Arquivamento implícito e arquivamento indireto do inquérito policial

June 21, 2017 | Autor: Rogério Abreu | Categoria: Direito Processual Penal, Inquérito Policial
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ARQUIVAMENTO IMPLÍCITO E ARQUIVAMENTO INDIRETO DO INQUÉRITO POLICIAL

Rogério Roberto Gonçalves de Abreu1

Segundo

significativa

parcela

da

doutrina,

haveria

pedido

de

arquivamento implícito do inquérito policial na hipótese de o representante do Ministério Público, sem requerer explicitamente o arquivamento do inquérito em relação a uma ou mais pessoas indiciadas ou fatos criminosos, praticar ato incompatível com a resolução de denunciar. É o que ocorreria nos casos em que o promotor de justiça não denuncia todos os indiciados ou fatos delitivos, silenciando em relação a um ou mais deles. De forma similar, haveria o chamado pedido de arquivamento indireto do inquérito policial nos casos em que o representante do Ministério Público, considerando competente juízo diverso daquele perante o qual haveria de oferecer a denúncia, requer ao juiz para pronunciar-se incompetente e remeter os autos ao juízo competente. O problema ocorre quando o juiz discorda do MP sobre essa incompetência: considerando-se competente, manterá os autos no juízo a que foram distribuídos. Diante dessa divergência, qual deverá ser a providência do magistrado? Nos casos em que o juiz indefere um requerimento do MP, normalmente determina a intimação da decisão e a devolução dos autos ao promotor para providências a seu cargo. O promotor pode, inclusive, recorrer da decisão. Por outro lado, se o juiz entender que nesses casos há pedido indireto de arquivamento, sua providência deveria ser, por analogia, a do art.

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Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-graduado em direito fiscal e tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Juiz federal substituto na Paraíba. Professor de direito penal do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).

2 28 do CPP (ou art. 62 da LC n. 75), com a remessa dos autos à segunda instância do MP. Antes de resolver o problema, é preciso esclarecer um ponto: não existe arquivamento implícito nem arquivamento indireto de inquérito policial. Só quem pode determinar arquivamento de inquérito é a autoridade judicial competente e, mesmo assim, em decisão escrita e fundamentada. O MP não arquiva inquérito, seja explícita ou implicitamente; ele requer o arquivamento. Desse modo, tratando-se de ato do MP, pode-se teoricamente falar em pedido implícito ou pedido indireto de arquivamento. O Ministério Público recebeu da Constituição de 1988 a prerrogativa de promover privativamente a ação penal pública. A única exceção é a ação penal privada subsidiária (art. 5º, LIX, da CF e art. 29 do CPP). Da mesma forma, para o independente exercício de suas funções, os membros do MP foram dotados de prerrogativas institucionais, como a independência funcional. Em razão dela, o membro do MP não pode ser compelido a agir contra sua consciência. Daí porque, requerendo expressamente o arquivamento de inquérito policial, não poderá ser compelido a oferecer denúncia. Como dominus litis, o representante do MP é a autoridade constitucional com atribuição para decidir sobre a promoção da ação penal. Agindo no prazo legal, pode o promotor, com liberdade e independência, resolver se oferece denúncia, se requer diligências ou mesmo se pede o arquivamento do inquérito. Divergindo do pedido de arquivamento, é tarefa do juiz remeter os autos ao procurador-geral de justiça (MP estadual) ou à Câmara de Revisão do MPF (MP federal). Havendo reiteração pelo órgão superior do MP, deve o juiz proceder ao arquivamento. A providência do art. 28 do CPP representa exemplo de função anômala do juiz no exercício da jurisdição penal. Como é dotado de independência funcional, o representante do MP não pode ser obrigado a denunciar se pediu arquivamento dos autos. Na mesma linha, se o pedido é corroborado pelo órgão superior do MP, ninguém mais poderá dar início à ação penal (a ação penal subsidiária só tem lugar em caso de inércia do MP). Se a instância

