Arquitetura + música como processo de projeto para a composição arquitetônica

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Universidade Presbiteriana Mackenzie Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – Mestrado

Arquitetura + música como processo de projeto para a composição arquitetônica.

Agnes Costa Del Comune Orientador: Prof. Dr. Rafael Antonio Cunha Perrone São Paulo | 2016

AGNES COSTA DEL COMUNE

Arquitetura + música como processo de projeto para a composição arquitetônica.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

Linha de Pesquisa: Arquitetura Moderna e Contemporânea: Representação e Intervenção.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Rafael Antonio Cunha Perrone

São Paulo | 2016

D331a Del Comune, Agnes Costa.

Arquitetura + Música como processo de projeto para a composição arquitetônica / Agnes Costa Del Comune - 2016. 194 f. : il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2016. Bibliografia: f. 169 – 173.

1. Arquitetura. 2. Música. 3. Processo de projeto. I. Título. CDD 720

AGNES COSTA DEL COMUNE

Arquitetura + música como processo de projeto para a composição arquitetônica.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

Linha de Pesquisa: Arquitetura Moderna e Contemporânea: Representação e Intervenção.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Rafael Antonio Cunha Perrone

Aprovada em: ______/______/______

BANCA EXAMINADORA: ___________________________________________ Prof. Dr. Rafael Antonio Cunha Perrone Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo ___________________________________________ Profª. Drª. Ana Gabriela Godinho Lima Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo ___________________________________________ Prof. Dr. Marcos Virgílio da Silva Centro Universitário Belas Artes, São Paulo São Paulo | 2016

Dedico este trabalho para Thales, irmão, compositor e revisor. Nossas conversas, juntamente com suas sugestões, correções e comentários foram

fundamentais

realização desta pesquisa.

para

a

Agradecimentos Agradeço a todos os que me ajudaram na elaboração deste trabalho, especialmente: Aos meus pais, pelo grande incentivo durante todo o mestrado. Ao Gabriel Ferry, pelo constante apoio para que me torne uma pessoa cada vez melhor. À CAPES, pelo apoio para o desenvolvimento do trabalho com a provisão da bolsa de mestrado. Ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pela oportunidade de realização desta pesquisa. Ao meu orientador, Prof. Dr. Rafael Perrone, muito obrigada pela sempre excelente dedicação e auxílio, pelas aulas e conversas. Agradeço também o seu constante interesse em querer entender mais sobre esse trabalho, estimulando sempre a pesquisa. À Profª. Drª. Ana Gabriela Godinho Lima, pela oportunidade em trabalhar nas pesquisas, pelas diversas contribuições, ajudas e conversas, que me fazem evoluir cada vez mais como pesquisadora. Aos colegas do PPGAU-FAU Mack, pelos momentos que compartilhamos juntos, nas aulas e tarefas desenvolvidas ao longo do curso. À Renata Mendes Cosenza e Manuella Andrade: foi ótimo participar de nosso grupo de estudos! Muito obrigada pelas conversas,

sugestões,

discussões,

desabafos,

incentivos

contribuições. A ajuda de vocês foi muito importante.

e

Resumo Sob o tema ‘arquitetura + música’, esta pesquisa de mestrado propõe uma reflexão a respeito do papel da música para a arquitetura, analisando como esta poderia ser empregada pelo arquiteto ao longo do seu processo de projeto, como possível ferramenta para a definição de elementos arquitetônicos. Para tal, o trabalho foi organizado em três partes. Primeiramente, são discutidas algumas possíveis relações entre as duas disciplinas com o objetivo de identificar os modos pelos quais a música concretamente poderia contribuir para a arquitetura, como veículo para o desenvolvimento de formas e elementos em um projeto. Aqui vemos, sob o ponto de vista de Rabelo (2007), que a relação entre as duas disciplinas é uma preocupação que existe desde a antiguidade clássica e que atualmente continua a ser o foco de estudos acadêmicos, como os indicados por Martin (1994) e Kanekar (2015), uma vez que são várias as aproximações que podemos observar entre a arquitetura e a música, entre elas, as que estabelecem relações matemáticas, formais, teóricas, metafóricas e até mesmo de processos criativos. Em um segundo momento são propostas definições para os termos ‘composição’ e ‘elementos’, com base em Perrone (1993), Rocha Junior (2014), Unwin (2012) e Copland (1974), para então discutirmos as prováveis similaridades que envolvem os processos criativos nas duas áreas. Por fim, a união da arquitetura com a música é explorada por meio das análises de três estudos de caso, nos quais seus arquitetos indicam o emprego de uma peça musical no projeto, como conceito e/ou para definição formal dos elementos na arquitetura. De acordo com os conceitos em Martin (1994), Bandur (2001) e Brown (2006), foi possível a definição de alguns ‘modos compositivos vinculados à música para a arquitetura’ para a posterior classificação dos projetos escolhidos. Palavras-chaves: Arquitetura. Música. Processo de projeto. Análise projetual.

Abstract Regarding the theme ‘Architecture + Music’, this masters' research proposes a reflection about the role of music to architecture, analyzing how the former could be applied by the architect throughout his design process, possibly as a tool for the formal definition of architectural elements. Hence, this work was organized in three parts. First, it discusses some of the possible relations between both disciplines with the goal of identifying the ways with which music could concretely contribute for architecture, as a vehicle for developing forms and elements in a project. It is possible to see, under Rabelo's (2007) point of view, that the relation between these two disciplines is an existing concern since the classical period and that it still continues to be a target of academic studies, such as the ones indicated by Martin (1994) and Kanekar (2015), given that there are many possible observable approximations between architecture and music, among them, the ones which establish mathematical relations, formal, theoretical, metaphorical and even related to the creative process. Secondly, this work presents definitions for the terms ‘composition’ and ‘elements’, with basis on Perrone (1993), Rocha Junior (2014), Unwin (2012) and Copland (1974), so we can then discuss the potential similarities which involve the creative processes in the two areas. Lastly, the union between architecture and music is explored through the analyses of three case studies, in which their respective architects indicate the application of a musical piece in the project, as a concept and/or for the formal definition of the architectural elements. According to the concepts in Martin (1994), Bandur (2001) and Brown (2006), it was possible to define a few ‘compositional modes tied towards music for architecture’ and the posterior classification of the chosen projects. Keywords: Architecture. Music. Design Process. Projetual analysis.

Apresentação A arquitetura e a música me acompanham há alguns anos, a primeira como profissão, a segunda como hobby e a escolha pelo tema reflete o desejo por continuar com as investigações iniciadas em meu Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo (2010), no qual propus um estudo para a identificação das possíveis relações entre as duas disciplinas. Entre as diversas considerações que pude apreender em meu TFG, a que mais me chamou a atenção foi perceber que um arquiteto poderia buscar na música novas possibilidades para a arquitetura. Com a orientação dedicada da professora Cristiane Gallinaro - que me ensinou os primeiros passos sobre como estruturar um trabalho de pesquisa acadêmica - pude aliar a monografia com a proposta de um exercício projetual, ao aplicar diretamente no projeto os conceitos expostos ao longo do texto. Também no ano de 2010 desenvolvi o interesse nos assuntos relacionados com a prática projetual e a pesquisa acadêmica, após ter participado como aluna bolsista do projeto ‘Pesquisa acadêmica em áreas de prática projetual: Arquitetura e Urbanismo’1, financiado pelo Mackpesquisa e liderado pela Profª. Drª. Ana Gabriela Godinho Lima. Desde o ano seguinte à minha formação participo como pesquisadora voluntária do Núcleo de Pesquisa ‘Percursos e Projetos: Arquitetura e Design’2, que está inserido no âmbito do

Para mais informações sobre esse projeto de pesquisa ver: LIMA, A. G. G.; PERRONE, R. A. C.; ZEIN, R. V. Z.; BIGGS, M. A. R.; BÜCHLER, D. M.; SANTOS, C. H. G. R. dos; VILLAC, M. I.; BASTOS, M. A.; CECCO, A. Pesquisa Acadêmica em Áreas de Prática Projetual. Relatório de Pesquisa Apresentado ao Fundo Mackenzie de Pesquisa, Mackpesquisa. São Paulo: FAU-Mackenzie, 2011. 1

O trabalho do Núcleo de Pesquisa pode ser acompanhado pelo blog: . 2

grupo de pesquisa ‘Arquitetura: Projeto & Pesquisa & Ensino’3 da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo. No período dedicado às atividades do Núcleo, tive a oportunidade de me aprofundar em diversas questões de metodologia em pesquisas acadêmicas,

como

aquelas

que

envolvem

as

etapas

de

levantamento de dados, da busca por resultados, das conclusões e das discussões com professores e colegas. Ao longo deste processo me senti cada vez mais motivada a desenvolver minha pesquisa de mestrado, sendo fundamentais algumas conversas que tive com Daniela Büchler, então professora na Faculdade de Indústrias Culturais e Criativas da University of Hertfordshire e pesquisadora convidada da FAU-Mack. Essas conversas foram decisivas para que eu identificasse o tema arquitetura e música como o caminho que gostaria de seguir nesta etapa. Além de considerar autores da arquitetura e da música para a argumentação, essa dissertação foi elaborada com base no referencial teórico e nos procedimentos de pesquisa e análises do Projeto de Pesquisa já finalizado ‘Práticas de projeto de arquitetas, arquitetos e designers – análise dos instrumentos de prática projetual e possíveis empregos, de forma direta ou não – na pesquisa acadêmica stricto sensu’ 4, que tinha o objetivo de identificar e descrever de que maneira a prática projetual em arquitetura, urbanismo e design pode ser empregada como forma de construção do conhecimento acadêmico.

Grupo de pesquisa registrado junto ao CNPq e liderado pelos professores Dr. Rafael Antonio Cunha Perrone e Dr.ª Ana Gabriela Godinho Lima, conforme informações encontradas no link: . O grupo se dedica a investigar os modos de projetar em arquitetura e design, a relevância dos recursos textuais e não textuais, o uso da imagem, e também da autobiografia de quem projeta nesses processos. 3

Financiado pelo Mackpesquisa – 2013 e 2014. Informações sobre o projeto no blog: . 4

Sumário Introdução............................................................................................................................................. 19 Objeto de estudo, objetivos e procedimentos da pesquisa ................................................................ 19 Estrutura da dissertação ................................................................................................................... 29 1.

Ponderações sobre as relações entre a arquitetura e a música .................................................... 33 1.1 Matemática e geometria como elo fundamental ...................................................................... 37 1.1.1 Razões e proporções: a harmonia musical em quatro tratados arquitetônicos ................. 43 De Architectura Libri Decem ............................................................................................. 45 De Re Aedificatoria .......................................................................................................... 47 Quattro Libri Dell`Architettura ........................................................................................... 49 Cours d`architecture ......................................................................................................... 51 1.2 Caminhos para novas possibilidades ...................................................................................... 53 1.2.1 Música e forma em Iannis Xenakis ................................................................................... 54 1.2.2 Arquitetura para traduzir conceitos ................................................................................... 57

2.

Composição e arquitetura ............................................................................................................. 61 2.1 Algumas definições ................................................................................................................. 65 2.2 Os elementos na composição ................................................................................................. 71 2.3 Sobre composição musical e processo de projeto arquitetônico .............................................. 79

3.

Conceito, método ou forma? A música no processo de projeto ..................................................... 85 3.1 Levantamento e identificação de casos exemplares ................................................................ 89 3.2 Modos compositivos arquitetônicos vinculados à música observados nos casos exemplares . 94 3.2.1 Forma e estrutura ............................................................................................................. 97 Stretto House ................................................................................................................. 100 3.2.2 Técnica serial ................................................................................................................. 124 Jewish Museum.............................................................................................................. 131 3.2.3 Improvisação e composição ........................................................................................... 145 Bebop Spaces ................................................................................................................ 150

Considerações finais........................................................................................................................... 165 Referências bibliográficas ................................................................................................................... 169 Apêndice: Comparações entre características estilísticas arquitetônicas e musicais: um breve levantamento histórico ........................................................................................................................ 175 Razões e proporções na antiguidade greco-romana ....................................................................... 178 Arquitetura e música primitiva cristã................................................................................................ 180 Arquitetura românica e música antiga ............................................................................................. 182 Arquitetura gótica e ars nova .......................................................................................................... 184 O Renascimento ............................................................................................................................. 186 A era barroca .................................................................................................................................. 188 Século XIX: o clássico, o romântico e o eclético ............................................................................. 190 A arquitetura e os sons no século XX ............................................................................................. 192

Dissertação de mestrado | Agnes Costa Del Comune

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Introdução Objeto de estudo, objetivos e procedimentos da pesquisa Sob a temática Arquitetura e Música, esta dissertação de mestrado está compreendida dentro da linha de pesquisa “Arquitetura Moderna e Contemporânea: Representação e Intervenção” e propõe uma reflexão sobre o papel da música para a arquitetura contemporânea, no sentido da especulação sobre como a música, a prática ou a teoria musical podem ser utilizadas pelo arquiteto ao longo do seu processo de projeto, como veículo ou ferramenta para conceituação e definição formal de elementos arquitetônicos. Antes de ser um trabalho fundamentado apenas por simples analogias entre as disciplinas, esta pesquisa propõe uma reflexão que abrange algumas inquietações, como: •

O que a música representa para a arquitetura?



De quais maneiras a música pode ser incorporada no processo de projeto arquitetônico?



Princípios musicais podem ser utilizados para constituir formas e elementos arquitetônicos?



Para empregar princípios de teoria ou formas musicais na arquitetura, o arquiteto precisa ser, necessariamente, também músico, ou pelo menos deve ter um pouco de conhecimento sobre teoria musical?

‘Arquitetura + Música’ foi a expressão escolhida para representar que o trabalho irá tratar da união das disciplinas, buscando demonstrar mais a fundo as maneiras pelas quais a música poderia se manifestar em um projeto. Dos objetivos que se pretendia cumprir com esta pesquisa está, primeiramente, a proposta para uma investigação sobre as formas de conhecimento que são utilizadas nos processos de projeto de arquitetura, tendo em vista aquelas que dizem respeito às relações que podem ser observadas com a associação entre a arquitetura e a música, em projetos nas quais a última aparece como ferramenta para a conceituação e a realização de um projeto. Em segundo lugar, o trabalho visa contribuir para o avanço do conhecimento arquitetônico dentro da temática de análise projetual. Em terceiro lugar, pretende-se construir argumentos para o atual debate sobre a validade do projeto arquitetônico e seus instrumentos na construção e comunicação do conhecimento acadêmico. E por fim, tem o objetivo de contribuir com a questão da interdisciplinaridade ao tratar das duas áreas, arquitetura e música.

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Dissertação de mestrado | Agnes Costa Del Comune

Parte do embasamento teórico desta pesquisa encontra-se fundamentado nos estudos de Ana Gabriela Godinho Lima, Michael Biggs e Daniela Büchler que dizem respeito à problemática em torno da temática da pesquisa acadêmica em áreas de prática projetual. Em um de seus artigos5, os dois últimos autores procuraram estabelecer relações entre a atividade profissional de alto nível (que academicamente é assumida como pesquisa nas áreas de prática projetual), e a pesquisa acadêmica nas disciplinas tradicionais, identificando possíveis aspectos em comum entre ambos os lados. Este trabalho não irá se aventurar por essas questões, mas as colocações aqui apresentadas poderão, quem sabe, servir de combustível para uma pesquisa futura, na medida em que, a partir do pressuposto de Lima (2011, p. 3) de que a arquitetura e as demais áreas projetuais (como o design e as artes) fazem parte de outro tipo de contexto na pesquisa acadêmica, poderia ser válido levar a discussão também para o campo das disciplinas arquitetura e música, no sentido de produção de pesquisa acadêmica em cada área e suas abordagens metodológicas, pois aparentemente parecem existir certas sobreposições epistemológicas entre elas. Em conversa com Büchler com a autora, esta comentara que: Enquanto disciplina acadêmica, a Arquitetura compartilha com a Música uma situação muito similar, onde ambas estão presentes no contexto acadêmico há tempos e fazem uso de métodos 'científicos' de pesquisa que podem vir a ocultar a existência de uma dimensão da criação (do projeto arquitetônico e da composição musical) que não está contemplada nos métodos acadêmicos tradicionais (BÜCHLER, em email à autora, 2013).

Segundo Lima et. al., a arquitetura possui tendências interdisciplinares e é cada vez mais comum encontrarmos autores que fazem referência as disciplinas e teorias externas à arquitetura. Entretanto, para os jovens pesquisadores que queiram tratar de questões interdisciplinares é feito o seguinte alerta: Esta é uma área crescente na pesquisa em arquitetura que emergiu à medida em que autores de arquitetura começaram a encarar outras disciplinas como referencial teórico, método de pesquisa e fonte primária e secundária de literatura de modo a explicar assuntos arquitetônicos. Não obstante, é muito improvável que um estudante de mestrado tenha tempo e habilidade para familiarizar-se com as fontes teóricas de outras disciplinas para a elaboração de sua dissertação. Eventualmente um candidato ao doutorado que provenha de outra área ou que já tenha acumulado um considerável conhecimento no âmbito de outras disciplinas pode achar-se em condições de utilizar-se dessa abordagem (2011, p. 56).

Ver: BIGGS, Michael; BÜCHLER, Daniela. Eight Criteria for Practice-based Research in the Creative and Cultural Industries. Art, Design and Communication in Higher Education. v.7, n.1, p. 9-22, 2008. 5

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Atento a essa questão, ao contrário de propor metodologias definitivas para o processo de projeto, esse trabalho se limita a tratar da relação entre arquitetura e música com base em autores conceituados nas duas áreas, para validar as discussões levantadas em termos de processo criativo, de composição e outros tipos de analogias entre elas e por isso a opção por adotar os projetos referenciais como estudos de caso, que por fim fundamentam o objeto de estudos. Os ‘modos compositivos’ que aparecem no capítulo 3 estão diretamente vinculados com os estudos de caso e, uma vez identificados, passam a ser sugestões ou pontos de partida para profissionais que queiram buscar outros métodos semelhantes para a fundamentação ou formulação da arquitetura. Simon Unwin já dizia que para responder à pergunta: “o que estamos fazendo quando fazemos arquitetura?” poderíamos nos valer da comparação da arquitetura com outras formas de arte, mas tomando o cuidado para não deixar de lado as questões inerentes da ‘natureza da arquitetura’, ou seja, os princípios básicos que envolvem a arquitetura e que tratam da definição prática da palavra arquitetura e de seus objetivos fundamentais. Unwin defende que esquecer essas questões prejudica a compreensão daqueles “que se envolvem com ela saibam o que estão fazendo” (2012, p. 21). Ainda para o autor, “[...] qualquer obra de arquitetura pode ser examinada através de qualquer filtro analítico ou mesmo de todos eles; porém, isso não produzirá, necessariamente, revelações interessantes em todos os casos” (2012, p. 4). Outro trabalho importante para esta pesquisa é a dissertação de mestrado de Frederico André Rabelo. O autor compara a arquitetura e a música, chamando-as de linguagens e explicitando seus pontos de tangência com base na matemática e na geometria. Ele adota uma abordagem historiográfica no início do trabalho, e na segunda parte compara algumas obras do arquiteto Lúcio Costa com peças do compositor Heitor Villa-Lobos, identificando características da arquitetura e da música no período, assim como o modo de trabalho de cada profissional. “O que se pretende, também, é buscar outros pontos de cruzamento entre a arquitetura e a música [...]. Um desses pontos é a análise das congruências e semelhanças entre os processos de composição nessas duas áreas [...]” (RABELO, 2007). O processo de composição em música se relaciona com o processo de projeto em arquitetura na medida em que os pensamentos advindos da prática profissional existem fortemente nas duas áreas. Também poderiam ser traçadas similaridades entre as etapas do processo de projeto e de composição, se considerarmos a partir de Lawson (2011) e Copland (1974) que, inicialmente, compositores e arquitetos passam por um momento criativo, de

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idealização do projeto e da música com base na problemática dada pelo profissional ou pelas circunstâncias que o projeto ou a música estão sujeitas; depois haveria uma etapa de desenvolvimento, onde acontece de fato o projeto e a composição musical. Nigel Cross também é um dos autores que fala da busca em compartilhar diferentes abordagens sobre os processos criativos nas mais variadas áreas profissionais, e afirma que isso pode ser constatado em pesquisas interdisciplinares sobre a prática projetual, em periódicos especializados e conferências. Em um de seus artigos ele apresenta uma interessante colocação de Herbert Simon6, sobre se engenheiros e compositores pudessem manter uma conversa sobre o próprio trabalho, eles começariam a perceber a atividade criativa em comum na qual ambos estariam engajados, cada qual à sua maneira, a ponto de poderem compartilhar experiências sobre seus processos criativos (CROSS, 2001, p. 53). A reflexão acerca da prática profissional está relacionada com os processos de fazer e suas experimentações e traz à tona alguns problemas fundamentais. Parte dos possíveis questionamentos que este trabalho pretende abordar gira em torno das colocações a seguir, algumas delas que também fazem parte da problemática central da pesquisa anteriormente mencionada ‘Práticas de projeto de arquitetas, arquitetos e designers – análise dos instrumentos de prática projetual e possíveis empregos, de forma direta ou não – na pesquisa acadêmica stricto sensu’, do qual este trabalho se vincula: Problema 1: Após levantamento minucioso em bases on-line, como os bancos de dados e teses da CAPES, Scielo e JSTOR, além de buscas nas bibliotecas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, se pôde verificar que há - principalmente no Brasil - um número bastante reduzido de trabalhos acadêmicos nas áreas de prática projetual, assim como pouquíssimos trabalhos em português que abordam a relação arquitetura e música. Há também a falta de pesquisas acadêmicas que forneçam informações relevantes sobre o arquiteto profissional que em algum momento da carreira - seja em um projeto, obra construída ou instalação artística tenha utilizado como conceito a relação entre arquitetura e música. Solução proposta: Por meio dos estudos de caso selecionados serão identificados e analisados projetos e/ou obras de arquitetos contemporâneos que utilizaram o ‘fator arquitetura + música’. O objetivo é a

Nigel Cross se refere a seguinte pblicação de Herbert Simon: SIMON, H. A., The Sciences of the Artificial, MIT Press, Cambridge, Mass., 1969. 6

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identificação dos procedimentos e do processo sobre como foi empregada a relação das duas áreas, auxiliando a preencher a lacuna existente de trabalhos brasileiros que abordam este assunto. Problema 2: Conforme apontado por autores internacionais como Nigel Cross e Bryan Lawson, e nacionais como Anelli; Veloso e Elali; Campos e Silva; Lima et all, estamos longe de obter definições precisas sobre as formas de conhecimento mobilizadas pelo arquiteto ao longo de seu processo de projeto, sendo este um tema de intenso debate acadêmico. Solução proposta: Refletir sobre o processo de projeto de arquitetura, identificando os possíveis instrumentos de prática projetual que, no caso deste trabalho, surgem exclusivamente da relação arquitetura + música, ou seja, quando há aproximações entre a composição da peça musical e a elaboração do projeto arquitetônico. Problema 3: Lima (2013, p. 2)7 aponta a carência de publicações que poderiam fornecer ferramentas auxiliares aos estudantes, orientadores e pesquisadores profissionais em áreas de prática projetual, “no aperfeiçoamento, em termos de rigor, clareza e qualidade, do que estes grupos vêm tentando fazer em termos de incorporação da prática projetual à pesquisa”. Solução proposta: Argumentar sobre a importância da comunicação e da transmissão do conhecimento como característica essencial de todo tipo de pesquisa acadêmica que visa o interesse coletivo, apresentando reflexões sobre o processo de projeto de arquitetos. O desenvolvimento deste trabalho, assim como os estudos e outras notícias sobre o tema, está sendo divulgado e disseminado para o amplo público geral e acadêmico e pode ser acompanhado

por

meio

do

blog

,

criado

exclusivamente para esta pesquisa de mestrado [1].

Projeto de pesquisa ‘Práticas de projeto de arquitetas, arquitetos e designers – análise dos instrumentos de prática projetual e possíveis empregos, de forma direta ou não – na pesquisa acadêmica stricto sensu’. Disponível em: . 7

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[1] Tela inicial do blog. Fonte: Arquivo da autora, 2015.

Visando um melhor direcionamento para este tema, foram realizados no segundo semestre de 2014 os levantamentos preliminares em bancos de dados e teses da CAPES, Scielo e JSTOR 8, além de levantamento nas bibliotecas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. A seleção de trabalhos relevantes para a pesquisa seguiu sempre o mesmo critério de avaliação para todas as bases de dados: primeiramente foram verificados os títulos dos trabalhos e excluídos aqueles que não se relacionavam com o tema; em seguida foram lidos os resumos destes trabalhos para confirmação de sua relevância. Os resultados dessa pesquisa inicial demonstraram um número bastante reduzido de trabalhos acadêmicos que abordam a relação arquitetura e música e a maioria das publicações – nacionais e internacionais - encontradas sobre o tema, diz respeito a artigos para jornais ou periódicos, como podemos ver na tabela ao lado:

Endereços eletrônicos dos bancos de dados: CAPES: http://www.periodicos.capes.gov.br/ e ; Scielo e JSTOR . 8

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PALAVRAS-CHAVE SELECIONADAS

ARQUITETURA E MÚSICA ARCHITECTURE AND MUSIC

PALAVRA - CHAVE: ARQUITETURA E MÚSICA Banco de dados: Portal de periódicos da CAPES Data de pesquisa: 12/07/14 Resultado: 167 trabalhos encontrados. O resumo de todos foi verificado e os trabalhos considerados relevantes para a pesquisa estão listados abaixo:  ROCHA, Namur Matos. Relações estético-estruturais entre música e arquitetura: Polytopes: uma análise sobre a obra multimídia de Iannis Xenakis. Universidade Estadual Paulista. Instituto De Artes. 2008  RABELO, Frederico André; Fuao, Fernando Delfino De Freitas. Arquitetura e música: interseções polifônicas. 2007  OUKAWA, Carolina Silva Amorim, Anália Maria Marinho De Carvalho. Edifício Copan: uma análise arquitetônica com inspiração na disciplina análise musical. 2010 Banco de dados: Banco de teses da CAPES Data de pesquisa: 26/07/14 Resultado: Nenhum resultado encontrado. Banco de dados: JSTOR Data de pesquisa: 26/07/14 Resultado: 16 trabalhos encontrados, considerando artigos de jornais, livros e panfletos. O resumo de todos foi verificado, porém nenhum dos resultados se mostrou relevante com a pesquisa. Banco de dados: Scielo Data de pesquisa: 26/07/14 Resultado: Na busca por periódicos, nenhum resultado foi obtido. Na busca por artigos, foram encontrados 5 resultados, porém nenhum deles se mostrou relevante com a pesquisa. PALAVRA - CHAVE: ARCHITECTURE AND MUSIC Banco de dados: Portal de periódicos da CAPES Data de pesquisa: 12/07/2014 Resultado: 8201 trabalhos encontrados. Devido a grande quantidade de resultados listados, percebeu-se que a palavrachave escolhida pode ser considerada muito abrangente para esse banco de dados e por isso mesmo foi eleita a opção de verificar apenas os 50 primeiros itens encontrados. Após a verificação dos resumos destes trabalhos os que podem ser considerados relevantes para a pesquisa foram listados abaixo:  WATERHOUSE, Paul. Music and Architecture. Music & Letters, 1921, Vol.2(4), pp.323-331  COSTANTINI, Michela. Architecture and Music: Signs of an Eighteenth-Century Debate on the Harmonic Theory in Piedmont from Magnocavalli’s Manuscripts to the Reflections in the Academies in Turin. Nexus Network Journal, 2013, Vol.15(1), pp.15-31  YOUNG, Gregory; Bancroft, Jerry; Sanderson, Mark Leonardo. Musi-Tecture: Seeking Useful Correlations between Music and Architecture. Music Journal, 1993, Vol.3(), pp.39-43  CAPANNA, Alessandra. Music and Architecture: A Cross between Inspiration and Method. Nexus Network Journal, 2009, Vol.11(2), pp.257-27  DAVIS, Jennifer. Drafting music, composing architecture. Canadian Architect, Sept, 2010, Vol.55(9), p.54(1) Cengage Learning, Inc.  JENCKS, Charles. Architecture becomes music. The Architectural Review, May, 2013, Vol.233(1395), p.91(18) Cengage Learning, Inc.  EKWALL, Åke. Volutes and Violins: Visual Parallels between Music and Architecture. Nexus Network Journal, 2001, Vol.3(2), pp.127-136  LEOPOLD, Cornelie. Sound–Sights An Interdisciplinary Project. Nexus Network Journal, 2006, Vol.8(1), pp.123-131  IMAAH, Napoleon Ono. Music: A Source of Inspiration and Harmony in Architecture: An African View. International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, 2004, Vol.35(2), pp.169-182 Banco de dados: Banco de teses da CAPES Data de pesquisa: 26/07/14 Resultado: 17 trabalhos encontrados. Nenhum dos resultados se mostrou relevante com a pesquisa. Banco de dados: JSTOR Data de pesquisa: 26/07/2014 Resultado: 25486 trabalhos encontrados, considerando artigos de jornais, livros e panfletos. Devido a enorme quantidade de resultados listados, percebeu-se que a palavra-chave escolhida pode ser considerada muito abrangente para esse banco de dados e por isso mesmo foi eleita a opção de verificar apenas os 50 primeiros itens encontrados. Após a verificação dos

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Dissertação de mestrado | Agnes Costa Del Comune

resumos destes trabalhos os que podem ser considerados relevantes para a pesquisa foram listados abaixo:  TRACHTENBERG, Marvin. Architecture and Music Reunited: A New Reading of Dufay's "Nuper Rosarum Flores" and the Cathedral of Florence. Renaissance Quarterly, Vol. 54, No. 3 (Autumn, 2001), pp. 740-775  WHEATLEY, John. The Sound of Architecture. Tempo, Vol. 61, No. 242 (Oct., 2007), pp. 11-19  Music in Its Relation to Other Arts (Concluded). The Musical Times and Singing Class Circular, Vol. 24, No. 481 (Mar. 1, 1883), pp. 125-128  IMAAH, Napoleon Ono. Music: A Source of Inspiration and Harmony in Architecture: An African View. International Review of the Aesthetics and Sociology of Music, 2004, Vol.35(2), pp.169-182  YOUNG, Gregory ; Bancroft, Jerry ; Sanderson, Mark Leonardo. Musi-Tecture: Seeking Useful Correlations between Music and Architecture. Music Journal, 1993, Vol.3(), pp.39-43  WATERHOUSE, Paul. Music and Architecture. Music & Letters, 1921, Vol.2(4), pp.323-331  MACGILVRAY, Daniel F. The Proper Education of Musicians and Architects. Journal of Architectural Education (1984-), Vol. 46, No. 2 (Nov., 1992), pp. 87-94 Banco de dados: Scielo Data de pesquisa: 26/07/14 Resultado: Na busca por periódicos, nenhum resultado foi obtido. Na busca por artigos, foram encontrados 5 resultados, porém nenhum deles relacionado com a pesquisa. Tabela 1 Resumo do levantamento realizado nas bases de dados da CAPES, JSTOR e Scielo, 2º semestre de 2014.

Além do levantamento nos bancos de dados digitais, grande parte do material bibliográfico desta pesquisa foi previamente adquirido e continuamente ampliado desde o ano de 2010, quando as primeiras investigações sobre o tema tiveram início. A busca em bases de pesquisa como o Google - e sites internacionais - como a Amazon - permitiu a identificação de outros livros, assim como de publicações acadêmicas importantes para a argumentação central da pesquisa. A partir dessa investigação foi possível observar também que não houve registro de teses sobre o tema e somente 6 dissertações foram encontradas no total, embora nenhuma tivesse exatamente a mesma abordagem proposta para este trabalho, conforme indicado na tabela: Autor

OUKAWA, Carolina Silva

Título do trabalho dissertações brasileiras Edifício Copan: uma análise arquitetônica com inspiração na disciplina análise musical.

Defesa

2010

RABELO, Frederico André

Arquitetura e música: Interseções Polifônicas.

2007

ROCHA, Namur Matos.

Relações estético-estruturais entre música e arquitetura: Polytopes: uma análise sobre a obra multimídia de Iannis Xenakis.

2008

VEIGA, Eduardo José Gorini da

Ritmo e harmonia : relação entre a arquitetura moderna e a musica.

2003

ROESLER, Axel

SHEPPARD, Marilyn

dissertações estrangeiras (em inglês) A compositional based approach to 3dimensional form generation in product design 2001 based on music. The music of architecture.

2011

Tabela 2 Dissertações brasileiras e estrangeiras com o tema arquitetura e música.

Instituição

Universidade de São Paulo Universidade de Goiânia Universidade Estadual Paulista Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Tipo

Mestrado Mestrado Mestrado Mestrado

Ohio State University

Mestrado

Virginia Polytechnic Institute and State University

Mestrado

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Com relação aos livros levantados, verificamos que não há publicações nacionais sobre arquitetura e música e, por isso, todos os 8 livros que foram selecionados sobre o tema estão em inglês. Praticamente todas as publicações, com exceção de Xenakis (2009), são livros elaborados por autores professores de arquitetura em universidades estrangeiras. Pela biografia indicada de cada autor, podemos perceber que a sua grande maioria é, além de arquiteto, também músico, e mantém uma relação direta com a arte, discutindo no mundo acadêmico sobre as duas disciplinas, por meio de palestras, conferências, publicações de artigos, e disciplinas letivas. Indicamos a seguir uma tabela com os livros selecionados: AUTORES/ LIVROS SELECIONADOS SOBRE ARQUITETURA E MÚSICA BANDUR, Markus. Aesthetics of total serialism: contemporary research from music to architecture. Basel: Birkhauser, 2001. BENEDIKT, Michael (Ed.). Center 18: Music in Architecture-Architecture in Music. Center for American Architecture and Design, 2014. BROWN, David P. Noise Orders. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2006. KANEKAR, Aarati. Architecture's Pretexts: Spaces of Translation. Routledge, 2015. KLOOS, Maarten; SPAAN, Machiel (Ed.). Music, Space And Architecture. Architectura & Natura, 2011. MARTIN, Elizabeth. Architecture as a translation of music. Pamphlet architecture 16. Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1994. MUECKE, Mikesch W. (Autor); ZACH, Miriam S. (Cont.). Resonance: Essays On The Intersection Of Music And Architecture. lulu.com, 2011. XENAKIS, Iannis. Musica de La arquitectura. Akal Editora, 2009. Tabela 3 Livros levantados sobre o tema arquitetura e música.

Além de discutir sobre as possíveis relações entre as duas disciplinas e tentar estabelecer comparações com o processo de projeto arquitetônico e a composição musical, esta pesquisa centrou seus esforços na análise de três estudos de caso selecionados, no qual cada arquiteto afirmou ter adotado uma peça musical referencial que guiou determinadas atitudes projetuais, estabelecendo assim vínculos formais entre a arquitetura e a música escolhida, utilizando parte da ‘estrutura ou da forma musical’ como ferramenta projetual para a criação e desenvolvimento de elementos arquitetônicos. São casos em que o arquiteto se mostra preocupado com a divisão das diferentes linguagens presentes na sua obra e na obra musical em partes menores, que podem ser por ele associadas, justapostas, sobrepostas, ou lidas de modo independente. Por meio das análises de projeto e com base no referencial acima indicado, este trabalho propôs também possíveis modos para a integração das duas disciplinas no âmbito projetual, que poderiam permitir novas possibilidades para a ‘composição arquitetônica’.

