíguo, de maneira que a tipificação dos crimes exime os responsáveis de sua culpa, devido ao tempo transcorrido. Este tem sido um eficiente mecanismo para manter ocultos os crimes de lesa humanidade, de genocídios que caracterizam o sistema político mexicano ano após ano, administração após administração. Uma exigência social é que devem ficar assinalados os responsáveis pelos atos criminais e, como declararam os integrantes da organização ‘HIJOS-México’ (Filhos pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio), a única reparação possível para com aqueles que têm crescido rodeados pela ausência, rechaçando que a morte tenha sido o fatídico destino dos desaparecidos (HIJOS-México 2005). Apesar da cumplicidade do aparato da justiça mexicana, ainda se consiga esclarecer qual foi o paradeiro dos seus seres queridos, desde o início da Guerra Suja16 de 1968 e, ao transcorrer das décadas de 1970 e inícios dos anos 1980. A memória segue debatendo-se contra o esquecimento, mesmo quando as ações reivindicatórias poucas vezes têm as repercussões legais requeridas. Recentemente reportou-se que os sobreviventes da repressão, familiares e amigos daqueles que foram 15

Conforme o foro de guerra que se estabelece na Constituição mexicana, o pessoal militar acusado de delitos, não pode por-se facilmente a disposição do sistema de justiça civil, pois é de jurisdição dos tribunais militares, onde os processos ficam superditados, em última instância, as ordens do poder Executivo Federal, isto é, da presidência da República (Amnistia Internacional 2001). 16 A “guerra suja” no México abarcou, desde 1968 até os princípios dos anos 1980, o número dos desaparecidos, tanto nos âmbitos urbanos quanto nos rurais e pode abranger, ao menos, em torno de 1500 pessoas (Castillo 2002).

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assassinados ou desapareceram têm a intenção de exigir a constituição, por fim e em aras de fazer justiça, de uma ‘comissão pela verdade’ sobre o 68 que, não seja uma farsa governamental como a que se instaurou em 1993. É imperativo que se conheçam os fatos, se ajuíze os responsáveis pelos crimes e se dê término a impunidade (Garrido 1998; Martínez Martínez 2004). No marco do sistema socio-político mexicano que, hoje em dia, se auto proclama como transparente em suas ações, estará por definir-se a validez jurídica de recuperar os restos daqueles que foram massacrados e de submeter a processo tanto os genocidas quanto os torturadores. Não obstante, permanece a dúvida ante a infinita possibilidade de que a verdade se siga ocultando para proteger, uma vez mais, os criminosos de lesa humanidade. Nossa proposta poderia contribuir para esclarecer os fatos, mesmo que ainda trata-se de uma primeira aproximação ao problema. A construção de um modelo, tal como o que temos proposto, deverá sustentar-se em evidências documentais e testemunhais que poderão assentar as bases para desenvolver projetos específicos, caso chegarem a existir as condições sócio-políticas no México. Seria indispensável, por conseqüência, dar abertura a uma investigação científica, com uma perspectiva interdisciplinar, onde a Arqueologia e a Antropologia forenses seriam medulares. Assim, seria factível aportar evidências para satisfazer as demandas sociais por justiça que, devem fazer aqueles que foram objetos de crimes de lesa humanidade no México, em particular, em função da matança de 2 de outubro de 1968 e por suas seqüelas no país. Uma investigação interdisciplinar desta natureza, unicamente, poderá estruturar-se através de organizações não-governamentais, mesmo quando o Estado deveria designar como peritos, especialistas de instituições acadêmicas, sem intimidá-los. Qualquer “comissão pela verdade” que dependa do governo e das instâncias periciais chegará a resultados enviesados e parcializados, tais como os que já têm se apresentado no passado. Em definitivo, este tipo de investigação deve ser enfocada nas necessidades e demandas da sociedade. Para mais além do interesse científico compenetrado no tema, de quem coloca sob o microscópio o sujeito histórico que friamente se observa como uma sepultura em seu contexto deposicional, como um indivíduo cujos restos ósseos se estuda em laboratório e cujas partes convertem-se em amostras para análises específicas. Quando falamos de análises sociais, a ciência dura, asséptica, desde o pedestal, é totalmente inútil e estéril se não levar em conta o fator humano e as demandas sociais de justiça para investigar os acontecimentos ocorridos em torno do movimento estudantil de 1968. O fator social, ético e profissional, cobra importância transcendental ao evidenciar que as razões da investigação recaem na existência de um processo histórico, político e social que praticamente emudeceu um país durante quase 40 anos. As implicações de 1968 têm uma marca profunda, é uma ferida aberta no povo mexicano. O ocorrido em Tlatelolco tem marcado o devenir histórico do país. Portanto, os especialistas envolvidos na investigação dos fatos, devem de reconhecer a função social de seus labores e o compromisso que assumiram com os sobreviventes, familiares dos desaparecidos e com o povo em geral. Uma arqueologia do mundo contemporâneo poderia contribuir com a recuperação da memória histórica, tendo por base a cultura material e, aplicando as heurísticas da arqueologia histórica, fazer uso das fontes documentais pertinentes ao caso no marco de investigações interdisciplinares. Ficará pendente determinar até que ponto os arqueólogos mexicanos estarão dispostos a assumir um compromisso para com a sociedade moderna e estudar um passado recente de massacres e de assassinatos,

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ultrapassando o papel legal que determina o Estado, centrado na proteção, conservação, difusão e investigação do patrimônio cultural. Ainda quando, no México, o Estado recorra ao esquecimento para sustentar a impunidade, a matança de Tlatelolco não desapareceu da memória coletiva17, pois, tem sido a base para a construção de identidades relativas18 entre distintos grupos com interesses ou necessidades emocionais específicas. Alguns manejam a consigna da recordação como dever político (Scherer e Monsiváis 2002:34) na conformação de quadros e como via de acesso ao poder. Para outros, o legado da semente da cultura da rebeldia, que segue germinando em lutas propositivas e visionárias (González Souza 1998). Aos ainda companheiros que participaram no movimento estudantil e que marcham, em cada aniversário de luto, ao lugar dos fatos para protestar contra as injustiças de ontem e de hoje. Muitos dos habitantes da Cidade do México seguem indignados pelo ocorrido, outros, continuam esperando que se castiguem os culpados, alguns, têm informação limitada do ocorrido. Todos reproduzem discursos e narrativas que perpetuam as recordações do terrorismo de Estado. Transitando pela Praça das Três Culturas, onde procedíamos para tomar fotografias que se incluem neste estudo, observamos que três crianças, de não menos do que 12 anos, detiveram-se em frente ao monumento comemorativo aos caídos em 2 de outubro, a Estela de Tlatelolco (figura 9). Uma interpelava as outras com uma pergunta de simples curiosidade: “Ouçam? Isto, o que é?”. A única mocinha do grupo, rápida e doutamente, deu uma resposta clara e concisa que, obviamente, não aprendeu nas aulas de história em sua escola, pois, não figura nos livros-texto: “É que aqui mataram muitos estudantes que protestaram contra coisas más que o governo faz com a gente”.

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Segundo uma pesquisa nacional telefônica, levantada pelo diário El Universal, em 2003, a matança de Tlatelolco tem permanecido na memória coletiva. Na amostragem, 53% sabem do massacre de 2 de outubro, 49% culpam o governo federal pela responsabilidade direta e 80% consideram que se requer esclarecer os fatos, encontrar os culpados para fazer-se justiça e terminar com a impunidade. 54,2% crêem ser improvável que se encontrem os responsáveis devido a que existem grupos poderosos que se opõem a incompetência e a burocracia (Ordoñez 2003). 18 Retomamos de Augé (1995) o conceito de identidade relativa. É aquela que tem como referência espacial, social ou moral a relação com, por exemplo, uma etnia, nação ou religião e, inclusive, com uma coletividade ou com um grupo corporativo.

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Figura 9 – Monumento aos caídos na Praça das Três Culturas, em 2 de outubro de 1968, em Tlatelolco. Erigido no 25º aniversário do massacre (foto de Jorge Martínez Herrera).

O massacre de 1968 se mantém, por conseqüência, no imaginário coletivo, na memória social, através da tradição oral e das crônicas que se publicam, dos testemunhos que se difundem. A exigência de esclarecer os fatos da fatídica noite de Tlatelolco e de muitos outros atos criminais do terrorismo de Estado sintetiza-se em uma consigna que se criou no primeiro aniversário do massacre (Pérez Arce 1998). É um lema que ainda é vigente entre aqueles que pugnam por um México democrático: O 2 de outubro não se esquece!

AGRADECIMENTOS A Raúl Álvarez Garin e Luis Sosa, por suas assessorias e sugestões para levar a cabo este estudo. Àqueles que compartiram suas vivências do 1968 conosco. A Raquel e La Nacha, por estender pontes. Agradecimentos a eles e a elas.

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Arqueologia e Esquerda na Colômbia Carl Henrik Langebaek Introdução Colômbia não tem sido um país de ditaduras. Pelo contrário, é mais conhecido por sua tradição civilista, estranha a governos militares (Deas 1999). Isto não significa que não tenha existido repressão e nem que os arqueólogos, de alguma maneira, sofreram algum tipo de perseguição, especialmente, durante o governo conservador de Laureano Gómez (1950/51-1953). Porém, o fato é que, o meio de comunicação acadêmico mais conhecido do país, a Revista Colombiana de Antropologia, órgão de difusão do Instituto Colombiana de Antropologia, foi inaugurado no governo militar e sob os auspícios do “Excelentíssimo Senhor” Tenente-General Gustavo Rojas Pinilla (1953-1957), praticamente, o único ditador que teve a Colômbia durante o século XX. Seu regime militar, populista e de consenso entre os partidos tradicionais, não se encarregou de perseguir os arqueólogos. Portanto, não pode ser comparado com as ditaduras que, no Cone Sul, reprimiram as universidades e, em muitas ocasiões, obrigaram ao exílio seus protagonistas. Uma interessante peculiaridade adicional é que, em contraste com alguns países da Latinoamérica, na Colômbia, não se desenvolveu uma arqueologia explicitamente marxista. Sim, existiu uma sociologia, uma história e uma economia marxistas. Inclusive, uma antropologia marxista, ainda que débil (Miranda 1984). Portanto, se não se desenvolveu uma arqueologia marxista, é prudente não se buscar causas na repressão política, senão que na própria forma como se desenvolveu a disciplina. O paradigma dominante na arqueologia colombiana é, como tem sido nos últimos 50 anos, o histórico-cultural. De todos os países latino-americanos é, quiçá, o que mais tem se mostrado refratário em modificar este tipo de arqueologia, mesmo com o desenvolvimento de diversas alternativas, especialmente, nos últimos tempos (Gnecco 1995, 1999; Langebaek 1996). Colômbia foi um dos poucos países da América Latina onde não se desenvolveu nenhum tipo de arqueologia marxista e onde a Arqueologia Processual tão pouco consegui impor-se. Neste sentido, a disciplina não seguiu uma trajetória exatamente igual à de outras arqueologias na América Latina. Em função disto, os processos políticos não foram também comparáveis. O país não teve, como no Cone Sul (Politis 1988, 1995), uma corrente de arqueologia evolucionista, ao longo do século XIX. Diferente do México, Peru e Venezuela não fizeram parte do grupo vinculado ao pensamento marxista. Como na maior parte da América Latina (Politis 2002:196; Funari 2004), na Colômbia predomina arqueologia empirista e históricocultural. Esta, no caso particular deste país, prosperou sob o amparo da chamada hegemonia liberal no marco de um pensamento antievolucionista e supostamente apolítico (Langebaek 2003). Porém, de novo, o surpreendentemente débil na Colômbia tem sido as propostas alternativas e, por conseguinte, a nula ou quase nula presença da arqueologia marxista (Langebaek 1996; Gnecco 1997; Mora 1997). A Arqueologia Histórico-Cultural cresceu, na Colômbia, graças à influência da escola boasiana, através dos trabalhos de Alden Mason (1931-1939), na Serra Nevada de Santa Marta, bem como de missões francesas (Lehman 1953), norte-americanas (Ford 1944) e da significativa presença de Paul Rivet. Até meados do século XX, a escola históricocultural, na Colômbia, definiu seus alcances: brindar descrições, as mais detalhadas possíveis, da cultura material; estabelecer cronologias e “relações” culturais, assumindo 82

que as características dessa cultura material refletiam “padrões mentais” (Schottelius 1940, 1946). Hoje em dia, múltiplas investigações – provavelmente a maior parte – são demarcadas por este esquema (Santos e Otero 2003). O objetivo deste artigo é estudar as relações entre o marxismo e o estudo do passado pré-hispânico na Colômbia. Pretende-se demonstrar que, o discurso marxista sobre o passado não se desligou da Arqueologia Histórico-Cultural. Mesmo com a enorme insatisfação que os pensadores marxistas expressaram em relação ao trabalho dos arqueólogos, estes, mantiveram seu apego a uma definição normativa da cultura e sua propensão em brindar explicações antievolucionistas do passado. Mesmo que no país não existiu uma Arqueologia Marxista (ou escola de “Arqueologia Social”), uma tradição intelectual de esquerda tem se preocupado com o tema do passado préhispânico. Em outras palavras, ainda que não existiu um grupo de profissionais da disciplina que, explicitamente, se utilize da obra de Marx (e do marxismo) para interpretar o passado indígena, pode-se falar de uma tradição de pensadores de esquerda que, por fora da disciplina, tentaram faze-lo. Estes pensadores foram particularmente ativos entre 1930 e 1980. Ainda que nem todos eles compartissem uma posição homogênea, os uniu uma reação mais ou menos radical contra a arqueologia de sua época. Mesmo assim, não formularam propostas alternativas às explicações clássicas sobre o passado. A análise da produção destes intelectuais de esquerda é útil não só para aprimorar uma nova crítica à Arqueologia Histórico-Cultural, como também um ponto de partida na reflexão para a avaliação dos desafios e das limitações do pensamento marxista sobre o passado pré-hispânico. Desenvolvimento da Arqueologia Histórico-Cultural Durante o século XX, à medida que a arqueologia se profissionalizou e se pôs como meta a descrição sistemática de sítios e de restos antigos, seus alcances políticos tornaram-se cada vez mais inócuos. Na Colômbia, o auge da República Liberal (19301946) coincidiu com o apoio institucional a Arqueologia. Por tal, seria exagerado afirmar que a Arqueologia Histórico-Cultural servia de base científica para a exclusão. Ao menos, no sentido em que os estudos sobre raça, degeneração, decadência ou evolução o haviam sido no passado. A influência de Rivet e de Boas implicou um distanciamento explícito das idéias racistas. Além do mais, deve-se assinalar que, a maior parte dos arqueólogos que trabalhavam (e trabalham) com a Arqueologia Histórico-Cultural foi crítica das formas mais elementares de exclusão, por exemplo, daquela baseada no racismo. Pelo certo, é que ao colocar-se a margem do debate político e optar pela pulcra e neutra descrição, os arqueólogos deixaram de edificar-se em uma forma de denúncia. Desde então, a disciplina foi caracterizada freqüentemente como uma prática conservadora, incusa e reacionária. Em seu tempo, antropólogos, como Milciades Chavez, criticaram a obsessão dos arqueólogos por descrever aspectos materiais das culturas pré-hispânicas sem alcançar interpretações sobre elas. Sem comprometerem-se com interpretações sobre sua própria sociedade (Chávez 1986). A resposta, de alguns antropólogos da época da ‘neutralidade’ e da ‘objetividade’ da Arqueologia HistóricoCultural, foi, em geral, a de abandonar a prática e dedicar-se a questões de Antropologia Aplicada, como aconteceu com Hernández de Alba (Langebaek 2004). Em poucos casos, a Arqueologia – extraordinariamente conservadora até hoje – interessou-se pelo marxismo, ainda que para alguns lhes resultasse atrativa a esquerda. Não obstante, desde fora da arqueologia, sim, houve interesse pelos temas pré-hispânicos. Com

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freqüência, este provinha da esquerda. Evidentemente, havia aspectos políticos no trabalho da Arqueologia Histórico-Cultural que podiam provocar reações críticas por parte de outros intelectuais, não necessariamente arqueólogos, porém, para aqueles cujo passado era importante em termos políticos. Quiçá, um dos primeiros a fazê-lo, sobre quem voltarei mais adiante, foi Antonio Garcia. Em 1937, escreveu Geografia Econômica de Caldas, trabalho, no qual, declarou inútil o que haviam escrito os arqueólogos sobre o passado pré-hispânico de Caldas. Garcia, então, referiu-se ao ‘moralismo cristão’ que, em sua opinião, se ocultava nos pronunciamentos que faziam os profissionais, quando se referiam ao passado indígena. A partir de então, numerosos intelectuais de esquerda distanciaram-se da proposta histórico-cultural. Iniciaram, por sua conta, não só uma crítica da mesma, senão por várias tentativas de oferecer reconstruções alternativas do passado. Crítica da esquerda à Arqueologia Histórico-Cultural No contexto nacional apresentaram-se duas circunstâncias que facilitaram com que acadêmicos se desligassem do conhecimento especializado da Arqueologia HistóricoCultural e empreendessem, por seus próprios meios, a investigação sobre o passado indígena. Em primeiro lugar, a introdução de uma historiografia marxista. Considerava que a historiografia tradicional estava esgotada. A partir dos anos 1950 do século XX, começaram a desenvolver-se com maior força as críticas a Academia Tradicional, acusada, assim como a Arqueologia Histórico-Cultural, de apego à informação e de pouca análise da mesma. Em segundo lugar, existiam razões políticas relacionadas com o papel das sociedades indígenas. A partir de meados do século XX, profissionais de outras disciplinas, especialmente advogados, economistas e historiadores, usualmente vinculados com a esquerda comunista ou liberal, encontraram poderosas razões para interessarem-se pelas sociedades nativas e seu passado. Em 1947, imprimiu-se a primeira edição de A questão indígena na Colômbia. Seu autor, Ignacio Torres Giraldo, historiador do movimento operário e secretário geral da Confederação Operária Nacional, fez uma profunda crítica do indigenismo tradicional. Em primeiro lugar, o acusou de ser um movimento de brancos e de mestiços, não propriamente uma corrente indígena (Torres 1975:3-5). Em segundo lugar, contestou a tendência em isolar o ‘problema indígena’ dos problemas mais amplos do país, em particular, do projeto camponês e operário. Torres criticou também que a defesa do indígena fundamentara-se em questões de sua suposta superioridade racial. Não obstante, ao mesmo tempo, defendeu a idéia de que a luta indígena incluía reivindicações do tipo cultural, não só de terras. A esquerda reclamou então, por um melhor conhecimento das especificidades culturais nacionais e, com isto, o passado e seu estudo adquiriram súbita importância. Para Torres Giraldo era relevante demonstrar a existência de notáveis culturas quando da chegada dos espanhóis. Em sua opinião, os indígenas colombianos formavam um núcleo comum com a grande civilização maia, sem dúvida, mais notável e mais antiga do que o Egito. Os catíos, assentados em Antioquia haviam sido uma adiantada “civilização” com vínculos com os maias e com os incas. Dominavam a metalurgia com perfeição, inventaram ligas que os laboratórios de Medellin não haviam podido decifrar. No Alto Sinú, em Quindío, na Serra Nevada de Santa Marta e em outros lugares da Colômbia, os conquistadores não haviam encontrado somente tribos selvagens (Torres 1975:12-13). O chamado de Torres não consistiu, sem dúvida, em uma romântica nostalgia pelo legado indígena. Pelo contrário, criticou quem romantizara as civilizações préhispânicas. O objetivo de seu livro consistiu em sacar o problema indígena do plano

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contemplativo “da fronde literária puramente especulativa, do intelectualismo abstrato e da simples nostalgia sentimental” (Torres 1975: 12). Neste sentido, tanto os arqueólogos quanto aqueles que estudavam os indígenas contemporâneos eram duramente criticados. Estes últimos concentravam-se em aspectos de raça. Quanto à arqueologia, não duvidou de que podia considerar-se importante. Era indispensável para estabelecer a verdade, isto é, o alto grau da civilização pré-hispânica, diferente das tradições grega e latina. Porém, simultaneamente, acusou os arqueólogos de serem “os que se maravilham ante os duzentos monumentos da civilização agustiniana; ante as raízes já localizadas do Templo do Sol dos incas; ante as obras de arte dos quimbayas e das marcas da cultura paeces em Tierradentro, (...) principalmente com o critério dos colecionadores de antigüidades, dos empresários de museus que pensam na indústria do turismo muito mais do que no destino dos indígenas que vegetam, todavia, em um Estado indiferente para com eles. Um Estado que não aprecia sua vitalidade potencial como força de progresso, senão, como sombra do passado que se extingue” (Torres 1975:13). Por esses mesmos anos, um advogado, dirigente do Partido Comunista e um dos carismáticos ideólogos da Reforma Agrária, Guillermo Hernández Rodríguez, interessou-se pelo assunto das comunidades indígenas pré-hispânicas. Tendo se aprimorado em Moscou, Nova York e Paris, Hernández publicou, em 1949, De los chibchas a la colonia y a la república. Nessa obra, o autor considerou prioritário o estudo das forças econômicas que haviam conformado a história do país. Em sua opinião, a desintegração dos clãs indígenas depois da conquista havia dado lugar a uma sociedade política baseada no território. Além do mais, a mão de obra indígena podia ser considerada ancestral em relação a outras formas de trabalho mais modernas. Primeiro, em relação ao aproveitamento colonial da mão de obra colonial e, em seguida, ao surgimento da classe operária. A sociedade colombiana, portanto, havia sido formada a partir de uma organização pré-hispânica que valia a pena estudar. Isto acrescentou outra importante justificação para estudos marxistas sobre o passado indígena. Sem dúvida, ainda que De los chibchas a la colonia y a la república foi, por muito tempo, o trabalho mais detalhado sobre a organização social muisca, seu autor incorporou pouca informação arqueológica. A Arqueologia Histórico-Cultural do momento, pouco aportava para entender de questões sobre a organização social pré-hispânica, fundamental para o marxismo. Porém, por outra parte, as poucas vezes em que Hernández (1975) utilizou informação proveniente da arqueologia, não se apartou demasiado das idéias que predominavam em seu tempo. Para o autor, os muiscas, ocupavam o terceiro lugar em complexidade política depois dos incas e dos astecas. Era uma idéia proposta desde o século XVIII, pelos líderes crioulos, com o fim de fortalecer a identidade nacional. Porém, não havia sido avaliada com seriedade. Para Hernández Rodríguez (1975), também resultavam válidas as propostas que reduziam a história préhispânica a um processo de migrações. Em sua obra, defendeu a existência de uma migração oriental, uma migração dos Llanos Orientales e, finalmente, a chegada de grupos centroamericanos, entre os quais incluía os muiscas. O interesse por entender a organização econômica indígena continuou com o próprio Antonio García, ele mesmo, em 1937, havia feito uma das primeiras críticas a arqueologia. García foi decano da Faculdade de Economia da Universidade Jorge Tadeo Lozano, professor da Universidade Nacional da Colômbia, onde alcançou ser vice-reitor e consultor sobre reforma agrária. Além disso, foi diretor do Instituo Nacional Indigenista. Sua visão sobre o passado pré-hispânico e, mais importante ainda, sobre os

