Arquitetura tradicional na Sicília: identidade local e carácter de pertença à matriz mediterrânica do dammuso de Pantelleria

July 9, 2017 | Autor: Filipe González | Categoria: Vernacular Architecture, Environmental Sustainability, Sustainable Architecture
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ArquiteturA trAdicionAl nA SicíliA

identidAde locAl e cArActer de pertençA à mAtriz mediterrânicA do dAmmuSo de pAntelleriA Filipe González1, Onofrio Veca2

Universidade Lusíada de Lisboa. CITAD, Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design. [email protected] (2) Universidade Lusíada de Lisboa. [email protected] (1)

Nota Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projeto UID/AUR/04026/2013 e também ao CITAD – Centro de Investigação em Território, Arquitetura e Design.

Palavras chave Dammuso. Ilha de Pantelleria. Arquitetura vernacular. Habitação mediterrânica

1. Introdução O Dammuso da ilha de Pantelleria é um exemplo paradigmático de arquitetura espontânea mediterrânica (Scarano, 2006; Boeri & Longo 2009) que se integra perfeitamente no território mantendo o sentido de pertença à matriz mediterrânica e respeitando a relação com o lugar (Di Natale & Garofalo, 2002), o contexto histórico e o meio ambiente. As expressões agregativo-funcionais, a organização do espaço e as soluções arquitetónicas e construtivas tradicionais adotadas, representam os elementos que mais caracterizam e identificam o Dammuso e a paisagem de Pantelleria (Fig.1). Pantelleria está localizada aproximadamente no centro do mar Mediterrâneo entre o continente africano e o continente europeu, ou seja, a leste da Tunísia e a sudoeste da Sicília. A ilha é o resultado de uma intensa atividade vulcânica que deu origem, por um lado, a uma topografia e uma conformação do território articulada e heterogénea, e, por outro lado, a um sistema geológico constituído principalmente por rochas vulcânicas ácidas e, em menor percentagem, por basaltos e a pedra-pomes (D’Aietti, 2009). Em geral, a pedra vulcânica local sempre foi e, ainda hoje representa o principal material de construção. Devido à sua posição geográfica,

desde a antiguidade, Pantelleria foi objeto de contínuas conquistas e dominações por parte de vários povos, entre os quais importa salientar os Púnicos, os Romanos e os Árabes (D’Aietti, 2009; Di Natale & Garofalo, 2002). 2. O Dammuso 2.1. Origens Devido a uma estratificação de acontecimentos culturais e arquitetónicos é difícil estabelecer o período exato do aparecimento do Dammuso (D’Aietti, 2009; Maltese, 2000). Por exemplo, o termo Dammuso tem uma ligação etimológica, quer com a palavra árabe dammús (edifício abobadado) (Farina, 2003), quer também com a palavra latina domus (casa) (D’Aietti, 2009). Aliás, parece que a tradição construtiva pantesca dos muros em pedra seca e das coberturas em abóbada de volta perfeita ou abatida remonta a uma herança dos romanos (Di Natale & Garofalo, 2002). A tipologia em abóbada, expressão principal dos dammusi, já com os fenícios (Barbera, et al., 2009), com os romanos e com os bizantinos era usada, mas é com os árabes que se alcança o total domínio da técnica construtiva através da formação de mão de obra capaz de realizar abóbadas em pouco tempo e sem cimbres (Farina, 2003).

Fig. 1 – Dammuso Sacco

1st International Conference TRADITIONAL ARCHITECTURE IN THE WESTERN MEDITERRANEAN