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Resumidamente, a metodologia adotada para esta pesquisa foi estabelecida pelas seguintes abordagens: 

Abordagem qualitativa: com pesquisas documentais e estudos de caso;



Abordagem empírica: são descritos os diversos dados (autor, data, local, características técnicas e demais questões consideradas relevantes ao tema) que cercam os projetos e obras selecionados como estudos de caso;



Abordagem historiográfica: a partir dos estudos das correntes e movimentos arquitetônicos e musicais foram identificados paralelos formais e outras características entre as duas disciplinas, o que indicariam as correntes e tendências de pensamento projetual e artístico de cada período;



Estudos interdisciplinares: são utilizadas referências a teorias externas ao campo específico da arquitetura, como no caso da música. Autores como Elizabeth Martin, Nigel Cross, Richard Sennett e Aaron Copland auxiliarão na fundamentação desse trabalho;



Produção de outlines e criação de um diário de pesquisa, onde foram feitas citações, roteiros para o trabalho, anotações diversas, croquis, esquemas, tabelas e gráficos que servem para a análise dos resultados e construção dos argumentos do trabalho.

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Estrutura da dissertação A argumentação desta dissertação se organiza em três capítulos principais e o apêndice, que possuem o seguinte escopo: Capítulo 1: Ponderações sobre as relações entre a arquitetura e a música Neste primeiro capítulo são discutidas algumas possíveis relações entre as duas disciplinas, com o objetivo de entender como a música ou a teoria musical poderia contribuir para a arquitetura, indo além das comparações e simples analogias entre termos e tornando-se ferramenta para a formulação de elementos em um projeto. As discussões foram divididas em duas frentes: a) A argumentação inicia-se com considerações a respeito da matemática, da geometria e de princípios de proporcionalidade compartilhados pelas duas áreas que, segundo Rabelo (2007), seria o viés pelo qual a arquitetura e a música mais se aproximam. Esses princípios podem ser observados a partir dos cânones clássicos e por isso consideramos importante apresentar uma breve descrição sobre como essa abordagem consta nos tratados arquitetônicos de Vitrúvio, Alberti, Palladio e Blondel. b) Em seguida, são apresentadas colocações com base em autores modernos e contemporâneos que defendem outros tipos de aproximação entre as duas disciplinas. Começando por Xenakis, um dos primeiros a aplicar diretamente na arquitetura certos procedimentos musicais, vemos também pesquisadores, como Martin (1994) e Kanekar (2015), que entendem que a tradução da música, ou de conceitos musicais, poderiam trazer novas possibilidades para a arquitetura, tanto no sentido formal, quanto em relação ao processo pelo qual a arquitetura se desenvolve.

Capítulo 2: Composição e arquitetura: No segundo capítulo é proposta a definição para o termo ‘composição’, tanto no amplo sentido, quanto no meio musical e arquitetônico, para então chegarmos ao entendimento sobre como hoje pode ser compreendida a ‘composição arquitetônica’, a partir de Perrone (1993) e Rocha Junior (2014). Em seguida discutimos sobre o papel dos elementos em uma composição e, com vista no questionamento sobre se princípios musicais poderiam ser utilizados para constituir

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formas na arquitetura, são apresentadas possíveis contribuições das quatro partes básicas que constituem uma peça musical conforme descritas por Copland (1974) – o ritmo, a melodia, o timbre e a harmonia – identificadas e interpretadas também como elementos de composição formal para a arquitetura. Ao final do capítulo é apresentada uma pequena discussão sobre processo de projeto e composição musical, com base em autores da arquitetura e design, com Nigel Cross (2011) e Bryan Lawson (2011); da música, com Aaron Copland (1974) e também da sociologia, com Richard Sennett (2009). O objetivo aqui é a indicação de características que envolvem os processos criativos em ambas as áreas e que também parecem ser similares.

Capítulo 3: Conceito, método ou forma? A música no processo de projeto: O terceiro e último capítulo explora ainda mais as maneiras nas quais a música poderia ser incorporada ao longo do processo de projeto, contribuindo assim para a concepção e o desenvolvimento da arquitetura. Aqui a discussão cai de maneira direta nas questões que envolvem a composição formal arquitetônica. Com base nos capítulos anteriores e em autores como Martin (1994), Bandur (2001) e Brown (2006), foram definidos tipos de ‘universos compositivos’ arquitetônicos que estariam diretamente vinculados à música, sendo possível por meio deles classificar e agrupar os projetos de arquitetura que foram pensados sob esse viés. Aqui também é esclarecido se entre esses modos compositivos poderiam ser estabelecidos métodos para o processo de projeto arquitetônico e até que ponto seria aplicável à transferência das ideias de uma área para a outra. Nesses quesitos, destacam-se os processos que envolvem a aplicação de diversos procedimentos musicais adaptados para a arquitetura. Para complementar a argumentação, esta dissertação propõe a análise de três casos referenciais, na qual cada arquiteto assumidamente empregou uma peça musical para o conceito do projeto e/ou definição formal dos elementos da arquitetura, e seus possíveis ‘modos compositivos’, observados e estabelecidos pela autora a partir das análises projetuais. Essas análises se constituem por relatos dos próprios arquitetos publicados em livros, artigos e periódicos e também pela interpretação da autora, com base na fundamentação metodológica

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proposta. Os casos selecionados e os ‘modos compositivos arquitetônicos vinculados à música’ identificados a partir dos mesmos foram: 

Formas e estruturas musicais para a arquitetura, a partir de Stretto House (1989-1992) de Steven Holl



Técnica serial para a arquitetura, a partir de Jewish Museum (1988-1999) de Daniel Libeskind



O improviso para a arquitetura, a partir de Bebop Spaces (2002) de Bennett Neiman.

Apêndice: Comparações entre características estilísticas arquitetônicas e musicais: um breve levantamento histórico Os apêndices englobam partes da pesquisa que não se incorporam literalmente na argumentação principal do trabalho, mas que são consideradas imprescindíveis e/ou complementares à compreensão deste. Muitas vezes são elaboradas pesquisas iniciais que depois se mostram independentes e pouco relacionadas com o foco central das discussões apresentadas nos capítulos. Foi o caso do breve levantamento histórico incluso nesta parte do trabalho, na qual são feitas comparações entre algumas características estilísticas arquitetônicas e musicais de determinados períodos na história, a começar pela antiguidade clássica, até o contemporâneo. Essa pesquisa é interessante, pois reforça os paralelos entre a arquitetura e a música por meio das similaridades e diferenças identificadas nas duas disciplinas. Para sintetizar ainda mais as informações contidas no levantamento, ao fim é apresentada uma tabela contendo uma linha do tempo.

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1. Ponderações sobre as relações entre a arquitetura e a música

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Falar das possíveis relações entre a música e a arquitetura não significa necessariamente discutir a respeito de simples analogias observadas entre um projeto arquitetônico e uma peça ou gênero musical. Mais do que isso, para argumentar sobre a relação das duas disciplinas é preciso construir argumentos a partir de exemplos concretos, sendo por vezes necessário buscar referências na história da arquitetura e assim tentar aproximar as discussões sobre as maneiras nas quais a música se incorporaria no decorrer do processo de projeto arquitetônico para, em seguida, entender como arquitetos poderiam adotar as chamadas ‘estruturas ou formas musicais’ na composição de elementos do projeto ou da obra arquitetônica. Segundo constatado na pesquisa de mestrado de Frederico Rabelo (2007), é por meio da matemática e da geometria que as relações mais diretas e estritas entre a arquitetura e a música serão melhor percebidas, porque os elementos da geometria e da aritmética - como as razões, as proporções e as séries ou escalas são fundamentais para ambas e, ao longo dos séculos, foram empregados princípios de proporcionalidade em arquitetura análogos a princípios matemáticos das escalas musicais, entre eles os que são observados pelos cânones clássicos, algo que se confirma em autores como Rasmussen (2015), Doczi (2012) e Wittkower (1971). Para embasar tal afirmação veremos também como a questão aparece a partir de quatro tratados arquitetônicos , de Vitrúvio, Leon Batista Alberti, Andrea Palladio e François Blondel, com a inclusão de um subcapítulo que se justifica devido a importância e grande difusão dos preceitos de arquitetura por eles propostos. Este capítulo traz também alguns argumentos que visam demonstrar como podem ocorrer as relações entre a arquitetura e a música em nossa cultura ocidental contemporânea, ponderando sobre as considerações presentes nas publicações de Martin (1994), Xenakis (2008), Muecke e Zach (2011) e Kanekar (2015). Os

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autores defendem outras aproximações entre as duas disciplinas, diferentes das observadas pelos moldes dos cânones clássicos, pois estão interessados sobre como a arquitetura poderia traduzir em si, os conceitos que embasam uma composição ou as formas musicais. Por se tratarem de publicações contemporâneas, as colocações com base neste referencial teórico são essenciais para exemplificar, sob o ponto de vista de seus autores, o que se tem pensado e discutido a respeito do assunto nos dias atuais. Conforme corroborado por Martin, são várias as aproximações possíveis entre a arquitetura e a música e, entre elas, estão aquelas que foram estabelecidas pelas relações matemáticas, formais, teóricas, metafóricas e até mesmo de processos criativos, um pensamento compartilhado pelos demais autores aqui indicados.

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1.1

Matemática e geometria como elo fundamental Se, como diz Rabelo (2007), as relações a partir da

matemática e da geometria são as que mais se destacam em decorrência da união entre a arquitetura e a música, é porque certos princípios teóricos musicais foram considerados como viáveis e/ou essenciais para a composição da arquitetura em determinado momento. Mesmo com poucas informações disponíveis sobre o período, comumente se estabelece que esse tipo de relação provavelmente tenha se iniciado na Antiguidade Clássica. Pitágoras de Samos (570 a.C. – 495 a.C.) é considerado um dos primeiros teóricos sobre música de que temos notícia e escritos posteriores apontam que ele e seus discípulos

[2] Pitágoras com objetos e instrumentos musicais. Gaffurio, 1492. Disponível em: . Acesso em: 30/09/2015.

estudaram as proporções existentes entre determinados sons, formulando conceitos que séculos depois se tornaram a base da música ocidental [2]. O arquiteto, professor e escritor dinamarquês Steen E. Rasmussen nos apresenta uma lenda que dizia que Pitágoras, após observar um ferreiro martelando uma bigorna com três martelos de diferentes tamanhos, percebeu que o som estava diretamente relacionado com os tamanhos dos objetos que os produziam: Continuou a investigar o fenômeno e descobriu que os comprimentos das três cabeças de martelo estavam mutuamente relacionados na razão de 6:4:3. A maior delas produzia a nota tônica; o tom da intermediária era uma quinta acima e a menor das três cabeças, uma oitava acima. Isso levou-o a experimentar com cordas retesadas de diferentes comprimentos e a apurar que, quando os comprimentos estavam relacionados entre si nas razões de pequenos números, as cordas tensas produziam sons harmoniosos (RASMUSSEN, 2015, p. 107).

A corda inteira quando tocada equivale ao som de uma frequência fundamental, cuja proporção é 1:1. Ao pressionar a corda na metade – proporção 1:2 – tem-se o diapason ou intervalo de uma oitava, sendo seu som igual ao anterior, só que mais agudo. Pressionar a corda em uma proporção de 2:3 de sua extensão revela um novo som, equivalente a um intervalo de quinta ou diapente (penta, cinco) e pressioná-la a proporção de 3:4 equivale ao chamado diatessaron (tessares, quatro), ou intervalo de quarta, já que se ouve um tom referente a uma quarta acima do

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que foi emitido pela corda inteira. As consonâncias9 musicais dos intervalos de oitava, quinta e quarta podem ser expressas pela progressão 1:2:3:4. Em “O poder dos limites” (2012), György Doczi apresenta uma interessante ilustração sobre esses intervalos sonoros, demonstrando por equivalência visual as harmonias musicais básicas observadas nas cordas em vibração e as notas em um teclado que se inicia pela nota Dó (representada pela letra C) [3]. Para o autor, as proporções que podem ser comparáveis com as harmonias musicais fundamentais estão também presentes em diversas variedades formais, inclusive nos seres vivos e na natureza, sendo amplamente empregadas pelo homem em objetos utilitários, obras de arte e também na arquitetura.

[3] Harmonia musicais básicas no teclado e em cordas em vibração. Retirado de DOCZI, 2012, p.8.

Em música, os experimentos com as variações dos sons a partir das proporções entre os tamanhos das cordas possibilitaram o posterior desenvolvimento da ‘escala diatônica pitagórica’ de sete notas, baseada na superposição de quintas, ou seja, formada sempre multiplicando a frequência anterior pela razão 3:2. Essa escala permaneceu utilizada como base para a música medieval até o fim da era renascentista, por volta de 1600, não sofrendo alterações muito significativas até o início do século XX.

Um intervalo, uma harmonia ou um acorde considerado estável. O contrário de dissonância. (On Music Dictionary, dicionário de música online, disponível em http://dictionary.onmusic.org/. Acesso em 28/09/2015. Tradução nossa) 9

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De acordo com Rasmussen, os gregos teriam descoberto relações entre as “simples proporções matemáticas no mundo visual e a consonância no mundo audível” (2015, p.108), embora ele acreditasse que qualquer comparação entre proporções arquitetônicas e consonâncias musicais deveria ser sempre uma metáfora, uma vez que sons que ‘desobedecem’ tais padrões harmônicos podem se tornar ‘desagradáveis’ aos ouvidos, enquanto proporções deste tipo em arquitetura muitas vezes passam despercebidas por seus usuários. No entanto este pensamento é bastante discutível no que diz respeito às características musicais, pois pressupõe que intervalos que fogem das razões da escala pitagórica de 1:1, 1:2, 2:3, 3:4... tendem a ser uma péssima escolha para os compositores, afinal, Rasmussem considera que o “resultado será um tom de sequência irregular, tremulante, que pode ser bastante desagradável” (2015, p.109). No entanto a afirmação acima pode ser questionada, pois até mesmo na Grécia Antiga havia aqueles que não concordaram que os padrões de ordem devessem ser inteiramente válidos para música. Entre eles estava Aristoxenus (375 a.C. – 335 a.C.) em Elementa Harmonica10 (300 a.C.), tratado musical que em parte rejeitava a opinião dos pitagóricos sobre as harmonias. Quando Rasmussen qualifica como ‘tons falsos’ e desagradáveis as dissonâncias, ele nos passa uma definição que foi condicionada culturalmente para explicar um som considerado instável, mas que é amplamente utilizado por compositores nas mais diversas práticas musicais. Um recurso que, se colocado de maneira circunstanciada, permite configurações que também podem ser entendidas como ‘belas’, tanto em termos de soluções composicionais, como para a percepção dos sons pelos ouvintes. Doczi indica que as obras de arte e as ruínas da Antiguidade Clássica são frequentemente utilizadas como exemplo para demonstrar de que maneira foram aplicadas as razões discutidas acima para os campos além da música. Os templos da arquitetura grega são tidos como ótimas referências para a identificação de proporção e equilíbrio, por geralmente apresentarem dimensões cuja relação entre a parte menor e a parte maior era a mesma entre a parte maior e o todo. Suas dimensões eram múltiplas ou submúltiplas do diâmetro médio das suas colunas, que representavam o módulo de uma ordem. Segundo o pensamento dos gregos antigos, o homem se sentiria mais confortável ao conviver com razões matemáticas claras e o ser humano - por ser considerado detentor de beleza

Tratado musical escrito por Aristoxenus, filósofo grego discípulo de Aristóteles que declara que as notas da escala musical deveriam ser julgadas pelo ouvido, e não por proporção matemática, como os pitagóricos defendiam. (BURROWS, 2007) 10

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e harmonia ilimitadas - deveria ser a medida padrão para todas as coisas11. Portanto, as ordens da Antiguidade Clássica eram utilizadas para representar a harmonia em função dos elementos proporcionais e a escala humana era o fundamento compositivo da arquitetura grega. Outro tipo de relação proporcional encontrada nos templos gregos baseia-se no emprego de simples razões para o estabelecimento das dimensões arquitetônicas, algo que teve a seu desenvolvimento também atribuído aos pitagóricos (RASMUSSEM, 2015). Diz-se que a partir de suas observações da natureza e das formas geométricas eles puderam definir os números irracionais e delimitaram a ‘razão ideal’ para a harmonia entre elementos: a razão áurea. Segundo Rasmussen: Diz-se que um seguimento de linha está dividido de acordo com a seção áurea quando é composto de duas partes desiguais, das quais a primeira está para a segunda como a segunda está para o todo. Se chamarmos às duas partes a e b, respectivamente, então a razão de a para b é igual à razão de a para a+b (RASMUSSEN, 2015, p. 109).

Doczi (2012, p.3) descreve que a fórmula da seção áurea pode ser expressa pela equação a:b = b:(a+b) e os valores arredondados estabelecidos para a razão entre as maiores e menores partes da seção são os números 0, 618 e 1, 618. O retângulo de proporção 5:8 é considerado um bom exemplo quando para expressar esta razão [4]. É também demonstrado por Doczi como podemos obter razões equivalentes a seção áurea a partir dos intervalos da escala musical pitagórica, de modo que a proporção 2:3 (diapente) resulta em 0,666..., um valor muito próximo do número áureo 0,618... A proporção 3:4 (diatessaron) é a mesma do triângulo de Pitágoras de lados

[4] Aproximação de um retângulo áureo (5:8). Retirado de Doczi, 2012, p.3.

3:4:5 e a proporção 1:2 (diapason) representa o “retângulo composto de dois quadrados iguais que tem uma diagonal de comprimento

, que é igual à soma do comprimento de 2

retângulos áureos recíprocos." (DOCZI, p. 9, 2012) [5].

Denominado por antropomorfismo, é o pensamento que considera o homem como o centro e a medida do Universo e que atribui características ou aspetos humanos a deuses, a natureza, a animais, etc... 11

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[5] Equivalência visual entra as harmonias musicais pitagóricas e a construção da seção áurea. Retirado de Doczi, 2012, p.9.

Observamos essas relações tanto na planta, quanto nas fachadas do Parthenon de Atenas (século V a.C.). No templo, Doczi identifica e explica com base em ilustrações da planta e da elevação frontal, que suas dimensões referem-se tanto às proporções da harmonia pitagórica, quanto à razão do retângulo áureo (2012, p. 109). Em sua análise o autor destaca que a fachada do edifício contém um retângulo áureo deitado e o topo dos capitéis aproxima-se do ponto de ouro12 da altura total. Suas colunas possuem uma altura igual a cinco vezes e meia a largura da base e seus ritmos proporcionais representam uma alternância entre elementos ‘fortes e fracos’. As medidas verticais das colunas frontais estão na razão de 3:4, correspondendo a um diatessaron ou intervalo de quarta musical. Ele também observa que os eixos das duas colunas dos cantos, mais a linha do chão e o topo do entablamento formam dois retângulos áureos de medida √5. Além disso, Doczi verifica que a planta baixa corresponde a dois retângulos áureos, que equivalem a um intervalo diapente, na razão 2:3 [6].

Ponto de ouro se refere ao único ponto que divide uma linha qualquer em partes desiguais capaz de estabelecer essa relação áurea. (DOCZI, p. 2, 2012) 12

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[6] Parthenon, Atenas. Retirado de Doczi, 2012, p.108.

Doczi nos revela a existência de uma lógica compositiva arquitetônica baseada na razão áurea e nos padrões harmônicos musicais, algo que, de acordo com Rasmussen, indica um legado da Antiguidade Clássica que perdurou e que foi difundido ao longo de séculos por importantes tratados de arquitetura que ajudaram a propagar o objetivo da composição Clássica em alcançar a harmonia entre as partes, como identificamos em De Re Aedificatoria de Leon Battista Alberti, Quattro Libri Dell`Architettura de Andrea Palladio e Cours d`architecture de François Bondel (RASMUSSEN, 2015, p.118). Na Idade Média, Leonardo de Pisa (1170 – aprox. 1250) escreveria sobre uma sequência numérica posteriormente denominada de Sequência de Fibonacci. Por meio dela é possível obter uma série de números inteiros, cada nova unidade formada pela soma das duas anteriores: 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55... Pode-se dizer que os termos desta série se aproximam da razão da seção áurea, pois qualquer número dividido pelo seguinte resultará em aproximadamente 0,618 e qualquer número dividido pelo seu antecedente resultará próximo de 1,618.

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1.1.1 Razões e proporções: a harmonia musical em quatro tratados arquitetônicos Para a arquitetura os tratados representam um papel fundamental na leitura do passado. Por meio deles temos a difusão de pensamentos de épocas anteriores, embora devamos tomar cuidado com possíveis distorções interpretativas e com as informações que se perdem ou são possivelmente adicionadas com o tempo. Os tratados são textos que possuem um sentido de normatização e estabeleceram a aplicação de regras consideradas essenciais para a teoria e prática de projeto arquitetônico de determinado período. De acordo com a tese de Ronaldo Ströher, A ideia de escrever um tratado de arquitetura pode ter várias origens e muitos objetivos, mas ela reflete basicamente a necessidade de registrar e organizar o estado de arte tanto da teoria quanto da prática, como também, ao questionar esse estado, destinar-se a estabelecer diretrizes para o futuro desenvolvimento profissional (STRÖHER, 2006, p. 33).

Grandes arquitetos tratadistas se posicionaram perante temas importantes para a arquitetura, entre eles sobre forma, estética, função e contexto, e por vezes os tratados abordaram princípios arquitetônicos semelhantes - cada um a sua maneira e em seu tempo - que foram apresentados e discutidos de formas diferentes. Esse é o caso da questão da harmonia das proporções como regra compositiva, que foi explorada por cada tratadista com determinada particularidade. É por esse viés que se verificam similaridades com a teoria da harmonia musical em alguns desses documentos: com a identificação sobre como os princípios musicais estabelecidos primeiramente pelos pitagóricos na Antiguidade Clássica foram abordados posteriormente nos tratados de arquitetura indicados, iniciando pelo tratado do arquiteto romano Vitrúvio (80-70 a.C. - 15 a.C.), e depois com os tratadistas renascentistas Leon Battista Alberti (1406 - 1472), Andrea Palladio (1508 - 1580), François Bondel (1618 – 1686) e Guarino Guarini (1624 - 1683). Os tratados de Alberti, Palladio e Blondel indicam estudos teóricos e práticos que frequentemente trazem referências à música, apoiando-se na representação proporcional entre elementos. Seus autores dedicaram-se ao estudo e teorização sobre como a escala deveria ser aplicada em suas composições, dando continuidade a uma tradição já realizada por Vitrúvio. Além dos conceitos baseados na proporcionalidade e harmonia das formas, é interessante notar que pelos tratados observam-se recomendações que visam a preservação da cultura musical do arquiteto como algo essencial para uma boa e correta solução espacial. Os tratados também explicitam a importância das proporções na arquitetura. Em uma definição um tanto simplista, Rasmussen afirma que quando o arquiteto emprega ou se depara

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em um projeto com proporções que lhe são familiares, ele torna-se capaz de entender o projeto como um todo, visualizando-o em sua mente com clareza, do mesmo modo com a qual o compositor lida com sons que foram identificados por notas já estabelecidas e as coloca no papel para que outros possam executar sua música sem grandes dificuldades. Segundo o autor, essa seria uma comparação justificada entre um arquiteto e um compositor. Porém ele não concorda que se possam comparar as proporções arquitetônicas com as proporções da harmonia musical, pois cada uma seria apreendida por nós de forma diferente. Assim, Rasmussen comenta que "[...] a arquitetura possui seus próprios métodos naturais de cálculo de proporções e é um erro acreditar que as proporções no mundo visual podem ser sentidas do mesmo modo que as proporções harmônicas da música" (RASMUSSEN, 2015, p. 129). O autor também considera que não existem sistemas de proporções totalmente corretos para a arquitetura, mas que, por conta do período de produção em massa na qual vivemos, tornar-se-ia necessária a elaboração e utilização de unidades padrão baseadas nas ‘proporções humanas’. Na verdade, Rasmussen não se refere a criação de novos padrões, mas ao desenvolvimento das regras de proporções dos tempos antigos que poderiam continuar sendo adaptadas e utilizadas na arquitetura, algo que, de fato, vimos acontecer em determinados estilos arquitetônicos posteriores que trouxeram características derivadas dos princípios clássicos (2015, p. 129). Rasmussen também comenta que, embora o usuário não possa adivinhar as dimensões exatas de um ambiente, ele é capaz de ‘sentir as proporções’ de uma obra, pois as mesmas estão nela subentendidas e nosso olhar consegue identificar as variadas relações das partes em relação ao todo. Esse modo de empregar determinadas proporções na arquitetura para que ela fosse considerada harmoniosa em sua composição também se constata na raiz do pensamento de muitos arquitetos do período moderno, que aparentemente conseguiram traduzir esses preceitos nos ideais de razão e lógica arquitetônicas defendidas pelo movimento. Colin Rowe, autor de "The Mathematics of the Ideal Villa" (1947) e também citado em Rasmussen (2015), comparou uma obra de Palladio com outra de Le Corbusier e especulou, por meio de análises projetuais, as possíveis semelhanças entre elas em termos de proporção e ‘regras de composição’, como denominou o próprio autor. Análises desse tipo demonstram que se deve ter cautela com a afirmação de que um dos princípios básicos do modernismo era o de renovar e rejeitar toda a arquitetura anterior ao movimento. O rompimento com a história fez sim parte do discurso de muitos arquitetos modernos, assim como o emprego de proporções e das prováveis ‘regras de composição’, discutidas.

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De Architectura Libri Decem Em De Architectura Libri Decem (séc. I a.C.), Vitrúvio enquadra como fundamental o domínio das mais diversas áreas do conhecimento, inclusive a música, para que o arquiteto empregue ‘corretamente’ as razões em uma obra. Ele aconselhou aos arquitetos que: “é igualmente necessário que saiba música para que tenha noção da ciência dos sons musicais e suas relações matemáticas” (POLIÃO, 1999, p. 51). Embora Vitrúvio tenha discorrido sobre os intervalos musicais de oitavas, quintas e quartas, ele não desenvolveu em seu tratado uma reflexão sobre como essas proporções (de 1:2, 2:3 e 3:4) seriam exatamente aplicadas aos edifícios. Por outro lado, ele trata da importância das proporções existentes em uma obra arquitetônica e recomenda uma analogia direta entre o corpo humano e as proporções de suas partes com um templo, para que este fosse bem construído e magnificente. A composição dos templos depende da proporção, cujas relações os arquitetos devem observar muitíssimo diligentemente. É engendrada também pela semelhança [...]. Semelhança é a correspondência entre as medidas de cada um dos elementos das partes da obra e ela como todo, de onde resulta a relação entre as proporções. De fato, nenhum templo pode ser bem composto sem que se considere alguma proporção ou semelhança, a não ser que tenha exatas proporções, como as dos membros segundo uma figura humana bem construída (POLIÃO, 1999, p. 92).

No Renascimento, Leonardo Da Vinci (1452 - 1519) interpretou e ilustrou a questão da proporção do corpo humano na figura do Homem Vitruviano: um homem que possui o umbigo como centro de um círculo, com sua altura igual ao alcance de seus braços estendidos. Essas medidas formam um quadrado que contém o corpo humano em sua totalidade. Observa-se ao lado, uma leitura de Doczi (2012) elaborada a partir do desenho de Da Vinci [7],

nas quais as proporções das

partes de um corpo humano padrão são comparadas com as medidas da seção áurea. É no sentido estético que se encontra o propósito dessa concepção, que diz respeito ao senso comum sobre proporcionalidade.

[7] Interpretação de Leonardo da Vinci sobre o homem de Vitrúvio, com as proporções áureas adicionadas. Retirado de Doczi, 2012, p. 93.

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Doczi comenta sobre o fato de Vitrúvio ter afirmado que os gregos utilizavam as ‘proporções humanas’ para a construção de seus templos e que, por isso, o arquiteto

teria

feito

suas

recomendações compositivas. O autor também apresenta uma ilustração para demonstrar a comparação entre as proporções ideais baseadas nas medidas do corpo humano descritas por Vitrúvio, com a planta de três templos

existentes

consonâncias musicais.

As

dos

e

as

intervalos

diferenças

de

[8] Proporções de templo grego segundo Vitrúvio, comparadas a exemplos concretos. Retirado de Doczi, 2012, p. 107.

medidas entre elas são marcadas pelas letras d1 a d6 [8]. Para Doczi, tanto o corpo humano como a seção áurea “partilham os limites proporcionais das harmonias musicais básicas” (2012, p. 93), o que poderia nos levar a entender que os edifícios clássicos teriam que apresentar, portanto, razões próximas da seção áurea e ao mesmo tempo estar em acordo com as proporções musicais e humanas. Vitrúvio parafraseia os escritos de Aristoxenus na música para tentar explicar a harmonia musical, mas aborda as proporções harmônicas somente quando trata das construções com necessidade de desempenho acústico, como os teatros. Para ele, por meio da matemática e das proporções musicais o arquiteto poderia criar soluções espaciais ideais para que as vozes pudessem ser ouvidas por todos os espectadores, algo como “elevar a potência da voz segundo as leis da harmonia” (1999, p. 124). A definição de harmonia em arquitetura mais próxima do modo como a entendemos hoje aparece em seu livro quando Vitrúvio fala de eurritmia: Eurritmia é a aparência graciosa e o aspecto bem proporcionado dos elementos nas composições. É obtida quando os elementos de uma obra são harmoniosos na altura com relação à largura, na largura com relação ao comprimento, todos correspondendo no conjunto à sua proporção (POLIÃO, 1999, p.55).

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De Re Aedificatoria Em De Re Aedificatoria (1485), Alberti indica que o arquiteto deveria almejar a qualidade de beleza a partir de números, proporção e posição, o qual chamou de concinnitas, indicando a combinação de partes que em essência são diferentes entre si, mas que segundo regras precisas, se correspondem em aparência (ALBERTI, 1997, p. 302). O conceito de beleza faz referência à harmonia das proporções e se tornou um parâmetro essencial para a construção de novas obras no Renascimento. É atribuída a Alberti a declaração sobre beleza e harmonia das formas que estabelece que o belo é o ajuste de todas as partes proporcionalmente, sendo impossível adicionar, subtrair ou modificar elementos sem prejudicar a harmonia do todo. A harmonia das proporções é por ele entendida como um parâmetro ordenador que estaria presente em todas as formas físicas na Natureza e também nos sons que ‘são agradáveis’ aos nossos ouvidos, podendo ser estabelecida por três métodos de composição: o aritmético, o geométrico e o musical. Alberti comenta que as relações harmônicas foram largamente empregadas por arquitetos, sempre de modo conveniente para que a arquitetura resultante fosse harmoniosa, agradável e bela (1997, p.305). A arquiteta italiana Angela Pintore (1994) apresenta um interessante diagrama em seu artigo sobre o simbolismo musical na obra de Alberti [9], demonstrando como o arquiteto sugeriu aplicar essas relações harmônicas para pequenas áreas, para áreas intermediárias e para grandes áreas, representadas na imagem por quadrados e retângulos com círculos inscritos.

[9] Tabela com a construção de áreas de acordo com as indicações de Alberti. Retirado de Pintore, 2004, p. 66.

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Observa-se que Alberti relaciona os intervalos musicais com módulos variados para as edificações. Os módulos poderiam ser aplicados ao comprimento, largura ou altura de uma obra e garantiriam uma boa proporção quando observados. Pintore conclui que Alberti possuía a intenção de provar que uma sequência de retângulos proporcionais derivados de proporções originais poderia abarcar um grande número de possibilidades espaciais (2004, p. 65). Apesar de Alberti ter produzido poucas obras arquitetônicas, pela análise projetual notamos como a relação de formas quadradas e retangulares foi aplicada na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença, Itália (1470), conforme exemplificado por Rudolph Wittkower em Architectural principles in the age of humanism (1971, p. 41). O autor demonstra que toda a fachada do edifício pode ser inscrita em um quadrado que, ao ser dividido em um eixo central simétrico e horizontal, tem-se a separação entre o térreo e o primeiro piso na proporção 2:1, ou seja, uma oitava. Este quadrado ainda pode ser dividido em frações cada vez menores e a repetição delas irá compor os elementos da fachada (entablamentos, pórtico e volutas), mantendo a proporção 2:1 numa espécie de progressão de oitavas. O pórtico de entrada possui proporção 3:2 – uma quinta. Wittkower considera que a ‘beleza da obra’ está na harmonia dessas proporções e na repetição desses elementos, ou seja, das razões que surgem e das relações das partes com o todo, em um método de duplicação ou progressão de razões [10].

[10] Diagramas da fachada de Santa Maria Novella. Retirado de Michelutti, 2003, p. 19.

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Quattro Libri Dell`Architettura Nos seus Quattro Libri Dell`Architettura (1570), Andrea Palladio toma como exemplo as teorias de Pitágoras e Alberti e comenta também sobre o belo, dizendo que este resultará da correspondência entre as partes e o todo, do todo em si, assim como de cada parte sozinha, o que faz com que o edifício possa ser visto como completo e em perfeita harmonia. Um todo harmonicamente justificado. O belo resultará da forma aprazível e da correspondência desse todo com suas partes, destas partes entre si e destas com o todo; desta maneira as estruturas aparecerão como um corpo inteiro e completo, donde cada membro concorda com o outro e todos eles são necessários para a completude do edifício (PALLADIO, 1997, p. 54).

Usando desse princípio em praticamente todas as suas obras, Palladio se preocupava em empregar proporções harmônicas não somente nas fachadas, mas também nas relações entre os ambientes, partindo de um eixo de simetria e utilizando sete formas básicas, que ele chamou de ‘primordiais’ e que seriam: o círculo; o quadrado; o quadrado com sua diagonal como comprimento; o quadrado mais um terço; o quadrado mais metade; o quadrado mais dois terços e o quadrado duplicado. Essas formas levam em consideração as proporções pitagóricas e são praticamente as mesmas que foram sugeridas cem anos antes por Alberti, porém aqui elas são intensamente exploradas em edifícios que não somente os de tipologia religiosa [11].

[11] Diagrama com as sete formas primordiais de Palladio. Tradução de Almeida (2005) a partir de BoydBrent, 2010, p. 10.

Conforme mencionado por Rasmussem, "Palladio dava grande ênfase a essas simples proporções: 3:4, 4:4, 4:6, que são as encontradas em harmonia musical." (2015, p. 114). Ao analisar uma de suas obras, a Villa Foscari em Mira, Itália (1560), Wittkower (1971, p. 129) verifica que há uma proporção predominante referente ao quadrado mais sua metade, que se repete por todos os cômodos e revela um preciso encadeamento entre eles. A planta reflete a forma simétrica na qual foi concebida e cada ambiente possui uma proporção. Os cômodos menores estão em 3:4 (quadrado mais um terço – uma quarta). Os cômodos maiores e a escada possuem proporção 2:3 (quadrado mais metade – uma quinta). O cômodo lateral tem proporção 1:1 (quadrado único – uníssono) e o centro está em 1:2 (quadrado duplicado – uma oitava) [12].