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arqueólogos, se encontra em Bases para la economia contemporánea (1948) e em La Crisis de la Universidad (1985). O primeiro é um intento de conciliar a doutrina ortodoxa marxista, ainda que García não fosse um militante de partido, especialmente em seus aspectos evolucionista e materialista. Porém, sem cair no “fetichismo doutrinário” da União Soviética. Em sua opinião, a história da humanidade podia ser dividida em fases que iam desde o coletivismo primitivo, até o socialismo planificado. No entanto, dita classificação resultava apressada, se não levasse em conta fatores “geoculturais”. Isto é, se não fizesse abstração dos aspectos puramente econômicos, dos tipos sociológicos e das diferenças no âmbito cultural, já que tais características, por sua vez, eram suscetíveis de diversas classificações. Um exemplo: o coletivismo primitivo existia nas mais diversas sociedades indígenas, desde os contemporâneos kofán do Amazonas até os antigos incas do Peru pré-hispânico. Contudo, esse coletivismo manifestava-se de uma forma muito distinta em cada sociedade. Em todo o caso, por cima das diferenças, se distinguia pela inexistência da personalidade individual e pela escassez dos meios técnicos para dominar a natureza. Sem dúvida, tinha um enorme potencial evolutivo. Permitia a acumulação de excedentes, a sistematização de trocas, a agricultura e a domesticação de animais. Na zona tropical, seu desenvolvimento era lento, na medida em que o progresso agrícola também o era. Somente depois de uma vasta experiência e quando se alcançava uma alta densidade populacional, como era o caso dos muiscas, era possível passar da agricultura migratória para a sedentária. Em sua argumentação, García não incluiu os resultados que haviam chegado os arqueólogos de sua época, os quais, dada a sua comprovada aversão para com o evolucionismo, de todas as maneiras, provavelmente, não lhes teriam sido úteis. Em realidade, sua opinião sobre os arqueólogos era bastante pobre, devido, em parte, ao conflito pessoal que teve com um deles: Luis Duque Gómez. Em sua condição de reitor da Universidade Nacional, este último, o havia demitido de seu cargo de vice-reitor. A reação não se fez esperar. García dirigiu uma carta a Misael Pastrana, presidente conservador que havia nomeado a Duque, para expressar-lhe que, com essa nomeação, os profissionais da Universidade Nacional “teriam a mesma categoria e a mesma ineficácia que os arqueólogos formados nos Estados Unidos”. A nomeação de Luis Duque (que é justo dize-lo, não se formou nos Estados Unidos), era premeditada por parte de um governo que não queria uma ciência comprometida. A afirmação de García deve-se entende-la em seu contexto. O contato que teve com a arqueologia correspondeu a crescente influência norte-americana e, em particular, da arqueologia financiada por entidades estadunidenses. O caso é que, para García, estudar a estatuária pré-hispânica de San Agustín – precisamente a especialidade de Duque – não implicava o compromisso de uma investigação social entre os camponeses contemporâneos que levavam sua vida indigente ao lado das estátuas. Diego Montaña, outro militante do partido, pretendeu retomar, igual que García, o interesse pelo evolucionismo que, sentia esquecido nos arqueólogos. Seus trabalhos mais importantes sobre o passado pré-hispânico foram Sociologia Americana (1950), Colombia-pais formal y pais real e alguns artigos de suas Memorias (1996). Montaña criticou as visões da história que a reduziam a questões de raça ou de determinismo geográfico. Neste sentido, sua obra não se apartou da crítica aos aspectos mais questionados do evolucionismo. As teorias sobre raça baseavam-se no estudo de crânios e constituíam hipóteses arriscadas. Aquelas teorias que se inspiravam no ambiente, simplificavam tudo, ao considerar que os povos deviam suportar a lei do solo que lhes havia tocado pela sorte (Montaña 1950:19-20). Não obstante, os aspectos físicos eram

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importantes. Não era gratuito que os indígenas muiscas tinham se formado graças à ação da atmosfera rarefeita e da temperatura uniforme que constituem o ambiente nos Andes (Montaña 1950:21). Tão pouco que, dessas mesmas condições, tivesse surgido um tipo propenso à vida industrial, sedentária, a agricultura, a elaboração de tecidos e de cerâmica. Seus curtos dedos, por exemplo, eram eficazes auxiliares para labores industriais (Montaña 1950:22). Para mais, os aspectos geológicos não eram desprezados. A geologia da Sulamérica era peculiar em comparação com qualquer outro continente. Portanto, não tinha nada de raro e também a formação de seus povos assim o fora (Montaña 1950:63-65, 86). Os povos colombianos eram produtos de três migrações. As raças mais antigas correspondiam às culturas megalíticas do Titicaca, as quais se relacionavam com San Agustín. Esta antiga migração incluía os pastos, os quimbayas, os catíos, os zenues, os chibchas, e os guanes. A segunda onda migratória havia chegada através do Orinoco e poderia ter, ainda que não comprovada, influência fenícia. Finalmente, haviam chegado povos através do rio Magdalena, entre os quais se encontravam os panches, os pijaos e, por fim, os povos caribes (Montaña 1950: 159163). Com esta proposta, em seguida, Montaña terminou por distanciar-se completamente de uma visão evolucionista, ainda que, em todo o caso, reconheceu algumas etapas no desenvolvimento de certos povos. Por exemplo, entre os muiscas, podia-se falar de uma época marcada por cataclismo geológicos, seguida da consolidação do povo muisca que os espanhóis encontraram. Seu interesse pelos muiscas não era gratuito. Sua tese de graduação na Faculdade de Direito da Universidade Nacional havia sido uma tentativa de recuperar o passado aborígene e, em suas Memorias, incluiu um artigo intitulado “A cultura chibcha vista desde baixo” (Montaña 1996: 113-127). Em Colombia-pais formal y país real” encontra-se um argumento mais elaborado, contra o determinismo ambiental e o determinismo racial. Os chamados “males” que eram atribuídos ao povo colombiano nada mais eram do que condições sociais que podiam ser remediadas. Sobre isto, dedicara um capítulo intitulado “A realidade física e social da Colômbia na época primitiva” (Montaña 1963:29-56). Compreendia aspectos relacionados com a organização social e o desenvolvimento da forças produtivas antes da chegada dos espanhóis. Sem dúvida, o ambiente e as migrações, de novo, foram tomadas como aspectos sem os quais, o passado pré-hispânico não se pode entender. Por exemplo, os muiscas destacaram-se como povo laborioso, devido ao clima frio e a ausência do gado. A estatuária de San Agustín, por sua parte, demonstrava uma forte influência polinésica (Montaña 1966:35). Inclusive, os políticos de esquerda, aqueles que tinham os melhores argumentos contra a Arqueologia Histórico-Cultural e também os tinham para defender o evolucionismo, terminaram, como ilustra o caso de Hernández Rodríguez e Diego Montaña, fincados na visão mais tradicional do passado pré-hispânico. Uma visão, na qual, o peso do anti-evolucionismo e o apego as migrações, terminaram, senão por impôr-se, mas, sim, por exercer uma enorme influência. Durante a década dos anos 1970, quando o marxismo fez sentir sua influência nas universidades colombianas, igual que as universidade européias ou norte-americanas, numerosos investigadores aplicaram esse pensamento à sociedades pré-hispânicas. Esta nova geração, em grande parte educada na Universidade Nacional da Colômbia, ou, ao menos, com vínculos com ela, escreveu em um contexto, no qual, o tema era amplamente debatido em outros países da América Latina. Nos anos 1970, tornou-se famoso o debate sobre o caráter feudal ou capitalista de nossa América Colonial.

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Alguns dos participantes nos debates dessa época - entre eles, André Gunder Frank, Rodolfo Puiggros e Ernesto Laclau (1972:56-61) – consideraram importante precisar a natureza da sociedade indígena, no momento da conquista. A idéia de “modos de produção” e, em particular, a proposta de modo de produção asiático, foram populares. Roger Bartra havia escrito, no México, Marxismo e sociedades antigas (1975). Também no México, se tinha publicado versões em espanhol da obra de Maurice Gaudelier, O modo de produção asiático, de Jean Chesnaux, O modo de produção asiático, e de Antonine Pelletier e de Jean-Jacques Goblot, Materialismo histórico e História das civilizações. Na Colômbia, traduziu-se e publicou-se As sociedades primitivas e O nascimento das sociedades de classe, segundo Marx e Engels, com prólogo de Jorge Orlando Melo. Seguindo o exemplo de Hernandéz Rodríguez, de García e de Montaña, alguns investigadores dos anos 1970, animaram-se a investigar o passado pré-hispânico, particularmente, sobre os muiscas. A idéia de uma história própria, de conhecer as raízes da sociedade colombiana e da desigualdade social resultava mais do que estimulantes. Desde logo, alguns dos primeiros que, desde a esquerda, se haviam preocupado pelo tema das sociedades pré-hispânicas, eram influenciados pelas obras de Marx e, também, pela sociologia norte-americana. Com a segunda geração, este entusiasmo continuou, porém, com uma maior orientação desde a Universidade Soviética ou de universidade européias. Porém, raras vezes aconteceu um sólido aporte delas, especialmente das primeiras. Em Moscou, a investigadora Svetlana Sózina (1978), publicou “A formação dos estados muiscas”. Porém, a repercussão deste trabalho foi mínima. Entre outras coisas, pela falta de rigor com o manejo da informação e, pese a sua aproximação ‘marxista’, por que não agregava muito aos estudos clássicos, do século XIX, sobre os muiscas. Na Colômbia, em meados dos anos 1970, saiu a venda: Ensaios marxistas sobre a sociedade chibcha, que incluiu artigos de Francisco Posada, de José Rozo e de Sergio de Santis (s.d.); Os muiscas – organização social e regime político, de José Rozo (1978) que estudou na Universidade Patrice Lumumba, de Moscou; Notas sobre o modo de produção pré-colombiano e A formação social chibcha, publicados por Hermes Tovar (1974, 1978). Todos estes livros tinham um formato econômico, com a pretensão de alcançar um grande público, ao qual, seguramente, as obras dos arqueólogos não chegavam. Este pequeno, porém ativo grupo de acadêmicos, nenhum deles arqueólogo, estava interessado no passado indígena e disposto a explorar interpretações muito diferentes daqueles que, então, eram considerados especialistas no tema. Francisco Posada, como Hernández Rodríguez, era advogado. Aprofundou seus estudos de filosofia, na França e na Alemanha. Além de seus interesses pelos muiscas, trabalhou sobre problemas agrários e sobre o movimento popular. Pese a sua curta idade ao morrer, aos 34 anos, chegou a ser decano da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Nacional da Colômbia. Os objetivos de seus Ensaios marxistas incluíam identificar o nível de desenvolvimento dos muiscas dentro de escalas evolucionistas, determinar os alcances da noção de comunidade, analisar a estrutura familiar, compreender as formas de trabalho e o desenvolvimento dos meios de produção. A motivação era conhecer as tradições nacionais, era entender a sociedade que surgiu depois da conquista e o impacto da mesma (Posada, Montaña e Santis s.d.:6). O caso de Hermes Tovar é algo diferente. Historiador (um dos primeiros graduados desta carreira na Universidade Nacional da Colômbia), com estudos no Chile e na Inglaterra, foi professor da Universidade Nacional da Colômbia, onde se interessou pelo tema das sociedades pré-hispânicas, graças a Antonio García. Sua obra enfatizou a necessidade

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de se estudar as estruturas de posse da terra e das formas de trabalho, como antecipação para desenhar reformas agrárias e entender o campesinato andino (Tovar 1974:5-14). O estímulo para fazê-lo foi muito similar ao de Posada. Reclamou da necessidade de fazer-se uma análise estrutural da história latino-americana que incluísse a compreensão das características das sociedades que encontraram os europeus e como se haviam transformado no contexto capitalista. Sua investigação enfatizou a necessidade de compreender o modo de produção das comunidades indígenas em seus próprios termos, sem acudir a modos já conhecidos no Velho Mundo. O trabalho de Posada, Rozo e Tovar não foi uma exceção ao distanciar-se da arqueologia oficial. O primeiro concentrou-se na sociedade muisca do século XVI, razão pela qual as crônicas da conquista forneciam informação, se não suficiente, pelo menos satisfatória. Não desconheceu uma dinâmica anterior ao século XVI. Por exemplo, aceitou a existência de uma etapa arcaica, na qual havia predominado a coleta de alimentos, seguida da produção dos mesmos. Coerente com a tradição que García e Montana haviam seguido, reconheceu o papel do ambiente nesse processo. Nesse sentido, propôs que, como na Costa Caribenha os recursos eram abundantes, os indígenas haviam podido viver da coleta. Por outro lado, os grupos andinos tinham-se “obrigado a abrir um novo caminho: a raridade dos alimentos propiciados pela natureza levou-os a produzi-los” (Posada s.d.:14). Por outra parte, seu trabalho considerou que os muiscas encontravam-se em uma etapa de transição, na qual não havia formas clássicas de propriedade. Contrariamente a Hernández Rodríguez, para quem os muiscas tinham sido uma sociedade “bárbara”, para Posada, podia-se falar da dissolução dos hábitos da barbárie neolítica. Não obstante, brindou com uma interpretação dinâmica desta transição. Quando se socorreu dos arqueólogos foi para sustentar que os dados de Emil Haury e Julio César Cubillos – assim como as mais recentes contribuições de Sylvia Broadbent – que haviam chegado na Universidade dos Andes, ajudavam a amparar a idéia de um povoamento disperso que, podia também ser estabelecido a partir dos documentos. Em algumas ocasiões, amparou-se em algum dado arqueológico para sustentar o desenvolvimento tecnológico – ou a falta do mesmo – entre as comunidades nativas. Porém, os arqueólogos da época estavam interessados em saber qual cerâmica era a mais antiga que outra e pouco podiam aportar ao esforço de Posada. Hermes Tovar (1974) admitiu que, em muitos casos, se contava unicamente com a informação arqueológica para reconstruir como teriam sido certas comunidades no passado. No entanto, ao longo de seu trabalho, quando estabeleceu diferenças entre comunidades tribais - compostas, ampliadas, reinos comunitários e impérios comunitários - todas formas sociais próprias da América Pré-colombiana, o aporte da informação arqueológica foi mínimo. Os grupos caribes eram exemplos de sociedades tribais e os quimbaia de comunidade composta. Os muiscas, os taironas e San Agustín de comunidades ampliadas. Porém, o que respaldou o esquema de Tovar, não era o trabalho dos arqueólogos. Quando explicou a natureza das comunidades tribais, auxiliou-se dos dados de cronistas sobre os grupos caribes. Inclusive, a analogia etnográfica valia como alternativa para demonstrar, por uma parte, certo determinismo ecológico e, por outra, a validez de comparar as sociedades “primitivas” de hoje com uma fase histórica. Tovar serviu-se da informação sobre sociedades contemporâneas das terras baixas – da Amazônia e Orinoquía – para entender a “comunidade tribal”, dado que assumiu que aquelas teriam sido mais comuns nas terras baixas e regiões tropicais (Tovar 1974: 17-22).

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José Rozo (1978) afirmou que o processo de mudança social passava pelas etapas de Pré-estado, Semi-estado, e Estado. Na primeira, encontravam-se os caribes. Na segunda, alguns grupos caribes e outros arawak. Os muiscas se encontravam na transição entre as duas últimas. A formação de classes sociais foi atribuída ao desenvolvimento da agricultura (em contraste com a pecuária, que explicava o processo no Velho Mundo), o qual revelava por que havia sido comparativamente tão lento. Não obstante, na hora de referir-se a formação do Estado entre os muiscas, acudiu aos relatos dos cronistas que narravam as guerras entre caciques indígenas, pouco antes da chegada dos conquistadores. Assim, o desenvolvimento dos “muiscas” só podia ser analisado com uma profundidade histórica equivalente à que a própria memória indígena alcançava no momento da conquista. Para mais atrás, os arqueólogos só podiam falar de “seqüências cronológicas” sem sentido de mudança social. Nem todos os ensaios marxistas que se preocuparam com o tema indígena chegaram às mesmas conclusões. Para a maioria, igual que para os “criollos” do século XVIII, demonstrar logros culturais e um notável grau de civilização, foi importante. Tal foi o caso de Torres, por exemplo. Um dissidente do estudo de como se haviam desenvolvido, ainda que de maneira incipiente, as diferenças sociais entre os muiscas, foi Hernán Sepúlveda (1978). Este autor assegurou que as sociedades pré-hispânicas eram tão igualitárias que podiam servir de inspiração para se pensar a existência de sociedades sem divisões nem exploração de classe. Isso implicava rechaçar tergiversações históricas com um claro objetivo de colonialismo cultural. Porém, igual que os demais, também a obra de Sepúlveda caracterizou-se por escassas referências aos trabalhos dos arqueólogos. Muitos investigadores interessados do passado, porém, que não militavam no marxismo, se interessaram por assuntos parecidos aos de Rozo, Tovar e Posada. Em particular, se desenvolveu um enorme interesse por conhecer a organização social indígena e, em particular a muisca, a forma como se desenvolveu posteriormente a sociedade camponesa e colonial. Os exemplos são numerosos: Germán Colmenares, Juan Friede, Darío Fajardo, Fals Borda e também Broadbent, que chegou ao país como arqueóloga e incursionou ao assunto com um estudo intitulado Os chibchas, organização sócio-política (1964). Quase todos eles interessaram-se pelo tema do trabalho, da organização econômica e da demografia. Porém, nenhum deles se baseou, para isto, na produção dos arqueólogos. Durante os anos setenta, Germán Colmenares (1970), Juan Friede (1974) e Darío Fajardo (1964) interessaram-se pela organização social indígena no momento da conquista com a finalidade de fazer histórias regionais baseadas em aspectos sociais, como a demografia e a distribuição da terra. Porém, para estudar o tema, consultaram extensamente a informação documental, não o trabalho dos arqueólogos histórico-culturais que, simplesmente, não estavam interessados nesses temas. Nem sequer Broadbent (1964), que conhecia de primeira mão a informação arqueológica, pode utilizar um só dado do registro arqueológico para reconstruir a organização social muisca. Considerações finais Durante o século XX, não se desenvolveu na Colômbia uma arqueologia marxista. Porém, sim, uma corrente – ou várias – do pensamento de esquerda (nutrida do marxismo em diferentes graus) que se ocupou do tema das sociedades pré-hispânicas. Para essas correntes, foi difícil aproveitar a informação que aportava a arqueologia. Enredada na descrição da cerâmica, na definição de áreas culturais e na especulação sobre relações culturais e migrações, pouco podia aportar sobre temas que, a partir dos anos 1970, não só aos investigadores marxistas, senão também, em geral, aqueles que

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compartiam seu interesse pelo evolucionismo, começavam a serem considerados cada vez mais promissores. O resultado foi uma abundante produção bibliográfica. Por fora da Arqueologia, começou-se a resgatar o evolucionismo e a idéia de poder-se reconstruir como se organizaram as sociedades do passado e como mudaram através do tempo. A resistência ao evolucionismo por parte do mundo acadêmico impunha-se, uma vez mais, como uma estratégia que foi vista, desde o ponto de vista daqueles que não praticavam a disciplina, como uma estratégia para não investigar o passado e não imaginar – e construir – o futuro. Não obstante, as propostas da esquerda colombiana sobre o passado pré-hispânico estiveram impregnadas de problemas. Distanciaram-se da investigação empírica destinada a apoiar suas idéias sobre o passado. A reflexão sobre como se articulavam suas categorias de pensamento com o estudo do registro arqueológico foi nula, ou quase nula. Em muitos casos, assumiram como certas, idéias claramente desvirtuadas sobre a influência do ambiente, as migrações, a difusão e, inclusive, caducas noções de raça. As incorporaram, sem crítica, nos seus esquemas interpretativos. Em muitos casos, não escaparam do determinismo ambiental ou de ingênuas comparações etnográficas. Nunca puderam desenvolver uma noção de cultura que não fora equivalente a concepção normativa da Arqueologia Institucional. Em outros casos, simplesmente, aceitaram esquemas tipológicos, nos quais se acomodou a informação etnográfica e arqueológica sobre as sociedades indígenas, com pouca análise crítica. Porém, o certo é que, pese a todas estas limitações, seu trabalho resultava mais interessante do que os esforços da arqueologia profissional ao “entender” o passado. As enormes limitações da esquerda em distanciar-se das propostas baseadas em migração e difusão, assim como dos rígidos esquemas classificatórios, não evitam pensar sobre as vantagens de suas propostas sobre aquelas que se baseavam na descrição “científica” e inócua dos restos arqueológicos. Não obstante, a Arqueologia Histórico-Cultural resultou em seu momento e, ainda hoje, extraordinariamente refratária a qualquer mudança. As propostas dos pensadores de esquerda, tão pouco foram atrativas. Nenhuma foi tomada com interesse por parte dos arqueólogos profissionais. E, como se demonstrou, terminologia a parte, a esquerda terminou dobrando-se às interpretações baseadas em migrações, difusões e influência. Isto é, ao paradigma da Arqueologia Histórico-Cultural. Mais tarde, quando na Colômbia se introduziu a Arqueologia Processual, rechaçou-se qualquer aporte que ela podia oferecer. Porém, se a rechaçou desde a Arqueologia Histórico-Cultural. Isto é, desde uma proposta ainda mais conservadora e positivista. De novo, uma larga tradição histórica de fazer as coisas terminou por assimilar qualquer corrente inovadora. Em todo o caso, a lição dificilmente se aplica a Arqueologia Histórico-Cultural. Ela resiste a qualquer reforma profunda e, ainda que aceite a terminologia da moda em turno, resulta imune a mudança conceitual. Não obstante, pensando positivamente, a lição é mais útil para uma melhor Arqueologia Marxista. A produção intelectual marxista é atrativa pela solidez da filosofia materialista, por seus objetivos acadêmicos e por suas miras políticas. Porém, em geral, até agora tem sido limitada por seus resultados empíricos e por suas metodologias. É crítica sua falta de identidade que, em resumidas contas, se acerca da Arqueologia Histórico-Cultural senão por seu discurso teórico, por seus resultados. A notável persistência da arqueologia tradicional na Colômbia pode ser excepcional. Porém, outros países da América Latina não estão eximidos – em maior ou menor grau – desse fenômeno. A Arqueologia Marxista latinoamericana, às vezes é vista de forma um tanto paternalista por alguns (McGuire

