Arqueologia e Ancestralidade Indígena.pdf

May 18, 2017 | Autor: Fabricio Vicroski | Categoria: Arqueologia, Ancestralidade indígena, Planalto Meridional, Conflitos agrários
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Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul: Indígenas e agricultores dimensões históricas

COLEÇÃO MEMÓRIA E CULTURA Os estudos sobre Memória e Cultura (em suas variadas expressões materiais e imateriais) articulam várias abordagens, problemáticas e propostas de pesquisa desenvolvidas na área das Ciências Humanas. Coadunando perspectivas teórico-metodológicas com análises empíricas, suas repercussões incidem no perceber e compreender como as relações sociais e históricas se articulam, dinamizam, desenvolvem e se cristalizam na perspectiva de seus agentes e da sociedade ampla que integram. Neste sentido, as repercussões das pesquisas excedem o espectro específico das discussões historiográficas para abranger, também, análises sociológicas, filosóficas, institucionais, do cotidiano, das visões de mundo e das ações decorrentes de tais compreensões.

Coordenação: João Carlos Tedesco, Gizele Zanotto, Gerson Luís Trombeta

João Carlos Tedesco Organizador

Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul: Indígenas e agricultores dimensões históricas

2017

Porto Alegre

Passo Fundo

© dos Autores, 2017 Capa: Carta geográfica do estado federal do Rio Grande do Sul, de João Candido Jacques, 1891. Fonte: Biblioteca Luso-Brasileira Digital. Disponível em: https://goo.gl/oeBjgE. Editoração: Alex Antônio Vanin Revisão: Michele Palaoro Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C748 Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul: indígenas e agricultores – dimensões históricas. / Organizador: João Carlos Tedesco. – Porto Alegre: EST Edições, 2017. 448 p. : il. ; 16 x 23 cm. – (NEMEC - Núcleo de Estudos sobre Memória e Cultura). ISBN: 978-85-68569-25-2 1. Conflito social. 2. Demarcação de terra. 3. Índios. 4. Rio Grande do Sul. I. Título. II. Tedesco, João Carlos. CDU 332.021.8(816.5) Bibliotecária responsável Kátia Rosi Possobon CRB10/1782

Contato com o Organizador: [email protected]

Editora & Livraria Frei Rovílio Ltda. Rua Veríssimo Rosa, 311 – 90610-280 Porto Alegre, RS – (51) 3336.1166 www.esteditora.com.br – [email protected]

Sumário Introdução geral....................................................................7 João Carlos Tedesco Arqueologia e ancestralidade indígena no Planalto Meridional do Rio Grande do Sul.............................................13 Fabricio J. Nazzari Vicroski Povoamento, aldeamento e colonização no norte do Rio Grande do Sul – século XIX. Um esboço histórico para a compreensão dos atuais conflitos..............................................37 João Carlos Tedesco Alex Antônio Vanin Indígenas, caboclos e colonos no “Potreiro Grande dos Jesuítas” – Campo do Meio – Norte do RS..................................85 João Carlos Tedesco Alex Antônio Vanin Verildo Pereira A Colônia Militar de Caseros e a questão indígena em meados do século XIX..........................................................137 João Carlos Tedesco Alex Antônio Vanin Fragmentos de uma história de conflitos entre indígenas e colonos no Norte do Rio Grande do Sul – século XX..................179 João Carlos Tedesco Alex Antônio Vanin Gean Zimermann da Silva

A pressão pela terra: a política de redução de áreas indígenas e as demandas atuais no Centro-norte do Rio Grande do Sul..............................................................223 João Carlos Tedesco Gean Zimermann da Silva Alex Antônio Vanin O indígena e o imigrante italiano no Rio Grande do sul: representações de um contato.................................................289 Nathan Ferrari Pastre Colonização, políticas indigenistas e conflitos territoriais atuais: um olhar a partir do ponto de vista dos agricultores familiares no norte do Rio Grande do Sul..................................323 Henrique Kujawa As desterritorializações dos rurais do Norte do Rio Grande do Sul: do final do século XIX ao final do século XX....................351 Joel João Carini Reserva Indígena de Serrinha: o processo de (des)territorialização e as transformações culturais indígenas...............................................................375 Cláudia Aresi Indígenas no mercado de trabalho assalariado: novas simbologias e processos relacionais na luta pela terra no Sul do Brasil.......................................................................405 João Carlos Tedesco Henrique Kujawa Luiz Fernando Nadal da Silva

Introdução geral

O presente volume1 sobre os conflitos agrários envolvendo indígenas e agricultores, no centro-norte do Rio Grande do Sul, coloca em evidência aspectos históricos que estão na base explicativa e causal dos atuais embates. Não estaremos analisando nenhum conflito em particular, como o fizemos 1

Publicamos anteriormente sete volumes envolvendo vários grupos sociais, dentre os quais indígenas, negros, MST (Movimento dos Agricultores Sem-Terra), grandes e pequenos proprietários, atingidos por barragens, quilombolas, instituições mediadoras como a Igreja Católica, o Poder Judiciário, as forças militares (Exército, Brigada Militar, Polícia Federal), sindicatos rurais, poder público estadual e federal, UDR (União Democrática Ruralista), dentre outras. Abarcamos uma temporalidade de mais de um século e meio (meados do século XIX até os dias atuais) tentando entender alguns dos conflitos sociais em torno da questão da terra no centro-norte do Rio Grande do Sul. Os volumes são: TEDESCO, J. C.; CARINI, J. J. Conflitos agrários no norte Gaúcho: Master, indígenas e camponeses. Porto Alegre: EST Edições, 2007, vol. I; --------. (Org.). Conflitos agrários no norte gaúcho 1980-2008. Porto Alegre: EST, 2008, vol. II; ------; (Org.). Conflitos agrários no norte gaúcho. Passo Fundo: IMED Editora, 2010, vol. III; TEDESCO, J. C.; PAGLIOCHI, C. O conflito na Fazenda Coqueiros: criminalização, judicialização e luta social no Norte do RS. Passo Fundo: Editora Berthier, 2010, vol. IV; TEDESCO, J. C.; GOES, V. da S. Entre cruzes, bandeiras e cartilhas. A mediação do campo eclesiástico na luta pela terra no Norte do RS, 1960-2010. Erechim: Habilis, 2011, vol. V.; TEDESCO, J. C.; KUJAWA, H, A. Conflitos agrários no norte gaúcho. Índios, negros e colonos. Porto Alegre/Passo Fundo: IMED/Letra & Vida, 2012, vol. VI; TEDESCO, J. C. (Org.). Conflitos agrários no norte do Rio Grande do Sul: indígenas e agricultores. Porto Alegre: Letra & Vida, 2014. Vol. VII.