3 superior do Ministério Público discorda do promotor, deve respeitar a independência funcional dele, oferecendo pessoalmente a denúncia ou designando outro promotor para, sob delegação, oferecê-la. Daí a função anômala do juiz, de acordo com o art. 28 do CPP: fiscalizar a atividade do promotor, evitando arbitrariedades. A questão aqui é saber se a prerrogativa da independência funcional se aplica ao caso em que o promotor de justiça não requer o arquivamento dos autos, não se mantém inerte no prazo legal mas, ainda assim, não oferece denúncia contra todos os indiciados ou por todos os fatos. Como acima dito, há pelo menos duas situações em que isso ocorre com freqüência: a) o MP omite, na denúncia, indiciados ou fatos investigados sem fundamentar a omissão e sem se reservar a oportunidade de aditar a denúncia (pedido implícito de arquivamento); b) alegando a incompetência do juízo perante o qual teria de oferecer a denúncia, o MP requer ao juiz que remeta os autos do inquérito policial ao juízo competente ou que suscite o conflito de competência (pedido indireto de arquivamento). No primeiro caso, relevante parcela da doutrina sustenta que se o juiz receber a denúncia da forma como está – sem o pedido de instauração de ação penal contra todos os indiciados e sem requerimento cumulativo de diligências, desmembramento ou mesmo reserva para futura denúncia – terá arquivado implicitamente o inquérito policial com relação aos sujeitos excluídos. Essa é a doutrina de Paulo Rangel, para quem “o arquivamento implícito ocorre sempre que há inércia do promotor de justiça e do juiz, que não exerceu a fiscalização sobre o princípio da obrigatoriedade da ação penal” (RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 12. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 186). Tal raciocínio peca por não levar em conta que, por expressa disposição constitucional, toda decisão judicial deve ser fundamentada. Não se trata de simples garantia processual dos indiciados e denunciados, de modo que possa ser “flexibilizada” se em benefício deles. Trata-se de fundamento de validade e

4 legitimidade da função jurisdicional. Não pode, portanto, ser afastada em hipótese alguma, mesmo em benefício do réu. Negando a existência de arquivamento implícito com esse fundamento, diz Júlio Fabbrini Mirabete que, “com a vigência da Constituição de 1988, que determina sejam fundamentadas as decisões judiciais (art. 93, IX e X), afastase a possibilidade do reconhecimento de um arquivamento implícito, ou seja, sem requerimento do Ministério Público e sem decisão expressa e fundamentada da autoridade judiciária competente” (MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 82). Se toda decisão judicial tem que ser fundamentada e o arquivamento de inquérito policial só pode ser feito por decisão judicial, não é possível aceitar que o juiz arquive autos de inquérito quando recebe denúncia lacunosa oferecida pelo promotor de justiça. O arquivamento deve ser produto consciente de atividade cognitiva e volitiva do magistrado, cristalizada no instrumento constitucional de que dispõe: a decisão judicial necessariamente fundamentada. Nos casos em que o promotor de justiça se “esquece” de denunciar um ou mais indiciados, deve o juiz devolver os autos ao MP para que se pronuncie sobre os indiciados excluídos. Não são apenas as manifestações do poder judiciário que devem ser fundamentadas. Também as do Ministério Público dependem de expressa fundamentação. A devolução dos autos pelo juiz ao membro do MP visa a provocar essa manifestação, a partir de que poderá resolver se envia ou não os autos ao procurador-geral de justiça, aplicando o art. 28 do CPP. Nesse caso, contudo, haverá pedido expresso de arquivamento. Assim pensa Eugênio Pacelli de Oliveira, afirmando que, omitindo-se o promotor de justiça em incluir na denúncia todos os indiciados ou todos os fatos investigados no inquérito policial, “cumpre ao magistrado renovar a vista ao órgão do parquet para manifestação expressa sobre a exclusão, não se admitindo arquivamento implícito.” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de