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Palladio também faz referência a três tipos de proporções: a aritmética, a geométrica e a harmônica, denominando por proporção aritmética aquela em que a segunda medida excede a primeira, do mesmo modo que a terceira medida excede a segunda (proporção 2:3:4). Por exemplo: 9 excede 6 por 3, assim como 6 excede 3 por 3. Na proporção geométrica, a primeira medida está em proporção para a segunda, assim como a segunda está para a terceira (a:b = b:c). Por exemplo: 4 está para 6 assim como 6 está para 9. Já a proporção harmônica é bem mais complexa. Diz respeito a exceder um valor e ser excedido por outro, por meio da mesma fração de valores, ou então multiplicar a maior medida pela menor, multiplicar o resultado por dois e depois dividir o resultado pela soma do maior com o menor valor (b=2ac/(a+c) [13].

[12] Planta baixa da Villa Foscari e análise das proporções presentes na mesma. Retirado de Wittikower, 1971 e Almeida, 2005).

[13] Proporções para alturas de salas conforme Palladio. Tradução de Almeida (2005)a partir de Boyd-Brent, 2010, p. 13.

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Cours d`architecture No período barroco, Nicolas-François Blondel foi uma personalidade que se manteve vinculada as antigas proporções harmônicas. Seu tratado Cours d`architecture (1671) defendia preceitos clássicos e estabelecia algumas razões harmônicas base que poderiam ser empregadas em formas geométricas, como o quadrado e o retângulo. Conforme apontado por Rabelo, o arquiteto foi um grande entusiasta “da analogia entre arquitetura e música” (2007, p. 36) vinculada à matemática e a geometria. Blondel acreditava que as razões presentes nos intervalos musicais deveriam existir nas proporções arquitetônicas. As proporções indicadas em seu tratado referiam-se também a novos intervalos musicais, por exemplo, de razões 8:3 – intervalo de sexta menor e 5:3 - intervalo de sexta maior. O pensamento de Blondel foi traduzido pelo historiador de arte George Hersey (2000) e exemplificado pela ilustração ao lado, de uma coluna cuja base possui cinco partes em espessuras diferentes, que estão em sequência proporcional harmônica de 10:12:15:20:30. [14] Essa proporção foi relacionada por Hersey com notas musicais representadas pelas letras C – D – E – F- G – A – B

[14] A base da coluna e seus acordes e notas correspondentes. Retirado de Hersey, 2000.

(respectivamente as notas dó – ré – mi – fá – sol – lá – si). O exercício para identificar proporções na arquitetura que pudessem ser análogas aos acordes musicais pode ser aplicado também em diversos outros elementos arquitetônicos, desde que se leve em conta que são limitadas as possibilidades proporcionais das razões musicais harmônicas, sendo o restante considerado como dissonante. Praticamente todo compositor trabalha com os contrastes entre consonâncias e dissonâncias, para assim produzir resultados mais satisfatórios e elaborados em termos composicionais, mas, como já mencionado, intervalos dissonantes em arquitetura não são percebidos da mesma maneira que na música. Rasmussen (2015) sugere que o intervalo musical dissonante de proporção 17:25, por exemplo, quando ouvido sozinho pode soar ‘incomodo’, enquanto um ambiente constituído pelas mesmas proporções não causa a mesma sensação de estranheza no usuário.

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De acordo com Rabelo, os intervalos musicais que não pertencem a nenhum sistema tonal 13 foram eliminados do tratado de Blondel, algo que fez reduzir “bastante as possibilidades em seu cânone formal.” (2007, p. 37) Entretanto, os intervalos musicais dissonantes de sétimas e segundas que são aceitos pelo sistema, são também representados em Hersey pelas oito formas geométricas baseadas em simples razões segundo Blondel, conforme ilustrado a seguir [15].

[15] Proporções harmônicas e proporções dissonantes dos intervalos musicais e suas formas geométricas retangulares. Montagem da autora a partir de Rabelo, 2007, p. 36 e 38.

Para Blondel há ainda o tipo de dissonância que, obtida por razões e intervalos tecnicamente consonantes, deveria ser evitada em arquitetura. Seriam os grandes intervalos, “por exemplo, uma oitava mais uma quinta, ou uma décima segunda, cuja razão é 3:1, ou ainda uma dupla oitava (4:1) e outros”, como explica Rabelo (2007, p. 39). Ao invés de adotar proporções como essas, o autor sugere ao arquiteto adotar uma composição com elementos obtidos por outros intervalos consonantes [16].

[16] Dissonância resolvida pelo acréscimo de uma nota intermediária na música e por um elemento na arquitetura. Retirado de Hersey, 2000.

Que apresenta uma tonalidade definida, ou seja, uma hierarquia entre as notas utilizadas, girando em torno de uma ‘nota centro’ principal. 13

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1.2

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Caminhos para novas possibilidades Conforme os apontamentos indicados a pouco, observam-se claras influências intermediadas

pela matemática e pela geometria - estabelecidas inicialmente na Antiguidade Clássica - para com ambas a arquitetura e a música. De acordo com o foco deste trabalho, a posição que assumimos aqui é a de que a disciplina arquitetônica seguiu durante muito tempo o paradigma teórico das razões e proporções harmônicas para ‘resolver problemas formais e estruturais’, tendo seu auge no Renascimento, período na qual arquitetos e compositores relacionaram formas e elementos arquitetônicos e musicais de acordo com princípios numéricos similares em proporcionalidade, algo que foi amplamente difundido por meio dos tratados. Muecke e Zach indicam em Ressonance: Essays on the Intersections of Music and Architecture (2011, p. 21), que a partir do séc. XVIII surge uma nova interpretação para o vínculo obtido pela arquitetura e a música, desta vez relacionado com as questões fenomênicas de espacialidade e com foco na qualidade expressiva das artes. Simples analogias entre características estilísticas e conceitos tornam-se frequentes, por exemplo, com as comparações formais identificadas como as que são compartilhadas pela arquitetura e pela música do período barroco. Indo um pouco mais adiante na temática arquitetura e música, temos publicações de diversos autores modernos e contemporâneos que se permitem indagar sobre as proximidades entre as duas disciplinas, apontando e discorrendo sobre o trabalho de arquitetos que, propositalmente ou não, buscaram similaridades musicais para a arquitetura, sob um ponto de vista muitas vezes especulativo e experimental. No entanto, ter a música como ferramenta para o projeto de arquitetura significa para o arquiteto que ele poderá se valer dela como veículo e artifício projetual, conceito formal ou partido. Deste modo, as colocações aqui apresentadas devem permitir questionamentos posteriores sobre o compor arquitetônico e a validez do estabelecimento de métodos que possibilitem o emprego da música no processo de projeto arquitetônico, em uma reflexão sobre a aplicabilidade e a transferência das ideias e conceitos de uma disciplina para a outra. A música torna-se um caminho para novas possibilidades.

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1.2.1 Música e forma em Iannis Xenakis Arquiteto, engenheiro, matemático, escritor e músico, o grego Iannis Xenakis (1922-2001) compara-se a um artista mosaico, aqui situado como um dos primeiros arquitetos e músicos modernos a explorar uma abordagem mais ampla, ou seja, além da tradicional, em seus dois campos de atuação principais. Foi pioneiro como compositor por experimentar procedimentos de aleatoriedade nas composições, definindo as formas musicais eletroacústica14 e estocástica15. Do mesmo modo, Xenakis trouxe contribuições fundamentais para a arquitetura, como destaca em seu Música de La Arquitectura (2009), publicação coeditada, organizada e comentada pela musicista Sharon Kanach. Coletâneas de textos e cartas dispostas por Xenakis relatam sua vida pessoal e profissional e, por meio deles, conhecemos uma personalidade que buscou ultrapassar as fronteiras disciplinares, aliando arquitetura e música por princípios matemáticos e formais avançados. Segundo Kanach, Xenakis adquiriu sua experiência como arquiteto ao mesmo tempo que iniciava sua carreira de compositor, aplicando frequentemente e simultaneamente soluções similares de um ‘problema arquitetônico’ para um ‘problema musical’, ou vice-versa, por enxergar na música uma abordagem gráfica não tradicional. Sobre essa questão, Xenakis comenta que: “durante esse período, percebi com força o vínculo que frequentemente se cria entre a música e a arquitetura, uma recíproca influência que foi fundamental no meu caso” (XENAKIS; KANACH, 2009, p.19 – tradução nossa). Para Kanach, a arquitetura de Xenakis deveria ser vista como uma transposição espacial de estruturas musicais obtidas a partir de cálculos matemáticos, porque ele por diversas vezes teria empregado o mesmo raciocínio para as duas disciplinas. Em 1947, Xenakis refugia-se em Paris e trabalha no atelier de Le Corbusier - por ao todo 12 anos - na função de engenheiro-arquiteto, estudando e praticando música em seu tempo livre.

Modalidade de composição feita em estúdio, geralmente apresentada em concertos gravada em suporte magnético ou qualquer outro meio de armazenamento e reprodução. São difundidas por meio de dispositivos de amplificação e reprodução que privilegiam o preenchimento, a espacialização e a projeção da música na sala. Pode ser executada por instrumentistas em um desempenho ao vivo. (On Music Dictionary, dicionário de música online, disponível em http://dictionary.onmusic.org/. Acesso em 28/09/2015. Tradução nossa). 14

Forma de composição baseada em padrões estocásticos, utilizando-se de computadores para redigir as partituras. Padrões estocásticos são aqueles que têm origem em eventos aleatórios. Por exemplo, o lançar de dados resulta num processo estocástico, pois qualquer uma das 6 faces do dado tem iguais probabilidades de ficar para cima quando de seu arremesso. (On Music Dictionary, dicionário de música online, disponível em http://dictionary.onmusic.org/. Acesso em 28/09/2015. Tradução nossa) 15

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Participou de diversos projetos no atelier e conquistou autonomia para ‘experimentar’

e desenvolver

novas

possibilidades formais em importantes obras, baseando-se em configurações musicais, conforme relata: “(...) graças aos planos ondulatórios de vidro em La Tourette, em Chandigarh (Índia) e no Pavilhão do Brasil da cidade universitária de Paris, consegui traduzir para a arquitetura certos

problemas

de

rítmica

musical”

(XENAKIS;

KANACH, 2009, p.19 – tradução nossa) [17].

[17] Croqui de Xenakis e desenho técnico para os planos de vidro do convento de La Tourette, 1953, de Le Corbusier. Retirado de Xenakis, 2009.

Talvez a principal obra na qual Xenakis revele uma preocupação em propor a ‘tradução’ de uma estrutura musical em composição formal arquitetônica seja no projeto do Pavilhão Philips, construído em 1958 para a Exposição Internacional de Bruxelas [18] e considerado a primeira experiência multimídia já criada, por proporcionar um espetáculo inédito de efeitos sonoros e visuais, utilizando a tecnologia de vanguarda da época aliada à propaganda de uma marca. Metastasis (1954), peça musical de Xenakis para instrumentos de corda, é base fundamental para a composição formal deste projeto. A partir da música ele incorpora

na arquitetura

o

conceito

de glissandos16,

representados por Xenakis em ilustrações de retas [18] Estudo de Xenakis para os glissandi de sua música Metastasis e esquema das parabolóides hiperbólicas do Pavilhão Philips. Retirado de Xenakis, 2009.

sobrepostas deslocadas que geram superfícies paraboloides hiperbólicas, formas que, na composição final do edifício, se traduzem por placas curvadas de concreto armado em seu exterior. Xenakis afirma que:

Um glissando (plural: glissandi) é uma passagem suave com os dedos de uma altura sonora a outra, na qual uma sucessão de intervalos em uma escala de doze sons em progressão geométrica de Seção Áurea é emitida com durações proporcionais às suas razões de frequência. (On Music Dictionary, dicionário de música online, disponível em http://dictionary.onmusic.org/. Acesso em 28/09/2015. Tradução nossa). 16

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Foi a primeira vez que fiz algo completamente sozinho, algo completamente diferente, com novas soluções para a superfície. Eu provei para mim mesmo que, no campo da arquitetura, podia fazer algo que até o momento ninguém havia feito. No Pavilhão Phillips apliquei as mesmas ideias básicas colocadas em Metastasies: como na música, estava interessado no problema de ligar um ponto ao outro sem romper a continuidade. Em Metastasies, a solução me levou aos glissandos; no Pavilhão a resposta veio com as paraboloides hiperbólicas (XENAKIS; KANACH, 2009, p. 144 – tradução nossa).

Por sua vez, a composição Metastasis teria vínculos diretos com o sistema de medidas Modulor desenvolvido por Le Corbusier, o que se confirma pelo comentário do arquiteto, de que “[...] esta tangência entre música e arquitetura, tantas vezes evocada a propósito do Modulor, se manifesta desta vez conscientemente em uma partitura musical de Xenakis composta com o Modulor, que usa seus recursos para a composição musical” (LE CORBUSIER, 1953, p. 340). Muecke e Zach apontam que Xenakis nunca defendeu em seus escritos um método único e definitivo para lidar com as formas arquitetônicas e musicais. Do contrário, ele explorava sempre novas possibilidades compositivas para as duas áreas. Os autores afirmam que: […] em seus primeiros trabalhos, Xenakis se aproximou da música e da arquitetura com uma perspectiva científica e matemática. Como consequência, as composições musicais e as obras construídas neste período surgem a partir de conceitos e métodos formais semelhantes. Nos seus últimos trabalhos, a abordagem de Xenakis torna-se mais pragmática, utilizando o espaço para articular a complexidade da linguagem musical e melhorar a experiência sensorial (2011, p. 22 – tradução nossa).

Situamos em Xenakis a importância de uma abordagem arquitetônica/musical baseada em explorações matemáticas e formais que emerge em meados do século XX e representa, pelo menos por parte de alguns profissionais, um rompimento com determinados fundamentos até então tradicionais de composição. De fato, Xenakis influenciou arquitetos e músicos com as suas iniciativas originais e abriu caminho para que outras pessoas, incluindo autores e teóricos de ambas as disciplinas, abordassem reflexões semelhantes até os dias atuais e avansassem as discussões para novas possibilidades, conforme veremos a seguir a partir das colocações de Kanekar (2015) e Martin (1994), duas autoras contemporâneas da arquitetura.

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1.2.2 Arquitetura para traduzir conceitos Aarati Kanekar é arquiteta e professora doutora na Universidade de Cincinnati. Ela propõe em Architecture`s Pretexts: Spaces of Translation outra possível abordagem para a relação entre a arquitetura e a música, ao considerar ambas como ‘meios’ independentes que podem ser associados para permitir composições espaciais que carregam em si conceitos vindos de outras disciplinas. Seu livro direciona o pensamento para as questões de construção, tradução e transformação - não para a reprodução literal, mas como uma representação do original -, questões essas que dizem respeito à inteligibilidade da estrutura composicional e dos significados formais em arquitetura. Kanekar está interessada nas ideias de composição espaciais e formais como geradoras de significado, mas para efeito desta dissertação o foco permanece apenas nas colocações da autora que dizem respeito a sua intenção por abordar questões de representação por meio da disciplina musical que, eventualmente, impactam a formulação do processo de projeto, conforme ela constata. A autora defende que as ideias de um ‘meio’ podem ser apropriadas e transformadas por outro, desde que sejam destacadas suas singularidades e limitações e também considera que, “para transferir mensagens de um meio a outro, é primeiramente necessária a remodelação de um deles, para que este se conforme com os novos padrões e materiais do outro” (2015, p. 2 - tradução nossa). Para Kanekar, teremos um entendimento mais rico da arquitetura ao relacioná-la com outros ‘meios’ – no caso, com a música - pois desta maneira a arquitetura passa a ser entendida também sob o filtro de outras disciplinas. Kanekar apresenta exemplos para indicar que a arquitetura se expõe com os ‘meios de expressão’ que a compõem e “é a lógica desses meios que se torna extremamente significativa para sua concepção e construção” (2015, p. 4). Para ela, a ‘lógica dos meios’ - que engloba materiais, formas, ritmos, padrões e linhas - é a maneira pala qual uma composição é colocada em conjunto, algo que na arquitetura é denominado por a ‘arquitetônica dos elementos’. Ela conclui que existem poucos estudos sobre as relações entre as artes visuais e as artes não visuais e que, apesar de haver trabalhos diversos sobre arquitetura e música, a maioria deles se preocupa em apontar apenas as questões comuns de proporção, ritmo e número. Para Kanekar, faltam trabalhos sobre as novas possibilidades que as outras disciplinas poderiam trazer para os instrumentos e ideias projetuais na arquitetura, afinal, ela considera que “há um entendimento compartilhado entre as artes que enfatiza o processo de fazer, em outras palavras, a

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contextualização e construção das formas” (KANEKAR, 2015, p. 8), sendo necessária uma maior discussão nesse sentido. Os escritos de Kanekar permitem identificar que a autora vê possibilidades para explorar as interações interdisciplinares, que por sua vez revelam-se na composição da forma, do espaço e dos elementos arquitetônicos por parâmetros que, essencialmente, vão além das analogias entre termos e das características de porporcionalidade harmônica. A arquitetura passa a traduzir conceitos advindos de outra área, em um novo modo de representação, algo que acrescentaria à ela significado. Em uma abordagem similar a arquiteta Elizabeth Martin procura incentivar o interesse pela tradução entre os dois ‘meios’ - arquitetura e música – e defende em Architecture as a Translation of Music (1994), o forte elo que pode existir entra as duas disciplinas. Martin acredita na existência de uma ponte - como se fosse uma linha tênue ou uma fina membrana - fazendo a conexão entre elas, o que ela denomina por y-condition (condição-y – tradução nossa): "(...) estou sugerindo que algo similar ocorre, uma condição-y, que é a posição central entre música + arquitetura quando traduzida uma pela outra" (1994, p. 16 – tradução nossa). Y-condition é também o nome de uma metodologia projetual desenvolvida pela autora, cujo objetivo era explorar a interpretação das mesmas ideias arquitetônicas e musicais em linguagens diferentes das originais, por meio da definição de uma ferramenta que pudesse revelar os meios de expressão dessa condição, explorando as duas artes de forma comparativa e, com a ajuda da experimentação, descobrir que existe entre elas uma união consistente e orgânica, apesar de suas diferentes linguagens. Para Martin, Um relacionamento entre as artes começa nas leis físicas de óptica e luz / audição e som. Em seus meios de expressão rudimentar, como as notas, metros, tons e linhas, cores e formas geométricas, a união continua pelos seus respectivos sistemas de composição artística e imaginativa, projeto e execução (1994, p. 16 – tradução nossa).

As explorações formais e os processos foram considerados fundamentais para a autora, que embasou seu método nas teorias musicais minimalistas. Sobre isso Martin comenta: “Eu escolhi estudar música clássica contemporânea para implicitamente desafiar a adequação de certas tradições do criar arquitetônico, como a ideia de utilidade e forma intencional.” (1994, p. 17 – tradução nossa). A autora parte do princípio de que um compositor minimalista considera somente aquilo que lhe é essencial, descartando todo o resto e por vezes negando hierarquias

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estruturais. Na composição minimalista os padrões formais resultantes revelam sucessões de eventos cíclicos repetidos e com pouca variação. Em seu processo investigativo, Martin desenvolve estudos formais baseados nas questões musicais

minimalistas

de:

configurações

lineares/configurações

cíclicas;

repetições

tradicionais/repetição minimalista; relação espacial dos objetos; planos sobrepostos e mudanças e, a partir delas, desenvolve diagramas que posteriormente são traduzidos em elementos geométricos e volumes que representam configurações formais arquitetônicas [19]. Para ela, a preparação e a incorporação de séries de relações semelhantes a esta, que se iniciam em uma composição musical, são apenas sementes que pode ser incorporada ao processo de projeto. “A condição-y cria elementos que são removidos de sua representação arquitetônica ou musical convencional. As sequências formais resultantes não refletem uma tradução precisa, mas sim a lógica interna de um pensameto” (1994, p. 24 – tradução nossa).

[19] A ‘condição-y’, exercício metodológico para o desenvolvimento de formas arquitetônicas baseadas na interpretação musical. Retirado de Martin, 1994, p. 11 e 15.

Na publicação, Martin também seleciona e apresenta nove projetos de arquitetos e músicos contemporâneos que, segundo ela, exploraram o ‘fator arquitetura + música’, ou seja, profissionais que empregaram a contribuição das duas áreas em projetos e/ou obras arquitetônicas. A autora procurou identificar a linguagem utilizada pelos arquitetos e músicos para demonstrar a relação entre a arquitetura e a música em cada um dos casos e dividiu as obras

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selecionadas em três categorias, que por sua vez indicam preocupações que estão totalmente relacionadas com o ato de criar (projetar e compor). As obras foram classificadas em: 

Projetos ou obras arquitetônicas e de urbanismo baseadas na acústica17: aqui temos o som como matéria-prima. Os projetos selecionados trabalham ‘mais com as orelhas, do que com o olhar’, minimizando a relação com o visual e focando a atenção no ambiente sonoro, fazendo com que a percepção do som se torne uma orientação espacial.



Projetos ou obras arquitetônicas baseadas na funcionalidade dos instrumentos musicais18: quando a arquitetura é por si só um instrumento musical, ou pelo menos representa a metáfora de um instrumento. Os projetos exploram a interação dos usuários com o instrumento, manipulado o som no espaço para mudar a percepção espacial.



Projetos ou obras arquitetônicas baseadas no conceito de sobreposição de camadas19: quando o arquiteto associa partes de uma peça musical ao seu projeto, lidando com a síntese de diferentes camadas, que juntas estabelecem algo coerente e maior.

Enquanto nos projetos baseados pela acústica, o som e a reação que ele provoca nas pessoas é o ator principal e nos projetos baseados em instrumentos musicais é a manipulação do som e dos ambientes que interessa, nos projetos baseados pela composição em camadas, a música é vista como partido, oportunidade e conceito. A autora comenta que o objetivo principal de sua publicação era o de estimular a crítica e a discussão sobre questões básicas sobre o assunto e que, a partir dela, talvez outros pesquisadores pudessem se sentir envolvidos por querer estender a pesquisa para o processo criativo. Para ela, apesar de música e arquitetura terem uma presença fenomênica diferente, a organização inerente às

estruturas

formais

e

os

coloquialismos

entre

elas

são

similares.

Os projetos indicados foram: Le Cylindre Sonore (Bernhard Leitner) Synaptic Island (Maryanne Amacher) e Geneva By-pass (Michael Brewster). 17

Os projetos indicados foram: Audio Visual Big Guitar (Neil Denari), Long-Stringed Instrument (Ellen Fullman) e Freeway as Instrument (Zeug Design). 18

Os projetos indicados foram: Stretto House (Steven Holl), Grand Center – St. Louis (Studioworks) e Computation and Composition (Marcos Novak). 19

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2. Composição e arquitetura

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A proposição de um capítulo que trata exclusivamente das várias considerações que dizem respeito ao termo ‘composição’ não foi gratuita, pois um trabalho que apresenta uma pesquisa sobre a relação das duas disciplinas – arquitetura + música - como parte possível e, em alguns casos, até mesmo essencial do processo de projeto quer também argumentar sobre as definições para ele estabelecidas, tanto no âmbito musical, quanto arquitetônico. Compor é o ato de criar e produzir. A composição pode significar tanto um resultado, quanto um processo. A ‘composição arquitetônica’ aparece diretamente vinculada aos princípios de ordem que visam o arranjo geométrico e a estruturação básica das partes da arquitetura que, ao final, direcionam ao resultado projetado. Por meio das discussões apresentadas a partir das teses de Rafael Perrone (1993) e Rocha Junior (2014) é possível um melhor entendimento sobre a ‘composição arquitetônica’ como processo e como método, que neste caso representa o emprego de regras ou fundamentos de organização formal/espacial, que ao mesmo tempo podem trabalhar a liberdade e permitem diversas possibilidades para a arquitetura. Com Simon Unwin (2012) refletimos sobre o papel dos elementos na arquitetura. Ao longo do capítulo apontamos que ambos compositores e arquitetos utilizam os elementos para a composição, que em conjunto garantem maior unidade e definem a forma final de uma obra. Mais adiante iniciaremos uma argumentação sobre se conhecidos princípios, formas e estruturas musicais poderiam ser também utilizadas para representar elementos formais arquitetônicos. Nesse sentido, procuramos contribuições a partir das quatro partes básicas que constituem uma peça musical - o ritmo, a melodia, o timbre e a harmonia - que podem ser identificadas e interpretadas também como elementos de composição para a arquitetura.

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As colocações a respeito do processo de projeto e da composição musical quando vistas lado a lado por intermédio de autores da arquitetura e do design, com Bryan Lawson (2011) e Nigel Cross (2011); da música, com Aaron Copland (1974) e também da sociologia, com Richard Sennett (2009), tornam-se interessantes na medida em que são destacados outros tipos de similaridade entre a arquitetura e a música, relacionadas aos atos de projetar e compor. As comparações entre as duas disciplinas aparecem agora no sentido de enfatizar e justificar ainda mais a aplicabilidade de formas e estruturas musicais diretamente para a arquitetura.

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2.1

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Algumas definições Por definição geral entende-se que a ‘composição’ faz parte do processo criativo e representa

a junção e a organização dos diversos elementos que a constituem. Entretanto, essa colocação não é permanente, pois sofre alterações e se desenvolve conforme os períodos históricos avançam. Hoje comumente associa-se o termo às artes, principalmente para a música e depois para as artes plásticas - embora seu significado se estenda também para algumas outras áreas do conhecimento, que aqui não serão comentadas. A ‘composição artística’ significa nada mais senão o arranjo dos rudimentos visuais (conjuntos de linhas, formas, cores, texturas, etc.) em um trabalho de arte. Já a ‘composição musical’ se refere tanto a uma peça original de música que, quando escrita pode ser executada diversas vezes (em oposição à improvisação), quanto ao processo pelo qual uma peça musical se origina. Já a ‘composição arquitetônica’ tende a englobar ambas as definições anteriores, sendo utilizada não somente para indicar a organização dos elementos na arquitetura, como também diz respeito a todo um processo de pensamento, embora a expressão hoje pareça ter caído em desuso, ou pelo menos se enfraquecido. Rocha Junior expõe em sua tese “Domínio da forma: permanências e mutações nas composições arquitetônicas” (2014) que isto nem sempre foi assim e é possível identificar que o termo ‘composição’ quando vinculado com a arquitetura se destaca em pelo menos três momentos diferentes na história: 

O primeiro momento diz respeito aos séculos que fizeram parte do período Renascentista, no qual o emprego de certas regras compositivas advindas da Antiguidade Clássica era fundamental para que o projeto e a construção dos edifícios fossem considerados harmoniosos e bem construídos, atendendo relações de proporcionalidade entre as partes com o todo da obra. Como discutimos no primeiro capítulo, eram os cânones do classicismo, defendidos e difundidos pelos tratados e que viriam a perder força somente a partir de meados do século XIX.



Em um segundo momento, a ‘composição’ passa a ser sinônimo para a originalidade de uma obra, não somente na arquitetura, mas também na música e nas artes plásticas, em um pensamento com base em ideais românticos que foi o responsável para a mudança de percepção da relação entre a forma e a função, significando que

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“a forma não mais era vista como um meio de se expressar determinada ideia, mas como a extensão da própria ideia” (ROCHA JUNIOR, 2014, p. 119). 

O terceiro momento faz referência ao período moderno, no século XX, na qual alguns vanguardistas relacionaram a palavra ‘composição’ com a tradição acadêmica ligada a École Beaux-Arts, que era por muitos deles mal vista. Por outro lado, em oposição aos ideais clássicos a ‘composição arquitetônica’ para tantos outros arquitetos modernistas implicava em maior liberdade e novas possibilidades para a combinação de elementos na arquitetura, tanto em escala macro (o projeto de uma cidade), como em escala micro (o projeto de uma casa).

Nas palavras de Rocha Junior: No sentido clássico, compor é por juntas, unir, combinar as partes de um todo em obediência a regras ou cânones, como visto em Vitrúvio, Alberti e Durand e no ensino das academias. No sentido romântico, compor é um procedimento criativo em que o artista cria ‘a partir do nada’, seguindo leis geradas por meio do próprio trabalho. Buscam-se, nesse procedimento, a unicidade e a irrepetibilidade da obra de Arte, ressaltando o caráter de novidade da produção artística e rechaçando, em consequência, os procedimentos com base na imitação. Na composição modernista do século XX, permite-se um alto grau de liberdade nas relações entre as partes, existindo infinitas possibilidades de combinações de elementos. As formas do passado são teoricamente refutadas, com a mimese dando lugar a formas pretensamente inovadoras (2014, p. 158).

A partir desse tipo de levantamento é possível observar que sempre existiram regras compositivas fundamentais em arquitetura, independentemente do período ou do estilo em questão. Mas, como a intenção deste trabalho não é a de se aprofundar muito nos relatos históricos20, vamos apenas identificar em mais detalhes as demais questões pertinentes a ‘composição arquitetônica’. Para a argumentação desta pesquisa, vamos considerar a partir de Rocha Junior (2014) que a ideia em si de ‘composição arquitetônica’ se desenvolve praticamente junto com a École BeauxArts, constituída em 1819 como uma fusão entre a Académie Royale D'Architecture com a Académie Royale de Peinture e Sculture. Essa união entre as escolas foi fundamental para incentivar a transferência de conhecimentos e práticas entre pintores, escultores e arquitetos, além de institucionalizar a arquitetura como Belas Artes e formular a estrutura do ensino acadêmico, Para mais informações sobre a composição arquitetônica nesse sentido histórico, ver a tese: Rocha Jr., Antônio Martins. Domínio da forma: permanências e mutações nas composições arquitetônicas. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014. 20

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colocando a arquitetura como um problema de composição, conforme aponta a tese de Rafael Perrone sobre “O desenho como signo da arquitetura” (1993). O modelo de ensino da academia torna-se referência mundial no séc. XIX e perdura até meados do séc. XX. O autor comenta que a École Beaux-Arts utilizava o desenho para a aplicação de um ‘método analítico compositivo’, que provavelmente se desenvolveu devido a uma insegurança em relação ao vocabulário clássico e suas regras. Uma das atitudes dos arquitetos ligados a École era a de olhar para os preceitos clássicos “mais como um receituário formal ligado à 'beleza' do edifício do que como um conjunto de preocupações com as formulações construtivas e funcionais, tais quais as tradicionais 'solidez' e 'utilidade'.” (PERRONE, 1993, p. 204). Isto é, viam a arquitetura vinculada mais a aspectos formais do que aos técnicos, além de considerarem que o desenho seria um ótimo veículo de comunicação arquitetônica, ideal para a sua concepção. Este seria chamado de ‘desenho de composição arquitetônica’, realizado por princípios de organização que coordenam um processo de pensamento arquitetônico e tornam o projeto de arquitetura como uma composição. O desenho de representação da arquitetura, além de ser elemento analítico e veiculador de elementos consagrados, passa a ser modelo de suas formulações e ordenador dos vocábulos formais disponíveis. [...] O desenho passa a atuar como modelo de concepção de projeto, utilizando um método; vai tornar-se desenho de ‘composição arquitetônica’ (PERRONE, 1993, p. 207).

Com o ‘método analítico compositivo’, as obras de arquitetura viriam a ser entendidas como um conjunto de partes que poderiam ser categorizadas e estudadas isoladamente, com regras e princípios de organização estabelecidos pela teoria da arquitetura e que garantiriam a unidade da composição, algo muito parecido com o método clássico, que prezava pela uniformidade da obra com as suas partes. Alguns escritos importantes do período demonstram como esse método poderia ser aplicado, entre eles o Précis dês leçons d’architecture (1805) de Jean Nicolas Louis Durand (1760 – 1835) que influenciou o desenvolvimento da arquitetura na primeira metade do século XIX. Nele, Durand defende o fim da mimese, desqualificando o corpo humano como modelo de imitação, propondo a sistematização das práticas projetuais que já estavam em vigor e a esquematização do projeto arquitetônico. Para ele, as ordens não representavam as proporções do corpo humano e não poderiam ser a essência da arquitetura, assim, as formas clássicas se reduzem a um repertório puramente formal e é a união das partes da arquitetura que define o volume arquitetônico.

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O método de composição arquitetônica de Durand [20] baseia-se no conhecimento e domínio dos elementos da arquitetura e acontece por meio de três etapas: a) em primeiro lugar, com a descrição dos elementos (como paredes, colunas, pilastras, telhados, portas, janelas, escadas, etc.); b) em seguida, com o traçado das formas gerais de associação desses elementos da arquitetura a partir da distribuição de eixos e módulos, de acordo com as exigências distributivas dos vários temas; c) por último, com o estudo de modelos exemplares. A elaboração desse tipo de método gráfico compositivo ajudou a estabelecer os princípios de uma gramática visual, pois aqui são as atitudes gráficas que resolvem o projeto de arquitetura, determinando sua organização formal/espacial.

[20] Durand, Combinaisons horizontales, em: Précis des leçons d’architecture données à l’École Royale Polytechnique. Paris, 1819. Disponível em: . Acesso em: 30/09/2015.

Vemos que a arquitetura entendida como ‘composição’ não se refere somente ao arranjo de formas e regras, mas a um processo de pensamento que busca a totalidade arquitetônica, com potencial para organizar formas e espaços, sendo conseguido por meio de determinados princípios que deveriam ser seguidos, que segundo Rafael Perrone seriam (1993, p. 211):

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A correta junção das superfícies úteis de um edifício (espaços arquitetônicos fechados), por intermédio dos elementos de comunicação (vestíbulos, corredores e escadas);



O emprego de um dado característico, que deve dominar todas as partes e o conjunto de todos os elementos da composição, favorecendo a unidade;



O estabelecimento de eixos para gerar o equilíbrio da composição;



A distribuição dos elementos por eixos principais e secundários;



A importância em conhecer as obras do passado para obtenção dos elementos e as diretrizes de composição;

Outros tipos importantes de sistematização da composição Beaux-Arts surgiram com Eugéne-Emamnuel Viollet-le-Duc (1814 – 1879), em Entretiens sur l’architecture e Julien Guadet (1834 - 1908) e seu Elements et Theories de l'architecture (1902). Porém, aos poucos essa tradição foi se desgastando e já no início do séc. XX é possível identificar uma alteração no modo de pensar de diversos profissionais, principalmente entre aqueles que faziam parte do movimento romântico europeu, que defendiam pela liberdade individual. Alguns autores também começam a indagar sobre a possível artificialidade que envolve o processo de composição, uma vez que este foi inventado pelo homem, ao sentir a necessidade de criar códigos que influenciassem as etapas de concepção e de execução de um trabalho, algo que não existe no mundo natural. Conforme artigo publicado pela revista Architectural Design Profiles, o pai dos arranha-céus, Louis Sullivan, teria dito como forma de crítica que a ‘composição’ é um processo inventado pelo homem e que, mesmo com o uso dos recursos mecânicos, da força física e do intelecto, não é possível para o homem a criação de grandes obras de arte do mesmo modo como o faz a natureza (1978, p. 50). Apesar desse ponto de vista, parece ser clara a importância da ‘composição arquitetônica’ na prática modernista. Para Rocha Junior, “diversas obras publicadas nas primeiras décadas do século XX ilustram que a ideia de composição, herdada da tradição acadêmica, foi assimilada pelo modernismo nascente” (2014, p. 135). O autor aponta que os escritos como os do arquiteto Howard Robertson (1888 – 1963) demonstraram que algumas regras de composição eram vistas como fundamentais para a arquitetura, independente do estilo ou da época, pois representavam o valor da arquitetura. Robertson entendia que a aplicação de princípios arquitetônicos fundamentais não impediria a existência da ‘nova arquitetura’. Mas, por conta desta divergência em relação ao seu conceito, no período moderno a ‘composição arquitetônica’ passa a representar

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para a arquitetura um sistema aberto, com alto grau de liberdade formal e novas possibilidades. Sobre a ‘composição’ de acordo com o ideário do movimento moderno, Rocha Junior comenta que: [...] o modernismo utiliza a composição como ideia de arranjo espacial definido por técnicas de desenhos, mas compreendendo a concepção arquitetônica como algo inerente ao próprio idealismo do movimento, ou seja, a indivisibilidade tanto da obra arquitetônica quanto do progresso cultural e técnico (2014, p. 137).