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Fig. 2 – Lócu

Fig. 3 – Habitação em Dammuso

2.2. Evolução Entre o V e VI século d.C., o Dammuso atravessa três fases de desenvolvimento. O Dammuso mais antigo da ilha é o chamado Dammuso Scimmia. Trata-se de um edifício muito rudimentar com planta retangular, sem divisões do espaço interior e que tem um arco de entrada muito profundo e baixo (1,20m). As suas características mais importantes são: utilização do táiu (mistura de terra e água e, por vezes, também palha) para a impermeabilização da cobertura; cobertura em abóbada abatida, composta por pedras secas, já com estereotomia, pela necessidade de encaixe; grossas paredes perimetrais, construídas com sistema a casciáta, ou seja, a caixa ou saco, compostas por uma dupla parede de alvenaria de pedra seca bruta (o interstício entre estas era preenchido com fragmentos e resíduos de rocha e terra) e ainda uma terceira fila exterior que funcionava como um plinto ou soco para ulterior contenção. No total tinha três panos murários capazes de atingir uma espessura da parede entre 0,80m e 2,00m. Numa fase intermédia sucessiva continua-se a utilizar o táiu mas desaparece o soco e as paredes ficam mais esbeltas e ligeiramente inclinadas (10 – 15 %) (Minardi, 1998), funcionando como contraforte e garantindo, assim, uma maior estabilidade; aparecem também uma moldura em pedra no arco de entrada para aplicação da porta e a cobertura em abobada de berço construída através montagem dos cimbres. Numa fase mais avançada, com a utilização da cal, chega-se à versão mais clássica e autêntica do Dammuso, o chamado Dammuso Modello. As inovações mais importantes são: planta quadrada e aparecimento da célula base com divisão do espaço interior; extradorso em cúpula; intradorso em abóbada (principalmente de barrete de clérigo); impermeabilização da cobertura com cal, terra e escórias vulcânicas (tufo e lapilli). Este tipo de parede, pela sua técnica construtiva, pela sua espessura e pela materialidade, tem uma grande inércia térmica e torna-se refratária ao frio, ao calor e ao ruído, atingindo um elevado nível de isolamento termo-acústico. Nos anos 40 e 50 do século XX (Farina, 2003) as paredes do Dammuso são constituídas por uma única fila de blocos de pedra cortada e esquadrada, atingindo no máximo 0,38m de espessura. Nesta época desaparecem o sistema construtivo a casciata, a inclinação das paredes e o arco de entrada; utiliza-se uma argamassa de cal e terra como ligante; as paredes são rebocadas; reduzem-se os custos de mão de obra assim como os prazos de execução, mas também diminui a inercia térmica das paredes. Atualmente as paredes resistentes do Dammuso constroem-se também com blocos de betão, blocos de tijolo cerâmico e betão armado como viga de bordadura. A pedra é montada como revestimento e tem só função estética (D’Aietti, 2009).

as ilhas do Mediterrâneo, desde Gibraltar até Chipre (Scarano, 2006). O clima dos países do Mediterrâneo é caracterizado pela sua complexidade e pela diversidade de situações que ocorrem ao longo do ano, sobretudo em função da radiação solar, da temperatura do ar, da humidade do ar e da ventilação (Coch & Serra, 1996). O clima de Pantelleria é um clima fundamentalmente temperado, caracterizado por invernos curtos e moderados, verões longos, quentes e secos, baixa pluviosidade e quase contínua exposição aos ventos (Marguglio apud D’Aietti, 2009). Os ventos dominantes são o Mistral - frio e húmido no inverno (sopra de noroeste) - e o Siroco - quente e seco no verão (sopra de sudeste) (Farina, 2003). Pantelleria, apesar de não ter condições de mudanças extremas entre frio e quente, apresenta contudo uma amplitude térmica média anual em torno de 14ºC. A temperatura média anual é cerca de 17,4ºC, a temperatura média do mês mais quente (agosto) é cerca de 24,9ºC e a temperatura média do mês mais frio (janeiro) é cerca de 10,9ºC (Marguglio apud D’Aietti, 2009). A radiação solar é muito intensa, máxima para oeste-sudoeste. A radiação solar global média anual é > 17.000 Kj/m2 (valores médios/dia). A humidade relativa média anual vai desde 75% até 79,9% (valores médios/dia)(Farina, 2003).

3. A matriz mediterrânica 3.1. Clima O clima é, sem dúvida, o elemento unificador do Mediterrâneo, o qual envolve a área que se estende de Portugal centro-sul até à Grécia, passando por toda a faixa costeira e

