ARQUIVO UNIVERSITÁRIO UM ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA E DO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL ARQUIVÍSTICO - Pags. 739 a 745

May 30, 2017 | Autor: Elisangela Fantinel | Categoria: Memoria, Patrimonio, ISAD (g), Ica-Atom, Arquivos Universitários
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Descrição do Produto

Anais Comunicações do 13.º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural Tania Mariza Kuchenbecker Rösing Miguel Rettenmaier (Org.)

Anais Comunicações do 13.º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing Miguel Rettenmaier (Org.)

Copyright© dos autores

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

José Carlos Carles de Souza Reitor

Sirlete Regina da Silva Rubia Bedin Rizzi

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Projeto gráfico e diagramação

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Produção da capa

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Este livro, no todo ou em parte, conforme determinação legal, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização expressa e por escrito do(s) autor(es). A exatidão das informações e dos conceitos e as opiniões emitidas, as imagens, as tabelas, os quadros e as figuras são de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es).

UPF Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

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Corpo funcional

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Cristina Azevedo da Silva Revisora de textos

Mara Rúbia Alves Revisora de textos

Sirlete Regina da Silva Coordenadora de design

Rubia Bedin Rizzi

A532

Anais Comunicações do 13.º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural [recurso eletrônico] / Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (orgs.). – Passo Fundo : Ed. Universidade de Passo Fundo, 2016. 12.500 Kb; PDF. Modo de acesso gratuito: . Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7515-954-5 1. Leitura. 2. Congressos e convenções – Rio Grande do Sul. 3. Patrimônio. I. Rösing, Tania Mariza Kuchenbecker, coord. II. Rettenmaier, Miguel, coord. III. Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural (13. : 2016 : Passo Fundo, RS). IV. [Anais... do] XIII Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural.

Designer gráfico

Carlos Gabriel Scheleder

CDU: 028

Auxiliar administrativo

Bibliotecária responsável Marciéli de Oliveira - CRB 10/2113

UPF EDITORA Campus I, BR 285 - Km 292,7 - Bairro São José Fone/Fax: (54) 3316-8374 CEP 99052-900 - Passo Fundo - RS - Brasil Home-page: www.upf.br/editora E-mail: [email protected]

UPF Editora afiliada à

Associação Brasileira das Editoras Universitárias

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO................................................................................................................................................ 13 PARTE 1 LEITURA, LINGUAGEM, TEXTO E DISCURSO RÁDIO ESCOLAR E A ENTREVISTA RADIOFÔNICA COMO POSSIBILIDADE PARA FORMAÇÃO DO LEITOR.............. 16 Aliete do Prado Martins Santiago Ana Paula Teixeira Porto

SENDO DIRETOR: PROCESSO CRIATIVO E UBIQUIDADE POSSÍVEL, UM ENSAIO PRÁTICO.................................... 23 Cleber Nelson Dalbosco Tania Mariza Kuchenbecker Rösing

FERRAMENTA HAGÁQUÊ NA MEDIAÇÃO DE LEITURA: UMA PROPOSTA PARA A FORMAÇÃO DE LEITOR DE LITERATURA...................................................................................................................................................... 31 Daiane Samara Wildner Ott Ana Paula Teixeira Porto

LEITORES EM CENA: DA MULTIMODALIDADE À LEITURA DE ROMANCE.............................................................. 38 Emili Coimbra de Souza Luciana Maria Crestani

A LEITURA EXPRESSIVA DE TEXTOS LITERÁRIOS EM VOZ ALTA......................................................................... 46 Flavia Susana Krug Tania Mariza Kuchenbecker Rösing

LITERATURA E MÍDIAS DIGITAIS: UM DIÁLOGO POSSÍVEL.................................................................................. 54 Izandra Alves Lilian Cláudia Xavier Cordeiro Marcelo Lima Calixto

FORMAÇÃO DE LEITORES DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE DE TRÊS PROPOSTAS DIDÁTICAS DO PORTAL DO PROFESSOR.................................................................................................................................... 60 Jéssica Casarin Luana Teixeira Porto

LEITURA UBÍQUA SOB A PERSPECTIVA DO SOCIAL READING: CONSTRUINDO UMA REDE SOCIAL DE LEITORES .....67 Joseane Amaral

RASTREANDO UMA NOTÍCIA NA INTERNET: SOBRE UMA POSSÍVEL LEITURA DE PRODUÇÕES DA MÍDIA NA CULTURA DA CONVERGÊNCIA............................................................................................................................. 74 Liége Freitas Barbosa

A LEITURA E A EDUCAÇÃO 3.0: DEMANDAS UBÍQUAS PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO..................... 81 Lucas Antônio de Carvalho Cyrino

SEM FECHAMENTO, EM TEMPO REAL: A PRODUÇÃO E A RECEPÇÃO EM BLOG JORNALÍSTICO........................... 93 Mateus Mecca Rodighero Miguel Rettenmaier

PRÁTICA DE LEITURA ASSOCIADA ÀS TECNOLOGIAS E MÍDIAS........................................................................ 100 Maura Colet Dalchiavon Silvani Lopes Lima

JORNALISMO ON-LINE NA IMPRENSA DO INTERIOR DO RS: ESTUDO DE CASO DO SITE WWW.DIARIODAMANHA.COM.......................................................................................................................... 107 Nadja Maria Hartmann

SAGAS FANTÁSTICAS E AS ADAPTAÇÕES: DIVERSAS FORMAS DE VIVENCIAR UMA HISTÓRIA ........................ 114 Pedro Afonso Barth Fabiane Verardi Burlamaque

FORMAÇÃO DE LEITORES NO PROGRAMA FEDERAL MAIS EDUCAÇÃO............................................................. 120 Sadi Zaffonato Júnior Alexandra Ferronato Beatrici

DOM CASMURRO E MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NA COMUNIDADE VIRTUAL SKOOB.................... 127 Sandra Mariza de Almeida Silva

JOGANDO COM PALAVRAS: O SINCRETISMO EM ASSASSIN’S CREED II E ASSASSIN’S CREED RENASCENÇA .......134 Vagner Ebert Miguel Rettenmaier da Silva

A LEITURA NA ESCOLA DE EDUCAÇÃO BÁSICA: POLÍTICAS DE GESTÃO DA CLASSE......................................... 141 Valdocir Antonio Esquinsani Rosimar Serena Siqueira Esquinsani

LINGUAGEM VISUAL, CULTURA E TECNOLOGIA: UM ESTUDO SOBRE APROXIMAÇÕES....................................... 147 Vinícius Nunes Rocha e Souza Underléa Miotto Bruscato

PARTE 2 LEITURA, LINGUAGEM, TEXTO E DISCURSO VEJA E RESPONDA: UM DIÁLOGO BAKHTINIANO COM CAPAS DE REVISTA....................................................... 155 Alan Asturian

O TEXTO LITERÁRIO EM DISCIPLINA DE LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL NO CURSO DE DIREITO – UMA ESTRATÉGIA DE SEDUÇÃO............................................................................................................................... 164 Ana Márcia Martins da Silva

ALTERIDADE E VIOLÊNCIA: CONTOS DE RUBEM FONSECA................................................................................ 171 André Natã Mello Botton Marinês Andrea Kunz

O CONCEITO DE INTRIGA COMO SUSTENTAÇÃO PARA O METAGÊNERO LITERÁRIO RICOEURIANO.................... 178 Bárbara Tortato

O MACHISMO NAS PROPAGANDAS DE CERVEJA DESVENDADO PELA PERSPECTIVA DO DISCURSO PUBLICITÁRIO...... 183 Bianca M. Q. Damacena

#VEMPRARUA: LINGUAGEM, PODER E JORNALISMO....................................................................................... 190 Bibiana de Paula Friderichs Maria Joana Chaise

RESSIGNIFICANDO O ETHOS: UMA ANÁLISE DA CAMPANHA INSTITUCIONAL DA VIVO “#USARBEMPEGABEM” .....198 Caroline Roveda Pilger

SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS, SOB A ÓPTICA DE LUKÁCS............................................................. 205 Christini Roman de Lima

DISCURSOS E PERCEPÇÕES URBANAS NA LITERATURA: MACHADO E LIMA .................................................... 213 Cinthia Aparecida Tragante

INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE: UMA ANÁLISE DA LINGUAGEM UTILIZADA NA CAMPANHA PUBLICITÁRIA CONTOS DE MELISSA................................................................................................................ 221 Clícia Frigo

LINGUAGEM, OBJETOS MATEMÁTICOS E EDUCAÇÃO PARA ARISTÓTELES: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES........... 230 Débora Peruchin

A CONSTITUIÇÃO DO ETHOS E DA CENOGRAFIA NAS CRÔNICAS DE PHILEAS FOGG.......................................... 236 Elisângela de Britto Palagen

FICÇÃO E REPORTAGEM EM CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA ............................................................... 243 Fábio Luis Rockenbach Márcia Helena Saldanha Barbosa

ESCOLHAS ENUNCIATIVAS NO TEXTO: “MARIA VAI COM AS OUTRAS” DE MARIANA KALIL ............................. 250 Giana Giacomolli Luciana Maria Crestani

OS SENTIDOS ARGUMENTATIVOS DE TRABALHO EM TEXTOS DE ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO E EM TEXTOS OFICIAIS............................................................................................................................................. 257 Gilmar de Assis Euzébio Vanda Aparecida Fávero Pino

PLATAFORMA EDMODO: UM RECURSO PARA A APRENDIZAGEM DE CUANDO, AUNQUE E DONDE EM ESPANHOL....... 264 Gisele Benck de Moraes

TEMPO DE ESTAR CALADO, TEMPO DE FALAR: DA PALAVRA AO ETHOS DISCURSIVO NA LITERATURA DE EDUARDO GALEANO......................................................................................................................................... 272 Iverton Gessé Ribeiro Gonçalves

IDENTIDADE E PODER NA FAMÍLIA SHAKESPEAREANA: O MASCULINO E O FEMININO EM HAMLET................. 282 Jaime Fernando dos Santos Junior

MULTIMODALIDADE E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS....................................................................................... 289 Josiane Boff Luciana Maria Crestani

DEFUNTO AUTOR E SEU MESTRE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: A RELAÇÃO DE FAVOR REPRESENTADA NO DISCURSO DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS............................................................................. 296 Kamila Vieira Ivania Campigotto Aquino Ernani Cesar de Freitas

RELAÇÃO NARRADOR E PERSONAGEM EM NARRATIVAS DO PRESENTE........................................................... 303 Laura Fontana Soares

PROCEDIMENTOS DE LEITURA DE PROPOSTAS DE REDAÇÃO DO ENEM, COM BASE NA TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS..................................................................................................................................... 309 Lauro Gomes Telisa Furlanetto Graeff

LINGUAGEM E NARRAÇÃO HISTÓRICA A PARTIR DO DIÁLOGO SOFISTA DE PLATÃO......................................... 316 Lucas Josias Marin

LINGUAGEM VERBAL E NÃO VERBAL EMPREGADA NO DISCURSO POLÍTICO: UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS UTILIZADAS PELOS CANDIDATOS DURANTE A PROPAGANDA ELEITORAL ......................................................... 321 Margarete Maria Soares Bin Tania Mariza Kuchenbecker Rösing

FOTOGRAFIA DE FAMÍLIA: MEMÓRIA E IMAGINÁRIO........................................................................................ 328 Maria Goreti Baptista Betencourt

ANÁLISE DO DISCURSO E DISCURSO DRAMÁTICO: (DES)APROXIMAÇÕES........................................................ 335 Maria Thereza Veloso

A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM EM ARISTÓTELES E SUA RELAÇÃO COM OS ASPECTOS COTIDIANOS DA SALA DE AULA........................................................................................................................................... 340 Mariana P. B. Dalsotto

LEITURA INTERSEMIÓTICA DO ROMANCE SATOLEP (2008) DE VITOR RAMIL................................................... 345 Maribel Barbosa da Cunha Miguel Rettenmaier

A LEITURA COMO ATO ENUNCIATIVO................................................................................................................ 351 Marlete Sandra Diedrich

CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO NO ROMANCE ORGULHO E PRECONCEITO................................................. 355 Mayara Corrêa Tavares Ernani César de Freitas

BONSÁI: DO LIVRO AO FILME........................................................................................................................... 362 Michele Neitzke

A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA NOS CONTOS “FELIZ ANO NOVO” E “PASSEIO NOTURNO”, DE RUBEM FONSECA....................................................................................................................................... 367 Minéia Carine Huber Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo Luana Teixeira Porto

ANÁLISE INTERSEMIÓTICA DAS OBRAS “NOT TO BE REPRODUCED”, DE RENE MAGRITTE E “THE NARRATIVE OF ARTHUR GORDON PYM”, DE EDGAR ALLAN POE......................................................................................... 374 Nanachara Carolina Sperb (IFC-Concórdia)

HUMANIZAÇÃO E EROTIZAÇÃO DO VAMPIRO NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA........................................... 379 Natane Emanuelle Rangel Francisco Fianco

SEMÂNTICA GLOBAL E OS PLANOS CONSTITUTIVOS DO DISCURSO: A VOZ DO TORCEDOR DE FUTEBOL........... 386 Neuzer Helena Munhoz Bavaresco Ernani Cesar de Freitas

UM OLHAR SOBRE O GÊNERO DIÁRIO E SEUS EFEITOS DE SENTIDO NO DIÁRIO DA DILMA............................... 394 Rafael da Silva Moura Elisane Regina Cayser Luciana Maria Crestani

ENUNCIAÇÃO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA: UMA PRIMEIRA REFLEXÃO.............................................................. 402 Rafael de Souza Timmermann

CHATEAUBRIAND, LEITOR DE CAMÕES: O POETA PORTUGUÊS NAS MÉMOIRES D’OUTRE-TOMBE..................... 408 Rafael Souza Barbosa

O CASO DO MENINO BERNARDO: ANÁLISE DE UM TEXTO À LUZ DA TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS.......... 414 Rafaelly Andressa Schallemberger Luciana Maria Crestani

O MITO DE PÃ NA PINTURA E NA LITERATURA: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA ARTÍSTICA E ARGUMENTATIVA...... 421 Roberta Macedo Ciocari

UM DIZER SALVAJE?....................................................................................................................................... 430 Roselaine de Lima Cordeiro

PICASSO E IOTTI: O SEMISSIMBOLISMO NA (RE)LEITURA DE GUERNICA ........................................................ 436 Roseméri Lorenz

A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO SOBRE VIOLÊNCIA ESCOLAR PELO OLHAR DOS GESTORES EDUCACIONAIS........ 444 Rosimar Serena Siqueira Esquinsani Valdocir Antonio Esquinsani

A POESIA COMO LINGUAGEM DO AMOR HUMANO ........................................................................................... 451 Rudião Rafael Wisniewski

O CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” NUMA MISTURA DE FICÇÃO E REALIDADE................................. 458 Valaci Euzebio

O CONTO FANTÁSTICO NA FORMAÇÃO DO JOVEM LEITOR............................................................................... 466 Vanda Aparecida Fávero Pino Gilmar de Assis Euzébio Luciana Maria Crestani

PARTE 3 MEDIAÇÃO DE LEITURA: PRÁTICAS SOCIAIS E CULTURAIS A FORMAÇÃO DE LEITORES E OS GÊNEROS TEXTUAIS: PRÁTICAS DISCURSIVAS............................................. 474 Adriane Ester Hoffmann Marinês Ulbriki Costa

INTER-RELAÇÃO ARTÍSTICA ENTRE CONTO TRADICIONAL E CONTEMPORÂNEO: UMA FORMA DE LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL....................................................................................................................................... 485 Alcione Salete Dal’Alba Pilger

MEDIAÇÃO DE LEITURA LITERÁRIA E MÍDIAS DIGITAIS.................................................................................... 493 Ana Paula Teixeira Porto

O UNIVERSO ADOLESCENTE E AS MÍDIAS DIGITAIS ......................................................................................... 500 Angela da Rocha Rolla

LETRAMENTO LITERÁRIO EM UM PROJETO DE EXTENSÃO: O CASO DA CONFRARIA LITERÁRIA DO CA-UFSC.......507 Arlyse Silva Ditter

A ABORDAGEM DOS TEXTOS LITERÁRIOS PARA ALÉM DAS PROPOSTAS DO PNLD........................................... 515 Caticiane Belusso Serafini Tania Mariza Kuchenbecker Rösing

CINEMA E LITERATURA EM AÇÃO: UM DIÁLOGO POSSÍVEL NO ESPAÇO ESCOLAR............................................ 521 Cinara Fontana Triches Karina Feltes Alves

A CARÍCIA ESSENCIAL E O CUIDADO HUMANIZADO EM SAÚDE: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA ENTRE O VERBAL E O ICÔNICO ...................................................................................................................................... 526 Cristiane Barelli Graciela René Ormezzano

OS DESAFIOS DO PROFESSOR NA PRÁTICA DOCENTE: ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA............................... 534 Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo Clei Cenira Giehl Deisi Daiane Gehrke

DA LEITURA DO MUNDO À LEITURA DO LIVRO: O PNBE NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO DE NOVOS LEITORES........541 Delcio Antônio Agliardi

SERVIÇO DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO PARA DEFICIÊNCIA MENTAL – SAEDE/DM: UMA PROPOSTA DE LEITURA POSSÍVEL A PARTIR DE UMA TEMÁTICA MAIS INTERESSANTE ........................... 547 Elis Gorett Lemos da Fonseca Claudia Daniele Spier Hoffelder

ECOS DA POESIA NO LEITOR MIRIM................................................................................................................ 555 Flávia Brocchetto Ramos Marli Cristina Tasca Marangoni

DIÁRIOS LITERÁRIOS: EXPERIÊNCIAS COM LEITURAS E ESCRITAS DE ADOLESCENTES.................................... 561 Jaqueline Thies da Cruz Koschier

LITERATURA E TEATRO: PRÁTICAS CULTURAIS EM DIÁLOGO NO CONTEXTO ESCOLAR..................................... 569 Karina Feltes Alves Cinara Fontana Triches

GÊNEROS TEXTUAIS: IMPORTÂNCIA PARA O TRABALHO LINGUÍSTICO EFICAZ................................................. 574 Laercio Fernandes dos Santos Cássio Borges Tamires Arend

BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA, SEUS SIGNIFICADOS E EFEITOS NAS INTERAÇÕES CULTURAIS DE JOVENS EM COMUNIDADES URBANAS PERIFÉRICAS NO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE/RS........................................................................................ 580 Luis Paulo Arena Alves Rejane Pivetta de Oliveira

QUANDO A LEITURA ENCONTRA A ESCRITA: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ESTABELECIDAS NA COMUNIDADE DE FICÇÃO CIENTÍFICA DA PLATAFORMA WATTPAD......................................................................................... 586 Luiza Carolina dos Santos

A IMPORTÂNCIA DAS PRÁTICAS LEITORAS PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO.......................................... 593 Maria Augusta D’Arienzo

“POR QUE AS PESSOAS NÃO LEEM?”: O PAPEL DAS MEDIAÇÕES “ESCOLA” E “FAMÍLIA” NO CONSUMO DO LIVRO POR ADOLESCENTES........................................................................................................................ 601 Marina Machiavelli Filipe Bordinhão dos Santos

EXPERIÊNCIAS DIONÍSICAS NA ARTE/EDUCAÇÃO: FOTOPOESIA ENQUANTO CUIDADO DE SI............................ 609 Michele Pedroso do Amaral

O DIREITO DEMOCRÁTICO À IGNORÂNCIA: SÃO OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS EM LÍNGUA PORTUGUESA SUFICIENTEMENTE PROMOTORES DO LETRAMENTO?................................................................ 617 Micheline Moraes Márcia C. Zimmer

AS CONTRIBUIÇÕES DOS BOLSISTAS DO PIBID NA MEDIAÇÃO DA LEITURA: UM OLHAR SOBRE A LITERATURA AFRICANA................................................................................................................................... 624 Rosangela Aparecida Marquezi Midiã Valério Maia

INCENTIVO À LEITURA NA COMUNIDADE DO IFC - MEDIAÇÃO E PRÁTICA SOCIAL DA LEITURA........................ 629 Silvia Fernanda Souza Dalla Costa Maribel Barbosa da Cunha Nauria Inês Fontana Shyrlei Benkendorf Solange Aparecida Zotti

LIVROS QUE CIRCULAM, LEITORES QUE SE APROXIMAM: O EMPRÉSTIMO INTERPESSOAL NA COMUNIDADE VIRTUAL LIVRO VIAJANTE............................................................................................................................... 634 Thaísa Antunes Gonçalves

A MEDIAÇÃO DE LEITURA NO ESPAÇO DA BIBLIOTECA ESCOLAR..................................................................... 641 Thiane de Vargas Tania Mariza Kuchenbecker Rosing

PARTE 4 PATRIMÔNIO CULTURAL: LEITURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE JANELAS: O DILEMA DE OLHAR E SER OLHADO............................................................................................... 649 Aline do Carmo

A MANTA DO SOLDADO, DE LÍDIA JORGE: MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO............................................................... 657 Ana Denise Teixeira Andrade Profª Dª Leny da Silva Gomes

ORGULHO E PRECONCEITO (1813) E OS DIÁRIOS DE LIZZIE BENNET (2012-2013): A INFLUÊNCIA DO CASAMENTO, DO DINHEIRO E DA CLASSE SOCIAL NO UNIVERSO FEMININO..................................................... 662 Bianca Deon Rossato

A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DE PESSOAS EM SITUAÇÃO CRÔNICA DE DOENÇA NA BLOGOSFERA: EDUCANDO PARA A DOENÇA............................................................................................................................ 669 Bruna Rocha Silveira

OS FRACASSADOS DA AMÉRICA: UMA VISÃO DO LOSER NAS NARRATIVAS DE RAYMOND CARVER................. 676 Carlos Böes de Oliveira

CENAS BRASILEIRAS EM O BRASIL É BOM, DE ANDRÉ SANT’ANNA: DA IRONIA AO DEBOCHE......................... 683 Claudia Maira Silva de Oliveira Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto

PATRIMÔNIO CULTURAL E ALTER EGO NAS NARRATIVAS VISUAIS DA IMIGRAÇÃO: LUGARES, OBJETOS E SEUS CRUZAMENTOS NOS MUSEUS DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ............................................................................ 688 Daniel Luciano Gevehr Aline Nandi Gabriela Dilly

HIROSHIMA E NAGASAKI: A PROBLEMÁTICA DA REPRESENTAÇÃO E A INFLUÊNCIA DA LITERATURA.............. 699 Daniela Israel Daniel Conte

O JARDIM DE INVERNO E DE VERÃO, DOS IRMÃOS GRIMM E A XILOGRAVURA: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA...... 705 Deisi Luzia Zanatta Fabiane Verardi Burlamaque

SOCIEDADE DE LEITURA HERMANN FAULHABER: A HISTÓRIA DE UMA BIBLIOTECA ........................................ 712 Denise Verbes Schmitt Vitor Biasoli

A FICÇÃO QUE SE CONFESSA: ELEMENTOS AUTOBIOGRÁFICOS EM O FILHO ETERNO, DE CRISTOVÃO TEZZA.......717 Eduarda Vieira Martinelli

PATRIMÔNIO HISTÓRICO E REGIMES DE HISTORICIDADE: PENSANDO PASSO FUNDO....................................... 726 Eduardo Roberto Jordão Knack

OS MAIAS: ALGUMAS PERSONAGENS FEMININAS........................................................................................... 733 Elisabeth Weiss

ARQUIVO UNIVERSITÁRIO UM ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA E DO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL ARQUIVÍSTICO ................................................................................................................................................ 739 Elisângela Gorete Fantinel Daniel Flores

MARGINALIDADE SOCIAL E VIOLÊNCIA NOS CONTOS “DE GADOS E HOMENS” E “JAVALIS NO QUINTAL”, DE ANA PAULA MAIA....................................................................................................................................... 746 Emanoeli Ballin Picolotto Ana Paula Teixeira Porto

LIBRETO, ÓPERA BABY E LIVRO LITERÁRIO PARA A INFÂNCIA: ASPECTOS DA POESIA INFANTIL E HUMOR NA CRIAÇÃO DE KAREN ACIOLY....................................................................................................................... 751 Fabiano Tadeu Grazioli Alexandre Leidens

PRÉDIOS HISTÓRICOS DE UM BAIRRO: SUAS VIDAS, SUAS MEMÓRIAS, SUAS IDENTIDADES........................... 759 Fátima Giuliano

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UMA LEITURA DE MUNDO DENTRO DO CONTEXTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL....... 767 Daniel Luciano Gevehr Gabriela Dilly

AS IDENTIDADES DESLIZANTES EM A VARANDA DO FRANGIPANI, DE MIA COUTO........................................... 774 Gisela Lacourt

COLÉGIO NOSSA SENHORA DE LOURDES, FARROUPILHA/RS (1922-1954): A DOCÊNCIA A PARTIR DA MEMÓRIA DA IRMÃ MAFALDA SEGANFREDO................................................................................................... 781 Gisele Belusso

NARRATIVAS E AÇÕES QUE CONSTITUEM E POSICIONAM A FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE COMO UM EVENTO CULTURAL IMPORTANTE E PECULIAR À CIDADE ................................................................................. 788 Gisele Massola

INVENTARIAÇÃO E LEITURA DE UM PATRIMÔNIO MULTIFACETADO: A ESTATUÁRIA DAS MISSÕES PARAGUAIAS NAS PESQUISAS DO LACUMA (LABORATÓRIO DE ARQUEOLOGIA E CULTURA MATERIAL DA UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO)................................................................................................................... 795 Jacqueline Ahlert

UMA PROPOSIÇÃO ANALÍTICA PARA “HOJE É DIA DE MARIA”......................................................................... 802 Jaqueline Souza Sampaio de Oliveira

ATUALIZAÇÃO DA FÁBULA EM “A REVOLUÇÃO DOS BICHOS” E “A PRIMAVERA DA PONTUAÇÃO”.................... 808 Jian Marcel Zimmermann

A FRAGILIDADE DAS PERSONAGENS FEMININAS NO CONTO JAMILA DE JULIO EMÍLIO BRAZ ......................... 815 João Paulo Massotti

TINTIM NO CONGO: A ÁFRICA DE HERGÉ E OS POVOS AUTÓCTONES NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS............... 821 Josiani Job Ribeiro Daniel Conte

“TRIUNFO DOS PELOS”: UMA REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA........................................................................................................................................... 829 Juliane Della Méa Lizandro Carlos Calegari

O ESPAÇO E A MEMÓRIA CONTRUINDO A IDENTIDADE EM OS CUS DE JUDAS.................................................. 834 Letícia Moraes Marques Dr. Daniel Conte

ACONDIÇÃO FEMININA EM BALADA DE AMOR AO VENTO DE PULINA CHIZIANE E EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO DE MIA COUTO............................................................................................................................... 840 Lilian Raquel Amorim de Quadra Ana Paula Teixeira Porto

OBRAS RARAS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL: A PRESERVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE.......................... 846 Maria Célia Azevedo Lopes Ernani Mügge

ESTÉTICA DO VISÍVEL EM OS CORUMBAS DE AMANDO FONTES...................................................................... 854 Maria Iraci Cardoso Tuzzin

A FORMAÇÃO DA PERSONAGEM LEITORA ATRAVÉS DO ENREDO EM NORTHANGER ABBEY ............................ 861 Monica Chagas da Costa