Com o discutido até aqui é possível entender o que representa e qual a importância da ‘composição’ para a arquitetura, pois este parece ser um tema cada vez mais distante do cotidiano do arquiteto contemporâneo e, no entanto, de grande relevância. Desde as regras compositivas advindas da Antiguidade Clássica que foram empregadas no período Renascentista, assim como o influente pensamento da École Beaux-Arts, que abrangeu a simples organização de elementos, até processos completos, todos eles definem a ‘composição arquitetônica’. Hoje provavelmente estamos afastados desses significados em virtude da herança recebida por parte do pensamento moderno que desacreditou a ‘composição arquitetônica’ enquanto processo e também por conta das alterações nos modelos de ensino das escolas de arquitetura, que aos poucos foram substituindo as disciplinas e metodologias de composição, pelas de projeto. Rocha Junior conclui: Em termos projetuais, não há, desse modo, um significado unificador para a palavra composição. Para alguns pesquisadores, ela não é sequer sinônimo de criatividade projetual, mas simplesmente uma modalidade de realização de projeto, dentre outras possíveis [...]. Desse modo, concepção, composição e representação se relacionam para produzir o projeto que define um ente formal, seja ele platônico, aristotélico, tectônico, fragmentado ou de outra natureza espacial. Sintetizando, o termo ‘composição’ deve ser compreendido como uma estrutura básica sobre a qual se sobrepõe o resultado final, mesmo para os projetos projetuais na era digital, embora cada arquitetura traga, também, as marcas dos meios pelos quais foi projetada (ROCHA JUNIOR, 2014, p. 158).

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2.2

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Os elementos na composição Após discutirmos sobre a ‘composição arquitetônica’ como parte do processo criativo, com a

explanação de que esta trata da união e da organização formal/espacial dos vários elementos da arquitetura, agora parece ser o momento ideal para averiguarmos em mais detalhes quais seriam esses elementos disponíveis e qual o seu papel em termos de elaboração do projeto arquitetônico. Simon Unwin (2012) coloca que a definição primordial da arquitetura é a organização de elementos em relação ao todo. Em última instância, ela poderia lidar com qualquer tipo de problema de agenciamento, estética e/ou ordenamento de componentes e também com qualquer situação de arranjo espacial. Por isso, o autor considera que os elementos principais da arquitetura são as condições nas quais ela se desenvolve, são seus meios de expressão e, ao contrário do que se possa supor, não se referem aos materiais físicos da edificação, como o vidro, a madeira e o tijolo. Ele indica que, entre as condições possíveis para que a arquitetura ocorra estariam os elementos de interferência direta, isto é, aqueles que afetam a arquitetura continuamente, entre eles: o terreno, a gravidade, a luz e o tempo. De fato, um arquiteto utiliza uma série de elementos que definem as circunstâncias da ‘composição arquitetônica’ e Unwin os separa em três categorias, que são: a) os elementos básicos da arquitetura; b) os elementos modificadores; c) os elementos que desempenham mais de uma função. Os elementos básicos da arquitetura são “os elementos compositivos da arquitetura, que não devem ser considerados objetos propriamente ditos” (2012, p. 31), mas sim ideias abstratas que estão sujeitas as condições pelas quais a arquitetura se desenvolve e ao controle total da mente que as projeta e, ao assumirem uma forma física em uma construção, devem responder também a uma série de outros fatores modificadores. Para Unwin (2012, p. 28), “os elementos arquitetônicos básicos [...] constituem o equivalente ao vocabulário” da arquitetura, se fizermos uma referência direta desta com a linguagem. Eles comumente são organizados em arranjos que “[...] constituem a sintaxe” da obra e seu conjunto pode transmitir significado para quem o interpreta. O autor está interessado na maneira pela qual os elementos compositivos contribuem para a identificação de lugares e, resumidamente, podemos dizer que ele os define como [21]: 

Área do terreno - podem ser planas, rebaixadas ou elevadas;



Marco - identifica um ponto específico e de destaque no lugar;



Foco – algo que concentra a atenção do usuário;

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Barreiras e aberturas – as primeiras dividem o lugar, enquanto as segundas permitem a permeabilidade espacial;



Cobertura - que protege o lugar;



Percurso – lugar pelo qual as pessoas se deslocam.

[21] Os elementos básicos da arquitetura, segundo Unwin. Retirado de Unwin, 2012, p. 31 e 32.

Paulo Barnabé21 (2011) propõe uma definição similar, ao argumentar que o arquiteto que se vale do uso dos elementos arquitetônicos como estratégias projetuais para definir ou conformar um projeto, pode utilizar da manipulação desses elementos também como recurso na qualificação das proposições formais, espaciais e técnicas, em uma abordagem fenomenológica, pois o arquiteto estaria preocupado com os significados que possam emergir nesses termos. Sobre os elementos modificadores, Unwin os interpreta como condições da arquitetura que modificam as questões anteriormente indicadas, favorecendo a identificação e a significação dos lugares. São elementos que nem sempre podem ser totalmente controlados pelo arquiteto, por estarem sujeitos a fatores externos. Eles são identificados como (2012, p. 39):

Professor adjunto e líder do grupo de pesquisa Arquitetura e Paisagem da Universidade Federal do Paraná, UFPR, em Curitiba-PR. Ver: BARNABÉ, Paulo M. M. Conceitos e elementos arquitetônicos: diretrizes de projeto. V Seminário Nacional sobre Ensino e Pesquisa em Projeto de Arquitetura - Projetar, 2011. 21

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Luz;



Cor;



Temperatura;



Ventilação;



Som;



Odor;



Textura e tato;



Escala;



Tempo.

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Por fim, Simon Unwin define que os elementos geralmente cumprem ao mesmo tempo mais de uma função, por exemplo, uma parede pode representar tanto uma barreira, quanto um marco para determinado lugar. “Essa capacidade do elemento de identificar diferentes lugares de diversas formas é, além de uma característica essencial, um dos aspectos mais intrigantes do projeto de arquitetura” (2012, p.54). Ele ainda considera que “uma das habilidades indispensáveis a um arquiteto é apreciar as consequências da composição de elementos e estar ciente de que eles provavelmente terão mais de uma função”. Para o autor, uma obra de arquitetura pode ser uma composição clara de seus elementos, embora a prática da arquitetura não se restrinja somente ao conhecimento e emprego destes, mesmo que eles façam parte de seu repertório22. Assim como na arquitetura, uma composição musical também se expressa por meio de um conjunto de elementos essenciais e, a partir de Aaron Copland (1974), temos que este conjunto é constituído necessariamente por: 

Ritmo - É a métrica da música e tem a intenção de organizá-la dentro do tempo, sendo definido pelas diferentes durações dos sons (breves/longos), suas intensidades (forte/fraco) e repetições ao longo da composição. Existem dois tipos de ritmo musical: a) o metro, que diz respeito a padrões de batida acentuados, previsíveis, marcados como um relógio e que são a base de uma música, b) o fraseado, que é praticamente o oposto, livre e quase nunca repetitivo, uma sucessão de notas combinadas de maneiras diferentes. “A maioria dos historiadores concorda que se a

Para uma leitura mais aprofundada no assunto, ver em UNWIN, Simon. A análise da Arquitetura. Bookman Editora. 2012, os exemplos que o autor apresenta sobre os elementos que o arquiteto poderia empregar no projeto arquitetônico. 22

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música teve alguma espécie de começo, isso aconteceu através da batida de um ritmo” (COPLAND, 1974, p. 36).



Harmonia - é percebida quando verificamos as variações e o desenvolvimento das notas que compõem os acordes23, a relação das notas entre si, suas distâncias ou intervalos entre tons. “A harmonia, considerada como uma ciência, é o estudo desses acordes e da sua relação mútua” (COPLAND, 1974, p. 56). Para Copland, a harmonia é o elemento mais sofisticado da música e faz parte da evolução de uma concepção intelectual original da mente humana.



Melodia - refere-se a uma série de acontecimentos que se sucedem e alternam. É a parte que se destaca em uma composição musical, evocando a atenção do ouvinte e posicionando-se, de maneira geral, como o primeiro elemento a ser notado. A definição de melodia em música refere-se à organização de sons e silêncios que se desenvolvem sequencialmente, no tempo e na harmonia (Copland, 1974, p. 46). As características melódicas de uma música se dão por meio das alterações na harmonia, da introdução de diferentes instrumentos ou vozes, dos pontos de repouso ou cadência e da intenção de querer passar sensações aos ouvintes - de estabilidade ou tensão, por exemplo.



Timbre – A definição do timbre é dada pela qualidade dos sons, das diferentes alturas e intensidades (agudos e graves) produzidas por um instrumento. Os efeitos de contraste obtidos pela combinação ou oposição de sons iguais ou diferentes, em contrastes de timbres agudos e graves fazem com que o timbre seja mais ou menos interessante. Uma peça musical pode empregar quantidades variadas de timbres, que mudam conforme os instrumentos utilizados (cordas, voz, percussão, madeiras e

Um acorde se forma a partir da escrita e/ou execução de três ou mais notas simultaneamente. (On Music Dictionary, dicionário de música online, disponível em http://dictionary.onmusic.org/. Acesso em 28/09/2015. Tradução nossa) 23

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metais), cabendo ao compositor escolher o instrumento, ou o conjunto deles, de acordo com as finalidades expressivas que pretende transmitir. “Assim como é impossível ouvir uma voz que não tenha o seu timbre específico, assim também a música só pode existir por meio de um colorido sonoro. O timbre, na música, é análogo à cor na pintura” (COPLAND, 1974, p. 64). Esses quatro ingredientes são a matéria-prima do compositor. Ele trabalha com eles da mesma maneira como qualquer outro artesão trabalha com seus materiais. Do ponto de vista do ouvinte leigo, esses elementos não tem importância, pois raramente temos consciência de ouvir algum deles separadamente. É o efeito combinado – o tecido sonoro aparentemente inextricável que eles compõem – que costuma interessar à maioria dos ouvintes (COPLAND, 1974, p. 36).

Para Copland, o fato de os leigos não os perceberem separadamente diz respeito somente a uma falta de atenção ou de costume, visto que eles estão lá; fazem parte da música. Ao ouvir uma peça musical com mais cuidado pode-se notá-los, sem que tenha sido preciso estudar para isso. Entretanto, para que haja um entendimento mais profundo da música e a sua compreensão como um todo, é essencial se ater as características e especificidades de cada um de seus elementos. Com a arquitetura algo semelhante também pode acontecer: os elementos estão lá, eles fazem parte da expressão arquitetônica, porém nós não temos o costume de refletir sobre eles separadamente, a não ser, talvez, quando pretendemos fazer análises de projetos ou obras. A comparação entre as duas disciplinas irá revelar que os processos de composição musical e de projeto arquitetônico possuem similaridades também entre seus componentes, conforme apontado por Dewidar, El-Goharyl, Alyll e Salama no artigo “Mutual relation role between music and architecture in design” (2006). Para os autores, isso se reflete de forma clara em todos os níveis relativos às duas áreas, ou seja, para o arquiteto e para o compositor; para o usuário e também para o ouvinte; para o projeto arquitetônico e a peça musical. Os autores argumentam que os ‘trabalhos arquitetônicos’24 contém ritmo, unidade, variedade e harmonia, assim como uma peça musical e para eles, poderíamos obter sinfonias completas a partir de croquis e esboços de arquitetura. Uma vez identificados os quatro elementos da composição musical, parece certo – na verdade, é quase intuitivo - que sejam estabelecidas relações de paridade entre os termos na

Tradução nossa a partir da expressão architectural work, que aqui foi entendido no sentido tanto de projeto, como de obra arquitetônica. 24

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arquitetura e na música. Isto comumente ocorre por meio das interpretações por simples analogias. De fato, harmonia, ritmo, timbre e melodia são comumente representados em uma partitura pelas notas e o conjunto de símbolos musicais e, em certo modo, também podem ser convertidos para um desenho arquitetônico - dadas as devidas características e interpretações de cada área. Comumente entendemos hoje que um edifício ou lugar capaz de transmitir coerência e qualidade é harmonioso, assim como a equivalência entre as partes de uma obra e até mesmo a simetria, que também costumam ser atribuídas com esta qualidade. Há quem considere que a harmonia faça parte do processo de criação, sendo ela o resultado positivo da união entre partes ou elementos que sozinhos eram diferentes, mas que unidos passaram a se complementar. Doczi (2012) define o termo com base na origem grega da palavra harmos, que significa juntar. Para ele, é possível entender harmonia como: [...] um ajuste, uma junção ordenada e agradável dos diferentes que em si já carregam muitos contrastes. Nesse sentido, harmonia é uma relação dinérgica na qual elementos diferentes e muitas vezes contrastantes complementam-se ao juntar-se (DOCZI, 2012, p. 8).

Por relação dinérgica, Doczi fala de um processo criador de padrões que “transforma discordâncias em harmonias”. Porém, se para a arquitetura o termo ‘harmonia’ representa muitas vezes o papel de adjetivo, para a música é muito mais do que isso: ela representa todo um campo de estudos sobre as relações entre sons simultâneos, que como vimos, são chamados de ‘acordes’. Entende-se que analisar as proporções presentes em uma obra nos permite fazer comparações simultâneas das partes entre si e também do conjunto da qual fazem parte, e vice e versa, do conjunto em relação as suas partes menores. Temos que harmonia em arquitetura diz respeito à relação entre as partes em um todo. A harmonia e a ordem são geralmente alcançadas por meio dos sistemas de proporção e representam a composição volumétrica do projeto, demonstrando algumas relações de frequência e escala das formas dispostas. O ritmo se refere ao agrupamento de tempos, a pulsação. É qualquer movimento caracterizado pela repetição de elementos, regulares ou irregulares. Em arquitetura pode ser percebido pelo simples movimento dos olhos ao acompanhar vigas, pilares, padrões formados pelas janelas e panos de vidro do exterior, ou pelas sequencias de espaços e ambientes no interior construído. O ritmo da obra é um padrão a ser seguido, que pode ser estabelecido pela forma, pela estrutura, ou pelos detalhes, podendo inclusive gerar a monotonia (intencional ou não). Para Rasmussen, embora a arquitetura não possa ser rítmica da mesma forma como é uma música, as

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mesmas unidades métricas podem aparecer na arquitetura, e são identificadas pela “[...] repetição estritamente regular dos mesmos elementos, por exemplo, sólido, vazio, sólido, vazio, tal como contamos um, dois, um, dois” (RASMUSSEN, 2015, p. 133). Para falar em timbre na arquitetura podemos nos basear nas texturas e qualidades evocadas pelo uso de diferentes cores e materiais. Cada timbre ou voz representaria o emprego de materiais diferentes, desde os mais ‘leves’, como o painel de metal, até os mais ‘pesados’, no caso da estrutura de concreto. A procura por associar materiais a determinadas frequências busca compreender as funções específicas de cada timbre em relação ao todo, já que um mesmo timbre pode definir o emprego de materiais diferentes dependendo das situações musicais (o mesmo timbre pode desempenhar tanto função rítmica, quanto melódica). Nesse sentido, alguns profissionais desenvolveram e aplicaram metodologias diversas para representar, por meio do desenho, os timbres musicais, como o professor e designer Axel Roesler, que propôs para seus alunos de desenho industrial da Universidade de Ohio, Estados Unidos, que registrassem graficamente a percepção de cinco trechos musicais25. O resultado dessa experiência pode ser verificado em sua dissertação de mestrado “Music and Form” (ROESLER, 2001) e seu objetivo era despertar a sensibilidade e a intuição dos estudantes, identificando padrões no modo de comunicar a música graficamente. De todos os termos, talvez a melodia seja o artifício musical mais difícil de ser interpretado para a arquitetura devido ao seu caráter figurativo e subjetivo, mas vamos propor aqui que ela se reflete na organização geral da forma. Se a partir da melodia procura-se chegar a qualidades expressivas na música, então a melodia para a arquitetura aparece como destaque no projeto ou na obra, em elementos ou conjuntos de elementos que podem se repetir ou não, sofrer variações, complementações, acréscimos ou decréscimos. Ao procurar por contribuições da música para a arquitetura, é válido este exercício de olhar para os paralelos que podem ser observados pelo ‘ritmo’ (repetição de elementos), pelo ‘timbre’ (cores, materiais e texturas), pela ‘harmonia’ (equilíbrio entre as partes e o todo), e pela ‘melodia’, (conjunto dos elementos presentes). São esses os quatro elementos que constituem uma peça musical e que poderiam ser identificados e interpretados também como parte da composição arquitetônica, pois dizem respeito às formas, dimensão, textura, módulos, etc. de um projeto ou

Seriam os trechos das músicas: Vessels, de Philip Glass (1978); Just like heaven, do The Cure (1986); Take five, de Paul Desmond (1951); Sagração da primavera – a Dança do Sacrifício, de Igor Stravinsky (1913) e Tabula rasa, de Arvo Part (1977). Fonte: Roesler (2001). 25

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obra construída, e fornecem a ela qualidade e significado. Talvez nesse sentido os arquitetos possam empregar com êxito contribuições da música para o projeto arquitetônico, ao considerar que os elementos de composição seriam veículos para elevar a experiência da vida cotidiana. Como diria Steven Holl, “por um lado, uma ideia motriz guia a arquitetura; por outro, estrutura, material, espaço, cor, luz e sombra se entrelaçam na fabricação da arquitetura.” (HOLL,1996, p. 11 – tradução nossa). No entanto, esse tipo de analogia simples não responde a todas as inquietações deste trabalho, pois se refere a comparações entre termos que representam características inerentes das duas disciplinas, que de um modo ou de outro, sempre poderão existir. Mas, pela investigação e análise projetual, acreditamos ser possível identificar outras maneiras nas quais a música poderia ser incorporada no processo de projeto arquitetônico, além das formas por analogia.

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2.3

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Sobre composição musical e processo de projeto arquitetônico Ao entender a ‘composição arquitetônica’ como processo organizativo dos elementos de

parte ou de toda a arquitetura, é interessante levantar também uma breve discussão a respeito do processo de projeto e da composição musical, na medida em que se pretende verificar a existência de certas características comuns às duas áreas, que digam respeito às atividades e etapas percorridas pelo músico e pelo arquiteto ao compor e ao projetar. O objetivo desse levantamento que envolve a busca por informações sobre os processos criativos em ambas as áreas é o de embasar o próximo e último capítulo, que trata de casos exemplares nos quais foram possíveis observar como prováveis ‘formas ou estruturas musicais’ foram aplicadas para a composição de elementos ou projetos completos e obras de arquitetura. Tendo em vista o caráter transdisciplinar da arquitetura, as comparações entre a composição musical e o processo de projeto arquitetônico são válidas, pois ambas lidam com questões que emergem da prática profissional. Entretanto, percebe-se que grande parte dos trabalhos levantados por esta pesquisa que lidam com o tema arquitetura e música, tem as analogias que envolvem as duas áreas e as questões matemáticas como ponto central da argumentação e não se aprofundam nas discussões que giram em torno dos processos de projetar e compor. Como exceção, podemos citar novamente as publicações de Elizabeth Martin (1994) e Aarati Kanekar (2015), ambas comentadas no capítulo 1, na qual as autoras argumentam sobre o fato da arquitetura ser um campo tão rico e fluído, que quando unida a outra disciplina - como a música surgem ainda mais possibilidades para a sua concretização. As autoras consideram que seus estudos apresentam apenas questões iniciais sobre a união das duas disciplinas, e que outros autores poderiam continuar suas investigações, sob um ponto de vista especulativo de processos e modos de fazer a arquitetura. Pensando desta maneira, vemos que podem existir tantas intersecções entre a arquitetura e a música, quanto são possíveis os modos pelos quais uma música é composta, ou um projeto é concebido, não cabendo uma única solução ou uma única metodologia. Cada vez que uma possibilidade é aplicada, ela poderá sempre se manifestar de maneiras diferentes. Mas como falar dos processos de projetar e compor, se ao tentar abordar o assunto nos deparamos sempre com a questão da subjetividade em torno do profissional praticante?

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Vamos começar discutindo sobre a ‘curiosidade’. O compositor americano Aaron Copland (1900 - 1990) comenta em seu “Como ouvir e entender música”, sobre a curiosidade natural que acompanha os seres humanos e a necessidade que temos por saber e entender como as coisas são feitas (1974, p.28). Para o autor, nós sempre queremos saber quais os materiais ou ferramentas que foram utilizados pelo profissional para criar; temos interesse nos aspectos criativos que fazem parte do pensar; questionamos a existência dos conceitos que o autor tentou abordar e, se confirmados, esperamos que ele nos diga como resolveu esse problema, para depois interpretarmos se foi resolvido de maneira eficiente ou não. Em se tratando de processo, todo o sistema de composição é algo bastante subjetivo, mesmo que mais pessoas estejam nesse meio incluídas. Ele envolve o profissional por inteiro, desde o momento de concepção da ideia, a procura de respostas para os problemas, até seu desenvolvimento e finalização. A obra final tem em si subentendido o percurso pelo qual percorreu até ser concluída e as marcas deixadas pelas características inerentes de seu autor. As entrevistas e até mesmo os comentários espontâneos dos próprios praticantes são as formas mais simples e diretas pelas quais podemos obter alguns dados sobre suas capacidades e processos de projeto, como constatou Nigel Cross (2011, p. 8). O ‘processo criador na música’ é como Copland intitula a composição musical, em seu sentido de processo pelo qual um compositor escreve uma peça original, ou seja, como o compositor inicia um trabalho, o leva adiante e depois finaliza. Assim como vários outros autores têm escrito sobre o processo de composição musical, Copland descreve o que, para ele, seriam as etapas com as quais um compositor desenvolve uma peça musical 26. Para Copland, tudo começa com uma ideia germinal, um tema: “Todo compositor começa com uma ideia musical. Uma ideia musical, note bem, não é uma ideia literária, filosófica ou simplesmente extramusical. De repente, um tema vem à sua cabeça (tema sendo usado aqui como sinônimo de ideia musical)” (COPLAND, 1974, p. 30). Copland explica que esse ‘tema’ provavelmente foi anotado previamente pelo compositor em cadernos, estando a sua disposição para quando ele precisar da ideia para uma melodia, para uma harmonia ou ritmo. É com esse material que o compositor trabalha, moldando-o a seu gosto e de acordo com as características que desejar para a sua música, assim como seu valor

Vale ressaltar que Copland foi um compositor bastante tradicional, e que seu pensamento não estava de acordo com o de outros compositores do século XX. 26

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expressivo. Os temas se organizam por ordem de importância: a um tema principal podem ser acrescentados temas secundários, que são os materiais intermediários que completam a música. Todas essas coisas são necessárias para a obtenção de uma peça completa e a música final deve formar um todo coerente: uma peça com começo, meio e fim, onde fica claro o tema principal e os outros recursos utilizados pelo compositor. Podemos dizer que para o arquiteto o uso de um ‘tema’ também pode se fazer necessário quando no início de um projeto e que este representa desde a simples vontade criativa do arquiteto, envolvendo ou não, as questões diretamente relacionadas com o problema do projeto, como o programa da arquitetura, a implantação, o conforto, etc. Em Bryan Lawson (2011, p. 53) temos o argumento sobre a existência de um ‘gerador primário’, definido por sua colega e assistente de pesquisa Jane Drake. A partir de entrevistas com profissionais, Lawson explica que Drake verificou que “[...] os arquitetos tendem a apegar-se a uma ideia relativamente simples logo no início do processo de projeto”, e que essa ideia “[...] muito simples é usada para reduzir a variedade de soluções possíveis [...]” para a arquitetura. Para o autor, os ‘geradores primários’ resultam em “[...] linhas de raciocínio baseadas numa ideia sintética e altamente formativa sobre o projeto [...]”, que exercem influência ao longo de todo o processo de projeto e são perceptíveis na sua solução. Interessante destacar que Copland identifica quatro tipos diferentes de compositores musicais, que seriam: 1) Compositor de inspiração espontânea – São pessoas com produção abundante e que estão sempre tendo ideias musicais, quase diariamente, mas ao invés de compor grandes obras se limitam a formas mais curtas e simples. Tem pretensão à originalidade. Exemplo: Franz Schubert. 2) Compositor construtivo – É aquele que escolhe um tema e vai transformando-o aos poucos, construindo a obra em trabalho diário e muitas vezes perfeccionista. Também tem pretensão à originalidade. Exemplo: Beethoven. 3) Compositor tradicionalista – São pessoas que criaram música com base nos estilos musicais aceitos para o período na qual viveram, com padrões bem estabelecidos. Alguns se destacam por tentar melhorar ou superar o que havia, mas sem propor originalidade. Exemplo: J. S. Bach.

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4) Compositor pioneiro – Um grupo heterogêneo de pessoas na qual é difícil caracterizar um único método de composição. Geralmente se opõem às soluções convencionais aos problemas musicais. Sua atitude é experimental. Exemplo: Edgar Varèse. O equivalente ao ‘processo criador na música’, em arquitetura hoje pode ser entendido similarmente como ‘processo de projeto’, entretanto, este trabalho não irá se alongar muito tentando formular explicações sobre ele, pois isto fugiria das preocupações centrais da pesquisa. Mas vamos considerar que, ao projetar, o arquiteto está lidando o tempo todo com a identificação e solução de problemas e é certo que as suas escolhas projetuais não costumam emergir de impulso ou ao acaso, mas estão vinculadas ao percurso do arquiteto, considerando sua formação e experiência prática. Conforme comentado por Richard Sennett (1943 -), as habilidades artesanais - que se estendem a todo tipo de profissão, como a do compositor e a do arquiteto - se baseiam em aptidões desenvolvidas em alto grau e são necessárias aproximadamente 10 mil horas de experiência do profissional para que ele seja mestre em sua área. Para o autor, esse é o tempo essencial para que a habilidade fique cada vez mais sintonizada com os problemas que a cercam, enquanto que uma pessoa no início de carreira estará mais preocupada em fazer com que as coisas funcionem (SENNETT, 2009, p. 30). Agora vamos definir a partir de Lawson que, “um bom projeto costuma a ser uma resposta integrada a toda uma série de questões” (2011. p. 66). Esta frase por si só já traz implícito o caráter de subjetividade em torno do processo de projeto. Para o autor, os arquitetos não são somente identificados pelo problema que enfrentam, mas principalmente pelas soluções adotadas para resolvê-los e é a resposta criativa e prática para as diferentes questões que os distingue uns dos outros. Conforme sugerido por Elisabeth Martin, a arquitetura é a mais universal e inclusiva de todas as habilidades humanas e aprender arquitetura é uma integração criativa do fazer e do saber, ao resolver os problemas envolvidos (2009, p. 11). Não há um único método, e provavelmente tampouco uma única solução possível para os problemas que emergem. Todo arquiteto trabalha com uma gama de possibilidades, ideias que surgem e experimentação. A experimentação a partir dos croquis e modelos, por exemplo, faz parte do processo para que um projeto se desenvolva. Em contramão às teorias tradicionais de imitação e/ou de repetição de soluções formais, tão comuns para os princípios de composição arquitetônica da École Beaux-Arts, o processo de projeto atualmente parece ser mais ‘livre’ quanto ao emprego de métodos compositivos. Mas

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alguns pontos parecem ainda ser controversos, como quando falamos sobre a originalidade, a inspiração e a intuição. A questão da originalidade ganhou destaque no século XIX com os românticos, que buscavam a novidade da produção artística e passaram a considerar a composição como um ato de criação livre e inovador. Algo deveria surgir onde antes não havia nada; uma criação a partir do zero e que seguiria leis geradas pelo trabalho do próprio artista (ROCHA JUNIOR, 2014, p. 119). Embora tal afirmação se justifique na medida em que promove um alto grau de liberdade compositiva e maiores possibilidades para as combinações de elementos, sabemos que na prática “nenhum ato humano, entretanto – incluindo a atividade artística -, parte do nada, pois sempre se liga a uma realidade precedente”, conforme pondera Rocha Junior (2014, p. 158). Nigel Cross provavelmente diria que essa questão poderia ser embutida naquilo que o designer entende por importância da abordagem intuitiva (2011, p. 10). Muitos profissionais praticantes acreditam no ‘poder da intuição’, que seria baseada em pensamentos subjetivos e muitas vezes não tradicionais. Alguns profissionais praticantes acham que determinados aspectos do seu trabalho parecem-lhes ser naturais - quase inconscientes - formas de pensar. “Eles acreditam que esse jeito ‘intuitivo’ de pensar pode tanto ser algo que eles possuem dentro deles, como que pode ser algo que eles desenvolveram ao longo de sua formação”. Para Sennett, a intuição: “[...] começa com a noção de que o que ainda não é pode ser.” (2009, p. 233). O autor também discute sobre o contraste entre a capacitação e a inspiração. Diz ele que “o atrativo de inspiração está em parte na convicção de que o talento bruto pode substituir o treinamento. Os prodígios musicais costumam ser citados para corroborar essa convicção – equivocadamente, porém.”. Ele explica que, embora Mozart tenha uma memória musical inata, foi com o treino que ele pôde desenvolver métodos de composição que pareciam tão naturais, quase espontâneos. E por isso a rotina da prática e do treinamento é tão importante. Para ele, “devemos encarar com desconfiança os supostos talentos inatos e sem treinamento” (2009, p. 48). Portanto, quando Copland fala na ‘ideia germinal’ ou ‘tema que vem à cabeça do compositor’, estamos lidando com o problema da inspiração. A inspiração não é uma virtude e Copland sabe disso, tanto que comenta em seguida que o compositor desenvolve suas habilidades ao longo dos anos de estudos e de prática e é isso que o torna capaz de compor. O ato de compor não é decorrente de uma inspiração, assim como o compositor não vai ficar esperando ela surgir, como uma ‘mensagem divina’. Compor vem da vontade de compor, que aparece

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geralmente de maneira natural, embora ele admita que o músico costume gostar quando as pessoas simplesmente descobrem “inspiração no que ele compôs” (1974, p. 29). Não são raros os relatos de arquitetos que se dizem inspirar por uma música e que por conta disso encarariam com maior facilidade e desenvoltura o ato de projetar. Uma citação presente em Rasmussen parece interessante para nos aprofundar nessa questão: Eric Mendelsohn descreveu que costumava escutar discos de Bach quando tinha um novo projeto em que trabalhar. Os ritmos de Bach punham-no num estado especial que parecia libertar sua imaginação criativa. A arquitetura acudia-lhe então em grandes visões. Seus esboços mostram que não se tratava de edifícios comuns, mas estranhas formações que pareciam crescer e desenvolver-se ritmicamente. Durante uma visita a Frank Lloyd Wright, na década de 1920, ficou sabendo que acontecia o oposto com seu colega americano. Wright disse-lhe que, quando via arquitetura que impressionava e comovia, escutava música com seu ouvido interno (RASMUSSEN, 2015, p. 139).

O relato sobre Mendelsohn comentado pelo autor revela que ele costumava trabalhar com base na inspiração e que para ele o responsável pela inspiração surgir era a música de J. S. Bach. Por outro lado também podemos entender que ao invés de ser inspiração, talvez a música fosse um veículo essencial para a vontade de projetar do arquiteto, pois muitas vezes o que chamamos de inspiração é na verdade uma ideia que se manifestou a posteriori. Diferentemente de Mendelsohn, Frank Lloyd Wright comenta que parecia ouvir música nas arquiteturas da qual ele admirava. Wright provavelmente enxergava elementos na arquitetura que para ele foram tão bem pensados e solucionados, ordenados de tal forma harmoniosa que até poderiam fazer parte de uma peça musical, o que fazia com que ele ‘ouvisse música ao olhar para a obra construída’. Por outro lado, a intuição é algo que pode ser trabalhado e isso acontece por meio do uso das ferramentas. Todos os compositores, até mesmos aqueles que buscam originalidade e inovação, estão vinculados de certa maneira a modelos musicais desenvolvidos em momentos anteriores. Alguns desses modelos são representados pelas ‘formas musicais’. A forma adotada pelo compositor serve para “dar impressão de fluência” à uma peça musical, um “sentido de continuidade que ligue a primeira nota à última” e isso se torna um dos grandes desafios para todo compositor (Copland, 1974, p. 35).

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3. Conceito, método ou forma? A música no processo de projeto

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Arquitetura; música. Arquitetura e música. Arquitetura + Música. Duas disciplinas tão diferentes mas que, no entanto, compartilham de questões similares em sua essência. Quando vistas em paralelo tendencialmente surgem as comparações e analogias entre elas, muitas delas estabelecidas pelo senso comum, geralmente em referência as organizações formais dos elementos da arquitetura em ritmo e harmonia, por exemplo. Mas é quando olhamos de fato para a união das duas disciplinas que começamos a identificar níveis mais profundos desta relação, os quais dizem respeito sobre como a música poderia ser empregada pelo arquiteto ao longo de seu processo de projeto, passando a contribuir - de alguma maneira - para a concepção e o desenvolvimento da arquitetura. O levantamento de casos exemplares se torna fundamental para averiguar as ocorrências deste tipo de situação e por isso um período da pesquisa foi dedicado exclusivamente para a sua identificação e posterior análise. Os projetos escolhidos como referenciais para a pesquisa foram classificados de acordo com a maneira pela qual cada respectivo arquiteto tenha empregado a música em sua obra e, a partir disso, alguns ‘modos compositivos’ arquitetônicos vinculados à música puderam ser neles observados, o que permitiu agrupá-los por tipos e facilitou e guiou a análise dos mesmos. Vale ressaltar que os ‘modos compositivos’ identificados são apenas uma sistematização, servindo somente como guia para a análise dos casos selecionados, não devendo ser entendidos como limitadores ou regras completas, essenciais e permanentes para o processo de projeto arquitetônico. Para aprofundar ainda mais os estudos nesse sentido, de todos os casos selecionados por meio do levantamento, este capítulo propõe ainda a análise em maior ênfase de três desses ‘modos ou métodos

compositivos’

observados

e

seus

três

projetos

representativos. Sob a ótica de cada um deles, a investigação visa apontar algumas considerações sobre o papel da música no

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processo

de

projeto

arquitetônico,

mais

especificamente

identificando como a música foi empregada pelo arquiteto em sua obra e como – por meio de métodos semelhantes - ela poderia vir a ser utilizada por outros arquitetos que, por ventura, queiram ‘se aventurar por esses caminhos’, para a formulação de elementos arquitetônicos ou até mesmo da própria arquitetura. Os três casos analisados e suas respectivas estratégias são: 

Formas e estruturas musicais para a arquitetura, a partir de Stretto House (1989-1992) de Steven Holl



Técnica serial para a arquitetura, a partir de Jewish Museum (1988-1999) de Daniel Libeskind



O improviso para a arquitetura, a partir de Bebop Spaces (2002) de Bennett Neiman.

