Arqueologia Forense: do campo ao laboratório. (Comunicação apresentada no Seminário Internacional Sobre Violência de Estado: Direitos Humanos, Justiça de Transição e Antropologia Forense. (CAAF/UNIFESP). 27 a 29 de março de 2017.)

May 22, 2017 | Autor: Claudia Plens | Categoria: Forensic Anthropology
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Comunicação apresentada no Seminário Internacional Sobre Violência de Estado: Direitos Humanos, Justiça de Transição e Antropologia Forense. (CAAF/UNIFESP). 27 a 29 de março de 2017. Arqueologia Forense: do campo ao laboratório Profa. Dra. Claudia Regina Plens (UNIFESP) Profa. Dra. Camila Diogo de Souza (UNIFESP)

Resumo:

Os instrumentos teórico-metodológicos da Arqueologia, desde a etapa localização, retirada do material osteológico no processo de escavação, incluindo etapa de curadoria e registro do mesmo e, finalmente, de análise laboratorial, trazem contribuições fundamentais no processo de análise de um caso forense em Antropologia. Esta breve apresentação tem como objetivo refletir e discutir sobre as contribuições dos métodos arqueológicos na reconstituição da “história do corpo” e, portanto, da reconstituição dos processos de formação do registro forense, ou seja, tanto aqueles que são decorrentes das ações dos vivos na intencionalidade do descarte e deposição do corpo, como aqueles que resultam nas ações naturais ou humanas que determinam perturbações e alterações dos restos ósseos. Não nos cabe expor aqui de maneira técnica detalhada tais processos. Também não constitui nossa intenção discutir as diferenças e particularidades dos contextos arqueológicos em relação aos contextos forenses. Pretendemos apenas pontuar as contribuições dos métodos e técnicas arqueológicas aplicadas na retirada e coleta do material forense que auxiliam de maneira efetiva na complementação e na validação dos resultados das análises dos casos forenses.

Introdução

Em qualquer seriado de investigação criminal como CSI ou séries afins (Bones), imaginamos o antropólogo forense no uso de suas atribuições observando a vítima sobre uma mesa de um laboratório. De modo geral, as análises ósseas realizadas pela arqueologia e pela antropologia forense seguem os mesmos protocolos. Contudo, os procedimentos anteriores a essa etapa, baseados nos protocolos arqueológicos, são distintos, sendo ferramentas fundamentais para a investigação dos estágios pelos quais o

2 cadáver passou até ser localizado, assim como para manter a cadeia de custódia de maneira a dar segurança ao pesquisador sobre sua pesquisa. A Arqueologia, disciplina que estuda as sociedades por meio da cultura material, faz uso de uma ampla gama de técnicas e métodos que, submetidos a um arcabouço teórico, permite compreender aspectos das sociedades. Em campo, a cultura material, desde objetos até a movimentação de sedimento, vestígios de polens, cinzas etc, são indicativos de ações humanas e naturais que atuaram sobre o registro arqueológico. Em todo o mundo, as técnicas e métodos da arqueologia já são reconhecidos desde a década de 1970 com a finalidade forense, no entanto, como apontam Blau & Ubelaker (2016), na América do Norte essas técnicas são tratadas como da área da Antropologia, enquanto na América Latina, segundo os autores, não haveria distinção entre os campos de conhecimento, sendo, apenas na Inglaterra e Austrália, que a distinção dos campos conhecimentos mais bem definidos. No Brasil em particular, a Arqueologia Forense é de conhecimento dos antropólogos forenses, porém de modo ainda incipiente. Dada essa dificuldade, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF/UNIFESP), pretende formar e ampliar o campo de pesquisa no campo de Arqueologia Forense. De início, faz-se importante pensarmos no conceito de Arqueologia Forense. Embora este seja um título empregado em diversas obras, em uma ampla pesquisa bibliográfica não é possível localizar um conceito definitivo para Arqueologia Forense. Grande parte das obras utiliza técnicas e métodos arqueológicos mesclados com criminalística, mas não define de forma clara e sistemática o campo de atuação. Propomos, para tanto, que a Arqueologia Forense visa contribuir com a reconstituição da história dos restos humanos a partir de métodos e técnicas de escavações arqueológicas em contextos forenses. O conhecimento do processo completo sofrido pelo corpo depois da morte e de sua deposição é de suma importância para poder resolver um caso forense. A reconstituição da história dos restos humanos se compõe de dois aspectos, o cultural e o natural. No que diz respeito ao domínio do aspecto cultural, as ações humanas criminosas e sua subsequente ocultação intencional são investigadas com o objetivo de se reconstituir as ações físicas e os instrumentos que provocaram a morte do indivíduo, assim como todos os processos, etapas e materiais empregados para a ocultação da vítima. Entre os processos naturais, destacam-se a identificação dos processos tafonômicos, ou seja, os processos químicos e biológicos que ocorrem naturalmente na