ESTATUTO DA CIDADE: PRESERVANDO PATRIMÔNIOS ..................................................................................... 867 Talissa Maldaner Janaína Rigo Santin

RESSIGNIFICAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DE ZUMBI E DO CONCEITO DE QUILOMBO NA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA........................................................................................................................................... 873 Tani Gobbi dos Reis Denise Almeida Silva

LITERATURA E MEMÓRIA: ALICERCES PARA A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DOS POVOS MISSIONEIROS.......... 878 Tanise Corrêa dos Santos Nelci Müller

GÊNERO E ESCRITA EM CLARICE LISPECTOR .................................................................................................. 885 Vinícius Linné

APRESENTAÇÃO ENTRE A TRADIÇÃO E A TECNOLOGIA, A FORMAÇÃO DE LEITORES Em 2003 acontecia em Passo Fundo, durante a 10ª Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, promovida pela Universidade de Passo Fundo e pela Prefeitura Municipal, o 2º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural. A proposta de realização do encontro em Passo Fundo, com itinerância que envolveria as Jornadas Literárias bienalmente e cidades da Europa, em anos pares, tais como Paris, Cuenca, Almería, dentre outras, partira da prof. Tania Rösing ainda em 2002, quando convidada para participar do 1º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural, realizado na Universidad de Extremadura, Badajoz, Espanha. Nesse sentido, as referências do Seminário, ao integrar Passo Fundo ao roteiro, começavam a se ampliar. Reunindo especialistas de vários países do mundo, o Seminário associava a promoção da leitura à formação cultural dos indivíduos. Isso implicava o desenvolvimento crítico dos sujeitos em meio ao recente fenômeno da globalização. Tratava-se de garantir a soberania das identidades contra as invasões da indústria do entretenimento e a sobrevivência da oralidade e da cultura popular frente aos agressivos investimentos do “fakelore”, que distorcia as tradições por força dos interesses da sociedade de consumo. Passo Fundo, contudo, contribuía com novos elementos. Em primeiro lugar, apontava para a preocupação da formação leitora e cultural das pessoas relacionada às mudanças de cenário, as quais incorporavam o advento das novas tecnologias. Assim, os Seminários que ocorriam durante a Jornada incorporaram, até 2013, as tendências dessa movimentação cultural de pensar a formação de leitores entre os polos da tradição e da inovação. De outra parte, como uma segunda contribuição das Jornadas, o evento agregou a apresentação de comunicações no programa de atividades do encontro, a partir do ano de 2005, na 11ª Jornada Nacional de Literatura. Assim, o Seminário passava a contar com a ativa participação de pesquisadores, professores e alunos de Programas de Pós-Graduação, o que dialogava com a consolidação do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, reconhecido dois anos antes, em 2003. O Seminário, assim, progredia, atualizando suas temáticas, incorporando novos estudos, da mesma forma como respondia as demais mudanças na realidade social, cultural e também econômica. Nesse percurso, crises financeiras internacionais abalaram os trabalhos, dificultaram os encontros, que mantiveram a frequência anual graças aos esforços dos organizadores, na já constituída Red Internacional de Universidades Lectoras. No ano de 2015, contudo, a forte crise econômica no Brasil, aliada à crise política no âmbito da Universidade de Passo Fundo, impediu a realização da 16ª Jornada Nacional de Literatura, interrompendo uma trajetória de 34 anos pela formação de leitores. Assim, o Seminário viu-se sob os riscos de que se quebrasse uma periodicidade e uma itinerância de mais de uma década. Graças, contudo ao apoio do Instituto Itaú Cultural e à sensibilidade de seus dirigentes, foi possível a realização do 13º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural, entre os dias 28 de setembro e 01 de outubro. As atividades envolveram os Programas de Pós-Graduação em Letras, História e Educação da UPF, na disciplina de Seminários Especiais, ministradas por Roger Chartier e Anne-Marie Chartier. Além disso, com a temática “Literatura e Identidade na Era da Mobilidade”, o Seminário permitiu o encontro do público com autoridades como Regina Zilberman (UFRGS) e Edvaldo Souza Couto (UFBA), discutindo o tema “Literatura, redes e sistemas”, e Lúcia Santaella (PUC-SP) e Francisco Marinho (UFMG), tratando sobre “Leituras móveis, leitores ubíquos”, além de Roger Chartier e Anne-Marie Chartier em uma conferência a duas vozes sobre o

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Anais Comunicações d  o 13.º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural

tema “Novas tecnologias – ler e escrever, aprender e apagar”. As comunicações, por sua vez, trataram sobre os temas seguintes: 1) Formação de leitores e mídias digitais; 2) Leitura, linguagem, texto e discurso; 3) Mediação de leitura: práticas sociais e culturais; 4) Patrimônio cultural: leitura, memória e identidade.   Aqui estão publicados 19 artigos escritos e apresentados a partir da temática Formação do leitor e mídias digitais, num universo de 128 trabalhos apresentados nas sessões de comunicação, publicados em outros três volumes, como registro não apenas de uma atividade realizada em 2015, frente a inúmeras dificuldades, mas como forma de garantir que permaneça o resultado de uma trajetória de esforços, os quais jamais se viram enfraquecidos contra toda uma variedade de obstáculos a serem enfrentados. Formar leitores e sujeitos críticos, consciências da própria identidade não é um assunto alheio aos conflitos materiais e humanos.  Tania Mariza Kuchenbecker Rösing Miguel Rettenmaier

PARTE 1 LEITURA, LINGUAGEM, TEXTO E DISCURSO

RÁDIO ESCOLAR E A ENTREVISTA RADIOFÔNICA COMO POSSIBILIDADE PARA FORMAÇÃO DO LEITOR Aliete do Prado Martins Santiago* (URI) Ana Paula Teixeira Porto** (URI) A leitura agrega inúmeros benefícios para os leitores, como formação sólida, capacidade de reflexão e habilidade de escrita, conforme inúmeros pesquisadores há tempos vêm sinalizando, no entanto ainda continuamos, no Brasil, com baixos níveis de leitura e número preocupante de leitores. Essa contradição nos leva a refletir sobre quais outros caminhos poderiam ser arranjados na educação escolar para buscar alternativas de cativar os leitores para a prática da leitura como algo vital, necessário nas vivências diárias de qualquer sujeito. Ao pensarmos diretamente no contexto brasileiro relacionado à leitura, salientamos o desinteresse pela leitura de obras literárias. Uma das razões para tal fenômeno está atrelada ao processo educacional, que inicialmente foi baseado em um modelo Europeu do século XIX. Algumas deficiências continuaram, como por exemplo, o ensino baseado em escolas literárias e a leitura de fragmentos e não de obras, além do traço utilitário atribuído à leitura literária. Vemos um quadro preocupante que se acentua quando pensamos nas atuais provas de avaliação de rendimento dos alunos como o ENEM, as quais não avaliam a capacidade de interpretação em relação a uma obra literária, focalizam apenas a leitura de fragmentos de textos literários, que na maioria das vezes são utilizados como pretexto para o ensino da língua. Como apontam Fischer et al., (2012) há privilégio para a leitura de cânones, esquecendo-se da literatura contemporânea. A literatura deveria oportunizar a leitura, mas se continuar assim será dispensável na formação escolar, haja vista essa política educacional instaurada e tantos outros fatores que atestam um ensino de literatura fracassado. Diante desse contexto, propomos uma discussão inicialmente teórica acerca da formação de leitores de literatura e Rádio Escolar, e uma proposta, na qual objetivamos apontar caminhos práticos que podem ser utilizados pelos professores das escolas para utilizar a Rádio Escolar como ferramenta profícua para formação de leitores de literatura. Partimos do pressuposto de que a formação do leitor é necessária e deve ser incentivada na escola através de práticas que agreguem outras perspectivas de leitura sem incorrer em metodologias desgastadas e insuficientes, como aquelas que Regina Zilberman (1993) aponta, como o emprego do livro didático que serve como fonte de renda para autores e editores e ainda “exclui a interpretação e, com isto, exila o leitor”. (1993, p.21). A metodologia de ensino não deve ficar presa apenas aos livros didáticos. Para pensar novas metodologias de ensino, entendemos que a ferramenta que será o suporte para esta reflexão - a Rádio Escolar - se justifica por ser um equipamento disponibilizado as escolas que aderirão ao Programa Mais Educação do Governo Federal, em específico ao macro-campo Comunicação, Uso de Mídias e Cultura Digital e Tecnológica e os materiais para implantação de uma Rádio Escolar foram disponibilizado as mesmas. No entanto muitas escolas ainda possuem dificuldades para utilizar estes equipamentos em favor de uma melhor formação dos estudantes, na qual se inclui a questão da leitura e da literatura.

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Mestranda no programa de pós-graduação stricto sensu em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, nível de mestrado, URI, Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil, [email protected] Professora titular no programa de pós-graduação stricto sensu em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, nível de mestrado, URI, Frederico Westphalen, Rio Grande do Sul, Brasil, [email protected]

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

Ainda consideramos que a mídia radiofônica, desde sua criação por Roquette Pinto, teve o intuito de educar e, portanto, deve ser mais bem explorada como ferramenta de ensino, o que comprova a tipificação da Rádio Escolar concebida por Baltar et al. como “instrumento de interação sociodiscursiva entre os integrantes da comunidade escolar” (2008a, p. 198). Os autores ainda apontam que a programação deve ser construída com a participação de todos os membros da comunidade escolar, o que inclui aos alunos um papel importante. Além disso, pode ser um instrumento propício para despertar o gosto pela leitura de livros literários na medida em que os trabalhos desenvolvidos a partir das leituras de obras literárias não serão apenas a realização de fichas de leitura ou para respostas a questionários. Através da participação direta na programação da Rádio Escola, a leitura alia-se para que o programa seja realizado com êxito, e quanto mais o aluno se envolver neste processo, como decidir os programas que serão veiculados, mais interesse será despertado para que novas obras literárias ganhem sentido nas ondas radiofônicas. Nesse sentido, a rádio pode ser um elo entre Literatura e Meios de Comunicação de maneira que as leituras literárias poderão ser releituras realizadas pelos dos alunos e veiculas inicialmente na Rádio Escolar, mas nada impede que estas produções sejam disponibilizadas em outros veículos midiáticos, como por exemplo, um blog da escola. Essa relação se faz necessária considerando que os alunos atualmente chegam à escola com uma enorme bagagem de leitura midiática, no entanto a escola não propicia de maneira eficiente relações entre esses saberes que a escola fornece e a mídia. Ao propor que a escola utilize um Meio de Comunicação para abordar saberes literário e despertar o gosto pela leitura, essa ferramenta colabora na construção do conhecimento e o interesse do aluno em aprender, pois utiliza de recursos que favorecem esta construção e está relacionado a um suporte que faz parte do seu dia a dia. Dentre as possibilidades de exploração da Rádio Escolar, restringimos o enfoque ao gênero entrevista porque faz parte da grade curricular de ensino. Além disso, a entrevista possibilita ao aluno entrar em contato com o que está pesquisando e desta maneira se envolve com a atividade de pesquisa, que é essencial para formação do leitor. Considerando esses apontamentos iniciais, o trabalho está estruturado da seguinte maneira: iniciamos com uma breve exposição sobre a formação do leitor de literatura, o que alguns autores pensam sobre esta perspectiva. Após um apanhado teórico com relação ao Rádio Escolar e suas possibilidades de utilização na escola, enquanto ferramenta didática. E finalmente a entrevista radiofônica como ferramenta de formação do leitor, acrescidas de uma proposta didática de utilização da rádio escola, gênero entrevista, que pode ser aplicada por professores.

1. FORMAÇÃO DO LEITOR DE LITERATURA A escola tem o importante papel de colaborar na formação de leitor de Literatura e, caso não cumpra sua tarefa, Zilberman alerta que “a criança afasta-se de qualquer leitura, mas sobretudo dos livros, seja por ter sido alfabetizada de maneira insatisfatória, seja por rever na literatura experiências didáticas que se deseja esquecer” (1993, p.17). A maneira como é trabalhada a obra literária pode favorecer ou não para que o aluno adquirir gosto pelo ato de ler, assim como a abordagem que se dá ao texto e o tipo de exercícios e atividades explorados. Sobre as atividades que se desenvolve em relação ao texto, Lajolo (1993) alerta que o texto na escola cumpre inúmeras funções, mas poucas vezes são interessantes, e afirma que “É a propósito da literatura que a importância do sentido do texto se manifesta em toda a sua plenitude. É essa plenitude de sentido o começo, o meio e o fim de qualquer trabalho com o texto”. (1993, p. 62) Consideramos que as atividades nas quais se utiliza do texto precisam estar carregadas de sentido, para

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garantir o seu significado e desperte o interesse do aluno, assim como sua capacidade de interpretação. Para a autora não é coerente que se utilize do texto como pretexto para o ensino de línguas. Sendo a escola e suas ações notadamente ligadas à formação adequada do leitor, como estão atualmente estas práticas? Notamos que as práticas de ensino correntes e as avaliações como o ENEM possibilitam uma análise que aponta diversas lacunas, e uma delas liga-se a ausência do texto literário como um todo, como aponta Ginzburg (2012), e à leitura de uma obra como dispensável para a aprovação, por isso podendo ser abandonada dos bancos escolares, como alertam Fischer et al (2012). Se a realidade das escolas não é favorável para o ensino de literatura, como estão sendo formados os profissionais dessa área para lutar contra esse apagamento da literatura nas escolas? As Faculdades de Letras para Zilberman (2005) ainda continuam ensinando literatura com um viés historiográfico e dividindo as literaturas de acordo com as nacionalidades, o que leva ao isolamento e à marginalização de obras de nações africanas, por exemplo. Desta maneira a formação do professor de literatura torna-se deficitária, negando, em suas práticas nas escolas, as possibilidades profícuas de formação do leitor de literatura. Diante deste cenário em que a literatura enfrenta problemas que vão desde a formação de professores até as escolas, como podemos formar leitores? É necessário inicialmente entender que formar leitores está atrelado ao desenvolvimento da capacidade de compreender o texto, distinguir alguns aspectos e estabelecer correlações, inclusive entre textos e culturas de onde surgem os textos. Conforme salientam Porto, Silva, Porto: “Nesse processo de leitura literária, desenvolve-se simultaneamente a habilidade de leitura do mundo, tendo-se na literatura um instrumento de reflexão capaz de formar o homem”. (2014, p. 11) Ainda em relação à formação dos leitores de literatura no Brasil, Bordini acrescenta que “o ensino ministrado aos estudantes brasileiros não consegue preencher os requisitos mínimos para alcançar um rendimento satisfatório” (2015, p. 23). Um dos desafios é motivar o aluno a aprender a gostar de ler e a ler bem, para isso o professor precisa ser um bom leitor, trazer leituras que sejam do interesse do aluno e participar como mediador para que de fato “a leitura participante de literatura” seja “um imperativo da educação individual e social. Sem ela, essa educação será pequena, pois cega-se à evidência de que ser humano é, em essência, produzir sentido” (BORDINI, 2015, p.31). A partir desse contexto problemático do ensino de literatura, é necessário pensar em alternativas para despertar o gosto pela leitura literária, por isso nosso olhar se volta para a Rádio Escolar como uma possibilidade de formar leitores de obras literárias, que possibilite ao professor ser um mediador e o aluno desperte o interesse em estudar e obter uma formação de qualidade.

2. RÁDIO ESCOLAR COMO FERRAMENTA PARA FORMAÇÃO DE LEITORES O rádio é um dos mais antigos meios de comunicação e, mesmo com o surgimento de novas mídias, continua sendo um importante meio de transmissão de informações e entretenimento. E assim como outros meios, também tem relações com a educação, apresentando um objetivo educacional desde seu surgimento conforme aponta Magaly Prado: o rádio inicialmente encantava pelo amplo alcance de suas transmissões e também pela: “facilidade de aprendizado das pessoas sem sair de suas casas/trabalhos” (2012, p.34). Sua utilização enquanto instrumento educacional pode ser observado desde o trabalho de Edgar Roquette Pinto, que fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, 1923, e que, através de programas culturais e educativos, almejava erradicar o analfabetismo brasileiro (ASSUMPÇÃO, 2008). Durante muito tempo a Rádio foi utilizada apenas como veículo comercial ou informativo, no entanto sua função não se restringe apenas isso, pode e deve ser incentivada sua utilização como ferramenta a serviço da educação. Para isso o governo, percebendo que as mídias fazem parte do

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cotidiano dos alunos e por isso devem ser abordadas na escola, criou algumas políticas públicas que fomentaram a utilização de recursos midiáticos nas escolas. Um exemplo disso é o Programa Mais Educação, que disponibiliza às escolas das redes públicas de ensino estaduais, municipais e do Distrito Federal escolher, de acordo com o projeto político pedagógico, atividades entre os dez macrocampos disponibilizados, e um deles é Comunicação, Uso de Mídias e Cultura Digital e Tecnológica. Neste macrocampo a escola pode desenvolver atividades com as mídias, através de diferentes dispositivos, como a Rádio Escolar. Para Baltar a implantação da Rádio Escolar funciona como: “contraponto ao discurso escolar tradicional, alicerçado em transmissão de conteúdos assépticos e em relações assimétricas de poder, em que predominam, na maior parte do tempo destinado à ensinagem, a voz do professor e da escola” (2008b, p. 568). O autor propõe ainda que a mídia seja trabalhada através de atividades significativas nas quais os estudantes, professores, pais e funcionários possam “agir como atores capazes e responsáveis, decidindo como e, sobretudo, o que querem comunicar: a pauta (os temas), os tipos de programas, os quadros, gêneros de texto, a linguagem” (2008b, p. 570). Essa perspectiva inclui uma participação democrática de todos os sujeitos da escola, sendo que “A concepção e a execução dos programas da RE (que visa estimular o protagonismo) comumente são de responsabilidade dos estudantes e dos professores” (2008b, p. 572). Baltar (2008b) ainda indica quais seriam os passos para a implantação da Rádio Escolar, atividades estas que levariam em torno de um ano. As vantagens de se trabalhar com esta ferramenta são muitas, conforme relatam Cruz, Toledo e Rosa (2011). A Rádio Escolar não possui interesses financeiros, como a rádio comercial, e potencializa a participação dos alunos de maneira que eles possam construir o conhecimento em qualquer área. Há outras vantagens, como: aprender a ouvir a própria voz; produzir conteúdo e responsabilizar-se pelo o que anuncia e comenta; vivenciar, de forma criativa, as etapas de produção, circulação e recepção de mensagens educacionais. Além disso, instrumentaliza-os para comparar criticamente o modo próprio de produzir conteúdos sonoros com o das emissoras comerciais. (CRUZ, TOLEDO, ROSA, 2011, p. 2).

Quando bem utilizada, a RE favorece o ensino aprendizado, mas, no que tange a formação do leitor, como ela pode contribuir? Conforme abordado anteriormente, a atual situação do ensino brasileiro de literatura requer novas propostas para incentivar a formação do leitor de literatura. Considerando a Rádio Escolar como um suporte possível às escolas e ainda as potencialidades de construção do conhecimento pelo aluno, trazemos apontamentos sobre a utilização desta ferramenta, em específico da entrevista como uma possibilidade de formar leitores literários.

3. ENTREVISTA RADIOFÔNICA COMO FERRAMENTA DE FORMAÇÃO DO LEITOR No contexto da Rádio Escolar, entendemos que a entrevista pode ser um gênero profícuo no processo de formação de leituras, tendo em vista as particularidades desse gênero. A entrevista no radiojornalismo é, para Ferraretto (2001), uma possibilidade de construção de diálogos, e sugere o contato entre duas pessoas que são: “repórter ou apresentador, de um lado, e por uma pessoa possuidora de informações e opiniões relevantes para o público, de outro. Acrescenta-se, ainda a possibilidade de terceiros acompanharem esse diálogo” (2001, p. 270). Neste sentido a entrevista radiofônica favorece o que podemos chamar interação, pois o tema abordado deverá ser de conhecimento de ambas as partes, e fornecer ao ouvinte o bom entendimento da mensagem. Dessa forma, a construção de conhecimento é vivenciada por quem realiza a entrevista e posteriormente por quem as ouve. Acreditamos que primeiramente o aluno precisa pesquisar e realizar leituras e sobre essa busca por conhecimento, Ferraretto (2001) alerta para, tanto em entrevistas gravadas como ao vivo, deve haver preparação por parte do entrevistador e que lhe exigem informa-

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ção, atenção, objetividade, clareza e brevidade. Estes também são atributos que se desejam ao leitor literatura, pois o mesmo precisa dominar sobre o que se trata a obra literária, interpretar adequadamente, desenvolvendo sua capacidade de construção do conhecimento. Além disso, após a veiculação de uma entrevista na Rádio Escolar, o tema abordado despertará o interesse em outras pessoas para lerem, no caso específico, obras literárias. Isso porque a maneira como serão conduzidas as produções radiofônicas poderá trazer elementos de obras literárias que a comunidade escolar - professores, alunos e funcionários - desconhece, despertando a curiosidade e levando-os a buscar ler a obra. Este formato possibilita melhor formação do leitor de literatura, considerando também que trabalhar com mídias, e o gênero entrevista estão previstos legislação e parâmetros curriculares para o Ensino Médio, conforme veremos a seguir.

3.1. ENTREVISTA ENQUANTO GÊNERO Partimos do que está previsto na Lei de Diretrizes e Bases Nacionais - LDB, artigo 3º, 9394/96, em que a comunicação democrática e meios de comunicação devem fazer parte do currículo, buscando fomentar a cultura, o ensino, prazer e lazer relativos aos estudantes que dialogam com a cultura das mídias a partir de suas vivências. Os estudos dos gêneros estão previstos nos PCN, “O estudo dos gêneros discursivos e dos modos como se articulam proporciona uma visão ampla das possibilidades de usos da linguagem, incluindo-se ao o texto literário”. (p. 8) Neste sentido o texto literário deve estar presente na escola, mas o cuidado para que sua utilização não se restrinja apenas aos usos da linguagem, mas também na formação crítica e interpretativa do leitor. Já os PCN+ (2000) destacam que as o aluno precisa “saber se informar, comunicar-se, argumentar, compreender e agir”. Acrescentam ainda que “domínio progressivo de situações de interlocução; por exemplo, a partir do gênero entrevista” (2000, p. 59). A proposta que desenvolvemos neste estudo busca atender a esses apontamentos, na medida em que a leitura literária propiciará ao aluno em um segundo momento, repassar o que aprendeu referente à leitura através de uma entrevista. Estamos diretamente propondo uma situação em que o diálogo se fará presente, e, para isso ocorrer de maneira satisfatória, o aluno precisa de antemão se informar sobre a temática da entrevista, saber comunicar e informar de maneira adequada seu ouvinte. Nesse sentido, subentende-se que é preciso compreender a leitura realizada e possuir argumentos para realizar as perguntas adequadas que levem o entrevistado a realizar uma resposta satisfatória. Nesse sentido, nosso entendimento é de que a entrevista é um gênero profícuo para a formação do leitor de literatura, conforme proposta que descrita a seguir.

3.2. ENTREVISTA ENQUANTO FERRAMENTA DE FORMAÇÃO DO LEITOR Acreditando que a entrevista radiofônica possibilita colaborar na formação do leitor de literatura, destacamos uma atividade que poderá ser desenvolvida por professores de literatura com alunos do Ensino Médio, durante três aulas. Na primeira aula o professor traz um apanhado sobre o histórico do Rádio e suas características, em especial sobre a entrevista radiofônica. Num segundo momento da aula, traz um conto, com temática de interesse para os alunos. Realiza a leitura e provoca discussões a respeito do conto, como autor, temática, estilo, se traz relações ou não com as vivências discentes. Questionamentos estes que levem os alunos a ficar curiosos a respeito do conto. No final da aula, o professor lança a proposta de que os alunos deverão pesquisar e ler para a próxima aula um conto de seu interesse. Na segunda aula, o professor propõe aos alunos a formação de duplas, que elaboram três questões para entrevistar o outro colega da dupla, esse número restrito de perguntas se deve à brevidade

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que o rádio exige. Considerando essas e outras características do veículo, é importante que o aluno através destas questões possibilite ao ouvinte um bom entendimento do enredo do conto. A postura do entrevistador é importante para conduzir o entrevistado a dissertar sobre a temática, demonstrando que compreendeu a leitura; se possível, o entrevistador deve incitar o entrevistado a fazer relações com a realidade e deixar alguma brecha para despertar o interesse dos ouvintes da obra. Nesta aula, podem dar início as gravações das entrevistas. Na terceira aula, os alunos terminam as gravações, realizam a edição e veiculação das entrevistas na Rádio Escolar. Ao final os alunos podem ser questionados sobre a validade de atividades como esta, que após a leitura de um texto literário se utilizou de um recurso midiático para a construção do conhecimento e não apenas uma lista de exercícios ou uma ficha de leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS É importante a tomada de consciência de que a o ensino de literatura encontra-se com dificuldades e há a necessidade de repensar novas propostas para formação de leitores de literatura, considerando que esta é uma maneira que possibilite a reflexão e o melhor desenvolvimento do aluno. A Rádio Escola tem um grande potencial educativo e possibilita espaços de construções, pois entendemos que a escola não pode trabalhar de maneira isolada, necessita utilizar de recursos que atraem a atenção do aluno e favoreçam a construção do conhecimento. A produção de entrevista radiofônica pelos alunos, conforme proposta anterior favorece aos alunos a capacidade de identificar, selecionar, relacionar e imaginar, reforçando as habilidades de expressão oral e escrita. Desperta maior interesse no aluno pelo aprendizado e colabora na formação do leitor literário, assim como estimulam novos leitores de literatura. E possibilita a participação dos alunos, envolvendo-os no processo de construção da entrevista, no qual o professor de fato é um mediador da leitura e o aluno, um sujeito ativo em suas descobertas. A proposta de atividade que fomenta da formação do leitor de literatura é apenas uma possibilidade, mas que o professor, sendo um bom leitor consegue realizar inúmeras práticas com a Rádio Escolar em benefício da melhor qualificação do aluno. Além disso, a atividade considera que o aluno seja instigado a ler, leia temas de seu interesse e através da entrevista consiga expor seu ponto de vista e a sua interpretação da leitura literária, afirmando a ação do professor como mediador.

REFERÊNCIAS ASSUMPÇÃO, Zereida Alvezs de. O rádio no espaço escolar: para aprender falar e escrever melhor. São Paulo: Annablume, 2008. BALTAR, M. et al. Rádio escolar: uma ferramenta de interação sociodiscursiva. Rev. Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 8, n. 1, 2008a. Disponível em: . Acesso em: 22 set. 2015. ______. Letramento radiofônico na escola. Linguagem em (dis)curso: letramento e formação de professores. v. 8, n. 3, p. 563-580, 2008b. Disponível em: . Acesso em: 27. Set. 2015. BORDINI, Maria da Glória. Literatura na escola. In: OURIQUE, João Pereira (Org.). Literatura e formação do leitor: escola e sociedade, ensino e educação. Org: João Pereira Ourique. Ijuí: Unijuí, 2015. p. 15 – 44. BRASIL. Lei n. 9394, de vinte de dezembro de mil novecentos e noventa e seis. Dispõe sobre as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: . Acesso em: 22. set. 2015.