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3.2. Articulação do espaço exterior O Dammuso, e em geral toda a arquitetura tradicional mediterrânica, distingue-se pelas suas expressões agregativo-funcionais, ou seja, desenvolve-se a partir de um processo de aglutinação e de crescimento por adição subsequente de volumes. Este baseia-se no critério da repetição da unidade habitacional fundamental ou célula base à qual se ligam os anexos desenvolvidos para desempenhar as diferentes atividades funcionais. A partir da célula base desenvolvem-se, portanto, as outras tipologias habitacionais (Scarano, 2006). De facto, uma das marcas de identificação dessa arquitetura são as formas geométricas simples que configuram os edifícios, em especial aquelas estereométricas, como o quadrado e a sua extensão tridimensional, o cubo (Quaroni apud Scarano, 2006). Este processo não depende de um plano de ação, de escolhas de projeto predeterminadas ou de uma intervenção programada mas é o resultado de necessidades funcionais locais, de tradições culturais e sociais e de modelos empíricos milenários adquiridos e transmitidos por gerações. O apecto estético-formal é apenas uma consequência espontânea, ou seja, é o processamento de formas arquitetónicas aptas para desenvolver específicas funções e satisfazer determinadas necessidades de particulares contextos socioeconómicos (Del Mastro, 1999). Esta atitude responde, ainda, às necessidades ambientais de carácter geográfico, climático e tecnológico. Sendo estas edificações perfeitamente integradas com o contexto natural, exploram todas as suas potencialidades, eliminam todos os tipos de desperdícios e asseguram o máximo conforto e bem-estar (Del Mastro, 1999). Em relação à função, podem-se distinguir três versões de Dammuso, da mais simples à mais complexa: tipologia unitária isolada – abrigo e armazém – ou sarduni (celula base); tipologia complexa isolada ou casa compacta – habitação sazonal – lócu (1ª expressão agregativa) (Fig. 2); tipo-

1.º Congresso Internacional ARQUITETURA TRADICIONAL NO MEDITERRÂNEO OCIDENTAL

logia complexa a estrutura múltipla – residência habitual – Dammuso de habitação (expressão agregativa complexa) (Farina, 2003; Farina apud Barbera et al., 2009; Scarano, 2006) (Fig. 3). Esta última tipologia é constituída por elementos arquitetónicos paradigmáticos que marcam a identidade da arquitetura de Pantelleria e do mediterrâneo. O Dammuso, muitas vezes, tende a fluir para fora criando “espaços filtro”, isto é, uma área de transição entre espaço interior privado e espaço exterior público. Está-se a referir a arcada ou loggia (portico), que, ainda sob forma de pérgula, constitui um dos mais relevantes espaços da arquitetura mediterrânica. Este fornece sobretudo proteção do sol, mas torna-se também um espaço agradável de permanência, de descanso, de convívio e de lazer (Farina, 2003; Scarano, 2006). Uma outra estrutura anexa ao Dammuso, que caracteriza também a casa mediterrânica, é a cisterna púnica para o armazenamento da água da chuva (Fig.4). A recolha é feita através das coberturas cupuladas e canalizada dentro das cisternas através de sarjetas (rásule) e caleiras. 3.3. Organização do espaço interior A célula base, ou standard, é constantemente repetida na configuração interna de qualquer Dammuso de habitação. A sua organização espacial é simples e essencial e é constituída pelos seguintes espaços habitacionais: Alcova (arkòva), que vem do árabe al qubba, é um espaço de pequenas dimensões que se encontra no interior do ambiente principal, chamado Camera ou kàmmira. Pode ser considerado um espaço acessório do compartimento principal, um nicho de dimensões suficientes para albergar uma cama de casal. De facto originalmente, a alcova era o quarto maior, o espaço mais íntimo e reservado. O resto da família dormia num espaço ao lado, chamado Camerino ou kammarìnu (D’Aietti, 2009). Esquematicamente a organização planimétrica recorrente de um Dammuso pode ser assim sintetizada: • Áreas privadas: alcova (arkóva); quarto (kammarìnu) • Áreas de receção: sala (kàmmara); terraço (passiatùri); arcada ou loggia (portico) • Áreas de serviços: cozinha (cuffalàru); forno (furnu); cisterna (istèrna). • Áreas exteriores para atividade agrícola: armazém (macasènu); cuba (palamèntu); secador (stinnitùri); eira (àira); moinho (mulino); horta (magnànu); jardim (jardìnu) Áreas exteriores para animais: armazém de alfaias agrícolas/estábulo (sardùni/staddra); Palheiro (fienile) (Scarano, 2006). 3.4. Soluções arquitetónicas e técnicas construtivas tradicionais O Mediterrâneo é em si mesmo um complexo sistema de relações. As fortes analogias existentes entre as técnicas construtivas e as arquiteturas tradicionais locais são possíveis graças à existência de afinidades de caráter étnico, cultural, ambiental e geográfico. É preciso não esquecer que, devido à partilha do mesmo mar e à facilidade de navegação, a bacia do mediterrâneo foi desde sempre um cruzamento de povos diferentes mas ligados, todavia, por uma história milenar caracterizada por contínuos intercâmbios culturais e comerciais. A tendência das populações rurais para a conservação do património arquitetónico herdado das antigas civilizações fenícia, grega, romana e islâmica, em torno da bacia do Mediterrâneo, permitiu a permanência e estratificação das diferentes formas arquitetónicas no tempo e no espaço (Del Mastro, 1999). Conclusões Em ultima análise, o Dammuso constitui a solução concreta das necessidades dos habitantes de Pantelleria em resposta às suas características topográficas, litológicas e climáticas. Pantelleria, não tendo sido atingida pelo processo