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nos dois últimos (vols. VI e VII), porém, estaremos contemplando realidades que estão em evidência na região definida. Nesse sentido, elementos históricos envolvendo a esfera pública, a imigração e a colonização estarão ainda no foco central. A intenção desse volume é oferecer um debate amplo, de base histórica, para além dos sujeitos sociais envolvidos atualmente. No entanto, os campos político, jurídico e de representação dos grupos sociais estão ainda em evidência, bem como as polêmicas, os múltiplos interesses e intenções em jogo; tempos passados em tempos presentes compõem a dinâmica temporal e a base de sustentação dos argumentos de ambos os grupos. É importante continuar dando ênfase ao fato de que o centro-norte do estado revela um cenário de múltiplos conflitos pela terra de longa data. Múltiplos sujeitos sociais estiveram presentes. Alguns dos atuais conflitos já se arrastam por quase duas décadas sem uma solução em evidência; com isso são colocados frente-a-frente dois grupos sociais numa grande tensão social e alteração em seus cotidianos de vida, sociabilidades, culturas, expectativas de sobrevivência e perspectivas em geral. Os argumentos centrais que embasam a luta indígena, de uma forma sintética, são em torno do esbulho e expropriação da terra ocorrida entre meados do século XIX até meados do século XX, ou pelo estado através de suas políticas de terra e de colonização pela esfera pública ou por sujeitos sociais ligados à economia pastoril e extrativista, bem como à colonização privada. Os índios entendem serem contemplados pelo direito à tradicionalidade de ocupação, defendem e justificam a necessidade do reequilíbrio ecossistêmico através da agricultura tradicional, sementes tradicionais, mananciais de água, florestas, etc. Eles entendem que a defesa da diversidade étnica passa pela existência da propriedade da terra. Pelo lado dos agricultores, os quais estão na defensiva, os argumentos que embasam seus discursos e defesas jurídicas se fundamentam em torno da dimensão legal da propriedade, da temporalidade longa na aquisição da terra e no espaço em questão, da necessidade dela para a reprodução cultural, econômica e social. Insistem que não promoveram nenhum tipo de esbulho em relação aos indígenas e que, no momento da aquisição de suas terras, não havia presença indígena. Produzem narrativas demonstrando que a realidade do sul do Brasil é diversa na histórica relação com os índios e na 































legalização dos títulos de propriedade em relação a outras regiões do país, principalmente o centro-oeste e norte; que não adianta transferir a terra da mão dos agricultores e passar para a do índios sem uma política pública de desenvolvimento (etnodesenvolvimento); enfatizam que há necessidade de uma ampla discussão sobre territorialidade tradicional, cultura indígena, processos e ritos de identificação, demarcação, delimitação e julgamento nas questões administrativas e jurídicas que envolvem a demanda indígena pela terra, bem como da transferência de poder entre órgãos de governo e poderes da União, porém, com concepções melhor discutidas em torno da noção de tradicionalidade e territorialidade indígena. Os agricultores entendem que não se resolve o problema histórico de um sujeito, produzindo outros e criando um culpado histórico e com a pecha de intruso e de expropriador, no caso, recaindo sobre os agricultores. Eles entendem que há soluções em curso, sem desapropriar os que já estão legitimamente na terra, principalmente na criação de novas reservas com aquisição pelo estado de grandes propriedades, sem causar danos, tensões sociais, culturais e econômicas entre os grupos que estão em conflito. As polêmicas são amplas, os conflitos se arrastam por muito tempo, não há nenhuma decisão parcial ainda, grupos sociais vivem um cotidiano de limites e indecisões; a esfera política não apresenta alternativas; os grupos de mediação radicalizam posições; quem mais sofre com essa realidade são indígenas acampados em condições precárias de vida e pequenos agricultores (na região em estudo, a grande maioria dos envolvidos é expressiva desse estrato produtivo) que estão à mercê de perder suas terras e sem indenização, além de não ter par aonde ir. É um conflito de grandes proporções por dinamizar múltiplas questões, desde decisões de governo em séculos passados envolvendo áreas indígenas e processos de colonização, legalidade na aquisição de terras, culturas e identidades de grupos, ausência de alternativas para quem sairá perdendo nesse embate político e jurídico. Desse modo, mesmo que não haja uma decisão efetiva ainda de nenhuma demanda, é interessante que tenhamos presente alguns elementos históricos que embasam os argumentos e narrativas de ambos os grupos. É com essa intenção que o estudo presente quer dar uma singela contribuição. Nesse sentido, buscamos adentrar para as ações do governo provincial em meados do século XIX, discutindo alguns elementos em torno das terras ‘ƪ‹–‘•ƒ‰”ž”‹‘•‘‘”–‡†‘‹‘ ”ƒ†‡†‘—Žǣ‹†À‰‡ƒ•‡ƒ‰”‹…—Ž–‘”‡• 





































devolutas, das políticas territoriais e das tentativas de efetivação de aldeamentos. Esse é um período central para entendermos o que vem acontecendo atualmente. Na mesma lógica das ações de estado, outro momento central, estará focado no início do século XX quando efetiva-se mais de uma dezena de aldeamentos e a concretização da colonização das demais terras devolutas. Um terceiro momento se processa no início do século XXI com as demandas indígenas para reaver territórios que, segundo eles, constituíam sua presença no passado, bem como novas demandas dos grupos para reincorporar áreas que foram reduzidas pela esfera pública estadual em algum momento do passado. Trata-se de um estudo de múltiplas mãos e com pesquisadores de formação acadêmica variada. Os recursos de pesquisa também se mostraram diferenciados, porém, a base bibliográfica, histórica e documental foi privilegiada. Pesquisamos em arquivos históricos, no Museu do Índio no Rio de Janeiro, na Secretaria de Terras do Estado do Rio Grande do Sul, em arquivos regionais, em particular, no da Universidade de Passo Fundo, dentre outros. Buscamos sempre referenciar a bibliografia regional em torno da colonização, da ocupação da terra por indígenas, tropeiros, agricultores, estancieiros e extrativistas, pequenos agricultores que migraram de colônias oficiais da velha emigração para o Brasil, em particular no território norte/nordeste do Rio Grande do Sul. Utilizamos do recurso metodológico da pesquisa de campo, com entrevistas, imagens (fotografias, mapas, objetos de uso e que identificam grupos sociais envolvidos), contatos informais, visitas às casas, acampamentos, em momentos de manifestações, encontros, reuniões etc. Revisamos vários relatórios técnicos de ambos os sujeitos envolvidos, recurso esse que propiciou maior embasamento histórico e argumentativo dos sujeitos específicos em questão. Outros recursos de pesquisa foram os jornais regionais e de circulação no estado. Juntamos, nesse sentido, um imenso material nos últimos seis anos (período de maior expressão midiática dos conflitos), os quais, em parte, foram referenciados nos textos do estudo, outros compõem nosso acervo pessoal de matérias sobre o tema. Há, nesse sentido, um material que poderá ser utilizado para quem se interessar em fazer um estudo sobre o papel da mídia (escrita e impressa) nos atuais conflitos, bem como acompanhar e analisar as múltiplas ações públicas dos sujeitos envolvidos. Enfim, buscamos oferecer alguns elementos de base histórica para 

































a compreensão dos atuais conflitos; tivemos como princípio norteador a percepção dos dois lados em questão. Sabemos que é difícil ser neutro no processo de análise em questão, porém, buscamos nos isentar ao máximo e enfatizar a complexidade que o tema revela e sua difícil solução nos atuais parâmetros que a luta apresenta. É interessante enfatizar que é uma luta social em andamento, indefinida e com poucas perspectivas de resolução final, principalmente se a esfera jurídica continuar sendo preponderante. É um tema complexo, inserido em múltiplas dimensões e que presentifica um passado histórico que busca definir perspectivas de futuro para os grupos sociais envolvidos.