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1992:64-68; Patterson 1994; Politis 1995 e 1999; Zarankin e Acuto (eds.) 1999). Porém o certo, ainda que pese o balanço desigual que esta história porá em descoberto, é notório o lastro dos aspectos mais negativos da Arqueologia Histórico-Cultural. A este respeito, cabe um comentário. De acordo com Oyuela, Amaya, Elera e Valdez (1997:371-372) não existe uma Arqueologia Social (isto é, marxista) Latinoamericana na medida em que, aqueles que a praticam, não compartem uma só escola unificada de pensamento. Os autores têm razão ao queixarem-se de que a arqueologia na América Latina se estereotipe como pertencendo a uma só prática (isto é, “a Arqueologia Social”). Porém, desde outro ponto de vista, segundo essa observação, simplesmente não haveria arqueologia de nenhuma classe. Com efeito, a afirmação é questionável por diversas razões. Primeiro, por seu viés positivista que vê na conformação de uma escola “unificada” o amadurecimento de uma disciplina. Segundo, porque o marxismo é pretendidamente – independentemente de qualquer juízo de valor sobre sua validez – uma teoria unificada. Porém, além do mais, no fundo, na prática parece existir um corpo unificado de teoria por detrás de grande parte da Arqueologia Marxista na América Latina. O mal é que esse corpo provém da Arqueologia Histórico-Cultural. Na essência, da Ecologia Cultural. Um exemplo é Cuba, o qual, segundo Mc Guire (1992:65), inspira boa parte da Arqueologia Marxista na América Latina. Em Cuba, a maior parte das publicações mistura ritualmente terminologia marxista. Porém, continua – na prática – sendo uma clássica Arqueologia Histórico-Cultural como a que se fazia nos anos 1950 (Tabío e Rey 1987; Guarch 1987; Dominguez 1995). Por exemplo, Tabío (1995:134) considera um “dever” dos homens de ciência seguir o materialismo histórico e dialético. Porém, seu estudo do passado das Antilhas não é mais do que um debate em torno da proposta cronológica de Rouse, nos mesmos termos propostos pela Arqueologia HistóricoCultural (Tabío 1995:134). Outro exemplo: Guarch (1987: 53-58) faz uma defesa do termo “tradição”, virtualmente indistinguível de sua definição norteamericana, ao redor dos anos cinqüenta. Além disso, estabelece como “novo” aporte da arqueologia cubana a localização de objetos em uma escala tridimensional e a defesa das escavações estratigráficas (Guarch 1987:60-67). No Peru (Lumbreras 1974) e no México (Gándara, López e Rodríguez 1985) têm-se produzido reflexões teóricas, geralmente elaboradas para criticar a Arqueologia Processual, porém, também a aproximação histórico-cultural. Sem exagero, pode-se afirmar que as críticas mais demolidoras à Arqueologia Processual se produzem graças a estes trabalhos. Porém, na hora de interpretar o passado pré-hispânico, as propostas “marxistas” não parecem, em muitos casos, distanciar-se demasiado da prática convencional. Depois de uma ampla discussão teórica sobre a necessidade de uma arqueologia baseada na idéia dos modos de produção, ao tratar da arqueologia colombiana, Lumbreras (1981:45-52) não criticou a interpretação baseada no modelo ecológico-cultural de Reichel-Dolmatoff. E mais, terminou por aceitar explicitamente os conceitos histórico-culturais de “horizonte” e de “tradição”, sobretudo aplicados a metalurgia, os quais tinham sido já criticados na Colômbia por fazer parte do âmbito mais reavaliado da Arqueologia Histórico-Cultural. Muitos aportes teóricos “marxistas” no México (Sarmiento 1992) têm se limitado a reviver propostas histórico-culturais esquemáticas dos anos cinqüenta, ou modelos como o de Service (1962) baseados na seqüência bandos-tribos-cacicados-estados. Na Venezuela, a produção tem sido ampla (Vargas e Sanoja 1999; Sanoja e Vargas 1995, 1999). Não obstante, grande parte da produção, quando se faz abstração da cobertura terminológica, tem muito da

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Arqueologia Histórico-Cultural e da Ecologia Cultural. A interpretação do passado préhispânico da Venezuela continua aceitando uma visão normativa da cultura, com o conseqüente peso das migrações, da difusão e das influências como alternativa as explicações mais dinâmicas de mudança social centradas nas sociedades que sofrem ditas mudanças. Na Colômbia, até onde chega o conhecimento do autor deste artigo, unicamente dois arqueólogos profissionais têm assumido a “Arqueologia Social” como própria. Os dois, sob a influência de Mario Sanoja e de Iraida Vargas. No prólogo da obra de Carlos Angulo Valdéz (1995) formulou-se que havia três tipos de arqueologia: um que assumia que a disciplina era “antropologia do passado” e que estava orientada em estabelecer regularidades “atemporais” e “aespaciais” entre culturas desaparecidas; outro, a Arqueologia Processual, que gerava “leis atemporais e ahistóricas” e, finalmente, aquele da arqueologia como ciência social, que considerava a disciplina como um saber histórico. Efetivamente, o trabalho apresenta uma visão histórica dos “modos de vida” do Caribe colombiano: comunitário simples, de produção tribal ou de vida aldeãcacical. Não obstante, a síntese da arqueologia do Caribe se expõe, nos mesmos termos que Angulo a havia apresentado, em 1962 (salvo novos sítios e novos períodos), no marco de uma interpretação ecológico-cultural. Outro exemplo é a recente obra de Rodríguez (2002) sobre o Valle de Cauca. O prólogo, escrito por Mario Sanoja e Iraida Vargas, congratula-se com a correta aplicação das categorias da Arqueologia Social. Porém, a visão da seqüência arqueológica do Valle de Cauca não é realmente interpretada de forma diferente daquela que convencionalmente tem-se trabalhado em obras anteriores, mesmo sem usar categorias tais como “formação social” e “modo de vida”. De nenhum modo quer-se dizer que os trabalhos de Angulo e de Rodríguez não sejam válidos. Significa que, despojados de certa terminologia, são trabalhos que têm de marxista o mesmo que têm muitos outros trabalhos, que não se enquadram nesta terminologia. Também que, em ambos os casos, a herança da proposta histórico-cultural e da ecologia cultural é grande. O objetivo é demonstrar que a Arqueologia Marxista não sofre da mesma síndrome da Arqueologia Histórico-Cultural: ser capaz de dizer o mesmo sempre, independentemente de qualquer contato com a realidade, simplesmente modificando sua retórica. E mais, consiste em esclarecer que no fundo (quer dizer, salvo terminologia acadêmica e política apartes) a Arqueologia Histórico-Cultural e a Marxista não são o mesmo. O exemplo da relação entre os pensadores marxistas e a arqueologia na Colômbia serve para ilustrar um ponto vigente, não só no país, senão também – como o insinuam os exemplos anteriores – em outras partes da América Latina. Uma das mais severas limitações dos intelectuais marxistas interessados no passado pré-hispânico da Colômbia foi a ausência de reflexão sobre o que se pode inferir do registro arqueológico. Esta tarefa deixou-se para outras escolas e se perdeu a oportunidade de avaliar produtivamente a fortaleza do marxismo para estudar o passado pré-hispânico. Recentemente, Borrero (2004:76) tem se perguntado se é necessária – ou útil – uma arqueologia nacional ou sul-americana, com esquemas de pensamento “próprios”, os quais, na prática, se têm proclamado como necessariamente marxistas (Benavides 2001). Borrero tem razão quando afirma que, o que se requer é uma boa arqueologia (que não necessariamente se deslinde do compromisso político), não linhas de pensamento que se dediquem a discutir “categorias corretas” de pensamento ou a estabelecer quem é o possuidor de um pensamento “politicamente correto”.

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Como anota Valdez (2004), a Arqueologia Social tão pouco progredirá se elaborada como pensamento “nacional” ou “latinoamericano”, fechado às contribuições reais da disciplina em outras partes do mundo. Em particular, enquanto siga acreditando que, tudo o que se produz por fora de um determinado círculo de colegas, ou, pior ainda, por fora da Latinoamérica, é reacionário e colonialista. Não haverá Arqueologia Marxista sem uma profunda autocrítica do legado histórico-cultural e ecológico-cultural que ainda a atrapalha – pese o loquaz de sua terminologia. Não poderá existir, além do mais, sem um verdadeiro compromisso com o estudo do registro arqueológico que possa competir efetivamente com outras formas de fazer arqueologia, no acadêmico e no político. De outra forma, quando se queira discutir sobre teoria ou sobre qual é a forma “correta” de fazer as coisas, se lerá trabalhos de “Arqueologia Social”. Porém, quando se queira aprender sobre o passado pré-hispânico, se consultará outras fontes. E esse é um luxo que não nos podemos dar. BIBLIOGRAFIA

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A Arqueologia do conflito no Brasil “Com o golpe de 1964, a Universidade de São Paulo, como todas as universidades do Brasil, foi entregue à políticas implacável do rinocerontes, que sonham com uma universidade só de catedráticos, mas sem alunos. Os rinocerontes passaram a ser apoiados pela situação implantada em 1964”. Paulo Duarte (1970:371).

Pedro Paulo A Funari* Nanci Vieira de Oliveira** Introdução A História recente da Arqueologia, no Brasil, foi bastante tumultuada. Surgida no século XIX, apenas depois da Segunda Guerra Mundial a Arqueologia tomaria rumos acadêmicos no Brasil, em especial graças às iniciativas de Paulo Duarte. O golpe militar de abril de 1964, contudo, representou um momento de inflexão da disciplina, que se inclinava para o humanismo francês, inspirada em Leroi-Gourhan e no respeito aos direitos humanos. O país mergulhou num regime de repressão crescente, com a cassação de inúmeros políticos, líderes sindicais e intelectuais, culminando com o AI 5, medida ditatorial explícita (1968), com a junta militar (1969), com exílio, detenção e assassinato de opositores à ordem discricionária. Já em 1964, iniciava-se um Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas, sediado em Washington, sob a égide da aliança entre os Estados Unidos e o regime militar. Em 1969, com a ascensão de intelectuais ligados ao regime, cassam-se muito acadêmicos, com destaque para Paulo Duarte, com a conseqüente tentativa de destruição do Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo (Duarte 1994). Apesar da abertura do regime, a partir da Anistia, em 1979, o regime manteve o controle das instituições de pesquisa e, em particular, da Arqueologia, até 1985. Próceres do regime controlavam as pesquisas e as instituições e promoviam seus afilhados em cargos e funções, herança pesada que marcaria o período de restauração das liberdades civis em 1985. A liberdade permitiu que florescessem pesquisas e pontos de vista os mais variados, mas a tutela dos herdeiros do regime militar, que passaram a se apresentar como democratas, dificultou, no que foi possível, o estudo dos conflitos sociais pela Arqueologia. As pesquisas pioneiras sobre quilombos e sobre Canudos, desde a década de 1990, abriram caminhos inovadores, mas o estudo da repressão, durante o período militar, continuou a contar com um óbice oculto: o papel político dos herdeiros do regime, ainda importante em pleno século XXI (Funari 2002; 2003a). Neste contexto, entende-se que pouco se pesquisou, até o momento, sobre o período ditatorial, o que, por outro lado, permite esperar que, nos próximos anos, a pesquisa possa se desenvolver com grandes contribuições. A Arqueologia brasileira insere-se, cada vez mais, nas discussões internacionais (cf. Funari, Zarankin e Stovel 2005) e as novas gerações, isentas da colaboração com o regime militar, podem voltar-se para tais temas com autonomia.

*

Professor Titular, Departamento de História (DH/IFCH/UNICAMP), Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos

(NEE/UNICAMP), Universidade Estadual de Campinas. **

Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Diretora do Laboratório de Antropologia Biológica (LAB/UERJ).

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Neste capítulo, trataremos, num primeiro momento, das bases epistemológicas que nos permite propugnar a importância do estudo dos conflitos sociais pela Arqueologia para, em seguida, apresentarmos um estudo de caso, único em nosso país, sobre a Arqueologia dos desaparecidos. Concluímos com algumas considerações sobre as perspectivas futuras de pesquisa e ação social. O estudo arqueológico dos conflitos sociais Nos últimos anos, os estudiosos têm demonstrado interesse crescente em explorar o uso da cultura material para estudar conflitos e lutas sociais, assim como na maneira como a interpretação do passado é construída pelas concepções modernas. Conflitos no passado e na sua interpretação constituem preocupações cada vez mais atuais. A sociedade caracteriza-se, sempre, pelo conflito e, a partir de uma epistemologia dialética, a experiência dos povos do passado é considerada como parte de um confronto constante entre atores sociais. A História das sociedades dividas por classes implica o estudo da apropriação de excedentes, assim como da exploração que engendra conflitos abertos e contradições internas na sociedade e das forças de dominação e resistência. A interpretação desses conflitos é maleável e subjetiva e podemos interpretar o passado como um conjunto de textos complexos, formando um discurso. Se o conflito e a subjetividade fazem parte tanto da evidência quanto de sua interpretação, é inevitável a multiplicidade de interpretações e não se pode evitar tomar posições. Há diferentes maneiras de conhecer o passado e devemos afrontar a questão de quem pode saber e de quem pode participar no processo de invenção e ressignificação do passado. Neste contexto, trataremos, neste capítulo, dos estudos arqueológicos sobre os conflitos durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), com um estudo de caso, visando, também a apontar as perspectivas de pesquisa. O estudo da cultura material pode ser um poderoso instrumento na análise das histórias subalternas e na transferência de poder para os próprios agentes sociais e as controvérsias sobre a interpretação dos mecanismos materiais de repressão fornece um bom exemplo da relevância do estudo do passado para a sociedade em geral. Como costuma acontecer com estudos científicos, este capítulo levanta tantas questões quanto propõe respostas, mas, antes que apresentarmos soluções aparentemente corretas, preferimos incentivar uma discussão pluralista do tema. Quando se busca descrever e interpretar as culturas do passado, convém incorporar o estudo tanto de textos e relatos orais, como de artefatos, o que é particularmente relevante no estudo da repressão no Brasil recente. Os dados textuais, orais e materiais podem ser encarados como interdependentes, complementares e contraditórios, ao mesmo tempo. Neste contexto, para lidar com a tarefa de interpretar o conflito no interior da sociedade impõe-se uma abordagem interdisciplinar que combine análise textual, oral e artefatual, com aportes sociológicos e antropológicos, entre outros. O conflito tem sido, tradicionalmente, interpretado pelos grupos sociais dominantes. Até a década de 1960, os arqueólogos voltavam-se quase que de forma exclusiva para os ricos e famosos, o que contribuía para a manutenção e reforço de ideologias conservadoras. Gradualmente, os arqueólogos começaram a seguir seus colegas nas Ciências Humanas e Sociais em seu estudo dos grupos subordinados e o estudo das evidências materiais dos grupos subalternos permitiu um acesso mais amplo aos grupos sociais pouco representados no registro escrito. Ainda que alguns estudiosos com pouco

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conhecimento da cultura material tenham questionado abertamente a capacidade de a Arqueologia poder contribuir para o conhecimento do passado, diversos livros e artigos publicados nos últimos anos confirmaram que a evidência material é de particular importância para a compreensão da complexidade dos conflitos sociais. Como interpretar o conflito social depende, de maneira direta, de como se entende a própria sociedade, interpretada pelos estudiosos, tradicionalmente, como entidades homogêneas e bem delimitadas. Esta noção, no estudo da cultura material, deriva da definição clássica criada por Vere Gordon Childe: “a cultura é uma herança social; corresponde a uma comunidade que compartilha instituições e modo de vida comuns [ênfase acrescentada]”. Esta definição implica harmonia e unidade no interior da sociedade, um compartilhar de interesses e, portanto, a ausência do conflito. As raízes desta compreensão da vida social encontram-se, em grande parte, em Aristóteles e sua definição de sociedade como koinonia, ou seja, como uma parceria (cf. Aristóteles, Política 1252a7). Compartilhar valores em uma cultura homogênea significa aceitar características e tradições comuns a todos (cf. Aristóteles, Politica 1328a21). A homogeneidade é um conceito originário dos movimentos nacionalistas e capitalistas e em direta oposição a uma abordagem internacionalista. As culturas, assim como as nações, foram vistas pela ideologia burguesa como entidades homogêneas e delimitadas e a História passou a ser concebida como o produto das ações e eventos associados a tais entidades homogêneas. A busca burguesa pela solidariedade nacional tem sido posta em questão desde Marx e, particularmente nos últimos anos, pelos críticos das interpretações da sociedade como entidades baseadas antes na solidariedade do que no conflito. Neste contexto, o conceito de cultura arqueológica pode ser entendido. Complexos materiais fechados e homogêneos são interpretados como o produto de grupos do passado porque, diz-se, as pessoas dentro de tais grupos compartilhavam um conjunto de normas prescritivas de comportamento que eram aprendidas em tenra idade e, portanto, produziam uma cultura comum. A própria noção de doutrinação infantil inspira-se no uso das escolas na construção das identidades nacionais modernas, em um perspectiva burguesa, como no notável caso da França após a Revolução Francesa. As entidades arqueológicas são interpretadas da mesma forma, como unidades orgânicas equivalentes às nações burguesas. Contudo, contradições e conflitos sociais só são possíveis, em termos epistemológicos, se a sociedade for heterogênea e a dialética entre homogeneidade e heterogeneidade sociais torna-se compreensível neste contexto. A generalização, portanto, implica homogeneização e observa-se uma crescente insatisfação com o uso de abordagens normativas na interpretação da vida social. A natureza holística, monolítica de culturas e sociedades tem sido questionada tanto por estudos empíricos como teóricos, nas últimas décadas. Homogeneidade, ordem e limites têm sido associados ao pressuposto a priori que a estabilidade caracteriza as sociedades, antes que o conflito, uma concepção claramente conservadora e ahistórica. No entanto, um número crescente de dados e um estudo crítico do pensamento social têm desafiado este ponto de vista tradicional, passando a considerar a sociedade como heterogênea, com construções conflitantes sobre identidade cultural. Heterogeneidade, fluidez e mudanças contínuas implicam a existência de múltiplas entidades sociais, sempre em mutação na sociedade (Funari 2003b; Oliveira 2004). Neste contexto teórico insere-se o estudo da Arqueologia dos conflitos durante a ditadura militar.

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A Arqueologia dos desaparecidos no Brasil No Brasil, assim como na maioria das sociedades acadêmicas latino-americanas, ainda existe uma forte resistência de arqueólogos e antropólogos físicos em trabalhar com casos que estejam relacionados à violação dos direitos humanos. Da mesma forma, não parece haver interesse das instituições governamentais na presença de qualquer antropólogo ou arqueólogo forense nos quadros das instituições judiciais, como também não há procura por parte destas instituições aos pesquisadores acadêmicos, seja no auxilio com técnicas específicas ou no preparo das equipes de investigação para os casos que exijam exumações. Isto não indica a inexistência de tentativas na formação de equipes forenses, embora ainda sejam mínimas, como ocorreu em 1992 através do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, com a colaboração de antropólogos da Equipe Argentina de Antropologia Forense, e posteriormente, o empenho de antropólogos físicos envolvendo a Escola Nacional de Saúde Pública - FIOCRUZ e o Museu Nacional - UFRJ para a vinda do antropólogo Douglas H. Ubelaker que ministrou um curso de Antropologia Forense. Arqueólogos e antropólogos físicos brasileiros estão acostumados a trabalhar com restos materiais de um passado distante da realidade sócio-política do próprio pesquisador. O desafio de uma Arqueologia e Antropologia Forense brasileira é a possibilidade de romper com uma postura dita “neutra”, ao articular as experiências acadêmicas com a demanda de feridas de um passado ainda presente, que envolvem familiares de desaparecidos políticos, buscando respostas a indagações que incomodam a muitos na sociedade atual. Mas, muito mais que esta contribuição para um momento histórico do país, a articulação com os problemas sociais brasileiros, onde a violência no campo, e cada vez maior uma violência urbana, colocam a necessidade de investigações científicas. Onde estão os cientistas capazes de preparar investigadores competentes na sociedade? Onde estão os pesquisadores que possam contribuir com técnicas mais refinadas no resgate de cenas de vida e morte? Onde estão os pesquisadores que possuem um melhor conhecimento sobre as populações e práticas culturais brasileiras? Dentro dessa premissa, em 1992 integrei-me, com dois médico-legistas, aos trabalhos no cemitério de Ricardo de Albuquerque, no Rio de Janeiro. Acostumada a ter como objeto de pesquisa populações pré-coloniais, esta oportunidade significava exercer um campo em que o sentimento e a emoção seriam elementos marcantes, mas que por tal característica tornava-se desafiador. Estabelecer uma rotina de escavações arqueológicas com material humano recente significa estar submetido a uma burocracia policial, exigindo a integração da equipe à administração do cemitério e órgãos oficiais. De acordo com as informações levantadas pelos membros do GTNM/RJ, 14 desaparecidos políticos19 encontravam-se entre as ossadas em uma vala clandestina, aberta para depositar cerca de 2100 ossadas, oriundas de covas rasas comuns e de indigentes. Embora a partir do final da década de

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Ramires Maranhão do Vale, Vitorino Alves Moitinho, José Bartolomeu R. da Costa, José Silton Pinheiro, Ranúsia Alves

Rodrigues, Almir Custódio de Lima, Getúlio de Oliveira Cabral, José Gomes Teixeira, José Raimundo da Costa, Lourdes Maria W. Pontes, Wilton Ferreira, Mario Prata, Merival Araújo e Luis Ghillardini.