3 decomposição da matéria orgânica e inorgânica após a deposição, criminal ou não, do cadáver. É bem conhecido, por exemplo, que ações de roedores podem impactar os remanescentes ósseos humanos e atrapalhar na estimativa do intervalo pós morte, destruir marcadores osteológicos e danificar lesões e traumas de causa mortis. Ambas as ações culturais e naturais são intrínsecas. Na medida em que determinadas ações humanas são empregadas, elas influenciam diretamente na ação dos processos tafonômicos, levando a ocorrência de marcadores específicos nos ossos a serem analisados como, por exemplo, ações intencionais na ocultação de provas de crime ou de tentativas de destruição do próprio cadáver, como a incineração dos corpos. Para tentar reconstituir tais processos, é fundamental o emprego de técnicas e métodos utilizadas na Arqueologia, desde a busca, localização, delimitação e mapeamento da cena, até a utilização de métodos não-invasivos e invasivos, como as escavações arqueológicas e o registro cuidadoso e sistemático do cadáver e do contexto ao redor, a observação atenta, a identificação, o registro e a coleta das evidências da fauna e da flora que podem compor o contexto como um todo, como a presença de pólens, sementes, ossos animais e, ainda, os vestígios de natureza entomológica, tal como a presença de larvas de insetos como as moscas que podem auxiliar no processo de identificação do processo de decomposição do corpo, por meio da determinação do tempo decorrido entre a morte do indivíduo e sua deposição até sua descoberta. Além disso, os métodos e técnicas de investigação arqueológicos também incluem o reconhecimento da composição dos estratos do solo ou nas unidades de deposição, como as nuances de coloração, textura e compactação das camadas de solo que também podem auxiliar na reconstituição da história de deposição do cadáver. A busca e a localização do local onde se encontram os vestígios forenses podem ser investigadas a partir de análises cartográficas, fotografia aérea, prospecção de superfície extensiva e intensiva, geofísica, com a utilização de radares de penetração do solo, Georradar sísmico, acústico ou eletromagnético e até mesmo uma simples identificação sensitiva, visual e olfativa, que pode ser apurada com o auxílio de cães farejadores. Uma vez determinada a localização, o antropólogo forense deve partir para a etapa de delimitação e mapeamento da área de trabalho. Para tanto, a arqueologia utiliza-se de instrumentos como o GPS (Sistema de Posicionamento Global), estação total, nível