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3.1

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Levantamento e identificação de casos exemplares O período escolhido para o levantamento, identificação e seleção dos casos exemplares a

serem estudados nesta pesquisa teve como ponto inicial as décadas pertencentes a meados do séc. XX, pois, como já expresso, entende-se que nesta época se desenvolveram e se configuraram alguns processos importantes que trouxeram novos conceitos e críticas para a arquitetura, entre eles os diversos movimentos que constituíram a formação do ideário moderno, conforme apontado por Rabelo (2007). Em continuidade, houve a necessidade por estender a pesquisa até o momento contemporâneo, devido ao grande interesse em averiguar como o tema Arquitetura + Música estaria sendo abordado nas práticas atuais de arquitetura. É fato que grande parte dos arquitetos hoje projeta sem levar em conta as razões, proporções, escalas e outros ideais matemáticos que, de uma maneira ou de outra, formaram o elo inicial entre as duas artes, como anteriormente mencionado. Seguidor desta afirmação, o professor e arquiteto Marcos Novak (1993 apud MARTIN, 1994, p. 69) disse que, ao buscar relações entre a música e a arquitetura do segundo milênio, as pessoas deveriam, antes de qualquer coisa, se perguntar: Que tipo de música? Que tipo de arquitetura? Para ele é evidente que o que ocorre atualmente não tem praticamente relação alguma com a harmonia pitagórica ou com os princípios de composição indicados nos tratados de Alberti e Palladio. Trata-se de algo novo, relacionado com os atuais processos de fazer e suas experimentações. As teorias e práticas convencionais de arquitetura teriam pouco a contribuir nesse sentido, e associar as duas disciplinas da mesma forma como antes ocorria, para ele, não trará grandes resultados para a arquitetura. Também o campo da música mudou muito ao longo dos anos e possivelmente o século passado foi o que sentiu as maiores emancipações com relação às tradições anteriores, com compositores como: Arnold Schönberg e o dodecafonismo; Edgard Varèse e a mudança do conceito de barulho; Iannis Xenakis e a forma estocástica; John Cage e o minimalismo. Olhar para a arquitetura de hoje e tentar estabelecer paralelos formais com essas questões musicais é possível, porém não como simples convergências entre razões e proporções matemáticas, até porque, se pensarmos na evolução das razões musicais haverá aí um grande impasse, uma vez que as frações utilizadas nas formas musicais atuais ultrapassaram em muito as simples razões de 1:1, 1:2, 2:3 ou 3:4. Nos dias de hoje o avanço da tecnologia permite a produção de sons manipulados digitalmente em frequências mínimas, que poderiam gerar uma infinita série de novas possibilidades formais.

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Foi a partir do referencial bibliográfico que os primeiros casos exemplares começaram a ser identificados. A leitura de Xenakis (2008 e 2009) foi fundamental para a seleção do Pavilhão Phillips e de La Tourette (Le Corbusier e Iannis Xenakis), por revelar detalhes importantes sobre o processo de concepção das duas obras. Em Martin (1994) ocorre uma indicação clara dos projetos classificados pela autora como referenciais para o tema arquitetura e música, sendo que três deles, Grand Center (Studio Works Architects), Stretto House (Steven Holl) e Archmusic (Marcos Novak), foram selecionados como interessantes para contemplarem este trabalho. Outras publicações trouxeram coletâneas de artigos que muitas vezes apresentavam projetos, obras e/ou arquitetos exemplares para demonstrar de que forma ocorreria a temática arquitetura e música em determinada situação. Neste caso se destaca a publicação de Benedikt (2014) Center 18: Music in Architecture-Architecture in Music, de onde foram selecionados os projetos Riverside Studio (Bruce Goff), Clark House (Richard Neutra) e Swiss Pavilion (Peter Zumthor). Também podemos citar Bandur (2001) e Brown (2006) que nos indicaram, respectivamente, os projetos de Bernard Tschumi e Daniel Libeskind, além de Bebop Spaces, projeto de Bennett Neiman. Os casos selecionados deveriam atender aos seguintes critérios de escolha: 

Estar incluídos dentro da periodização estabelecida, isto é, desde meados do séc. XX, ao contemporâneo;



Deveriam ser projetos na qual existissem relatos publicados pelo arquiteto, dizendo que este utilizou uma música específica ou uma forma musical para a composição de elementos arquitetônicos, em uma contribuição direta de uma disciplina para a outra;



Não poderiam ser instalações e nem intervenções artísticas;



Poderiam ser procedimentos teóricos ou metodológicos e não necessariamente projetos e obras concluídas;

Numa primeira etapa foram ao todo selecionados 22 casos considerados exemplares, que atenderam todos os quesitos acima indicados. Após uma análise mais aprofundada em cada caso, procurou-se identificar o tipo de relação proposta pelo arquiteto para seu projeto com a música, e qual a metodologia para que esta relação fosse estabelecida, o que podemos ver na tabela a seguir. Os tipos de relação observados foram: quando procedimentos musicais são adaptados para a arquitetura; o uso de analogias visuais com base no sistema de notações musicais; a arquitetura baseada pela acústica; a ‘arquitetura líquida’, ou seja, manipulada por softwares digitais; a arquitetura quando é entendida como um instrumento musical e outras analogias simples.

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ARQUITETURA

MÚSICA REFERENCIAL música composta pelo arquiteto – nome não identificado

TIPO DE RELAÇÃO

Riverside Studio notação: Bruce Goff analogias analogias Oklahoma, EUA simples visuais 1928 La Tourette procedimentos Le Corbusier e Iannis não há, se baseia na musicais analogias Xenakis polifonia musical adaptados para simples Lyon, França a arquitetura 1953-60 Clark House música composta Richard Neutra arquitetura baseada pela pelo cliente – nome Califórnia, EUA acústica não identificado 1957 Pavilhão Philips Le Corbusier e Iannis Xenakis Bruxelas, Bélgica 1958

Metastasis Iannis Xenakis 1954

The Manhattan não há, se baseia na Transcripts representação gráfica Bernard Tschumi musical 1976 -81 National Theater and Opera House não há, se baseia na Bernard Tschumi representação gráfica Tokyo, Japão musical 1986 Grand Center - St. Louis Master Plan 7 trechos musicais de Studio Works compositores Architects diversos Missouri, EUA 1990 Stretto House Música para Cordas, Steven Holl Percussão e Celesta Texas, EUA Béla Bartók 1989-92 1936 Archmusic Marcos Novak Nova Iorque, EUA 1993

qualquer tipo de som ou música

Hypo-bank Offices and Art Hall Steven Holl Munich, Alemanha 1994

Gruppen Karl Stockhausen 1955-57

Parc de La Villette Bernard Tschumi Paris, França 1982-97

Fontana Mix John Cage 1958

METODOLOGIA O ritmo das janelas representa escalas musicais, e o desenho da porta de entrada faz referência à partitura da música - obra construída. Emprego da polifonia rítmica como solução para a fachada: camadas independentes com diferentes durações e variação nas proporções - obra construída. Organização espacial interna de acordo com a propagação dos sons ativos e passivos nos ambientes - obra construída. A leitura gráfica da partitura da música permite a associação direta entre as formas geométricas visualizadas e a volumetria arquitetônica. Aplicação de glissandos como deslocamentos constantes de uma reta gerando superfícies parabolóides hiperbólicas - obra construída.

procedimentos musicais adaptados para a arquitetura

notação: analogias visuais

procedimentos musicais adaptados para a arquitetura

notação: analogias visuais

Entende as notações musicais como essencial para descrever espaço, tempo e movimento - teoria.

procedimentos musicais adaptados para a arquitetura

notação: analogias visuais

Uso de notações inspiradas nos diagramas musicais para os elementos da arquitetura - projeto.

analogias simples

Trechos musicais foram escolhidos para representar sete características funcionais da cidade - obra construída.

procedimentos musicais Sobreposição de elementos, como em adaptados para a arquitetura um stretto em música - obra construída.

arquitetura ‘líquida’

Espaços gerados por realidade virtual, em experimentos que envolvem sons e superfícies constituídas de pontos, linhas e planos manipulados até chegar ao resultado desejado - teoria.

notação: analogias visuais

A leitura gráfica da partitura da música permite a associação direta entre as formas geométricas visualizadas e a volumetria arquitetônica - projeto.

procedimentos musicais adaptados para a arquitetura

notação: analogias visuais

A leitura gráfica da partitura da música estabelece uma referência formal para o projeto e a sobreposição de elementos, como pontos, linhas, superfícies - obra construída.

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Jewish Museum Daniel Libeskind Berlim, Alemanha 1988-99

Moses and Aaron Schönberg 1932

Sarphatistraat Offices Patterns in a Steven Holl Chromatic Field Amsterdam, Holanda Morton Feldman 1996-2000 1981 Swiss Pavilion Peter Zumthor não há Hanover, Alemanha 2000 Bebop Spaces Bennett Neiman Texas, EUA 2002 Opera House Bernard Tschumi Dubai, Emirados Árabes 2005 Archtetonics of Music Steven Holl Columbia, EUA 2006-atual Galeria e Casa Daeyang Steven Holl Seoul, Coreia do Sul 2008-12

Leap Frog Charlie Parker e Dizzy Gillespie 1950

não há

não há

Symphony of Modules Istvan Anhalt 1967

Aplicação da lógica construtiva dodecafônica serialista musical na procedimentos musicais arquitetura, por meio da criação de um adaptados para a arquitetura código serial que norteia o projeto obra construída. procedimentos musicais adaptados para a arquitetura

Aplicação da ideia de fragmentação musical na obra arquitetônica – obra construída.

arquitetura como instrumento musical

A arquitetura opera como um instrumento que modula o som por meio da performance - obra construída.

Um método projetual para desenvolver desenhos arquitetônicos por meio da procedimentos musicais improvisação e da criatividade, da adaptados para a arquitetura mesma forma como uma banda de Jazz faria em uma apresentação ao vivo – teoria/metodologia. A leitura gráfica da partitura da música permite a associação direta entre as notação: analogias visuais formas geométricas visualizadas e a volumetria dos blocos arquitetônicos construídos - projeto. procedimentos musicais adaptados para a arquitetura

Um método projetual para desenvolver desenhos arquitetônicos por meio da música – teoria/metodologia.

notação: analogias visuais

A leitura gráfica da partitura da música permite a associação direta entre as formas geométricas visualizadas e a volumetria dos blocos arquitetônicos construídos. O desenho observado nas pautas se repete em todo o edifício, representando uma identidade visual obra construída.

Hangzhou Music arquitetura Museum (NC) arquitetura como Steven Holl Música antiga chinesa baseada pela instrumento Hangzhou, China acústica musical 2009 Maggie's Centre Barts não há, referência ao Steven Holl sistema de notação notação: analogias visuais Londres, Reino Unido musical medieval 2011-2016 Tianjin Eco-city Museums (NC) arquitetura baseada pela Steven Holl não há acústica Tianjin, China 2012 JFK Center for procedimentos performing arts notação: musicais Steven Holl não há analogias adaptados para Washington, EUA visuais a arquitetura 2012-17 Tabela 4 Lista elaborada para seleção de casos exemplares.

Analogia do edifício com o conceito dos 8 sons da antiga música chinesa: seda, bambu, peles animais, cabaça, madeira, pedra, metal e barro - projeto

Analogia do edifício com a notação musical em neumas – em construção

Retângulo recortado e com vazios que favorecem as sensações acústicas projeto Aplicação do conceito de glissandos na fachada: com deslocamentos constantes de uma reta gerando superfícies paraboloides hiperbólicas – em construção

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A partir dessa classificação algumas similaridades entre os casos acima puderam ser percebidas e destacaram-se pela sua recorrência dois tipos de relação entre a arquitetura e a música estabelecidos pelos arquitetos selecionados, como podemos ver na tabela nas cores cinza escuro e cinza claro: os casos na qual o arquiteto possivelmente adaptou diversos procedimentos musicais para a arquitetura e os casos em que foram feitas analogias visuais entre elementos arquitetônicos e uma partitura musical, com base nos princípios de notação. Além disso, podemos observar nos casos selecionados que alguns deles se encontram atualmente em fase de projeto, enquanto a maioria se refere a obras que tiveram sua construção concluída. Em ambos os casos foi verificado o discurso do arquiteto indicando como este utilizou a música em seu projeto. Também foram observados casos que na realidade se tratam de propostas teóricas ou metodológicas, formuladas com o objetivo de trazer para a composição arquitetônica as contribuições da outra disciplina para a configuração de elementos formais na arquitetura. Para vias de estudo, neste trabalho optou-se pela seleção e análise aprofundada de apenas 3 dos 22 casos exemplares acima descritos, partindo do princípio de que todos os profissionais aqui citados exploraram o fator Arquitetura + Música em seu projeto. Para entendermos melhor como foram aplicadas essas questões em casos concretos, todos os três casos escolhidos foram classificados no quesito de ‘procedimentos musicais adaptados para a arquitetura’ e possuem grande número de narrativas e publicações acessíveis do arquiteto comentando sobre como foram entendidas, por ele, as contribuições da música para a arquitetura. Dois dos casos se referem a obras construídas, porém com programas diferentes e um deles se trata de uma proposta teórico-metodológica para o processo de projeto que poderia ser utilizada em situações reais, mas que, por enquanto, só existe em pesquisas universitárias. Vale ressaltar que os projetos aqui citados se limitam a abrangência da pesquisa e do referencial bibliográfico em relação às atividades contemporâneas de arquitetura que possuem como foco o tema arquitetura + música. Os três casos escolhidos para análise foram: 1. Stretto House | Steven Holl | Texas, Estados Unidos, 1989 – 1992 2. Jewish Museum | Daniel Libeskind | Berlim, Alemanha, 1988 - 1999 3. Bebop Spaces | Bennett Neiman | Texas, Estados Unidos, 2002

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3.2

Modos compositivos arquitetônicos vinculados à música

observados nos casos exemplares Como dito anteriormente, essa motivação para relacionar a arquitetura com a música não é recente e um levantamento na história da arquitetura ocidental pôde revelar que ‘estruturas musicais’ contribuíram de diversas maneiras para o desenvolvimento de diretrizes compositivas arquitetônicas27. Apesar de não se aprofundar no assunto, Fernando Almeida identificou, por meio de um levantamento historiográfico em sua monografia sobre a música na arquitetura, que até o final do século XIX existiram “pelo menos dois tipos de universos compositivos arquitetônicos vinculados à música” (2005, p. 28), que segundo ele seriam: 

A composição mediada: Modo de composição dependente de fatores intermediários, com leis válidas tanto para a arquitetura, como para a música. Como exemplo, teríamos a influência dos cânones Clássicos e os princípios matemáticos e geométricos estabelecidos primeiramente na Antiguidade Clássica, que posteriormente reaparecem com força durante o Renascimento, principalmente com a difusão dos tratados de Alberti e Palladio.



A composição por analogia subjetiva: Modo compositivo baseado nas semelhanças entre conceitos fundamentados por características estilísticas e culturais dos períodos históricos na arquitetura e na música. Como exemplo, podemos indicar a arquitetura do período barroco e seu rebuscamento, ou a arquitetura gótica e a ideia de verticalidade, características que, grosso modo, eram semelhantes às presentes na música dos períodos em questão.

Em seguida, Almeida comenta que a partir do início do século XX duas outras formas compositivas que poderiam ser utilizadas para integrar a arquitetura com a música teriam se desenvolvido. Esse fato pode ter ocorrido em decorrência das mudanças de pensamento trazidas pela modernidade e também pelo enfraquecimento dos princípios tradicionais de composição difundidos pela École Beaux-Arts. As ‘novas formas de projetar’ a arquitetura relacionando-a com a música estariam diretamente ligadas ao “novo conceito de arte, mais experimental, por vezes mais subjetivo” que surgira (2005, p.28). Os tipos de composição seriam:

Ver nos apêndices o levantamento historiográfico compilado com o objetivo de apresentar um estudo sobre as relações entre a arquitetura e a música, comparando também algumas características estilísticas das duas áreas. 27

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A composição integrada: Este tipo de composição seria característico do período inicial do movimento moderno e estaria diretamente relacionado com as instalações artísticas. Aqui, os arquitetos empregariam motivos compositivos simbólicos e/ou subjetivos, vinculando música e arquitetura com o objetivo de promover um evento artístico.



A composição por camadas: A composição por camadas em Almeida (2005) refere-se a terceira forma de associação entre arquitetura e música descrita primeiramente por Martin (1994), que ela denomina por relação por sobreposição de camadas, significando que ambas as artes serão interpretadas como sendo constituídas por partes independentes e associáveis, que se sobrepõem para formar o todo e assim podem ser feitas analogias diversas entre as duas áreas.

Entendemos que a classificação de projetos conforme as duas últimas formas de composição arquitetônica descritas acima é interessante na medida em que demonstra a existência de uma preocupação em trazer para a arquitetura as contribuições de outras disciplinas para o projeto arquitetônico. Mas entende-se que elas não são as únicas possíveis e, por isso, com base nessa classificação seria possível tentar definir alguns outros tipos de ‘universos compositivos’ arquitetônicos contemporâneos que estariam diretamente vinculados à música e a partir deles, classificar e agrupar os projetos de arquitetura que foram pensados sob esse viés. Como primeira medida para a análise projetual nesta pesquisa, houve a procura por similaridades entre os casos escolhidos. Porém, ao direcionar o olhar na tabela somente para os três estudos de caso selecionados, observa-se que, apesar dos projetos terem sido classificados sob o mesmo tipo de relação arquitetônica/musical, a provável metodologia empregada por cada arquiteto para aplicar a música em seu projeto se distingue completamente. Com isso em vista, vale mencionar que a argumentação dessa dissertação tomou como ponto de partida as discussões fundamentadas a partir de Martin (1994), no sentido de que a autora comenta que, assim como na música cabe ao compositor decidir quais caminhos irá seguir para concluir uma peça musical, o arquiteto toma suas decisões projetuais com base nos problemas e soluções para a arquitetura. Nos casos que lidam com as possíveis contribuições da música para o projeto de arquitetura, é o arquiteto quem deve definir quais os aspectos musicais que melhor irão se adequar ao projeto e os graus de aproximação que pretende obter entre as duas áreas, estabelecendo os limites para que ocorra a y-condition, definida pela autora.

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MÚSICA TIPO DE RELAÇÃO METODOLOGIA REFERENCIAL Stretto House Música para Cordas, Steven Holl Percussão e Celesta procedimentos musicais Sobreposição de elementos, como em Texas, EUA Béla Bartók adaptados para a arquitetura um stretto em música - obra construída. 1989-92 1936 Aplicação da lógica construtiva Jewish Museum Moses and Aaron dodecafônica serialista musical na Daniel Libeskind procedimentos musicais Schönberg arquitetura, por meio da criação de um Berlim, Alemanha adaptados para a arquitetura 1932 código serial que norteia o projeto 1988-99 obra construída. Um método projetual para desenvolver Bebop Spaces Leap Frog desenhos arquitetônicos por meio da Bennett Neiman Charlie Parker e procedimentos musicais improvisação e da criatividade, da Texas, EUA Dizzy Gillespie adaptados para a arquitetura mesma forma como uma banda de 2002 1950 Bebop faria em uma apresentação ao vivo – teoria/metodologia. Tabela 5 Os três estudos de caso selecionados. ARQUITETURA

Conforme a tabela indica, em Stretto House, interessa ao arquiteto a sobreposição de elementos da arquitetura, do mesmo modo como ocorreria na forma Stretto em música. A forma musical oferece possibilidades para a arquitetura, algo próximo da abordagem de Martin (1994) ao falar dos projetos que se vinculam à música por relações de sobreposição de camadas e que aqui chamaremos de ‘modo compositivo por forma e estrutura’. De acordo com Bandur (2001), por se tratar de uma obra classificada como deconstrutivista, o processo de projeto para o Jewish Museum se enquadraria nas questões da estética serialista musical, chamada aqui de ‘modo compositivo pela técnica serial’. Já no caso de Bebop Spaces, temos um projeto que se desenvolve pelo ‘modo compositivo do improviso’, algo que pode se confirmar a partir das colocações de Brown (2006). Desse modo, para cada caso selecionado este trabalho propõe a análise projetual a partir da provável forma metodológica, ou dos ‘modos compositivos arquitetônicos vinculados à música’ que poderiam ter ocorrido ao longo do processo de projeto de cada arquiteto. Cabe ressaltar que se trata de ‘prováveis metodologias’, pois o discurso do arquiteto revela os indícios de sua ocorrência, mas nem sempre fica totalmente explícito como acontecem todas as etapas de um processo tão complexo como é o desenvolvimento de um projeto arquitetônico. PROJETO

MODOS COMPOSITIVOS ARQUITETÔNICOS VINCULADOS À MÚSICA

Stretto House

Forma e estrutura

Jewish Museum

Técnica serial

Bebop Spaces

Improviso e composição

Tabela 6 Estudos de caso selecionados e os respectivos modos compositivos estabelecidos.

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3.2.1 Forma e estrutura

[22] Eleven Echoes of Autumn, de Gorge Crumb. Disponível em: .Acesso em: 18/05/2016.

O primeiro ‘modo compositivo arquitetônico vinculado à música’ indicado neste trabalho é aquele que pode ser estabelecido pelas sobreposições de informações e elementos que levam à organização estrutural e composição formal da arquitetura. Fazendo um paralelo com o apontado por Martin (1994), esse tipo de organização formal se revela nos projetos que lidam com a síntese de diferentes camadas de informação, as quais fazem parte de algo coerente, elaborado e maior. Para a autora, as camadas de informação na arquitetura seriam os elementos de: movimento, linguagem, estrutura, luz, proporção, tecnologia, local, e arranjo espacial. Este é um processo que estuda a natureza inerente da arquitetura como uma disciplina de várias camadas que combina os elementos presentes nos diferentes materiais em uma única entidade. A sobreposição resultante das ideias e camadas, e das justaposições e sobreposições, propositadamente borra a relação padrão entre as convenções gráficas de desenhos técnicos, como a planta, o corte e a elevação, e seus significados no meio construído. Nestes casos, a música é uma das várias camadas de informação – é uma camada de oportunidade. (MARTIN, 1994. p. 55 – tradução nossa).

Martin entende que a arquitetura é uma disciplina de múltiplas considerações, que vão além do que pode ser percebido somente pela leitura de desenhos técnicos como plantas, cortes e elevações. Para a autora, a música quando relacionada com a arquitetura passa a englobá-la e no conjunto dos elementos que a compõem, torna-se oportunidade. Uma oportunidade projetual. Uma oportunidade para a configuração e a organização formal arquitetônica. De modo semelhante a música opera, sendo também caracterizada por conter elementos que indicam soluções variadas. Cada vez que a ouvimos, tocamos ou cantamos, percebemos que ela possui trechos que se repetem enquanto outros são contrastantes e o conjunto dessas atitudes de repetição/não repetição faz parte da forma e da estrutura musical. Podemos entender que a forma28 é a estrutura e o desenho da música. É como nós a identificamos. O compositor

Não confundir forma com estilo. Estilo em música é uma classificação cultural utilizada para agrupar peças musicais em gêneros semelhantes. 28

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austríaco Arnold Schönberg (1874-1951) indica em ‘Fundamentos da composição musical’ que a forma é o que torna uma música coerente, compreensível e em “[...] sentido estético, o termo forma significa que a peça é ‘organizada’, isto é, que ela está constituída de elementos que funcionam tal como um organismo vivo” (2008, p. 27). Para ele, sem a coerência e uma lógica formal a música seria apenas um conjunto de sons sem sentido. Copland (1974, p. 84) afirma que a estrutura musical é entendida como uma espécie de ‘molde’ para a composição e que o compositor obedece “[...] mais ou menos estritamente a esses moldes”, uma vez que as formas musicais foram criadas para serem guias, ao mesmo tempo em que permitem liberdade e independência: “Na mente do compositor, antes que ele inicie o seu trabalho, estão todos esses moldes conhecidos e utilizados, que agem como suporte, e às vezes como estímulo [...]”, cabendo ao compositor empregar o molde de maneira particular e pessoal, para que ao final cada peça seja única. As formas musicais podem se repetir por: simetria, variação, sobreposição e/ou desenvolvimento (COPLAND, 1974). Entre as estruturas mais comuns da música estão as formas por simetria binária (representada pelas letras AABB) [23], e ternária (representada por AABA), e Schönberg explica que elas significam o número de partes na qual uma música se constitui. Já para as estruturas mais complexas como as fugas, as suítes, as sinfonias, as sonatas, os concertos e as óperas - que são compostas por várias partes que mantêm um sentido musical entre si - Schönberg define que a forma indica “o tamanho das partes e a complexidade de suas inter-relações” (2008, p. 27). Existem também as formas de dança, como o minueto e o scherzo, que são definidas pelas características rítmicas, métricas e de andamento. O autor também esclarece que as formas musicais sempre são constituídas por frases diversas que se configuram por melodias mais simples e por motivos que se repetem “continuamente no curso de uma obra” (2008, p. 35), porém de maneira variada para que não haja monotonia. Os motivos representam o tema da peça, que geralmente é formado por melodias marcantes.

[23] Esquema para forma musical binária. Disponível em: . Acesso em: 18/05/2016.

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Traduzir o conceito de forma musical diretamente para a arquitetura implica na leitura que pode ser feita em relação a organização compositiva dos seus elementos. Mesmo não podendo ser uma reprodução literal de uma música, a forma arquitetônica pode se equiparar com as formas musicais, desde as mais simples até as mais complexas, talvez porque "onde a música tem a sua materialidade na instrumentação e no som, a arquitetura tenta de maneira análoga por meio do espaço e da luz" (MARTIN, 1994. p. 56 – tradução nossa). Se em arquitetura escala e proporção são elementos essenciais que pertencem à organização formal, para Schönberg a música tem de possuir ideias melódicas e harmônicas em suas partes. Para ele, uma música pode se constituir por poucas ou muitas partes, mas uma “subdivisão apropriada facilita a compreensão e determina a forma” (2008, p. 28). Também a textura, ou melhor, o timbre, faz parte de uma forma musical e, conforme observado no capítulo dois, ele se refere a intensidade dos sons – se é grave ou mais agudo - o que na arquitetura geralmente é relacionado com o emprego de diferentes cores e materiais. Podemos considerar que compositores e arquitetos tem uma preocupação em comum: a de que o processo estimula os resultados, aliando decisões e soluções. A aplicação de um modo compositivo baseado nas questões de forma e estruturas musicais permite certa flexibilidade para a composição arquitetônica, sem abandonar a lógica e a coerência, no sentido de que a “apresentação, o desenvolvimento e a interconexão das ideias devem estar baseados nas relações internas, e as ideias devem ser diferenciadas de acordo com sua importância e função” (SCHONBERG, 2008, p. 27). Pensando nessas colocações vamos delimitar que, para aplicar um modo compositivo baseado nas formas e estruturas musicais para a concepção ou análise da arquitetura, o arquiteto deverá estar atento para as questões de: 

Organização formal musical ≅ organização formal arquitetônica;



Lógica e coerência;



Estrutura, escala e proporção;



Texturas, timbres e materiais;



Relação das partes com o todo;



Movimento: repetição e não repetição (forma livre);



Subjetividade e experimento.

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Stretto House

[24] Stretto House, vista externa. Disponível em: . Acesso em: 08/04/2015.

A residência unifamiliar no Texas projetada por Steven Holl [24] costuma ser um dos projetos mais frequentemente citados pelos trabalhos e artigos acadêmicos que tratam de relacionar a arquitetura com a música. Seu conceito foi amplamente divulgado pelo arquiteto, aparecendo em diversas publicações, vídeos e entrevistas, algo que consideraremos como uma vantagem para a análise projetual, uma vez que poderemos nos basear em apontamentos do próprio autor para discutir sobre parte do processo de projeto ocorrido para a concepção desta obra. Conforme relato do arquiteto, o projeto da Stretto House teria se iniciado com o estudo do programa, seguido pela visita ao terreno. O local escolhido se destacava pela paisagem: uma grande área verde e no centro um riacho cortado por três diques de concreto e três lagoas artificiais formadas por eles. Holl comenta que seu projeto representa a 'reciclagem' do terreno, uma vez que muita coisa da paisagem existente foi mantida e requalificada (1996, p. 7). A partir de certo ponto nos relatos sobre a residência não é mais possível identificar com certeza a ordem exata pelas quais o projeto se desenvolveu, pois Holl passa a indicar apenas as questões que envolveram a escolha conceitual da obra. Muitas das publicações sobre a residência - incluindo aquelas de própria autoria do arquiteto - dão a entender que ela foi projetada por Holl

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como um ‘paralelo’ da música do compositor húngaro Béla Bartók (1881 – 1945), intitulada ‘Música para Cordas, Percussão e Celesta’ (1936). Sobre conceito, Steven Holl parece preferir defini-lo como ideia motriz, conectando-o com as demais questões de projeto por ele consideradas importantes – de local, circunstância, programa e fenomenal. Para ele, a ideia é uma força que conduz o projeto e formulá-la exige a construção de um campo de pesquisa para definir “o foco e os limites e, o mais importante de tudo, a responsabilidade de trabalhar com rigor e profundidade” (1996, p. 15). Talvez para Holl a contribuição da música para a arquitetura se encaixe nesse sentido: a música pode trazer conceito para a arquitetura e pode ser utilizada para dar a ela significado. Como ele mesmo comenta: Do conceito inicial ao menor detalhe, nosso objetivo é criar ideia e fenômeno. Uma ideia geral é como uma cadeia de causas e efeitos trabalhando com funções e elementos físicos. Ao contrário de um início formal, o conceito transcende o abstrato, organizando o fenômeno experiencial. O prazer das experiências arquitetônicas – o fenômeno de luz e sequências espaciais, texturas, cheiros e sons – é irredutível e, finalmente, emaranhado com a situação, com a estação do ano, e com a hora do dia. De certa forma, o conceito que conduz um projeto como a Stretto House desaparece completamente nos fenômenos da realidade física e ainda que intuitivamente a abundância da ideia pode ser sentida. (HOLL, 1996, p. 9).

Antes de prosseguir com as análises do projeto, comentaremos brevemente sobre a composição de Bartók, uma peça composta em 1936 que se tornou uma das mais importantes obras musicais do século XX [25].

A peça tem uma divisão clara de

materialidade entre o ‘pesado’, que na música é representado pela percussão; e o ‘leve’, representado pelos instrumentos de cordas. O contraste entre a massa dos instrumentos em Bartók é enfatizado pela separação física da orquestra no palco: dois grupos de instrumentos de cordas são colocados em lados opostos, e no centro do palco fica um grupo de instrumentos de percussão, a celesta e também um piano. [25] Página inicial de ‘Música para cordas, percusão e celesta”. Disponível em: . Acesso em: 18/04/2015.

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Seguindo uma prática bastante comum entre os compositores, Bartók emprega em sua peça a razão áurea e a chamada ‘sequência de Fibonacci’ para estruturar formalmente a obra, destacando mudanças de movimento29, de tonalidade, de ritmo, de intensidade, etc. Oukawa lembra em sua dissertação que a obra traz a “presença constante da simetria em oposição à Proporção Áurea” (2010, p. 147), e que essa característica esteve sempre presente nas composições de Bartók30. Dividida em quatro movimentos, a peça se alterna entre partes rápidas e lentas, sendo que o primeiro movimento – e somente este - é o que Steven Holl diz utilizar para conceituar o projeto da residência Stretto House. Em ‘termos musicais’, o primeiro movimento da composição se apresenta em forma de fuga31. Nessa forma, a peça sempre se inicia com um tema (ou sujeito) apresentado por uma das vozes isoladamente. Uma segunda voz surge em seguida executando o mesmo tema, porém em outra tonalidade, enquanto a primeira voz continua desenvolvendo um acompanhamento. As vozes restantes entram a seguir, uma a uma, cada uma iniciando com o mesmo tema. O restante da fuga utiliza a sobreposição de todas as vozes, que entram sucessivamente e continuam de maneira entrelaçada, desenvolvendo a música e voltando várias vezes ao tema principal, conforme a seguinte sequência: VOZ 1 VOZ 2 VOZ 3 VOZ 4

TEMA

CONTRA-TEMA -----------------------------------------------------------------------------------------------TEMA CONTRA-TEMA ----------------------------------------------------------------------TEMA CONTRA-TEMA --------------------------------------------TEMA CONTRA-TEMA --------------------

O Stretto se refere a uma seção da fuga, na qual o tema [26] aparece sempre sobreposto, por exemplo, quando o segundo tema começa antes da conclusão do primeiro. Este tipo de artifício compositivo gera na música um aumento da dramaticidade, além da aceleração no andamento.

29

São as partes na qual pode ser dividida uma composição musical.

Para a análise musical completa do primeiro movimento da Música para cordas, percussão e celesta de Béla Bartók verificar Apêndice A da dissertação de mestrado: OUKAWA, Carolina Silva. Edifício Copan: uma análise arquitetônica com inspiração na disciplina análise musical. 2010. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. 30

Forma musical que tem sua origem no séc. XVIII, no período barroco. É uma forma de composição polifônica, isto é, que possui várias vozes. Para melhor entendê-lo, os teóricos costumam dizer que é preciso escutar a música diversas vezes, já que esta é constituída por várias partes e vozes que se sobrepõem, mas que devem ser ouvidas independentemente. “Se você quer realmente entender o que se passa nessas formas, deve estar disposto a voltar muitas vezes a elas. Mais do que qualquer outro molde formal, a fuga exige uma audição atenta da parte do leigo.” (COPLAND, 1974, p. 114). 31

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VOZ 1 VOZ 2 VOZ 3 VOZ 4

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TEMA CONTRA-TEMA ---------------------------------------------------------------------------------------TEMA CONTRA-TEMA --------------------------------------------------------------------------------TEMA CONTRA-TEMA ----------------------------------------------------------------------------TEMA CONTRA-TEMA -------------------------------------------------------------------------

[26] Identificação do tema de “Música para cordas, percussão e celesta”. Disponível em: . Acesso em: 18/04/2015.

Voltando a falar sobre o projeto, a seguir temos a reprodução de dois croquis que datam de 1989. Neles é possível observar que o arquiteto se balizou por duas ideias essenciais, que continuaram a existir no projeto até a sua conclusão. A primeira foi a vontade por utilizar materiais vernaculares das construções do Texas, que eram os blocos de concreto, a pedra limestone e a cobertura metálica. A outra, vinha da necessidade de proteção contra o sol escaldante do Texas, que fez com que o arquiteto explorasse as questões de sombra e sobreposição das coberturas nos seus croquis [27].

[27] Aquarela mostrando sombras e espaços fluídos. Retirado de Holl, 1996, p. 10.

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Pelos croquis é possível identificar o título ‘Shadow House’32, provavelmente porque a ideia de sombras geradas por planos inclinados ou curvos era muito forte e essencial para o arquiteto. No primeiro croqui está escrito: “A planta da casa = ortogonal”, “O corte da casa = curvado” e por último temos as palavras “dobrado, deformado, convexo e conclave”. No segundo croqui [28] Holl intitula: “Conceito para uma terceira experiência”, escrevendo em seguida: “1. ordenação matemática sustentada 55% + 2. possibilidade de ordenação 45%” e “3. espaço e luz no meio” (1996, p. 10 – tradução nossa). Neste segundo croqui também é possível perceber que a residência fora implantada no sentido vertical

[28] Aquarela representando os elementos curvos metálicos e os elementos ortogonais de blocos de concreto. Retirado de Holl, 1996, p. 15.

em paralelo ao riacho e ocupando boa parte do terreno, o que depois foi alterado para uma implantação horizontal na parte mais para o fundo do lote.