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I Arqueologia e ancestralidade indígena no Planalto Meridional do Rio Grande do Sul

Fabricio J. Nazzari Vicroski1

Introdução Ao refletirmos sobre o processo de desenvolvimento da espécie humana, logo percebemos a inegável contribuição das gerações que nos precederam. Assim como a vida em sociedade, a construção do conhecimento é uma tarefa coletiva, que perpassa o tempo e o espaço. Possuímos uma ligação atemporal indissolúvel não apenas com os povos que nos precederam, mas também com as gerações que nos sucederão. Diante deste contexto, parece simples e até mesmo óbvio que a compreensão das demandas sociais contemporâneas deve abarcar uma reflexão mais ampla sobre a sua gênese. O cenário de conflitos fundiários no Rio Grande do Sul, em pleno século XXI, certamente insere-se nesta perspectiva. Para que possamos compreender e, por conseguinte, contribuir para o debate, é 1

Arqueólogo do Núcleo de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Passo Fundo. Doutorando em História (PPGH/UPF).

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preciso analisar as causas do problema, bem como o ponto de vista dos diferentes atores sociais envolvidos. Neste sentido, o presente texto tem por objetivo oferecer um breve panorama acerca da ancestralidade indígena no Planalto Meridional do Rio Grande do Sul, em especial sua porção centro-norte, região que concentra os principais conflitos territoriais entre populações indígenas e pequenos agricultores. A relação secular das famílias de descendentes de imigrantes europeus com as terras onde vivem apresenta-se como um argumento recorrente em defesa de seu direito à propriedade. Todavia, a relação milenar dos povos indígenas com o mesmo território é muitas vezes ignorada, ou ainda relegada a um passado inacessível ou desconectado da realidade atual. No entanto, as atuais demandas sociais nos mostram que o contexto histórico não pode ser ignorado. A dinâmica social extrapola as páginas dos livros de história e as prateleiras dos museus para inserir-se em nosso cotidiano. Podemos nos portar como seres inertes e ignorar nosso papel na sociedade, ou podemos assumir uma postura de diálogo e contribuição para a resolução dos problemas sociais, mas para isto é imprescindível buscarmos conhecimento sobre o tema, pois, do contrário, corremos o risco de defender e promover ações que podem aprofundar ou procrastinar os conflitos. Não podemos nos limitar a apontar e defender o direito à propriedade fundiária a um determinado grupo, seja ele composto por indígenas ou agricultores, pois a dinâmica social e o contexto histórico de cada uma das demandas apresentadas se mostram muito mais complexos, exigindo uma profunda reflexão que deve ser assumida por toda a sociedade. A fim de subsidiar a presente abordagem, foram utilizados dados etnohistóricos, antropológicos e, principalmente, informações resultantes de pesquisas arqueológicas desenvolvidas nas últimas décadas na região Sul do país. Estes dados nos permitem contextualizar historicamente a presença indígena na região.

Território: o motivo do conflito As pesquisas arqueológicas nos mostram a importância da compreensão 



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do espaço físico para o entendimento das estratégias de adaptação e ocupação utilizadas pelas antigas populações no processo de povoamento de um território. A cultura material produzida pelas populações indígenas e desvelada pela arqueologia evidencia, em termos tecnológicos, tanto as formas de adequação adotadas em relação ao meio físico e biótico, bem como as ações efetivas de manejo e antropização deste meio a fim de permitir a sua ocupação e exploração. No tocante às características geomorfológicas, a região em questão insere-se no Planalto Meridional (Figura 1), abrangendo a maior parte do Sul do país, além do Centro-oeste de São Paulo e parte da região oeste de Minas Gerais. Em território gaúcho, com exceção da porção sudoeste, este perímetro também corresponde à área de dispersão da mata atlântica.

Figura 1 - Localização do Planalto Meridional em relação ao território do Rio Grande do Sul.

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Neste contexto, a arqueologia nos permite identificar determinados padrões de assentamento que são característicos desta região, cuja tipologia é esporádica ou inexistente nas demais províncias geomorfológicas, fator que denota tanto uma forma específica de interação e adaptação ao meio, como uma determinada origem étnica destes sítios e vestígios arqueológicos. É justamente para a fronteira oeste do Planalto Meridional que os arqueólogos direcionam suas atenções quando tratamos dos primórdios da ocupação humana do Rio Grande do Sul. O início do povoamento humano nos remete às margens do rio Uruguai há cerca de 12.000 anos, no período de transição entre o Pleistoceno e Holoceno (Kern, 1994). Ao longo de milênios, estes grupos paleoindígenas de caçadores-coletores buscaram explorar as demais regiões do Rio Grande do Sul, sendo possível encontrar os vestígios destas populações em praticamente todo o Estado. Cerca de 10.000 anos após a chegada dos primeiros povoadores, o atual território do Rio Grande do Sul recebeu novas levas populacionais, desta vez os migrantes adentraram no Estado através das fronteiras noroeste e nordeste. Os caçadores-coletores nômades tiveram que mediar a ocupação do espaço com os recém chegados ceramistas-horticultores seminômades, falantes dos troncos linguísticos tupi-guarani e macro-jê, portanto, ancestrais das atuais populações indígenas guarani e kaingang, compondo duas frentes de expansão cujo ponto de contato interétnico é a porção centro-norte do Estado, nas regiões do Planalto Médio e Alto Uruguai.

Migração Tupi-Guarani Por volta de 2.000 anos atrás, os primeiros grupos de horticultores-ceramistas falantes do tronco linguístico tupi-guarani atingiram as margens do rio Uruguai na região noroeste do Rio Grande do Sul. Alguns fatores tais como as mudanças climáticas, o aumento populacional e questões mitológicas são apontados como as causas da migração. Para estes exímios canoeiros, o curso dos grandes rios ditava a rota de expansão. Além de facilitar o deslocamento, a rede hidrográfica também oferecia toda uma gama de alimentos (caça, pesca e coleta), além do solo fértil das várzeas dos rios onde estabeleciam suas áreas de plantio, bem como o clima quente e úmido à que estavam habituados. 



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O Guarani era um agricultor tropical, nascido e criado na Amazônia brasileira, que, no começo de nossa era, expandiu-se pelas terras florestadas da bacia do rio da Prata, onde criou um território de domínio exclusivo. As várzeas do alto rio Uruguai passaram a ser um espaço fronteiriço densamente ocupado desse território. Onde chegava, o Guarani se estabelecia em área de muita água e mata densa na qual pudesse reproduzir seu tradicional estilo de vida. Para tanto, necessitava de terrenos férteis, quentes e com boa drenagem, nos quais fosse possível cultivar plantas trazidas da Amazônia, como o milho, a mandioca, o amendoim, o cará, o algodão e o fumo. E, ao mesmo tempo, conseguir a necessária proteína e gordura, por meio da caça na mata, da pesca nos rios, da apanha de moluscos aquáticos e terrestres e da captura de insetos e seus produtos (Schmitz & Ferrasso, 2001, p. 139).