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70 tenha sido instituída a obrigatoriedade de individualização dos restos ósseos nos ossuários, geralmente em sacos plásticos, as escavações demonstraram que isto não ocorreu com os que foram depositados nesta vala clandestina. A partir da espacialização dos restos ósseos pretendia-se obter a identificação dos indivíduos presentes, entretanto no decorrer das escavações observou-se que os restos esqueletais encontravam-se totalmente desarticulados e impactados, misturados com materiais plásticos e metálicos das urnas funerárias. A presença da violência entre estes restos ósseos foi indicada por uma cápsula de fuzil, embora sem possibilidade de relacioná-la a qualquer individuo. Cabe mencionar que os “desaparecidos” correspondiam a pessoas de cor branca entre 18 e 45 anos, mortos por projéteis de arma de fogo, estando alguns carbonizados, todos mortos no inicio da década de 1970. A disposição dos restos ósseos em diferentes setores da vala indicou que os sepultamentos foram exumados de suas covas sem qualquer cuidado, apresentando muitos dos restos ósseos marcas de impactos por enxadas, transportados provavelmente vários ao mesmo tempo e jogados no local. Tais características ampliaram a dificuldade em identificar as ossadas, mesmo dispondo das fichas cadavéricas dos desaparecidos políticos. Assim, a possibilidade resumia-se nos crânios, porém estes também não apresentaram as condições que presumíamos inicialmente. Quando não totalmente fragmentados, apresentavam ausência de ossos da face. A dificuldade de financiamento, já que o trabalho foi realizado por pesquisadores voluntários, exigia a definição de grupos menores de crânios onde os desaparecidos políticos poderiam estar incluídos, para futuras análises dentárias e de DNA. A dificuldade em definir estes grupos, impossibilitou a identificação. Inicialmente poderíamos interpretar que o estado do material ósseo fosse resultado de ações intencionais para impedir a descoberta de pessoas desaparecidas na ditadura militar. Mas, acompanhando as exumações por funcionários do cemitério, que ocorreram no período dos trabalhos de campo, percebemos que a forma como eram realizadas nos túmulos não procurados pelos familiares e nos de indigentes, estas destruíam todas as evidências importantes para o trabalho arqueológico. Embora os indivíduos presentes na vala tenham sido exumados, provavelmente, após o estabelecimento do uso obrigatório de sacos individualizando as ossadas, tal procedimento não foi respeitado pelo descaso da própria administração do cemitério. Como a maioria destas ossadas era proveniente de sepultamentos de indigentes, o tratamento indicou que indivíduos excluídos socialmente em vida, o foram igualmente após a morte, ou seja, covas anônimas e exumações destruidoras. Embora os resultados pretendidos não tenham sido alcançados, acreditamos que Arqueologia e a Antropologia Física podem contribuir com seus conhecimentos técnicos para o estabelecimento de uma Antropologia Forense Brasileira, preparando especialistas em conjunto com a Medicina Legal. Isto exige não somente um reconhecimento pelos órgãos oficiais da contribuição destas áreas, como também que suas análises tenham valor judicial no Brasil. Conclusão: balanço e perspectivas

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A Arqueologia da repressão está apenas no início, no Brasil. Neste capítulo, tratamos de apenas um aspecto, referente aos desaparecidos. Contudo, há uma pletora de aspectos relevantes, relacionados à repressão e que estão abertos à pesquisa e cuja relevância social e política não pode ser subestimada. Do ponto de vista da História da Ciência, o período militar constitui um imenso manancial a ser explorado, a partir de uma abordagem social que reconstitua os liames entre as redes de poder e a constituição de uma ortodoxia, no sentido atribuído por Pierre Bourdieu à doxa, empirista e positivista. Embora a História da Arqueologia brasileira, em geral, já seja objeto de pesquisa, ainda faltam estudos sobre o papel repressivo exercido pela ditadura na disciplina, em particular a partir de uma abordagem social, tal como proposta por estudos clássicos como Bruce G. Trigger (1990) e Thomas Patterson (2002; cf. Funari 2003c). Não se pode bem estudar a repressão, sem um exame das condições que levaram a Arqueologia, em nosso país, a abster-se do tema por tanto tempo e de maneira tão persistente. Em seguida, mas não menos importante, abrem-se os estudos arqueológicos de todo o universo material da repressão, na forma tanto das prisões, campos de detenção legais ou ilegais, como das instituições disciplinares em geral, em um contexto ditatorial. Um imenso manancial de artefatos, associados à repressão, também estão por ser estudados: instrumentos de tortura, de forma mais evidente, mas igualmente os usos normativos e repressivos de artefatos aparentemente destinados a outros fins, como no caso dos usos repressivos de automóveis – que serviam para seqüestrar pessoas – ou de simples lenços. Quando Caetano Veloso cantava uma vida ‘sem lenço nem documento’, não se referia, apenas, à falta de preocupação com as formalidades burguesas, com o lenço para assoar o nariz, com o documento que nos permite entrar no cinema, mas com os usos repressivos de tais simples artefatos: o documento identifica o ‘subversivo’ e o lenço serve para vendar, calar ou mesmo executar o identificado. Há mais de vinte anos do fim da ditadura, multiplicam-se as oportunidades de estudo, os antigos beneficiários e sustentáculos do regime, mesmo quando ainda no poder, são obrigados a conviver com o contraditório, com a diversidade, valor maior tanto no Brasil, como em termos internacionais. A importância do estudo da repressão não pode ser desprezada, pois apenas o estudo da opressão permite garantir a liberdade e entender como foi possível a barbárie (Funari 2003d). Esta é uma condição necessária, ainda que não suficiente, para que a barbárie não volte a triunfar. AGRADECIMENTOS Agradecemos a Thomas Patterson, Bruce G. Trigger e Andrés Zarankin. Escrevemos em homenagem ao Prof. Passos, por sua defesa do IPH e de Paulo Duarte, nos momentos mais duros da repressão ditatorial. Devemos mencionar, ainda, o apoio institucional do NEE/UNICAMP, LAB/UERJ, CNPq, FAPESP. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores. Dedicamos este capítulo a todos que foram perseguidos durante o regime militar. BIBLIOGRAFIA Childe, V.G. (1935) Changing Methods and Aims in Prehistory, Presidential Address for 1935. Proceedings of the Prehistoric Society 1:1-15.

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Arqueologia e Antropologia Forense: um breve balanço Luis Fondebrider Introdução Uma fria manhã do mês de julho de 1984. Um grupo de jovens se encontra ao redor de uma sepultura no cemitério de San Isidro, nos arrabaldes de Buenos Aires, Argentina. Não estão sós. Um cordão de policiais, uns 40, rodeia em círculo toda a área. Atrás deles, umas mulheres com lenços brancos na cabeça olham angustiadas a cena. O silêncio é quebrado pelos soluços das mulheres, pelo ruído das câmeras dos fotógrafos da imprensa ali presentes e pelo rádio policial que, a cada tanto, solta um ruído mecânico. Depois de oito anos de ditadura militar a democracia voltou à Argentina. Com ela a necessidade de buscar pelas mais de 10.000 pessoas que desapareceram pelas mãos das forças armadas. Os corpos dessas pessoas, pelo menos muitos deles, se acham enterrados sem identificação, como NN ou XX, em cemitérios municipais de todo o país. O grupo de jovens tem medo. São estudantes de Arqueologia, Antropologia e Medicina. Nunca pensaram estar em tais circunstâncias. A democracia é frágil. Ainda não se sabe se vai durar muito. Essa mesma polícia que hoje os custodia, poucos meses antes os perseguia e os fazia desaparecer. Junto com eles, outras pessoas com as quais nunca lhes tocou interatuarem: advogados, juízes, médicos legistas da polícia. Todos manejam uma gíria desconhecida. É feita de códigos e de sinais que nunca viram e que lhes custa entender. Também está com eles um homem de já avançada idade. Nunca fala o espanhol e que, apesar das circunstâncias, se mostra muito tranqüilo e seguro. Ele é quem os convidou a participar da exumação do corpo de uma pessoa desaparecida. Ele se chama Clyde Snow. É um reconhecido antropólogo forense estadunidense que veio à Argentina tratar de recuperar, adequadamente, os corpos enterrados sem identificação e tratar de devolverlhes seu nome. O Dr. Snow fala de forma pausada, com um forte acento texano. É um dos primeiros antropólogos forenses que, pela década dos anos setenta, decidiu utilizar a Arqueologia na recuperação dos corpos, em casos médico legais. Sua presença na Argentina deveuse a iniciativa de organismos de direitos humanos locais. Ocorre que, durante meses antes, atuaram como pás mecânicas, como coveiros, como médicos de polícia que exumavam, sem nenhum tipo de cuidado e nem muito menos metodologia científica, os restos esqueletais de presumivelmente desaparecidos que se achavam inumados nas áreas NN, isto é, as zonas para indigentes, nos cemitérios. As imagens transmitidas pela televisão e as notícias nos jornais sobre estas exumações foram denominadas com um cruel sarcasmo de “o show do horror”. Isto, mais pelo que descobriam, do que pela forma em que se estava levando a cabo as descobertas. Enquanto que a pá de um dos coveiros começa a abrir os primeiros 20 centímetros da fossa, os estudantes pensam que estão ali, não por que o departamento de arqueologia da universidade local os enviou ou por que um de seus professores está envolvido no projeto, senão por iniciativa própria. Estão ali por seus desejos de fazerem algo 102

concreto, a partir da Arqueologia ou da Medicina, em um momento chave da história da Argentina. Somente um arqueólogo foi receptível e se somou a iniciativa. O resto da comunidade científica – arqueólogos ou antropólogos físicos – não se mostrou interessada, por razões diversas. Porém, é interessante ressaltar que este padrão de conduta da comunidade arqueológica/antropológica argentina, com algumas exceções individuais, aconteceu também em outros países da América Latina, os quais, em anos posteriores, começaram a desenvolver uma linha de Arqueologia e de Antropologia Forenses. Após uma hora de trabalho, a terra começa a mudar de cor e de textura. Por fim, algo reconhecível, que os faz sentir menos assustados e mais no controle da exumação. Um dos médicos da polícia se acerca e diz ao coveiro: “Já estamos próximos. Avisa-me quando tocas o osso com a pá”. Quando começa a distanciar-se, quase em uníssono, os estudantes estalam um só grito: “Não, não, assim não se faz”. Ante o olhar surpreso do juiz e de todos os que rodeiam a fossa, diante de um meio sorriso de Snow, um deles se mete dentro da sepultura. Começa a desembaraçar a terra com uma colher de pedreiro, enquanto que outro a recolhe e a começa peneirar. É, provavelmente, a primeira vez que, na Argentina, a Arqueologia dá mão ao âmbito judicial-médico-policial. Ainda que pareça mais uma irrupção inesperada e não desejada, do que um procedimento planejado e pactuado de antemão. Horas mais tarde, os estudantes e o arqueólogo se encontram em pleno controle da cena. A exumação começa a parecer um trabalho arqueológico. Porém, essa já é outra história. Vários anos depois Vinte e um anos se passaram desde essa experiência na Argentina. Hoje em dia, falar de Arqueologia e Antropologia Forenses, no mundo, não soa tão estranho para advogados, fiscais e forenses em geral. Inclusive familiares das vítimas e as organizações que as agrupam, em alguns países, se opõem quando pessoal não capacitado pretende fazer exumações sem arqueólogos ou não se utilizam de antropólogos forenses na análise dos restos ósseos. Vários países da América Latina têm incorporado antropólogos forenses em seus serviços médico-legais, tanto em nível judicial quanto policial. Suas opiniões e análises são, em geral, respeitadas e levadas em conta. Fora da região, por outra parte e a partir de 1996, quando o Tribunal Internacional Criminal para a ex-Iugoslávia começou a realizar exumações massivas de vítimas do conflito nos Bálcãs, o afã dos arqueólogos e dos antropólogos forenses da Argentina, da Guatemala, do Peru, da Colômbia e da Costa Rica resultou fundamental. Tal circunstância aconteceu tanto pela experiência por eles acumulada ao transcorrer dos anos oitenta e noventa quanto por suas capacidades de análise. A criação, no ano de 2003, da Associação Latinoamericana de Antropologia Forense (ALAF) foi, de certa maneira, a consolidação de todas estas experiências. Ao mesmo tempo, foi a apresentação de um novo modo de se fazer Arqueologia e Antropologia Forenses. Este fazer incluiu: a) uma interdisciplinaridade com todos os âmbitos da Antropologia representados – cultural, arqueológico, biológico; b) um viés fortemente social, tendo as famílias das vítimas como um eixo fundamental das tarefas, respeitando seus padrões culturais e religiosos, assim como, seu direito de saber.

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Estas mudanças também, de certo modo, refletem-se na produção científica. Nesta, pouco a pouco, começam a aparecer investigações sobre diversas metodologias de trabalho em fossas comuns em contextos forenses, sobre a tarefa do antropólogo em desastres massivos ou sobre a perspectiva antropológica na análise patológica a nível ósseo e, em particular, de lesões peri mortem. Desafios Não obstante os logros alcançados nos últimos anos, ainda permanece um longo caminho por percorrer. Por exemplo, se bem que na Colômbia e no México já existam alguns cursos de pós-graduação, ainda não se conta, na América Latina, com suficientes cursos de Arqueologia Forense e de Antropologia Forense. As pessoas têm que ir aos Estados Unidos ou a Inglaterra para completar sua formação. Por outra parte, a utilização das duas disciplinas dentro do âmbito médico-legal segue dependendo, em muitas ocasiões, da boa vontade ou do critério da autoridade encarregada da investigação, denomine-se de fiscal, de juiz ou de detetive de homicídios. Ainda não está regulamentado, por exemplo, que o levantamento ou exumação de um corpo esqueletizado deva ser realizado por um arqueólogo. Ao mesmo tempo, desde o âmbito acadêmico em geral, não tem despertado um interesse em se desenvolver uma linha de trabalho no âmbito forense. Mesmo quando os estudantes de Arqueologia e de Antropologia se interessam em participar de trabalhos concretos cada vez que surge a oportunidade. A modo de balanço O aporte que tem efetivado a Arqueologia e a Antropologia Forense na investigação de casos de violência política/étnica nos últimos vinte anos, sem dúvida, foi, e segue sendo, fundamental.

Escavações em tumbas NN em cemitérios argentinos

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Escavações de fossas comuns de pessoas assassinadas pela ditadura militar na Argentina (1976-1983)

Escavações de fossas comuns de pessoas assassinadas pela ditadura militar na Argentina (1976-1983)

A exumação arqueológica de fossas na América Latina, na África e na ex-Iugoslávia, para mencionar os casos notórios, tem permitido recuperar os corpos de centenas de pessoas que foram seqüestradas, executadas, na maioria dos casos pelo Estado, e identificar muitos destes corpos. Este processo significou poder devolver a seus familiares os restos de seus seres queridos. Da mesma forma, aportar provas científicas

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à justiça para definir penalmente os responsáveis e reconstruir uma parte importante da história recente destes países.

Escavações da EAAF no Congo, África

Escavações da EAAF na Etiópia, África

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Escavações da EAAF na Etiópia, África

Ao mesmo tempo, abriu uma nova linha de trabalho e de investigação dentro da disciplina. Forçou-a a interatuar com outras especialidades científicas e com outros atores da sociedade. Mostrou que a Antropologia em geral e, a Arqueologia em particular, podem brindar um aporte fundamental à compreensão de nosso passado recente e à preservação da memória do sucedido. BIBLIOGRAFIA Boddington, A., Garland, A.N., Janaway (Eds) (1987) Death, decay and reconstruction. Approaches to archaeology and forensic science. Manchester University Press, UK. Brothwell, D.R. (1987) Desenterrando huesos. La excavación, tratamiento y estudio de restos del esqueleto humano. Ed. FCE, México. Doretti, M. and Fondebrider, L. (2004) Perspectives and Recommendations from the field: Forensic Anthropology and Human Rights in Argentina. Presented at the 56th Annual meeting of the American Academy of Forensic Sciences, Dallas. Doretti, M. and Fondebrider, L (2001) Science and Human Rights: Truth, Justice, Reparation and Reconciliation: A long way in Third World countries. Archaeologies of the Contemporary Past, Edited by Buchli, V. and Gavin, L. Routledge. Equipo Argentino de Antropología Forense (1990) Seis años de Antropología Forense en el Cono Sur. En Actas del II Congreso Mundial de Arqueología, Venezuela. Equipo Argentino de Antropología Forense (1991) Antropología Forense: Nuevas respuestas para problemas de siempre. En Gaceta Arqueológica Andina, Perú. Equipo Argentino de Antropología Forense (1993) La Antropología Forense: informe de situación. En Publicar en Antropología y Cs. Sociales, Año II, Nro. 3, pp. 109-118. Ferllini Timms, Roxana (1993) Principios de Arqueología Forense. Ed. Universidad Estatal a Distancia, Costa Rica.

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Tortura, verdade, repressão, arqueologia Alejandro F. Haber A tortura aplicada nos porões da última ditadura argentina não tendia somente a busca de informação. Orientava-se, além disso, para a autonarração do detido, de acordo com os cânones do torturador. A tortura implicava, assim, o estabelecimento de um regime de verdade. Este, além de ser necessariamente autoritário, não implicava uma descrição passiva (Du Bois 1990). Du Bois caracterizou a tortura como a dominação final, não tanto só de corpos senão, sobretudo, das idéias. Em seu argumento, a tortura não esgotaria seu sentido na derrota de um inimigo presente. Implicaria no desejo de impor particulares interpretações da história, uma particular “verdade” na contínua luta pela compreensão da realidade do país. Sustentando-se na inegável desproporção entre o número de combatentes e o dos detidos e dos torturados, a tese de Du Bois trouxe ao primeiro plano o altíssimo preço que a sociedade tem pagado pelo estabelecimento da “verdade”. Dado que a Arqueologia coloca-se na prática do desvelamento das marcas do terrorismo de estado, no marco do qual a tortura se estabeleceu como vigia do regime social de verdade, cabe perguntar-se: Qual é a relação que esta disciplina estabelece entre verdade e autonarração? Não é na Arqueologia da Repressão recente onde a disciplina se constituiu em regime de verdade. Pelo contrário, a expansão do campo da arqueologia ao recente passado da tortura, desaparição e morte, não só concerne à aplicação de técnicas e de métodos. Junto com estes, se estende à pretensão de validez do que acerca do passado se diz. Tais pretensões veritativas são transportadas para o marco institucional de uma disciplina acadêmica. Seus critérios de validação, se diz, são independentes da realidade a interpretar, ou seja, são metodológicos e técnicos. Não deixar de resultar problemática a apelação ao regime de verdade disciplinar no marco de um novo campo de aplicação. Qual seja, o da neutralidade valorativa e o do objetivismo. Estes se racham quando os fatos tratados são tão indiscutivelmente atrozes que, não tão só conformam parte de uma realidade que não pode ser negada, senão, de uma realidade que tão pouco deve ser negada. A autocompreensão objetivista – que é do mesmo modo cientificista enquanto ciência que se apresenta como um valor – da Arqueologia como disciplina acadêmica não é explicitamente questionada pela Arqueologia da Repressão mais recente. Porém, as condições da relação cognoscitiva em ambas as arqueologias são suficientemente distintas como para que, implicitamente, se trate de um modelo investigativo diferente. A delimitação do campo objetual da arqueologia acadêmica, o que tem sido chamado de registro arqueológico ou cultura material do passado, implica um posicionamento do observador, frente a esses fatos, que estrutura seu processo cognoscitivo. O observador se constitui como sujeito ao mesmo tempo em que sobre-constitui seu domínio objetual: como objeto de sua observação e como objeto material. Ao mesmo tempo, é na objetivação onde se sustentam as pretensões veritativas dos discursos narrativos. O domínio objetual, então, fundamenta a relação cognoscitiva em três planos completamente vinculados entre si: no plano ontológico (os objetos arqueológicos ficam definidos como matéria); no plano metodológico (os objetos arqueológicos são os vestígios do passado que se conhece mediante seu estudo); no plano epistemológico (a separação essencial – e assimétrica – entre sujeito e objeto permite que o primeiro aceda 110

ao conhecimento do segundo, tal qual este é, desprovido de inclinações valorativas ou interesses). A operação conjunta dos três planos produz uma indistinção entre o fisicalismo, o empirismo e o objetivismo, que conformam uma dura base rochosa sobre a qual se apoia o edifício disciplinar (Haber e Scribano 1993). Tudo isto é não um mero exercício retórico. Não se trata de adjetivar a disciplina com o fim de marcar uma própria morada na qual encontrar refúgio teórico. Sobre aquela mesma rocha se apoia o signo político da relação cognoscitiva que se estabelece na Arqueologia. O não dito, ou melhor, o que não se diz, isto é, o objeto arqueológico mudo e inerte, se expressa precisamente em sua loquacidade aplacada: os sujeitos, cujos interesses são apartados e excluídos da relação arqueológica pela sanção desta como um domínio epistêmico e disciplinar (Haber 1994; Haber e Scribano 1993). A exclusão do sujeito é um elemento fundamental na conformação dos habitus disciplinares da Arqueologia. Parte do disciplinamento arqueológico consiste precisamente em aprender a ignorar os outros sujeitos co-presentes ao interesse cognoscitivo arqueológico (Gnecco 1999). Fazendo uso de umas metáforas biológicas, poderia dizer que este disciplinamento opera filo e ontogeneticamente. O disciplinamento ‘filogenético’ consistiu na etapa liminar da arqueologia argentina entre 1875 e 1900 (Haber 1995). Em dita etapa, as sanções disciplinares não se tinham ainda estatuído, os domínios objetuais não haviam sido designados e os sujeitos copresentes não tinham sido de todo excluídos. Um conjunto de autores – os filólogos – designava o arqueológico com nomes indígenas contemporâneos (huaca, puco, virque, antigal, pucará, pueblo viejo, piedra pintada, conana, etc.) ou narrava apelando às tradições folclóricas e às crônicas coloniais. Pressupunha a significatividade dos objetos. Outro conjunto de autores – os naturalistas viajantes – se esforçava por definir, extensamente, os termos descritivos. Tendia a descrever e a classificar os objetos. Sustentava a não significatividade dos objetos - ou bem que sua descrição e estudo podiam prescindir dela. A institucionalização da disciplina nos museus Etnográfico de Buenos Aires e de La Plata coadjuvou uma exclusão dos estilos, dos métodos e dos interesses cognoscitivos dos filólogos e uma sanção dos naturalistas viajantes como a normalidade disciplinar. Conforme o desembaraçado dizer de Moreno, enquanto se propunha um projeto para seu museu, ao tempo em que se apagavam os fuzis da Guerra da Argentina contra os povos indígenas, a Arqueologia devia trabalhar “para ter ao menos um esboço do que foram as civilizações que se consumiram neste solo” (Moreno 1990). O disciplinamento ‘ontogenético’, por sua parte, é aquele que atravessam os aspirantes nas etapas iniciais da formação disciplinar. Os discursos pedagógicos se orientam para que os alunos incorporem o jogo de linguagem da disciplina, mediante a qual se assinala – isto é, se designa – o domínio objetual. É comum que os alunos de Arqueologia não demorem mais do que um ano para esquecer os impulsos pessoais, familiares ou comunitários que os levam a ingressar na carreira. Os substituem por autorepresentações que reproduzem definições disciplinares e objetivos sancionados. Ou bem se aprende a ignorar a inquietude adolescente pelas conseqüências da repressão do passado na estruturação do presente social, ou bem se deserta da carreira disciplinar como o único caminho alternativo.20 20