[29] Aquarela representando a planta e o corte da residência. Retirado de Holl, 1996, p. 11.

32‘Casa

da sombra’. Tradução da autora.

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Neste outro croqui [29] a casa já aparece em sua implantação horizontal, dividida em quatro partes que se alternam entre características ‘pesadas e leves’. Boa parte do texto escrito por Holl, assim como a data em que foi feito o croqui está ilegível pela imagem, mas é possível perceber que o arquiteto ponderava sobre os materiais e características formais de cada parte da residência. Para continuarmos com as análises projetuais parece ser interessante olharmos também para as questões que se referem ao ‘modo compositivo arquitetônico’ baseado nas formas e estruturas musicais, com o objetivo de verificarmos se todos os pontos delimitados anteriormente foram considerados por Steven Holl no projeto da Stretto House, pois assim como Martin (1994), estamos considerando que este projeto se constitui por múltiplas camadas de elementos que se sobrepõem e interagem entre si e seu conjunto implica na solução formal arquitetônica.



Organização formal musical ≅ organização formal arquitetônica;

Somente após uma conversa com John Szto, seu ex-aluno e também pianista da Juilliard Music School, Holl teria decidido explorar neste projeto o conceito musical da forma stretto33, que para ele parecia ser análogo a situação das lagoas e diques de concreto sobrepostos existentes no terreno com a sua proposta para a arquitetura da residência, a qual deveria ser marcada pelos espaços bem delimitados e ao mesmo tempo, conectados e fluídos. Assim como num stretto e suas sobreposições, a água correndo por entre as lagoas poderia demonstrar o reflexo do entorno exterior com os espaços internos sobrepostos. De acordo com o arquiteto, este nexo conceitual forneceu uma expressão física na materialidade da arquitetura. (…) Eu decidi explorar o conceito musical de ‘stretto’, que é análogo as lagoas que se sobrepõem no local, em um stretto de uma fuga, quando a imitação do sujeito em próxima sucessão é respondida antes de estar completa. Esta articulação com o conceito musical poderia, eu imaginei, ser uma ideia para a conexão fluída dos espaços arquitetônicos (HOLL, 1996, p. 7).

Nos cortes e elevações podemos ver como o stretto é facilmente identificado. Se stretto é a sobreposição do tema em uma fuga, podemos definir que o tema na arquitetura tem a sua expressão mais imediata na sobreposição das várias curvas que constituem a cobertura. Segundo Oukawa, “este aspecto bastante externo evidencia o que resulta no interior: os ambientes da casa

Termo da teoria musical que designa um recurso técnico de composição que trabalha com a sobreposição de temas. 33

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como que fluem um para o outro” (2010, p. 173). Também podemos identificar as quatro zonas que definem a residência bem demarcadas pela relação estabelecida entre as partes ‘leves’ e as partes ‘pesadas’ que a compõem, assim como na música [30] [31]. Na implantação podemos perceber também as demarcações entre as quatro partes da residência, separadas por zonas leves e pesadas. O paralelo pretendido pelo arquiteto era o de transpor para a arquitetura uma situação análoga ao que estava ocorrendo no terreno: assim como o riacho está cortado por diversos diques de concreto, a residência tem seu espaço fluído interrompido externamente pelos ‘diques espaciais’ formados pelos quatro blocos de concreto. Os eixos de implantação da residência principal e da casa de hóspedes foram pensados como uma continuidade com as barragens existentes no local [32] [33].

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[30] Página anterior: Análise da autora, 2015. [31] Corte e vistas. Esc. 1:300. Retirado de Holl, 1996, p. 20 e 23.

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[32] Página anterior: Análise da autora, 2015. [33] Implantação. Esc. 1:500. Retirado de Holl, 1996, p. 16.

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Lógica e coerência;

Lógica e coerência são identificadas na composição formal da Stretto House Ao olhar através da porta de entrada o visitante pode observar a sobreposição dos elementos, dentro e fora da casa, com vislumbres do jardim ao longo das perspectivas das salas maiores, criadas para expor a grande coleção de obras de arte dos proprietários. As sequencias espaciais fluidas foram projetadas como uma série de perspectivas interiores se sobrepondo. A planta da casa principal é puramente ortogonal, o corte é curvilíneo. Já a casa de hóspedes, implantada na parte um pouco mais a frente do lote traz uma inversão disso, sendo sua planta curvilínea e seu corte ortogonal, algo similar às inversões de sujeito no primeiro movimento da música de Bartók [34].

[34] Composição com imagens disponíveis em: . Acesso em: 08/04/2015.



Estrutura, escala e proporção;

Na planta do primeiro pavimento, que é puramente ortogonal, vemos a intenção do arquiteto em utilizar medidas nos ambientes que seguissem a proporção áurea. O valor para a = 6.4 metros. O valor de b = 3.96 metros. Esses valores se repetem muitas vezes nos ambientes que fazem parte das áreas sociais da residência, mas as medidas que compõem os blocos de serviços não tem relação proporcional com os demais ambientes [35] [36].

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[35] Página anterior: Análise da autora, 2015.

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[36] Página anterior: Plantas do primeiro e segundo pavimentos. Retirado de Holl, 1996, p. 19.

Embora não se possa afirmar com certeza, o emprego de proporções áureas em alguns ambientes da casa talvez não necessariamente se relacione com o uso do número de ouro na composição de Bartók, pois Holl comenta que a primeira coisa em que pensou quando seus clientes pediram por espaços cuidadosamente proporcionais, foi em seguir medidas que pudessem estabelecer o valor de 1.618 em proporção, antes mesmo de ter se referido ao conceito musical. Abaixo vemos uma análise do primeiro movimento da música de Béla Bartók, na qual é possível perceber que a sequência Fibonacci acontece sempre em compassos importantes [37].

[37] Esquema gráfico do primeiro movimento da ‘Música para cordas, percussão e celesta’. Disponível em: . Acesso em: 18/07/2015.



Texturas, timbres e materiais;

Para Holl, a consideração sobre quais materiais serão utilizados sempre aparece desde o início do processo de projeto. Mesmo depois do conceito já ter sido definido, seu escritório continua propondo vários modelos volumétricos em diferentes materiais, para obter diferentes soluções espaciais, até que seja escolhida a melhor solução para cada caso. Por exemplo, a partir

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de modelos formulados com o uso de pequenos galhos surgirá uma composição que deve estar relacionada com uma construção em madeira; o uso de compensado resulta em modelos planos; a argila pode criar uma volumetria de forma mais livre; cabos representam estruturas tensil; o gesso sugere a forma do concreto e demonstra sua capacidade plástica. Construindo esses modelos de estudo, uma direção está sendo tomada no projeto. Em outras palavras, o processo conceitual ou ideia – fazendo croquis, aquarelas, escrevendo sobre – acontece simultaneamente com essa exploração dos materiais. É importante que isso ocorra em paralelo. (HOLL, 1996, p. 6).

Os

materiais

e

o

método

construtivo

seguem

o

esquema

‘pesado/leve’

e

‘ortogonal/curvilíneo’, criando um ritmo de forma similar a composição de Bártok. Na medida em que se avança pelo espaço os visuais se abrem ou se fecham [38].

[38] Modelo volumétrico da Stretto House. Disponível em: . Acesso em: 18/04/2015.



Relação das partes com o todo;

A casa projetada por Holl se divide em quatro seções, sendo que cada uma delas é apresentada de duas maneiras: pela estrutura ortogonal e ‘pesada’ de blocos de concreto e pela estrutura metálica curvilínea ‘leve’. Implantada próxima aos três diques e lagoas, a Stretto House reflete essa característica do local em sua própria forma. Representando os 'diques espaciais', a casa tem como elemento marcante os quatro grandes blocos retangulares constituídos por paredes duplas de blocos de concreto, que abrigam os espaços de serviços e de circulação vertical. Essas formas são cercadas por espaços mais amplos e fluídos com fechamento em painéis de metal e vidro, que abrigam os espaços de estar e que representam simbolicamente a água correndo por entre os diques. Holl acredita que a arquitetura pode definir o movimento fluído nos espaços ao determinar as intensidades de luz e sombra percebidas ao longo do dia e da noite,

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e chamou esta interação de ‘espaço liquefeito'34, que foi desenvolvido para três propósitos: primeiro, os planos de chão direcionam os espaços; segundo, os planos de cobertura ampliam os espaços; e terceiro, as aberturas trazem a luz do céu para o interior da residência. [...] "a casa reflete o caráter do local em uma série de ‘diques espaciais’ feitos de blocos de concreto com um ‘espaço liquefeito’ moldado em metal que flui através deles. Correndo ao longo das barreiras, como um stretto em música, a água fornece uma reflexão sobreposta da paisagem exterior assim como a sobreposição virtual do espaço interior." (HOLL,1996, p. 30).

[39] Projeção axonométrica explodida. Retirado de Holl, 1996, p. 18.

Na imagem anterior [39] temos uma representação mais clara das partes ‘pesadas - os diques espaciais’ em blocos de concreto - e das partes ‘leves - os espaços liquefeitos’ fechados por vidro e metal - da residência e é também possível perceber como eles se conectam. A relação espacial criada a partir das formas retangulares contrasta com as formas curvilíneas, algo que, para Martin, representa uma incompatibilidade em relação ao significado áureo dos encontros de curva

34

Do original ‘aqueous space’. Tradução da autora.

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(MARTIN, 1994, p. 59), isto porque em planta, “as proporções foram ajustadas de acordo com a razão da Seção Áurea de 1:1.618" (HOLL, 1996, p. 8 – tradução nossa), porém em corte as medidas não seguem as mesmas proporções. Ao chegar à área da piscina [40] a impressão que se tem ao olhar para a fina cobertura curva, locada ao seu lado, é de que esta se parece com um guarda-sol e sua sombra. A última sala é vazia e está invadida pela água do lago. Não há uma função pragmática. Esta sala - que parece ter o dobro do seu tamanho real por conta da reflexão na água- se torna o centro de duas sequencias espaciais, uma sendo a paisagem e o terreno, e a outro é o ‘espaço líquido arquitetônico’. O projeto da cobertura foi de todos os pontos o mais desafiador, pois as curvas ocorrem de forma livre em várias direções, não obedecendo as mesmas proporções e ângulos e ela deveria permitir que ocorresse o contraste entre elementos ‘leves/pesados’.

[40] Foro externa da área da piscina. Disponível em: . Acesso em: 18/04/2015.



Movimento: repetições e variações;

Em Stretto House o arquiteto explora as repetições dos elementos retangulares e variações dos elementos curvos e é essa relação que traz movimento à arquitetura. Um movimento gradual e fluido parece descer através dos ‘diques espaciais’, impulsionado pela cobertura curva.

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Externamente os elementos ‘pesados e leves’ são bastante visíveis e contrastantes, enquanto os espaços interiores [41] são fluídos e a continuidade é conseguida pela intenção de revelar levemente o método construtivo nos materiais e detalhes diversos, como os puxadores dos armários na cozinha representando o contraste ‘leve/pesado’ e ‘ortogonal/curvo’; os tapetes de lã descrevendo partituras musicais e aparentemente ‘boiando’ no piso de concreto preto brilhante.

[41] Composição com imagens disponíveis em: . Acesso em: 08/04/2015.



Subjetividade e experimento;

A música aparece no discurso público de Steven Holl desde que este começou a se preocupar com as questões de abordagem fenomenológica, as quais ele entende estarem presentes nas experiências humanas do dia a dia. Holl se diz interessado nos fatos comuns e nos extraordinários, nas circunstâncias e nas experiências e, para ele, elas podem trazer significado para a arquitetura, até que ela se torne uma arquitetura significativa culturalmente. Entrar em todas as questões que englobam a fenomenologia está muito além do esperado para este trabalho, mas cabe aqui comentar alguns dos pensamentos de Holl que estão diretamente relacionados com seu modo de projetar: Seu trabalho revela considerações cuidadosas com relação a materialidade, a luz, a cor e a textura, que para ele são elementos dissociáveis enquanto presentes durante o processo de projeto, mas que no fim, com a obra finalizada, se misturam em percepção. "Por um lado, uma ideia motriz guia a arquitetura; por outro, estrutura, material,

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espaço, cor, luz, e sombra se entrelaçam na fabricação da arquitetura." (HOLL,1996, p. 11 – tradução da autora). O argumento central de seu trabalho é que a arquitetura deve ser formada de acordo com cada terreno e situação. Essa filosofia é considerada por ele fundamental para desenvolver conceitos para uma arquitetura relevante e com significado, pois, embora o aspecto dos sentidos seja essencial para essa arquitetura, esse não é o único meio, mas sim uma das formas para aguçar o imaginário de seus habitantes/usuários. Preocupado com uma prática fértil, suas considerações nunca são somente estilísticas e em seus projetos Holl procura fazer reinterpretações críticas do programa, pois ele acredita na possibilidade de poder transformar um observador passivo em participante: "Arquitetura pode dar forma a um vívido e sentido emaranhado do espaço e tempo; ela pode mudar a forma como vivemos." (HOLL,1996, p. 11 – tradução nossa). Com as análises podemos entender que Steven Holl vinculou seu projeto com a forma musical de stretto para representar fluidez e sobreposição, pontos que foram definidos por ele logo de início. Pelas publicações não é possível saber a data em que Holl teria tido a conversa com seu ex-aluno e a partir de quando exatamente ele teria conceituado o projeto desta maneira, vinculando-o com a música, mas podemos concluir que provavelmente o conceito formal da arquitetura já existia antes da analogia musical, e o conjunto das questões apontadas pela fenomenologia parecem ser tão ou mais importantes para o arquiteto, do que simplesmente o uso da música por si só. É certo, porém, que a vinculação com a música ocorreu ainda em fase de projeto e serviu como base e justificativa para a significação da arquitetura. Como diz o arquiteto, o stretto representa uma ideia para a conexão fluída dos espaços arquitetônicos e não há como negar que o projeto carrega similaridades com a composição de Bartók de diversas maneiras, por

similaridades e diferenças

isso vale a pena aqui destacá-las: STRETTO HOUSE Steven Holl . 1989/92

MÚSICA PARA CORDAS, PERCUSSÃO E CELESTA Béla Bartók . 1936

constituída por 4 partes

constituída por 4 movimentos

pesado/leve = concreto/metal e vidro

pesado/leve = percussão/cordas

sobreposição de elementos curvos

stretto – sobreposição de temas

Seção áurea Série Fibonacci Tabela 7 Similaridades e diferenças entre a arquitetura (Stretto House – Steven Holl) e a peça musical (Música para cordas, percussão e celesta – Béla Bartók).

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3.2.2 Técnica serial

[42] Parte de gráfico produzido por Schoenberg. Disponível em: . Acesso em: 08/04/2015.

É difícil descrever com poucas e simples palavras como se deu o desenvolvimento do pensamento e da teoria serial, pois não há como separá-los das questões históricas, políticas, sociais e econômicas presentes na Europa do século XX, principalmente em relação ao período pós II Guerra Mundial. Tendo isso em vista, no âmbito deste trabalho a discussão aqui apresentada será restringida a levantar apenas alguns aspectos do serialismo e da técnica serial para a composição musical, para posteriormente propor as características do pensamento serial que poderiam ser transpostas para o processo de projeto em arquitetura. Primeiramente, é interessante apontar que o serialismo surge na música como uma consequência natural do pensamento alemão, em uma tentativa de dar lógica a composição atonal livre praticada até então. Os compositores estavam cada vez mais preocupados com a estruturação musical, com a clareza e coerência de seus elementos. Para Paul Griffiths em seu “A música moderna: Uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez” (2011), o serialismo não pode ser entendido como estilo e tampouco como sistema, mas sim como um método compositivo. Este ponto de vista se complementa com o de Markus Bandur, autor de Aesthetics of total serialism (2001), que vai um pouco além ao considerar o serialismo como uma forma estética que teria se desenvolvido primeiramente em trabalhos do compositor Arnold Schönberg, a partir de 1923. O termo serial, no entanto, foi definido somente em 1947, quando o compositor francês René Leibowitz (1913-1972) classificou assim as obras de Schönberg, utilizando a palavra serial para enfatizar o recurso compositivo dodecafônico, na qual uma série de 12 notas poderia ser empregada em uma composição musical de maneira fixa para gerar melodias e harmonias, que permanecem obrigatórias em toda a obra e aparecem em ordens variadas, invertidas e/ou transpostas. Um recurso utilizado com o objetivo de evitar a predominância de determinadas notas e tonalidades e para dar maior duração temporal para uma composição, visto que as primeiras peças dodecafônicas são curtíssimas, mas com essas técnicas se consegue trabalhar mais a fundo.

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Pouco depois, outras personalidades importantes para a música como Pierre Boulez (19252016) e Karlheinz Stockhausen (1928-2007) foram - em teoria e na prática - expandindo o termo para um conceito mais geral de pré-ordenação de todos os elementos musicais, o qual passou a representar não somente as notas, mas também as durações e dinâmicas dos sons, por exemplo. O serialismo total como teoria musical surge oficialmente na cidade alemã de Darmstadt em 1951, na importante feira internacional "Internationale Ferienkurse für Neue Musik"35, e ao que tudo indica, não foi por acaso que ele tenha se desenvolvido primeiramente no campo da música, afinal, esta é uma das mais antigas manifestações da humanidade. É inegável o papel do serialismo para uma provável integração de todas as artes em um único conceito criativo, conforme apontado por Bandur (2001). Vale lembrar que, por diversas vezes as artes - incluindo aqui a arquitetura - dividiram entre si princípios comuns, como aqueles baseados no número e nas leis das proporções harmônicas, mas que esses tipos de relações há muito se mostravam enfraquecidas. Para o autor, o serialismo teria ajudado a promover um novo tipo de união entre as artes, pois apesar de lidar com questões muitas vezes abstratas, sua base teórica proporcionava uma linguagem estética renovada que refletia alguns dos novos ideais de muitos grupos de artistas, músicos, arquitetos, escritores, filósofos e etc. do século XX. Ainda de acordo com Bandur, o pensamento serial - no sentido mais amplo da palavra – teria aos poucos se espalhado pelo mundo e se desenvolvido como um conceito integral, tornando-se uma das mais inovadoras, marcantes e influentes características na música do século XX, e repercutindo também para as artes e arquitetura, por representar princípios de ordenação de elementos específicos não restritos somente a música, e que poderiam ser aplicados para todas as áreas, sendo comuns em todos os tipos de organização formal. Ao classificar o serialismo como forma estética, o autor aproxima e une sob a mesma ótica a música, as artes, a arquitetura e também a literatura. Mais do que isso, para ele o serialismo poderia ser entendido como uma filosofia de vida, “um modo de relacionar a mente humana para o mundo e criando uma completude quando se lida com um assunto” (BANDUR, 2001, p. 5 – tradução nossa), pois o pensamento serial ofereceu a possibilidade de reconquista da ordem e da organização, promovendo lógica, coerência e unidade para a composição.

“Cursos Internacionais de Verão para a Nova Música” – tradução nossa. É uma feira internacional sobre música que se iniciou após a II Guerra Mundial, e que ainda ocorre bienalmente na cidade de Darmstadt, na Alemanha. 35

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Griffiths propõe que o serialismo como método poderia ser utilizado para fornecer sugestões e referências ao compositor, que estaria buscando expressões gramaticais capazes de determinar uma linguagem de forma precisa e coesa. A técnica serial em composição musical, entretanto, é considerada muitas vezes como complexa demais, mecânica ou matemática em excesso, embora se entenda que com ela é possível compor com bastante liberdade, devido a grande variedade de possibilidades disponíveis com o uso da série. A série é assim uma espécie de tema oculto: não precisa ser apresentada como tema [...], mas é um reservatório de ideias e uma referência básica. Ela pode ser manipulada das mais diversas maneiras em uma composição [...]. Desse modo, o compositor tem à sua disposição uma variedade de formas da série, todas ligadas pela mesma sequência de intervalos, e pode usá-las como lhe aprouver. [...]. As possibilidades são enormes, mas o princípio serial funciona como garantia de que a composição terá um certo grau de coerência harmônica [...]. (GRIFFTHS, 2011, p. 81)

Ao observar com mais atenção o discurso do compositor, é possível ver com mais clareza como essas intenções se refletem no processo de compor. Pierre Boulez e John Cage são exemplos de compositores que utilizaram tabelas de séries numéricas para definir estruturas rítmicas. Boulez entendia que estrutura e organização eram as palavras-chave de sua época, e que elas demonstravam o "[...] empenho dos compositores do serialismo integral, que se consideravam arquitetos ou engenheiros do som. Eles perseguiam suas ideias com rigor quase científico; falava-se muito de pesquisa e matemática em seus ensaios técnicos” (GRIFFTHS, 2011, p. 134). Pierre Boulez teria decidido explorar o serialismo em suas composições devido a uma vontade de romper com as tradições, e ao mesmo tempo trabalhar com os elementos disponíveis para então desenvolver algo novo. Esta intenção fica clara quando o compositor comenta sobre sua primeira composição estritamente serial, denominada Structures I For Two Pianos (1952): Meu plano foi baseado na seguinte ideia: eu queria apagar todos os vestígios tradicionais do meu vocabulário, não importante se fossem figuras, ou frases, ou desenvolvimentos, ou forma; eu queria reconquistar, pedaço por pedaço, elemento por elemento, as diferentes fases de tal forma que uma nova e perfeita síntese surgiria, uma síntese que, desde o seu início, não tinha sido manchada por matéria estranha [...] ocorreu-me que a exigência mais urgente era a unidade de todos os elementos da linguagem. (1985 apud BANDUR, 2001, p. 39 – tradução nossa).

Geralmente o funcionamento do princípio serial aplicado a uma peça musical não é audível sendo tampouco esta a intenção de seus compositores - e por isso ele é entendido muitas vezes de modo abstrato e complexo, com difícil interpretação. Já nas artes visuais como a pintura [43], a identificação e aproximação com exemplos de conceitos seriais podem ser facilmente

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interpretados visualmente, como por exemplo, nos trabalhos de Paul Klee e Piet Mondrian, que procuraram evitar repetições e simetria utilizando um determinado número de elementos formais, possíveis de serem organizados visualmente.

[43] Paul Klee - Gradation, Red-Green (Vermillion) – 1921. Disponível em: . Acesso em: 08/04/2015.

Os princípios do serialismo parecem ser ainda mais abstratos em arquitetura do que na música, pois nem sempre fica explícito se houve uma referência direta do serialismo musical para a arquitetura, ou se ocorreram somente eventuais paralelismos acidentais entre elas. Entretanto, ao analisar com mais atenção os casos levantados para este trabalho, em que a música concretamente aparece ao longo do processo de projeto do arquiteto para contribuir com a arquitetura final, temos pelo menos um caso exemplar na qual podemos verificar uma maior aproximação entre conceitos seriais musicais e arquitetônicos aplicados para as técnicas de composição arquitetônica ao longo do processo de projeto, que seria o projeto do Jewish Museum (1988-1999, Berlim, Alemanha), de Daniel Libeskind. Mas antes de analisar e discutir o caso acima é importante ainda

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entender de que forma a técnica compositiva serialista poderia estar relacionada com o processo de projeto em arquitetura. De acordo com Bandur, o primeiro exemplo de técnica serial aplicada na arquitetura se deu com Rainer Fleischhauer e Jörn Janssen, arquitetos que teriam desenvolvido um projeto urbano para a construção de uma nova cidade. O projeto foi publicado em 1960 na sétima edição do periódico musical die Reihe. Informationen über serielle Musik (2001, p. 54)36. Bandur também destaca que na primeira publicação deste mesmo jornal fora relatada por Stockhausen a existência de uma relação entre as ideias do serialismo musical com a forma de pensar de Le Corbusier, destacando o Modulor como sendo precursor do serialismo fora do campo musical. Partindo desde princípio, temos que o Modulor seria entendido como uma importante teoria serial fora da música, na medida em que seu sistema de medidas e proporções harmônicas baseado nas medidas do corpo humano poderia ser empregado de maneira racional e objetiva por todos os elementos da arquitetura, ou como o próprio arquiteto definiu, era “[...] uma ferramenta, uma escala para se compor uma série de construções e também para se alcançar grandes edifícios – sinfonias com a ajuda da unidade.” (LE CORBUSIER, 1953, p.13). O serialismo trabalha com os elementos e com a maneira sobre como eles podem ser distribuídos e organizados em uma composição, a partir da pré-organização de formas e de regras específicas criadas para tal. A distribuição sistemática de formas em um arranjo sempre variado é uma ocorrência comum na composição serial e está diretamente relacionada com a ideia de integração de diferentes características formais e com a unificação de todas as possibilidades e dimensões, de acordo com uma teoria de proporções válida. Há a preocupação para que o resultado final seja coerente. Portanto, o modo compositivo arquitetônico que poderia ser estabelecido pela estética do serialismo não é um simples recurso técnico compositivo de analogia (como quando ouvimos dizer que a música foi um ‘tipo de inspiração’ para a arquitetura), mas é um método para integrar repetições e partes individuais pré-estabelecidas que se relacionam por característica, forma e proporção, e que ajuda a encontrar novas e talvez melhores maneiras de organizar estruturas e elementos.

Infelizmente até o momento não foi possível encontrar em levantamento bibliográfico informações que pudessem ser lidas sobre este projeto. Tampouco foi considerada a hipótese de leitura do periódico die Reihe, extinto em 1962, por se tratar de uma publicação alemã de difícil acesso, e em língua alemã. Este fato foi colocado no trabalho apenas por questão de curiosidade. 36

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Bandur (2001, p. 55) propõe que o pensamento serial lida com os fatores fundamentais de identidade e diferença para integrar as qualidades de seus elementos formais. Cada elemento de um plano serial conteria as características de identidade e de diferença que foram pré-ordenadas com o objetivo de gerar variedade e ordem, sempre obedecendo certa coerencia formal. Os fatores de identidade e diferença estão diretamente relacionados com os quatro princípios artísticos e formais de: repetição, variação, contraste e simetria. Vemos abaixo o que cada um desses princípios representa, de acordo com este ponto de vista: 

Repetição – ideia básica de conectar dois ou mais elementos formais pela identidade;



Variação (ou derivação) – ideia que lida ao mesmo tempo com a identidade e com a diferença, acentuando o momento de diferença enquanto trabalha com a identidade;



Contraste – ideia básica de conectar dois ou mais elementos pela diferença;



Simetria – ideia que lida ao mesmo tempo com a identidade e com a diferença, acentuando o momento de identidade combinada com a diferença.

[44] Composição com peças de xadrês. Disponível em: . Acesso em: 08/04/2015.

Na fotografia acima temos um exemplo de uma composição de peças de xadrez, que foram agrupadas de tal modo que percebemos os princípios acima destacados [44]. A técnica serial de composição permite que sejam exploradas possibilidades formais das mais diversas possíveis, com

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(…) o conceito de criar formas artificiais baseado em uma relação especial entre a individualidade (singularidade) e a similaridade, com foco em evitar a repetição, visando à integridade, tendendo a permanente inovação na teoria e na prática, e em torno da ideia de mediação estrutural entre diferentes quantidades, qualidades, tipos e classes de elementos; mais do que o suficiente para qualquer artista trabalhar em um movimento em espiral interminável que progride ao infinito (BANDUR, 2001, p. 7 – tradução nossa).

Com base nos trabalhos de Bandur e Griffths, e com o objetivo de melhor esclarecer as características técnicas do pensamento serial, podemos ainda pontuar aqui quais as estratégias compositivas musicais que – em síntese - melhor representam esta forma estética e que também poderiam ser aplicadas como método para a composição arquitetônica. Em termos práticos, podemos constatar que elas se traduzem por: 

Ordenação formal;



A criação e pré-organização de formas artificiais, estabelecendo séries de elementos;



A combinação e/ou integração entre repetições e partes individuais;



A utilização da série em todas as suas possibilidades;



O emprego de relações de identidade e diferença;



Mediação estrutural entre quantidades, qualidades, tipos e classes de elementos diferentes;



A busca por inovação e completude.

A estética arquitetônica deconstrutivista é aquela que pode ser facilmente relacionada com o padrão serial musical. A prevenção de simetria e de repetições, além do afastamento para com certas características tradicionais compositivas torna isto possível (BANDUR, 2011). Como exemplo, temos alguns dos trabalhos de Bernard Tschumi, Daniel Libeskind e Peter Eisenman. O deconstrutivismo possibilita ao arquiteto novas maneiras de empregar os elementos de composição, revertendo a ordem, a hierarquia e as dimensões das formas, separado estas de sua função. Veremos agora como as características técnicas do pensamento serial aplicadas à arquitetura puderam ser identificadas por meio da análise projetual no caso do Museu Judaico de Berlim, de Daniel Libeskind.

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Jewish Museum

[45] Jewish Museum, imagem externa. Disponível em: . Acesso em: 08/04/2015.

No Museu Judaico de Berlim [45], projeto de 1989, podemos identificar por meio da análise projetual que o arquiteto polonês Daniel Libeskind traz alguns exemplos de utilização de códigos seriais aplicados ao projeto arquitetônico. Alguns, porque vamos aqui tomar a posição de que mais de uma serie foi estabelecida para este projeto, sendo empregada ao longo de toda a complexa composição do edifício. Os códigos seriais estabelecidos combinam elementos importantes do programa, como: subsolo, circulação, vazios, aberturas das janelas, etc., e procuraremos observar de que modo o pensamento serial poderia ser lido neste projeto. Para começar, é interessante destacar que Libeskind - que também é pianista - escreveu artigos e relatou em inúmeras entrevistas o que pensa a respeito dos elos existentes entre a música e a arquitetura, dizendo que, para ele, os elementos que unem as duas áreas são o tempo e a matemática. O arquiteto entende que a música é uma disciplina rigorosa, assim como é a disciplina arquitetônica. Ambas são extremamente precisas. Para ele, não há como tocar música com aproximações ou suposições. Deve-se tocar cada nota, cada tempo, cada harmonia corretamente para que aconteça uma melodia, do mesmo modo que deve ser entendida a arquitetura, ou seja, como uma disciplina na qual não se pode trabalhar com aproximações, mas somente com a exatidão: “Ambos são exatos, precisos, desenhados de certa maneira, e os desenhos, partituras musicais ou plantas arquitetônicas, podem fazer esse elo [...].” (LIBESKIND, em entrevista a rádio BBC em 2002).

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O projeto do Museu Judaico se desenvolve a partir do concurso proposto para a extensão do Museu existente, este em arquitetura neoclássica. Enquanto trabalhava no projeto, Libeskind a ele se referia como “Between the Lines” (“Entre as Linhas” – tradução nossa), um título que claramente indicava a sua intenção estética para o edifício, não se limitando a ser apenas uma metáfora. Libeskind enfatiza que “[...] todo o projeto foi elaborado entre de duas linhas principais de pensamento, organização e relacionamento. Uma delas é uma linha reta, porém dividida em muitos fragmentos; a outra é uma linha tortuosa, mas que continua indefinidamente” (LIBESKIND, 2001, p.23 – tradução nossa). Ambas as linhas – a tortuosa e a reta – trazem essa conotação ambígua entre a interpretação literal e simbólica da forma, ao mesmo tempo em que direcionam o complexo programa arquitetônico do Museu. Para enfatizar essa questão, Libeskind apresenta a proposta escrita para participar da competição sobre uma folha pautada, literalmente entre as linhas que marcam as pautas musicais, demonstrando também a importância da música para este projeto [46].

[46] Proposta para a competição, escrita sobre folha pautada. Retirado de Libeskind, 2001, p. 29.

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O conceito de linhas não se restringe a somente este projeto do arquiteto. Era algo que já estava sendo explorado por Libeskind anos antes, inicialmente em duas séries de desenhos. A primeira delas, Microgemas (1978), começou a ser desenvolvida pelo interesse do arquiteto em explorar linhas que fragmentam o espaço cartesiano, conforme destaca Peter Eisenman em Ten canonical buildings (2008). A outra série, denominada Chamber Works (1983), pode ser entendida como sua primeira iniciativa para tentar demonstrar graficamente a colaboração entre música e arquitetura. Este trabalho está dividido em duas séries de desenhos, uma vertical e outra horizontal, com 14 desenhos cada uma. Apesar de os desenhos serem idependentes entre sí, cada série pode ser interpretrada por duas formas: lidas em pares ou em progressão linear. Quando expostos de forma linear, as imagens em padrões horizontais e verticais revelam uma trajetória que se desenvolve ao longo do tempo, como se fosse uma composição musical sem final, pois o último desenho da série sempre pode levar de volta ao primeiro desenho, simbolizando a continuidade [47].

[47] Chamber Works. Disponível em: . Acesso em 18/05/2016.

Mas a ideia original para o edifício do Museu Judaico, segundo Eisenman, tem total relação com a instalação Line of Fire (1988) construída por Libeskind na Unité d`Habitation em Briey-em-Forêt, de Le Corbusier [48]. A proposta para a instalação ‘quebrou’ com o tradicional caminho simétrico entre pilotis presente no térreo do edifício, inserindo uma forma em zigue-zague que negava a existência do eixo de simetria, rompendo com as noções clássicas de continuidade. A forma estabeleceu uma série de eixos que se encontravam e se afastavam, causando uma nova compreensão do espaço pelo usuário. Eisenman entende que o conceito de linhas aparece como um dos pontos fundamentais no processo de projeto de Libeskind para o edifício do Museu Judaico, mas contexta o discurso do arquiteto de que as linhas seriam uma

[48] Fotografia de Line of Fire. Disponível em: . Acesso em 18/05/2016.

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simples representação simbólica da Estrela de Davi estilhaçada e dos eixos que ligam os centros de êxodos e da vida judaica de Berlim. Para o autor, claramente ocorre no Museu Judaico uma repetição das experimentações com a axialidade dos planos cartesianos e os percursos de Line of Fire. O Museu Judaico de Berlim em certo sentido é por si só uma repetição, um traço e um indicador da exposição Line of Fire. Na verdade, a repetição de Line of Fire sobre um eixo horizontal produz a forma idêntica do projeto de Berlim. Pode-se argumentar então que a axialidade desafiada por Line of Fire é deslocada novamente, desta vez rodada em seu contexto para produzir o projeto de Berlim. O argumento de Libeskind de que o projeto de Berlim representa ou a fragmentação da estrela Judaica, ou é indicador dos pontos em Berlim onde os judeus foram transportados para for a da cidade, tem pouca relação com o argumento e sua relação com Line of Fire. Enquanto Libeskind sempre alega que o Museu de Berlim veio das conexões dos pontos de embarque dos judeus de Berlim para os campos da morte e a intersecção desses pontos produziu a forma do museu, a correspondência formal entre o Museu Judaico e Line of Fire parece sugerir outras interpretações (EISENMAN, 2008, p. 235 – tradução nossa).

Desta maneira, temos que a forma do edifício, descrita inúmeras vezes como derivada de uma planta em zigue-zague possui, além dos significados simbólico/religioso e histórico/cultural, a intenção de organizar os espaços apesar do aparente caos presente no interior e no exterior, e é aqui que podemos começar a identificar algumas características do pensamento serial aplicadas na composição arquitetônica. Para esta análise vamos utilizar como ‘filtro’ as características estabelecidas e descritas anteriormente.