Seu ímpeto expansionista aliado à vasta hidrografia fez com que a dispersão guarani atingisse todas as regiões do Estado, além de territórios dos atuais países vizinhos, como Uruguai, Paraguai e Argentina (Figura 2).

Figura 2 - Indicação aproximada da área de dispersão dos povos guarani.

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No contexto das rotas migratórias pelo interior do Rio Grande do Sul, a bacia do rio Jacuí ocupa um lugar de destaque. Após avançar a montante pelo rio Uruguai, seus afluentes da margem esquerda formaram corredores de acesso à região centro-norte, as nascentes dos rios Ijuí, Várzea, Passo Fundo, Apuaê e Inhandava estão situadas no Planalto Médio, a partir daí, o curso do rio Jacuí forma um eixo em direção ao centro do Rio Grande do Sul, onde altera o seu curso para o leste permitindo o acesso ao estuário do Guaíba, e, a partir daí, à região litorânea e ao sul do Estado. Entre Passo Fundo e Mato Castelhano, num raio de aproximadamente mil metros, estão situadas as nascentes do rio do Peixe, Guaporé, Passo Fundo e Jacuí, um divisor de águas entre as bacias hidrográficas do Uruguai e Guaíba, duas das três bacias presentes no Rio Grande do Sul, englobando respectivamente quatro sub-bacias: Apuae-Inhandava, Taquari-Antas, Passo Fundo-Várzea e Alto Jacuí. Em suma, trata-se também de uma zona de convergência e transição de diferentes contextos ecológicos, geológicos, geomorfológicos, hidrológicos, vegetacionais, entre outras características. Considerando o papel dos rios nas rotas de deslocamento humano, a região em questão seguramente pode ser interpretada como uma importante zona de convergência e difusão cultural (Vicroski, 2011, p. 120).

As pesquisas indicam que no momento do contato com os primeiros colonizadores europeus, cerca 200.000 pessoas falavam guarani no Rio Grande do Sul. Se abarcarmos os demais Estados do Sul, além do Mato Grasso do Sul e os países vizinhos da Argentina e Paraguai, estima-se que este número oscile entre 600.000 e 800.000 indivíduos (Schmitz, 1991). Atualmente, os diversos topônimos de origem guarani podem ser encarados como patrimônio cultural imaterial deste período. Segundo Kern (2009), a implantação das aldeias guarani não ocorria de forma aleatória, mas, sim, seguia um planejamento de acordo com padrões repetidos desde tempos imemoriais. Este espaço-modelo geralmente contava com uma clareira em meio à mata, junto a patamares elevados das várzeas férteis dos rios, dispondo ainda de recursos hídricos, jazidas de argila para a sua indústria oleira e afloramentos rochosos ou praia de seixos para a produção de artefatos líticos, entre outros fatores. Por vezes, poderia transcorrer certo período de tempo entre a definição do local de implantação da aldeia e sua efetiva ocupação, exigindo assim uma preparação inicial da área, como a abertura de roças e o plantio de alimentos. 

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À medida que expandia seu território, o guarani mantinha uma rede trilhas e caminhos entre as diferentes aldeias, mantendo assim a comunicação e os laços políticos, comerciais e culturais entre os diferentes núcleos. No período de colonização europeia, muitos destes caminhos deram origem a algumas das principais rodovias do Rio Grande do Sul, a exemplo da BR-285 que cruza a região do Planalto Médio na altura das nascentes dos rios Jacuí, Passo Fundo e Várzea. Sob o aspecto da pesquisa arqueológica, a cultura material é considerada o documento que permite realizar as inferências e interpretações que possibilitam a construção do conhecimento sobre estas populações. Diferentemente do que se pode presumir, a identificação de sítios arqueológicos não é exclusividade dos arqueólogos, pois muitas vezes são os próprios agricultores que identificam os artefatos em suas atividades cotidianas, ao preparar a terra para o plantio, ao abrir uma estrada ou escavar o solo para a instalação de uma cerca ou portão. Os artefatos líticos e cerâmicos figuram entre os principais vestígios recuperados nos sítios arqueológicos. Os recipientes cerâmicos eram confeccionados para buscar, guardar e servir água, para preparar e distribuir bebidas fermentadas de milho e mandioca e para armazenar produtos e cozinhar alimentos. Os recipientes maiores, depois de velhos e inúteis, serviam ainda para enterrar os mortos, que eram cobertos por panelas e acompanhados de tigelas com alimentos e bebidas (Copé; Barreto; Silva, 2013, p. 91).

A cerâmica guarani apresenta diversas formas, tamanhos e padrões decorativos. Sua confecção era uma atividade designada às mulheres. Seu empenho, esmero e conhecimento técnico estão materializados nas proporções e detalhes decorativos. As cerâmicas pintadas com formas geométricas nas cores vermelha e preta sob fundo branco destacam-se pela singularidade estética (Figura 3). Além das vasilhas utilitárias, também eram produzidos artefatos cerâmicos como cachimbos e adornos (pingentes e contas de colar). Na arqueologia, a indústria oleira guarani é denominada de Tradição Tupiguarani.2 2

A designação tupi-guarani (com hífen) faz referência à família linguística, enquanto a expressão tupiguarani (sem hífen) corresponde à nomenclatura utilizada para designar a tradição arqueológica. O termo tradição foi cunhado para designar um conjunto de elementos geralmente relacionados às técnicas de produção de artefatos líticos e cerâmicos que persistem ao longo de um certo período

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Figura 3 - Recipiente cerâmico guarani. Acervo: Museu Histórico Regional de Passo Fundo.

Por sua vez, os artefatos líticos (pedra lascada e polida) eram utilizados para atividades cotidianas como cortar, raspar, furar, derrubar árvores e trabalhar a madeira, além de aplicações de uso simbólico como o tembetá, um ornamento labial masculino utilizado em cerimônias de iniciação à virilidade (Kern, 2009), geralmente era confeccionado em quartzo polido, mas também eram utilizados outros materiais. Entre a matéria-prima empregada figura o basalto, diabásio, quartzo, arenito e calcedônia, compondo instrumentos como lâminas de machados, cunhas, mãos-de-pilão, enxós, entre outros (Figura 4). A elaboração dos artefatos líticos era uma tarefa masculina.

de tempo. As variações culturais identificadas dentro das tradições são interpretadas como fases, pois apesar de apresentarem algumas diferenças ainda seguem o mesmo padrão cultural. O estabelecimento das tradições arqueológicas refere-se exclusivamente aos fatores tipológicos da cultura material, sem considerar eventuais diferenciações em outros níveis. Portanto, tal nomenclatura não deve ser tomada como equivalente étnico. 

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Figura 4 - Lâminas de machado polidas. Acervo: Museu Histórico Regional de Passo Fundo.