5 processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 40). Na mesma linha, sustentando não existir, tecnicamente, pedido de arquivamento implícito, afirma Guilherme de Souza Nucci que “cabe ao representante do Ministério Público oferecer as razões suficientes para sustentar o seu pedido de arquivamento. Sem elas, devem os autos retornar ao promotor, a mando do juiz, para que haja a regularização. O mesmo procedimento deve ser adotado, quando há vários indiciados e o órgão acusatório oferece denúncia contra alguns, silenciando no tocante aos outros” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 160). Finalmente, o que acontece se também o juiz se “esquece” de determinar o retorno dos autos ao MP para se manifestar sobre os indiciados não incluídos na denúncia? A resposta: nada. Enquanto não extinta a punibilidade, o promotor de justiça continua com a prerrogativa de aditar a denúncia oferecida ou oferecer nova denúncia contra os indiciados excluídos. Da mesma forma, os legitimados à promoção da ação penal privada subsidiária (arts. 30 e 31 do CPP) poderão oferecer queixa-crime contra os excluídos no prazo decadencial do art. 38 do CPP. Cumpre agora examinar o segundo caso: o assim chamado pedido de arquivamento indireto. Eugênio Pacelli de Oliveira define arquivamento indireto como “a hipótese em que o órgão do Ministério Público, ao invés de requerer o arquivamento ou o retorno dos autos à polícia para novas diligências, ou, ainda, de não oferecer a denúncia, manifestar-se no sentido da incompetência do Juízo perante o qual oficia, recusando, por isso, atribuição para a apreciação do fato investigado” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 40). No caso de o juiz discordar dessa manifestação, não lhe sendo possível determinar ao MP oferecer a denúncia, a solução apresentada pelo autor com base em decisão do STF, fundada em parecer do então Subprocurador da

6 República Cláudio Lemos Fonteles, seria o recebimento da promoção como pedido indireto de arquivamento, motivando a aplicação do procedimento previsto no art. 28 do CPP ou art. 62 da LC n. 75/93 (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 41-2). Conclui Eugênio Pacelli dizendo que, “como conseqüência, o juiz estaria e estará subordinado à decisão da última instância do parquet, tal como ocorre em relação ao arquivamento propriamente dito, ou o arquivamento direto” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de processo penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 42). Na verdade, ao entender o promotor de justiça como incompetente o juízo perante o qual ofereceria denúncia, poderá requerer ao juiz para declinar a competência e remeter os autos ao juízo competente. Nesse momento, abrem-se ao magistrado duas opções: indeferir o pedido simplesmente (com as providências de praxe) ou aplicar o art. 28 do CPP (ou art. 62 da LC n. 75/93), remetendo os autos ao procurador-geral de justiça (ou à Câmara de Revisão). Considere-se inicialmente a segunda alternativa. Se o juiz remete os autos ao procurador-geral de justiça, este poderá ou não concordar com o promotor. Discordando do promotor (e concordando com o juiz), oferecerá a denúncia ou designará outro promotor para oferecê-la em seu lugar. Nesse caso, não haverá maiores problemas, pois a competência jurisdicional será mantida, com uniformidade de entendimento entre o MP e o poder judiciário. Mas o que acontecerá se o procurador-geral de justiça concordar com o requerimento do promotor? Se fosse o caso de promoção expressa de arquivamento, a reiteração do pedido pelo procurador-geral obrigaria o juiz a arquivar o inquérito, conforme determina o art. 28 do CPP. Esse dispositivo, contudo, limita-se à promoção explícita de arquivamento, não dispondo sobre a resolução de questões de competência jurisdicional. Apenas por analogia é que se poderia cogitar de tal aplicação.

7 Pois bem. Seguindo essa linha de pensamento, considere-se que o juiz aplique por analogia o art. 28 do CPP, remetendo os autos ao procurador-geral de justiça. Concordando com o promotor, o procurador-geral insistirá no pedido de declinação da competência. Nesse ponto, surge a questão: a reiteração do PGJ vinculará a decisão do magistrado, traduzindo verdadeira ordem para declinar a competência? Para aceitar essa tese é necessário admitir que o Ministério Público pode resolver conflito de competência entre órgãos jurisdicionais, bem como expedir ordens a magistrados fora da hipótese expressamente prevista no art. 28 do CPP. Considerando as regras constitucionais, a jurisprudência e a doutrina sobre o assunto, não parece correto pensar dessa forma. Os conflitos de competência entre juízos somente podem ser resolvidos pelos órgãos superiores do poder judiciário, conforme as disposições constitucionais pertinentes. Se os juízos em conflito são vinculados ao mesmo tribunal, este será competente. Se vinculados a tribunais diversos, será competente o STJ. Finalmente, se o conflito envolver tribunal superior, competirá ao STF resolvê-lo. Nunca ao Ministério Público, por qualquer de seus órgãos. Por outro lado, a independência e harmonia entre os órgãos que representam as funções do poder do Estado (executiva, legislativa e judiciária) compreendem uma série de restrições recíprocas, mas sempre previstas na Constituição e nas leis. Um exemplo disso é a obrigatoriedade de o juiz arquivar o inquérito policial quando o procurador-geral de justiça insistir no arquivamento requerido pelo promotor. Trata-se de regra excepcional em que o legislativo determina ao judiciário obedecer a comando emanado do Ministério Público (para alguns, órgão integrante do poder executivo). Como regra excepcional, deve ser interpretada restritivamente. Em razão disso, conclui-se que se certo juiz se considera competente para processar e julgar determinada causa, apenas um tribunal de hierarquia superior poderá afastar essa competência. Vige no Brasil o princípio da competência sobre a competência (Kompetenz-Kompetenz), segundo o qual é