Faz mais de dez anos que tive a oportunidade de comprová-lo com um grupo de alunos de Arqueologia da Universidade Nacional de Catamarca. Foram capazes de narrar suas metas e

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Uma vez que os mecanismos ‘genéticos’ têm operado exitosamente, se reproduzem os habitus disciplinares mediante uma combinação tácita de preterização do sujeito e de repressão do sentido. Os mecanismos habituais fazem com a natural mudez dos objetos não permita escutar os sujeitos – entre estes, os próprios investigadores. Os sujeitos ficam, então, excluídos do passado que, enunciado como história, é expropriado da memória (Gnecco 1999). Os mecanismos mediante os quais a Arqueologia objetiva o indígena não dependem da consciência dos atores, não são matéria de vontade individual, senão que, de habitus disciplinares que se sustentam em pré-julgamentos culturalmente reproduzidos.21 Todos os cidadãos, disciplinados ou não pela Arqueologia, o temos sido antes pela escolarização. Antecipadamente temos aprendido o sentido imutavelmente progressista do tempo histórico. Da mesma maneira, nos têm ensinado que os fatos mais atrozes de nossa história podem ser matéria de coloridos debates que se anunciam como lendas ou linhas de opinião. Os genocídios, entre eles o maior que já conheceu a história humana, isto é, o produzido pelos conquistadores espanhóis na América, são apresentados como distantes horizontes dolorosos e inevitáveis. Possibilitaram o desenvolvimento normal de nossa civilização. Quão dourado ou negro seja o passado, fica no plano das posições possíveis, demarcando os extremos, entre os quais estaria a verdade. As representações arqueológicas acerca da exploração e/ou dominação de uns indígenas por outros se produzem em um contexto de ausência de reflexão acerca do sentido que vem tendo as representações do mundo indígena, anteriores à conquista, no sustento ideológico e político da própria empresa da conquista. A submissão, o seqüestro, a tortura, a morte de milhões de pessoas e o estabelecimento de uma ordem colonial de exploração obtiveram parte de sua sustentação nas representações dos indígenas e na conduta dos conquistadores para com eles (Todorov 1987; Vollet 2001). Sem lugar a dúvidas, é esta a mais pesada herança das arqueologias sulamericanas, cujo signo tem sido revelado pela interpelação da mobilização dos descendentes dos sobreviventes do genocídio. A ordem colonial vem tendo um correlato no plano das representações. São aquelas que têm ocupado um lugar no espectro cromático com o qual, nas escolas, se nos infundem o sentido da história. A colonização cultural dos povos indígenas assumiu a forma de ações repressivas organizadas e concertadas pelo Estado, pela Igreja e pelos particulares. Estas ações foram orientadas visando à conversão dos indígenas ao catolicismo, o abandono e a repressão de suas crenças e práticas religiosas e culturais. O que tem sido chamado de “extirpação das idolatrias” foi, em resumo, uma dilatada campanha de submissão ideológica, sustentada por ações repressivas, torturas e morte de milhares de indígenas (Duviols 1977 e 1986). O delgado fio que separa a definição de etnocídio da de genocídio não foi particularmente considerado pelos agentes coloniais. A repressão do culto aos antepassados coadjuvou-se, além do mais, com a destruição de centenas de lugares e de objetos sagrados, de corpos mumificados, de

interesses interdisciplinares no início do seu primeiro ano. Porém, ao cabo de um ano haviam esquecido, inclusive, a conversação sustentada no ano anterior. Estruturavam suas respostas em termos e conceitos estritamente disciplinares. 21 Não significa isso que, submetidos à crítica que, em grande parte, é autocrítica, não possam ser modificados sempre que se assuma que devam ser modificados.

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tumbas, de monumentos e do ajuizamento (seguido de tormentos, de castigos e, muitas vezes, de morte) dos indígenas suspeitos de exercerem o culto (Duviols 1986; Farberman 2005). A extirpação de idolatrias foi uma etapa posterior a guerra, isto é, a generalização ao imaginário coletivo da dominação dos corpos individuais. As torturas tiveram por objetivo a construção de um inimigo – o indígena demoníaco – e da autonarração do sujeito sintonizada com a visão de mundo do torturador, como chave para a instauração de um regime de verdade. Parece uma simples questão de atualização terminológica que, aquilo que, em 1891, foi chamada de ‘huaca’ por Samuel Lafone Quevedo, seja hoje considerado um sítio arqueológico. Que os povoadores da área foram indígenas, para Lafone, e que, de fato, tomara emprestado esta denominação de Chamar Yaco, bem como o sentido indígena das ruínas, não é agora mais do que parte de um anedotário (Lafone Quevedo 1991). Porém, que os cultos populares atuais nos sítios arqueológicos do noroeste argentino sejam criminalizados pelo direito positivo que os sanciona como sítios arqueológicos (Lei nº 25.743/2003 de Proteção do Patrimônio Arqueológico e Paleontológico), poderia ser parte do mesmo processo de colonização cultural. No mundo herdeiro da ordem colonial, sustentado em privilégios de raça, de classe e de gênero, em cujo estabelecimento e sustentação tem participado práticas e discursos acerca do indígena, de seus objetos e de monumentos antigos, não pode ser neutral que o tratamento desses objetos e monumentos fique reservado ao âmbito de uma disciplina acadêmica. O é muito menos se o mesmo se recorta em um horizonte de distanciamento e fiscalização do objeto. É hora de sacudirem-se os estorvos culturais que têm ensinado a enunciar as tradições indígenas passadas como arqueológicas e as viventes como folclóricas. Aos indígenas como pretéritos, ao arqueológico como pareado ao conhecimento científico. Costuma-se considerar que a expansão da disciplina arqueológica para a temática da mais recente repressão de estado é uma demonstração da utilidade da disciplina em problemáticas de atual interesse. Os regimes de verdade de uma ou de outra arqueologia, não obstante, se baseiam em condições fundamentalmente diferentes. A mais importante dentre elas é a inclusão ou exclusão da co-presença de interesses cognoscitivos extra-disciplinares (Bellelli e Tobín 1985; Bozzuto e outros 2004; Cohen Salam 1991; Equipe Argentina de Antropologia Forense 1992). A mera enunciação do domínio objetual da disciplina exclui de seu tratamento, a quem os interpelam, interesses distintos do conhecimento acadêmico ou científico sobre a reconstrução histórica do passado. No âmbito da Arqueologia da Repressão mais recente, em troca, o regime de verdade da narrativa histórica não poderia pretender sustentar-se na exclusão da memória. Em todo o caso, se apóia em sua colaboração e sustentação (Bianchi e outros 2000; Cohen Salama 1992). Isto não faz com que a narrativa resultante seja menos verdadeira, menos acadêmica e nem sequer menos científica. Pelo contrário! O processo de investigação é relevante, tanto acadêmico como socialmente, precisamente pela inclusão dos interesses subjetivos extra-acadêmicos na definição de seus objetivos e condicionamentos (Bianchi e outros 2000; Equipe de Investigação pela Memória Política Cultural 2004). Não seria possível para os arqueólogos da repressão recente objetivar os restos dos seres queridos, manipularem a narração de acordo com teorias de pretendido alcance geral, nem utilizar a investigação para por a prova modelos de comportamento, sem comprometer o labor no sentido de uma nova repressão. Um grupo de sobreviventes do Centro de Detenção Clandestina, conhecido como “El Pozo”, em pleno centro da cidade de Rosário, rechaçou sua representação e, a de seus companheiros mortos, como vítimas do aparelho repressivo. O sentido de suas

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experiências, estando detidos, que uma e mil vezes são narradas pelos sobreviventes como inesgotável fonte de dor, seria reprimido junto com a negação de sua identidade política. No sentido de DuBois, resistem. Junto a eles, os investigadores, a quem o submetimento dos corpos se estende sobre as mentes. Que a memória coletiva seja recolocada pela narração histórica, opinável e colorida, daquilo que passou com outros que nada têm a ver conosco. A Arqueologia da Repressão mais recente origina sua intervenção em interesses extraacadêmicos. Não poucas vezes, devem desenvolver-se no marco de complexas negociações entre visões distintas, muitas delas igualmente atendíveis. A pergunta inevitável é, a esta altura, por que a manipulação disciplinar do arqueológico é possível quando se trata de Arqueologia Indígena? A resposta, que não é outra que a explicação das diferenças na relação entre regimes de verdade e de autonarração, não pode ser remetida à identidade sem que erosione toda a pretensão de interesse público da empresa cognoscitiva. A posição, segundo a qual os profissionais da Arqueologia defendem o privilégio aos discursos e objetos indígenas, está chamada a dissolver-se. É tão insustentável política quanto teoricamente. É provável que o efeito da Arqueologia da Repressão mais recente na disciplina tenha sido, precisamente, a incorporação da experiência do diálogo intersubjetivo através das fronteiras disciplinares. A aprendizagem do acompanhamento mútuo com interesses não meramente cognoscitivos ressalta a importância social e política da história como memória coletiva.22 De ser assim, uma das tarefas da reconstrução da Arqueologia para o projeto descolonizador, deve ser a revisão crítica das profundas relações entre tortura, verdade, repressão e arqueologia. AGRADECIMENTOS Os integrantes da equipe de investigação e sobreviventes do ‘pozo’ da Chefatura de Rosario me permitiram compartir suas experiências no projeto. Diversos colegas, entre eles, Patricia Bernardi, Silvia Bianchi, Luis Fonderbrider, Cristobál Gnecco, Jacko Jackson, Darío Olmo, Bob Paynter, Claire Smith, Myriam Tarragó e Martin Wobst, aportaram idéias, comentários e experiências que, mal ou bem, ficaram aqui escritas. A Pedro Funari e Andrés Zarankin, por oferecer-me a oportunidade de fazê-lo. BIBLIOGRAFIA Bellelli, Cristina y Jeffrey Tobin (1985) Bulletin 14(2).

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22

Alguns primeiros sintomas, como a Declaração de Rio Cuarto (Declaração 2005), indicam que a Arqueologia poderia atravessar sua própria reconversão no acompanhamento de práticas emancipatórias.

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Uma mirada arqueológica sobre a repressão política no Uruguai (1971-1985) José Mª López Mazz Arqueologia da Repressão O sistema de repressão instalado nos anos 1970 e 1980, no Uruguai, aparece como parte de uma (geo) política mais ampla. Abarcou diferentes forças ‘golpistas’ repressivas sulamericanas, com a coordenação de organismos especializados e de agentes dos EUA, daquela época. A instalação da ditadura se viu anunciada por medidas repressivas prévias e por cortes nos direitos dos cidadãos, através de “medidas repentinas de segurança”. Única medida, segundo o Parlamento daquela época, capaz de poder fazer frente ao estado de “guerra interna” (Martinez 2005). A partir da reclassificação de documentos nos EUA e na Chancelaria do Uruguai, novas provas foram aportadas para o ajuizamento do presidente civil Juan María Bordaberry e de seu Ministro Juan Carlos Blanco. Ambos vinculados à morte de dissidentes políticos uruguaios e argentinos, em ambas as margens do rio da Prata, no marco do tristemente célebre “Plano Cóndor”. As leis do “ponto final” consagraram, no rio da Prata, a impunidade nos casos de tortura e de mortes por razões políticas, dificultando as atividades de investigação. Só recentemente, se retomou as investigações sobre detidos desaparecidos e sobre a violência política. Os processos de revisão histórica nos países do Cone Sul permitem aprofundar a democracia, construir uma memória cidadã e realizar atos de justiça necessários, particularmente, para estas nações jovens que emergiram, com dificuldade, da ordem colonial sul-americana. Uma aproximação arqueológica à repressão política pretende enriquecer a mirada sobre fatos até agora invisíveis. Trata-se de empregar a Arqueologia como uma ferramenta para a descolonização. Ao mesmo tempo, contribuir para a formação de identidades cidadãs mais saneadas e apropriadas ao século XXI. Foucault (1976) defendia as virtudes de um olhar “genealógico” sobre os dispositivos disciplinares ocidentais responsáveis – em diferentes circunstâncias – por “vigiar e punir” os seus cidadãos. Neste caso, o olhar arqueológico responde a orientações que cientistas e acadêmicos vêm seguindo com êxito, em diferentes países, para esclarecer a relação entre condutas repressivas, produtos materiais e direitos humanos (EAAF 2003). Esta orientação na aplicação do trabalho arqueológico busca reconhecer e interpretar as causas (condutas) responsáveis por produzir um registro material através de “contextos significativos”. Estes contextos refletem as relações sociais repressivas que se associaram, de maneira assimétrica, aos diferentes atores vinculados à repressão nos anos 1970 e 1980. Uma Arqueologia da Repressão política A repressão violenta de opositores deve ser vista no contexto mais amplo dos interesses econômicos, políticos e geopolíticos dominantes. Não estamos frente a um fato isolado, nem a violência é produto da diversidade ideológica ou da rivalidade partidária. Pelo contrário, pensamos que a violência e a repressão são um meio para alcançar um fim preciso, o exercício discricionário do controle econômico e político-social.

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A repressão dos anos 1970 e 1980 foi exercida por aparelhos especializados e coordenados. Ao mesmo tempo, se desenvolveu uma metodologia de torturas, de assassinatos, de desaparições forçadas e de reclusões sem justos processos. Essa violência dirigiu-se a parlamentares, militantes políticos, trabalhadores e estudantes. Alcançou todas as classes sociais, os gêneros e os grupos de idade. O benefício do exercício dessa repressão foi tanto para civis como para militares, que conservaram o poder político e tiraram proveito das instâncias e das circunstâncias econômicas dependentes do Estado. O conjunto das atividades e das condutas envolvidas na repressão política se relaciona, entre outras coisas, com restos humanos, objetos e lugares que são testemunho direto daquelas circunstâncias. O presente artigo busca conhecer e reconhecer uma produção material vinculada diretamente àquela repressão. Por um lado, ilustra instâncias produzidas diretamente pelos repressores. Por outro lado, instâncias protagonizadas fundamentalmente pelos reprimidos. Entendemos que existe um registro arqueológico específico da repressão e da violência política constituído, entre outras coisas, por restos ósseos, objetos produzidos nos cárceres e nos lugares associados à repressão. Permite conhecer aspectos pontuais da “tecnologia do poder” e dos atores envolvidos na violência política. Cremos que esta informação constitui um insumo útil e original para escrever a história recente do Uruguai. Uma Arqueologia da Repressão, sem dúvida, deve diferenciar a natureza de seu objeto de estudo (a materialidade de objetos e de lugares), da interpretação política, que desde hoje se faça, em relação à violência repressiva da época estudada. Uma dimensão importante destas práticas arqueológicas é o contexto político no qual se realizam e a atenção dada a Ciência, neste caso, como ferramenta da descolonização. Descolonização de relações sociais (econômicas e políticas) e também dos préjulgamentos acadêmicos. Na América Latina se está desenvolvendo um estudo arqueológico material e social das sociedades do presente e do passado, que mostra uma notável mudança em nível teórico como em nível da práxis profissional. Busca-se conhecer melhor aos “esquecidos” e aos “oprimidos”, invisíveis, até agora, para a história oficial. Assim, democratiza-se a memória histórica. Entende-se melhor o presente e se constroem identidades. Para além das boas intenções, a nova atitude exige desenvolvimentos metodológicos específicos que, realmente, façam da repressão um claro objeto de estudo da Arqueologia e da Antropologia. As tumbas e os restos ósseos humanos Os restos ósseos humanos constituem um documento fundamental para reconstruir a história de vida dos indivíduos. As aproximações sistemáticas agrupadas sob o rótulo de “Arqueologia da Morte” têm despertado particular interesse nos últimos trinta anos. Têm resultado em uma contribuição fundamental para se estudar a sociedade dos vivos. As orientações privilegiam, nas tumbas, uma leitura das hierarquias e das relações sociais (Binford 1972; Lull 1998; O’Shea 1978);da quantidade de energia invertida nas tumbas (Tainter 1978); do ‘trabalho’ e da cooperação social (Lull 1998); do conflito através dos traços da violência (Gianotti e López 2000; Moreno 2001), assim como, do simbolismo, desde um ponto de vista estruturalista (Hodder 1982). Os estudos arqueológicos sobre a morte vêm tendo um sucesso no período pré-histórico. Porém, têm significado também uma contribuição de valor metodológico para o estabelecimento de uma “tafonomia” dos restos ósseos humanos (Gianotti e López

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Mazz 2003; Moreno 2004). O tratamento dos mortos tem se orientado para a reflexão que diz respeito à intencionalidade da deposição e do seu caráter formal no espaço (Buikstra 2002). Nesse sentido, a localização do enterramento clandestino de um detido desaparecido pode transformar um espaço, até agora irrelevante e passível de ser considerado um “não lugar” (no sentido de Auge 1999), em um “lugar de repressão”. O tema da desaparição física de detidos constitui um capítulo central no tema da repressão. Por um lado, menoscaba os direitos das vítimas e atenta contra o desenlace jurídico da situação criada a partir da ausência física da pessoa. Por outro lado, a desaparição permanente constitui uma ferida aberta no círculo dos amigos e dos familiares que, indiretamente, a repressão continua afetando em uma dimensão intemporal. Quando se localiza restos humanos provenientes de detidos desaparecidos, duas coisas se colocam imediatamente (EAAF 2003). A primeira tem a ver com as possibilidades de estabelecer a identidade do corpo. A segunda tem a ver com o reconhecer as condições de morte do indivíduo. Dentre as investigações da atualidade vinculadas com a temática, sobressaem as levadas adiante pelas equipes de “Antropologia Forense” que têm contribuído com a Justiça para abordar temas da repressão política nos cinco continentes (EAAF 2003). Estas investigações, em alguns casos, têm buscado só conhecer a verdade e recuperar os restos. Enquanto que, em outros, são o princípio de processos legais vinculados a uma revisão histórica de maior alento. No Uruguai, estudos forenses sobre restos humanos têm sido realizados sobre tumbas NN no cemitério de Colônia do Sacramento. A Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), que realizou os trabalhos, não conseguiu identificar detidos desaparecidos uruguaios. Pode tratar-se de corpos chegados à costa, talvez provenientes de “vôos da morte”, realizados na Argentina (Comisión para la Paz 2004). Outro caso de estudo de um enterramento NN provém do cemitério da cidade de Castillos (Depto. De Rocha). Neste caso, os estudos de DNA não confirmaram a identidade de um detido desaparecido, de quem se suspeitava como sendo a de um corpo achado na costa (Comisión para la Paz 2004). Entre os pescadores de Rocha, estes se recordam da chegada à costa de corpos, possivelmente, também provenientes de “vôos da morte”, desde a Argentina. Os estudos de DNA realizados deram sustento a esta hipótese. Metodologicamente, se pode apreciar a discordância entre os métodos baseados no estudo de DNA e os de superposição de imagem digital (Comisión para la Paz 2004; Por todos ellos 2005). É pelo efeito da própria tecnologia repressiva e do “pacto de silêncio” que, até agora, não se pôde recuperar restos significativos de cidadãos detidos desaparecidos. A exceção constitui o caso de Roberto Gomensoro. Seu corpo apareceu flutuando no lago do Rincón del Bonete, no centro do Uruguai. Graças ao fato de que um médico conseguiu guardar seu crânio (o resto do esqueleto foi objeto de uma segunda desaparição por parte dos “serviços”) foi possível realizar a identificação por DNA (Comissión por la Paz 2004) e por superposição de imagens digitais (Solla e Mhemet 2005) e, assim, restituí-lo a sua família. Outro singular caso de estudos forenses sobre restos humanos tem a ver com o cientista chileno, Eugenio Berríos, assassinado por um comando militar chileno-uruguaio, no

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Uruguai, em 1998. Os restos, achados enterrados em uma praia, perto de Montevidéu, foram identificados por técnicos do Instituto Forense (Mhemet et al. 2000). O achado de uma corrente com uma medalha da virgem protetora do Chile, encontrada junto ao corpo, resultou em uma prova arqueológica contextual e contribuinte para com a identificação forense (além disso, um relógio e a “prova dentária”) (idem). Uma tipologia da morte, em tempos de repressão, é possível de ser realizada e constitui um aspecto fundamental para o estudo das tecnologias repressivas. A pessoa física objeto da repressão, constitui um testemunho direto da mesma. A recuperação de restos humanos possui, deste ponto de vista, o valor de um documento que revela instâncias chaves da violência vivida e, além disso, devolve historicidade a “pessoa” que foi objeto de desaparição e de morte. O destino das pessoas desaparecidas e mortas traduziu-se por uma diversidade de circunstâncias, no destino dos corpos. Isto expressa aspectos associados à situação política nos diferentes momentos do “período repressivo”. Expressa razões estratégicas associadas à mudança do modelo militar, antes e depois da formalização do “Plano Cóndor”. Um repertório de situações permite ver a existência de: - Corpos humanos devolvidos as famílias (antes do Plan Cóndor). - Corpos humanos em enterramentos em cemitérios, como NN (Castillos). - Corpos humanos em enterramentos individuais e múltiplos, em cemitérios clandestinos (Batallón 13 e 14). - Corpos humanos enterrados clandestinamente fora dos prédios militares (Berríos). - Corpos humanos abandonados sem enterrar (Soca). - Corpos humanos atirados ao mar desde aviões (Colônia, Rocha). - Corpos humanos atirados ao mar com pesos para sua imersão. - Corpos humanos enterrados e desenterrados (Batallón 13 e 14). - Corpos humanos enterrados, desenterrados e novamente enterrados (secundários) (Batallón 13 e 14). Tecnologia da repressão e aspectos da resistência à mesma Michael Foucault (1978) chamou a atenção sobre os aspectos do disciplinamento como parte de uma estratégia maior de controle e de repressão social. A leitura da arquitetura repressiva que constrói, com uma dialética da exclusão os âmbitos da socialização permitiu, sem demora, encaminhar esse olhar para diferentes âmbitos repressivos. A cidade criou bulevares para facilitar a circulação dos exércitos repressores, logo após a Comuna de Paris (Foucault 1978). O “panóptico de Jeremias Bentham” serviu também de modelo útil para o estudo do sistema repressivo carcerário (op. cit.). A partir daqui, se derivaram modelos de uso arqueológico para o estudo dos “fortins” que levaram adiante a ‘Guerra do Deserto’, na Argentina, na metade do século XIX (Gómez Romero 2002). A escola e a cidade, como instituições de disciplinamento, também foram objeto de estudo espacial arqueológico (Zarankin 2002). Os sistemas de violência produzem uma articulação de lugares através da qual a repressão se territorializa, gerando o espaço de sua auto-reprodução. A ordem pode responder a um modelo institucional, como foi na primeira época, onde a violência se centrou em lugares militares e policiais oficiais. Um segundo modelo se instala, a partir do Plan Cóndor, quando da internacionalização do terrorismo de Estado. Nesse momento, muda a estratégia e se gera uma rede de locais clandestinos, alguns deles apropriados ao inimigo. Outros, foram gerados em sótãos, em vagões de trem e em galpões, normalmente, no fundo dos quartéis.