Assim como na indústria oleira, a escolha da matéria-prima e as ações gestuais necessárias à produção dos artefatos compunham uma cadeia operatória previamente estabelecida, resultando em tipologias que tanto se repetiram como se aprimoraram ao longo do tempo. Obviamente que, além dos instrumentos lito-cerâmicos, outros materiais eram empregados, como a madeira, ossos, dentes e conchas de moluscos; todavia, tais vestígios necessitam de condições específicas para a sua preservação, possuindo assim uma ocorrência limitada. Por volta do século VIII, a ocupação guarani na região centro-norte do Estado mostra-se plenamente desenvolvida (Schmitz, 1991). Apesar da ocupação jê no Planalto e nas matas de araucárias do Alto Uruguai neste mesmo período, a presença guarani também é marcante no registro arqueológico destas áreas, denotando um caráter de fronteira cultural a esta região. A partir do contato com o colonizador europeu, em especial com a fundação das reduções jesuíticas e as investidas dos bandeirantes no século XVII, uma nova dinâmica social foi gestada, exigindo uma reorganização cultural e a adaptação ao novo contexto histórico.

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Migração Jê-Meridional Atualmente no Rio Grande do Sul, o ramo Jê-Meridional, pertencente ao tronco linguístico macro-jê, encontra-se representado pelos kaingang. Durante o período pré-colonial, a arqueologia aponta a presença de outro grupo, possivelmente associado aos ancestrais dos atuais xokleng (laklãnõ), então distribuídos pelos Campos de Cima da Serra no Rio Grande do Sul e na bacia do rio Canoas e Campos de Lages no Estado de Santa Catarina. O índio jê meridional está representado pelos índios Kaingang e Xokleng e seus antepassados de muitas gerações. Eles se originaram nos Cerrados do Brasil Central, entre Goiás e Minas Gerais, donde começaram a se deslocar para o sul, a partir de uns 3000 anos atrás, por causa de intensa e prolongada estiagem, que provocou relativo superpovoamento na região (Schmitz, 2014, p. 7).

Os kaingang somente passaram a ser assim denominados no final do século XIX. Antes deste período, a documentação histórica aponta uma série de denominações, como coroados, bugres, guanhanás, ybiraiyaras, gualachos, pinares, entre outros (Veiga, 2006). É importante notar que esta pluralidade de denominações também pode indicar diferentes parcialidades. O compartilhamento de um mesmo ramo linguístico não significa necessariamente uma uniformidade étnica e cultural. Estima-se que os Jê tenham chegado ao Rio Grande do Sul há cerca de 2.000 anos, adentrando pela região nordeste praticamente na mesma época em que os guarani chegaram às costas do rio Uruguai na fronteira Oeste. Estudos recentes realizados pelo Instituto Anchietano de Pesquisas da Unisinos (Schmitz, 2014), apontam uma intensa ocupação Jê na região dos Campos de Lages entre os séculos VI e XVII. Uma datação ainda isolada apresenta uma data ainda mais recuada, de aproximadamente 2.600 anos, contudo, estes dados preliminares ainda não são passíveis de associação com a expansão Jê no Planalto Meridional. A expansão Jê em direção no Planalto Meridional estava diretamente relacionada com a área de ocorrência dos pinheirais (Araucaria angustifolia). As estações do outono e inverno representavam um período de fartura do pinhão, pautada pela coleta e também pelo armazenamento, pois os Jê desenvolveram técnicas que permitiam a conservação e processamento do pinhão, garantindo a sua oferta durante a primavera e verão (Veiga, 2006), período 

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em que desciam a serra em direção ao litoral norte a fim de complementar a sua dieta com alimentos proporcionados pelo ambiente marinho e lacustre. Desta forma expandiram-se por praticamente toda a metade norte do Rio Grande do Sul (Figura 5).

Figura 5 - Indicação aproximada da área de dispersão dos povos Jê.

Diferentemente dos guaranis que privilegiavam os vales férteis dos grandes rios, os jê tinham uma predileção pelas terras altas. Instalavam seus assentamentos junto aos bosques de pinheirais, em locais com visão estratégica do entorno e uma distância razoável de nascentes ou pequenos cursos d’água. ‘ƪ‹–‘•ƒ‰”ž”‹‘•‘‘”–‡†‘‹‘ ”ƒ†‡†‘—Žǣ‹†À‰‡ƒ•‡ƒ‰”‹…—Ž–‘”‡• 



































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Realizavam empiricamente o manejo florestal das araucárias visando a sua subsistência, além da manutenção e expansão de seu território. Estimativas indicam que no momento da chegada dos colonizadores europeus a Floresta Ombrófila Mista apresentava mais de 200 araucárias por hectare. Sua dispersão atual corresponderia a cerca de 2% do território original (Carvalho & Nodari, 2008). No século XIX, o engenheiro belga Pierre François Alphonse Booth Mabilde prestou serviços como engenheiro agrimensor no Rio Grande do Sul, registrando um grande número de informações sobre os kaingang (coroados) do Planalto Médio, entre outras regiões. Em seus escritos, ele realizou apontamentos sobre a divisão dos pinheirais entre as tribos subordinadas ao alojamento geral. Inicialmente repartia-se o território de forma correspondente ao número de indivíduos de cada grupo, seus limites eram assinalados com machados de pedra na casca dos pinheiros. Cada tribo possuía um sinal correspondente, por vezes estas marcas também eram sinalizadas com tinta preta nas flechas dos chefes das tribos (Mabilde, 1983). Em seus escritos, Mabilde reproduziu algumas destas marcas, além de outras pintadas com tinta vermelha e preta em flechas atribuídas aos índios botocudos das matas da região nordeste do Estado, tomados como os ancestrais dos atuais xokleng (Figuras 6 e 7).

Figura 6 - Grafismos relacionados com os índios Coroados (povos Jê). Fonte: Mabilde, 1983. 

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Figura 7 - Grafismos relacionados com os índios Botocudos (povos Jê). Fonte: Mabilde, 1983.

Nos atuais fragmentos de mata remanescentes do Planalto Meridional ainda é possível encontrar um dos mais característicos vestígios da ocupação Jê deste território, trata-se das chamadas casas ou estruturas subterrâneas escavadas no solo de forma circular ou elíptica e cobertas com uma trama vegetal, proporcionando assim um abrigo onde poderiam ascender suas fogueiras e abrigarem-se do frio. As técnicas de construção são razoavelmente bem conhecidas. A casa era escavada no solo em lugar seco, de forma cilíndrica. Se necessário, havia um poste central apoiado por pedras, que sustentava o telhado feito de galhos grossos de árvore provavelmente colocados de forma radial. A cobertura era possivelmente de ramos de palmeira, para facilitar o escoamento da fumaça da fogueira interna. No fundo desde tipo de habitação, as escavações evidenciaram solos de ocupação sobrepostos em estratigrafia, com fragmentos de cerâmica sobre restos de fogueira, utensílios em pedra lascada e polida, raros artefatos em nó de pinho. Próximo às aldeias, foram encontrados montículos funerários, alongados e baixos, utilizados como se fossem túmulos. Sobre eles, restos de fogueiras indicam cerimônias ou rituais religiosos. Foram encontrados restos de oferendas: milho, pinhão e porongos (Kern apud Golin, 2009, p. 43-44).