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SENDO DIRETOR: PROCESSO CRIATIVO E UBIQUIDADE POSSÍVEL, UM ENSAIO PRÁTICO Cleber Nelson Dalbosco* (UPF) Tania Mariza Kuchenbecker Rösing** (UPF)

1. INTRODUÇÃO É quase comum a ideia de que trabalhos criativos não devam ou não possam, para ser “criativos”, ser conduzidos por lógicas teóricas. Assim, contrariando um pouco esta proposição, este artigo norteia-se em evidenciar a descrição de um processo que entrecruza as áreas da literatura, linguística e comunicação. Objetiva-se, portanto, aqui expor o processo criativo da pseudorradionovela “Diálogos de trabalho quase perfeitos”, em que o próprio autor do artigo explicita as etapas e a motivação criativa para desenvolver tal proposta, derivada do personagem central da obra “Dias perfeitos”, do escritor Rapahael Montes. Ampara-se o processo criativo no considerar da estética da recepção, uma vez que a proposta criativa é originada, enquanto insight, de uma obra lietária reconhecida e proposta como motivação de estudo e das ações do Grupo de Educadores Google – Passo Fundo (GEG–PF), conjuntamente ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo (PPGL–UPF). E por fim, não menos importante, permite o contemplar da percepção prática de teorias que envolvem a pragmática do discurso e a relação com obras literárias. Como metodologia, a descrição do processo criativo, visa contribuir como mecanismo de reflexão, evidenciando a lógica da criação motivada não apenas pela leitura da obra debatida, mas, pelo alinhamento necessário aos propósitos de desenvolvimento e reflexão teórica. Interpõe-se, assim, o desenvolvimento de habilidades criativas, teóricas e práticas, onde uma não exclui ou delimita a outra, mas são potencializadas enquanto recursos de assimilação narrativa. Estrutura-se a presente discussão em quatro divisões: sendo, a primeira o considerar de aspectos que envolvem a teoria da recepção, em seguida, propõe-se a questão da ubiquidade e a decorrente possibilidade de acesso de uma criação artística em qualquer tempo e lugar. Posteriormente, apontamentos sobre a pragmática do discurso literário. Ao término, a descrição da proposta criativa intitulada: “Diálogos de trabalho quase perfeitos”.

2. O RECEPTOR, LÊ, SE APROPRIA E (RE)CRIA Não há, deve-se atentar, nada que tenha sido visto, lido ou escutado, que já não tenha anteriormente sido igualmente exposto de algum modo, ou então, tenha sofrido algum tratamento de reelaboração. O que mudam são as ferramentas, escolhas, estilos e processos de fazer. Na sua essência, em termos de inovação temática, a variabilidade é pouca, e quem sabe, catalogável, como perceptível no trabalho de Georges Polti e a sua indexação das 36 situações dramáticas1.

Doutorando na linha de pesquisa Leitura e Formação do Leito do Propgrama de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. E-mail: [email protected] ** Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. 1 Ver: POLTI, Georges. The thirty-six dramatic situations. James Knapp Reeve: Franklin, Ohio, 1921. *

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Não se discute aqui, portanto, se Raphael Montes é inovador em sua proposição desconstrutiva do gênero policial, tampouco se objetiva desvendar e entrelaçar o conteúdo do eneredo de “Dias Perfeitos” com outras obras, escritores e referências. O que se quer enfatizar é a possibilidade de se “reler” uma obra e reinterpretá-la de modo criativo. O leitor não deixa de ser um agente no processo de mutabilidade da obra, seja ela um clássico consagrado, ou algo novo, recém lançado. Hans Robert Jauss, neste sentido, pode ser referenciado: “A nova obra literária é recebida e julgada tanto em seu contraste com o pano de fundo oferecido por outras formas artísticas, quanto contra o pantoo de fundo da experiência cotidiana de vida.” (1994, p. 53). A leitura é um processo criativo, capaz de despertar na mente do leitor imagens únicas e exclusivas. Toda obra sofre influência do tempo e epaço em que é acessada, vista, lida e interpretada. Ou, como atesta Regina Zilberman, considerando o panorama propositivo da estética da recepção de Jauss, “A possibilidade de a obra se atualizar como resultado da leitura é o sintoma de que está viva; porém, como as leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária à sua fixação numa essência sempre igual e alheia ao tempo” (1989, p. 33). Todo leitor/receptor de uma obra tende a agir criativamente. E, mesmo que jamais disso deixe qualquer registro material, o leitor irá operar com os signos e imposições que pela obra se apresentam ao mesmo tempo que vive a temporalidade da sua existência pessoal, assim se apropriando do seu conteúdo, podendo criar significações e satisfações próprias. Como atestam Paulino e Cosson, atentando para questões de letramento literário, “[…] apropriação, isto é, um ato de tornar próprio, de incorporar e com isso transformar aquilo que se recebe, no caso, a literatura. […] o significado depende tanto do que está dito quanto das condições e dos interesses que movem essa apropriação.” (2008, p. 67). Não se deve, contudo, desconsiderar a dimensão emocional e o impacto em relação ao público, visto que, o potencial de capatação de público não deixa de estar ligado aos fatores emocionais ativados pela recepção da obra com convenções internas da mesma. Há de se considerar certa proximidade com aquilo que Greg M. Smith, embora situando o debate em questões cinematográficas, expôs: “Filmes oferecem convites para o sentir. As audiências dos filmes podem aceitar o convite e experienciar a variedade de sentimentos proferidos pelo texto, ou podem rejeitar o convite do filme2.” (2003, p. 12, tradução nossa). Dito isto, filmes constituem também “texto”, portanto, logo, não deixam de ser uma espécie de amplificação da “literatura”. Assim, projeta-se uma escala potencialmente sem fim, onde cada um que age sobre uma obra, seja comentando, criando e repostando derivações dela, pode gerar ipacto e significação social em relação à obra original, desde que sinta-se “convidado”. Nisso tudo reside um complexo mecanismo criativo-assimilativo. A mensurabilidade deste processo pode, quem sabe, ser sentida e vista, em tempos correntes, pela capacidade de (re)adpatação, comentários em redes sociais, publicações nas mídias, bem como pela própria potencialidade de gerar manifestações espontâneas nos mais diversos canais de comunicação e informação.

3. PRESENÇA + POTÊNCIA = UBIQUIDADE Condição quase que natural na sociedade mediada por signos verbais, visuais, sonoros e suas quase infindáveis possibilidades de combinação, e midiatizada3 pelas tecnologias da comunicação e informação (TICs), a ubiquidade, se assenta numa lógica que pode ser compreendida como o acesso instantâneo e permamente. Ao mesmo tempo, pode ser entendida como a representação do “tudo “Films offer invitations to feel. Film audiences can accept the invitation and experience some of the range of feelings proffered by the text, or they can reject the film’s invitation.” 3 Para a definição dos termos “mediatizada” e “midiatizada”, ver a introdução em SANTAELLA, Lucia. Comunicação ubíqua. São Paulo: Paulus, 2013, p. 13. 2

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disponível”, o que a inscreveria numa espécie de memória potencialmente pública, permanente e acessável. Lucia Santaella traduz o seu considerar de ubiquidade: Aparelhos móveis nos oferecem a possibilidade de presença perpétua, de perto ou de longe […] Somos abordadods por qualquer propósito a qualquer hora e podemos estar em contato com outras pessoas quaisquer que sejam suas condições de localização e afazeres no momento, o que nos transmite um sentimento de onipresença. Corpo, mente e vida ubíquas. (2013, p. 16).

Eis, portanto, evidente condição de permanência, instantaneidade e registro, em que tecnologia, informação, entretenimento e acesso midiado permitem uma existencia humana expandida, não circunscrita unicamente pelas limitações geográficas. Convém ter-se que, não é possível uma certeza absoluta das potencialidades e limites da ubiquidade, mas, pode-se verificar que ela permite a expansão, comunicação e impacto, acessíveis em qualquer tempo, lugar e contexto cultural. É a memória do público o recurso que se deve buscar impactar. As demais ferramentas de registros de memória – suportes analógicos, eletrônicos, digitais, informáticos, etc – podem até ser, quase permamentes, mas, somente são importantes enquanto acessórios à memória coletiva. A memória coletiva é a memória dos receptores, que em qualquer obra ou texto, para que dele extraiam significado devem vivenciá-lo e adquiri-lo de algum modo. Há ainda que se considerar a mutabilidade das obras como algo próprio da contemporaneidade, pois, é por via dos recursos da tecnologia e comunicação ubíquas que todo esse processo ganha possibilidades exponenciais. Porém, assim como a memória, a mutabilidade também tem como sua constante o signo da efemeridade. Ou, no considerar de Santaella, “O princípio que rege a interatividade nas redes, seja em equipamentos fixos, seja em móveis, é o da mutabilidade, da efemeridade, do vir-a-ser em processos que demandam a reciprocidade, a colaboração e a partilha.” (2007, p. 80).

3. O DISCURSO LITERÁRIO O discurso não é proposto nem alicerçado no nada. É uma instância que se faz presente em seus propósitos, tanto singificativos como operacionais, em estabelecer uma finalidade de comunicação. Tornar comum uma informação, difundir uma história, elencar etapas e estabelecer parâmetros acabam sendo consequências da existência dos discursos. Não há narrativa, portanto, sem discurso. Contextualizando as proposições de Benveniste, a compreensão de discurso como produto de um “ato de enunciação”, Reis e Lopes explicam: “[…] os locutores não são meros pólos de um circuito comunicativo, mas sim entidades situadas num tempo histórico e num espaço sociocultural bem definidos que condicionam o comportamento linguístico.” (1988, p. 28). Isso permite considerar que, ao mesmo tempo, não há discurso que deixe de extrair das narrativas algum significado capaz de amplificar os seus propósitos, pois, há sempre possíveis interligações dos agentes de discurso: enunciador e enuciatário, ou, emissor e receptor. Tem-se, em decorrência, que a definição de discurso é demasiado complexa, e, portanto, deve ser flexibilizada, ou restrita, para fins de entendimento teórico e apropriação criativa. Assim, contemplando certa dimensão necessária aos propósitos deste estudo, a noção de discurso, proveniente da interpretação sobre a proposição de Greimas, atesta como sendo três parâmetros definidores, […] a enunciação, quando se opera a discursivização; a interação, dimensão pragmática em que se estabelece a relação entre enunciador e enunciatário; o uso, em que se realiza uma práxis enunciativa cultural, que se manifesta em gêneros, fraseologias, registros, esquemas discursivos canônicos etc. (FLORES et. al, 2009, p. 85).

Não se pode deixar de ter presente que as narrativas se referendam por outras narrativas, pelas temáticas assemelhadas em outras histórias, pelo acesso aos elementos de similaridade e pela

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confrontação com a bagagem cultural dos receptores. Ainda, narrativas também são discursos e trazem consigo a organização de ações, personagens, temporalidades, situações, épocas e imaginários. Ou, como explicita Dominique Maingueneau, “O texto é uma espécie de armadilha que impõe a seu leitor um conjunto de convenções que o tornam legível. Faz esse leitor entrar em seu jogo de maneira a produzir através dele um efeito pragmático determinado, a fazer seu macroato de linguagem ser bem-sucedido.” (1996, p. 39). A forma, o estilo, o gênero, a trama, para cital apenas alguns, são todos potenciais elementos assimiláveis e “legíveis” que, para além de suas categorizações restritas e objetivas, são também discursos. Assim, a metáfora de Maingueneau do texto como uma “armadilha”, não deixa de ser significativa, pois no texto há elementos que atraem o leitor, que interagindo com as ideias expostas e cria ou deriva outras ideias e subjetivações apropriativas do conteúdo. O modo de construção de uma história, a subversão de um gênero, apropriação e a mescla com outros gêneros, suportes e contextos, possibilita o adensamento ou subtração de discursos. Narrativas, discursos, medialidades e midialidades não existem separados, são interdependentes, embora, deva-se considerar que, na essência, as narrativas repetem temáticas semelhantes, sendo, quase sempre, “as mesmas”. No entanto, as materialidades podem condicionar e, ao mesmo tempo, potencializar os efeitos de um discurso. Retoma-se, propositalmente, neste sentido, Maingueneau, no contexto de outra publicação, onde explicita: “A transmissão do texto não vem depois de sua produção; a maneira como o texto se institui materialmente é parte integrante de seu sentido.” (2009, p. 212). Assim, atentando para essa situação, a estratégia criativa, a ser pormenorizada em adiante explicação, não considerou a obra original como uma camisa de força. Ao contrário, derivou uma hipótese/perspectiva adicional para a história do romance policial “Dias perfeitos”, emprestando apenas algumas características psicológicas do personagem central do enredo, Téo.

4. A RECEPÇÃO CRIATIVA EM PROPÓSITOS POTENCIALMENTE UBÍQUOS A proposta criativa, entre as demais propostas de estudo disponíveis no ppglnarede.blogspot.com, levou em conta a possibilidade de derivar algo em relação à narrativa exposta em “Dias perfeitos”, do escritor Raphael Montes. Considerando a nomenclaturada “atividade 1” – “Você é o diretor!” – veiculada no blog, e tendo liberdade para elaborar áudio, vídeo, fotografia, peça gráfica etc., derivada da obra original, optou-se pela não continuidade da narrativa exposta no livro, mas uma espécie de narrativa paralela “antecedente”, capaz de expor o desenvolvimento de Téo como estudante de medicina. A evidência de um material veiculado na plataforma Youtube, cujo link é disseminado em blog – ppglnarede.blogspot.com4 –, permite também o verificar da prática criativa, fazendo proveito das possibilidades da rede como potencial registro e permanência. Ao mesmo tempo, amplifica a percepção do valor das ações teórico-criativas, enquanto habilidades a serem contempladas nos estudos que envolvem literatura, linguagens e mídias.

4.1. ROTEIRIZANDO O roteiro constitui, na maioria dos casos, o ponto de partida em processos de produção audiovisual. Nele residem as indicações das ações, falas que nomeiam a condução dos diálogos, a indicação dos nomes dos personagens bem como o cabeçalho de cada cena. A indicação de cena aponta para o

Ou ainda, no Youtube, disponível em:

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lugar e a temporalidade das ações da narrativa que se apresenta, e só acaba, quando surge a transição, que é a indicação do término ou interrupção da cena5. Após a transição de uma cena, suge novamente novo cabeçalho, ou seja, uma nova cena, que aponta para onde irão ser ambientadas as ações dos personagens e suas respectivas falas, etc. Assim é conduzida, em linhas gerais, a formatação do roteiro cinematográfico no padrão master scenes6. Por motivos de espaço, não se irá aqui pormenorizar as regras de formatação, mas pontuar que esse processo de roteirização implica na constatação e evidência de uma fórmula já há muito consagrada, sendo que, se respeitadas as delimitações técnicas da escrita do roteiro neste padrão, tem-se a equivalência, quase exata, de que uma página corresponde a um minuto do produto final.

4.2. SOLUCIONANDO “ACASOS” Foi partindo da criação de um produto audiovisual inspirado na obra do escritor Raphael Montes, que desenvolveu-se um roteiro de sete páginas, que por vias de tempo e recursos, acabou não sendo produzido como um filme curta-metragem. Resultou numa criação narrativa de ficção em áudio, com duração aproximada de sete minutos, a qual atribuiu-se a categorização de pseudorradionovela. Pseudo, se deve ao fato de não ser veiculada em rádio, e sim na internet, na ferramenta Youtube7. Aqui se apresenta, portanto, evidente relação com a condição ubíqua, dado que a inserção de um áudio veiculado em plataforma de vídeo, em rede, torna o conteúdo acessável de qualquer lugar e horário. Necessária, portanto, foi a utilização de um narrador que lesse interpretativamente as indicações das ações dos personagens, tal como um sujeito onisciente, pois, não ocorreram “filmagens”. Assim, sem a captação das imagens de atores desepenhando corporalmente os papéis, a narrativa pouco comunicaria sobre o que está acontecendo. A presença de um narrador como estratégia criativa conduz a história e, ao mesmo tempo, suplanta o lugar das imagens. A descrição verbal, e a ausência de imagens na tela, obriga constante apelo à imaginação do receptor, tal como se davam as transmissões de radionovelas.

4.3. O ENREDO E ESTRATÉGIAS CRIATIVAS EM “DIÁLOGOS DE TRABALHO QUASE PERFEITOS” Em termos gerais, a narrativa proposta, conta a história do primeiro dia de estágio de Téo no Instituto Médico Legal (IML). Ao adentrar o prédio, ele irá contatar a secretária Luiza, com a qual trava o primeiro diálogo, envolvendo sua apresentação como novo estagiário e tomando conhecimento das atribuições deixadas por Dr. Bremantes. Téo, ao principiar o trabalho no laboratório, começará pela limpeza dos materiais e bancadas, até que encontra uma caixinha de inox, e ao abri-la se depara com um bisturi. Este irá travar o segundo diálogo presente na narrativa. Téo, não acreditando estar conversando com um bisturi, virá a convulsionar e desmaiar, sendo, ao término da história, resgatado/socorrido por Luiza, que o convida para almoçar. O bisturi, objeto com o qual Téo trava o segundo diálogo, é o mote e fator criativo condutor da narrativa em termos de quase sobrenaturalidade. É no cabo do bisturi que residem duas inscrições enigmáticas: de um lado, inscrito em letras cursivas, Ego sum qui sum, no outro, em letras góticas, Primum, Bremantes. Após a queda de Téo, e o consequente “resgate” dele por Luiza, Téo irá voltar para a sala e recolher o bisturi, nele passando a figurar a inscrição, em letras góticas, modificada para Secundum, Téo.

Ver: FIELD, Syd. Manual do roteiro: os fundamentos do texto cinematográfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. Para indicações do padrão master scenes de formatação de roteiros, ver: . 7 Disponível em: 5 6

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O que transcorre na tela, fazendo o uso do espaço em que estariam as imagens, são apenas indicações como título, créditos e inserções de caracteres escritos que, pela ausência da imagem do bisturi, são necessários para demonstrar a grafia das referidas fontes “cursiva” e “gótica” descritas pelo narrador. Acréscimo, tem-se, da cor como recurso associado às fontes, para ilustrar aquilo que somente seria possível na imagem de um bisturi físico, ou então, por recursos de animação computadorizada, fotografia, ilustrações, etc. O ruído inicial faz referência à estética comum dos aparelhos receptores de rádio, no entanto, objetivando evidenciar a compreensão do texto narrativo oralizado, não se fez a utilização massiva de ruídos interruptivos, ainda que pudessem acrescentar sentidos e efeitos de recepção radiofônica. Aqui atenta-se para um fator preponderante na veiculação de uma mensagem que deve chegar a um público: possibilidade de ser interpretada. Nisto, nota-se ligação com a questão da recepção, pois é o interator, muitas vezes o responsável por completar o sentido de um enunciado, porém, o enunciador, bem como o contexto, devem oportunizar e viabilizar o entendimento. A trilha sonora do “Diálogos de trabalho quase perfeitos”, não se traduz por uma proposição tradicional no uso de trilhas sonoras onde, a adoção de uma melodia “clara” e definida, com motivos acentuados e reiterados variando unicamente quanto à dinâmica da música – isto é, a adoção de “altos” e “baixos” no som – é usada estrategicamente para conduzir emocionalmente o público8. Objetivou-se nessa criação, apresentar a trilha sonora que insinuasse certa tensão narrativa, de maneira sutil, uma vez que pode ser confundida como um ruído típico e permanente de alguns aparelhos receptores de rádio. Pode-se afirmar que a contribuição se dá pelos “ruídos”, esta que é categorização tradicional da explicação do processo de emissão e recepção, onde, há sempre um emissor e um receptor e entre eles podem acontecer desencontros de sentido, ao qual atribui-se comumente a designação de ruído9. Neste caso específico da “releitura” de “Dias perfeitos”, o receptor, isto é, o leitor, se objetivou também criador. E entre a obra original, de Raphael Montes, e a criação “Diálogos de trabalho quase perfeitos”, “ruídos” foram acrescentados. Assim, explica-se através do promenorizar de algumas estratégias criativas, as intenções de comunicação da pseudorradionovela derivada. A interpretação da voz do bisturi, por exemplo, busca fazer referência ao estilo empostado e tradicional dos locutores de rádio. O bisturi, uma vez feito personagem, é algo antigo, que está há muito tempo, presume-se, existindo, por isso certa acepção “antiquada” em seu falar e vocabulário. A narrativa proposta remete à descrição de elementos gráficos como as letras cursivas e góticas. São estas, também referências associadas ao conceito visual que visa remeter aos signos de “tradicional”, restrito e “pomposo”, visto que este tipo de fonte, derivado do estilo itálico, era amplamente usado por tipógrafos em textos que vieram a se tornar clássicos, delegando, por herança visual, uma referência ao passado10. A descrição das letras incrustadas no cabo do bisturi é reforçada pelo recurso das fontes gráficas. Ego sum qui sum, uma expressão de origem latina, cuja significação pode ser traduzida por “eu sou quem sou”, serve para reforçar metaforicamente a ideia de algo contemporaneamente distante, porém, por não ser prontamente identificável, acaba por enfatizar imaginário de mistério, de segredo trancafiado pronto a ser descoberto. As demais descrições de inscrições, que estão no cabo do bisturi, apelam à contagem ordinal, porém em latim. Opta-se pela nomenclatura ordinal, porque ela sugere e incita ordem, sequência e ordenamento lógico de antes e depois. Primum e secundum são, respectivamente, designações para

Ver: BERCHMANS, Tony. A música do filme: tudo o que você queria saber sobre a música de cinema. São Paulo: Escrituras Editora, 2006. Ver: WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. 10. ed. Lisboa: Presença, 2009. 10 Ver: LUPTON, Ellen. Pensar com tipos: guia para designers, escritores, editores e estudantes. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 8 9

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“primeiro” e “segundo”, sendo o primeiro, Dr. Bremantes, personagem apenas citado, mão não ativamente presente na narrativa. O segundo, pela dedução conduzida na narrativa, é Téo. O bisturi, transformado em personagem, é quem absorve, quem escolhe seus operadores. Trata-se de uma relação interdependente, quase “simbiôntica”, e é por essa mesma razão que na própria fala do bisturi a palavra “simbiontes” está presente. Aliás, é proposição feita pelo bisturi ao Téo, dado que, a partir do contato de ambos, as coisas passarão a ser diferentes. Passarão a estar unidos, formando um só, numa espécie de casamento alquímico11, onde a mudança de coloração é que indica a mudança do estado físico e espiritual do objeto bisturi com seu condutor, no caso, Téo. Deste modo, a relação entre Téo e o bisturi, é tratada como sendo “mágica” e “espiritual”, que transcende a mera casualidade. O bisturi estava à espera de Téo como um receptáculo para sua continuidade. Bremantes, estando presente no enredo apenas como recado passado pela secretária Luisa, permite a percepção de ser alguém que cumpriu seu destino em relação ao bisturi e por isso se ausenta, deixando o caminho livre, ou quem sabe, esteja se desfazendo da “maldição”. A possibilidade de interpretações sobre qual será o destino de Téo depois de encontrar o bisturi que muda de nome, só ganha sentido, quando se tem em consideração o enredo da narrativa do romance policial “Dias perfeitos”, de Raphael Montes. Neste livro, Téo é o estudante de medicina, que se apaixona por Clarice, mas que exercita seu aprendizado de anatomia com um cadáver ao qual atribui o nome de Gertrudes. Clarice será a vítima de Téo, que com tamanha dedicação aos estudos de anatomia, bem como denotando um caráter misantropo, irá se utilizar do seu conhecimento técnico para torturar Clarice, drogando-a constantemente e mantendo-a em cárcere privado, numa relação de possesão e passionalismo. Mas, na proposição criativa, que motiva a elaboração deste artigo, não se buscou os supostos antecedentes que trouxessem uma possível “luz” sobre o caráter de Téo, mas, apenas criar uma breve narrativa paralela, considerando aquilo que está presente no contexto de qualquer estudante de medicina: a possibilidade de um estágio em, hospitais, laboratórios e, inclusive, necrotérios. Não se sabe a origem do porquê da devoção de Téo, em “Dias perfeitos”, ao cadáver Gertrudes. Mas, na pseudorradionovela, pôde-se criar uma “pista”, onde um objeto inanimado – porém, talvez enfeitiçado – tenha sido o início deste processo obsessivo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Reside em todo processo criativo uma atividade de apropriação. Este propósito nem sempre é planejado, apenas existe, e, na maioria das vezes, se torna evidente pela vontade manifesta de (re)narrar, de organizar elementos e (re)contar histórias. Se buscou evidenciar um processo criado deliberadamente, tendo por referência a centralidade do personagem Téo, de “Dias perfeitos”. Nesta acepção, a “apropriação” temática não ocorreu pela influência do impacto e pelo rememorar, em tempo muito distante, da leitura da narrativa original, mas num agir consciente em relação aos norteamentos teóricos. Dentre tais possibilidades, dadas pelo amparo teórico, há a noção de que uma obra se faz também no receptor, bem como é condicionada pelos suportes em que é veiculada, e mais, que constitui em um discurso sobre outras obras. Eis, portanto, a profusão interminável de leituras e releituras, elaborações e reelaborações, e, por isso, a referência e saída “ao acaso” da estratégia de reoordenar o processo criativo fazendo daquilo que era para ser um filme, uma radionovela. As obras, devido a isso, ganham vida e estendem sua permanência social, mesmo em iniciativas cujo impacto seja pequeno ou quase inócuo. O simples registro, atestando que uma obra literária e parte de seu discurso, trama, personagens e temática, foi adaptada para outras narrativas para Ver: POWELL, Neil. Alchemy, the ancient science. Aldus Books Limited: London, 1976.

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lelas por pessoas que não o próprio escritor da obra original, faz com que a obra possa vir a ser mais comentada, evidenciada e, quem sabe, permanente. Restringir tais possibilidades, barrar ideias, sejam elas descomprometidas enquanto exercício educativo/criativo, ou, então, completamente imersas em bases teóricas, seria o mesmo que aniquilar os potenciais da obra, não apenas inscrevendo-a no esquecimento, mas aniquilando a relação e o gosto pela leitura. Os leitores contemporâneos se fazem não só pelo contato com o texto, mas com uma miríade de oportunidades de representar o que leram, viram ou interagiram, criando assim, novas obras que estão diretamente e necessariamente associadas a obra original. É o potencial inaugurar de uma série de novas manifestações, leituras e significações, tanto subjetivas como sociais, que se fazem presentes numa cultura cada vez mais calcada no potencial das TIC’s e no exercício da ubiquidade em estado latente. Quem ganha com isso não é apenas o autor e sua obra, mas todo aquele que, ao (re)criar desenvolve aptidões criativas, tendo a oportunidade de formar-se um leitor mais atento, participativo e propagador da função essencial da leitura: ampliar a percepção do tempo, do espaço e do mundo.