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Esses lugares, com os nomes codificados, assim como os dos repressores (e os dos médicos que os assistiam nas torturas), chegaram a conformar famosos itinerários do terror. Nesse marco, adquiriu todas as conotações macabras, a palavra “traslado”. As pessoas podiam ser detidas na Argentina. Passar pelos “chupaderos” da ESMA, ORLETI ou pelo Pozo de Banfield. Viajar ao Uruguai para ingressar no circuito de tortura do Infierno Chico. Passar ao Infierno Grande del 300 Carlos (Batallón 13) para, finalmente, serem assassinadas (Batallón 14) ou enviadas aos cárceres de alta segurança (Penal de Libertad, Punta de Rieles). Os cidadãos executados ou mortos nas torturas seriam logo inumados clandestinamente, em lugares desconhecidos. Os testemunhos frente aos organismos de Direitos Humanos dão detalhes de vários lugares vinculados à repressão. Não obstante, a ausência total de informação sobre cemitérios clandestinos, tem questionado fortemente os resultados da Comissão para a Paz, que trabalhou entre 2000 e 2004. A história dos acondicionamentos e das ações físicas que buscaram eludir ou escapar da repressão, recém começa e está longe de ter sido escrita. Falamos de buracos em muros, de ferramentas para escavar, de túneis, de cloacas, de disfarces e de outras instâncias que permitem, em retorno, sentar as bases para uma Arqueologia da Anti-repressão ou da Liberdade. No caso uruguaio, estes lugares de “fuga” constituem um cenário formado por espaços “produzidos” para a fuga e outros “apropriados” para a fuga. No segundo caso, sobressai o caso da rede cloacal de Montevidéu. Constituiu um espaço apropriado para a guerrilha urbana, a serviço da fuga carcerária e da circulação clandestina de pessoas. Os guerrilheiros, em poder dos mapas da rede cloacal, exerceram seu controle por debaixo da cidade. Os repressores, ainda que exercessem seu controle na superfície, mostraram sempre sua desconfiança e temor em aventurar-se nesse espaço infra-urbano. Um elemento dialeticamente vinculado à repressão de seres humanos é a própria resistências às condições repressivas que as pessoas manifestam. Entre as condutas antirepressivas clássicas está o caso das ‘fugas’. Foram protagonizadas, recorrentemente, no Uruguai, por alguns presos e presas políticas, em diferentes cárceres (Jefatura, Cabildo, Punta Carretas). A conduta da “fuga carcerária” está presente em diferentes momentos da História e, geralmente, simboliza o valor universal da liberdade. A Arqueologia da Fuga está constituída por um túnel que, por debaixo dos muros da arquitetura especialmente repressiva, conecta o espaço da repressão (celas, hospital, pátio, banheiros) com o espaço da liberdade no além dos muros. Durante 1971, os cárceres uruguaios começaram a aumentar sua população devido a que muito presos, assim que cumpriam a pena, não recuperavam a liberdade. Estas pessoas continuavam detidas, sob o estrito regime de “medidas de extrema segurança”, por um tempo indefinido. Neste contexto de cárceres cheios, em outubro de 1971, ocorre uma fuga de 111 presos políticos da prisão de Punta Carretas. A fuga expressa, além da própria vontade de escapar da situação repressiva, a resolução de uma série de problemas práticos que estimula os indivíduos ao caminho de sua liberdade, para além dos muros dos cárceres. Nesta mesma prisão aconteceram diversas fugas. Isto mostra que não se trata de fatos isolados, senão que, pelo contrário, são condutas anti-repressivas recorrentes. A

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primeira fuga é de 1931. Foi protagonizada por anarquistas expropriadores. Teve como destino a “carbonería del Buen Trato”, localizada no outro lado da rua Solano García. A segunda fuga, acima mencionada, conhecida como “el abuso”, partiu das celas. Foi realizada por guerrilheiros tupamaros, em 1971. Foi a mais numerosa e também saiu do outro lado da mesma rua. A terceira fuga, chamada de “el gallo”, foi em 1972. Partiu da “enfermaria” e alcançou a rede cloacas, na proximidade da margem arenosa do rio, na costa. Em todos os casos, o elemento comum foi o túnel escavado por debaixo do muro perimetral e através dos muros das celas.

Planta do túnel dos Anarquistas

Outras quatro fugas, sem túnel, tiveram lugar no mesmo edifício penal. Um guerrilheiro escapou dentro de um caminho de lixo, em 1970. Outro, trocou de lugar com seu irmão, em 1972. Anteriormente, em 1969, um delinqüente apelidado de “el sátiro”, tinha conseguido saltar os muros e ganhar a rua Solano García, indo até o Rio da Prata. Pelo contrário, resultou em fracasso a fuga organizada por assaltantes de banco, em 1966, que, armados, conseguiram passar pelo primeiro recinto de segurança, sem alcançar a rua Ellauri. Tiveram que voltar sobre seus próprios passos para esconderem-se nas celas. Aí foram encontrados e violentamente mortos vários deles. Uma tipologia das fugas é possível, tanto quanto uma Arqueologia documentada que contribua para seu estudo material. Esta deverá ter em conta um marco teórico e metodológico que focalize aspectos tais como o número de participantes, o tipo de estratégia (simulação, túnel, saltos dos muros, etc.), a energia invertida, o risco, a duração (se planejada ou se oportunista), os beneficiários e o impacto no contexto histórico e político. A fuga chamada de “el abuso” foi planejada por engenheiros e especialistas. Isto explica o sofisticado da construção de um “túnel” central, que incluía um sistema luminoso, de ar e de evacuação da terra (Fernandéz Huidobro 2005). A fuga chamada de “el gallo” alcançou a rede cloacal (desde a enfermaria) através da qual escaparam 21 presos. Fizeram uso de uns carrinhos, construídos para aumentar a velocidade de deslocamento em um tão reduzido espaço. Enquanto que na fuga “el abuso”, ganhou-se o exterior com uma cobertura mais ampla que incluía um baile de

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acobertamento. “El gallo”, com seus carrinhos, levou os presos até a margem do Rio da Prata. Em todos os casos, o estudo arqueológico das fugas pode facilitar um acúmulo de espaços vazios da memória histórica vinculada à resistência. Ao mesmo tempo, permite recuperar valores universais associados à dignidade humana que tem caracterizado a resistência aos governos autoritários. A produção de brinquedos no cárcere A repressão política teve muita facilidade para estender seu efeito para mais além do indivíduo focalizado originalmente. Rapidamente, alcançou vizinhos, amigos e familiares. É o caso das crianças, filhos dos presos políticos, que foram objetos indiretos da repressão que se instalou através deles, dentro do núcleo familiar. No contexto da “visita semanal” carcerária, pais e filhos realizavam intercâmbios afetivos no interior da prisão. Neste espaço, resgatamos, para um olhar arqueológico, a produção de brinquedos que os presos confeccionavam para seus filhos e para outras crianças. Só recentemente a Arqueologia contemplou as crianças. Até agora invisíveis, por marcos teóricos e por aproximações, que ao enfatizarem o âmbito social, de alguma maneira, deixavam tais indivíduos no esquecimento (Politis 1999). Este tem sido o caso da situação das crianças, durante as ditaduras repressivas do Cone Sul. Tem sido objeto de intensa atenção e preocupação por parte dos familiares, de algumas autoridades públicas e de organismos de direitos humanos. As crianças durante a repressão foram roubadas como um botim de guerra, usadas durante os interrogatórios dos pais, foram castigadas e, em alguns casos, separadas violentamente de suas famílias. A aproximação arqueológica que propomos se orienta para com as crianças das famílias dos presos políticos, enquanto consumidoras de uma produção especializada de “brinquedos” produzida nos cárceres. Os brinquedos eram feitos com materiais acessíveis ao preso, desde sua cela. Os materiais usados têm a ver com a atividade doméstica carcerária e seu estrito controle. Entre os materiais, sobressaem o papel, o tecido, o couro, o osso e a madeira. A fabricação era realizada de maneira regular, porém, adquiria particular significação quando da proximidade de datas, tais como a do Natal, a dos “Reyes”, do “Dia da Criança” ou a dos aniversários. Esta produção artesanal, orientada para a satisfação afetiva dos filhos dos presos políticos, constitui um documento privilegiado da presença das crianças no interior do cárcere. Presença em termos metafóricos. Porém, presença através do trabalho artesanal orientado a produzir objetos especializados para contrapor ao efeito repressivo da reclusão e da separação forçada. Esses objetos, como poucos, simbolizam a relação entre pais e filhos em um contexto de repressão social. Se bem que esta produção artesanal dirigida às crianças era uma atividade freqüente nos cárceres, hoje resulta difícil aceder aqueles objetos, que todos recordam com muito afeto, ainda que os perderam em suas gavetas ou por suas mudanças. Entre os objetos, encontramos uma grande variedade que se destina as crianças pequenas e até quase aos adolescentes. Os adornos e os brinquedos em osso polido foi uma técnica que teve particular destaque naquela época. Facilitada pelo acesso fácil ao osso, através da comida. Os cravos, o vidro e a lixa se transformam em ferramentas

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chave desta produção altamente personalizada. Os trabalhos em osso e em madeira (fig. 2) adquiriram particular desenvolvimento, assim como as confecções em tecido e lã (fig. 4). Cabe mencionar também o uso sistemático do papelão e do papel.

Fig. 2 – “totem” em osso de Luis Ifrán. Penal de Libertad, 1983.

Fig. 3 – palhaço de tecido – é de Pedro Buffa. Penal de Libertad, 1980. A atividade artesanal, neste contexto, começa a ser uma prática nova para muitas mulheres e homens. É através dela que se realiza uma comunicação real, em tempo de desafiar a separação física. O brinquedo ou o adorno que sai do cárcere, se instala como distintivo corporal reconhecível na escala de pessoa a pessoa. Também se localiza na casa, em um espaço de caráter quase cerimonial, em um lugar central da vida do familiar. Como suporte comunicativo é polissêmico, da conta de uma relação interpessoal, ilustra o desenvolvimento dos meios de produção dos presos e exemplifica o grau de tolerância ou de “opressão” em um dado momento e em um cárcere. Conclusão

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A Arqueologia tem demonstrado que se constitui numa útil disciplina auxiliar da História e da Justiça. Cumpre com rigor este papel na história moderna das nações envolvidas com a repressão política dos anos 1970 e 1980. Ela contribui com sua especificidade disciplinar, através da possibilidade de focalizar uma materialidade concreta, que, em muitos sentidos, está desprovida da subjetividade dos testemunhos dos protagonistas. A constituição de um objeto de estudo, denominado de Antropologia Forense, focalizado na repressão, faz parte de uma tendência atual na Antropologia e na Arqueologia Sul-americana (EAAF 2003). Buscar tornar visíveis as classes sociais oprimidas, ignoradas até agora pelas histórias oficiais (Politis 2002:194). A Arqueologia, além do mais, define seu próprio registro material capaz de expressar dimensões ainda desconhecidas de velhos problemas, ou, capaz de servir de matériaprima para investigar novas temáticas vinculadas à repressão, seu efeito e sua resistência. Pensamos que este aporte recente começa e pode constituir o único acesso a algumas problemáticas complexas. Nos tem permitido aproximar dos restos dos desaparecidos, confirmando o pior dos prognósticos. O do assassinato sistemático e da implementação de uma tecnologia exaustiva de ocultamento dos corpos. Por outro lado, mostra também, aspectos contraditórios das técnicas de identificação (entre o DNA e a superposição de imagens digitais). A Arqueologia permite recuperar a memória das crianças vítimas diretas da repressão, porém, sujeitas a um tenaz esquecimento histórico por causa do “fogo amigo”. Os brinquedos e os adornos constituem um material necessário para os futuros museus do horror que aceitam o desafio de educar sobre a memória e sobre a justiça. Existe, finalmente, um registro arqueológico que permite recuperar um cenário alternativo a imposição da repressão carcerária. Trata-se daquele vinculado a uma dimensão desafiante da natureza humana, a da permanente busca de liberdade. As fugas dos presos constituem e constituirão sempre uma prova direta deste fenômeno. BIBLIOGRAFIA Binford, Lewis. (1972) “Mortuary Practices: Their study and Their Potencial”. En Archaeological Perspective.pp.105-140. Seminr Press, New Cork. Comisión para la Paz (2004) Informe Final de la Comisión para la Paz. Presidencia de la República, Montevideo. Lull, Vicente (1998) “El Argar: La muerte en casa”. Anales de Prehistoria y Arqueología. Universidad de Murcia,pp. 65-80. Murcia. Fernández Huidobro, Eleuterio (2004) La fuga de Punta Carrretas. Banda Oriental, Montevideo. Foucault, Michel (1978) Surveillier et punir. Gallimar, Paris.

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A materialização do sadismo: Arqueologia da Arquitetura dos Centros Clandestinos de Detenção da ditadura militar argentina (1976-1983) Andrés Zarankin e Claudio Niro “Quem nunca esteve em um campo concentração, jamais poderá entrar ali, imaginar o que significa e, quem esteve, nunca poderá sair de todo”. Daniel M, sobrevivente do Clube Atlético (2002:10) Um dia no El Vesubio Em 9 de maio de 1978, em horas da madrugada, a bordo de um Ford Falcon, cheguei ao centro clandestino de detenção conhecido como El Vesubio. Estava localizado no Camino de Cintura, na Auto-estrada Richieri, bairro La Matanza. Quatro indivíduos, sob as ordens de Suárez Mason, me tiraram do carro, encapuzado, com as mãos algemadas pelas costas, enquanto me insultavam e me golpeavam, conduzindo-me para uma casa. Dentro da mesma, me colocaram de pernas abertas, junto a uma parede. Enquanto isso, me obrigaram a apoiar a cabeça no muro. Vários torturadores me brindaram com patadas nos testículos e me insultaram. Dito procedimento, chamaram de “el ablande”. Consistia em um método de acovardamento do prisioneiro, anterior ao ingresso na sala de tortura. Todos estes fatos aconteciam na casa 3, dado que o centro clandestino constava de três locais. Cada um destes estava destinado a distintas funções. Na casa 1 estava a chefatura, sede do comando e morada do encarregado de campo. Na casa 2 se encontravam os ”quirófanos ou enfermarias”, isto é, as salas de torturas. Na casa 3 era o lugar das celas de detenção ou “cuchas”. As “cuchas” eram uns cubículos, de um por dois metros, onde estávamos, umas quatro ou cinco pessoas encapuçadas, algemadas nos braços e nas pernas e, por sua vez, algemadas umas nas outras. Quando recém chegávamos nas “cuchas” nos obrigavam a tirar as roupas e nos entregavam uns uniformes marrons que todos devíamos vestir. Através deste procedimento nos faziam perder, junto com a roupa, os últimos rastros de nossa vida exterior. Ao princípio, reinava o total desconcerto da parte daqueles que nos encontrávamos nesta situação. Não sabíamos onde estávamos e nem o que ia suceder com nossas vidas. Na primeira semana não comi nada, em razão do asco que me dava ao que nos davam (guisados urinados pelos guardas) e pela forma em que nos faziam comer (devíamos comer de uma panela imensa, tomando o alimento com as mãos). Passada há primeira semana, a fome me fez comer tudo. Um companheiro, seqüestrado desde muito tempo, era quem nos subministrava a água e a quem chamávamos de “Hueso”. Este companheiro era a única pessoa a quem podíamos ver enquanto levantávamos os capuzes, no caso de não se encontrar nenhum guarda dando voltas. Isto acontecia em poucas ocasiões, dado que os guardas estavam vigiando constantemente.

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Dado que havia um pequeno furo no capuz (seguramente o mesmo capuz que havia sido usado por outros companheiros, em muitas oportunidades, devido ao cheiro que desprendia) pude observar através do mesmo e reconhecer a Auto-estrada Richieri e os coletivos da Linha 86, por meio de uma janela que se encontrava no que, provavelmente, havia sido um antigo refeitório na casa 2. A partir do tempo que suportamos nas ‘cuchas’ e da relação com “Hueso” começamos a conhecer o lugar, pelas descrições que ele nos fazia. Deste modo, nos inteiramos que a comida vinha do quartel de La Tablada, carregada em uma camionete, para logo ser deteriorada no El Vesubio. Também nos contou que os captores nos consideravam “perejiles”23 em relação aos companheiros que tínhamos sido seqüestrados nos colégios Carlos Pellegrini e Juan José Paso. Explicou-nos que, na casa 2, estava a sala de tortura e os quirófanos. Algumas vezes nos conseguia comprimidos roubados para acalmar a dor dos golpes. Enquanto sucedia tudo isto, lá fora, era o Mundial de 78. Então, alguns verdugos viam os jogos por vários televisores e algumas companheiras os viam com eles. Igualmente, as mulheres estavam detidas em ‘cuchas’ separadas dos homens. Também sabíamos que as faziam realizar tarefas de ordem doméstica, no campo de detenção. Os guardas procediam de duas escolas do exército: Lemos e Cabral. Muitos deles eram do litoral e escutavam, seguidamente, chamamé. Estes, costumavam nos insultar com consignas racistas, aos companheiros que identificavam como judeus e a todos em geral. Recordo-me que estava com duas pessoas que haviam caído, novas. Começamos a falar como podíamos e, claro,.... não falavam de comida nem nada. Falavam da Revolução Russa. Eu não podia acreditar. Emocionou-me por que digo: estar falando aqui, no meio deste lugar. Os tipos me queriam meio como captar para o trotskismo. Depois me pus feliz, por um lado. Se os tipos estavam aí e eu podia escutar a palavra Trotski e a palavra Lênin. Todavia, eles não me puderam captar! A sala de tortura era uma habitação coberta com telgopor e, escrita com cigarros, havia uma frase que dizia: “se o sabe cante, senão agüente”. As paredes de telgopor estavam manchadas de sangue. Havia um balde com água e uma foto de Hitler pendurada, debaixo da qual, dizia: Heil Hitler. A mesa era uma mesa de madeira com pranchas, recoberta com ferros e estava manchada de sangue. El Vesubio me traz certas recordações. Recordo-me da cidade de Pompéia, destruída no ano 79 d.C. As cinzas preservaram os edifícios e, inclusive, os cadáveres de suas vítimas. Este Vesúvio, ano 1975 a 1978 d.C., também arrasou com vidas e bens dos detidos, impondo uma lógica do terror. Do terrorismo de Estado. Antes foi a lava, agora os Ford Falcon, que se estenderam por toda a Argentina. Meu companheiro Leonardo, que era meu responsável no grupo em que militava, em um momento, antes da tortura, me disse que “hay que cortar la cadena”, não delatar a 23

Termo usado para referir-se a pessoas sem importância, que não tem poder. Neste texto, algumas palavras que estão em negrito são gírias oriundas de um contexto discursivo de repressão e de tortura, por isso, são mantidas na grafia original em espanhol.