As estruturas subterrâneas (ou semi-subterrâneas), por vezes estão associadas a aterros e montículos, podem aparecer isoladas ou compondo grandes aldeias com várias dezenas de habitações. Além dos locais de mata, também são identificadas em áreas de campos e lavouras, onde podem ser confundidas como buracos causados pela erosão ou queda de árvores (Figura 8). ‘ƪ‹–‘•ƒ‰”ž”‹‘•‘‘”–‡†‘‹‘ ”ƒ†‡†‘—Žǣ‹†À‰‡ƒ•‡ƒ‰”‹…—Ž–‘”‡• 



































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Um sítio arqueológico com casa subterrânea pesquisado no município de Passo Fundo apresentou uma datação de Carbono 14 que atesta a presença Jê na região por volta do ano 650, ou seja, há quase 1.400 anos (Schmitz; Novasco, 2013).

Figura 8 - Aspecto atual de uma casa subterrânea em Passo Fundo/RS.

No interior destas estruturas e principalmente em seu entorno são encontrados os vestígios de sua cultura material, em especial os artefatos líticos e cerâmicos. A indústria oleira Jê diferencia-se da cerâmica Guarani em suas formas, tamanhos e decorações (Figura 9). É denominada pela arqueologia como Tradição Taquara. A cerâmica Jê é frequentemente subestimada quando comparada aos recipientes da Tradição Tupiguarani, especialmente pela ausência de grandes recipientes e pinturas com formas geométricas finamente elaboradas pelas artesãs guarani. Todavia, em termos de técnica e funcionalidade, a cerâmica Jê reflete características tecnológicas bem desenvolvidas, como a seleção, limpeza e preparo da argila, composição do anti-plástico, controle da sua queima e oxidação além de uma preocupação estética, visível até mesmo nos recipientes de superfície lisa, cujo processo de alisamento também pode ser interpretado como uma forma de decoração. 

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Figura 9 - Cerâmica Jê. Acervo: Instituto Anchietano de Pesquisas - Unisinos.

Com relação à sua indústria lítica, produziam artefatos em pedra lascada em polida, como machados, cunhas, mãos-de-pilão, raspadores, plainas e picões, utilizados para as mais diversas atividades do cotidiano, como cortar e raspar a pele de animais, macerar alimentos, escavar o solo e extrair raízes e tubérculos comestíveis. Destacam-se os artefatos curvos com lascamento bifacial similares a um bumerangue (bumerangoides), possivelmente utilizados para derrubar a mata e trabalhar a madeira (Copé; Barreto; Silva, 2013, p. 74). Quanto à matéria-prima, foi recorrente o emprego de basalto, diabásio, arenito silicificado e rochas criptocristalinas, como quartzo e calcedônia (Figura 10).

Figura 10 - Artefato lítico Jê (mão-de-mó). Acervo: Instituto Anchietano de Pesquisas - Unisinos.

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Mabilde registrou o processo de confecção dos arcos e flechas pelos coroados, descrevendo a utilização da madeira do ipê preto e o seu desbaste com fragmentos de pedra grés e o posterior aplainamento com lascas de rochas criptocristalinas. A corda era feita com fibras de palmeiras e urtiga. Cortavam o cerne do ipê do comprimento necessário e, com pedaços de grés vermelho, de grãos assaz grossos, desbastavam-no, esfregando com força o pau ao correr das fibras da madeira, até ficar bem arredondado - e afinado do meio para ambas as extremidades. Depois desta operação alisavam mais aquelas partes, assim desbastadas, com outro pedaço de grés de grão mais fino, esfregando-as até desaparecerem as maiores desigualdades. Acabavam o aplainamento com uma lasca de sílex ou calcedônia qualquer que conservasse, no quebrar ou lascar, um gume cortante, com o qual raspavam com sutileza o pau do arco, até ficar o mais liso possível (Mabilde, 1983, p. 138-139).

Concluídas estas etapas, eles poderiam ainda alisar o arco com o auxílio de folhas secas e ásperas da árvore embaúba, em seguida davam um acabamento às varas untando-as com gordura da ave jacutinga aplicada com pele de macaco, para, em seguida, aquecê-las em fogo brando, conferindo um aspecto escuro e lustroso aos arcos. O resultando final eram arcos “com uma uniformidade e perfeição de acabamento que seria difícil a um dos nossos melhores marceneiros - com toda a competente ferramenta à disposição - fabricar um melhor ou mais bem acabado” (Mabilde, 1983, p. 139). No ano de 2014 coordenei o desenvolvimento de um projeto de pesquisa arqueológica executada em função do processo de licenciamento ambiental de um empreendimento imobiliário no município de Passo Fundo. A pesquisa foi realizada com o apoio institucional do Núcleo de Pré-História e Arqueologia da Universidade de Passo Fundo. Na ocasião, tivemos a oportunidade de identificar e cadastrar o Sítio Arqueológico Arroio Pinheiro Torto, inserido em área de expansão urbana. O local é lindeiro à rodovia ERS-324 e aos loteamentos Nenê Graeff e Parque Leão XIII. Trata-se de um sítio lítico com dispersão de material predominantemente em superfície, além da presença de carvão em profundidade. O sítio apresenta uma baixa densidade de vestígios, constituídos em sua maioria por lascas e núcleos de basalto, arenito, quartzo e calcedônia, com evidências de alterações antrópicas (lascamento) além de uma pedra fragmentada com marcas negativas que sugerem sua utilização como suporte para polimento de artefatos líticos (Vicroski, 2014). 

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Tal registro é de grande relevância, pois nos mostra que mesmo as áreas próximas aos grandes centros urbanos ainda apresentam vestígios da cultura material destes remotos habitantes, permitindo o desenvolvimento de pesquisas arqueológicas e a produção de conhecimento. Como o sítio arqueológico não foi escavado, os resultados ainda são preliminares, baseados em prospecções amostrais no subsolo e na coleta dos vestígios em superfície. No entanto, ao avaliarmos o contexto, percebe-se que o ambiente de inserção do sítio é compatível com os locais de assentamento recorrentes entre as populações jê do planalto. Buscando-se ainda uma analogia com os registros etnohistóricos, chega-se a um paralelo com a tipologia dos instrumentos líticos descritos por Mabilde no processo de confecção dos arcos (Figura 11). Certamente o desenvolvimento de futuras pesquisas no local poderá subsidiar o aprofundamento das interpretações.

Figura 11 – Amostra do acervo coletado no Sítio Arqueológico Arroio Pinheiro Torto. Acervo: Núcleo de Pré-História e Arqueologia - UPF.