REFERÊNCIAS FLORES, Valdir, et. al. Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2009. JAUSS, Hans Robert. Cap. XII. In: ______. A história da literatura como provocação à teoria literária. Editora Ática: São Paulo, 1994, p. 50-57. MAINGUENEAU, Dominique. A leitura como enunciação. In: ______. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 31-59. ______. Mídium e gêneros do discurso. In: ______. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2009. p. 211-228. MONTES, Raphael. Dias perfeitos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. PAULINO, Graça; COSSON, Rildo. Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da escola. In: ZILBERMAN, Regina; RÖSING, Tania M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009, p. 61-79. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Conceitos fundamentais. In: ______. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988, p. 13-100. SANTAELLA, Lucia. O fim do estilo na cultura pós-humana. In: ______. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007, p. 55-81. ______. Introdução. In: ______. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013, p. 16-22. SMITH, Greg M. An invitation to feel. In: ______. Film structure and the emotion system. Cambridge University Press, New York, 2003, p. 3-14. ZILBERMAN, Regina. Projetando a nova história da literatura. 29-40. In: ______ Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Editora Ática, 1989, p. 29-40.

FERRAMENTA HAGÁQUÊ NA MEDIAÇÃO DE LEITURA: UMA PROPOSTA PARA A FORMAÇÃO DE LEITOR DE LITERATURA Daiane Samara Wildner Ott* (URI) Ana Paula Teixeira Porto** (URI)

INTRODUÇÃO Sabe-se que formar no aluno o gosto pela leitura é um grande desafio para os nossos tempos, principalmente em um contexto cercado pela tecnologia, que mostra que a leitura tem perdido espaço para os aparelhos tecnológicos. Mas, é importante destacar a existência de muitos professores preocupados em resgatar o contato com o texto literário e incentivar o hábito de leitura e escrita em sala de aula. As pesquisas sobre a leitura no Brasil, como Retratos da Leitura no Brasil 3, mostram que enquanto estão nas escolas, os alunos leem, depois perdem esse hábito. Mesmo sendo criadas muitas políticas de incentivo à leitura, elas não têm sido suficientes para dar conta desta deficiência que tem se instalado, como assinala Failla (2012). A escola tem um papel fundamental de oportunizar ao aluno a relação com o texto literário, ampliando sua percepção sobre sua realidade e permitindo a ele atuar sobre o mundo que o cerca. Mas é possível perceber que a leitura como hábito é primeiramente formada em casa, sendo ampliada na escola. Mesmo assim, ainda há muitos alunos que possuem apenas o contexto escolar como ambiente de aproximação com os textos literários. Por outro lado, há ainda que se observar que juntamente com a evolução dos aparelhos tecnológicos e com a mudança no comportamento dos jovens, tem se aberto espaço para os livros nos ambiente virtuais. Algumas pesquisas mostram que a leitura por meio dos aparelhos tecnológicos tem atraído os leitores: o uso dos livros em papel tem perdido espaço pelos ebooks – livros digitais, segundo Retratos da Leitura no Brasil 3. Esses dados anunciam que é necessário imbricar as aulas de Literatura, uma nova metodologia de ensino, pautada por técnicas que despertem o interesse do aluno, cativando-o para um momento de leitura e de aprendizagem através do contato com o texto literário. Diante desta preocupação, desenvolve-se este trabalho que trata sobre a formação de leitores, resgatando aspectos históricos sobre o ensino de Literatura no Brasil e mostrando em que medida se pode avançar.

1. ENSINO DE LITERATURA NO BRASIL E FORMAÇÃO DO LEITOR O ensino de literatura nas escolas tem sido alvo de discussões entre muitos estudiosos e professores, como Lígia Leite, Letícia Malard, Regina Zilberman, que buscam alternativas para o entendimento da literatura com sua função social e para a formação de leitores em sala de aula. Um dos maiores problemas enfrentados pela literatura é sua aceitação, por parte dos alunos, como uma disciplina indispensável para a formação moral e integral do ser. A partir dessas inquietações, muitas perguntas são feitas, buscando-se responder a eles neste estudo: O que é literatura? Qual sua função e sua importância? Como ensinar de maneira eficiente? Como formar leitores literários críticos e despertar o gosto pela leitura em aulas de Literatura? * **

Mestre em Letras – Literatura Comparada - URI, Campus de Frederico Westphalen. Email: [email protected] Mestre e Doutora em Letras – Professora da URI - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen/RS. Email: [email protected]

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Leite (1983), analisando o ensino de Literatura no Brasil sob uma perspectiva histórica, afirma que as aulas de Literatura não obtiveram maiores avanços até a década de 70. Nesta época, o Brasil enfrentava um enorme distanciamento entre as universidades e o ensino nas escolas de ensino fundamental e médio. Então, começa-se a pensar a literatura não somente pela teoria, mas também pela sua prática. A redefinição do ensino de literatura em escolas de ensino básico começa a ser pensada de modo a ter alunos que são sujeitos ativos de seu processo de aprendizagem, reflexivos e atuantes na sociedade, sem a obrigação de saber aspectos ligados à teoria literária. Letícia Malard (1985) também faz uma análise histórica sobre o ensino de literatura no Brasil e explica que até a década de 70 o ensino de literatura nas escolas era distanciado da realidade e tinha como foco a forma: as figuras de linguagem e a teoria que envolve a literatura. O texto literário não era o objeto de estudo, pois se acreditava que a teoria da literatura é indispensável para a análise dos textos. Devido a esse ensino baseado na teoria, torna-se difícil ao professor de rede básica ensinar o aluno através do texto literário e talvez, seja por isso, que a literatura não seja considerada uma disciplina agradável para a maioria dos alunos. Vê-se que a aprendizagem em literatura não tem atingido seus objetivos mínimos, e que os leitores no Brasil têm diminuído consideravelmente, assim como nos mostram as pesquisas no Brasil. Segundo os PCNs (1997) os objetivos mínimos a serem desenvolvidos através da leitura são a formação de leitores competentes, o desenvolvimento da habilidade de escrita e o contato com uma grande diversidade de gêneros textuais de forma a ampliar os conhecimentos do aluno a respeito da funcionalidade de cada texto. Mas como atingir essa meta? Malard (1985, p. 11) diz que “o melhor caminho para se aprender a Literatura é a leitura”. Segunda a autora o ensino de literatura deve ser focado na leitura e não nos escritores, na história ou em resumos e críticas de obras. Para isso, a autora divide os objetivos que devem envolver o ensino da literatura em: 1 – Compreensão da obra literária dentro do contexto em que foi produzida. Se a realidade é base para a produção literária, ela deve ser base para a compreensão da obra e posteriormente da sociedade. 2 – Desenvolvimento da criticidade do leitor: e ela está relacionada aos conhecimentos que o leitor tem sobre o mundo, tornando-se possível somente através da interação do texto com o contexto em que o leitor está inserido. 3 – Transmissão de conhecimentos: a literatura também é fonte de conhecimento e desperta o raciocínio à medida que faz o leitor refletir sobre os valores que a sociedade preserva. 4 – Objeto de linguagem: a capacidade de relacionar forma e conteúdo, trazendo a linguagem literária não somente como instrumento de comunicação e transmissão de conhecimentos. 5 – Capacidade de comparação de variados gêneros textuais literários ou não: o intuito é comparar para envolver o aluno, tornar as aulas mais atraentes. Aulas em que o foco seja o tema e não a fixação de datas, autores ou conceitos. 6 - Por fim, o desenvolvimento da habilidade de escrever e falar através de atividades de leituras. Diante desta visão da literatura como prática social de interação e formação do ser humano, é necessário repensar as práticas pedagógicas e criar metodologias que incentivem a leitura de textos literários e formação de leitores não somente no âmbito escolar. A respeito disso, Regina Zilberman (2005) mostra uma perspectiva atual para o ensino de Literatura nas Licenciaturas, repensando a metodologia do ensino de literatura sob o olhar da temática e não da história ou da forma como defendia Afrânio Coutinho. A autora explica que: O conhecimento de literatura é um processo infinito, não apenas porque o leitor depara-se permanentemente com obras recentes, mas também porque ele busca obras do passado que se atualizam por força da leitura, e igualmente, enfim, porque obras lidas revelam aspectos inusitados a cada retomada. (ZILBERMAN, 2005, p.236).

Diante desse olhar para a leitura como uma força viva que atua permanentemente do ser humano, mudando sua forma de pensar e agir em relação ao mundo, a autora considera importante

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que os textos não sejam qualificados por data, por períodos ou momentos históricos, pois isso atrofia nossa forma de pensar em literatura, tornando as leituras anteriores ultrapassadas. Neste repensar a literatura, a autora propõe às licenciaturas o ensino por meio de temáticas e sem separar as literaturas de língua portuguesa, ou seja, o ensino, segundo ela, deve incluir Literatura Africana, Portuguesa, Brasileira, de modo a valorizar a formação de nossa cultura e tradição, lembrando dos aspectos históricos advindos da colonização, mas sem excluir os outros países de língua portuguesa como a África que teve um processo de colonização parecido com o nosso. Os estudos e propostas oferecidos pela autora, também não distinguem a nacionalidade dos autores, gêneros literários, autores e obras do cânone literário, visto que busca relacionar variados gêneros, épocas, autores, nacionalidades ou regionalidades dentro do tema proposto. Assim, como Zilberman tem proposto, a literatura deve ser vista sob uma nova perspectiva, que contribua para difusão do conhecimento e da reflexão. Malard (1985) confirma a ideia proposta por Zilberman ao dizer: Há de se partir de uma premissa: o melhor caminho para se aprender a Literatura é a leitura. Ler poemas, contos, romances, crônicas, etc., antigos e atuais, de preferência inteiros. Informações sobre escritores, resumos de livros, estudos críticos das obras, adaptações para filmes e novelas de televisão – nada disso substitui a leitura do próprio texto, como matéria da “aprendizagem escolar. (Malard, 1985, p.11 e 12).

O ensino de literatura, então, começa a ser pensado não mais como o ensino da história da literatura e dos autores, e sim como uma ferramenta de aprendizagem através da leitura crítica feita pelo aluno, e essa leitura só ganha espaço se o aluno se tornar um leitor ativo. Para que a formação do leitor se torne real em nossas escolas, é necessário o envolvimento do professor e do aluno na prática de ensino, imbricando ao processo educativo, atividades que envolvam uma metodologia nova que privilegie todas as especificidades pertinentes à literatura e ainda seja criativa a ponto de atrair o aluno. Neste sentido, apresenta-se o próximo capítulo que trará reflexões sobre o uso das tecnologias em sala de aula.

2. TECNOLOGIAS MEDIANDO O ENSINO DE LITERATURA NO BRASIL A prática da leitura, entendida como um ato espontâneo de ler, tem sido uma das metas de muitas escolas e universidades, pois hoje se pensa muito sobre a importância social imbricada neste processo. Resgatar a leitura como hábito entre os jovens, em tempos em que o celular e o computador dominam as atividades em horas vagas, tornou-se um grande desafio aos pais e principalmente à escola. Com base nisso, é importante entender primeiramente, como se forma um leitor? Quem devem ser os envolvidos neste processo de formação de leitores? O que pode ser feito nas escolas para incentivar esse hábito? Como a literatura tem sido introduzida nas aulas de Língua Portuguesa? E como as ferramentas tecnológicas podem contribuir para a formação crítica do leitor? A formação de um leitor, segundo Strogenski e Soares (2011), é um processo que se inicia em casa, quando a criança percebe esse hábito entre seus familiares. Mais tarde, ou para aqueles que não tiveram oportunidade de adquirir esse hábito em casa, entra o papel da escola, como colaboradora na formação do gosto pela leitura. Para que isso aconteça, destaca-se em primeiro momento a importância de ler na escola, as aulas de Língua Portuguesa devem ser instigadoras do ato da leitura, e isso se inicia com o contato com o livro. É importante também que o aluno tenha acesso à diversidade de gêneros oferecidos pela literatura, e o que professor o ajude na compreensão dos textos “Tornar-se um leitor, portanto, é um processo que se inicia normalmente, com os mais variados tipos de literatura. Aos poucos o leitor

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vai se aperfeiçoando, evoluindo, ficando com um gosto mais elaborado” (STROGENSKI E SOARES, 2011, p.4). Para Brito (2003), a garantia da leitura para todas as classes sociais favoreceu a ascensão social e cultural do povo, caracterizando-a por uma prática social “a aprendizagem da leitura assume uma função social, de resgate da cidadania, uma vez que possibilita ao leitor conhecer, refletir e atuar sobre uma dada realidade.” (BRITO, 2003, p.23). Através da leitura todos tem alcance a melhores condições culturais e ampliação de pensamentos e valores que os permitem agir criticamente sobre a sociedade em que vivem. Há também que se considerar a importância da linguagem sobre o homem, que se revela na necessidade de escrita e leitura, frutos da interação com a língua. Os PCNs (1997) reafirmam a postura do homem enquanto agente e construtor de sua identidade através de sua relação com a linguagem. Oferecer ao aluno o contato com o livro seria, então, ampliar sua visão de mundo e oferecer ferramentas para a construção de sua identidade e relação com o mundo através da linguagem. Nesse processo de formação de leitores, é importante que os textos literários saiam das prateleiras das bibliotecas escolares e entrem em contato com o aluno, que dará a ele um significado maior, já que um texto é carregado de significados e expressão cultural, como apontado por Fritzen e Silva (s. d.). Neste contexto, a leitura literária pode ser vista como a expressão cultural de um povo, podendo ser apreciado por esta riqueza. Outro aspecto a considerar é que a reflexão de cada leitor baseia-se em suas experiências vividas, em sua relação com o mundo. Tendo assim, uma visão de literatura como a “possibilidade de ampliar ao infinito as experiências com outros seres humanos, o que nos enriquece sensivelmente” (CORVACHO; PÜSCHEL; SOUTO, 2011, p. 2). Ensinar o aluno a ler textos literários é dar a ele a oportunidade de manter contato diário com esses textos e deixá-lo dar ao texto o sentido que suas próprias experiências o permitem fazer. O professor deve ser um mediador1 do ensino e não, alguém que traz uma interpretação pronta ou única do texto literário. A maneira com que os PCNs têm abordado esse ensino tem sido bastante inovadora, mas as dificuldades que os professores têm encontrado para se desvencilhar destas práticas antiquadas é enorme, um dos fatores é que seu aprendizado de literatura durante a licenciatura, também passou pelo processo: contextualização história, recursos linguísticos, questões relacionadas a datas e a periodização literária. Diante destas dificuldades, e relacionando elas ao fato de os jovens hoje estarem cada vez mais conectados com a internet e seus atrativos, é possível pensar em leitores críticos e atuantes em sua cidadania? Certamente é necessário que muitas mudanças aconteçam e que o professor se torne consciente de que a mudança é um processo que se inicia em sua preparação e metodologia de aulas. Corvacho, Püschel e Souto (2011) afirmam que é necessário desenvolver uma abordagem que procure iluminar os elementos da obra literária que contribuem para que o homem ‘responda melhor à sua vocação de ser humano’, é necessário apreender simultaneamente o alcance artístico e humano do texto literário, é necessário repensar as escolhas dos textos; enfim, são necessárias inúmeras providências. (CORVACHO; PÜSCHEL; SOUTO, 2011, p.12).

É a partir disso que se começa a pensar em novas propostas metodológicas, em uma maneira eficiente de introduzir o aluno ao mundo da literatura. E o uso das ferramentas tecnológicas passa a ser um auxílio promovedor de motivação e envolvimento por parte do aluno durante as aulas. Moran (2000) aborda essa temática, por vezes perturbadora, o autor aborda o uso das tecnologias como um grande avanço para a educação, mas não como ferramenta única de aprendizagem. Ensinar sempre foi e será um grande desafio Moran (2012) considera importante imbricar a tecnologia às práticas de leitura de que o aluno, nativo digital, crie seus próprios conceitos, suas reflexões e tenha também acesso ao conhecimento através dos meios digitais. Nesse processo, o autor denomina o professor como mediador do ensino.

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Sem dúvida as tecnologias nos permitem ampliar o conceito de aula, de espaço e tempo, de comunicação audiovisual, e estabelecer pontes novas entre o presencial e o virtual, entre o estar juntos e estarmos conectados a distância. Mas se ensinar dependesse só de tecnologias já teríamos achado as melhores soluções há muito tempo. (MORAN, 2000, p.12)

Em consonância a essas ideias, Pescador (2010) salienta que a internet e as ferramentas tecnológicas devem ser usadas de forma natural, buscando situações em que o aluno se sinta ativo e construtor da própria aprendizagem. Da mesma forma o professor, precisa demonstrar humildade, reconhecendo que o aluno pode ter conhecimentos maiores a respeito das TICs2 e que ambos aprenderão juntos. Diante das considerações aqui apontadas, evidencia-se a necessidade de trazer as ferramentas tecnológicas para a sala de aula, a fim de auxiliar na motivação do aluno e inseri-lo no mundo da leitura de forma agradável e natural. Pensando nisso, foi selecionado o software HagáQuê como ferramenta de mediação de leitura literária e formação de leitores. As informações sobre o software e contribuições para o ensino de Literatura serão abordadas na próxima seção.

3. CONTRIBUIÇÕES DO SOFTWARE EDUCACIONAL HAGÁQUÊ PARA A FORMAÇÃO DE LEITORES LITERÁRIOS A ferramenta HagáQuê é um programa desenvolvido pela UNICAMP e tem como objetivo facilitar a criação de histórias em quadrinhos, além disso, busca promover as aulas pois trata-se da criação de histórias e do aprendizado das habilidades que envolvem os meios digitais. Segundo informações contidas no Tutorial do HQ o programa: “Foi desenvolvido de modo a facilitar o processo de criação de uma história em quadrinhos por uma criança ainda inexperiente no uso do computador, mas com recursos suficientes para não limitar sua imaginação.”3 O uso deste recurso tecnológico foi escolhido para a criação e o desenvolvimento de aulas criativas, pois é um software que propicia tanto ao aluno quanto ao professor um contato interativo e lúdico durante as atividades de produção textual. Pensando que a habilidade de escrita deve ser incentivada e de forma que o aluno sinta-se não somente cobrado, mas um verdadeiro autor, que possua um objetivo e um público a destinar seu texto, propõe-se a criação de histórias em quadrinhos por meio de um programa especializado. Essa criação de HQs está, nessa proposta, sempre baseada na leitura de um texto literário. Como o programa HagáQuê disponibiliza ao criador da história opções de cenário e de balões de fala, pensamento, narrador, entre outros, é possível explorar o literário a partir de um processo de adaptação que incentiva a interação do aluno com o texto. Mas como isso pode ser realizado? Eis algumas possibilidades que parte sempre da leitura integral de um texto literário selecionado conforme interesse dos alunos e grau de complexidade relacionado ao nível da turma : a) criar uma HQ, propondo um final diferente para o texto literário lido e discutido; b) construir uma HQ para contar a história lida a partir de um foco, ponto de vista distinto ao do texto original; c) usar a HQ para atualizar o contexto da história lida, aproximando-a dos dias atuais ou até mesmo do contexto do aluno. Depois de pronta, a história pode ser salva, aberta, impressa e até mesmo publicada na internet e todas essas ações podem ser feitas neste mesmo Menu. Durante o processo de criação das histórias, o aluno pode editar imagens, recorrer a alguns recursos como aumentar e diminuir o tamanho das figuras, girar, mudar a posição da foto, transferir a imagens para trás do balão de fala ou

TICs é um termo usado para definir As Tecnologias de Informação e Comunicação que, por sua vez, retoma a ideia de um conjunto de recursos tecnológicos usados para a ampliação da comunicação e interação social. 3 Informações retiradas do Tutorial do HagáQuê, que está disponível no site . 2

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de outras imagens, enfim, fazer as adaptações necessárias para a criação do texto. É um ótimo meio para usar a criatividade e despertar o interesse pela aprendizagem eletrônica e discursiva. Sobre sua capacidade auxiliadora de práticas leitoras, partindo de uma atividade lúdica, Bim (2001) apud Zancanaro (2011) explica que o Hagáquê parte de uma atividade lúdica para a transmissão de conhecimentos, auxiliando no desenvolvimento cognitivo, afetivo e psicomotor das crianças. Ou seja, o software não se utiliza apenas da criatividade da criança, mas através dela produz novos conhecimentos, fazendo relações com a área afetiva, psicológica e motora. Constata-se, através dessas proposições, que a atividade de escrita exige mais conhecimentos da criança do que a leitura apenas, porém não se pode deixar de notar que ambos são atos dependentes um do outro e que ambos devem ser exercitados. Diante disso, encontra-se no HagáQuê uma ferramenta que auxilia essas habilidades, dando suporte para o desenvolvimento da criatividade do autor, que, em contato com o texto literário, pode usar seus conhecimentos, sua cultura e suas vivências para criar novas histórias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo revela uma grande deficiência no ensino de Literatura no Brasil, e principalmente uma necessidade de resgatar o valor do texto literário em sala de aula, dando as aulas de Literatura uma significação maior. E fazendo valer a função social da Literatura, defendida por Candido (2002) e Malard (1985). Destaca-se como importante que as aulas de Literatura deem prioridade para o texto literário, as reflexões que o texto permite fazer, relacionando ficção com a realidade a fim de aproximar o leitor ao texto e fazê-lo posicionar-se criticamente aos problemas sociais que o cerca. Assim, as aulas de Literatura devem organizar-se partindo de uma temática e afastando-se do ensino guiado pela memorização de datas, conceitos e ensino de períodos literários, segundo Zilberman (2005). É importante que o ensino de Literatura evolua juntamente com os avanços trazidos pela tecnologia, podendo utilizar-se das TICs para despertar o interesse no aluno, tornando o momento de aprendizagem mais próximo à realidade do aluno. Isso, para que o aprendizado torne-se natural e promova o aluno como construtor da própria aprendizagem, conforme explica Pescador (2010). Essa forma de ensino possibilita também o conceito de mediação do ensino, defendido por Moran (2012). Sobre a utilização da ferramenta HagáQuê, conclui-se que o software pode ser proveitoso para a construção de textos, à medida que promove a interatividade, mediada pelo professor, o que resgata a ideia de diversidade nas aulas e proporciona o contato com as tecnologias digitais, tão comum aos alunos, nativos digitais em sua maioria. Também auxilia na compreensão dos textos, possibilitando ao aluno relacionar a temática estudada com a realidade, desenvolvendo assim, sua a criticidade frente a esse tema de ordem social.

REFERÊNCIAS BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: 1997. Disponível em: BRITO, Eliana Vianna. Estratégias de Leitura: A formação do leitor no Ensino Fundamental. In: BRITO, Eliana Vianna (org.). PCNs de Língua Portuguesa: a prática em sala de aula. São Paulo: Arte e Ciência, 2003. CANDIDO, Antonio. Textos de Intervenção. Seleção, apresentações e notas de Vinicius Dantas. São Paulo; Duas Cidades: Ed.34, 2002.

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CORVACHO, Suely. PÜSCHEL, Raul de Souza. SOUTO, Carla C. F. A literatura no Ensino Médio: o caso brasileiro. Revista Interacções, v.7, n.19, 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2014. FAILLA, Zoara (Org). Retratos da Leitura no Brasil 3. 2012. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2014. FRITZEN, Celdon. SILVA, Danielle Amanda R. da. Livro didático e Ensino de Literatura: O que dizem as pesquisas dos programas de pós-graduação? Anais da Associação de Leitura do Brasil. (S/D). Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2014. LEITE, Lígia Chiappini Moraes. Invasão da catedral: literatura e ensino em debate. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. MALARD, Letícia. Ensino de Literatura no 2º grau: problemas e perspectivas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. MORAN. Ensino e Aprendizagem Inovadores com Tecnologias Audiovisuais e Telemáticas. In: MORAN, José Manuel; MASETTO, Marcos T. BEHRENS, Marilda Aparecida. Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas, SP: Papirus, 2000. p.11- 66. ______. José Manuel. A educação que desejamos: novos desafios e como chegar lá. Campinas, São Paulo: Papirus, 2012. PESCADOR, Cristina M. Tecnologias digitais e ações de aprendizagem dos nativos digitais. Anais da V CINFE – Congresso Internacional de Filosofia e Educação. Caxias do Sul: Maio, 2010. Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2014. STROGENSKI, Maria J. F. SOARES, Susane. Ensino de Literatura: Uma proposta por Unidade Temática. Revista Ao Pé da Letra, Curitiba, v.13.2, 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 dez. 2014. NTM PASSO FUNDO. Tutorial do HagáQuê. Disponível em: . Acesso em 15 out. 2014>. ZANCANARO, Edicarla Venturolli. Avaliação do Software Hagáquê, Auxiliando no Processo Ensino-Aprendizagem da Língua Portuguesa. Monografia (Universidade Aberta do Brasil). Cuiabá/MT, 2011. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2014. ZILBERMAN. A Universidade Brasileira e o Ensino das Literaturas de Língua Portuguesa. In: BORDINI, Maria da Glória. REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. Crítica do tempo presente: estudo, difusão e ensino de literaturas de língua portuguesa. Porto Alegre: Associação Internacional de Lusitanas: Instituto Estadual do Livro, 2005. p.232-244.

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LEITORES EM CENA: DA MULTIMODALIDADE À LEITURA DE ROMANCE Emili Coimbra de Souza* (UPF/UNIUV) Luciana Maria Crestani* (UPF)

INTRODUÇÃO Novos tempos, novas mentes, novas culturas e diante de novas tecnologias, é inevitável que todos estes elementos promovam novas formas de construir e adquirir conhecimento. O aparecimento e a difusão de recursos tecnológicos digitais na contemporaneidade trouxeram alterações significativas também na relação leitor e obra literária, já que esse é um nativo digital usuário de uma linguagem multimodal. Este leitor contemporâneo, usuário de uma linguagem multimodal, nos estudos de Santaella (2004) denominado de imersivo, caracteriza-se como uma pessoa que navega por nós e nexos, descobrindo através da tela do computador e do clique do mouse, uma linguagem hipermidiática, linguagem esta, que o próprio leitor constrói com outros indivíduos conectados e com outras formas de linguagem midiática. Este leitor pode ler em qualquer hora e em qualquer lugar, os textos incrementados de sons e imagens, pois possui ferramentas que, com o desenvolvimento da tecnologia e da sociedade, surgiram para facilitar a vida do homem e possibilitar novas descobertas, fazendo leituras não lineares, que permitem maiores possibilidades de adquirir conhecimentos múltiplos. As novas modalidades de acesso ao conhecimento, como a leitura, possíveis de serem realizadas no meio virtual são definidas como multimodalidade que, de acordo com Dionísio (2006) refere-se às diferentes formas de representação utilizadas na construção linguística de uma mensagem - palavras, imagens, cores, formatos, disposição da grafia, gestos, olhares etc. Nesse sentido, a multimodalidade tem a possibilidade de unir, portanto, a escrita, a fala e a imagem ao mesmo tempo para gerar sentido. Partindo da premissa de que a formação leitora também está apoiada na multimodalidade é que se pauta o objetivo deste estudo – o papel exercido pelo booktrailer - nova ferramenta de divulgação literária e que incorporou elementos do universo cinematográfico ao universo literário - e a análise da cenografia e do ethos discursivo, que para Maingueneau (2008), implica na capacidade de persuasão do discurso não decorrente somente do que é dito, mas também depende também da imagem do locutor, da impressão que ele produz em seu auditório, com a finalidade de obter sua adesão a leitura da obra, como uma das maneiras de incentivo a prática leitora do leitor imersivo. Desta forma, este estudo realizado pauta-se na pesquisa bibliográfica para embasamento teórico das abordagens sobre multimodalidade, leitor imersivo, cenografia e ethos discursivo e, ainda, descritiva-qualitativa para a análise do corpus – booktralier do romance Dias Perfeitos, do escritor Raphael Montes, disponibilizado no site www.ppglnarede.blogspot.com.br.