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ninguém. Não reconhecer que éramos da União dos Estudantes Secundários (UES) e, tão pouco, Montonero. Devíamos fingir que não sabíamos nada de nada. O problema foi que, algum dos detidos, havia reconhecido sua militância na UES. Enquanto nós tratávamos de convencê-los que não tínhamos nada que ver, que havíamos deixado a militância antes da ditadura. Na sala de torturas me perguntavam pelo responsável do meu pelotão, porém, eu nunca dei nenhum nome. Os torturadores perguntavam com palavras próprias da militância, por isso, devíamos passar por ignorantes, para não pisarmos. Usavam palavras como “embute”, “pepas”, etc. Posteriormente, fomos transladados para a Villa Martelli, no Logístico 10. Meteramnos em umas celas, custodiados por três recrutas e um sargento ou cabo. Aí pudemos tirar os capuzes. Aí aparecia o major Teslaf que fazia o papel de bonzinho, porém, depois, me interei que era um dos chefes do El Vesubio. Através dos soldados, dado que havíamos feito certa amizade com eles, enviamos uma carta, clandestinamente, para nossos familiares, avisando que nos encontrávamos vivos. O recruta não podia dizer onde estávamos para evitar que sua vida corresse perigo e também a nossa. Seu nome era Horacio Sap. Três companheiros: Muricio Westein, Juan Carlos Martire e Gabriela Juarez Celman, que caíram dias antes do que nós, continuam desaparecidos. Mediante Horacio Sap, recebíamos notícias de nossas famílias. Certa vez, escutamos uma conversação entre militares de alta patente, na qual, mencionavam que nos haviam divididos em grupos de quatro, em distintos quartéis. Desta forma, podemos avisar nossas famílias que não sabíamos onde, porém, que todos estávamos vivos. Em realidade, durante o cativeiro, por mais de 40 dias, não dormimos. Era impossível dormir. Esquecer o que sucedia. Ter sonhos. O capuz te isola por completo, do mundo ex7terior. Por sua vez, há um outro detalhe sinistro, na raia com a maldade de outros seres humanos: os gritos, os uivos, os lamentos, os pedidos de piedade que gritam os torturados. Os insultos, as puteadas, “subversivo de merda ...”, “bolche (bolchevique) hijo de puta”, o Heil Hitler, la patota (grupo de pessoas violentas, multidão) que vem pisando-nos, las palizas com puños (ser agredido com socos), patadas, ferros, contra nós, agrilhoados os tornozelos, algemados e indefesos. Outra forma de resistir que tivemos, os companheiros: quando levaram o Leonardo à tortura (casa 2), o acostaron en “la parrilla” (o deitaram em uma cama para ser torturado com eletricidade) e o empezaron a dar picana (instrumento de tortura, fabricado na Argentina, para produzir descargas elétrica) para que “cante” a la hermana (para que confesse, delate). Em determinado momento. Fizeram entrar a Mauricio Westein e a Juan Carlos Martire (estes companheiros continuam desaparecidos) e lhes ofereceram para aguilhoar a Leonardo. Como se negaram, os ataram na mesma grelha (?) em que estava Leonardo e torturaram os três. Havia três ou mais guardas que duravam vinte e quatro horas. Uma das guardas era comandada por “Fierrito” e sua turma. A este “Fierrito”, lhe gostava escutar rock nacional (por exemplo, “Plegaria para un niño dormido” de Spinetta). Nós pensávamos, como um filho da puta como este pode escutar este tema. Também dizia

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que lhe gostava os filmes de Ingmar Bergman. De vez em quando, costumava falar para nós de sua família, de seus filhos. Outra guarda estava a cargo de “Pancho”. Às vezes nos dava pão. Um dia nos conseguiu um cobertor felpudo, pelo frio que fazia, por conseqüência do inverno. Certo dia em que estávamos ao seu encargo, não nos trouxe pão. Então, começamos a pedir. Pancho contestou, dizendo que haviam seqüestrado o padeiro. Certa vez, vieram os colaboradores (militantes de organizações políticas que, em seu momento, haviam sido seqüestrados e que, durante a etapa do cativeiro, se passaram ao bando dos militares). Dentre eles, havia um, que se chamava “Lucho”. Este era médico. Nas operações de seqüestro ia com uma seringa que aplicava naqueles que tinham tomado comprimido de cianureto, para que o vomitasse. Os colaboradores habitavam o mesmo chupadero (Centro Clandestino de Detenção que ‘chupa”, abduz as pessoas), em uma dependência que chamavam de “Q” de Quebrados. O grupo que vimos no El Vesubio estava integrado por Lucho e por três mulheres. Uma delas, “La Negra”, também torturava com a picana. Os colaboradores, em certa oportunidade, chegaram à casa 3. Logo após fazer-nos tirar o capuz, para que pudéssemos olhá-los, nos fizeram um tipo de averiguação. Queriam saber a classe social a que pertencíamos, a religião, a organização em que militávamos. Formuladas as perguntas, não as respondíamos, dado que não era mais do que um interrogatório, porém, sem picana. Ao poder olhá-los, constatamos que eles estavam bem vestidos e limpos. Além do mais, pediam que colaborássemos, enquanto que falavam maldições sobre as conduções das organizações armadas. Diziam-nos que, em realidade, éramos idiotas úteis. Assim que se passaram uns vinte dias de cativeiro começamos a notar versões da parte de “Hueso” acerca de que nos considerava “perejiles”. Outra versão era a de que iríamos para uma “granja de reeducação”. Isto me dava um medo horrível porque, segundo eles, nos iriam lavar o cérebro para converter-nos em outras pessoas. O fato de transformarmos-nos em pessoas domesticadas por eles, me despertava temor por alguma forma de escravidão mental, moral, física. Com o tempo, a novela “1984”, de Orwell, me recordou ditas sensações. Outro grupo da guarda eram os nazis. Quando vinham, o faziam ovacionando a Hitler, cantando uma canção que diz: “Aí vem Adolfo pela rua, matando judeus para fazer sabão”24. Estes verdugos punham gravações onde se escutava a voz de Hitler e quando vinham buscar-nos nos golpeavam com toda a fúria, produzindo a ruptura dos ossos de alguns dos detidos. O problema de estar encapuzado é de não saber de onde procedem os golpes e, portanto, permanecer e um estado de total indefesa. Estes tipos se entusiasmavam obrigando-nos a fazer ginástica militar (corpo ao solo, saltos de rã, etc.), mantendo-nos algemados na parede, durante horas. Gritavam contra nós, no meio dos ruídos das cadeias e ameaçavam-nos com a picana se não cumpríssemos com a consigna. Efetivamente, se alguém não resistisse, com este tratamento, era levado a casa 2 onde se encontrava o quirófano. Ali se o torturava pelo simples prazer de torturar. Com um total sadismo. Enquanto tudo isto se passava, escutávamos na

24

“Ahí viene Adolfo por el callejón, matando judíos para hacer jabón”.

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televisão o Mundial de 78. Cada vez que um rival fazia um gol na Argentina era muito triste para nós, porque os verdugos se descontavam moendo-nos a pau. O banheiro da casa 3 não tinha porta, só uma cortina. Recordo que havia uma ducha que, em realidade, era um cano do qual saía a água gelada, e uma latrina para fazer nossas necessidades. Recordo-me que não havia papel higiênico, senão que, uma pilha de livros de Marx, de Lênin, da correspondência Perón-Cooke e de revistas como “El descamisado”, etc. Devido a pouca alimentação, havíamos baixado de peso de forma considerável. Além do mais, o mesmo estado de debilidade fazia com que padecêssemos de alucinações e entrássemos em algum momento em transe. Recordo que rezava e que me recordava dos quarenta dias de jejum de Cristo. Os rapazes judeus rezavam para Jeová. A debilidade facilitava com que nos torturassem com mais facilidade e, inclusive, que oferecêssemos menos resistência. Perdemos tanto peso, ao longo desses dias que, quando nos transladaram ao quartel de Villa Martelli e me puder ver em um espelho, não me reconheci. Parecia outro, um cadáver vivente. Recordava-me dos prisioneiros de Auschwitz. “Sempre assustam os espectros” (frase de Jorge Semprún). Faz pouco tempo, voltei ao lugar onde estava o El Vesubio. Quando alguém chega, o primeiro que vê são as ruínas. O mesmo foi demolido, nos finais de 1978, pela ação da Comissão da OEA pelos Direitos Humanos. As ruínas do El Vesubio estão cercadas por arames farpados. O único problema é que não se pode ingressar adentro. Ali vive uma pessoa que impede o acesso ao lugar, ameaçando os organismos de direitos humanos e soltando uns cachorros de sua propriedade. Em uma oportunidade, pude entrar e reconheci uns ladrilhos vermelhos que pertenciam ao banheiro. Fecho os olhos e penso: restos do campo e do horror. Quando nos faz todos esperar, acorrentados, frente ao quirófano, escuto os gritos e os gemidos dos torturados, a música de chamamé, as vozes dos torturadores. Penso como será a tortura e se a vou agüentar. Quanto tempo passa. Impossível sabê-lo. O tremor de meu corpo e dos demais companheiros. O medo. Levam-me ao quirófano. Tiram-me o capuz. Luzes fortes que não me deixam ver. Uma voz potente. Reconheço que é a de “Vasco”. Pede-me que colabore. Agarram-me entre quatro pessoas. Tiram-me a roupa. Molham-me com um trapo com água e me atam com um cabo, no dedão do pé. Com outro cabo começam a dar máquina. O vazio. Não sei quanto tempo dura, em realidade. Sinto que me tiram a alma. Tiram-me o desejo. Arrebentado. Levam-me as “cuchas”, junto com os demais companheiros. Certo dia, um companheiro que tomava um medicamento devido a um problema psicológico, padecia de delírios de perseguição, ao ficar sem o remédio e pedia, aos gritos, que o trouxesse. Nós pedíamos que ele se calasse para evitar reprimenda. No entanto, continuava gritando e solicitando o medicamento até que se escutava a voz de um repressor que diz: “De que te queixas, de teu delírio de perseguição, se já te agarramos”. Cláudio Niro, sobrevivente do CCD “El Vesubio” O relato revela claramente alguns dos dispositivos desenhados desde o sistema nos Centros Clandestinos de Detenção (CCD’s), utilizados pela ditadura militar Argentina, entre 1973 e 1983, para destruir a identidade, como pessoas, dos detidos. Privação de visão, limitação da mobilidade, aplicação de tormentos, falta de alimentos, condições climáticas extremas (frio ou calor), proibição de comunicação com outras pessoas, substituição do nome por um número, entre outras, são dispositivos que têm,

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principalmente, como foco de ação direta o corpo e a mente do detido. Estamos ante um novo modelo punitivo que utiliza elementos de sistemas repressivos anteriores. Por exemplo, a utilização de torturas físicas e a destruição do corpo são típicas da Idade Média. Enquanto que, a organização do tempo em rotinas que se repetem cotidianamente é característico das instituições disciplinares dos séculos XVIII e XIX. Este artigo se propõe discutir, a partir de um nível teórico e de um outro corporal – isto é, a partir de experiências reais, sofridas por um dos autores – a arquitetura e a organização espacial dos Centros Clandestinos de Detenção, na Argentina, e seus efeitos sobre os corpos e mentes dos detidos. A arquitetura e a organização do espaço nos CCD’s estão pensadas como ferramentas para garantir o funcionamento do poder. São estas estratégias que nos interessa discutir neste artigo, desenvolvendo uma visão arqueológica do problema. Para isso, partimos de uma dupla idéia de “Arqueologia”. Por um lado, como o estudo das pessoas desde a cultura material e, ao mesmo tempo, seguindo Foucault (1970:235), como: A arqueologia não trata de restituir o que pôde ser pensado, querido, encarado, experimentado, desejado pelos homens no instante mesmo em que proferiram o discurso (...). Não é nada mais e nenhuma outra coisa que uma reescritura, isto é, na forma mantida da exterioridade, uma transformação pautada do que tem sido e do que tem escrito. Não é a volta ao segredo mesmo da origem. É a descrição sistemática de um discurso objeto.

Desta maneira, se pensamos que a arqueologia é, em realidade, um construção cultural do passado, esta pode transformar-se em uma ferramenta de luta política, destina a enfrentar as “master narratives” (Johnson 1966) e ou a “história oficial”. O investigador pode, assim, de maneira explícita, assumir uma posição ativa no processo de interpretação de um passado que já não é o verdadeiro, senão que, apenas uma interpretação (Shanks e Tilley 1987; Funari 1988, 1999). Desde estas perspectivas, a cultura material está simbolicamente constituída (Hodder 1982). É produto e produtora de pessoas e de subjetividades (Andrade Lima 1999). Os objetos são considerados elementos ativos e dinâmicos e só podem ser interpretados dentro dos contextos históricos e sociais dos quais formam parte. Precisamente, no caso dos CCD’s, para se conseguir uma leitura de sua materialidade, necessitamos contextualizá-los. Desta maneira, dividimos o artigo em duas partes. Uma primeira, onde apresentamos uma síntese da história das instituições punitivas na sociedade ocidental e um panorama geral do funcionamento da repressão durante a ditadura Argentina. Na segunda parte, trabalhamos sobre um caso de análise específico, o CCD Club Atlético, a partir do qual discutimos a arquitetura e a organização espacial dos CCD’s. Instituições punitivas Em “Vigiar e Punir” (1976), Foucault analisa o surgimento das instituições disciplinares entre os séculos XVI e XIX, estabelecendo uma relação direta entre as formas de repressão e o objeto punido. Este passa a estar centrado no corpo no século XVI, indo à alma e a mente, no século XIX. Nas palavras do autor, “a prisão resitua o patíbulo”. Esta mudança se reflete na aparição de toda uma série de dispositivos disciplinares dirigidos a gerar indivíduos dóceis, na mente e no corpo, através de instituições de “ortopedia social”, tais como, os colégios, as fábricas, os hospitais, os manicômios, os albergues para órfãos, as prisões, entre outras (Bentham 1786; Goffman 1974;

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Gaudemar 1981; Donzelot 1981). Paralelamente, a cidade também começa a ser organizada em função de uma série de parâmetros disciplinares – especialmente o vigiar, o controlar e o dominar – gerados desde o poder (King 1980; Markus 1993a, 1993b; Parker, Pearson e Richards 1996). No caso da prisão, sua função é privar da liberdade como forma de castigo. Através da clausura se busca, não só punir a pessoa, senão que, este tempo possa ser utilizado para que o detido seja reformado. Precisamente, esta situação é a de que se encarrega esta instituição, a mais civilizada e humana de todas as penas. Como assinala Foucault, a prisão ao corrigir, ao modificar, ao tornar dócil e disciplinado o indivíduo, não faz mais do que reproduzir, de maneira acentuada, todos os mecanismos que se encontram no corpo social. A arquitetura destes lugares cria limites artificiais onde os corpos são confinados e controlados (Grahame 195, 2000; Zarankin 1999, 2000, 2002). A partir de então e, ao longo do tempo, estas instituições têm se ampliado e se especializado. Escolas, segundo o tipo de educação e de classe de pessoas (crianças, adultos, atrasados, cegos, de classe baixa, de classe alta, etc.). Hospitais, para queimados, para crianças, para olhos, para problemas cardíacos, para o câncer, entre outros. No caso das prisões, durante os séculos XIX e XX, são criados institutos de detenção de menores, prisões de diversas seguranças (baixa, média e alta), campos de concentração, prisões psiquiátricas, cárceres em comissariados, entre outras. A Argentina fez uma macabra contribuição a esta extensa lista: os Centros Clandestinos de Detenção (CCD), desenvolvidos durante o processo militar, entre os anos 1976 e 1983. Trata-se de um dispositivo repressivo que, se bem pôde contar com alguns antecedentes na história, só foi gerado de maneira massiva e sistemática, durante a década de 1970. Este combina e maximiza as piores categorias de todas as instituições punitivas criadas até então. Sua função já não é deter e corrigir, senão que destruir e eliminar. O golpe militar Em 24 de março de 1976, um golpe militar derrubou a presidenta Isabel Martínez de Perón (viúva do General J. D. Perón), sob a desculpa da incapacidade do Governo para controlar as ações dos chamados grupos “subversivos”, que intentavam impor, no país, uma ordem social oposta aos “costumes argentinos”. Assumiu o poder uma junta integrada pelo Tenente General Jorge Rafael Videla, pelo Almirante Emilio Masera e pelo Brigadeiro General Orlando Agosti. Iniciou-se, assim, o autodenominado “Processo de Reorganização Nacional”, um dos períodos mais obscuros e sinistros da história argentina. Políticas econômicas ultraliberais (Forrester 1995, 2000) foram instauradas sob a supervisão do ministro da economia José Martínez de Hoz, multiplicando exponencialmente a dívida pública e privada (esta última, posteriormente, estatizada). Para conseguir o êxito do novo plano econômico e a destruição de toda a resistência popular, o governo militar desenvolveu um projeto de aniquilamento físico de todas as instituições e ou pessoas que se opunham ao tal plano. Isto se realizou a partir de uma estrutura clandestina paralela, que incluía Centros Clandestinos de Detenção, pessoal Militar e Policial atuando como civil (sem identificação), seqüestros e assassinatos, entre outros.

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A repressão, baseada em um plano perfeitamente estruturado tinha, além do mais, como objetivo, submeter a população através do terror, impondo assim uma “ordem” sem oposição. Este plano criminoso incluía a desaparição de pessoas, mediante o mecanismo dos Centros Clandestinos de Detenção, nos quais se torturava e se mantinha cativas as pessoas consideradas “dissidentes”, antes de assassiná-las. A “desaparição” de pessoas A “desaparição” foi a fórmula adotada pelos militares para eliminar opositores. Este procedimento, que incluía um léxico específico, consistia, em primeiro lugar, em marcar uma pessoa ou “objetivo”, que logo era seqüestrada – “chupada” – por um comando paramilitar – “grupo de tarefas” ou “patota”. Era transladada a um CCD ou “pozo”, onde, encapuzada – “tabicada” – era despojada de todos os seus pertences. Inclusive, o nome era suprimido e, em seu lugar, se a atribuía uma letra e um número que seriam a forma de identificá-la daí em diante. O detido, sem nenhuma garantia legal ficava, assim, a mercê dos repressores. A “desaparição” das pessoas se completava com métodos que incluíam arrojá-las, ainda com vida, no Rio da Prata (com prévia aplicação de sedativos), desde aviões ou helicópteros militares ou mediante fuzilamentos e enterramentos em fossas comuns, sem nenhum tipo de identificação (Belleli e Tobon 1985; EAAF 1992; Doretti e Fondebrider 2001). Como assinala a Anistia Internacional, em seu informe sobre a desaparição de pessoas por motivos políticos: “Devido a sua natureza, uma desaparição encobre a identidade de seu autor. Se não há preso, nem cadáver, nem vítima, então, ninguém, presumivelmente, é acusado de nada”. Milhares de pessoas, de todas as idades e ocupações (fig. 1), foram seqüestradas e continuam desaparecidas. Uma comissão, constituída em 1983 – Conadep – constatou mais de 9.000 casos, enquanto que, por sua parte, os organismos de direitos humanos falam de mais de 30.000. Ocupação Operários Estudantes Trabalhadores Profissionais Docentes Recrutas e pessoal subalterno das Forças de Segurança Donas de casa Autônomos e vários Jornalistas Atores e artistas Religiosos

Porcentagem 30% 21% 17,8% 10,7% 5,7% 2,5% 3,8% 5,0% 1,0% 1,3% 1,3%

Figura 1 – Distribuição de desaparecidos segundo a profissão ou ocupação (Conadep 1984)

É necessário esclarecer, sem dúvida, que a desaparição de pessoas não foi um método exclusivo da ditadura pós-1976, porém, sim, sua instauração como modelo massificado de destruição da dissidência. Já desde os princípios da década de 1970, os grupos paramilitares conhecidos como Tríplice A, liderados pelo assistente pessoal do general Perón e, depois, ministro do Bem-estar Social, José López Rega, a utilizava como ferramenta repressiva. Os Centros Clandestinos de Detenção como “não-lugares” Talvez pelo horror que produz recordar sua existência ou pela necessidade de alguns de negar essa parte de nossa história recente, são poucos os estudos que discutem os centros clandestinos de detenção (Conadep 1984; Calveiro 2001; Barros 2001; Di Ciano et al 2001; Benítez et al 2002; Daleo 2002; Calvo 2002; Bozzuto, Diana, Di Vruno, 134

Dolce e Vazquez 2004)25. Pilar Calveiro, em sua tese de doutorado (2001) analisa, desde sua condição de ex-detida desaparecida e, também, de cientista social, o fenômeno destes campos de concentração argentinos e os caracteriza como os “quirófanos”, onde se levaram a cabo as “cirurgias maiores”, consideradas necessárias, pelos militares, para a “salvação” da sociedade. Seguindo suas colocações, foi o ponto de partida para construir “uma nova sociedade, ordenada, controlada e aterrada” (2001:11). “O campo de concentração aparece como uma máquina que cobra vida própria. A impressão é que, já ninguém pode detê-la. A sensação de impotência frente ao poder secreto, oculto, que se percebe como onipotente, joga um papel chave em sua aceitação e em uma atitude de submissão generalizada” (2001:12).

Calveiro destaca que os primeiros campos de concentração, na Argentina, começam a funcionar, todavia, durante o governo democrático de Maria Isabel Martínez de Perón, no momento de firmar-se a “Ordem de Aniquilamento” da subversão de 1975. Sem dúvida, só depois do golpe militar de 24 de março de 1976 é que a desaparição de pessoas e os campos de concentração se convertem nas modalidades repressivas por excelência. Durante a ditadura, funcionaram no país, mais de 340 CCD’s. Sua magnitude foi variada e se estima que passaram por eles entre 1.500 a 20.000 pessoas, das quais 90% foram assassinadas (Calveiro 2001:29). Um ponto interessante tem a ver com as fontes de inspiração dos CCD’s. Por acaso, seguem algum modelo? Calveiro não crê que os militares argentinos tenham se inspirado nos campos de concentração nazistas ou estalinistas. Simplesmente, reproduzem práticas de poderes totalizantes que incluem campos de concentração (2001:40). Cremos que uma fonte que deve ser explorada são os modelos empregados pelos militares franceses, na luta armada na Argélia, que incluía centros de detenção clandestinos, onde as pessoas eram torturadas e assassinadas. Não devemos esquecer que um importante número de altos oficiais argentinos recebeu treinamento militar de luta contra a subversão neste país europeu. No CCD primam algumas das concepções iniciais de prisão do século XIX, isto é, o princípio do isolamento total do detido (tanto do mundo exterior como dos demais detidos). Como indica Foucault “a solidão é a condição primeira da submissão total ... o isolamento assegura o colóquio a sós entre o detido e o poder que se exerce sobre ele” (1976:240). Em algum sentido, se assemelha a um campo de concentração, já que ali são reunidos, isolados e retidos os “inimigos”. Sem dúvida, a diferença é que, enquanto que um campo de concentração é “um lugar” que se rege por convenções (ao menos deve fazê-lo segundo uma série de convenções internacionais que garantem algum respeito aos prisioneiros), o CCD não possui nenhuma – ao menos oficialmente – porque simplesmente não existe – institucionalmente. Sua condição de clandestino o outorga a vantagem da invisibilidade e da impunidade. O converte em um “não-lugar” para aqueles que se encontram dentro de seu espaço. Este “não-lugar” transforma seus ocupantes em “desaparecidos”, precisamente por que não estão em nenhum “lugar”, ou, ao menos, não se conhece sua localização. Parte de sua invisibilidade se deve ao fato de que funciona dentro de outros edifícios. Em geral, não são construídos CCD’s. Se adapta parte ou totalidade de um edifício já existente para funcionar como tal (Conadep 1984:58). Precisamente, uma das coisas que 25

É interessante mencionar o fato de que, praticamente, a totalidade das publicações sobre os CCD’s foram geradas pelos próprios sobreviventes destes campos.