No tocante à subsistência destes grupos, ela provinha da coleta de alimentos como o mel, palmito, jabuticaba, butiá, abóbora, ariticum, pitanga, guabiroba, larvas de insetos e pinhão, além da pesca e caça de aves e animais como veado, anta, queixada, papagaio e jacu. Quando necessário praticavam uma horticultura incipiente a fim de complementar a alimentação com culturas como milho, feijão e morangas (Veiga, 2006). As grutas e cavernas também eram utilizadas pelos Jê para fins de proteção, abrigo temporário e também como locais de sepultamento. Os túneis (paleotocas) escavados pelos animais da megafauna como a preguiça e o tatu gigantes também eram reaproveitados para este fim. ‘ƪ‹–‘•ƒ‰”ž”‹‘•‘‘”–‡†‘‹‘ ”ƒ†‡†‘—Žǣ‹†À‰‡ƒ•‡ƒ‰”‹…—Ž–‘”‡• 



































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De forma geral, as informações resultantes das pesquisas arqueológicas têm dilatado o conhecimento acerca do cotidiano destas populações. Ao cruzarmos os dados com os registros históricos ampliamos ainda mais as possibilidades interpretativas, sempre mantendo a preocupação com a crítica das fontes. No caso específico dos kaingang, trata-se de uma etnia frequentemente estigmatizada, tanto em documentos oficiais, quanto em relatos de cronistas e viajantes. Por se oporem à evangelização dos jesuítas, às frentes de colonização e às políticas estatais de aldeamento, foram frequentemente descritos como povos primitivos e irracionais, opositores à civilização e hostis aos brancos. “Tal resistência foi representada como a negação da civilização ocidental cristã, a qual, por seu lado, os guaranis implementaram (Silva; Barcelos; apud Golin, 2009, p. 66). A partir do contato com o colonizador europeu iniciou-se o processo de enfraquecimento do modo de vida tradicional das sociedades indígenas, alterando radicalmente a dinâmica de ocupação do espaço e a subsistência destes grupos, trazendo as disputas fundiárias para o centro dos debates atuais.

Territorialidade indígena A compreensão dos atuais conflitos fundiários entre indígenas e agricultores necessariamente abarca a reflexão sobre as diferentes concepções de ocupação e exploração de um território, além de exigir um exercício de humildade em relação a outras culturas. A sensibilidade em interpretar outros povos e culturas como algo diferente de nós - sem rotulá-las como inferiores ou superiores - é uma prerrogativa não apenas para entendermos as atuais demandas sociais de indígenas e agricultores, mas também para garantirmos nossa própria sobrevivência e coerência numa sociedade multiétnica e pluricultural. Do ponto vista das instâncias governamentais, o território é algo a ser ocupado e explorado economicamente, assumindo como sua responsabilidade a elaboração e aplicação de políticas públicas neste sentido. Para os colonizadores europeus dos séculos XIX e XX, a ocupação deste território representou a busca por condições de vida dignas, uma possibilidade única de ser um proprietário de terras e tirar dali o seu sustento. Na dinâmica da socie





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dade então gestada, as florestas e os indígenas eram tomados como empecilhos ao progresso, devendo ser integrados à nova sociedade a fim de permitir o avanço da civilização e suas frentes e expansão, ou então eliminados, como no caso dos charruas e minuanos da região pampeana. O termo expansão designa um processo de uso comum entre os geógrafos e, também, adotado pelos historiadores. Nele, os índios são considerados uma espécie de entulho no território, seres aistóricos, como se estivessem na natureza à espera da civilização que se manifestaria para exterminá-los ou acabar com suas estruturas sociais. Consequentemente, transformado em discurso historiográfico, demonstra e articula um processo de representação de legitimidade da expansão territorial dos civilizados (Golin, 2007, p. 66).

A noção de ocupação do espaço para os indígenas em nada se assemelhava à do colonizador branco. Mesmo entre os Guarani e os Kaingang havia diferenças, pois obviamente trata-se de culturas distintas. Segundo Noelli (1993), para a compreensão do espaço guarani e suas áreas de ocupação tradicional é de fundamental importância o entendimento de alguns conceitos inerentes à sua cultura, como as definições de guará, tekohá e teii. Guará seria algo próximo ao nosso conceito de região, ou seja, um espaço amplo abarcando vários ambientes e paisagens como rios, lagoas e montanhas. Tekohá (ou tekoá) seria a região de assentamento propriamente dito, ou seja, a área com condições específicas de instalação e manutenção da aldeia, precisamente delimitada por rios e marcos paisagísticos, podendo incluir um núcleo central e suas parcialidades. Incluem-se aí vários elementos da natureza necessários não apenas à sobrevivência do grupo, mas também à manutenção de sua cultura, englobando, portanto, locais de uso ritualístico ou simbólico, onde o guarani encontrava condições para expressar o conjunto de crenças e costumes que representam o seu “modo de ser”, por eles denominado de teko. Tekoá seria, pois o lugar onde existem as condições de se exercer o ‘modo de ser’ guarani. Podemos qualificar o Tekoá como o lugar que reúne condições físicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas que permitem compor, a partir de uma família extensa com chefia espiritual própria, um espaço político-social fundamentado na religião e na agricultura de subsistência (Ladeira, 1992, p. 97).

O tekohá era, portanto, o local onde o guarani desenvolvia o seu modo de ‘ƪ‹–‘•ƒ‰”ž”‹‘•‘‘”–‡†‘‹‘ ”ƒ†‡†‘—Žǣ‹†À‰‡ƒ•‡ƒ‰”‹…—Ž–‘”‡• 







































ser (teko), e corresponde atualmente ao sítio arqueológico identificado pelos arqueólogos. O conjunto formado pelos diferentes tekohá compõe o guará. Por fim o teii seriam as subdivisões do tekohá, distribuídas de acordo com as suas características ambientais ou políticas, correspondendo ainda ao núcleo de uma família extensa, congregando, por exemplo, os pais, filhos, netos e demais indivíduos com alguma relação de parentesco (Andrade, 2014). Avançando um pouco o raciocínio com base nas pesquisas arqueológicas, em última análise, poderíamos interpretar o atual território do Rio Grande do Sul como um mosaico composto por vários guará de acordo com a cultura guarani. Todavia, isto não significa necessariamente que cada palmo deste território foi de fato ocupado e explorado por esta população no sentido de usufruir de seus recursos naturais. Por sua vez, o conceito de tekohá demonstra que uma área de ocupação tradicional guarani engloba não somente os antigos locais dos seus assentamentos, mas também áreas de uso simbólico e ritualístico indispensáveis à cultura guarani. Logo, os argumentos contrários à demarcação de territórios indígenas baseados na afirmação de que outrora eles viviam em todo o território brasileiro, somente denota o desconhecimento em relação à cultura indígena. Ao mesmo tempo, a área de dispersão dos guarani durante o período pré-colonial não deve ser tomado como um equivalente às áreas de ocupação tradicional. Por sua vez, os Jê-Meridionais também apresentavam uma noção particular acerca das formas de ocupação do território. Segundo Ítala Becker (1976) o direito de propriedade era empregado no sentido de usufruto da terra para a colheita, caça e plantio. Havia uma divisão espacial no tocante à coleta do pinhão, esta distribuição era feita de acordo com o número de indivíduos, e visava a organização da subsistência dos grupos subordinados à uma tribo central, no entanto, não havia restrições territoriais com relação à caça e a coleta de alimentos. A noção de propriedade privada de um território lhes era desprovida de sentido.

Entre os indivíduos da mesma tribo existia verdadeiro comunismo. Nenhum comia ou bebia, sem repartir com os demais. Pelo contrário, quando alguém estava com fome, considerava tudo quanto poderia matá-la como propriedade, também estando em casa alheia. Propriedade de bens imóveis lhes era tão desconhecida como aos antigos Guaianá. E se lhes tivessem perguntado de quem era o território em que habitavam esta pergunta ter-lhes-ia sido tão singular e 



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inintelegível, como se lhes perguntassem de quem era o espaço do céu ou a atmosfera que os rodeava (Mabilde, 1983, p. 82).