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Mestranda – UPF - Letras – Linha de Pesquisa – Leitura e Formação do Leitor. Doutora em Letras - UPF.

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1. MULTIMODALIDADE: RESSIGNIFICAÇÃO DO HÁBITO DE LER DO LEITOR IMERSIVO Nos últimos anos, nota-se o crescente número de estudos referentes à prática leitora como atividade social, privilegiando o contato do leitor com a multiplicidade de recursos disponibilizados no meio virtual. Dionísio (2006, p.160) chama a atenção para o fato de que a sociedade está cada vez “mais visual”, mostrando que os textos multimodais “[...] são textos especialmente construídos que revelam as nossas relações com a sociedade e com o que a sociedade representa.” Em virtude disso, o conceito de multimodalidade torna-se imprescindível para analisar a inter-relação entre texto escrito e outros elementos gráficos, além de possibilitar a compreensão dos sentidos sociais construídos por esses textos, bem como a sua importância nas práticas de multiletramento. De acordo com Kress e Van Leeween (2006) apud Sousa (2015), a multimodalidade é uma característica de todos os gêneros textuais, já que congregam, no mínimo, dois modos de representação, como imagens e palavras e palavras e tipografias, ou seja, que focaliza a inter-relação de diferentes modos de significação, que incluem a linguístico, o visual, o gestual. Um texto multimodal é aquele que admite mais de um modo de representação como a oralidade, a escrita, a imagem estática ou em movimento, o som, dentre outros. Assim, para os autores acima citados, a noção de multimodalidade presta auxílio na compreensão de todos os modos de representação contidos no texto, podendo ser observada como “Visual structures realize meanings as linguistic structures do also and thereby point to diferente interpretations of experience and diferente forms of social interaction”¹ (KRESS; VAN LEEUWEN, 1996 apud SOUSA, et al, 2015, p. 6-7)1 A partir da definição de multimodalidade, as possibilidades e as necessidades de letramentos dos sujeitos se ampliam, pois a leitura não se restringe mais ao reconhecimento da linguagem verbal, e assim surge à demanda por novas habilidades que permitam compreender os novos modos de construção de significados dos quais as textualidades contemporâneas se valem, dando origem a novos sistemas semióticos. A multimodalidade constitui-se, portanto, das múltiplas linguagens que se utiliza em práticas sociais interativas. As produções situadas no contexto do ambiente digital exigem uma abordagem multimodal, e, consequentemente, exige dos seus leitores multiletramentos, ou seja, condições para compreender a convergência entre as linguagens e o suporte tecnológico como meio de novas práticas discursivas. Conforme Rojo ( 2008, p. 584) [...] já não basta mais a leitura do texto verbal escrito – é preciso colocá-lo em relação com um conjunto de signos de outras modalidades de linguagem (imagem estática, imagem em movimento, fala, música) que o cercam, ou intercalam ou impregnam [...]

Diante deste contexto, pode-se considerar que o multiletramento possibilita ao leitor/navegador a compreensão dos novos modos de representação da linguagem verbal e não verbal que se materializam em diferentes gêneros digitais veiculados na Internet, domínio discursivo em crescente evolução. Este leitor que surge com o advento tecnológico, que Santaella (2004, p.11) define como leitor imersivo, que navega “[...] entre nós e conexões alineares, pelas arquiteturas líquidas dos espaços virtuais [...]”, apresenta um perfil que precisa interagir com competência frente às novas produções, estabelecendo relações entre os meios semióticos e linguagens distintas. É capaz de conviver com diferentes signos, além da velocidade e da intensidade que as imagens circulam nesse universo. Possui novas formas de recepção e cognição que os atuais suportes eletrônicos e estruturas híbridas e alineares do texto escrito estão fazendo emergir.

“Estruturas visuais produzem significados assim como as estruturas linguísticas e, assim, apontam para diferentes interpretações de experiências e deferentes formas de interação social”. (KRESS; VAN LEEUWEN, 1992, p.2, tradução nossa).

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O leitor virtual ou imersivo, conforme Santaella (2004), surge da multiplicidade de imagens e de ambientes virtuais de comunicação imediata. Esse novo leitor nasce inserido dentro dos grandes centros urbanos e é acostumado desde cedo com a linguagem efêmera e provido de uma sensibilidade perceptiva-cognitiva quase que instantânea. Este leitor, para Santaella (2004), e de acordo com essas características, é inserido no ambiente hipermídia, colocando em ação mecanismos ou habilidades de leitura muito distintas das empregadas pelo leitor do texto impresso. Por outro lado, elas se distinguem, ainda, daquelas que são empregadas pelo leitor de imagens ou espectador de cinema ou televisão. Essas habilidades de leitura multimídia acentuam-se mais ainda, quando a hipermídia migra do suporte CR-Rom para circular nas potencialidades infinitas do ciberespaço. Esse tipo de leitor, segundo Santaella (2004, p.33) [...] é obrigatoriamente mais livre na medida em que, sem a liberdade de escolha entre nexos e sem a iniciativa de busca de direções e rotas, a leitura imersiva não se realiza. [...] [Trata-se de] um leitor em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multisequencial e labiríntico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens documentação, músicas, vídeo etc.

Sendo este o leitor característico do século XXI, diante de inúmeros atrativos da era tecnológica, percebe-se a necessidade de conquistá-lo para a leitura de obras literárias impressas. Neste contexto, uma das formas de chamar sua atenção é fazer-se uso de suportes multimodais como, por exemplo, booktrailers, já que os chamados “nativos digitais”, costumam se sentir facilmente atraídos por produções que se apropriem das novas tecnologias. A expressão booktrailer foi utilizada, pela primeira vez, no ano de “[...] 2002 por Sheila Clover – CEO da empresa Circle of Seven Produtions, especializada em publicidade literária.” (GOMES et al, 2012, p.08) O booktrailer assemelha-se, em parte, ao trailer cinematográfico pelo seu caráter publicitário e a revelação sintética do conteúdo da obra original, deixando, muitas vezes, o suspense preponderar, despertando a curiosidade leitora. O novo gênero configura-se como uma das mídias que tem mostrado resultado significativo para a divulgação de livros e sedução de leitores, empregando para isso inúmeros recursos verbais e não verbais, sonoros e visuais. No caso específico das booktrailers, o que se observa é que eles estão completamente inseridos no que Lucia Santaella chama de “era da imagem”. Dentro do cenário da era da imagem “[...] a escrita continuou seu curso, mas perdeu certamente a sua dominância sobre a cultura, passando a conviver com a imagem [...]” (SANTAELLA, 2007, p. 289) Assim, retomando as considerações anteriores realizadas quanto à multimodalidade, ao perfil do leitor imersivo e suporte midiático, pode-se afirmar que o novo leitor, de posse de sua capacidade imaginativa e da possibilidade de apropriar-se e reconstruir o significado dos textos, sempre esteve e estará percorrendo páginas de leitura multimodais que contribuirão para sua formação crítico-argumentativa.

2. O ETHOS E A CENOGRAFIA NA FORMAÇÃO DO LEITOR IMERSIVO LITERÁRIO Atualmente, a leitura é vista como um processo de construção, de decodificação de signos, de intelecção e compreensão do mundo, que faz exigências à emoção e ao cérebro, envolvendo elementos da linguagem e experiências de vida adquiridas ou observadas pelo leitor, conforme Freire (2008, p.56) quando se refere que todo indivíduo “[...] aprendeste a ler na prática da leitura”. A aquisição desta prática leitora, hoje, é exercida por um leitor, denominado por Santaella (2004) como imersivo, aquele receptor que imerge no ciberespaço, que está dentro das interfaces da interatividade, de um espaço labiríntico, do qual ninguém pode ter uma visão fixa e definida, que está em contato diário com diversos tipos de discurso, entre eles o literário. Este pode ser apresen-

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tado ao leitor na forma de linguagem verbal ou não-verbal, que é o caso do booktrailer do Romance Dias Perfeitos, de Rafael Montes, disponível no blog Leitura e (re)escrita na rede. Devido a esta interatividade do qual o leitor pode e faz uso, há o consenso de se levar em conta, na leitura e interpretação da obra literária, as situações enunciativas, a forma de comunicação que o engendra no mundo, evocado pela linguagem verbal e não-verbal. Neste sentido, o foco recairá nas reflexões de Maingueneau, referentes à Cenografia e Ethos Discursivo, elementos indissociáveis que constroem e legitimam a enunciação, como auxílio na formação deste leitor contemporâneo, denominado de imersivo. Segundo Maingueneau (2001, p.87-88) a cenografia é [...] ao mesmo tempo fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, estabelecendo que essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como convém.

É a própria cenografia que legitima a sua existência como enunciado. É na sua progressão que o enunciando vai se legitimando na medida em que aciona um dispositivo de fala e, retroativamente, se valida. Em toda cena de enunciação, os enunciados recorrem ao que Maingueneau (2008) chama de cena validada, o que dá status de existência a eles. Para o autor, as cenografias apoiam-se em cenas validadas, pois já estão instaladas na memória coletiva. São cenas estereotipadas com as quais os leitores têm contato e que não precisam ser explicadas. Dessa forma, a cenografia é, ao mesmo tempo, origem e produto do discurso. Isso porque [...] ela legitima um enunciado que, retroativamente, deve legitimá-la e fazer com que essa cenografia da qual se origina a palavra seja precisamente a cenografia requerida para contar uma história, para denunciar uma injustiça, etc. Quanto mais o co-enunciador avança no texto, mais ele deve se persuadir de que é aquela cenografia, e nenhuma outra, que corresponde ao mundo configurado pelo discurso. (MAINGUENEAU, 2006, p.114)

Mas esse universo de sentido dado pelo discurso impõe-se não só pela cenografia, segundo o autor, mas a partir da articulação desta com uma cena englobante e uma cena genérica. A cena englobante corresponde ao tipo de discurso a que o texto pertence, neste caso o discurso literário. No entanto, o leitor não se depara com a cena englobante, mas com a cena genérica, isto é, com gêneros de discursos particulares, aqueles que se relacionam às esferas nas quais os textos circulam e são produzidos, ou seja, o suporte booktrailer, do romance policial Dias Perfeitos, suscitando o desejo de leitura da obra, pelo leitor imersivo. E, finalmente, ­a cenografia, não imposta pelo gênero, mas construída pelo discurso. Para Maingueneau (2008, p.51) “[...] o discurso implica um enunciador e um co-enunciador, um lugar e um momento de enunciação que valida à própria instância que permite sua existência [...]”, ou seja, a cenografia é o primeiro elemento com o qual se defronta o interlocutor, se considerar que é a cena instituída por cada enunciado. Maingueneau (2005) afirma que todo discurso, seja ele oral ou escrito, possui uma vocalidade específica que o relaciona a uma fonte enunciativa por meio de um tom que dá indícios de quem disse, o que implica uma determinação do corpo do enunciador. Nesse sentido, “[...] a leitura faz emergir uma origem enunciativa, uma instância subjetiva encarnada que exerce o papel do fiador.” (MAINGUENEAU, 2005, p.72) O discurso não pode ser considerado um quadro destinado à contemplação, ao contrário, toda enunciação é altamente interativa e altamente dirigida a um co-enunciador, que é necessário mobilizar para que seja envolvido em um processo de adesão a certo universo de sentido. O leitor constrói a figura do fiador com indícios discursivos diversos, e este (o fiador) se vê investido de um caráter e uma corporalidade que se apoiam sobre “[...] um conjunto difuso de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos sobre os quais a enunciação se apoia

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e, por sua vez, contribui para reforçar ou transformar[...]” (MAINGUENEAU, 2005, p. 72). Fala-se em incorporação para designar o modo pelo qual o leitor assimila o ethos de um discurso. O conceito de ethos advém da Retórica de Aristóteles e foi reformulado por Maingueneau para a AD. Para Maingueneau (2008, p.17) – o ethos é uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma “imagem” do locutor e exterior a sua fala; - o ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o autor; - é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura sócio-histórica.

Dessa forma, entende-se que o ethos não tem como desvencilhar-se da enunciação, assim como também não tem como escapar de uma antecipação por parte do leitor, que faz uma representação do enunciador antes mesmo que ele enuncie; isso irá implicar que se distinga um ethos pré-discursivo de um ethos discursivo. O ethos pré-discursivo, o ethos discursivo (ethos mostrado), mas também os fragmentos do texto em que o enunciador evoca a própria enunciação (ethos dito), diretamente (‘é um amigo que vos fala’) ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou alusões a outras cenas de fala. [...] O ethos efetivo, aquele que é construído por um dado destinatário, resulta da interação dessas diversas instâncias, cujo peso respectivo varia de acordo com os gêneros do discurso (MAINGUENEAU, 2006, p. 270).

Assim, a cenografia, juntamente com o ethos que dela participa, implica um processo de enlaçamento, pois a fala é carregada de um certo ethos que se valida progressivamente por meio da própria enunciação e que será analisada no booktrailer, já que o poder de persuasão de um discurso consiste, em parte, em levar o leitor a se identificar com a movimentação de um corpo investido de valores sociais. Dessa maneira, pode-se dizer que um texto configura-se por meio de “[...] rastros de um discurso em que a fala é encenada.” (MAINGUENEAU, 2006, p.250)

3. ANÁLISE DO CORPUS - BOOKTRAILER DO ROMANCE DIAS PERFEITOS DO ESCRITOR RAPHAEL MONTES Com a entrada em cena das NTICs (Novas Tecnologias de Informação e Comunicação), a partir das duas últimas décadas do século passado, tem-se à disposição novas mídias como meio audiovisual para a divulgação de publicações literárias. São os chamados booktrailers. O booktrailer, como o próprio nome indica, é uma ideia que surgiu a partir do cinema. O trailer nada mais é do que uma edição bem curta das partes interessantes (ou impactantes) de um filme, que é usado como material promocional e transmitido antes da estreia no cinema. O conceito do booktrailer é o mesmo, porém, no lugar de cenas de um filme, são selecionadas frases ou recriação de cenas de capítulos do livro que atraem a atenção do leitor. Ao fundo, como nos trailers do cinema, trilha sonora. A se considerar o crescimento desta nova mídia híbrida e pós-moderna, pode-se dizer que muitos booktrailers têm conseguido atingir seu objetivo, levando jovens nativos digitais de volta à literatura, como é o caso do booktrailer do romance Dias Perfeitos, do escritor Raphael Montes, corpus deste estudo proposto, postado no site www.ppglnarede.blogspot.com.br. Como a leitura de um texto percorre três cenas - cena englobante, cena genérica e cenografia é necessário dar início a análise do booktrailer pela englobante, que corresponde ao tipo de discurso a que o texto, neste caso, multimodal, pertence, no caso o discurso literário, disponibilizado no meio virtual, com objetivo de despertar no leitor o desejo de leitura da obra literária. Quanto à cena gené-

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rica, trata-se do romance, este, policial, que se apresenta no booktrailer pelo ar de suspense deixado, ao leitor, no final, quando Raphael Montes se depara com a mala rosa na porta, algo que exige uma “investigação” por parte do leitor, mediante a leitura da obra, para entender o que representa na narrativa literária produzida pelo autor. Quanto à cenografia, esta não é imposta pelo tipo ou pelo gênero, mas construída pelo texto, nesta análise, multimodal. É o espaço no qual os enunciados ganham sentido para o leitor e se constrói à medida que se enuncia. Está relacionada à forma como se encontra organizada e às escolhas enunciativas eleitas para a apresentação do discurso literário com o objetivo de convencer o leitor da importância da prática leitora da obra. A cenografia está também relacionada ao tom do texto e à construção do ethos do enunciador, necessitando, assim, cenografia e ethos discursivo, estarem em perfeita harmonia para que o efeito de incorporação (pelo leitor) do discurso enunciado possa ser produzido. Na apresentação do booktrailer deste romance percebe-se que mistura cenografia - um local escuro, um tanto quanto sombrio, semelhante a uma sala, espaço em que se encontra o escritor Raphael Montes, diante de seu notbook, digitando, demonstrando muita agilidade e fluidez em suas ideias -, com uma trilha sonora, ao fundo, som de saxofone, transmitindo ao leitor a impressão de tranquilidade na atividade desenvolvida por Raphael e que é interrompida com o soar do bater na porta do apartamento. Raphael pausa sua digitação e a música. Direciona sua atenção as batidas. Ouve-se um som de mistério. Passos. O escritor se aproxima da porta, direciona seu olhar para o corredor, através do olho mágico, procurando ver quem bate. Porém nada vê. Resolve abri-la e depara-se com uma mala grande, de viagem, de cor rosa, diante de si. Na sequência da apresentação do booktrailer aparece a capa de sua obra Dias Perfeitos com a seguinte referência à esquerda: “Uma historia de amor, sequestro e obsessão.” Encerra-se a apresentação com a imagem da mala rosa, tomando conta de toda tela. Da cenografia apresentada aqui, emerge, portanto, um tom sombrio, de mistério e suspense, já que o processo de leitura de um texto constrói uma voz que se revela na enunciação, que a sustenta e a legitima, e não se restringe aos enunciados orais. O enunciado oral, porém, também ajuda a construir tal atmosfera, uma vez que os temas apontados como constituintes da história – “amor, sequestro e obsessão” – reiteram sensações produzidas pelos elementos apresentados no vídeo. Refere-se aqui, portanto, a noção de ethos discursivo, de Maingueneau, que é um modo do leitor dar-se conta dessa voz que subjaz a textos escritos. Há um laço indissociável entre o que é dito e como é dito. Neste caso, a maneira como o ethos discursivo apresenta-se neste booktrailer, demonstra a forma como o enunciador constrói uma imagem de si (ethos discursivo) e revela-se no interior do discurso. A noção de ethos discursivo observada neste corpus está relacionada com os mecanismos de interação não-verbal, materializados no discurso, com a ativação de estereótipos - ethos prévio -, identificados nas atitudes de preocupação, curiosidade e suspense visualizadas nas atitudes de Raphael diante do cenário que se apresenta a sua frente e descritas anteriormente quando alguém bate a sua porta e deixa lá uma mala rosa, despertando no leitor a curiosidade de saber o real significado desta ação e por quem foi abandonada. No que se refere ao uso do suporte midiático booktrailer como o despertar para a leitura, pode-se dizer, então, que este remete ao ethos mostrado – discursivo – observado nas ações do escritor Raphael Montes, no seu olhar de surpresa ao ouvir alguém bater a porta, a forma como se desloca até esta, com ar de suspense, de mistério, apreensivo com o que espera encontrar e que, por sua vez, remete a um modo de ser, suscitando a curiosidade e a adesão do leitor à leitura da obra. Neste sentido, é possível associá-lo à colocação de Maingueneau (2006) quando compara o ethos a uma arte de viver, a uma maneira global de agir. Portanto, o ethos do leitor será construído a partir da sua

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interação com o co-enunciador, personagem do booktrailer e responsável, a partir de sua representação, pela sedução leitora. A apresentação do romance Dias Perfeitos, feita neste booktrailer, uma forma de exercício de leitura multimídia, de duração breve e recriada sob o ponto de vista do autor, envolvendo o clímax da obra, é impactante e conduz o leitor imersivo – aquele que acessa uma rede de informações em diferentes linguagens e suportes - a realizá-la na íntegra, para ter conhecimento dos fatos que levam a existência da mala rosa e o desfecho da história. Se engana o leitor que aguarda, no desenvolvimento da leitura deste romance, após a visualização do booktrailer, cursar um caminho sereno e previsível. Incontáveis esquinas, desvios e aquedutos o esperam. É exatamente esta falta de previsibilidade na sequência da leitura que confere um caráter especial a esta obra e a torna um rico manancial na formação do ethos do leitor.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta, neste artigo, foi refletir e analisar o booktrailer do Romance Dias Perfeitos, do escritor Raphael Montes, um dos novos suportes significativos para a formação do leitor imersivo pelo papel que desempenha como forma de incentivo a leitura de obras literárias, uma das diferentes multimodalidades da linguagem disponível no meio virtual, e sua interface com a função da cenografia neste contexto de formação leitora e como se dá a construção do ethos discursivo neste espaço multimodal. As seções teóricas se voltaram a reflexões sobre questões concernentes a multimodalidade, a novos suportes de leitura, mais especificamente o booktrailer, que possibilita ao leitor imersivo a interação, cada vez mais ampla, com as novas tecnologias, com o intuito de demonstrar novas formas de despertar o desejo de leitura de obras literárias impressas. Para tanto, contou-se com as contribuições de Dionísio (2006), Kress e van Leeuwen (1996;2006), Rojo (2008), Santaella (2004;2007) e Gomes (2012). Também se fez considerações referentes ao papel desempenhado pela Cenografia e pelo Ethos Discursivo na formação do leitor contemporâneo envolto no contexto das multimodalidades, partindo dos estudos de Maingueneau (2001; 2005; 2006; 2008). Baseado nos pressupostos teóricos acima citados, realizou-se a análise do booktrailer do Romance Dias Perfeitos, cujos resultados demonstraram que é possível e de suma importância a relação entre a teoria enunciativo-discursiva e a narrativa literária possibilitada pelos suportes multimodais no despertar do interesse de leitura de obras impressas no leitor contemporâneo, pois esta interatividade permite mudanças na forma de leitura e percepção do conteúdo literário. Acredita-se que as ferramentas multimodais disponíveis aos novos leitores, em especial o booktrailer, contribuem para uma aproximação desses e do livro, pois a exploração dos expedientes narrativos neste suporte envolvem aspectos intelectual, cultural e emocional do leitor imersivo, dotado de novas habilidades, que busca nestes “novos meios”, caminhos ou respostas para suas constantes interrogações concernentes a sua formação enquanto leitor. Portanto, este recurso multimodal, de grande valia na formação do leitor imersivo, deve ser melhor explorado nos ambientes educacionais, com a finalidade de resgatar o gosto e o hábito pela leitura literária, prática que ainda ocorre, na maioria das vezes, nos moldes tradicionais.

REFERÊNCIAS DIONÍSIO, A.P. Gêneros multimodais na atividade oral e escrita. In: GAYDECZKA, B.; SIEBENEICHER, K. (Orgs.) Gêneros Textuais: reflexões e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, p.131-144, 2006. FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 31 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

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GOMES, C. et al. A publicidade audiovisual literária como incentivo à leitura infanto-juvenil. In: Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste. 14, 2012. Recife. Anais eletrônicos... São Paulo: Intercom, 2012. Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/regionais/nordeste2012/resumos/R32-1618-1. pdf Acesso em: 02 set. 2015. MAINGUENEAU. D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001. __________________. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, R. (Org.). Imagem de si no discurso: a construção do ethos. 1.ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 65-92. __________________. Discurso Literário. São Paulo: Contexto, 2006. __________________. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (Orgs). Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008, p. 11-29. ROJO. R. O letramento escolar e os textos da divulgação científica – a apropriação dos gêneros de discurso na escola. Linguagens em (Dis)curso. V.8, n.3, p.581-612, 2008. SANTAELLA, L. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. ______________. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo : Paulus, 2007. SOUSA, R. S.; FERRETI-SOARES, V. S.; SILVEIRA, E.L. Multimodalidade e análise linguística: explorando o gênero anúncio publicitário. Pesquisas em Discurso Pedagógico 2015.1. Disponível em: http://www.maxwell. vrac.puc-rio.br/24805/24805.PDF. Acesso em: 02 set. 2015.

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A LEITURA EXPRESSIVA DE TEXTOS LITERÁRIOS EM VOZ ALTA Flavia Susana Krug* (UPF) Tania Mariza Kuchenbecker Rösing** (UPF)

INTRODUÇÃO O ato de ler está presente em nosso cotidiano desde os primeiros instantes de vida que passamos a compreender o mundo em torno de nós e ao identificarmos as primeiras sensações significativas. Vários são os desejos que manifestamos em relação à necessidade de interpretarmos o sentido de tudo que nos cerca. Há, também, a demanda em percebermos o mundo real sob diversos ângulos relacionando-o com a ficção, a qual temos contato por meio da literatura. Nestes casos e em muitos outros, sem percebermos, praticamos a leitura, sapiência elementar de todos os sujeitos. Se não a tivéssemos, certamente, valores e atitudes estariam condicionados tão somente ao adjetivo ‘racional’. Os sujeitos que não agregam experiência de leitura não exercitam o pensamento, o raciocínio lógico e/ou subjetivo, estando condicionados a serem invisíveis perante a sociedade política e cultural. Para desenvolver a habilidade da leitura o sujeito deverá conhecer o alfabeto e praticar o contato com o mundo das palavras, a fim de haver fluência e domínio na compreensão dos textos. Desta forma estará ativo nas práticas sociais letradas. No presente momento, práticas sociais ligadas à leitura, seguem exigentes e contínuas, indispensáveis à formação pessoal e o exercício da cidadania. A leitura é a elaboração do texto realizada de acordo com o uso das faculdades humanas. Não somos capazes de alcançar efeito exclusivo nem no texto, tampouco na conduta do leitor. No entanto, a leitura possui potencial de efeito no processo cognitivo do leitor. Ao lermos os textos literários, consideramos uma das formas de comunicação. Através desta prática de leitura, advém-se intervenções no mundo, nas estruturas sociais dominantes e na literatura existente. A leitura, habilidade que se desenvolveu a partir do surgimento da palavra escrita, apresenta-se como prática social indispensável ao processo evolutivo dos grupos sociais. Sem ela não construiríamos conhecimento. Estaríamos fadados à total ignorância do ser e desconhecimento de saberes, desmerecendo o que a humanidade adquiriu ao longo dos séculos. Não poderíamos, também, renovar nosso conhecimento prévio de mundo, tampouco disseminar ideias consolidadas com o exercício contínuo à interpretação dos fatos da realidade que o homem experimenta.

A LITERATURA: O MAIOR DOS BENS CULTURAIS A literatura, suporte de considerável valia e necessidade para os membros de uma sociedade, por meio dos seus textos literários, proporciona aos membros de uma sociedade, possibilidade de crescimento individual, atuação ativa e crítica perante um determinado grupo de pessoas. Seu universo ficcional possibilita o acesso à cultura de povos e lugares, muitas vezes desconhecidos da grande maioria dos leitores. O leitor ao manter contato com o texto literário, aflora sua sensibilidade, tornar-se compreensivo, reflexivo, crítico, distendido aos novos olhares da condição humana, permitindo-se expandir horizontes, a fim de ampliar e aprimorar seu conhecimento por meio de

Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Letras – Mestrado em Letras. Universidade de Passo Fundo. Graduada em Letras Português – URI Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Secretária Escolar na Escola Marista Nossa Senhora Medianeira. Erechim – RS. ** Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. *

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novas perspectivas. Longe de apresentar-se na forma de apêndice que instrui moral e civicamente, a literatura age de maneira impactante sobre o leitor oferecendo-lhe o bem, humanizando-o no sentido profundo da palavra. Convém, explicar nosso entendimento a respeito da função humanizadora da literatura para com o sujeito. A nosso ver ela confere ao homem traços considerados indispensáveis como o exercício reflexivo, o ganho de saberes, a disponibilidade com seus semelhantes, a autonomia de compreensão dos problemas da vida, o desenvolvimento do senso da beleza, o entendimento da complexidade do mundo e dos seres que nele habitam, além do refinamento humorístico e em especial, a sensibilidade. Perceber a literatura de maneira comum, vista a partir da concepção geral, fundamenta-se tão somente na possível habilidade de lermos apenas para decodificarmos signos linguísticos constantes no texto. Tal definição é assingelada e simplista, pois o ato de ler contempla, sem exceção, a total complexidade na qual o processo de leitura se constrói (CÂNDIDO, 2002, p. 39.) Permeada de inúmeros eus, tus e nós, a literatura não pode ser interpretada de maneira neutra, tampouco permitir equívocos de compreensão acerca daquilo que for lido (BAKHTIN, 2004, p. 32). A literatura apresenta-se, ainda, como o exercício de olhares e vivências individuais, dota o leitor de considerável liberdade para construir sentidos e entendimentos a partir da mensagem do texto. Por si só, entende e interpreta com sublime maestria o que é preservado pelas mais diferentes culturas desta ou de qualquer outra que seja, tornando-se excelência por causar no leitor o interesse pelo diálogo estabelecido entre eles. Assegura-lhes, também, integração, convívio e contato entre leitor e obra, leitura e escrita resultando em novas possibilidades de dizermos o que por vezes, é indizível (CÂNDIDO, 2002, p. 34).