Ordenação formal

O arquiteto tem à sua disposição os vários elementos da arquitetura (como as aberturas, os volumes, os planos, as cores, etc.) e os organiza e distribui no espaço, constituindo assim a composição com tais elementos. Como visto no capítulo 2, observa-se que a organização desses elementos está presente em quase todos os tipos de obra musical e projetos de arquitetura, sendo definida de acordo com o repertório, necessidades e intenções do arquiteto. No projeto do Museu Judaico não é diferente. Aqui, a ordenação está diretamente relacionada com o conceito de linhas empregado pelo arquiteto, que tem justamente o objetivo de orientar o projeto por meio de dois eixos principais: um em linha reta, e outro em linha tortuosa [49] [50] [51].

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[49] Página anterior: Eixos. Análise da autora, 2015. [50] Croqui e planta pav. sup. Disponíveis em: e . Acesso em: 18/05/2016.

[51] Esquema de eixos retos e tortuosos, que ordenam a composição e delimitam os espaços vazios. Análise da autora, 2015.

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No plano os eixos se encontram e se distanciam, formam vazios, delimitam os espaços. Embora ao usuário não seja possível ter esta percepção devido a esses eixos não serem eixos de circulação, a leitura da planta indica a importância deles para a organização espacial. O corpo do edifício se desenvolve em forma tortuosa, ‘cortado’ em várias partes por uma reta que marca locais vazios no seu interior: “simplesmente, o museu é um zigue-zague com um eixo estrutural, que é o vazio que atravessa o Museu Judaico” (EL CROQUIS, p. 45).



A criação e pré-organização de formas artificiais, estabelecendo séries de elementos;

Neste projeto a todo o momento nos deparamos com o que

poderiam

ser

formas

desconexas,

dispostas

aleatoriamente pela fachada do edifício. Não obstante, basta olhar por alguns segundos para elas que começaremos a perceber uma sintonia, uma identidade visual que indica a pré-ordenação de séries variadas, que a todo o momento remetem em suas formas ao arranjo de linhas retas e tortuosas [52]. O conceito de linhas permeia todo o projeto e serviu de base para a criação de um alfabeto visual de formas arquitetônicas [53] estabelecidas por Libeskind por meio de sete séries de desenhos, cada qual utilizada para representar o seguinte elemento no projeto: o subsolo; os planos no interior; o terreno; os vazios; as linhas; as aberturas das janelas e as combinações diversas37. O arquiteto utiliza os desenhos como código ou elementos de linguagem, mas não há como confirmar se o alfabeto com as séries foi criado ao longo do processo de projeto, servindo como um guia para a composição arquitetônica, ou se o mesmo foi desenvolvido no processo e ajustado após a finalização do projeto, com o objetivo de justificar por meio de diagramas as escolhas projetuais.

37

Tradução nossa para: underground; internal; site; void; linear; window; combination.

[52] Desenho esquemático das plantas com as fachadas planificadas. Disponíveis em: . Acesso em: 18/05/2016.

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[53] Alfabeto criado por Libeskind. Disponível em: < archilibs.files.wordpress.com>. Acesso em: 18/05/2016.

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A combinação e/ou integração entre repetições e partes individuais;

No projeto do Museu Judaico os elementos foram distribuídos em arranjos quase sempre variados, porém fica clara a intenção do arquiteto em organizá-los para compor as combinações e integrações das séries que constituem a arquitetura. Para tal, Libeskind utiliza a repetição do conceito de linhas, explorado no projeto de vários modos diferentes, ao mesmo tempo em que busca destacar no edifício suas partes individuais, que quando unidas formam um todo coerente.



A utilização da série em todas as suas possibilidades;

O alfabeto de séries estabelecido pelo arquiteto possui uma determinada gama de possibilidades (para cada uma das 7 séries, foram criados 10 arranjos de desenho diferentes). No entanto, ao contrário de uma composição musical serialista, na qual o compositor procura esgotar todas as possibilidades possíveis da série, aqui não é possível afirmar que Libeskind tenha explorado as combinações de desenhos de todas as maneiras cabíveis, mas sim que ele as utilizou da maneira que mais lhe pareceram favoráveis ao projeto.



O emprego de relações de identidade e diferença;

No projeto do Museu Judaico de Berlim as relações de identidade e diferença se destacam das seguintes formas: Por repetição: Salvo algumas exceções, quase não há a repetição das partes das séries, o que torna os elementos formais únicos. Mas Libeskind explora uma repetição conceitual para trabalhar com a questão da identidade, como no caso do recorrente uso das linhas retas e tortuosas e também com vazio que se repete ao longo do eixo central do edifício. Por variação: A variação ocorre com bastante frequência no projeto, com destaque para as aberturas das janelas na fachada que aparecem de maneira arbitrária e aleatória. Apesar de diferentes as aberturas mantém uma identidade formal. A variação pode ser identificada também nos planos e circulações, já que não há a possibilidade de movimentos contínuos pelos espaços internos, onde a todo o momento a experiência do plano é interrompida por vazios, escadas e rampas.

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Por contraste: Conceito que também é muito recorrente no projeto, Libeskind explora o contraste de várias maneiras: na relação formal do novo museu com o museu existente; nas aberturas das janelas na fachada; e no jogo de luz e sombra formado pelas aberturas, que não possuem relação com o interior, não revelando claramente a função. Por simetria: Libeskind emprega eixos ao projeto, mas não há simetria em planta ou em elevação.



Mediação estrutural entre quantidades, qualidades, tipos e classes de elementos diferentes;

Este ponto diz respeito a como o arquiteto trabalha com os elementos que têm disponíveis. Apesar de uma aparente desordem a primeira vista, o resultado final é uma obra coerente na medida em que pôde ser edificada a partir de soluções projetuais concretas, muitas delas desenvolvidas especialmente para este projeto [54] [55].

[54] Jewish Museum: elevações. Sem escala. Disponível em: . Acesso em 18/05/2016.

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[55] Jewish Museum: Plantas do subsolo e térreo. Sem escala. Disponível em: . Acesso em 18/05/2016.



A busca por inovação e completude;

Além de uma forma inusitada para o edifício, Libeskind propõe a inovação neste projeto na medida

em

que

direciona

seus

esforços

para

estabelecer

relações

coesas

entre

forma/razão/história/simbologia. Ao mesmo tempo em que lida com os dilemas para resolver os detalhes construtivos de um sistema de aberturas que até então nunca fora proposto, justifica os meios com conceitos que trazem identidade ao projeto, diretamente relacionados com as aflições e motivações do povo judaico. As analogias funcionam como aglutinantes para congregar história e referências. Se houve completude? Isso na verdade caberia ao arquiteto responder, mas

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podemos considerar que este projeto representa algo de importante para nossa época, não por acaso sendo classificado por Peter Eisenman como um dos 10 edifícios canônicos. Com levantamento para a análise deste projeto não foi possível encontrar relatos de Daniel Libeskind comentando sobre o serialismo musical tampouco uma afirmação sua de que tenha aplicado características da composição serial em seu processo. Este exercício de análise projetual se baseou na leitura e interpretação do projeto por parte da autora, com base nos critérios estabelecidos acima destacados e não poderia se encerrar sem antes olhar para o relato do projetista, afinal, este projeto foi primeiramente selecionado, pois se enquadrou no quesito de classificação que buscava arquitetos que tivessem afirmado da presente relação entre a música com a arquitetura em sua obra. Libeskind afirma ter Schönberg como um de seus ídolos, e há época do concurso do Museu Judaico de Berlim ele estava estudando a ópera inacabada Moses und Aron38. Logo, parece que o arquiteto se viu incentivado em ‘transformar’ a ópera em lógica construtiva para a arquitetura, não diretamente, mas como um conceito: “[...] outro aspecto foi Arnold Schönberg. Eu sempre me interessei pela música de Schönberg, em particular pelo seu período em Berlim. Seu maior trabalho é uma opera chamada Moses and Aaron, que ele não pôde completar” (EL CROQUIS, p. 41 – tradução nossa). Libeskind afirma que a música de Schönberg representaria os espaços no interior do Museu, sobretudo os espaços vazios. Estes locais teriam relação direta com a passagem na ópera onde ocorre um grande silêncio dos cantores e da orquestra, e depois somente uma voz falada pode ser ouvida, a vóz de Moisés clamando pela palavra de Deus. Para Libeskind, os vazios representam muito bem o senso de distância, o silêncio profundo e o eco da conversa do homem com Deus: “Neste ponto, a música alcança o limite da expressividade, o limite da aparência. O que está além somente pode ser alcançado pelo silêncio da ordem formal vazia” (EL

similarida des

CROQUIS, p.37 – tradução nossa). JEWISH MUSEUM Daniel Libeskind . 1988/99

MOSES AND AARON Arnold Schoenberg . 1932

espaços descontínuos e percursos fragmentados

música inacabada

vazios

silêncio na música

deconstrutivismo serialismo Tabela 8 Similaridades e diferenças entre a arquitetura (Jewish Museum – Daniel Libeskind) e a peça musical (Moses and Aaron – Arnold Schoenberg).

38Ópera

composta entre 1930-1932 baseada em uma única série de notas utilizada em grande variedade (GRIFFTHS, 2011, p. 88).

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3.2.3 Improvisação e composição

[56] Gráfico com palavras relacionadas com o improviso. Disponível em: . Aesso em: 02/06/16.

Engana-se aquele que vê no improviso algo de secundário, menos importante ou de menor qualidade. Apesar de se referir a um acontecimento repentino, improviso tampouco representa algo feito às pressas e sem levar em conta todas as consequências, todos os resultados que possam por meio dele surgir. Para improvisar é preciso saber criar soluções imediatas para situações inesperadas; é preciso saber expressar uma ideia feita na própria ocasião; é preciso habilidade para, simultaneamente, produzir e interpretar. Improvisar também é compor. Para André Campos Machado, professor doutor em música pela Universidade de São Paulo que desenvolve pesquisas sobre metodologias de ensino dos instrumentos de cordas - entre elas a improvisação - essa é “uma prática que proporciona total liberdade criativa” (2013, p.132). Segundo o autor, no campo da música são possíveis dois tipos de improviso. O primeiro chamase ‘improvisação idiomática’, que ocorre dentro de um determinado gênero e estilo, como o jazz, e tem o intérprete seguindo regras e parâmetros bem definidos. O segundo tipo é a ‘improvisação não idiomática’, também conhecida por ‘improvisação livre’, na qual “não são essencialmente obrigatórias regras ou normas da teoria musical”, baseando-se nas questões sonoras e de execução instrumental. Independentemente do tipo de improviso a ser executado, Machado defende a opinião de que não é necessário conhecer completamente o assunto para que seja feita uma improvisação sobre ele, apesar do consenso geral de que, quanto maior for o domínio da técnica, melhores condições serão criadas para que ocorra o improviso, e como se sabe, atingir a excelência técnica significa anos de treinamento, estudos e investimentos (MACHADO, 2013, p.133). A improvisação quando ocorre entre dois ou mais músicos é quase uma linguagem e, para que o diálogo aconteça, eles têm que falar o mesmo idioma, ou seja, eles devem possuir habilidades próximas e seguir regras válidas para ambos, mesmo que nunca tenham se encontrado antes. Também é fundamental que se tenha percepção sonora ou ouvido apurado, bem treinado para os detalhes e nuances dos sons. O local e as questões do entorno (como o

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barulho, outras pessoas presentes no mesmo ambiente e o clima do local), segundo David P. Brown também influenciam a ocorrência do improviso. Brown é professor de arquitetura na Universidade de Illinois, em Chicago, e autor de Noise Orders: Jazz, Improvisation, and Architecture (2006), um livro que foca nas manifestações da música improvisada e especula sobre a sua repercussão para a arquitetura. O autor procura apresentar momentos temáticos nos quais arquitetos e artistas modernistas lidaram com questões que aproximaram seu trabalho com o de músicos ou grupos de jazz. Ao olhar para o passado, o autor teve o objetivo de identificar como poderiam ser implementadas estruturas e acontecimentos musicais que influenciariam e facilitariam a improvisação num contexto arquitectônico contemporâneo. O primeiro a ser citado por Browm é Piet Mondrian (1872-1944), em uma discussão para apontar a influência do estilo musical boogie-woogie no trabalho do artista [57], diretamente relacionado com implicações neoplásticas na pintura e os ideais do movimento Stijl. Mondrian teria identificado “(…) uma afinidade entre o jazz e a pintura neoplástica por meio dos efeitos similares que eles têm sobre a forma (…)” (2006, p. 21 – tradução nossa), com as formas colaborando para o surgimento de novas séries de formas.

[57] Broadway Boogie-Woogie, 1942. Piet Mondrian. Disponível em: . Acesso em: 02/06/16.

Estendido ao projeto, isso sugere uma interação entre formas. Ele pode operar como gerador de formas, e pode tornar possível identificar, selecionar, ou desenvolver outras combinações a partir das formas anteriores. A forma pode proporcionar a base para algumas leituras em particular. A forma pode se tornar o guia/organizador para a mudança. (BROWN, 2006, p. 27 – tradução nossa)

Em um segundo momento, Brown discute as relações entre sujeito e objeto por meio das características técnicas do compositor John Cage (1912-1992) e do músico de jazz Rahsaan Roland Kirk (1935-1977), propondo que “[...] alimentar o comportamento dos objetos é uma forma para que o projeto possa reconhecer as variáveis entre sujeito/objeto, e assim desenvolver manifestações de um modelo de difusão” (BROWN, 2006, p. XXIX – tradução nossa). Mies van der Rohe (1886-1969) e a Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), organização não governamental de músicos de Chicago, são os exemplos quando o autor fala sobre propriedades materiais e sobre as relações entre forma e função. Para falar sobre

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temporalidade, Brown compara Le Cobusier (1887-1965) com Louis Armstrong (1901-1971) [58], comentando que a música improvisada tem sido uma área essencial para explorar as oportunidades, que são (…) apresentadas em momentos que se constituem por sobreposições de várias e diversas temporalidades. (…) Ao oferecer consciência e jogar com as diversas temporalidades que organizam nossas vidas, a arquitetura pode proporcionar maiores oportunidades para os momentos de questionamento, inovação, e mudança. (BROWN, 2006, p. 88 – tradução nossa).

[58] Montagem da autora a partir das colocações de Brown. Disponíveis em: < pinterest.com>. Acesso em: 02/06/16.

A intenção do trabalho de Brown era demonstrar como a teoria do jazz e o ato de tocar com improviso podem oferecer novas alternativas para a arquitetura, identificando considerações projetuais que poderiam ser incorporadas na prática contemporânea de projeto. Para Brown, “nas práticas de projeto contemporâneas, nós encontramos vários esforços que remetem as questões introduzidas pelas afirmações vindas da música improvisada acerca da organização de verbos, substantivos, som e visual” (BROWN, 2006, p. XIV – tradução nossa). Toda música usa ou pode usar o recurso da improvisação de alguma maneira, mas provavelmente o jazz é o gênero que mais se identifica com essa técnica. Originado no final do século XIX entre comunidades africanas de Nova Orleans, nos Estados Unidos, o jazz é um estilo popular que nos traz uma reflexão acerca do modo de produção da cultura moderna. No jazz a estrutura e a ordem não estão presentes onde tradicionalmente se espera, uma vez que elas dependem sobre como serão entendidas as questões de acentuação e posicionamento das notas. O estilo nos oferece indicações acerca dos processos que levam à improvisação, uma

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metodologia que, para Brown, não existe fora da prática, sendo muito difícil de ser definida com precisão. De acordo com o autor, o improviso não lida com formas finais, mas com o desenvolvimento contínuo das formas, e a música improvisada nos fornece regras e vocabulário, que são ferramentas para a exploração e estímulo ao pensamento criativo (BROWN, 2006, p. 105), algo que pode ser diretamente transposto para o processo de projeto arquitetônico. No projeto de arquitetura as explorações por improviso produzem resultados variados: temos iniciativas que se baseiam em equivalências visuais, tentando representar os sons como formas geométricas; ou aquelas que desenvolvem formas generativas e processos complexos que muitas vezes transcedem as intenções do autor. A espontaneidade dos croquis são as que mais podem revelar proximidades com algumas qualidades que caracterizam o estilo jazz, como por exemplo: os ritmos sincopados, as hesitações, as repetições, as inversões, as formas de pergunta e resposta. Os diagramas também representam bem esse tipo de interação com as características do jazz, devido a sua habilidade para organizar as formas de maneira dinâmica, permitindo interações, sobreposições e intervalos. O processo de projeto como um todo não precisa ser constituído de acordo com as implicações da improvisação, mas para Brown as questões que tratam da criação de formas, das interações entre sujeito e objeto, das articulações temporais e da materialidade, são essencialmente compartilhadas com o jazz e o arquiteto poderia buscar em sua base as referências para resolvê-las. A incorporação dessas considerações, que visam facilitar as improvisações em um campo espacial dinâmico, não necessita de um projeto definido de improvisação, mas de qualquer modo ela transforma, muda, e expande a prática arquitetônica para uma ênfase na coordenação e manipulação de recursos, incluindo as produções de objetos, para facilitar o acesso aos processos. Operando com essa ênfase, o arquiteto pode assumir o papel de improvisador bem como os outros papéis envolvidos na elaboração da música improvisada, incluindo as de compositor, solista, fornecedor de suporte rítmico, e ouvinte. O arquiteto pode em diferentes conjuntos de ações – alguns de improvisação e outros de composição. A posição especial que um arquiteto pode ocupar por meio deste espéctro seria determinada pelas necessidades do projeto (BROWN, 2006, p. XVI – tradução nossa).

Como tudo que faz parte de um processo, a improvisação também está suscetível a influências de aspirações pessoais e a regras previamente estabelecidas, e não tanto ao acaso do acontecimento. O projeto final tem que atender múltiplas preocupações, e as metodologias de

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improvisação para a composição são um possível recurso para o processo de projeto. A improvisação poderia contribuir com as questões projetuais de: 

Repetição e variabilidade;



Temporalidade;



Organização espacial;



Foco na flexibilidade;



Materialidade;



Relações entre o sujeito e o objeto;



Aceitação e acomodação do circunstancial.

É claro que essas considerações não são as únicas possíveis, mas são um bom indicativo dos paralelos entre o processo de projeto e a composição musical por improviso, e puderam ser identificadas com base nas colocações de Brown e Machado. É interessante agora verificarmos como as mesmas aparecem por meio da análise do projeto de Bennett Neiman, Bebop Spaces.

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Bebop Spaces

[59] Um dos diagramas de Bebop Spaces. Retirado de Neiman, 2006.

Diferentemente dos dois casos estudados anteriormente (Stretto House e Jewish Museum), Bebop Spaces [59] não se trata de uma obra construída, mas sim de uma proposta metodológica já estabelecida e que aqui será analisada. Seu idealizador é o arquiteto e atualmente professor de projeto na Texas Tech University College of Architecture Bennet Neiman, que desde os anos 80 desenvolve trabalhos em torno das questões de improvisação, ordem e variação sobre um tema. Muitos dos trabalhos desenvolvidos por Neiman aconteceram no âmbito acadêmico [60]. Jazz Studios é o nome de seu atelier de projeto, ministrado anualmente nas universidades na qual lecionou, e que tinha o objetivo principal de estudar as potencialidades do jazz e da arquitetura como um início para o processo de projeto, despertando nos alunos o interesse para a leitura dos paralelos existentes nas questões abstratas e literais que permeiam a arquitetura. Nos ateliers de projeto os alunos deveriam seguir uma série de exercícios, que funcionariam como metas ou veículos para guiá-los ao longo do processo de composição arquitetônica. O termo veículo foi proposto pela primeira vez no jazz pelo trompetista Dizzy Gillespie como uma metáfora para a sintonia, descrevendo o uso da melodia pelo improvisador como sendo equivalente a uma máquina que ele pilota ao longo de sua improvisação. Os veículos utilizados nos estúdios [de jazz] são uma sequencia de exercícios estruturados que revelam estratégias projetuais subjacentes. Um vocabulário formal de elementos arquitetônicos é fornecido. As ideias pertencentes a improvisação de jazz são transpostas para os princípios da arquitetura de: sequencia, ritmo, interação, contraponto, progressão, tensão de liberação, tema e variação, ascendente e descendente, contração e dilatação da escala, etc. O atelier começa em duas dimensões e avança para as explorações em três dimensões, o que eventualmente direciona a

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uma visão de construção e auto-referência contextual. (NEIMAN, 2006, p.39 – tradução nossa).

[60] Estudo das partes de um jazz, uma das atividades propostas por Neiman para os alunos. Retirado de Neiman, 2006.

O atelier comparava o ato de fazer a arquitetura ao de um discurso livre, no qual a execução precede a concepção. No entanto, os Jazz Studios nem sempre atingiram os resultados esperados por Neiman, que lamentou o fato de muitos dos alunos não se engajarem o suficiente ou não entenderem e por isso não quererem participar da proposta, apesar dele procurar deixar o mais claro possível aos estudantes que a intenção do atelier não era que se aprendesse jazz, mas que eles descobrissem que existe a possibilidade de estudar conceitos análogos vindos de outras disciplinas criativas – no caso, a música – para serem aplicados na arquitetura. Para que pudesse solucionar ou pelo menos chegar mais próximo de atingir todos os seus objetivos em relação a investigação sobre as técnicas de improviso para a composição, Neiman resolveu que antes de envolver novamente seus alunos, deveria sozinho desenvolver uma

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metodologia completa, diretamente relacionada com procedimentos presentes na composição musical, e aplicá-la do início ao fim em um exercício projetual. E esta metodologia para a concepção arquitetônica foi baseada no estilo musical de Jazz, justamente por que o autor considera que o estilo possa ser uma ferramenta projetual ideal para a arquitetura, uma vez que ele é altamente estruturado e ordenado em seu núcleo, ao mesmo tempo permite espaço para a improvisação e a criatividade. Foi assim que começou Bebop Spaces: uma composição arquitetônica a partir de processos de improvisações gráficas. Como referência direta, Neiman escolhe a performance da música Leap Frog, dos músicos Charlie Parker e Dizzy Gillespie. Enquanto eu estava ouvindo vários takes de Leap Frog, ouvi o espaço tridimensional de movimentos impenetráveis. A música possui uma série de camadas de improvisação. As partes individuais foram mergulhadas e projetadas em três dimensões. Eu vi minhas duas composições dimensionais sendo recompostas em três dimensões. Recintos primários e secundários justapostos em sutilezas. Eu vi meu esquema na música. Eu vi geometrias simultâneas e complexas. Eu vi as arquitetônicas da música. A montagem da estrutura musical tem referência em fontes fora da música. Existem representações volumétricas na música. (NEIMAN, 2006, p. 40 – tradução nossa).

Uma frase de Gillespie é empregada para justificar esta proposta metodológica: “Primeiro você aprende seu instrumento. Depois você aprende música. Então você se esquece dos dois e apenas toca” (GILLESPIE apud NEIMAN, 2006 – tradução nossa). A partir daí temos a certeza de que em Bebop Spaces a composição no mínimo não acontecerá segundo princípios tradicionais de organização formal, pois ideias pertencentes a improvisação do jazz - como continuidade, ritmo, repetição, variação, tensão, tema e escala - são transportadas para questões formais arquitetônicas, em um processo de atribuição, ajuste e seleção. O bebop é o símbolo do jazz moderno. Um estilo que se desenvolveu nos anos 1940, caracterizado por seu andamento muito rápido, técnicas e harmonias complexas que dão ênfase aos solos dos instrumentos, além de músicos virtuosos. Quando gravado, os músicos costumavam repetir os trechos várias vezes antes de decidir qual execução era a mais adequada para a gravação final, algo que também fez parte do processo de gravação de Leap Frog: “Durante a gravação, Parker e Gillespie repetiram muitas vezes os trechos de Leap Frog seguindo sua estrutura musical pré-determinada, mas improvisando algo novo a cada vez”, como aponta Cole Wycoff na tese What is the Generative Role for Music in Architecture? (WYCOFF, 2008, p. 21 – tradução da autora). De maneira similar, a metodologia para Bebop Spaces foi delimitada, devendo começar com uma estrutura pré-determinada que seria preenchida várias vezes de maneira aleatória e variada.

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Essa estrutura seria constituída por eixos e malhas regulares nas quais o arquiteto aplica hachuras e sombreamentos entre seus espaços para criar uma composição arquitetônica. Depois, com a ajuda do computador o arquiteto pôde repetir essa atitude, mas cada vez de maneira diferente, mais rápida e desordenada, com o objetivo de ‘libertar a mente’ para a tomada de decisões. Para Neiman (2006) esse tipo de atitude faz com que o arquiteto esteja sempre criando, e não preso as soluções já conhecidas. Cada croqui, cada diagrama, cada estudo formal deveria ser guardado e avaliado como um ‘potencial candidato’ para o projeto final, porém Neiman deixa claro que o produto deste trabalho é todo o processo e não uma única forma compositiva. De acordo com as colocações do autor e com base na análise do projeto, vemos que a metodologia ocorre em quatro etapas: Etapa 1: O trabalho começa com a captura de fotos e vídeos de um edifício qualquer em estágio de construção. Essas imagens são primeiramente separadas e depois manipuladas, recortadas, combinadas de maneria repetida e variada e completadas com desenhos, resultando em uma foto-colagem [61]. Esta etapa ocorre no campo digital e representa a primeira parte do improviso, que começa de maneira orientada e leve, a partir de elementos existentes e que no final ainda podem ser identificados.

[61] Foto-colagem obtida na etapa 1. Retirado de Newman, 2006, p. 6.

Etapa 2: A foto-colagem resultante da primeira etapa é lida como um diagrama [62]. Os elementos mais importantes são identificados e a eles é dado maior destaque por meio do traçado de vetores e extenção de linhas que formam eixos visuais. Os eixos passam a delimitar o contorno de formas redondas, quadradas, retangulares, angulares, que podem ser preenchidas com cores. Neimam utiliza as cores branco e preto

para

indicar,

respectivamente,

os

elementos

volumétricos vazios ou sólidos, e as cores cinza, vermelho, amarelo e azul para indicar elementos planos, iniciando uma leitura tridimensional do diagrama. A improvisão segue com a criação de novas formas a partir das já existentes [63] [64] [65].

[62] Vetores traçados sobre a fotocolagem, destacando os elementos mais importantes na imagem. Retirado de Newman, 2006, p. 6.

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[63] Diagrama com eixos principais traçados. Retirado de Newman, 2006, p. 7. [64] Diagrama com alguns planos em destaque. Retirado de Newman, 2006, p. 9. [65] Diagrama de formas resultantes, com cores estabelecidas pelo arquiteto. Retirado de Newman, 2006, p. 11.

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Etapa 3: Nesta etapa o arquiteto elabora dois modelos: um físico e outro eletrônico. O modelo volumétrico físico é desenvolvido a partir do diagrama [66], transpondo para o ambiente

construído

uma

escala

de

dimensão

e

profundidade. Com ele, a leitura das formas começa a ser cada vez mais arquitetônica, pois a identificação dos cheios e vazios é facilitada. O modelo eletrônico segue a mesma forma do modelo físico, e a partir dele o autor pode continuar a exploração da organização das formas no espaço, ‘cortando’ o modelo e agrupando as partes novamente, mas em outras posições. Não há improvisação

[66] Foto do modelo volumétrico desenvolvido. Retirado de Newman, 2006.

nesta etapa, que apenas busca outros meios de expressar os resultados da etapa anterior. Etapa 4: Na última etapa o arquiteto continua a explorar a composição no ambiente em terceira dimenção, e utilisa novamente as cores para definir os planos, volumes e vazios. Por último, ele aplica distorções livres em algumas formas, para trazer maior variabilidade a organização formal. Aqui a explorações por improviso continuam de maneira livre, efetuadas no menor tempo possivel e com a maior aleatoriedade possível, mas levando em conta as ‘qualidades’ que o autor pretende atingir. Todo este processo de Bebop Spaces foi registrado por Neiman por escrito e também em vídeo gravado. Ao longo do processo temos que as colagens formais criadas inicialmente no computador em desenhos em duas dimensões são traduzidas em espaços tridimencionais, resultando na confecção de modelos volumétricos físicos e digitais. Praticamente todo o processo é cronometrado e em cada etapa vários estudos são produzidos. Este é um processo que gera inúmeras possibilidades para a composição arquitetônica, e está de acordo com o pensamento de Brown (2006, p. 38 – tradução nossa) sobre a composição resultante ser um trabalho complexo “(…) de simplicidade derivada de uma linguagem construtiva ordenada e articulada em suas partes e conexões.”, “[...] permitindo a interpretação experimental do espaço a partir de desenhos bidimensionais para desenhos tridimensionais em qualquer escala, como um detalhe, como um edifício, ou como um conjunto de construções.” Em nenhum momento vemos que o arquiteto tentou fazer uma analogia literal entre a música Leap Frog e o seu projeto. Ao invés disso, Neiman procura demonstrar que os princípios

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essenciais de manipulação formal e organização espacial da arquitetura são equivalentes às conexões e transições que existem na improvisação de um jazz. Para concluir esta análise, vamos agora identificar no projeto Bebop Spaces se a metodologia criada por Neimam viabilizou as questões projetuais definidas anteriormente por: 

Repetição e variabilidade

Repetição e variabilidade talvez sejam as palavras-chave para este projeto. Assim como o jazz utiliza destes recursos em suas melodias durante o improviso, a elaboração dos diagramas de Bebop Spaces se vale da repetição e da variação de seus elementos – como podemos ver nas imagens anteriores - e da maneira como eles são organizados espacialmente pelo arquiteto. Esse tipo de organização aparece na distribuição das formas geométricas angulares e curvilíneas, podendo ser constantemente modificado, de acordo com a vontade do autor. 

Temporalidade

O tempo é questão fundamental no processo de Neiman. As decisões compositivas têm de ser tomadas dentro de um tempo pré-estabelecido e cronometrado, este processo pode se repetir inúmeras vezes para cada etapa, embora não haja uma escolha que seja a correta, ou a mais ideal, pois todas as explorações para ele são válidas. A temporalidade faz desta uma metodologia para experimentar, descobrir, manipular, interpretar e extrair, exatamente como seria uma perfomance de jazz. Para entendê-la profundamente, Neiman efetuou diversas análises musicais [67].

[67] Mapeamento e análise da música Leap Frog. Retirado de Newman, 2006, p. 12.

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Organização espacial

Com o recurso da improvisação a organização espacial em Bebop Spaces ocorre de maneira mais livre e aleatória, porém ela é definida pelos eixos estabelecidos na etapa 2 da elaboração do projeto. Os eixos formam uma malha ortogonal que delimita as bordas e passa a conter as formas geométricas angulares e curvilíneas que surgem no processo. É Neiman quem decide rapidamente e por abstração, quais as formas que representarão elementos planos no espaço, em terceira dimensão, e quais as formas que representarão os elementos volumétricos. 

Foco na flexibilidade

Podemos considerar que o ato do improviso é um ato de flexibilidade. Cada um dos elementos, e cada um dos fatores envolvidos é ao mesmo tempo independente e dependente um do outro, assim como na música jazz que articula as camadas de improviso, interagindo e ao mesmo tempo superando uma a outra. Enquanto a apresentação musical depende da interação entre os músicos e seus instrumentos, em Bebop Spaces, o computador e os recursos digitais colaboram para a realização das ideias do arquiteto ao longo do processo de projeto. É por meio desses recursos que a composição acontece e Neiman pôde explorar as diferentes possibilidades formais, que para ele podem ser aplicadas desde o detalhe construtivo até o desenho urbano. 

[68] Montagem a partir de recortes e sobreposições dos diagramas iniciais. Retirado de Newman, 2006, p. 5.

Materialidade

Bebop Spaces não traz representações realistas, mas sim a representação por meio de diagramas e modelos volumétricos nele entendidos como formas arquitetônicas ou até mesmo como a representação de um projeto de arquitetura [68]. No caso deste projeto, os diagramas e modelos volumétricos são uma maneira pela qual o arquiteto explora a interação entre as formas, definindo cheios e vazios, planos e volumes. No entanto, Neiman não deixa clara nenhuma intenção específica em relação a materialidade da composição, colocando o foco nas

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experimentações com relação a organização formal e nas possibilidades que cada série de improviso pode resultar. 

Relações entre o sujeito e o objeto

Em uma apresentação musical de jazz, talvez mais do que em qualquer outra, temos a certeza da forte ligação entre sujeito e objeto, intérprete e seu instrumento, músico e melodia tocada, e essa interação parece ser algo que Neiman tentou reproduzir para sua metodologia compositiva. O projeto acontece por reações de causa e efeito: o arquiteto define o tempo necessário para cada etapa de trabalho, e as soluções estão diretamente vinculadas a ele; é ele quem também define as interações formais. A concepção espacial é subjetiva. 

Aceitação e acomodação do circunstancial

Ao longo dos processos de improviso muitas coisas podem acontecer, sendo elas totalmente dependentes das formas como os elementos estão interagindo em determinada circunstância. Cabe ao compositor e intérprete aceitar e acomodar cada novo aspecto para a obra final. Em Bebop Spaces é a velocidade para a tomada das decisões que faz com que o arquiteto - sem pensar muito antes de fazê-lo e sem se preocupar estritamente com questões pragmáticas – delimite e estabeleça as formas no espaço ao mesmo tempo em que trabalha com as questões de coerência formal, de sistemas flexíveis, de relacionamentos/posicionamento dos elementos, e com a articulação das sequências espaciais. Após finalisada a análise desde projeto podemos concluir que, aparentemente, o método estabelecido por Neiman é demasiado complexo e pode gerar muitas dúvidas ao longo de seu processo de execusão, justamente porque lida com os fatores circunstanciais que podem surgir junto com a pressão de trabalhar com um cronômetro ativo, sem muito tempo para reflexões. Esse exercício é válido para a arquitetura, mas devemos considerar que certas decisões projetuais devem ser tomadas com maior cuidado, principalmente se o objeto se tratar de algo que venha a

similarida des

ser construído. BEBOP SPACES Bennett Neiman . 2002

LEAP FROG Charlie Parker e Dizzy Gillespie . 1950

formas criadas no momento da ação

performance de jazz

arquitetura como experimento

improviso

estruturado por um método criado pelo autor estruturada por regras compositivas anteriores Tabela 9 Similaridades e diferenças entre a arquitetura (Bebop Spaces – Bennett Neiman) e a peça musical (Leap Frog – Parker e Gillespie).

