Arqueologia, Introdução, Editora Contexto

September 7, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, Patrimonio Cultural, Arqueologia Histórica
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FUNARI, P. P. A. . Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2003. ARQUEOLOGIA Introdução:

A arqueologia não pode ser desvencilhada de seu caráter aventureiro e romântico, cuja melhor imagem talvez seja, desde há alguns anos, as saborosas aventuras do arqueólogo desbravador Indiana Jones, o herói cinematográfico de três famosos filmes (Os caçadores da arca perdida e suas seqüências), dirigidos por Steven Spielberg, com roteiro de George Lucas e o galã Harrison Ford como protagonista. Pois bem, quando do auge do sucesso de Indiana Jones, o arqueólogo brasileiro Paulo Zanettini escreveu um artigo no Jornal da Tarde, de São Paulo, intitulado “Indiana Jones deve morrer!”. Para ele, assim como para outros arqueólogos profissionais, envolvidos com um trabalho árduo, sério e distante das peripécias das telas, essa imagem aventureira é incômoda. O fato é que o arqueólogo, à diferença do historiador, do geógrafo ou de outros estudiosos, possui uma imagem muito mais atraente, sexy até, inspiradora não só de filmes (como O Corpo, dirigido por Jonas McCord, com uma bela arqueóloga no papel de mocinha, interpretada pela atriz Olivia Williams) mas também de romances e livros os mais variados, que trafegam entre a ficção e a ciência, muitas vezes descrevendo oníricos passeios pelos mistérios do passado. Um dos grandes autores de best sellers contemporâneos é o arqueólogo italiano Valério Massimo Manfredi (autor do romance Alexandre). De onde teriam surgido essas imagens e essa fama? Seria tudo apenas uma grande ilusão? Bem, para usar uma expressão de Eça de Queiroz, “sob o manto diáfano da fantasia” escondem-se as histórias reais que fundamentaram tais percepções. A arqueologia surgiu no bojo do Imperialismo do século XIX, como um subproduto da expansão das potências coloniais européias e dos Estados Unidos, que procuravam enriquecer explorando outros territórios. Alguns dos primeiros arqueólogos de fato foram aventureiros, responsáveis, e não em pequena medida, pela fama que se propagou em torno da profissão. O mais famoso arqueólogo de todos os tempos foi, também, o mais aventureiro, a verdadeira e profunda inspiração para o Indiana Jones do final do século XX: Heinrich Schliemann (1822-1890), autor de dez livros, que deixou ainda 150

volumes de manuscritos, com mais de 60 mil cartas em vinte idiomas. Sua trajetória de vida foi (e ainda é) tema de milhares de publicações. Dominando várias línguas, estudou na Sorbonne, em Paris, onde se aprofundou em temas pouco comuns naquela época, como língua e literatura árabes, mas também filologia e arqueologia egípcias. Em 1868, Schliemann decidiu visitar a Grécia e o Império Turco Otomano, seguindo a rota de Ulisses, personagem lendário grego, mencionado por Homero na Ilíada (Ulisses, ou Odisseu, teria sido rei de Ítaca e um dos principais heróis do cerco a Tróia), cuja volta à pátria constitui o assunto da obra Odisséia. Em busca da reconstituição da trajetória de Ulisses e da cidade de Tróia, Schliemann foi a Corfu, Cefalônia, Itália, Peloponeso, Micenas e Turquia, fazendo ainda algumas escavações em Ítaca. Em 1870, chegou a Hissarlik, aldeia turca que ele acreditava ser a lendária Tróia. Já em 1872 estava certo de ter encontrado a cidade mítica e seus tesouros. Logo após, voltou-se para Micenas, outra cidade “cheia de ouro”, tendo mesmo considerado que havia descoberto a tumba de Agamenão. Sua fama, tanto na imprensa quanto nos círculos arqueológicos, tornou-se logo a de um caçatesouros. Sua busca incansável por vestígios que confirmassem os autores antigos, em especial Homero, teria grande seqüência na arqueologia, que muitas vezes procura comprovações materiais de algum relato histórico ou mitológico (nem sempre é possível diferenciar um de outro). Schliemann pode, assim, ser considerado o exemplo máximo da arqueologia imperialista e aventureira. O relato de suas façanhas levou, nas décadas seguintes e até hoje, muitos jovens a interessarem-se pela arqueologia. Outro arqueólogo, em certo sentido, aventureiro, foi Howard Carter (1874-1939). Nascido na Inglaterra, deu seqüência à tradição inaugurada por Schliemann, a de profissionais eruditos, mas em nada preocupados com a vida acadêmica. Em 1900, Carter tornou-se inspetor de antiguidades do Alto Egito e Núbia, em Lúxor. Em 1922, encontrou uma tumba intacta, de um faraó pouco importante, mas cuja riqueza estava bem preservada. Tornou-se, em pouco tempo, uma personalidade de fama mundial, o descobridor da tumba de Tutancamon. De 1925 a 1932, Carter dedicou-se ao estudo da tumba e sua saga serviu para perpetuar a visão aventureira em torno do ofício. Certamente, a arqueologia não se reduz a essas imagens. É um campo muito mais rico e complexo — atualmente desenvolvido com grande profissionalismo (um tanto distante das versões romanceadas e cinematográficas) — como veremos neste livro que se pretende um verdadeiro convite à arqueologia. É claro que um livro introdutório sobre o assunto implica numa grande responsabilidade por parte do autor. Em primeiro lugar, deve fornecer um manancial básico de informações e, em seguida, uma visão condizente com a complexidade da arqueologia, que é multifacetada.

Por fim, cabe explicitar os pontos de vista defendidos pelo autor e que explicam a própria organização das informações fornecidas neste livro. Isto significa correr riscos. Como afirma o arqueólogo Robert C. Dunnel na Reviews in Anthropology, de 1986, não há, provavelmente, tarefa menos compensadora, ainda que essencial, do que tentar sintetizar e explicar uma disciplina. Mesmo naqueles aspectos em que existe um acordo superficial de objetivos, metodologia e resultados, a tentativa de explicação de como tudo isso funciona na prática remete a diferenças fundamentais entre seus praticantes — e coloca o autor na desconfortável posição de desagradar, ao menos em parte, quase todo mundo. Entretanto, na medida em que privilegio o contraste e o conflito entre as diversas concepções do que seria a atividade do arqueólogo, procuro oferecer ao leitor a possibilidade de avaliar criticamente e de posicionar-se diante das vertentes arqueológicas existentes. O objetivo aqui é apresentar ao leitor, de forma genérica, as principais questões da arqueologia contemporânea, incluindo referências ao contexto brasileiro.

Iniciamos com uma discussão sobre o que é a arqueologia, tratando, a seguir, de como raciocina o arqueólogo, do trabalho com o material considerado arqueológico, do desenterramento e escavação à interpretação dos vestígios. Também veremos alguns aspectos da relação entre arqueologia e poder e das implicações sociais do trabalho do arqueólogo. O leitor encontrará, ainda, um roteiro de leituras para aprofundamento por temas. E talvez — espero — conclua, ao final do livro, que a arqueologia, uma atividade ao mesmo tempo séria e apaixonante, é, de fato, uma grande aventura.

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