O TEXTO LITERÁRIO. A ESCOLA. O PROFESSOR. Para Cândido (2002, p. 37) a leitura literária provoca no homem a capacidade de se se perceber ser sociável. Na visão do autor, a necessidade ficcional da fantasia pertencente desde a infância até a vida adulta, não é privilégio apenas dos sujeitos cultos. Para ele, o texto literário na qualidade de unidade comunicativa, propala variadas intenções do seu emissor. A seu ver, a leitura do texto literário preocupa-se com diversos aspectos inerentes dentre eles, seus destinatários, contextos de produção, função social e a maneira que ele transmite as ideias desta linguagem. Refere-se, ainda, ao modo discursivo dissemelhante daqueles vários contextos que ultrapassam elaborações linguísticas habituais. Textos literários diferenciam-se das outras maneiras de comunicação, em razão de certificarem ao leitor liberdade ilimitada de assimilação, interpretação e apropriação do seu conteúdo. O texto literário age sutilmente no tocante à personalidade de cada leitor facultando-lhes experimentá-lo diferentemente dos demais gêneros textuais. Por meio da ficção, clareza do conhecimento de mundo real, oportuniza o leitor adaptá-lo à sua realidade inclusive preservando a autonomia de significado, haja vista o leitor precisar apenas conhecer o ABC. O contato com o texto literário permite-lhe ainda, conferir o devido espaço à prática da leitura literária permitindo que ela desempenhe seu importante papel na formação do seu caráter (KLEIMANN, 1989, p. 29). É preciso perceber a linguagem do texto literário força produtora de sentidos, responsável por manter o leitor apto à um determinado tipo de leitura que dialoga entre a palavra escrita e o mundo que o cerca. Por intermédio do texto literário abrem-se diversas virtualidades cognitivas e por sermos seres singulares, teremos completa capacidade de interpretá-las de várias maneiras. A capacidade do texto literário em atender às necessidades do homem em relação à fantasia e ficção, é incalculável. A partir da união intrínseca do homem, fantasia e ficção, individual ou coletivamente, respira-se essência, bom senso e significado, desde o mais simples até o mais sofisticado. O texto literário é influenciado por determinantes consideráveis que provocam reações e sensações variadas no

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leitor, não permitindo que a leitura destes se torne algo estático, mas em constante transformação permanente (CÂNDIDO, 2002, p. 44). Dentre a grande quantidade de gêneros textuais, o texto literário recebe atenção diferenciada por contribuir substancialmente no processo de interação moral, social e cognitiva dos sujeitos. Sem nos pedir nada em troca, aproxima-nos da obra do autor colocando à nossa disposição maneiras de adquirir, aprimorar e ampliar o pensamento por meio de diferentes saberes. O texto literário proporciona a criação de elos entre leitor e autor da obra, responsabilizando-se por estimular vivências singulares entre eles, lhes garantindo o benefício da compreensão, da tolerância e da sensibilidade ao abordar assuntos que afetam a dimensão humana (ZUMTHOR, 2000, p. 51). Propiciar leituras plurais intuindo a valorização simbólica das interpretações, é incumbência natural dos textos literários. As experiências produzidas pelos textos literários, independendo de julgamentos de valores a que se veiculam, ocasionam ao leitor, entender ‘a si’, ‘ao outro’ e ‘aos todos’ no mundo dentro e ao redor do texto. A leitura do texto literário de maneira a desenvolver e unir relevantes habilidades e fruição estética, integrando aspectos cognitivos e afetivos do sujeito, proporcionando-lhe além de conhecimento, prazer e satisfação ao ato de ler (BAKHTIN, 2004, p. 69). Nesse viés, cabe à escola ser o ambiente no qual exercita-se a prática da leitura literária. Enquanto instituição do saber, a escola possui o ambiente mais adequado para as práticas leitoras acontecerem. Instituição formal, tem a incumbência de proporcionar práticas vinculadas à ampliação do universo de cultura dos sujeitos, estando sob a responsabilidade de participar efetivamente da aprendizagem dos variados campos do conhecimento. Tem como uma de suas tarefas, apresentar, também, variadas formas de leitura dos gêneros textuais que estejam na sociedade atual (KLEIMAN, 1989, p. 69). A escola detém importante ofício enquanto instituição de ensino atuante no processo de formação de leitores através das práticas significativas de letramento. Apesar da escola não ser única instância a promover a dinamização de relações entre sujeitos e objetos relativos às culturas, é fundamental seu papel na promoção destas relações. Não nos é permitido observar a leitura literária sem considerarmos as atribuições escolares. Para a grande maioria dos sujeitos ir à escola ainda é visto como obrigação, pior ainda quando nos deparamos com os mesmos sujeitos considerando o ato de ler, sinônimo como aprender a ler e escrever, tão somente. A escola, encarregada de transmitir o conhecimento cultural à atual geração e às futuras, necessita repensar, rever e remodelar seus conceitos sobre aprender a ler e ler para aprender, para que então efetive seu maior objetivo: preparar leitores críticos. Desta forma, cabe ao professor, protagonista da mediação do processo aluno em formação leitora, possibilitar as devidas condições para aproximá-lo da leitura a fim de que convivam de maneira envolvente, prazerosa e posterior espontânea, não por obrigatoriedade. Grande, portanto, é o desafio da escola, instituição que se ocupa de maneira intencional com a transmissão do conhecimento. Para Kleiman (1989, p. 70) a leitura literária é elemento indispensável para conferir ao leitor, consciência da sua integração à resistência humana, responsabilidade intransferível da escola. O leitor não pode eximir-se da leitura literária e destaca-nos que a rigor, ler não se ensina em sala de aula, tão só faz-se. O professor elemento insubstituível, atuante na sala de aula, deverá articular condições que garantam essa experiência criando ‘situações’ que intensifiquem a prática leitora no âmbito escolar. A atividade de leitura dos textos literários proporcionada na escola, envolve, indiscutivelmente, a compreensão e interpretação dos leitores. A figura do professor desempenha importante papel neste cenário como promotor e facilitador desta prática leitora. Dialogar com o aluno a respeito dos mecanismos linguístico-textuais utilizados para a construção do texto literário, encorajando-a experienciar a leitura literária, é incumbência do professor. A prática leitora da leitura literária em sala de aula desvela da obra, confirmando ou refazendo conclusões, aprimorando percepções, enriquecendo o repertório discursivo do aluno. Na grande maioria das vezes os professores promovem práticas leitoras tão breves que as tornam consumo rápido de textos. Perdem, consideravelmente, professor e estudante, pois desperdiçam a possibilidade da troca de experiên-

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cias, discussão a respeito do texto e valorização das interpretações, principalmente as advindas da percepção do aluno. Há no atual cenário escolar maior interesse pela ‘quantidade’ de obras literárias que os alunos leem esquecendo-se da ‘qualidade’ literária oferecida por elas. Para evitar perdas dos que poderiam ser considerados bons leitores, considerando o pensamento de instituições despreocupadas com os termos ‘qualidade’ e ‘formação’, cabe ao professor demonstrar para seus estudantes em sala de aula, que os textos literários além de importantes para a formação humana de cada indivíduo, favorecem o sentido estético da literatura, despertam e promovem a função social individual, além de desenvolver manifestações artísticas. É tarefa do professor repensar sua posição frente às práticas leitoras que promove em suas aulas e ao realizar suas escolhas de leituras literárias, ter sensibilidade suficiente para adequá-las ao real interesse e capacidade interpretativa dos seus estudantes, a fim de garantir as funções básicas e primordiais que somente o gênero literário é capaz de proporcionar (CANDIDO, 2002, p. 55). Tonar-se professor-autor de suas aulas, reconhecendo a necessidade de repensar e desenvolver metodologias inovadoras para as práticas da leitura literária na sala de aula com intenção de proporcionar mais precoce e concretamente o contato dos alunos com o texto literário, será o mesmo que considerar não somente propósitos sociais da leitura como ler para se encantar, para entreter-se ou emocionar-se, como também propósitos didáticos nos quais o aluno aprenderá participando de diversas situações de leitura. Desta forma, o leitor habituar-se-á formalmente com a linguagem literária, ampliará seu vocabulário, familiarizar-se-á com o estilo de escrita dos autores, além de experimentar o contato com as características do gênero (KLEIMAN, 1989, p. 102). É desafiador para o professor auxiliar seus alunos na revisão, elaboração ou reelaboração das interpretações iniciais nas primeiras práticas de leitura literária realizadas em sala de aula. Com o intuito de colaborar com a construção e reconstrução destas interpretações e não apenas apresentar-lhes leituras prontas, pré-determinadas, pré-agendadas, destinadas a cumprir os requisitos do componente curricular é encargo do professor e somente dele, considerar sensivelmente, a interação entre professor, aluno e texto. A partir da interação do aluno com os textos literários, conhecer, analisar, estudar, compreender e entender a relevância da prática da leitura literária em sala de aula, tornar-se-á significativa para o leitor. Ele perceber-se-á valorizado no papel de leitor e o professor transformará a visão tradicional das práticas pedagógicas da maioria das escolas, não mais basearem-se em meras análises e artificiais de importantes textos literários trazidos para a sala de aula (KLEIMAN, 1989, p. 105). Ao mesmo tempo em que o professor tem a incumbência de promover a leitura do texto literário reafirmando ser ela prática social, assegura ao aluno ser sujeito protagonista que busca sentido para a leitura, alicerçando seus desejos no conhecimento de mundo. Nesse instante, o docente passa a ser o responsável direto por tais coordenadas. Esta relação dialógica transpassada pelo texto literário, promoverá o encontro entre professor, aluno e peculiares realidades culturais a fim de tornarem-se elementos consensivos que visam acepção, razão e nexo acerca do seu conteúdo. Para que ocorra, esta atividade o papel do professor na orientação deste relacionamento será imprescindível a fim de promovê-la uma das práticas leitoras.

LETRAMENTO LITERÁRIO Atualmente, saber ler e escrever tornou-se condição insuficiente para as respostas que a sociedade nos obriga dar. Há pouco tempo era necessário apenas assinar o nome em documentos ou redigir bilhetes para que fôssemos considerados alfabetizados. Situação que se apresenta muito diferente hoje em dia. O ato simplório e mecânico da leitura e escrita não nos permite interagir plenamente com os muitos tipos de textos que circulam o nosso meio social. É preciso não somente decodificar sons e letras. É inevitável distinguirmos o significado do uso da leitura e da escrita que

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permeiam variados contextos. Frente às transformações e mudanças, há a necessidade de criação de novas definições para coisas e objetos que nos cercam, uma das características da sociedade contemporânea. Desse modo, surgirão expressões como a palavra ‘letramento’ a qual caracteriza aquele que faz uso da leitura e posterior escrita, respondendo às exigências sociais requeridas na atuais práticas de leitura. O letramento literário oportuniza-nos a necessidade de interagir leitura e escrita dentro e fora da sala de aula. O indivíduo que souber utilizar a leitura e a escrita para finalidade da prática social, estará cumprindo exigências da sociedade contemporânea. O ato de ler incumbiu-se de muito mais além de alfabetizar o sujeito. Tornou-se processo de contato do sujeito com a leitura e a escrita das palavras, a fim de desenvolver habilidades que as envolvam. Desta forma afirma-se que o sujeito adquiriu letramento. É necessário que não se compreenda o letramento como abstração, mas sim a prática da leitura e posteriormente da escrita, manifestada em diferentes situações, diferentes espaços e nas mais variadas atividades do cotidiano das pessoas (KLEIMAN, 1989, p. 110). Compreender por letramento literário o conjunto de práticas sociais que utilizam especialmente leitura e escrita literária, cuja especificidade maior é seu traçado de ficcionalidade, é admitir, também, seu conceito de mobilidade em relação à construção de identidade do sujeito. Por meio dele, produz-se leitores aptos a ampliação dos seus horizontes e expectativas. Na prática do letramento literário além da formação social do sujeito, busca-se a alteridade, a voz do outro. A linguagem humana em sua complexidade, promove o entendimento da pluralidade entre gerações que se modificam a todo momento, mostrando e aplicando metodologias que propiciam o leitor social modelo, entender princípios de interação das línguas (KLEIMAN, 1989, p. 111). Para a autora anteriormente citada, letramento não é o mesmo que alfabetização, termos que ainda são confundidos. Em outras palavras, letramento acarreta em enorme gama de efeitos positivos desejáveis no âmbito cognitivo social. A partir da alfabetização inserimos o sujeito no mundo da escrita. Através da capacidade de desenvolver competências na forma de habilidades, conhecimentos e atitudes que envolvam a língua e a escrita, ou seja o letramento, este mesmo sujeito que ora pouco vivenciava conhecerá e desbravará inúmeras possibilidades dentro da sociedade. Ensinar a ler e escrever em um contexto que possibilite ambos fazerem sentido, é algo que deverá ser cotidiano ao aluno, conferindo ao letramento ser mais do que o ato de alfabetizar. A fim de que ocorra o letramento não será suficiente juntar, formar e reunir palavras com o intuito de elaborar frases. Compreender o que se lê e assimilar diferentes gêneros textuais, será primordial para que estas associações se concretizem e criem um sólido relacionamento entre as palavras escritas e a escrita falada. Um dos diferenciais do letramento é unir escrita e leitura apresentando-se nas diversas atividades do cotidiano da sociedade coletivo, cooperativo, envolvendo vários partícipes através de diferentes saberes, mobilizados de acordo com necessidades, anseios, objetivos, intenções (KLEIMANN, 1989, p. 113).

A LEITURA EM VOZ ALTA Cândido (2002, p. 94) entendeu que a leitura no âmbito da sensibilidade e das sensações, possibilita diálogo com a existência humana e seus valores. Além da experiência cuidadosamente calcada na obra do autor, está permanentemente aberta às (re)criações constantes a partir do momento que alguém nos colocar cara a cara com ela, lendo-a para nós. A partir de então, a leitura ganhará vida e proporcionará ao leitor profundo e sincero diálogo convidando-o a sair do vazio e adentrar no mundo dos significados e sentidos. Nesse viés, é preciso ressaltar que a leitura oral do texto literário realizada em sala de aula pelo professor, trata-se de sinônimo de oralização dos textos verbais e considerável prática leitora. Consoante a isto, percebemos que não lemos textos literários da mesma forma que lemos panfletos de divulgação, bulas de remédios ou receitas culinárias. A leitura ao ser

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realizada com oralidade revela o que somos incentivando o desejo de expressarmos o mundo por nós mesmos, qualidade esta que se sobressai no texto literário. Isso ocorre por que o texto literário nos permite a experiência do conhecimento reelaborado e ao ser percebido, lido e escutado, promove sensações e marcantes vivências no expectador (BAKHTIN, 2004, p. 139). Ao realizarmos a leitura literária com expressividade, percebemos a sensibilidade do outro encontrando a nossa. Quando o outro lê para alguém, possibilita, também, que ele vivencie as sentenças propostas pelo texto, predestinado por exemplo à socialização, sem renúncia de nossa própria identidade. Narrador ou personagem, os outros do texto, nos remetem à nossa própria representação transmitindo-nos que a leitura é ato interativo, compreensivo de mundo, edificando a concepção que ela favorece o prazer e a fruição estética. Para tanto, o texto ao ser proferido de diferentes formas, como sua leitura em voz alta, enfoca elementos importantíssimos como dicção, pronúncia, pontuação, exigindo do receptor, especial atenção à pronúncia das palavras e seus sentidos concomitantemente, ele não as dominando, poderá a partir de então, fazê-lo. Ao ouvirmos a voz do outro recorremos à capacidade de reflexão a qual influencia efetivamente na afetividade emocional de fato. Ao realizarmos a leitura vocal expressiva interiorizamos intensamente as verdades constantes na narrativa literária. Por meio da voz o texto constitui-se de sentido diferenciado aproximando leitor, receptor, obra e autor, desafiando-os a participar dele e abstrair não somente sentido, mas também significação. O encantamento da prática da leitura literária através da voz do outro, com eloquência e vivacidade, facultará ao espectador do texto emoções apreciáveis de vivências, tão somente possíveis na leitura literária (ZUMTHOR, 2000, p. 90). Em relação a leitura com expressividade, importará substancialmente, no exercício e trajeto percorrido pelo leitor a fim de alcançar a compreensão do conteúdo lido pelo professor. Ler o texto literário claramente, motiva a compreensão do sentido do teor da obra, possibilitando importantes ganhos para o leitor, além de ampliar e enriquecer sua relação com o mundo textual. O texto literário ao ser lido desta forma, não se preocupará apenas em promover entendimento do que ele diz. Ultrapassará barreiras e estabelecerá sintonia com seus expectadores, extraindo deles sentido e significado que não poderão ser cristalizados, paralisados ou estabilizados. A leitura que não responder aos anseios do leitor, não terá sentido para ele, terá sido desperdiçada. O significado do ato de ler claramente o texto literário, será pleno a partir do instante que depositarmos essencialidade às palavras lidas por meio de alto e bom som (ZUMTHOR, 2000, 92). Segundo Bakhtin (2004, p. 159) os sentidos das palavras alicerçam-se por serem trazidas à vida através da sonoridade da voz entendendo-a como ‘humana’, possuidora de valor ético, persuasivo, transformador. Para ele, da mesma forma que o sujeito ‘eu’ existe por haver interação com outro ser que lhe acolhe ao lhe dirigir palavras pelo som da sua voz, nos apoderamos imediatamente do ‘tu’ que ele nos oferece. Neste sentido dialógico são pensados termos vocais em alternância do som e a ausência dele. O enunciado expressivo da leitura não envolve apenas o que é dito explicitamente. A significância do ato de ler em voz alta, combinado com pausas e silêncios, torna o processo do enunciado intercâmbio com o discurso, deixando de ser somente palavra ou linguagem, a partir do instante que for enunciado. Desta forma, adquire o significado igual ao recebermos um abraço, realizarmos uma carícia, dançarmos, ouvirmos uma sinfonia ou disponibilizarmos nosso corpo rendendo-nos à uma inebriante música. O conhecimento bakhtiniano nos demonstrou ainda, que a palavra escrita na forma de enunciado concreto por meio da voz humana, rompe barreiras e percorre quaisquer caminhos até encontrar seu ponto de chegada, o leitor. Consoante Bakhtin (2004, p. 163) a palavra se dá de maneira intensa e integradamente entre o ‘eu’ e o ‘outro’, pois ao ser ouvida toca-nos a alma. A leitura em voz alta tem a responsabilidade e o privilégio de incentivar seus ouvintes a gostar de ler, pois o contato com ela através do emissor e sua voz, cria consciência acerca das expressões escritas. Neste caso, oferece aos ouvintes um modelo de leitura oral dinâmica, diferenciada, marcante, incentivando-os a também utilizar a prática sempre que lhes for pertinente. Ouvir, desperta o gosto pela leitura quando somos presenteados com uma apreciável leitura em voz alta, que nos mostra

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quão surpreendente é desfrutar da presença do outro para conosco. Quando lemos em voz alta dirigimos as reações dos ouvintes para uma leitura dramática, irônica, sensível, ativa, marcante, ato que exige responsabilidade, pois nos coloca como porta-vozes do texto (ZUMTHOR, 2000, p. 105). Ler em voz alta o texto literário não é tarefa fácil para o professor. Ele precisa estar atento à forma de lê-lo, treinar e ensaiar tal prática leitora, a fim de manter a atenção dos seus ouvintes. Cuidadosamente, deverá ler o texto não cometendo gagueiras, tropeços, tampouco engolir palavras, além de respeitar a pontuação, demonstrar entonação na voz e não transmiti-la mecanicamente. É fundamental que aquele que ouvir o texto entenda o que está sendo lido, e para que isso ocorra quem o ler, deverá fazê-lo de maneira adequada. Por meio da voz do leitor é que os ouvintes, naquele momento, estarão ‘lendo’ o texto literário. É fundamental que o professor domine aquilo que está lendo para os ouvintes, mostrando envolvimento e gosto por essa prática leitora. É extremamente importante considerar no momento da leitura expressiva do texto literário, o ritmo de leitura, a altura do tom da voz, o timbre da voz, a melodia e/ou entonação. Esta preparação minuciosa até se tornar uma prática leitora para os textos literários, aos poucos transformar-se-á em hábito espontâneo do professor, desde que a respeite e a pratique como realmente deve ser. Isso acontecerá no processo que necessita dedicação, treinamento e aperfeiçoamento. Desta forma, o leitor será convidado a iniciar a prática leitora em voz alta não somente do texto literário, mas dos diversos gêneros que lhe agradarem de maneira prazerosa, não obrigatória (ZUMTHOR, 2000, p. 181).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Formar alunos leitores literários tem se apresentado um dos temas de grande relevância quando se discutem práticas leitoras em sala de aula. Muitas destas práticas que se fortificam nas escolas com base nessa finalidade, fazem parte do cotidiano das salas de aulas. A competência para a condução destas práticas é fundamental para que se compreenda o motivo que leva muitos alunos a não gostarem de ler textos literários, apesar de constantes atividades com este gênero textual. O professor deverá ser leitor literário e assim se posicionar para seus ouvintes demonstrando o prazer que a leitura literária proporciona quando bem expressada. Além disso, a prática leitora em relação ao texto literário lido em voz alta, não deve servir como algo que se encaixe na rotina ou por “sobras de momentos” e “falta de atividades” nas aulas do professor. É indiscutível que o professor valorize o ato de ler o texto literário expressando-o para que seus alunos percebam seu gosto de fazê-lo e a valorização desta prática leitora. Entender, compreender e praticar a leitura em voz alta é valorizar o discurso produzido e os sujeitos envolvidos além de tornar-se acontecimento que integra os horizontes sociais dos sujeitos. A leitura do texto literário realizada pelo professor com clareza e expressividade por meio da voz, demonstra aos seus alunos que seu mediador é modelo de leitor. A partir do exemplo e do envolvimento do professor com a prática leitora do texto literário na sala de aula, considerando a eloquência com que a executa, despertará em seus alunos o desejo de vivenciarem também mais esta aventura. O professor ao proceder a leitura em voz alta dos textos literários, assume o papel do ‘outro’ doando-se para aos seus alunos, inspirando-os a gostar de ler em virtude de vivenciar tal pratica com eles. Ler em voz alta para seus alunos é dar-lhes o lugar em sala de aula de autêntica plateia merecedora do melhor momento de atuação do seu professor em sua aula, aquele que tem o dom de encantar (ou de afastar) seus leitores do ato de ler. Várias são as práticas adotadas para formar bons leitores literários. É preciso que os alunos percebam a leitura literária também por prazer e não de maneira pedagógica.

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REFERÊNCIAS BAKHTIN, Michail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. CANDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo. Duas Cidades, 2002. KLEIMAN, Angela. Texto e Leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas, São Paulo: Pontes, 1989.

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LITERATURA E MÍDIAS DIGITAIS: UM DIÁLOGO POSSÍVEL Izandra Alves* (IFRS- Feliz) Lilian Cláudia Xavier Cordeiro** (IFRS – Ibirubá) Marcelo Lima Calixto*** (IFRS- Feliz)

INTRODUÇÃO Ser professor na atualidade tem se tornado um grande desafio, não somente por questões relacionadas à indisciplina ou às de ordem econômica – no que se refere às verbas destinadas à educação -, mas, principalmente, pelo fato de que grande número de docentes não acompanha – nem faz uso em suas aulas - o crescente interesse dos alunos pelas mídias digitais, o que colabora para o desinteresse do aluno para com a disciplina ministrada por esse professor. É inegável que hoje se lê, e muito! As pessoas leem placas, leem manchetes de jornais e revistas, leem piadas, leem e-mails, leem torpedos etc. Não se entra no mérito da qualidade do que se lê, mas sim, que a população, principalmente a urbana, está lendo mais. Isso ocorre, principalmente por conta da facilidade que se tem hoje para acessar as chamadas mídias digitais, e uma vez dentro desse meio, é necessário “navegar” através de letras, símbolos e imagens que transmitem mensagens, ou seja, que comunicam. Essa comunicação entre os seres que “navegam” pelo mesmo espaço digital se dá de formas nem sempre convencionais (através da palavra escrita), mas sim, por meio de símbolos e códigos próprios desse meio virtual. Isso é leitura! Infelizmente, ainda se tem notado em muitas práticas pedagógicas um grande distanciamento entre os interesses do professor e os interesses do aluno no que diz respeito ao ensinar/aprender, entre o que se entende por ensino-aprendizagem. O aluno de hoje anseia aprender os conteúdos que lhe devem ser “ensinados”, através de meios com os quais ele tem grandes afinidades, como, por exemplo, as tecnologias digitais. Em contrapartida, muitos professores ainda distantes desses mecanismos – ou por falta de condições financeiras, por falta de saber como utilizá-los ou ainda por acreditar que essas mídias “atrapalham” o aprendizado do conteúdo porque “distraem” os alunos – não possibilitam o contato de seus alunos com a riqueza do mundo virtual em suas aulas. Acredita-se que tal distanciamento se deva ao fato de que a ação pedagógica que contempla o uso de tais recursos exige dos docentes competências distintas das que estão acostumados a usar. Em contrapartida, a nova geração de discentes que ocupam os bancos escolares, hoje, anseia por uma nova cultura de transferência/construção/aquisição do conhecimento, embasada na aproximação/integração das TICS no processo ensino-aprendizagem. Nesse sentido, pretende-se discutir nesse trabalho, algumas possibilidades de trabalhar com a literatura enquanto disciplina do currículo escolar do Ensino Médio através de recursos próprios das mídias digitais utilizados frequentemente pelos alunos em seu dia-a-dia. Trata-se, por exemplo, do facebook, um instrumento de forte penetração e poder de comunicação entre os adolescentes e que pode ser veículo estimulador para a leitura (e escrita) de textos literários. Para tanto, autores como Pierre Lévy (1999) e Lúcia Santaella (2013) trarão considerações importantes como embasamento teórico para as discussões aqui apresentadas.