Fig. 4 – Cisterna púnica

de homologação da especulação imobiliária, manteve, quase na sua totalidade, a identidade local, os valores das antigas sociedades tradicionais e o espírito do lugar. Neste sentido, a paisagem de Pantelleria pode ser considerada um exemplo admirável de paisagem mediterrânica. Acresce ainda uma clara noção de que territórios insulares de tão nobre qualidade paisagística não resistem muito tempo à especulação imobiliária. Atualmente ainda existe um considerável número de dammusi em situação de uso continuado ou em processo de abandono. O culto do exotismo associado à paisagem mediterrânica, única, de Pantelleria, tal como descrito anteriormente, fez aumentar nos últimos anos a procura de edificações para a transformação em habitações sazonais e espaços de finalidade turística. Tem havido assim, por um lado, uma certa proteção ao património mas, por outro, a criação de um ambiente de exclusividade que exclui os habitantes naturais da ilha introduzindo uma outra natureza de novos habitantes. Referências bibliográficas BARBERA, G., et al. (2009). I paesaggi a terrazze in Sicilia: metodologie per l’analisi, la tutela e la valorizzazione. Palermo: Seristampa. BOERI, A., & Longo, D. (2009). Criteria for promotion of low energy buildings in Europe. The italian case. In Lazinica, A., & Calafate, C. Technology, education and development (pp. 511-527). [S.l.]: Intech. COCh, h., & Serra, R, (1996). Summer confort solutions in mediterranean areas. In Renewable energy [Em linha]. 8, 1-4 (May-August de 1996): 128-132. [Consult. 20 Jan. 2014]. Disponível em WWW:. D’AIETTI, A. (2009). Il libro dell’isola di Pantelleria. Pantelleria: Il Pettirosso. DEL MASTRO, L. (1999). L’architettura spontanea mediterranea: genesi e caratteristiche. In Ausiello, G., & Calvino, C. La tradizione costruttiva mediterranea (pp. 63-78). Napoli: Luciano Editore. Ricerche del Centro Interdipartimentale di Ricerca per lo Studio delle Tecniche Tradizionali dell’Area Mediterranea 1999, Universitá degli Studi di Napoli Federico II. DI NATALE, E., & Garofalo, M. M. (2002). Pantelleria architetture tradizionali: dai dammusi ai palazzetti. Comiso: Documenta. FARINA, A. (2003). Appunti di architettura: Pantelleria. Pantelleria: Culture Libreria Informatica Editore. MALTESE, M. (2000).La casa rurale nel mediterraneo: I dammusi di Pantelleria. Palermo: Universitá degli Studi di Palermo, Facoltá di Architettura. Tesi di Dottorato di Ricerca in Rilievo e Rappresentazione dell’Architettura e dell’Ambiente. MINARDI, M. (1998). I dammusi di Pantelleria: architettura, tecnologia e tecnica costruttiva. Palermo: Facoltá di Architettura Universitá degli Studi di Palermo. Tesi di Laurea. SCARANO, A. (2006). Identitá e differenze nell’architettura del Mediterraneo. Roma: Gangemi Editore. SERAFINO, R. (2009). L’architettura bioclimatica: un caso studio napoletano. Napoli: Universitá degli Studi di Napoli Federico II - Facoltá di Ingegneria. Tesi di Dottorato di Ricerca in Ingegneria delle Costruzioni.

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