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Considerações finais Esta pesquisa procurou refletir sobre como a música - com relação à sua prática e as questões de teoria musicais - pode ser aplicada no decorrer do processo de projeto pelo profissional arquiteto, como artifício conceitual ou ferramenta para a definição formal de elementos na arquitetura e, com base nos estudos de caso selecionados e nos autores referenciais, identificamos alguns modos pelos quais essas aproximações ocorreram concretamente. No começo da introdução foram apresentadas algumas inquietações que estavam por traz do objetivo e temática desta pesquisa que, uma vez finalizada, nos permite retomar os pensamentos iniciais para que verifiquemos se foram ou não esclarecidas. A primeira inquietação dizia respeito ao entendimento do papel da música para a arquitetura e após todas as colocações aqui descritas, vamos concordar com Martin (1994) e Kanekar (2015) e afirmar que a música pode contribuir para a arquitetura com novas - ou pelo menos ou diferentes – possibilidades, seja para a formulação de um conceito, de um elemento ou do arranjo espacial geral arquitetônico. Para responder a segunda e a terceira inquietação, vimos no decorrer da pesquisa que a aplicabilidade e a transferência das ideias e conceitos de uma disciplina para a outra pode ocorrer por diversas maneiras, como por exemplo, com as analogias entre termos em comum, pelas proporções e razões matemáticas e geométricas e, em última instância, por princípios musicais que venham a ser adaptados para o estabelecimento de formas e elementos arquitetônicos. A discussão a respeito dos tratados de Vitrúvio, Alberti, Palladio e Blondel que consta na argumentação do primeiro capítulo foi importante para a constatação de que a união entre as disciplinas é assunto antigo e bem embasado, apesar dos modos

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pelos quais ela se manifestava inicialmente serem bem diferentes dos que estão ocorrendo ou sendo propostos atualmente, com o arquiteto por vezes também interessado nas experimentações e nos significados para a arquitetura, decorrentes desta forma de pensar. Essa abordagem pôde ser percebida por meio da leitura das publicações e de artigos acadêmicos selecionados para esta pesquisa. Em âmbito internacional, as preocupações que concernem a essa temática têm obtido cada vez mais destaque, sendo foco de oficinas, disciplinas letivas, workshops, congressos e palestras. No capítulo 2, as definições apresentadas para os termos ‘composição’

e

‘elemento’

foram

fundamentais

para

a

compreensão de que também os processos pelos quais uma música é composta e um projeto de arquitetura é concebido compartilham de algumas similaridades, pois ambos dizem respeito aos atos de criar. Os produtos finais de ambas as disciplinas são constituídos por estruturas e elementos; organizados como forma e estilo. Foi na leitura dos casos selecionados que pudemos aplicar diretamente alguns conceitos construídos a partir do referencial teórico e estabelecer procedimentos de análise projetual, de acordo com os ‘modos de composição vinculados à música para a arquitetura’ observados. Os três casos indicam que houve uma preocupação real por parte do arquiteto em vincular seu projeto com uma peça musical escolhida, sendo que esta aparece no discurso do profissional para justificar certas decisões projetuais, ou como ferramenta geradora das soluções formais para o projeto. As análises podem demonstrar possíveis métodos empregados pelo arquiteto ao escolher um conceito e levá-lo até a sua completa realização, embora isso não signifique que o profissional empregue somente um único percurso para todo e qualquer outro projeto. O princípio da investigação visava descobrir se a ideia musical utilizada pelos arquitetos havia surgido antes, como conceito

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inicial; ou depois, usada para justificar determinadas escolhas projetuais tomadas previamente. Nos dois primeiros casos – Stretto House e Jewish Museum – os arquitetos vêm a música como um dos pontos conceituais do projeto, entre tantos outros que também são colocados pelos autores como importantes e isso nos faz refletir sobre o fato de que a arquitetura, para ser plenamente constituída, deve estar atenta a todos os fatores que a cercam, como as questões de implantação, conforto térmico, etc. No projeto de Bebop Spaces ocorre o oposto: a música foi utilizada desde o início como geradora formal de diagramas e modelos que, dados a sua qualidade, complexidade e interpretação por parte do arquiteto, poderiam servir como formas base para qualquer tipo de problema compositivo ou elemento a ser construído. As demais questões que cercam a arquitetura nesse caso ficam em segundo plano, pois o processo de experimentação é o principal. Por fim, respondendo a última das inquietações podemos concluir que, para empregar procedimentos musicais na arquitetura o arquiteto não necessita ser também músico, mas é desejável que este tenha algum conhecimento sobre teoria musical, para assim poder explorar ao máximo novas possibilidades de união entre as disciplinas em um projeto. Entre as contribuições que este trabalho buscou oferecer estão aquelas que buscam o reconhecimento da aplicação de questões musicais para a arquitetura como algo viável, por vezes subjetivo,

mas

que,

se

bem

embasado

pode

significar

oportunidades concretas ao arquiteto, para a constituição de conceitos, formas, estruturas ou elementos. Que este trabalho também alimente a realização de novas pesquisas a partir desta, o qual possam trazer outros argumentos para a relação arquitetura + música.

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Apêndice: Comparações entre características estilísticas arquitetônicas e musicais: um breve levantamento histórico

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No início desta pesquisa de mestrado foi elaborado um breve levantamento histórico, cujo objetivo era identificar características estilísticas arquitetônicas e musicais de determinados momentos na história e verificar a existência de algum tipo de similaridade entre elas. Este estudo não foi incluído no corpo principal do trabalho, pois se considerou que ele representa uma complementação independente às discussões apresentadas nos capítulos, podendo ser consultado em qualquer momento da leitura. No entanto, para ser preciso e acurado, um levantamento como esse englobaria uma extensa linha do tempo que pudesse abranger praticamente todos os períodos históricos conhecidos da arquitetura e da música ocidental, o qual não é o foco principal deste trabalho. Ao invés disso, optamos por destacar apenas algumas das características – talvez as principais - de cada período para a arquitetura e para a música, algo que, por meio da metodologia historiográfica, enriquece a argumentação geral do trabalho39. Com base em autores da história da música, como Grout e Palisca (2007) e Burrows (2007); e autores da história da arquitetura, como Pevsner (2015) e Wittkower (1971), são observadas que as aproximações entre as duas disciplinas ocorreram por diversas maneiras, como a já constatada relação que se dá pelas razões e proporções matemáticas, com o emprego da seção áurea e da série Fibonacci, ou simplesmente pelas simples comparações

que

podem

ser

feitas,

grosso

modo,

características dos estilos arquitetônicos e musicais.

39

Para complementar as informações ver linha do tempo na página 124.

das

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Razões e proporções na antiguidade greco-romana

[69] Parthenon, Atenas, 423 a.C. Disponível em: . Acesso em: 10/01/2015. [70] Ilustração sobre festividade grega. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2015.

Características da arquitetura Após a definição dos números irracionais pelos gregos, estabeleceu-se um tipo de relação proporcional que representaria a harmonia entre os elementos: a seção áurea. Esse pensamento que tinha como base o cânone das proporções harmônicas englobava também as questões do antropomorfismo e se refletiu para a arquitetura grega, principalmente a arquitetura religiosa dos templos, como o Parthenon. Esse sistema compositivo faz parte da denominada linguagem clássica da arquitetura, caracterizada pelas suas ordens, proporções, simetrias e relações de harmonia entre as partes para com o todo construído. Esse conjunto de características foi muito influente para os romanos, assim como para os tantos outros estilos arquitetônicos derivados do classicismo posteriormente (ROCHA JR., 2014, p. 73). Em Roma, os princípios e as ordens gregas foram aplicadas continuamente e em larga escala, não se limitando a arquitetura de espaços religiosos e aparecendo também em elementos construtivos como os arcos, as abóbadas e as cúpulas, que eram tão usuais no período [69].

Características da música Sobre as características estilísticas da música grega pouco se sabe, devido à falta de registros da época. No entanto especula-se que ela poderia ser classificada como monódica40 e

Monodia é um “estilo vocal desenvolvido no barroco na qual a intenção musical é transmitida por uma única linha melódica, acompanhada ou não”. (BURROWS, 2007, p.503). 40

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possivelmente heterofônica41, com canto a uma ou mais vozes, com ou sem acompanhamento instrumental. Ela provavelmente esteve presente na poesia e na dança, em ritos religiosos, festas, jogos, no teatro e nas demais atividades de lazer [70].

Similaridades e diferenças Este levantamento iniciou-se pela Antiguidade Clássica. Ter certos conceitos definidos no período como ponto de partida para a pesquisa se deve ao fato de que foi nessa época que ocorreu o estabelecimento de princípios considerados importantes tanto para a arquitetura quanto para a música ocidental. Um desses princípios - provavelmente o mais relevante para este trabalho - é sem dúvida baseado nos sistemas de razões e proporções que teriam sido desenvolvidos pelos pitagóricos. Para eles, os números naturais foram considerados o início de todas as coisas e a música seria vista como parte da existência de uma harmonia universal que era a representação da ordem divina, em um raciocínio matemático que ajudaria a compreender os mistérios da humanidade nos mais diversos campos do conhecimento. Entende-se também que foi Pitágoras quem desenvolveu os princípios da harmonia musical, estudando as relações matemáticas que existem nos sons e estabelecendo razões numéricas que influenciaram arquitetos e teóricos ao logo de séculos. Essas razões referem-se as proporções de 1:1, 1:2, 2:3 e 3:4, presentes nos intervalos entre dois sons e que fazem parte da harmonia universal. Foi, portanto na Grécia Antiga, que ocorreu o desenvolvimento de um raciocínio lógico-matemático que se desdobrou para as artes e também para a arquitetura.

Heterofonia é um termo definido por Platão para a “prática de dois ou mais músicos que executam simultaneamente diferentes versões de uma mesma melodia. Cada versão seria caracterizada por improvisos ou ornamentos”. (On Music Dictionary, dicionário de música on-line, disponível em . Acesso em 28/09/2015. Tradução nossa.) 41

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Arquitetura e música primitiva cristã

[71] Basílica da Natividade, 326 d.C., Belém. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2015. [72] Manuscrito com neumas sobre as palavras, 800 d.C. Disponível em: . Acesso em: 13/10/2015.

Características da arquitetura Avançando para o momento na qual Constantino reconhece o cristianismo em Roma, identifica-se a busca por locais oficiais para o culto da nova religião e os cristãos começam a adaptar os antigos edifícios romanos para seus propósitos. As basílicas romanas respondem bem às suas necessidades para as práticas religiosas, por representarem um local com a simplicidade ideal para exercer a justiça e a disciplina, que antes se referiam às leis humanas, uma vez que para os romanos, elas eram locais de reunião bastante versáteis, de júris, treinamentos militares, atividades comerciais, entre outras, podendo abrigar uma grande quantidade de pessoas. Em comparação com os templos gregos e romanos, que eram na verdade pequenos santuários que abrigavam a estátua de um Deus, o salão basilical poderia conter toda a congregação que ali se reunisse para assistir os seus cultos religiosos, como a uma missa. Logo nos primeiros séculos após Cristo são erguidas as primeiras basílicas cristãs, que no início eram construções simples compostas por uma nave central com corredores laterais e uma abside. Pouco depois seria introduzido nas basílicas o transepto e o tema simbólico da planta em forma de cruz. As basílicas poderiam ter também uma cúpula central, colunatas laterais e cobertura em estrutura de madeira. As paredes perimetrais não possuíam grandes aberturas, dada sua função estrutural. A arquitetura paleocristã buscava retratar o significado de transcendência, trabalhando com a iluminação e desvalorizando o caráter estrutural e material do edifício. O foco era no espaço interno e sua aparência exterior era a de um bloco ‘introvertido’ e ‘pesado’ [71].

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Características da música Segundo Grout e Palisca (2007), a história da música ocidental começa a partir da música da igreja cristã e sabe-se que esta seguiu influências descontextualizadas das teorias formuladas na Grécia Antiga. Entretanto, surge uma diferenciação entre a música executada nas igrejas, o “cantochão”, em oposição a música “profana”, considerada imprópria pela nova religião e que estava presente na vida militar, no teatro, nas manifestações públicas e nos rituais pagãos. Houve uma razão importante para o desaparecimento das tradições da prática musical romana no início da Idade Média: a maior parte desta música estava associada a práticas sociais que a igreja primitiva via com horror ou a rituais pagãos que julgava deverem ser eliminados. Por conseguinte, foram feitos todos os esforços não apenas para afastar da Igreja essa música, que traria tais abominações ao espírito dos fiéis, como, se possível, para apagar por completo a memória dela (GROUT; PALISCA, 2007, p. 16).

O cantochão acompanhava a liturgia cristã e assemelhava-se com a música grega em vários aspectos, entre eles pela monofonia42; pela improvisação e por sua dependência com um texto a ser interpretado, de acordo com o ritmo e métrica das palavras em latim. As melodias se limitavam a intervalos de pequena amplitude, como de segundas e terças. Dada a falta por registros escritos, acredita-se que a música durante muito tempo foi transmitida por tradição oral, embora alguns manuscritos apresentem sinalizações sobre as palavras, os neumas, que indicavam variações da melodia musical [72].

Similaridades e diferenças Em síntese, para a arquitetura e a música do início do período paleocristão há uma forte herança greco-romana, na qual prevalece a simplicidade em termos de composição e materialidade. Para a arquitetura religiosa pareceu não haver mais a necessidade de se prender aos sistemas de proporcionalidade e questões de harmonia que até então eram comumente empregados nos edifícios romanos, pois surgiram outras preocupações formais e espaciais que estavam relacionadas com a construção do espaço ideal para a transcendência espiritual. Já a música seguia a base teórica estabelecida na Antiguidade, mas ao contrário do período anterior, passaria a ser mal vista se fosse executada fora das Igrejas.

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Música escrita em uma única voz ou parte, ou melodia sem acompanhamento. (BURROWS, 2007, p.503)

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Arquitetura românica e música antiga

[73] Basílica de Santa Madalena, Vézelay, séc. XII. Disponível em: < www.talkinfrench.com >. Acesso em: 13/10/2015. [74] Manuscrito de canto composto por Hildegard von Bingen. Disponível em: . Acesso em: 13/10/2015.

Características da arquitetura O período medieval entre os séculos X e XII foi marcado na arquitetura pelo estilo românico, que segundo Nikolaus Pevsner, se iniciou devido a uma vontade de organizar e ordenar os espaços nitidamente: “O espaço torna-se organizado, planificado e agrupado, em oposição ao flutuar mágico do espaço da arte bizantina ou paleocristã” (PEVSNER, 2015, p. 46). As Igrejas passam a abrigar um maior número de altares e de capelas devido ao novo costume de cultuar santos e de realizar missas diárias, mantendo o foco no espaço interno, enquanto sua aparência exterior é de um bloco ‘introvertido’ e resistente. Surgem formas mais complexas e variadas e desenvolvem-se novas técnicas construtivas, como o arco pleno; as abóbadas de berço e de aresta; os pilares maciços e o contraforte [73]. Os telhados ainda eram feitos de madeira, mas por conta de segurança contra incêndios e também pela estética, as abóbadas eram executadas em pedra ou alvenaria. Embora não seja possível afirmar com certeza, supõe-se que grande parte das igrejas tenham sido construídas por pessoas pertencentes ao clero, ou seja, aqueles que na época possuíam algum tipo de estudo. Enquanto todas as operações de construção propriamente ditas eram sempre confiadas a um artesão, a concepção de igrejas e mosteiros, no início da Idade Média, deve-se, muitas vezes, a sacerdotes [...]. Afinal, naquele tempo quase todos os literatos, os cultos, os inteligentes pertenciam ao clero (PEVSNER, 2015, p. 49).

Características da música A música medieval entre o fim do século X até o início do Renascimento é denominada por “música antiga”. Um período na qual se observa a evolução bastante gradual para composições

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cada vez mais elaboradas [74]. Na verdade, isso já vinha ocorrendo desde a reforma litúrgica efetuada por Papa Gregório no século VI, que havia unificado todos os tipos de cantochão existentes em canto gregoriano, embora algumas regiões da Europa tivessem ainda mantido suas características originais. A maior evolução foi com a adição oficial de uma nova voz ao canto gregoriano, marcando o início da polifonia43, apesar dela já aparecer na música profana muito tempo antes. O período ficou conhecido por Ars Antiqua (arte antiga), e o estilo musical recebeu o nome de organum. Nele, a segunda voz (Vox organalis) improvisava a intervalos de quarta e quinta (conforme proporção Pitagórica de 3:4 e 2:3, respectivamente), enquanto a Vox principalis seguia com o canto gregoriano tradicional (GROUT; PALISCA, 2007, p. 96). Outro ponto importante foi a criação de um sistema de notação musical no século XI, que permitiu registrar com precisão a altura das notas de uma melodia em um manuscrito, libertando a música de seu processo de transmissão oral e deixando de se basear na improvisação sobre textos bíblicos, passa a ser composta e escrita pelos sacerdotes.

Similaridades e diferenças As comparações e analogias entre as características estilísticas musicais e arquitetônicas do período medieval são feitas com base em alguns relatos presentes em livros de história da arquitetura e de história da música, uma vez que há uma clara correspondência entre o desenvolvimento dos estilos arquitetônicos e do curso da música ocidental (MICHELUTTI, 2003, p. 3). Ao procurar por características estilísticas em comum, Michelutti (2003, p. 4) comenta que tanto a arquitetura como a música do período começaram a recorrer a formas mais complexas, que se materializaram com o uso de linhas verticais e pela demarcação do ritmo. Isso na arquitetura pode ser visto tanto no exterior como no interior das igrejas, nas colunas, janelas, arcos e contrafortes, por exemplo, e na música se revela em sua estrutura melódica, com a implementação da polifonia e do sistema de notação.

Polifonia ocorre quando duas ou mais vozes se desenvolvem preservando um caráter melódico e rítmico individualizado, em contraste à monofonia, onde só uma voz existe ou, se há outras, elas seguem a voz principal em uníssono ou à distância de oitava(s), emitindo a mesma nota. 43

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Arquitetura gótica e ars nova

[75] Catedral de Notre Dame de Paris, França. Disponível em: . Acesso em 13/10/2015. [76] Manuscrito de Alleluia Nativitas de Perotin, séc. XIV. Disponível em: . Acesso em: 13/10/2015.

Características da arquitetura Considerado uma evolução da arquitetura românica, o estilo gótico evoluiu em solo francês e apresenta uma maior verticalização espacial em relação ao estilo anterior [75]. As paredes, agora menos espessas, recebem grandes janelas com vitrais, responsáveis por definir um interior iluminado, grandioso e ao mesmo tempo delicado, decorado com estátuas de santos, cenas bíblicas e animais. Pevsner assinala que suas principais características são o arco ogival, a abóbada nervurada e o arcobotante. Esses elementos quando combinados geraram uma nova proposta estética que, além de representarem o avanço da técnica construtiva, segundo o autor, tinham o objetivo de “animar massas inertes de pedra, acelerar o movimento do espaço e reduzir a construção ao que, aparentemente seria um sistema inervado de linhas de ação” (2015, p. 82). A simetria e o ritmo continuaram marcando os espaços internos e externos da catedral gótica e a sua planta geralmente possuía forma de cruz latina, onde situavam-se a nave, os transeptos e o coro. Segundo Pevsner, as catedrais geralmente eram construídas por um novo “tipo de arquiteto”, reconhecido e valorizado por suas habilidades artísticas: o mestre-artesão (2015, p. 85). Sabe-se disso, pois em oposição ao anonimato do início da Idade Média, alguns arquitetos do período gótico passaram a registrar seus nomes no interior dos edifícios.

Características da música O período na música que corresponde com o gótico na arquitetura é também bastante inovador em termos de estrutura e estética musicais. A composição polifônica que se iniciara na França continuou a ser desenvolvida e teve a Escola de Notre-Dame como principal difusora do

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organum, influenciando regiões de toda a Europa. A partir do século XIII é desenvolvido o moteto44, sendo este uma entoação do cantochão num padrão rítmico rigoroso, sobre o qual foram introduzidas de uma a três outras linhas melódicas, cada uma com um novo texto, de modo que diferentes palavras soassem juntas [76]. Em 1322 surge a partir de um tratado musical, a Ars Nova (arte nova – tradução nossa), um novo método de notação musical que incorporava uma maior variação para as durações das notas do que o estilo anterior, além de introduzir novos símbolos e aperfeiçoar o sistema de escrita musical, o que permitiu com que os compositores pudessem ter mais controle sobre como as suas peças seriam interpretadas. Posteriormente a Ars Nova transformou-se em um novo estilo musical que se estabeleceu principalmente na França e na Itália, privilegiando a temática e os gêneros de música profana, como o madrigal45.

Similaridades e diferenças Michelutti aponta a existência de um projeto estético que teria marcado profundamente a Idade Média em todas as suas manifestações artísticas, e que se baseava no desejo de revelar a perfeição e grandeza do céu e de Deus. Na arquitetura isso se refletiu na verticalização dos edifícios religiosos, que estavam intencionalmente em contraste com a escala humana. Na música, foi com o surgimento e evolução da polifonia, em paralelo com o desenvolvimento dos sistemas de notação musical (2003, p. 6). A arquitetura da catedral gótica revela equilíbrio e complexidade entre seus elementos, como com o emprego dos contrastes entre: pesado/leve; cheio/vazio; ornamentação/simplicidade, que fazem parte da composição formal arquitetônica. Na composição musical havia também a busca pelo equilíbrio entre os elementos empregados, como aparece em Grout e Palista: “Os compositores visavam um equilíbrio frio dos elementos musicais no âmbito de uma sólida estrutura formal [...]” (2007, p. 126).

44

Derivado de ‘mot’, que significa palavra, em francês.

45

O madrigal se caracteriza por uma maior liberdade rítmica e aborda assuntos heróicos, pastoris, e até libertinos.

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O Renascimento

[77] Palladio, Villa Rotonda, Vicenza. Disponível em: . Acesso em: 10/01/2015. [78] Missa de Guillaume Dufay. Disponível em: . Acesso em: 10/01/2015.

Características da arquitetura Segundo Wittkower, a convicção de que a arquitetura é uma ciência, e de que cada parte de um edifício - tanto seu interior, como seu exterior - devem ser integradas em um mesmo sistema de razões matemáticas, pode ser entendida como o axioma básico dos arquitetos da renascença. (WITTKOWER, 1971, p. 101). Novamente, esse sistema de razões matemáticas era o mesmo difundido por Vitrúvio, que tinha as proporções do corpo humano como referência e tomava partido das ideias de harmonia levantadas por Pitágoras [77].

Características da música No campo da música se destaca a vontade em exprimir as emoções e isso se deve a redescoberta da antiga cultura greco-latina, que “avassalou a tal ponto a Europa dos séculos XV e XVI que não podia ter deixado de afetar o modo como as pessoas concebiam a música” (GROUT; PALISCA, 2007, p. 183) e, portanto, as implicações desta evolução cultural são lidas na música desse período. Temos algumas mudanças importantes, como o surgimento do madrigal, que seria uma canção profana a cappella. Neste período iniciou-se um processo gradual de evolução da composição musical, com o avanço da técnica de contraponto46, para criar maior variedade textual. Com o desenvolvimento dos

Técnica musical que combina duas ou mais melodias para serem tocadas simultaneamente. (On Music Dictionary, dicionário de música online, disponível em http://dictionary.onmusic.org/. Acesso em 14/10/2015. Tradução nossa) 46

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sistemas de notação, os manuscritos musicais além de representarem a altura da nota, passaram a marcar também o ritmo. Desenvolvem-se também novas "famílias" de instrumentos musicais, como o surgimento de alguns tipos de flauta, por exemplo.

Similaridades e diferenças Michelutti afirma ser este um período de extraordinária união entre a música e a arquitetura, pois muitos arquitetos e artistas renascentistas teriam recorrido à teoria musical como suporte compositivo. Para a autora, os elementos essenciais dessa concepção artística são os princípios de unidade e proporcionalidade, que representam o retorno para características da arquitetura da Antiguidade Clássica que, segundo os princípios da seção áurea, buscou nos sons e intervalos musicais as proporções matemáticas ideais à harmonia dos edifícios (2003, p. 7). Sobre isso Rocha Júnior comenta: [...] Para se captar as proporções implícitas de certos projetos renascentistas, seria preciso revisitar o conhecimento da harmonia musical descoberta por Pitágoras, pois a consonância audível dos intervalos musicais pitagóricos corresponderia à consonância visual do ritmo arquitetônico (2014, p. 84).

O autor afirma que provavelmente teria sido a partir dessas colocações que “surgiu a conceituação da Arquitetura como ‘música congelada’, expressão cunhada anos depois pelo romancista, dramaturgo e filósofo alemão Goethe (1749-1832)”. Os arquitetos e artistas renascentistas usaram proporções correspondentes a intervalos musicais por meio de malhas modulares, não para traduzir literalmente uma música em arquitetura, mas por causa da “beleza” que encontravam nas relações entre números inteiros. Claro que a arquitetura do Renascimento também recebera influência das técnicas construtivas desenvolvidas no período anterior, mas devido a necessidade de dar uma sólida base teórica e matemática à arquitetura, os arquitetos do século XV muitas vezes se voltaram para a teoria da música para encontrar a solução de seus problemas. De forma semelhante as proporções apareceram na composição musical do período, uma vez que alguns compositores utilizaram a seção áurea para dividir a música em partes proporcionais entre si [78], algo que só foi possível devido a notação do ritmo na partitura. Para Michelutti, é a partir daí que a comparação entre a música e a arquitetura se torna mais estreita (2003, p. 9), afinal, os elementos musicais passaram a ter uma conotação espacial, de forma e comprimento definidos.

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A era barroca

[79] Guarino Guarini, Cúpula da Capela de Santa Sindone, 1670, Turim. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2015. [80] Manuscrito de St. Matthew Passion, 1727, de J. S. Bach. Disponível em: . Acesso em: 10/10/2015.

Características da arquitetura O período barroco marca o início da quebra com as tradições advindas dos grandes tratados Renascentistas. Os arquitetos permitiram maiores liberdades formais baseadas no individualismo e originalidade, sem deixar totalmente de lado o sistema de regras da arquitetura clássica, que ainda era visto como essencial para a boa ordem e harmonia do edifício. Em termos formais, o barroco utiliza efeitos volumétricos de movimento e de contraste causados pelo dinamismo das formas, elementos e linhas, pela suntuosidade e pela emoção. Isso se reflete em planta e também nas fachadas das edificações e demonstra a intenção do arquiteto barroco em criar ilusões e efeitos cênicos, como o uso do jogo luminoso de claro-escuro, com a ilusão causada pela perspectiva e com os volumes salientes e reentrantes, côncavos e convexos. A nova linguagem decorativa reflete o ideal de liberdade espacial e propõe o fim da simetria, a verticalidade e uma antítese entre o espaço interior e o espaço exterior. A ornamentação abundante do espaço demonstra a aliança da arquitetura barroca com a pintura, a escultura e também o paisagismo. Muitos dos elementos construtivos são na verdade meramente decorativos, mas fazem parte da composição do espaço como um todo. Novamente, a arquitetura religiosa é o principal exemplo do estilo. Camilo Guarino Guarini (1624-1683) em seu tratado Architettura civile (1737) propôs um sistema misto nas quais as dimensões dos elementos arquitetônicos são determinadas por construções geométricas básicas que não precisam seguir as razões harmônicas conhecidas. Guarini dedicou-se principalmente a concepção de igrejas, como a Capela de Santa Sindone (1670), em Turim [79] e favoreceu a verticalidade do espaço religioso utilizando o ideal de

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representação do não finito nas plantas centralizadas ao invés de plantas retangulares, como era usual até o momento. Características da música O barroco foi a época da passagem da polifonia para a melodia acompanhada, que é uma organização musical onde uma única parte melódica predomina, sendo sustentada por outros instrumentos em segundo plano. A monodia permitia ao intérprete a liberdade para "embelezar e ornamentar" a linha melódica [80]. Na Itália, um grupo denominado Camerata Fiorentina busca retornar ao ideal clássico do teatro grego, com seus cantos e dramas e são os precursores da criação da ópera (música dramática interpretada), que viria a ser o grande feito do período. Ocorre o florescimento da música instrumental e dos conjuntos de câmara - que eram mantidos pelas cortes Européias – e, como consequência, ocorre uma grande popularização da música. Os instrumentos musicais principais do período foram o teclado e o violino (BURROWS, 2007, p. 78).

Similaridades e diferenças O estilo Barroco em arquitetura surge em uma época de contra-reforma religiosa, como um movimento que revisou certos valores clássicos prestigiados no Renascimento. Isso ocorreu, pois alguns teóricos tratadistas questionaram a forma compositiva até então utilizada. Muitos chegaram a abandonar os modelos de progressão numérica, para adotar parâmetros de progressão geométrica. Sendo assim, a dimensão dos elementos arquitetônicos passou a ser determinada por construções geométricas e as relações entre música e arquitetura pelo intermédio da matemática ficaram enfraquecidas. Além disso, outros tipos de intervalos entre notas começaram a ser utilizados nas composições musicais e uma gama maior de proporções viria a ser estabelecida também para a arquitetura e as outras artes, de forma que os arquitetos do barroco puderam trabalhar com novos princípios harmônicos, rompendo com o antigo sistema. Pode-se perceber que a principal característica em comum entre a arquitetura e a música do período barroco é dada pela ornamentação. Os princípios estruturais das composições musicais barrocas se tornaram muito mais complexos. Da mesma maneira, os espaços arquitetônicos são ornamentados de forma extravagante e ficam livres do rigor ortogonal, estando associados à polifonia dos hinos góticos.

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Século XIX: o clássico, o romântico e o eclético

[81] Charles Garnier, Ópera de Paris, 1861-1875. Disponível em: . Acesso em: 12/10/2015. [82] Montagem com partitura e retrato de Ludwig van Beethoven. Disponível em: . Acesso em: 12/10/2015.

Características da arquitetura O século XIX se caracteriza pela renovação da arquitetura ocidental, com a total revisão do conteúdo simbólico dos números e da geometria, e os sistemas proporcionais passam a ser utilizados somente como instrumentos técnicos. Trata-se de um pequeno período na história que viu mudanças diversas em várias áreas do conhecimento, nas instituições e também nas relações entre Estado, trabalho e capital. Essas mudanças refletem no papel do arquiteto, que começou a ter maiores responsabilidades sociais com o incremento da urbanização, cabendo ao profissional resolver os problemas de planejamento territorial e urbano, além da construção de moradias em larga escala, principalmente após a Segunda Revolução Industrial. Surgem diversos movimentos arquitetônicos revivalistas, pautados por arquitetos que desejavam olhar para a arquitetura do passado e seus cânones e, ao mesmo tempo, se valer do progresso tecnológico até então desenvolvido. O primeiro desses movimentos teria sido o Neoclássico, seguido de perto pelo Eclético, que representava a mistura entre estilos estéticos arquitetônicos do passado (clássico, medieval, renascentista, barroco, etc.) para a criação de uma nova linguagem arquitetônica. Enquanto o classicismo em arquitetura se baseou em uma padronização de elementos, o eclético trouxe a diversidade desses elementos e a possibilidade para a variedade compositiva arquitetônica. O ecletismo se desenvolveu com a École dês Beaux-Arts, a mais importante escola de arquitetura do século XIX. Ele se caracterizou pela simetria, pela riqueza decorativa, pela grandiosidade e hierarquização dos espaços internos. Com relação ás técnicas construtivas, o século XIX foi um período de grandes avanços da engenharia por conta da revolução industrial, e a arquitetura passa a carregar o caráter tecnológico e científico, além do caráter artístico [81].

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Características da música A música entre meados do século XVIII e XIX ganha novas conotações. Para isso, os compositores utilizavam de técnicas que trabalhavam com a métrica e a dinâmica musical. O período presenciou dois importantes estilos musicais no ocidente, que foram o Clássico e o Romântico e resumidamente tinham as seguintes características: 1) Período Clássico: O período coincide com a última parte do Iluminismo, e seus ideais são refletidos na música, que neste período surgiu como uma reação a complexidade do barroco e se caracteriza pela claridade, simetria e equilíbrio. A música instrumental se tornava cada vez mais popular, no entanto ocorreu o declínio do sistema de mecenato. Ocorre o desenvolvimento da forma sonata, da sinfonia e da música de câmara com o quarteto de cordas. Os concertos eram geralmente compostos para um músico solista. A orquestra sinfônica se padroniza e passa a englobar mais instrumentos. As óperas visam um maior realismo dramático (BURROWS, 2007, p. 128) [82]. 2) Período Romântico: É um período que dá importância à originalidade e no geral crítica as convenções clássicas. A música romântica é caracterizada pela maior flexibilidade das formas musicais e procura focar mais no sentimento transmitido pela música, do que na estética, diferente do que ocorrera no Classicismo. Surge aqui a música de salão e o instrumento mais popular é o piano, que passa a ser encontrado nas residências e saber tocá-lo vira uma tradição familiar (BURROWS, 2007, p. 168).

Similaridades e diferenças Período de maior separação entre as características estilísticas musicais e arquitetônicas, não sendo possível identificar muitos pontos em comum entre as disciplinas. Enquanto a música passa por dois momentos importantes com o clássico e o romântico, a arquitetura configura-se de acordo com os ideais de vários movimentos revivalistas.

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A arquitetura e os sons no século XX

[83] Trecho do Le Modulor. Disponível em:< coisasdaarquitetura.wordpress.com> Acesso em: 20/10/2015. [84] As oito séries da Suíte para piano Op. 25, de Schönberg. Disponível em: < www.entre88teclas.es>. Acesso em: 11/10/2015.

Características da arquitetura A história da arquitetura das primeiras décadas do século XX está relacionada aos processos, movimentos, ideologias e correntes intelectuais e artísticas advindas do século anterior. Embora não tenha se formado um único ideário que representasse todo o movimento moderno, foi com os modernistas que muitos dos antigos princípios de proporção foram retomados e empregados em diversos projetos. Vale ressaltar que os pioneiros do modernismo estudaram em locais que seguiam o modelo de ensino beaux-arts e que o rompimento com o antigo sistema nessas escolas aconteceu aos poucos, tanto nas artes plásticas e na música, quanto na arquitetura. Portanto, apesar da busca pela ruptura histórica declarada por alguns modernistas, muitos dos princípios de composição dos séculos anteriores sobreviveram. De modo geral, entende-se que os arquitetos do período moderno estavam interessados em buscar uma linguagem pura e racional, valorizando o aspecto funcional dos ambientes e a relação de equilíbrio entre as partes de uma obra [83].

Características da música Na música, o sistema tonal até então adotado é questionado, abrindo espaço para compositores experimentarem a atonalidade [84]. Alguns lançam um olhar cientifico nas práticas populares e folclóricas, além de procurar apoio na tecnologia. Com o mundo em constante renovação, as práticas artísticas também sofrem influências diversas. Temos a popularização do rádio pelo mundo e ocorre a busca por novas tecnologias para gravar, reproduzir e distribuir a música, que se torna cada vez mais acessível. O século XX marca o início da pluralidade e

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diversidade de estilos musicais eruditos (música aleatória, concreta, eletrônica, serial, estocástica, eletroacústica, espectral, minimalista, etc...) e populares (jazz, rock, pop, hip hop, etc...). Paralelamente ocorria o desenvolvimento de tecnologias para a música eletrônica, algo fundamental para as composições serialistas, dada a dificuldade de execução e performance de muitas peças musicais, que puderam ser compostas e executadas por meio eletrônico. Isso possibilitou o surgimento de novas ideias, sem o bloqueio das possíveis limitações de execução humanas. Também foram desenvolvidos novos símbolos para o sistema de notação, especialmente pensados para representar essas novas estruturas. Elementos gráficos foram introduzidos, muitas vezes colocados como um estímulo para a improvisação: quem executa a peça segue o caminho pré estabelecido pelo compositor, mas tem a liberdade para escolher a forma dos elementos musicais, alterando o processo musical final.

Similaridades e diferenças Um breve olhar sobre as características da arquitetura e da música do século XX indica que os princípios de composição deixam de seguir alguns dos conceitos de épocas anteriores e isso é verificado em todos os campos do conhecimento, se expandindo também para outros lugares do mundo, não só a Europa. Por outro lado, observa-se que a importância da geometria e da matemática para a arquitetura e a música é considerada e mantida.

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