Doutoranda em Letras pela UPF, Professora EBTT do IFRS, campus Feliz, Brasil. E-mail: [email protected] Bel. em Desenho e Plástica, Mestre eEm Educação, Professora EBTT do IFRS campus Ibirubá. E-mail: [email protected] *** Mestre em Letras pela UPF, Professor EBTT do IFRS, campus Feliz, Brasil. Email: [email protected] *

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1. A LEITURA E O PERFIL DO NOVO LEITOR Ao longo da história da educação, sabe-se que as instituições de ensino são formalmente consideradas como responsáveis pela formação acadêmica dos sujeitos. No entanto, com a difusão da tecnologia, com a crescente aceleração do mundo digital, e com a maior flexibilização ao acesso a estes veículos de informação, nota-se também que surgem novos comportamentos de aprendizagem e também de leitura. Se antes a aprendizagem era tarefa exclusiva da escola, hoje são infinitas as possibilidades de aquisição de conhecimentos a que se pode ter acesso, além das que ela viabiliza. No que diz respeito à leitura, sabe-se que além do suporte, também mudou o modo como se lê, o lugar onde se lê. Desde o surgimento da imprensa, grandes são as transformações pelas quais a leitura vem passando. Do livro impresso, que possuía um tamanho grande, o que dificultava o transporte e por isso mesmo era disponível apenas para consulta em local restrito, passando para o livro de bolso, mais individual, permitindo uma leitura mais particular e com possibilidades de ser levado para qualquer lugar, chega-se, na segunda metade do século XX à leitura digital, o livro que está disponível na tela de um computador. Contudo, a tecnologia avança ainda mais e tem-se hoje a possibilidade de ter acesso a uma infinidade de livros e revistas, além de qualquer tipo de informação a qualquer momento e em qualquer lugar, através dos chamados dispositivos móveis. Diante disso, cabe questionar: o perfil do leitor da atualidade é o mesmo daquele que lia apenas em uma biblioteca ou então imerso em espaços restritos (pois lá era o único lugar onde havia a possibilidade de realizar essa prática)? As práticas leitoras desenvolvidas com o leitor do século XXI podem ser as mesmas daquelas que se faziam com os leitores do século XX? Diante de tais questionamentos, tanto professores quanto demais pesquisadores na área da leitura são categóricos: é preciso adequar as práticas de leitura aos novos tempos e às novas tecnologias mas, principalmente, ao novo tipo de aluno-leitor que existe hoje. Para tanto, cabe tocar em uma questão não tão fácil de lidar e ativar aquele que será peça importante no desenvolvimento da atividade de leitura: o professor, mediador da aprendizagem do aluno. É preciso, também, que se repense o paradigma tradicional de educação ainda hegemônico nas escolas, a começar pela organização do espaço físico das salas de aula, pensado para o ouvir e o reproduzir automático. Além disso, uma nova cultura em relação ao papel do professor e das competências docentes para lidar com as necessidades atuais de formação pedagógica é necessária e urgente. Nesse sentido, o uso das mídias digitais não pode ser visto como algo distante e avesso ao ambiente escolar, mas sim, intrínseco a ele e extremamente necessário à formação integral do ser humano enquanto cidadão inserido no mundo contemporâneo. Nesse sentido, o pesquisador Pierre Lévy (1999) aborda o tema falando da existência do que ele chama de “mutação contemporânea da relação com o saber” (LÉVY, 1999, p. 157), ou seja, o que se constata hoje ao se referir em aquisição/ construção de conhecimentos através dos bancos escolares é que as informações adquiridas durante o percurso da formação acadêmica/profissional estarão obsoletas ao final. Outra constatação feita pelo autor diz respeito ao novo caráter assumido pelo trabalho; trabalhar hoje ganha uma nova dimensão, pois se refere também a crescer, aprender inovar e, principalmente, construir conhecimento. Nesse sentido, a pura reprodução de saberes e fórmulas não bastam mais. Há, ainda, mais uma constatação levantada por Lévy (1999): o ciberespaço suporta tecnologias intelectuais até então somente aceitas como funções cognitivas humanas, como por exemplo, a memória, a imaginação, a percepção, o raciocínio. Tal aproximação se dá, porque através das tecnologias digitais é possível ter novas formas de acesso à informação e isso contribui para que se percebam novos estilos de raciocínio e conhecimento o que aumenta o potencial de inteligência coletiva dos grupos humanos. Ao encontro dessa inserção do sujeito no mundo digital está a teoria da pesquisadora Lúcia Santaella (2013) que traça os perfis dos novos leitores diante das muitas possibilidades que a tec-

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nologia abre hoje. Em texto em que ela expõe sobre os desafios da ubiquidade na educação levanta muitas discussões sobre o leitor e seu comportamento diante dos novos suportes de leitura. A fim de analisar o perfil do leitor contemporâneo, aquele que vaga pela cidade e pelo mundo virtual das telas, é necessário, primeiramente, falar sobre aquele que Santaella (2013) chama de “leitor contemplativo”. Esse leitor, segundo a pesquisadora, surge no Renascimento, juntamente com a imprensa; ele se vê imerso em imagens expositivas e fixas, pois assim é o mundo para ele naquele momento. Já o “leitor movente” é o resultado de um mundo urbano, ele circula pela pólis explorando tudo o que vê. Esse leitor surge juntamente com os jornais, com as imagens e códigos, com a fotografia; ele é fruto da revolução industrial e dos grandes centros urbanos. O terceiro tipo definido por Lúcia é o “leitor imersivo” que surge com o advento do computador e da internet. É imersivo porque adentra na rede de imagens e códigos virtuais ao mesmo tempo em que dialoga com diferentes textos; circula de uma tela a outra em busca de informações e conhecimentos e tem a liberdade de estabelecer, sozinho, a ordem de suas informações, conforme se apresentam/sobrepõem em sua tela. Por fim, o “leitor ubíquo” é aquele denominado pela autora como sendo o que navega através das redes sociais e de informação. É aquele que busca, comenta e que dá a informação. É sujeito ativo no processo de comunicação porque é ao mesmo tempo movente e imersivo; é capaz de circular pela cidade enquanto lê e dialoga no mundo virtual através de um dispositivo móvel. É, portanto, este o perfil do leitor da atualidade que Santaella (2013) apresenta e aponta como sendo o que chega à escola à espera das “novidades” que o professor tem a lhe apresentar. A instituição escolar e seus professores estão preparados para receber e trabalhar com este tipo de aluno-leitor?

2. A LITERATURA QUE DIALOGA COM AS MÍDIAS DIGITAIS Se, conforme as teorias de Santaella (2013) não se lê mais do mesmo modo como antigamente, também não se pode mais falar em leitura e literatura do mesmo modo como que se fazia há anos atrás. Muitos são os desafios que são impostos à escola e aos professores de Língua e Literatura hoje, tanto no que diz respeito a novas formas de ensinar, como também no que se refere à valorização dos conhecimentos prévios do aluno. Além disso, não se pode negar as novas tecnologias que estão à disposição, e que precisam fazer parte do universo escolar. Assim, vê-se urgente a busca de estratégias por parte do professor a fim de alcançar os objetivos a que se propõe. Para tanto, é fundamental, que, primeiramente, o professor seja incentivado a tornar-se um motivador/animador da inteligência coletiva de seus alunos ao invés de representar apenas a imagem de fornecedor direto de conhecimentos. No entanto, ele deve ser possuidor de habilidades leitoras competentes, pois, assim como no texto linear/impresso, o hipertexto exige a participação ativa do leitor na construção do sentido. Assim, tendo o domínio da técnica, será ele capaz de orientar seus alunos e com eles aprender ainda mais, pois no ciberespaço o texto se apresenta fragmentado e cabe ao leitor, explorar o conjunto de opções disponibilizadas pelos links e construir uma conexão coerente entre elas. Como forma de ilustrar as reflexões feitas acerca da contribuição da escola e do professor que reconhece nos seus alunos os distintos tipos de leitores de que fala Santaella (2013) e que vê a necessidade de mesclar as características entre eles, além de incentivar a possibilidade de trabalho com as mídias digitais, pretende-se compartilhar algumas experiências realizadas com alunos de Ensino Médio de uma escola pública do interior Rio Grande do Sul. Ser professor da disciplina de Literatura para adolescentes e jovens e propor a eles a leitura de livros escritos em séculos passados nem sempre é uma tarefa fácil. Há quem repudie de imediato, quem “torça a cara” ou ainda, deboche do quão ultrapassada é a atividade de ler livros. Assim, com o intuito de minimizar esses comentários e pensamentos negativos sobre leitura literária, procura-

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-se voltar o olhar para o mundo do aluno, para o seu dia-a-dia e buscar nele mesmo a fórmula para melhor trabalhar a leitura desses clássicos e aproximá-los de seus campos de interesse. É cada vez mais comum, e fácil de constatar, ao aproximar-se de qualquer grupo de adolescentes, o quanto são inseparáveis de seus dispositivos móveis. Estão sempre “conectados”, “lincados” a um mesmo espaço digital através de aparelhos cada vez mais modernos e, lá, curtem, comentam, compartilham, tecem suas teias de conhecimentos e saberes. Por conta disso, é notório que é nesse lugar e com esses mecanismos que se pode buscar a aproximação entre professor/aluno/literatura. É nesses mesmos espaços cibernéticos que estão as motivações que podem os levar a interessar-se pelas leituras dos clássicos. Há, para tanto, que se desterritorializar a biblioteca, ou seja, é preciso aproveitar as coletividades humanas vivas proporcionadas pelo ciberespaço, o que se pode chamar de coletivos inteligentes. Assim, através de uma aprendizagem cooperativa, é possível atingir o público leitor ubíquo de hoje. Os alunos precisam ser instigados a pesquisar, a utilizar seu potencial de imersão e de ubiquidade a fim de buscar a associação de seus conhecimentos prévios com os saberes já instituídos a fim de construírem um novo saber. Para tanto, deve-se partir do hoje, para chegar nos textos do passado e reconstruí-los no presente com novas significações, só assim a Literatura terá realmente sentido para eles. Há, hoje, uma infinidade de vídeos e clipes à disposição na rede o que não pode ser ignorado pelo professor, então, por que não partir de músicas, de vídeos e clipes que eles gostem para introduzir uma aula que vá falar, posteriormente, do estilo gótico, sóbrio e ultrarromântico de Álvares de Azevedo? O clipe da cantora Émile, da banda americana “Evanescence” é um excelente exemplo que pode ser utilizado para tal, bem como, misturando os gêneros, motivar a assistirem o filme de animação “A noiva cadáver” ou “Entrevista com o vampiro”. Ainda pode-se realizar uma enquete gótica, via e-mail, chat, ou watzapp, anterior a esta aula, a fim de motivá-los e despertar o interesse no assunto. Outro exemplo relevante do qual os leitores imersivos e ubíquos entendem e conhecem muito bem é o que diz respeito a jogos online. Esta prática é comum entre os jovens da atualidade. Por isso, aproximar a literatura dessa atividade prazerosa que é o jogo será um grande passo favorável para a aproximação entre o leitor e o livro literário. Como exemplo dessa atividade, pode-se sugerir os jogos a partir da leitura das obras “O cortiço”, de Aloísio de Azevedo, “Dom Casmurro”, de Machado de Assis e “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manoel Antônio de Almeida. Trata-se de jogos interativos a partir de livros clássicos, disponibilizados pelo sitio “Livro e Game”1, que traz possibilidades de interação com essas obras de forma dinâmica e divertida. Nestes ciberespaços os alunos são motivados a conhecer/e/ou/recordar as personagens, os espaços das obras, o cenário em que ocorrem, etc, além de interagir, através do jogo. Como o aluno está lincado e a tela permite abrir várias abas, ele, como leitor imersivo e ubíquo, pode buscar o texto original e propor discussões acerca de vocabulário e de costumes da época, bem como ler o que se tem escrito sobre a obra na modernidade estabelecendo relações, enquanto, ainda, participa do jogo. Contudo, depois de o professor mostrar aos seus alunos que a escola é também um lugar onde se é possível usar a tecnologia digital a favor da construção cooperativa do conhecimento, é a vez dos alunos serem motivados a construírem jogos, vídeos, programas que possam incluir a Literatura Clássica nesse mundo virtual. Eles criam, em grupos ou individualmente, possibilidades de leituras de poemas e romances com o auxílio das tecnologias de informação e/ou as mídias digitais. Essa prática desperta além do interesse em criar uma proposta nova de leitura que possa agradar aos colegas e professor, a curiosidade em conhecer a obra original a fim de poder reinterpretá-la no presente dando a ela “uma nova cara”. Como exemplo de criações artístico-literárias a partir do uso das tics nas aulas de Literatura pretende-se citar o poema “As duas rosas”, de Castro Alves, apresentado pelos alunos a partir da Disponível em: http://www.livroegame.com.br/.

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técnica de animação stop motion. Nessa atividade, os alunos leram e deram movimento ao texto poético através das imagens das rosas, que ganharam “vida” no papel. Como o facebook é o parceiro inseparável da maioria dos leitores ubíquos, não se pode deixá-lo de fora das atividades de sala de aula. Então, como uma forma de pesquisa sobre autores e/ou retomada de obra literária já lida e trabalhada em aula, pode-se sugerir que em grupos os alunos criem perfis para os autores e comentem, curtam suas postagens, dialogando com eles - no caso das turmas as quais este artigo menciona, os perfis criados foram de Iracema, Martim, José de Alencar, Macunaíma e Mário de Andrade. O que se percebe é o interesse despertado nas turmas que mesmo não tendo lido ainda a obra – por serem de turmas diferentes – visitavam o perfil, curtiam e comentavam de forma madura e criativa. Outra atividade criativa e que despertou bastante interesse da turma foi o uso da técnica de animação “flipbook”. Nessa atividade, o grupo de alunos trabalhou com o poema “Sonhando”, de Álvares de Azevedo. Além das imagens em sequência, também é possível ouvir o barulho das ondas do mar, gravadas por eles, e incorporadas ao texto visual. Assim, os alunos foram capazes de ir além do texto verbal trazendo, através do visual e do auditivo, a possibilidade de trabalhar o sensorial, forte elemento constitutivo da literatura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como é urgente a aproximação entre aluno x professor e escola x aluno é igualmente necessária a mudança de posturas das instituições de ensino e dos docentes no que diz respeito ao uso das mídias digitais no espaço escolar. Isso porque o comportamento e a aprendizagem do aluno de hoje estão intimamente “lincados” à era digital. Essa associação e interrelação entre meio digital e aprendizagem não pode ser ignorada. A escola precisa adequar-se às necessidades desse novo público, dessa geração que vive na ubiquidade e que dela necessita para o “estar no mundo”. Dessa forma, acredita-se que atividades como as citadas neste trabalho possibilitam ao aluno a inclusão do seu mundo na escola; assim ele se vê, se projeta e se constrói nesse espaço que deixa de ser apenas cibernético para tornar-se real. Portanto, o uso das tecnologias de informação e comunicação, aliados à possibilidade de circulação e criação de ciberespaços na escola, permitem a construção de conhecimentos; o aluno deixa de ser mero espectador e receptor de saberes para tornar-se construtor, inovador e produtor de saberes. Assim, ao término de sua caminhada acadêmica, quando seus saberes adquiridos na escola estarão obsoletos, ele será capaz de, por si só, ir à procura de novos conhecimentos, pois lhe foi dada a oportunidade de aprender a construir sua caminhada em busca de conceitos, respostas, e possibilidades, ou seja, tornar-se um sujeito autônomo, um pesquisador. Acredita-se, então, que através de práticas como estas, a escola cumpre com seu papel de possibilitar o diálogo entre as múltiplas linguagens, os múltiplos saberes. É, portanto, dessa forma, que o espaço escolar deixa de ser algo sem cor, sem interesse, sem vida e sem movimento para tornar-se um local agradável, onde há a possibilidade da aceitação do novo. O mesmo passa a acontecer com a Literatura, que deixa de assumir o papel de portadora de “velhices” e “textos chatos”, os quais só podem ser lidos por leitores contemplativos, para ser redimensionada sob uma perspectiva criativa e desencadeadora de curiosidades e possibilidades de leituras críticas e coerentes. Não se pode mais negar a existência dos leitores ubíquos, que estão disseminados nas salas de aula de todo o mundo. É preciso, contudo, estabelecer contatos com eles de modo que possam participar ativamente com suas contribuições e saberes adquiridos por essa capacidade de ubiquidade que pode ser muito útil para a coletividade. Estar conectado ao mundo e estabelecer relações através das mídias digitais não pode parecer apenas uma fuga da aula teórica e dos exercícios “chatos” propostos pelo professor, mas sim, a característica que faltava para unir a contemplação e a imersão na leitura

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às múltiplas possibilidades que essa prática – a leitura literária - pode abrir a fim de ampliar os horizontes de expectativas dos leitores.

REFERÊNCIAS LÉVY, Pierre. Cibercultura. tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999. SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil do leitor imersivo. São Paulo: Paullus, 2004. ____________. Os desafios da ubiquidade para a educação. Revista Ensino Superior Unicamp. Campinas. 04 abril. 2013. Disponível em . Acesso em 10 de agosto. 2015.

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FORMAÇÃO DE LEITORES DE LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: ANÁLISE DE TRÊS PROPOSTAS DIDÁTICAS DO PORTAL DO PROFESSOR Jéssica Casarin* (URI) Luana Teixeira Porto** (URI)

INTRODUÇÃO Este trabalho discute a importância de uma formação de leitores de Literatura no Ensino Médio e da adoção de práticas leitoras que favoreçam o desenvolvimento do hábito e do gosto de ler bem como da habilidade de compreensão dos textos literários e de sua inter-relação com outras linguagens. Para isso, propõe-se a verificar se três propostas didáticas disponíveis no sítio Portal do Professor, no qual são depositadas sugestões de aula voltadas à leitura e literatura, dentre outras disciplinas da Educação Básica, podem contribuir para o processo de construção de um aluno leitor com competências necessárias para ser um cidadão crítico e questionador de texto literário e de suas relações com outros textos e linguagens. Sabe-se que a leitura é um requisito básico para comunicação, interação social e formação humana, e sua relevância no contexto escolar e extraescolar é inegável. Em especial, defende-se a relevância e a permanência da leitura de textos literários como atividade de formação humana, já que, através da literatura, é possível compreender a sociedade, perceber o mundo de forma diferente, observar o outro, exercendo a alteridade e a construção crítica sobre períodos históricos, conjunturas sociais e realidades. Além disso, o contato com a literatura conduz a contatos com outros textos e, dessa forma, a leitura do texto literário, mesmo tendo um nível de linguagem mais complexa e interpretações subjetivas, pode proporcionar, a compreensão de outros textos, como afirma Luft (2014). Considerando as possibilidades de leitura de mundo e de textos oportunizadas pela literatura, é crucial que o trabalho com o texto literário em sala de aula seja completo, com leitura e atividades interessantes e que propiciem o pensamento crítico e interpretativo do aluno, seja por atividades acerca de intertextos, debates ou relações midiáticas, a fim de contemplar os objetivos destacados nos PCNs (2000). Para isso, os objetivos do estudo são avaliar os planos de aula e as atividades propostas no Portal do Professor, calcando-se nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) e demais leituras sobre leitura e literatura e verificar se tal material é interessante para a formação de leitores e aplicável a um contexto escolar de Ensino Médio. A escolha deste tema interessa por várias razões: a) é necessário valorizar o ensino da disciplina de literatura como crucial para a formação de leitores; b) é preciso avaliar se os planos de aula correspondem às exigências dos Parâmetros Curriculares Nacionais; c) o profissional da área de Letras precisa analisar e dar juízo de valor às propostas didáticas disponíveis, avaliando sua importância para a formação dos alunos; d) é urgente a necessidade de formar cidadãos com autonomia para lerem textos e saberem interpretá-los e criticá-los;

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Acadêmica do curso de Letras- Língua Portuguesa e bolsista FAPERGS, URI- FW, Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em Letras e orientadora, URI- FW, Brasil. E-mail: [email protected]

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

1. ANÁLISE DAS PROPOSTAS DIDÁTICAS O ensino de literatura no Ensino Médio enfrenta hoje muitos desafios relacionados a seu conteúdo e prática. Notam-se o pouco tempo semanal destinado ao componente curricular, o despreparo dos professores e até a falta de interesse dos alunos pela disciplina, que muitas vezes é vista apenas como o estudo dos períodos literários, já que é comum estudantes não entrarem em contato efetivo com o texto, o que acarreta prejuízos à formação leitora e pessoal do educando. Nessa perspectiva, é de extrema importância a discussão sobre a prática pedagógica na disciplina de Literatura Brasileira no Ensino Médio, que deve ter seu planejamento voltado não só à aprendizagem das escolas literárias, mas à expansão dos limites culturais do alunado, o que pode ser proporcionado pela leitura do texto. Para isso, buscou-se no Portal do Professor, um sítio vinculado ao governo federal em que professores podem compartilhar suas experiências e planos de aula com demais colegas, planos de aula indicados para a disciplina de Literatura que estivessem em destaque e fossem considerado interessante pelos demais professores. Foram escolhidos, então, dois planejamentos referentes ao período Barroco, pela possibilidade do trabalho com as diferentes artes que ocorreram no período e pela diversidade temática, principalmente religiosidade e a sátira de Gregório de Matos; e um planejamento referente à Era Medieval de Portugal, que abrange, na literatura, os períodos Trovadorismo e Humanismo, pela presença, também, da temática religiosa, possibilitando uma comparação mais completa das abordagens dos materiais. Os planejamentos escolhidos foram: “Seiscentismo ou barroco: origens e características”, desenvolvido por Marta Pontes Pinto e Eliana Dias; “A sátira como elemento da poesia barroca”, de Wendell de Freitas Amaral e Maria Cristina Weitzel Tavela; e “Em nome do pai e do corpo: o período Medieval e a literatura”, de Ana Graziela Cabral e Edna Maria Santana Magalhães. De acordo com a descrição da primeira proposta, “Seiscentismo ou barroco: origens e características”, de Marta Pontes Pinto e Eliana Dias, o aluno poderá aprender a interpretar textos; posicionar-se sobre o significado da palavra barroco, suas características e o momento histórico que propiciou o Barroco, etc. O tempo destinado à prática são dez aulas de cinquenta minutos. Considerando-se que atualmente a disciplina de Literatura possui, em seu currículo, uma aula semanal de cinquenta minutos, dez aulas é um período bastante longo para tratar de apenas um período literário, já que o tema levaria mais de dois meses para ser desenvolvido, e considerando a quantidade de períodos literários que precisam ser abordadas no ano, o tempo para cada um deles precisa ser reduzido Nessa proposta, a aula deverá ser iniciada em um laboratório digital, para que os alunos acessem o link descrito, que leva ao poema “Pequei, Senhor”, de Gregório de Matos. Recomenda-se, então, que o professor leia o poema oralmente para a turma e entregue uma cópia do texto para cada aluno. Segundo as autoras, essa primeira parte serve para despertar o gosto pela leitura nos alunos. Na segunda parte, de análise e compreensão e estudo de vocabulário, sugere-se que as atividades sejam feitas oralmente, em forma de discussão a ser promovida e mediada pelo professor, para que o aluno tenha espaço para expor sua visão. As discussões orais, de acordo com os PCNs (2000), são importantes na formação do sujeito, já que a exposição de opiniões divergentes facilita a construção de pontos de vista mais articulados e organizados, sem a imposição de uma única resposta significativa para a formação de opiniões. Como afirma Cabral: um exercício de interpretação, por mais rico e abrangente que seja, refere-se a uma ação solitária do leitor sobre o texto lido, de modo a retirar dele as informações necessárias que atestarão sua habilidade em encontrar sentido para as palavras ou revelar intenção do autor, de acordo com o que for proposto pelo elaborador do exercício. Ganha-se em destreza, mas perde-se um pouco nesse processo, tendo em vista a diversidade de ideias que uma discussão pode oferecer. [...] Ambas têm relevância e um professor experiente usa seu saber para desenvolvê-las e aplicá-las em momentos oportunos (CABRAL, 2008, p. 133).