4 óptico, setorização e quadriculamento da área para o melhor registro e controle da espacialidade das evidências. Apoiado por essa metodologia, o investigador deve se valer do registro imagético, sobretudo da fotografia e do desenho e croquis, para registro das evidências e dos procedimentos de investigação. Esses procedimentos acima citados apontam a necessidade de que o investigador e a equipe de trabalho encarregada da retirada das evidências forenses tenha conhecimentos técnicos básicos no que diz respeito às técnicas arqueológicas aplicadas na etapa de campo, quanto ao conhecimento básico de anatomia humana, a fim de buscar partes anatômicas que podem estar perdidas, ou aplicar estratégias de identificação do indivíduo e de reconhecimento de indicativas de traumas, lesões, causa mortis e dos processos tafonômicos que alteraram a disposição dos ossos. Essas informações são primordiais para que o antropólogo forense possa, juntamente com seus dados laboratoriais, decodificar os dados de campo a posteriori para a interpretação dos fatos e, também, para que esses dados possam ser usados de forma efetiva, segura, legal e incontestável juridicamente. A característica principal dos procedimentos arqueológicos é o registro minucioso dos componentes da cena e do processo de retirada e coleta do material. Com o emprego desses protocolos a partir do registro formulado em campo, é possível que o investigador possa reconstituir mais facilmente a cena do crime e, consequentemente, das ações criminosas. A proposta é que o escavador exponha o corpo e as demais evidencias de modo como se o corpo tivesse acabado de ser depositado, tornando possível a compreensão dos elementos que compuseram a cena de forma completa e comparativa, no sentido de entender a relação entre os objetos investigados. Nesse momento, o registro documental dos vestígios, por meio de fotografia, caderno de campo, croquis, desenhos e fichas, é extremamente necessário. É a partir da comparação desses registros que o investigador poderá compreender as ações naturais e culturais que atuaram e resultaram na cena do crime. Caso essa etapa não seja devidamente registrada, todos esses dados fundamentais na resolução de casos forenses serão completamente perdidos. O objetivo principal de tais registros é que os dados se tornem empíricos para poderem ser utilizados a posteriori por antropólogos forenses para suas investigações e

5 também como provas judiciais, caso contrário a utilização dos dados pode ser questionada e, até mesmo, invalidada. Outro aspecto que vale enfatizar é que o investigador de campo deve ter conhecimento de anatomia humana em campo, pois essa competência é um elemento fundamental para se compreender as ações culturais e naturais sobre o cadáver. Como proposto já há algumas décadas no campo das investigações dos contextos arqueológicos por Henry Duday (1990), a partir das observações de partes específicas do corpo, como das articulações, espaços entre os membros, quantidade de ossos, são cruciais para se compreender os processos pelos quais o corpo passou até ser localizado. Mais especificamente, Henry Duday, na sua metodologia intitulada “Antropologia do Terreno” para as escavações dos remanescentes ósseos, propõe quatro elementos a serem analisados:

1. Natureza dos sepultamentos (estudos das articulações do corpo); 2. Espaço de decomposição (onde é considerada a existência de quaisquer estruturas que envolveram o corpo humano); 3. Número de indivíduos no sepultamento; 4. Tipo de sepultamento (primário, secundário ou múltiplo). Sepultamentos primários são aqueles em que o corpo foi uma vez levado a um determinado local e depositado sem sofrer perturbações de ordem cultural, isto é, resultantes das ações humanas, até o momento em que é localizado pelo investigador. O secundário e o múltiplo se tratam dos corpos que passaram por um ou mais locais de deposição até serem depositados no local identificado pelos investigadores forenses. A partir dessa etapa, os procedimentos laboratoriais da arqueologia e antropologia forense convergem em termos técnicos e metodológicos, buscando, sobretudo, identificar o perfil biológico dos indivíduos enterrados, como sexo, idade, estatura, ancestralidade, atividades físicas, marcadores de stress, traumas, lesões, patologias e causa mortis, sendo que de modo geral, a antropologia forense tende a ser mais refinada quanto a busca de resultados mais minuciosos, no sentido de que diferentemente da Arqueologia, cuja busca mais relevante tende a ser a compreensão do modo de vida, das atividades decorrentes de hábitos culturais, sociais e econômicos em vida e da saúde do indivíduo a fim de compreender seu papel social, a Antropologia

6 Forense, visa, sobretudo, identificar a vítima e compreender a causa mortis como ponto essencial para se apontar o acusado a fim de solucionar situações criminais.

Contribuições

Desse modo, entendemos que as contribuições associadas à arqueologia no campo da Antropologia Forense podem ser resumidas, dessa forma, nos seguintes aspectos:

- Identificação, localização, mapeamento, delimitação e controle espacial do contexto forense; - Aplicação de métodos e técnicas específicas de intervenção arqueológica não-invasiva e invasiva de retirada e coleta do material forense, resultando em diferenças fundamentais do processo de desenterramento versus a escavação dos vestígios humanos – métodos, técnicas e registro do material que contribuem de forma efetiva na reconstituição dos casos criminais e no levantamento seguro e sistemático dos indícios judiciais; - Identificação e distinção efetiva dos remanescentes mortais de diferentes indivíduos durante o processo de retirada e coleta dos remanescentes forenses; - Identificação, reconhecimento e reconstrução dos processos tafonômicos e pósfunerários associados a contextos forenses que atuam na perturbação e na configuração do registro após a deposição do corpo, como por exemplo, as ações do meio-ambiente resultantes das etapas de decomposição da matéria orgânica óssea em um determinado tipo de solo, do crescimento de uma planta, raiz de uma árvore, ou, ainda, daquelas provenientes das atividades animais; - Identificar, registrar, documentar e registrar de forma sistemática e segura os remanescentes humanos e todas as evidências que possam estar relacionadas com os mesmos; como os vestígios de natureza botânica e entomológica; - Fornecer elementos que auxiliem na reconstrução dos aspectos de deposição do corpo que resultem na determinação de indícios que possam ser utilizados como provas em processos judiciais por meio de relatórios escritos de todas as atividades de campo.

Conclusões e considerações finais.

Para finalizar estes breves apontamentos, gostaríamos de ressaltar que tanto a Arqueologia Forense, quanto a formação em Arqueologia em geral, não constituem

7 elementos autossuficientes para a investigação de contextos forenses. As contribuições no desenvolvimento dos casos forenses configuram, dessa maneira, uma via de mão dupla, pois o arqueólogo, que comumente trabalha com remanescentes ósseos totalmente esqueletizados, poderá expandir seus estudos em vários aspectos, como por exemplo, no detalhamento das etapas do processo de decomposição dos tecidos moles, na identificação de lesões perimortem, principalmente aquelas resultantes de ações contundentes (isto é, aquelas resultantes de traumas ocasionados por pressão, batidas e deslizamentos) e de ações cortantes (vale dizer, aquelas provocadas por instrumentos que apresentam fio, corte ou gume), além de se especializar em áreas da específicas da Bioarqueologia para aplicação na área forense, área de especialização na Arqueologia. Acreditamos que a interdisciplinaridade constitui o caráter fundamental da Antropologia Forense e, dessa forma, as mais variadas formações dos profissionais que atuam nessa área, como Antropólogos, Odontólogos, Médicos Legistas, Arqueólogos, Bioarqueólogos, Biólogos, especialistas em Direitos Humanos, Biomédica, entre outros, trazem contribuições essenciais com a finalidade de prestar serviços e funções para a sociedade, sejam elas de ordem jurídica e legal, humanitária e, ainda, acadêmica, no campo da pesquisa. Assim, dada a diversidade de formações que lidam com as Ciências forenses e o emprego de métodos e técnicas de diversas áreas, a estratégia de formação que integre esses profissionais na carreira de Antropologia Forense, parece ser a especialização, que permitiria a profissionais de formação diversa a capacitação e aprimoramento em áreas específicas a serem aplicadas em tanto campo, no processo de registro, retirada, coleta e transporte, quanto em laboratório, no processo de análise dos remanescentes forenses. As simulações de escavações de restos ósseos humanos constituem um recurso útil e bastante eficaz na capacitação dos profissionais das áreas mais variadas nos cursos de especialização em Antropologia Forense, evidenciando as contribuições efetivas dos métodos e técnicas das etapas de campo em Arqueologia para o processo de solução de um caso forense. Consequentemente, em diferentes regiões, profissionais na área forense estarão capacitados a aplicarem uma ampla quantidade e diversidade de técnicas, recursos tecnológicos e métodos de modo nivelado, sistematizado e padronizado a fim de garantir resultados mais refinados, aprimorados, sólidos, seguros e incontestáveis.

8 É nesse sentido que a aplicação de técnicas e métodos interdisciplinares e, em particular, nas contribuições da arqueologia, é possível que investigadores possam prestar um serviço mais completo para a sociedade em contextos médico legal ou humanitários.

Referências

Blau, S.; Ubelaker, D. Handbook of Forensic Anthropology and Archaeology (WAC Research Handbooks in Archaeology). Routledge (2a. edição), 2016. Duday, H. L’Anthropologie de “terrain”: reconnaissance et interpretation des gestes funeraires. IN: Bulletins et Memoires de la Societe d’Anthrpologie de Paris. T. 2 (3-4). 1990. Pp.26-49.

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