A definição do território tradicional entre os jê pode ser compreendida como o local onde durante gerações puderam manter sua relação de usufruto da terra, tanto no tocante à sua subsistência como às suas práticas culturais. Neste sentido, adquire grande importância o ritual de enterramento do umbigo dos recém-nascidos, realizado com o intuito de marcar a relação de pertencimento da criança com o local onde nasceu, externando ainda os desejos dos pais em relação à vida de seus filhos além de assinalar o território onde preferencialmente deveria ser sepultado. “Ao cair o umbigo da criança, ele era enterrado atrás de casa para quando a criança crescer não ir embora e não morar longe da mãe. Se o umbigo fosse jogado em qualquer lugar a pessoa andaria perdida de um lugar para outro (Claudino, 2015, p. 31). Deve-se, evidentemente, intentar um exercício de compreensão destas culturas, no entanto, as informações aqui apresentadas certamente não refletem em sua totalidade a multiplicidade cultural daquele período. Mesmo entre grupos de origem étnica compartilhada, certamente havia interpretações distintas acerca de sua cultura e da ocupação do seu território. No entanto, tais informações são válidas na medida em que nos permitem abstrair nossas opiniões confortavelmente apoiadas pela nossa concepção cultural, levando-nos, no mínimo, a considerar a existência de um outro ponto de vista.

Considerações finais Por muitos anos predominou a falta de conhecimento sobre as populações que habitaram os campos e florestas do Planalto Meridional. Ainda hoje os nossos livros didáticos ignoram este período da História, contribuindo para a difusão de um imaginário popular que inferioriza os antigos habitantes, ignorando que se trata de pessoas com capacidades cognitivas plenamente desenvolvidas, porém, inseridas em outro contexto histórico-cultural, da mesma forma que nossos avós e bisavós, o que não os torna seres humanos inferiores, mas sim pessoas vivendo em outra época. Nas últimas décadas as pesquisas arqueológicas têm contribuindo para desvelar este passado, evidenciando a presença de sociedades complexas na ‘ƪ‹–‘•ƒ‰”ž”‹‘•‘‘”–‡†‘‹‘ ”ƒ†‡†‘—Žǣ‹†À‰‡ƒ•‡ƒ‰”‹…—Ž–‘”‡• 







































história pré-colonial da região. “Longe de comprovar a teoria da miséria e do subdesenvolvimento no estudo das populações pré-históricas, as pesquisas nos levam à constatação da miséria de nossas teorias, se elas não forem continuamente testadas e submetidas à crítica (Kern, apud Golin, 2009, p. 55). Os ancestrais dos atuais povos kaingang e guarani chegaram a esta região há cerca de 2.000 anos, desde então inserem-se num contexto de migrações, contatos culturais (pacíficos e/ou bélicos), e conflitos interétnicos, seja com as populações de caçadores-coletores que habitavam esta região, seja com portugueses, espanhóis, bandeirantes e jesuítas a partir do século XVII, e por fim, com as novas levas de imigrantes europeus e seus desdobramentos históricos nos séculos XIX, XX e XXI. Apesar de habitarem compartimentos ambientais distintos, a arqueologia nos mostra que durante muitos séculos os povos jê e guarani compartilharam o domínio deste território. Por fim, as vicissitudes históricas levaram à predominância da etnia jê nas florestas do Alto Uruguai, nos Campos de Cima da Serra e nos bosques e coxilhas do Planalto Médio. Ao tratar de contexto similar no oeste catarinense, Schmitz e Beber (2011) apontam o século XVII como o forte da ocupação guarani na região. Em seguida, os guarani teriam sido aprisionados pelos bandeirantes paulistas juntamente com os demais indígenas presentes nas reduções jesuíticas, sendo então comercializados como escravos, contribuindo para a predominância do ocupação kaingang nos séculos posteriores. Todos os atores sociais envolvidos devem ser analisados de acordo com o contexto histórico no qual estão inseridos. Certamente os atuais conflitos fundiários não são questões de fácil resolução. A distância cultural entre as partes envolvidas é um elemento complicador. O argumento dos títulos de propriedade centenários conferidos aos imigrantes e seus descendentes, praticamente se dissolve na ancestralidade da presença indígena. A criação de uma instituição (Estado-Nação) com regras específicas para a formalização da propriedade privada (títulos de posse) em um território já habitado, não pode ser um argumento irrestrito e absoluto se os habitantes originais e seus descendentes não reconhecem esta instituição como soberana. Ao mesmo tempo, os descendentes dos colonizadores europeus não podem ser penalizados por condutas e políticas públicas que resultaram no desmantelamento do território indígena e seus atuais passivos sociais. 



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Neste contexto, a arqueologia insere-se como uma possibilidade de mostrar que, tanto indígenas, quanto agricultores possuem um passado em comum, cujos ancestrais migraram para estas terras em busca de melhores condições de vida. Diante desta perspectiva, a intolerância enfraquece e acentuam-se as similaridades, mostrando que ambas as partes podem atuar de forma conjunta na busca por uma sociedade com menos injustiças sociais.

Referências: ANDRADE, Sabrina de Assis. Uma proposta etnoarqueológica sobre a concepção do território: Os Mbya Guarani e Tekoa Pindoty. Cadernos do LEPAARQ. nº 21, Pelotas: UFPel, p. 1-16, 2014. CLAUDINO, Cleci. O papel social da mulher kaingang da Terra Indígena Guarita. Monografia de Conclusão de Curso. Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica. Florianópolis: UFSC, p. 1-60, 2015. KERN, Arno Alvarez. Antecedentes indígenas. Porto Alegre: UFRGS, p. 15-61, 1994. CARBONERA, Mirian; SCHMITZ, Pedro Ignacio (Orgs.). Antes do Oeste Catarinense: Arqueologia dos povos indígenas. Chapecó: Argos, p. 1-364, 2011. CARVALHO, Miguel Mundstock Xavier de; NODARI, Eunice Sueli. As origens da indústria madeireira e do desmatamento da floresta de araucária no Médio Vale do Iguaçu (1884-1920). Cadernos do CEOM, Ano 21, n. 29. Bens Culturais e Ambientais. Chapecó: UNOCHAPECÓ, p. 1-20, 2008. COPÉ, Silvia Moehlecke; BARRETO, James Macedo; SILVA, Mariane Moreira da. 12000 anos de história: arqueologia e pré-história do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: UFRGS, p. 1-116, 2013. GOLIN, Tau. Passo Fundo do território caingangue. In: BATISTELLA, Alessandro (Org.). Passo Fundo, sua história. Volume 1. Passo Fundo: Méritos, p. 65-79, 2007. LADEIRA, M. I. “O caminhar sob a luz” - o território Mbyá à beira do Oceano. Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUCSP, p. 1-226, 1992. MABILDE, Pierre François Alphonse Booth. Apontamentos sobre os indígenas ‘ƪ‹–‘•ƒ‰”ž”‹‘•‘‘”–‡†‘‹‘ ”ƒ†‡†‘—Žǣ‹†À‰‡ƒ•‡ƒ‰”‹…—Ž–‘”‡• 





































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