135

mais estremeceu a sociedade argentina, assim que retornou a democracia, foi saber que, no edifício “vizinho”, ou “nesse que alguém passava todos os dias quando ia trabalhar”, havia funcionado um CCD. Ali haviam sido torturadas e assassinadas milhares de pessoas e, grande parte das pessoas, não se havia dado conta do que ocorria por detrás dessas paredes. O funcionamento dos CCD A organização e o manejo dos prisioneiros dentro de um CCD evidenciaram uma planificação sistemática. Torna inegável que se tratou de um plano criminoso, ideado para eliminar pessoas (Conadep 1984). Assim, existia uma seqüência de passos, relatada por Niro, na introdução, que começava com a chegada dos detidos. Eram desnudados e se lhes atribuía uma letra e um número que, a partir desse momento, se convertia em sua única identificação. Posteriormente, o “ablande”, que consistia em sessões de tortura sistemática, onde se encarregava de aprofundar este processo de destruição da identidade. Por que esta ênfase em despojar os detidos de seus nomes e, portanto, de suas identidades? Se não há nomes – uma das características básicas de qualquer ser humano – não existem pessoas. Simplesmente, corpos anônimos que estão sujeitos aos dispositivos punitivos e burocráticos dessa estrutura repressiva. Sem identidade, o sujeito perde os laços com sua própria história, com seu passado. Transforma-se em um ser quebrado. Esta situação favorece a possibilidade de delatar companheiros ou de obedecer às ordens impostas. Por sua parte, os repressores, se bem que tão pouco utilizavam seus verdadeiros nomes dentro dos CCD’s, diferentemente dos detidos, tinham apelidos – Hueso, Angel, Gordo, Turco, Doctor K, Padre, Calculin, Raul, Karateca, entre outros. Essa transformação não só assegurava preservar sua verdadeira identidade diante dos detidos e, inclusive, em certos casos, de seus próprios colegas, senão que transformá-los em pessoas diferentes. Ter múltiplas personalidades tais como, bom pai e torturador sádico.26 De igual maneira, os CCD’s recebem nomes simbólicos, que permitem a existência destes “nãolugares”. El Olimpo, Club Atlético, Vesubio, Garage Azopardo, Talleres Orletti, entre outros.27 Os detidos podiam passar dias, meses, ou, inclusive, anos em um CCD. Até que se decidia se os “transladavam” – gíria que significava assassiná-los – ou se os branqueavam e passavam a ser presos comuns do serviço penitenciário. Durante a maior parte desse tempo, como foi anteriormente mencionado, permaneciam “entupidos”, isto é, encapuzados ou vendados, o que era outra forma de tortura (fig. 2). “A tortura psicológica do capuz é tão mais terrível do que a física, ainda que sejam duas coisas que não se pode comparar, já que uma procura chegar aos umbrais da dor. O capuz procura o desespero, a angústia, a loucura. Encapuzado, tomo plena consciência de que o contato com o mundo exterior não existe. Nada te protege. A solidão é total. Essa sensação de desproteção, isolamento e medo é muito difícil de descrever. Só o fato de não poder ver, vai socavando a moral, diminuindo a resistência” (Lisandro Cubas, Conadep (1984:59).

26

Um bom exemplo disto é a obra de Eduardo Pavlovsky “O Senhor Galindez”. Estes centros têm nomes, não são números como hoje os comissariados. Existem? Também são demolidos. Também desaparecem? Maria Ximena Senatore (comunicação pessoal, 2005). 27

136

Fig. 2 – Desenho de artistas, no lugar em homenagem aos detidos no Club Atlético

Benítez, Enríquez e Di Ciano (2001:11), definem de maneira clara os resultados buscados por esta maquinaria do horror: “A vida dentro do campo e as sessões de tortura estavam planejadas para chegar à destruição e denegrição do cativo”. Ao mesmo tempo, existiam mecanismos implementados para evitar o suicídio dos prisioneiros, assim como, as tentativas de fuga. Tais mecanismos, eram diálogos dos repressores com os detidos, sobre suas famílias ou perguntas sobre planos quando deixassem o CCD. “O responsável pelo Club Atlético era o Comissário Antonio Benito Firovanti, aliás, “Tordillo”, “Coronel” ou “De Luca”, que dedicava longas horas a falar com os seqüestrados. Os interrogava sobre suas famílias e, em torno dos planos que tinham se saíssem em liberdade. Esta política tinha um fim específico: criar falsas expectativas para reduzir as tentativas de suicídio e desalentar toda a idéia de fuga. Aqui se esboçou uma política que, em meados de 1978, se aperfeiçoou e se desenvolveu em outros campos” (Benítez, Enríquez e Di Ciano, 2001:11).

No CCD, apesar de sua clandestinidade, existia uma organização perfeitamente articulada que permitia o funcionamento desta máquina de desaparecimento, composta por diversos grupos: Patotas Grupos de tarefas, encarregados dos procedimentos orientados para seqüestrar pessoas. Grupos de inteligência Grupo que manejava a informação, selecionando as vítimas e orientando as torturas. As guardas Formavam o aparato de vigilância e de manutenção do CCD. Os desaparecedores de cadáveres Era o grupo que se encarregava do assassinato e da deposição final dos corpos. Para Calveiro, esta divisão de tarefas tinha como objetivo que ninguém se sentisse como único responsável. O dispositivo consistia, ao mesmo tempo, em despojar os detidos de sua condição de pessoas e gerar uma cadeia ou engrenagem que garantisse o

137

funcionamento automático dessa maquinaria de destruição. Como uma cadeia de montagem fabril, “tudo adotava a aparência de um procedimento burocrático” (2001:39). O Club Atlético O caso do Club Atlético – CA – se apresenta como relevante para se discutir estas questões por sua história particular (Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001). Sabemos que foi produto da dissolução e translado de outro CCD “Garage Azopardo”, que funcionou entre 1976 a 1977, a poucas quadras de distância, no mesmo bairro. Posteriormente, no momento de desativação do CA, em finais de 1977, sua infra-estrutura e os detidos que ali se encontravam foram relocados em um CCD chamado de “El Banco”, que foi criado para, especificamente, tal finalidade. Finalmente, foi instituído um novo CCD, um dos mais conhecidos, cujo triste e célebre nome foi “El Olimpo” (1978-1979). Nome do CCD

Data de funcionamento

Garage Azopardo Club Atlético El Banco El Olimpo

Agosto de 1976 – Fevereiro de 1977 Fevereiro de 1977 – Dezembro de 1977 Dezembro de 1977 – Agosto de 1978 Agosto de 1978 – Janeiro de 1979

O Club Atlético, cujo nome, em realidade, era “Centro Anti-subversivo” (Club Atlético foi uma derivação das iniciais CA) funcionava no sótão de um depósito de abastecimento da Polícia Federal, na cidade de Buenos Aires, entre as ruas Paseo Colón, Cochabamba, San Juan e Juan de Garay (fig. 3). Sabe-se que, por ele, passaram ao redor de 1500 pessoas, a maioria das quais, permanece desaparecida. Tinha a capacidade para manter, ao mesmo tempo, 200 detidos. O edifício foi demolido em 1977, já que se encontrava no traçado da auto-estrada 25 de Mayo.

Fig. 3 – Vista da fachada do edifício em que funcionou o “Club Atlético”

O projeto arqueológico

138

No ano de 2003 é tornado público, pelo Governo da Cidade de Buenos Aires, um concurso de projetos para escavar os restos deste lugar.28 Nossa proposta foi selecionada (Bianchi Villeli e Zarankin 2003a). O projeto se chamou “Arqueologia como memória: intervenções arqueológicas no Centro Clandestino de Detenção e de Tortura ‘Club Atlético’”. Os objetivos do projeto podem ser resumidos em dois pontos principais. Por um lado, buscamos entender a lógica do funcionamento e da organização espacial da arquitetura deste dispositivo desaparecedor de pessoas. Por outro, o segundo objetivo foi de contribuir com a construção de uma memória material. Isto é, transformá-la em algo físico, para assim, poder ser percebida, de diferentes maneiras, a palavra (oral ou escrita). Uma memória que pode ser tocada, ouvida, experimentada (fig. 4). Como exemplo, podemos mencionar como uma simples bolinha de ping-pong29, recuperada durante as escavações, pode se transformar em um símbolo do sofrimento daqueles que foram torturados neste lugar. Como assinala Delia Barrera (2002:4), sobrevivente do Club Atlético: O que pensariam os que jogavam ping-pong, em frente à leonera 30 enquanto que nós éramos torturados, desta bolinha que acabamos de encontrar debaixo do elevador de cargas?

Devemos considerar que, a história da repressão ilegal durante a ditadura militar, tem sido ocultada ou contada através de uma “versão oficial”. A escavação do Club Atlético, então, é uma forma de recuperar a memória e, através dela, contrapor-se a história que nos foi transmitida. Tratou-se de um projeto que contemplou a participação de sobreviventes e de familiares dos detidos no próprio centro de detenção Club Atlético. Foi uma forma de reapropriação de sua própria história que, de alguma maneira, é a de todos.

28

Com anterioridade, aconteceram trabalhos de escavação coordenados pelo Lic. Marcelo Weissel (Weissel 2002; Barrera 2002). 29 Trata-se de uma bolinha de ping-pong, com a qual, os torturadores se entretinham enquanto os presos eram torturados. 30 Cela comum onde, em geral, eram colocadas as mulheres grávidas.

139

Fig. 4 – Vista dos trabalhos de escavação no Club Atlético (2003)

A organização do espaço no Club Atlético Não foram localizadas plantas que possam dar conta de como era realmente a organização espacial deste CCD. Tão pouco, puderam ser confeccionadas a partir dos restos deste lugar. Mais de 80% de sua superfície encontra-se, todavia, sem ser escavada (e grande parte dificilmente poderá ser estudada, já que implica demolir a auto-estrada que passa por cima). Por tal motivo, trabalhamos, tomando como base os relatos e uma planta gerada pelos próprios sobreviventes - (fig. 5 e fig.6 – em função de suas recordações31 (Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001:10). Posteriormente, foi contrastada com os espaços do centro que foram escavados, mostrando que existe uma concordância importante entre ambos.

Fig. 5 – Planta gerada pelos próprios sobreviventes, em função de suas recordações (em Benítez, Enríquez e Di Ciano 2001:10) – esquerda. Planta do setor escavado (Bianchi Villeli e Zarankin 2003b) – direita.

Exemplos de relatos Delia Barrera (em Benítez et al. 2001:10) 31

Este mesmo procedimento de reconstrução de CCD’s foi empregado em outros centos, como assinala o informe da Conadep (1984:60): “Foi determinante a memória corporal dos detidos. Quantas escadas deviam subir-se ou descer-se para ir à sala de tortura. Quantos passos deviase contar para ir ao banheiro, quantos estalos, que giro ou qual velocidade produzia o veículo no qual eram transportados ao entrar ou sair do CCD, etc”.

140

Descrição: “A dependência contava com dois níveis. Ao primeiro, se acedia por uma porta de vidro. Ali havia uma repartição, na qual, se podia observar 2 escritórios, máquinas de escrever e um telefone ... O subsolo carecia de ventilação e de luz natural. Era muito úmido e calorento. Ingressava-se por uma estreita escada que levava a uma sala munida de uma mesa de ping-pong que os repressores usavam para jogar. Ao fundo, uma sala da guarda, duas celas para incomunicáveis, uma peça de torturas e “la leonera”, um aposento com piso de cimento, dividido em boxes, com uma parede de um metro de altura. Completava a estrutura, 41 celas pequenas, numeradas, com catres de cimento, munidos de um colchão fino de espuma e de um cobertor. As portas tinham uma pequena abertura. No piso, havia um frasco com lavandina (água sanitária), no qual deviam urinar os seqüestrados. Os automóveis entravam pelo Paseo Colón. Os vizinhos de então puderam observar que, detrás do portão de acesso, havia uma cortina escura que fechava depois que passavam os veículos. Assim que saiam dos carros, os prisioneiros eram empurrados para uma escada até o subsolo ...”

Conadep (1984: 90) Descrição:”Primeiro nível: salão azulejado, portas de vidro, um escritório grande e outro pequeno. Neles se identificava e se atribuía um número para cada detento. Acesso dissimulado para o subsolo. Subsolo: sem ventilação e nem luz natural. Temperatura entre 40 a 45 graus no verão. Muito frio no inverno. Grande umidade. As paredes e o piso vertiam água continuamente. A escada levava a uma sala munida de uma mesa de ping-pong que os repressores usavam. Ao fundo, uma salinha da guarda. Duas celas para incomunicáveis. Uma sala de torturas e outras para enfermaria. Cozinha, lavadouro e duchas. Estas com uma abertura que dava a superfície externa por onde os guardas observavam o ânus das mulheres. Outro setor para depositar o botim de guerra. Cela chamada “la leonera”, com tabiques baixos, que separavam os boxes de 1,60m x 0,60m. Em um setor, 18 celas, em outro 23. Todas de 2m x 1,60m e uma altura entre 3m e 3,50m. Três salas de torturas, cada uma com uma pesada mesa metálica. Colchões pequenos de espuma, manchados de sangue e de transpiração”. Fig. 6 – Exemplos de relatos sobre o Club Atlético. Analise da planta do Club Atlético Para aprofundar nossa leitura da arquitetura e da organização do espaço do Club Atlético, utilizamos como ponto de partida a planta produzida pelos próprios detidos. É analisada a partir de uma série de modelos gerados desde a arquitetura e das ciências sociais32. Entre estes, o modelo Gamma de Hillier e Hanson (1984) e os índices de Blanton (1994). O modelo Gamma dos arquitetos ingleses Hillier e Hanson permite decompor o edifício em uma série de gráficos para entender a organização de seu espaço. Como resultado deste, obtivemos um gráfico de sua estrutura, composta por nodos (que representam espaços) e por conexões (que são as portas que conectam um nodo (ou espaço) com outro) (fig. 7).

32

Estes modelos já foram aplicados com êxito em outras estruturas arquitetônicas (Zarankin 1999, 2002).

141

Por sua parte, o arqueólogo Richard Blanton (1994), tomando por base o modelo Gamma, construiu uma série de índices que possibilitam afinar e aprofundar a análise da estrutura arquitetônica. Estes índices são denominados de “escala” (mede o tamanho da estrutura), de “integração” (estabelece o tipo de comunicação e de circulação dentro da estrutura) e de “complexidade” (permite ver a distribuição e o isolamento dos espaços) (fig. 8 e 9). Aplicação do Modelo Gamma

Fig. 7 – Aplicação do modelo Gamma 33

Índices de Blanton Nodo

conexiones

Dist.ext

Nodo

conexiones

Dist.ext

1

1

4

31

1

4

2

3

3

32

1

5

3

3

2

33

1

5

4

1

3

34

1

5

5

1

4

35

5

4

6

1

2

36

24

5

7

1

3

37

1

6

8

2

2

38

1

6

33

É importante assinalar que, apesar de que existia um elevador de cargas que chegava ao subsolo, no momento de funcionamento do centro, este estava desativado ou não funcionava (por tal motivo, só existia uma única escada para aceder ao setor onde funcionava o centro).

142

9

5

1

39

1

6

10

1

3

40

1

6

11

4

2

41

1

6

12

1

3

42

1

6

13

20

3

43

1

6

14

1

4

44

1

6

15

1

4

45

1

6

16

1

4

46

1

6

17

1

4

47

1

6

18

1

4

48

1

6

19

1

4

49

1

6

20

1

4

50

1

6

21

1

4

51

1

6

22

1

4

52

1

6

23

1

4

53

1

6

24

1

4

54

1

6

25

1

4

55

1

6

26

1

4

56

1

6

27

1

4

57

1

6

28

1

4

58

1

6

29

1

4

59

1

6

30

1

4

Totales

117

269

Fig. 8 – Tabela para calcular os índices.

Indice de Escala: 59

Indice de Integración: 59 = 1

Indice Complejidad A: 117

-

Indice Complejidad B: 269 = 4.5

59

59 Fig. 9 – Índices de Blanton.

O alto índice da escala – 59 nodos ou espaços – está mostrando o grau de compartimentalização do espaço, dividido de tal maneira que permite maximizar elementos de isolamento, tais como celas, salas de interrogatório e de tortura. Esta estrutura revela, ao mesmo tempo, a necessidade do centro de gerar um espaço celularizado e panóptico como eixo para seu funcionamento.

143

Por sua parte, o índice de integração – 1 – em conjunto com os índices de complexidade – 117 e 4.534 - evidenciam, de maneira indiscutível, que estamos ante espaços não distributivos e de alto grau de isolamento. Este tipo de estrutura é típico de instituições disciplinares e autoritárias, onde existe um espaço de circulação controlado e regulado. A aplicação destes modelos permite observar, como sendo elemento organizativo do espaço, um parâmetro de maximização e de operatividade dos procedimentos repressivos. Funciona como base desta estrutura, uma circulação restringida e controlada, além de um profundo isolamento dos ambientes. Por outra parte, o espaço do “CA” pode ser dividido em dois eixos (fig. 10). Um setor superior (que ocupa aproximadamente uns 20% da superfície total), que podemos denominar de centro burocrático do CCD. Existe outro, posterior, que aloja os prisioneiros e onde se localizam as salas de tortura. Esta organização divide e classifica as pessoas dentro do mesmo, delimitando espaços de circulação e de permanência dos detidos. Burocracia Salas de detenção coletiva Celas Salas de Tortura Celas Fig. 10 – Esquema da organização do espaço no Club Atlético

Cremos que a instalação de salas de tortura, em um espaço central, entre os calabouços, permite, por um lado, minimizar o translado dos detidos no espaço. Ao mesmo tempo, seus gritos podem ser ouvidos por aqueles que, nesse momento, estão nas celas. Existe também um elemento simbólico associado à organização do espaço. Assim, à medida que se avança para o interior do CCD, o nível de suplício vai aumentando. Imaginemos que o prisioneiro não pode ver, porém, sim, experimenta estes espaços através dos sentidos. Os cheiros de corpos e dos fluidos humanos, a umidade e a falta de ventilação no subsolo, o calor e o frio, os gritos e choros dos outros detidos, a dureza das paredes e do piso – onde eram colocados. Trata-se de uma estrutura para ser percebida de maneiras alternativas a visão, através de sentidos como o tato, a audição e o olfato. Seu centro, seu coração, é a sala de tortura. De alguma maneira, representa a materialização do sadismo com que foi projetado o CCD. Os corpos dos detidos, ao estarem imobilizados, atados ou algemados nas paredes e nos pisos, isolados e impedidos de comunicaram-se com os demais, privados de seus nomes, transformam-se em parte da própria arquitetura dos CCD’s. Esta estrutura repressiva absorve a essência das pessoas, transformando-as em meros objetos sobre os quais atuam os dispositivos do poder. Pensemos que, a existência “social” de qualquer pessoa está diretamente relacionada com a possibilidade de interatuar com outros, de reconhecer e ser reconhecida. O CCD, através destes elementos, busca destruir a

34

Neste caso, 4.5 representa a média dos espaços necessários para aceder ao primeiro plano do edifício (que, por sua vez, tinha, provavelmente, outros 4 ou mais espaços que o distanciavam da rua).

144

identidade dos prisioneiros. Esta negação do social gera o que poderíamos denominar de um processo de construção de “não-pessoas” – a pessoa vai desaparecendo simbólica e fisicamente. Conclusões “Os monstros existem. Porém, são demasiado pouco numerosos para serem verdadeiramente perigosos. Os que são realmente perigosos são os homens comuns” (Primo Levy, La tregua, Barcelona, 1988). Nosso interesse pela arquitetura e pela organização espacial dos CCD’s se entende ao pensar que brindam a possibilidade de materializar uma ideologia. Precisamente, ao transformá-la em algo material, a torna “real”, para, dessa maneira, transmitir seus valores e seus significados por meio de discursos que podemos denominá-los de nãoverbais (Fletcher 1989; Monks 1992). Pensemos que, cotidianamente, nossos corpos decodificam, inconscientemente, discursos invisíveis, simplesmente, ao circularem dentro de qualquer estrutura arquitetônica (Markus 1993a, 1993b; Grahame 1995, 2000; Zarankin 1999, 2002). No caso dos CCD’s, a arquitetura e a organização espacial representam um tipo de linguagem alternativa para transmitir mensagens de outra forma, mais palpável do que a da palavra falada. A Arqueologia como disciplina especializada na cultura material brinda a possibilidade de discutir esses discursos, assim como, as ideologias representadas nas paredes (Leone 1977, 1984; Funari 1988; Andrade Lima 1999). Os centros clandestinos de detenção são, ao mesmo tempo, dispositivos de poder destinados a destruir corpos e mentes. São metáforas materiais que codificam discursos autoritários. Sua análise revela o plano sistemático de aniquilação de toda a dissidência gerada desde o governo militar. O estudo da materialidade dos CCD’s se transforma, assim, em um instrumento de construção de uma história negligenciada, de materialização de um dispositivo central desaparecedor de pessoas. Como assinala George Bataille (1992:117) “Architecture is the expression of the very being of societies”. Assim, entendendo os CCD’s como “monumentos” que representam a ditadura militar, poderemos conhecer mais sobre a perversidade e o sadismo das pessoas e das ideologias que formaram parte deste sistema. AGRADECIMENTOS Queremos agradecer especialmente a Comissão de Trabalho e Consenso do Club Atlético, a Melisa Salerno por sua ajuda com as figuras deste artigo e a María Ximena Senatore por sua leitura crítica e sugestões. BIBLIOGRAFIA Andrade Lima, T. (1999) El huevo de la serpiente: Una arqueología del capitalismo embrionario en el Rio de Janeiro del siglo XIX. Sed Non Satiata; Teoría Social en la Arqueología Latinoamericana Contemporánea. Zarankin, A y F, Acuto. (Editores). Del Tridente, Buenos Aires. Pp. 189-238.

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