8 o poder judiciário que tem a competência para resolver sobre sua própria competência. Imaginar que o MP possa resolver, em lugar do poder judiciário, um conflito positivo ou negativo de competência entre juízos é violar esse princípio e usurpar prerrogativas dos juízes e tribunais. Nesse ponto, mostra-se interessante examinar a lição de Guilherme de Souza Nucci. Inicialmente, diz o autor que “caso o juiz, após o pedido de remessa, julgue-se competente, poderá invocar o preceituado no art. 28, para que o Procurador-Geral se manifeste. Entendendo este ser o juízo competente, designará outro promotor para oferecer denúncia. Do contrário, insistirá na remessa” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 161). Até aqui, o autor parece concordar com a vinculação do juiz à promoção do PGJ com base no art. 28 do CPP. Essa idéia, contudo, é imediatamente afastada nas linhas seguintes, quando trata da hipótese de o juiz não aplicar o art. 28 do CPP, deixando de remeter os autos ao procurador-geral ou à Câmara de Revisão. Afirma Guilherme Nucci que “caso, ainda assim, o magistrado recuse-se a fazê-lo, cabe ao Ministério Público providenciar as cópias necessárias para provocar o juízo competente. Assim providenciando, haverá, certamente, a suscitação de conflito de competência se ambos os juízes se proclamem competentes para julgar o caso. Logo, a simples inércia da instituição, recusando-se a denunciar, mas sem tomar outra providência não deve ser aceita como arquivamento implícito” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 161). Ao fim e ao cabo, portanto, a discordância se traduzirá em autêntico conflito de competência a ser resolvido pelas instâncias superiores do próprio poder judiciário, não se vinculando o julgador a uma manifestação do procurador-geral de justiça (ou da Câmara de Revisão) em matéria de competência jurisdicional.

9 Respondendo-se, finalmente, ao questionamento proposto, pode-se afirmar que manifestação alguma do Ministério Público, ainda que emanada de sua autoridade máxima, poderá vincular a decisão de juízes e tribunais sobre sua própria competência. Daí porque se revela inadmissível aplicar por analogia, a essas hipóteses, o art. 28 do CPP ou o art. 62 da Lei Complementar n. 75/93. A solução deverá ser a primeira alternativa apontada. Recebendo os autos com requerimento do Ministério Público para declinar sua competência, se discordar, deverá o juiz simplesmente indeferir o pedido e remeter os autos novamente ao MP para proceder como entender de direito. Caberá ao promotor de justiça recorrer da decisão do juiz. Se, não recorrendo da decisão, insistir o MP em não oferecer denúncia e não houver queixa-crime subsidiária, só restará ao juiz oficiar aos órgãos de correição interna do Ministério Público para as providências cabíveis. Em nenhum dos casos examinados haverá arquivamento implícito ou arquivamento indireto de inquérito policial pelo poder judiciário, nem tampouco pedido implícito ou indireto de arquivamento pelo Ministério Público. A necessidade de fundamentação das decisões judiciais e das promoções ministeriais impede a caracterização dessas figuras que, por esse motivo, não obstante respeitáveis entendimentos em contrário, não existem no direito brasileiro.

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