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Assim, apesar de os exercícios de atividades interpretativas serem importantes para a construção de sentido, propostas de discussão coletiva, socialização, debate e confronto de ideias são responsáveis não só pela formação de ideias mais equilibradas e com convicção, mas também pela formação de sujeitos críticos, que saibam expor sua visão e argumentar a seu favor. Em uma das questões, exige-se do aluno conhecer a Bíblia e realizar um intertexto, necessitando competência para relacionar diferentes textos. De acordo Silva e Fritzen (2012), a estratégia de relacionar textos de diferentes tipos de códigos e suportes deve ser tratada no ambiente escolar para democratizar o acesso a bens culturais e sociais variados. Nesse sentido, considera-se a Bíblia não apenas um livro de uma religião, mas uma manifestação cultural de uma época, de um povo, um texto literário que deve ser também abordado partindo-se dessa ideia, possibilitando aos alunos uma leitura para além do texto catequético. Após a discussão oral, pede-se que os alunos acessem outro site, em que se encontra um texto relativamente longo sobre a arte barroca, estilo predominante no final do século XVI até meados do século XVIII. Ao final, existe outra recomendação de site para os alunos verem pinturas de artistas da época. Nesta etapa, verifica-se que não ocorre nenhuma prática leitora com textos literários, apenas com textos informativos, o que pode ser maçante para os alunos, além de não contribuir para a leitura por fruição e consequente formação de leitor. Em seguida, recomenda-se que se entregue um roteiro com questões relativas às informações do texto lido. As atividades desta parte não exigem muitas competências do aluno, pois as respostas são facilmente encontradas no texto, demandando apenas a cópia, sem reflexão. Um exemplo é a questão “O que se deve entender por: ‘O barroco apresenta características regional, individuais e subjetivas’?”, o texto no qual os alunos devem se basear para as respostas tem um subtítulo nomeado “Regional, individual e subjetivo”, com um texto de nove linhas de onde a resposta poderia ser facilmente retirada. Na atividade seguinte, o professor deve dividir a turma em sete grupos e dar a cada um deles um dos temas que deverão ser estudados e apresentados em seminário. As apresentações, de acordo com as autoras, deverão ser baseadas em outro texto informativo disponibilizado. Essa atividade, que poderia se configurar de maneira interessante e interdisciplinar, com pesquisa livre de acesso à internet sobre textos literários do período Barroco como demandam os PCN’s (2000) ao afirmarem que o uso de tecnologias deve permear o estudo e a pesquisa na escola, constitui-se apenas como mais um trabalho de “decoreba”. Para a preparação do trabalho em grupo e esclarecimento de dúvidas, recomenda-se que duas aulas sejam disponibilizadas. Após a apresentação do seminário, o professor deve apresentar à turma a obra de Padre Antônio Vieira, a obra de Gregório de Matos e termine a correção do poema Pequei Senhor. Considera-se o ecletismo de temas de Gregório de Matos e recomenda-se que sejam realizadas leituras de textos literários desse autor, porém, nenhum roteiro de leitura é recomendado. Em seguida, mais uma lista de questões sobre o texto “Pequei, Senhor”, de Gregório de Matos é disponibilizada. Esta contém atividades referentes à estrutura do poema. De acordo com Silva e Fritzen (2012), esse tipo de atividade dissocia o texto literário de sua qualidade artística, já que passa a ser visto como um objeto a ser analisado. Assim, considera-se interessante conhecer a forma e a estrutura do poema, verificando sua contribuição para o sentido de texto e as características presentes em determinadas épocas, porém, a formação de leitores depende muito mais do que a análise linguística do texto. Na segunda proposta, “A sátira como elemento da poesia barroca”, de Wendell de Freitas Amaral e Maria Cristina Weitzel Tavela, inicia-se afirmando que ao final das atividades o aluno irá aprender a: ler poemas de Gregório de Matos; reconhecer a importância da sátira para a manifestação de uma consciência; identificar, em textos do autor, marcas discursivas e ideológicas desse gênero e seus efeitos de sentido; relacionar características discursivas e ideológicas ao contexto his-

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tórico, etc.. O tempo destinado a esta prática é quatro aulas de cinquenta minutos, porém os alunos já devem ter visto aspectos gerais do período Barroco para realizarem a proposta. Inicialmente, sugere-se que o professor promova uma discussão oral com seus alunos, retomando aspectos gerais da literatura barroca, como contraste, religiosidade, etc.. após, há um texto sobre o Gregório de Matos, sua vida e obra, e relações entre esses dois aspectos, que deve ser lido pelo professor para explicar ao alunato. O texto conta inclusive com citações de outros autores críticos, o que é interessante para que o docente mantenha-se em contato com produções mais científicas, continue sendo um pesquisador. A primeira atividade requer pesquisa digital, em que os alunos devem pesquisar o poema satírico “À cidade da Bahia”. O professor, então, deve questioná-los oralmente sobre o tema, a identificação do poeta com a cidade da Bahia, a causa da decadência de ambos, etc.. Após essa participação oral dos alunos, indica-se, para complementar, o vídeo de Caetano Veloso cantando “Triste Bahia”, uma recriação do soneto de Gregório. Esse vídeo é interessante para despertar o gosto para leitura, já que o aluno passa a ver o texto não só como palavras a serem entendida, mas como uma obra artística que deve ser sentida. Após, pede-se que os alunos pesquisem o soneto “Descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia”, e é disponibilizada mais uma lista de questões de análise e interpretação sobre este texto. Também se aponta que o professor deve indagar os alunos sobre as relações entre esse poema e o exílio de Gregório de Matos na Angola devido as suas declarações prejudiciais sobre a Bahia. Os autores sugerem, então, exibir aos alunos o filme biografia “Gregório de Mattos”, de Ana Carolina. O trabalho com diferentes tipos de texto é sempre positivo para a formação de leitores de diferentes linguagens, além de ser importante saber mais sobre um grande escritor da literatura brasileira, que conseguiu causar um alvoroço na cidade da Bahia com suas críticas ácidas às grandes figuras da cidade, é importante para. Para a avaliação, sugere-se um site com vários poemas satíricos, em que os alunos, em grupos, devem escolher um e analisá-lo sob os aspectos: tema, figura ou instituição satirizada e as metáforas utilizadas pelo poeta na sátira. Ao final, são sugeridos, ainda, outros sites de pesquisa para o professor complementar seu saber. Um aspecto importante que não foi abordado na proposta didática e é importante para a leitura de mundo dos alunos é a relação entre os textos do autor com a realidade vivida hoje. Verificam-se, nos poemas de Gregório de Matos, críticas muito cabíveis ao contexto social brasileiro do século XXI, e fazer os alunos pensarem nisso é uma forma positiva de desenvolver o senso crítico diante da sociedade. Embora essa proposta didática aborde um aspecto interessante para a construção do leitor, a crítica de Gregório de Matos, fazendo os alunos analisarem e interpretarem o texto lido, não há nenhum comentário ou avaliação de outros professores na página dessa proposta. Isso pode ocorrer pela exigência de o professor, nessa proposta, estar em constante diálogo e pesquisa, o que muitas vezes não ocorre. A terceira proposta didática, “Em nome do pai e do corpo: o período Medieval e a literatura”, de Ana Graziela Cabral e Edna Maria Santana Magalhães, refere-se à literatura da Era Medieval, que inclui os períodos literários Trovadorismo e Humanismo portugueses. O tempo destinado a proposta é de seis aulas de cinquenta minutos e com ela o aluno aprenderá a: conhecer alguns legados da produção literária medieval para a sociedade contemporânea; conhecer algumas características típicas da literatura medieval, etc.. Inicialmente, recomenda-se que, nas duas primeiras aulas, o professor explique aos alunos a divisão das escolas literárias de acordo com o período histórico e se detenha no período Medieval. O professor, então, deve questionar os alunos sobre o que já sabem sobre isso, visto que já trabalharam isso na disciplina de História. Tal atividade está em concordância com os PCN’s (2000) que destacam

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a necessidade de desenvolver a interdisciplinaridade. Além disso, nota-se um recurso de ativação do conhecimento prévio, pedindo para que os alunos verifiquem, na memória, o que já sabem sobre o tema. Essa estratégia, de acordo com Solé (1998), é importante para o aluno atribuir significado ao texto que será lido. Após, é sugerido um vídeo para assistirem, porém, o vídeo também é teórico. Assistido o vídeo, o professor deve explicar os termos desconhecidos pelos alunos, como Trovadorismo e cantigas. Com isso, introduz-se o ensino dos tipos de cantigas, que é iniciado com o texto literário. A aula iniciada e baseada em um texto literário, deixando em segundo plano a história da literatura, é uma maneira de fazer o aluno despertar o gosto pela leitura, já que o texto literário mantém sua qualidade artística, com leitura por fruição, para depois partir-se para as características e estudo do período, que poderão ficar mais claros baseando-se no texto lido anteriormente. Também é disponibilizado um vídeo com uma cantiga de amigo com acompanhamento musical, para os alunos conhecerem como eram expressos oralmente esses poemas. Porém, são trabalhadas apenas as cantigas de amor e de amigo, não são mencionadas as de escárnio e maldizer, que são interessantes para ilustrar as primeiras manifestações satíricas e críticas sobre a sociedade na literatura portuguesa. Na atividade seguinte, sugere-se que o professor busque um filme com características medievais para passar para os alunos, como “Rei Arthur” ou “O nome da rosa”, pois a tradição das cavalarias, com heróis e donzelas, e crimes misteriosos despertam muito o interesse dos alunos. Assistido o filme, deve ser realizado um debate com trocas de ideias, e cada aluno deve elaborar uma espécie de resenha, analisando o filme e relacionando-o com o contexto medieval. Essa atividade pode despertar nos alunos o senso crítico, já que é necessário que os sujeitos saibam o contexto histórico e consigam associá-lo ao filme. Como consta nos PCN’s (2000), valoriza-se a estratégia de “analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos da linguagem relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de recepção.”. Dessa forma, observar as manifestações literárias e relacioná-las ao momento histórico no qual foram criadas ou representam, é importante para a construção de sentido do aluno, que passa a ver uma relação entre o texto e seu contexto de produção. Para terminar as atividades sobre esses períodos literários, o professor deve expor um pouco sobre o legado da Era Medieval na contemporaneidade, em especial em relação à pintura, como a noção de abstrato e simbólico que hoje se atribui a tantas obras de arte. Percebe-se, nessa atividade, uma preocupação em relacionar as produções artísticas da época com a atualidade, o que é valido para o aluno relacionar e perceber que muitas das realizações do passado ainda permeiam as produções atuais. Porém, verifica-se que a atividade direciona-se apenas para as artes plásticas, não há nenhuma referência a obras literárias, que deveriam ter papel principal nas aulas de literatura. Dessa forma, nota-se, nesta proposta que não há grande preocupação quanto à leitura do texto literário. Apenas no início da aula são disponibilizadas duas cantigas a fim de exemplificar o conteúdo estudado, o que não contribui para a formação de leitores. Ainda sobre a proposta, é interessante ressaltar que, apesar de a disciplina de Literatura no Ensino Médio, de acordo com Barbosa (2011), se caracterizar mais por estudos sobre literatura e sua história, do que por práticas de contato efetivo com textos literários, nessa última proposta didática, optou-se pela não periodização dos períodos literários, o que pode configurar-se como o primeiro passo para a formação leitora, pois deixa-se de considerar os períodos literários como ”gavetas” a serem estudas separadamente, e passa-se a pensar o texto literário como produto cultural de determinado momento histórico, que deve ser lido e explorado como protagonista da prática literária. Considerando tais constatações a respeito das três propostas de prática escolar analisadas, verifica-se a importância de contar-se com um professor mediador e com boa formação voltada para leitura, já que a exploração de textos literários e o gosto pela leitura dependerão da adaptação e esforço de cada docente. De acordo com Sousa (2006), na construção do aluno leitor, a influência do

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professor é muito importante, pois este deve tornar o aluno crítico, e tornar o conhecimento adquirido relevante e cabível ao contexto de vida do educando, além de incentivar o estudante a ser um leitor entusiasta compartilhe seu gosto pela leitura. É pertinente apontar também o uso de tecnologias presente em todos os planos de aula analisados. De acordo com Freire (2010), o professor deve saber lidar com a diversificação de opções culturais vindas principalmente da tecnologia e utilizá-las a seu favor, não se detendo apenas em uma, mas valorizando todas as formas e propondo assim uma aula mais dinâmica e criativa. Verificou-se, então, que apenas a primeira proposta, “Seiscentismo ou barroco: origens e características”, utilizou o recurso digital de forma restrita, pois seu uso deteve-se à digitação de links para leitura de textos sobre o período literário, enquanto as outras duas propostas usaram o acesso à internet como ferramenta para assistir a vídeos e ouvir músicas. Também é válido observar que todas as propostas apontaram atividades de debate e discussões, recurso importante para os PCNs (2000), em que se confirma que confrontar opiniões e pontos de vista sobre linguagens é uma atividade pertinente para a formação de opiniões mais articuladas e organizadas. Esse aspecto também mostra um avanço na valorização do aluno como construtor do próprio conhecimento e não como mero receptor de informações. Apesar dos aspectos positivos já ressaltados, notou-se que a quantidade de atividades na terceira proposta é insuficiente para a assimilação e aprendizagem do aluno. Foi possível perceber ainda que o número de textos literários lidos também é reduzido. Assim, é verificável que ocorreram avanços na metodologia, como o uso de tecnologias, uma proposta que não utiliza a divisão de períodos literários, e o uso de recursos como intertextos e debates. Porém, ainda verifica-se que o que predomina nas aulas de literatura é a abordagem criticada por Barbosa: o ensino da literatura na escola tem se caracterizado mais por estudos sobre a literatura _ou mais particularmente sobre a história da literatura, a partir da categoria “estética literária” _ que por práticas de contato efetivo com o texto literário. Esse quadro significa enorme prejuízo à formação de leitores de literatura (Barbosa, 2011, p.149-150).

Dessa forma, constata-se que ainda existem deficiências consideráveis a serem transpostas na busca por aulas de literatura que formem leitores e sujeitos autônomos, críticos e humanos quando se consideram sugestões didáticas propostas pelo Portal do Professor. É importante ressaltar, ainda que, considerando-se que o sítio Portal do Professor é vinculado ao Ministério da Educação e que o material existente passa por uma revisão antes de ser disponibilizado na rede1, todas as propostas possuem aspectos que não estão de acordo com o que os PCN’s determinam. Isso indica, então, a necessidade de uma revisão nos critérios de avaliação das propostas, e até do próprio sistema do Portal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da análise dos materiais didáticos, pode-se constatar que as atividades apresentam pontos positivos, como o uso de intertextos, a opção de diálogos e debates entre alunos e professor e o uso das tecnologias de informação. Porém, nota-se que as metodologias utilizadas não são consistentes quanto ao uso limitado dos recursos digitais, há escassez de textos literários para leitura e atividades que consideram apenas aspectos formais do texto. Acredita-se, dessa forma, que esses planos de aula só proporcionarão uma situação de formação de leitores se o professor tiver uma formação de qualidade, a qual lhe permita adaptar e Cada sugestão de aula é validada por uma equipe de profissionais do MEC, como informa o tutorial para postagem de planos de aula: “Se você deseja que esta aula seja publicada, você deverá encaminhá-la para uma avaliação, que será realizada por um grupo de professores validadores do Ministério da Educação”. Ver: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/pdf/tut/tutorial_como_criar_uma_aula.pdf

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complementar as atividades, atentando ao uso criativo dos recursos digitais, à disponibilização de mais textos literários, à promoção de debates e diálogos com outras manifestações artísticas, a fim de contribuir para a formação de leitores de literatura. Com esse trabalho, pode-se avaliar também que práticas escolares que contemplem a formação crítica do aluno, mesmo em um site vinculado ao Ministério da Educação, são escassas, e que os professores também necessitam de uma formação que desenvolva seu senso crítico e sua metodologia na hora de escolher ou formular sua prática escolar.

REFERÊNCIAS AMARAL, Wendell de Freitas; TAVELA, Maria Cristina Weitzel. A sátira como elemento da poesia barroca. Portal do professor. Disponível em: < http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=24624>. Acesso em: 15 ago. 2015 BARBOSA, Begma Tavares. Letramento literário: sobre a formação escolar do leitor jovem. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 16, n. 1, p. 145-167, mar. / ago. 2011. BRASIL, Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. Brasília: MEC, 2000. CABRAL, Ana Beatriz. O texto, o contexto e o pretexto: Ensino de Literatura, após a reforma do Ensino Médio. 2008. 244 f. Tese (Doutorado em Educação)- Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2008. CABRAL, Ana Graziela; MAGALHÃES, Edna Maria Santana. Em nome do pai e do corpo: o período Medieval e a literatura. Portal do professor. Disponível em: < http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula. html?aula=9490 >. Acesso em: 15 ago. 2015 FREIRE, José Alonso Tôrres. Os saberes da literatura e a formação do leitor. Revista do Curso de Mestrado em Ensino de Língua e Literatura da UFT, n°1, p. 191-208, II/2010. LUFT, Gabriela Fernanda Cé. Retrato de uma disciplina ameaçada: A Literatura nos documentos oficiais e no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). 2014. 301 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira)- Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. PINTO, Marta Pontes; DIAS, Eliana. Seiscentismo ou barroco: origens e características. Portal do professor. Disponível em: < http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=23657 >. Acesso em: 15 ago. 2015 SILVA, Danielle Amanda Raimundo; FRITZEN, Celdon. Ensino de Literatura e livro didático: uma abordagem a partir das pesquisas na pós-graduação brasileira. Contrapontos, Florianópolis, v. 12, n. 3, p. 270-278, set.-dez. 2012. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6 ed. Porto Alegre: Artmed, 1998 SOUSA, Ana Claudia. A formação de professores-leitores: as marcas de um caminho e suas relações com uma educação para leitura. 2006. 108 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, 2006.

LEITURA UBÍQUA SOB A PERSPECTIVA DO SOCIAL READING: CONSTRUINDO UMA REDE SOCIAL DE LEITORES Joseane Amaral* (IFSUL-Passo Fundo) A ascendente popularização das tecnologias da informação e da comunicação permite a ampliação de práticas leitoras no campo virtual. O presente trabalho evidencia uma proposta de leitura na ubiquidade, caracterizada pelo fenômeno do social reading, forma inovadora de ler coletivamente e carregar livros na web. Como amparo teórico principal desta pesquisa, destacamos Santaella (2013), Lévy (1998) e Maragliano e Pireddu (2012). Entre os objetivos estão a expansão ao acesso a materiais textuais, de forma gratuita, através de plataformas de leitura online; promoção da leitura; e formação de leitores. Uma vez que o público-alvo envolve estudantes de áreas técnicas, pretendemos avaliar a viabilidade de transformar esta experimentação em um projeto de pesquisa e extensão. Justifica-se a relevância de promover ações de fomento à leitura neste meio, uma vez que em tais áreas a leitura literária não é proeminente, tanto no currículo formal quanto em projetos extracurriculares. Entre os resultados, vislumbramos um longo caminho a ser percorrido, envolvendo mudança de paradigmas tanto dos docentes-formadores quanto dos discentes em formação.

1. SOBRE LEITURA E SOCIAL READING “Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar”. Mia Couto

O domínio da leitura é uma necessidade que perpassa todas as áreas do conhecimento. No contexto contemporâneo, novos desafios surgem aos professores, especialmente no que diz respeito a processos de ensino e tecnologias. A escola vem perdendo domínio frente a metodologias de ensino arcaicas e aulas puramente expositivas, o que prejudica tanto a aprendizagem quanto o avanço dos índices de aproveitamento dos estudantes. Para reverter este processo e unir a tecnologia ao ensino, o incentivo à formação de leitores é uma das tarefas mais urgentes, cabendo às instituições escolares, em todos os níveis de ensino, estimular a leitura, contribuindo para a formação de cidadãos críticos e bem preparados cultural e tecnicamente. Reforçando a necessidade de refletirmos sobre a temática, destacamos a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada em âmbito nacional desde o ano 2000, com o intuito de analisar o perfil e as escolhas do público que se autodeclara leitor. A edição do estudo publicada em 2011 revela que os 55% de leitores autodeclarados em 2007 caem para 50% em 2011, de acordo com Lajolo (2012). Entre outros aspectos, a pesquisa considera os títulos mais lidos e os recorrentes, além dos escritores mais lidos e admirados. O fato de o número de leitores autodeclarados ter diminuído corrobora a urgência de incentivarmos novos processos de leitura. Nesse sentido, o presente trabalho surge com o intuito de promover o conhecimento do social reading, leitura em ambiente web que possibilita interatividade

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Doutoranda em Letras – PPGL- Universidade de Passo Fundo. Docente do IFSUL, campus Passo Fundo, Brasil. E-mail: josi.ibiruba@ gmail.com

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com o texto e com outros leitores. Em linhas gerais, as plataformas que utilizam esta tecnologia simbolizam uma espécie de rede social de leitores o que pode aproximar o público jovem na criação/ consolidação de hábitos de leitura. Além disso, não há grandes custos na aquisição de obras, tendo em vista que um grande número de ebooks está disponível gratuitamente na internet. Social Reading é o conjunto de possibilidades que transforma a experiência de leitura de livros eletrônicos. Resulta da inserção de dispositivos conectados ao livro, adicionando aspectos comuns às redes sociais, como compartilhamento e conversação, com o objetivo de experimentar novas opções de leitura, principalmente coletivas. Entre as funcionalidades, notas de progresso dos leitores, favoritos, além da possibilidade de salvar, compartilhar, enviar e-mail e armazenar toda a experiência de leitura, que pode ocorrer em grupos de amigos ou contatos por tópicos de interesse. (MARAGLIANO; PIREDDU, 2012). Sobre a metodologia que envolve a leitura com viés social, cabe salientar que As plataformas de social reading focalizam principalmente os interesses compartilhados e a paixão das pessoas pela literatura. São indicadores para expressar o envolvimento com uma obra literária específica ou com a área de literatura, através da criação e da comunicação. Os desenvolvedores referem-se frequentemente às comunidades ou a formação de comunidades para salientar o engajamento compartilhado (isto é, o interesse e a paixão expressados através da participação) (VLIEGHE, Joachim; RUTTEN, Kris, 2013, p. 7)1

Uma das particularidades do livro no universo digital é a reconfiguração, ou seja, o surgimento em novas formas e interfaces, além da coexistência com outras formas de textualidade. Ao ocupar este espaço, o livro passa a integrar uma nova textualidade eletrônica, inaugurando processos de leitura diversos: Há pelo menos duas transformações evidentes na atividade da leitura, quando o leitor navega nas redes: ler, na internet, é também editar, produzindo uma montagem singular por meio da seleção de tópicos em uma sequência própria e, a cada vez, única. A segunda transformação diz respeito à concatenação de discursos em uma rede articulada de escritas coletivas em que um grade número de pessoas anota, aumenta, comenta, conecta os textos uns aos outros por meio de ligações hipertextuais em relação a outros corpus hipertextuais e instrumentos de auxílio à interpretação, o que multiplica as ocasiões de produção de sentido e permite enriquecer a leitura (SANTAELLA, 2013, p. 200-201.)

A prática do Social reading envolve experiências de leitura através de recursos sociais agregados ao e-book, como comentários de trechos/parágrafos selecionados, à margem da página; geração de debates; glossários ou listas de palavras; anotações; inserção de links de vídeos, imagens e outros textos. Todas estas ações também pode ser compartilhadas com outros usuários, através da plataforma ou, eventualmente, por meio de redes sociais. Outra facilidade desta prática diz respeito à forma de armazenamento dos serviços, que ocorre principalmente através da nuvem, facilitando o acesso aos dados. Cabe citarmos alguns exemplos da prática de social reading2: Tradução livre. No original: "Social reading platforms focus first and foremost on people's shared interests and passion for literature. They are sounding boards for expressing engagement with a particular literary work or towards the field of literature through creation and communication. Developers' often refer to communities or community formation to stress the shared engagement (i.e., interest and passion expressed through participation)”. (VLIEGHE, Joachim; RUTTEN, Kris, 2013, p. 7) 2 Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2015. Tradução livre. No original: 1. You're reading an ebook. You find a bit you like, and you select the text and email it to a friend. 2. While reading an ebook on an ereader, you choose to send the reading data to a social reading service. The service records all your bookmarks so you can search and return to them later. 3. A teacher makes a number of annotations in an ebook. She exports them, sends them to her students, who import them into their own copies of the book. 4. You link your favourite ereader to a social reading service. Over time, the service creates a virtual bookshelf of all the books you've read. 5. You're reading a book on one device, but half-way through you switch to another ereader. Your position and bookmarks are automatically synchronised. 6. You decide to clear some space on your computer, and delete some ebooks—accidentally or not. Your reading experience, bookmarks and annotations are archived separately, and are safe. 1

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

1. Você está lendo um e-book, encontra um trecho de que gosta, seleciona o texto e o envia por e-mail a um amigo. 2. Enquanto lê um e-book em um leitor eletrônico de livros digitais, você escolhe enviar os dados de leitura a um serviço de social reading. O serviço grava todos os seus favoritos, então você pode buscar e voltar a eles mais tarde. 3. Um professor faz uma porção de anotações em um e-book. Ele as exporta e envia para seus alunos, que as importam em suas próprias cópias do livro. 4. Você vincula seu leitor eletrônico favorito a um serviço de social reading. Ao longo do tempo, o serviço cria uma estante virtual de todos os livros que você leu. 5. Você está lendo um livro em um dispositivo mas, no meio do caminho você muda para outro leitor eletrônico. Sua posição e marcadores são sincronizados automaticamente. 6. Você decide arrumar espaço no seu computador, e apaga alguns e-books, acidentalmente ou não. Sua experiência de leitura, marcadores e anotações estão arquivados separadamente, e estão seguros. (PROJECT OPEN BOOKMARKS, online). Se considerarmos todas as facilidades da leitura online, certamente convergiremos nosso pensamento sobre o uso de tais ferramentas no ensino. Será que os mesmos impactos no uso de social reading podem ser sentidos aplicando-se experiências no ensino formal? Esta é uma pergunta ainda sem respostas consolidadas no cenário brasileiro, uma vez que as iniciativas de pesquisa, se ocorrem, ainda não redundam em resultados amplamente divulgados. Enfim, essa nova forma de leitura que pretende modificar parâmetros e a relação entre leitor e obra, por meio da tecnolologia, ainda precisa ser muito explorada. Antes de expormos nossos esforços em implantar uma pesquisa sobre o tema, passamos a expor algumas particularidades sobre plataformas de leitura e estrutura dos e-books.

1.1. PLATAFORMAS ONLINE E LIVROS DIGITAIS A realidade do virtual é uma realidade movente, através da qual imagens, páginas e sujeitos se fluidificam num ambiente cercado de possibilidades mutantes. Entre os aparatos que pretendem revolucionar processos de leitura na rede está o livro digital. Segundo Santaella (2013, p.199) os e-books (electronic books) são “réplicas digitais de obras também existentes em papel. São textos com o mesmo conteúdo da versão impressa, mas veiculados em suporte digital”. No entanto, atrás desta aparente transposição do papel para a tela, há muitas diferenças na relação leitor-obra, além da natureza das aplicações para e-book, normalmente executáveis em outras plataformas além daquela de origem: Um dos atributos mais notáveis do meio digital encontra-se na portabilidade: adquire-se um livro de qualquer lugar para qualquer outro lugar. A leveza é outro atributo. Muitos livros podem ser carregados até mesmo em um pendrive, deixando a questão dos kindles e dos tablets para logo mais. Isso tudo se não mencionarmos o barateamento do custo em função da facilidade de produção, divulgação, depósito e distribuição. (SANTAELLA, 2013, p. 199)

Há livros digitais criados em formatos diversos. Alguns utilizam o chamado papel digital, que garante menos luminosidade e reflexo, proporcionando uma experiência similar à leitura em papel, porém, em ambiente digital. Há também vários softwares criados para dar suporte aos e-books, além do leitor eletrônico de livros digitais (e-reader), necessário para a leitura de e-books. Ainda de acordo com Santaella (2013, p. 200), “o mais conhecido entre os e-readers é o Kindle, da Amazon, lançado nos Estados Unidos em 2007 e, no Brasil, em 2009 [...] [mas] qualquer dispositivo eletrônico capaz de apresentar o texto em uma tela pode agir como um leitor de e-book”. A autora ressalta, entretanto, que a tecnologia do papel eletrônico garante legibilidade semelhante à do texto impresso, o que constitui uma das vantagens do Kindle.

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A tecnologia evolui rapidamente, e a cada dia surgem novas ferramentas para leitura em rede. Entre as aplicações3 que possibilitam a experiência de social reading (nem todos os e-readers disponíveis on-line preservam características de socialização), destacamos: Medium4, Diigo5, Readups6, Social Book7 e Actively Learn8. Entre as ferramentas citadas, algumas oferecem acesso gratuito, e outras disponibilizam parte das funcionalidades sem custos. O que todas têm em comum é o fato de reunirem características sociais, ou seja, compartilhamento, atividades em grupos, ligação com redes sociais, etc. No que diz respeito aos livros digitais, há alguns sites que oferecem acesso a leitura online de centenas de títulos, de forma gratuita. Nesse sentido, cabe destacarmos uma experiencia significativa na disponibilização de material textual online. Segundo Spalding (2012), em 1971 um estudante da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, criou o Projeto Gutenberg, que vem reunindo esforços para digitalizar, arquivar e distribuir obras culturais de forma online e gratuita. Atualmente, o site9 conta com mais de 49 mil títulos para leitura, e está disponível nos idiomas inglês, alemão, francês e português. Ainda cabe ressaltar que, mesmo no formato estático (comumente em pdf – Portable Document Format), há muito material textual disponível na rede para leitura, em bibliotecas virtuais, websites de universidades e instituições ligadas ao ensino e à pesquisa. O que diferencia esse tipo de material dos livros em epub (Electronic Publication, um dos formatos mais conhecidos para as versões digitais do livro) é, essencialmente, a dinamicidade dos hiperlinks e as formas de interação com a obra e com outros materiais externos a ela, como áudio e vídeo. No que se refere ao estudo da leitura com interface tecnológica, destacamos a pesquisa de Spalding (2012), que analisa os impactos sentidos com a experiência de leitura literária de Alice for iPad, livro digital produzido exclusivamente para leitura no equipamento da Apple. Ao analisar a obra sob três aspectos – texto, design e funcionalidades próprias de um aplicativo para iPad, o autor destaca a possibilidade de manipulação de objetos soltos na tela como um aspecto recorrente na obra. Ao final da análise, o autor considera o livro digital como “um produto do seu tempo, que tem na palavra, na literatura, seu cerne, mas irá agregar a ela todas as demais artes, a música, o vídeo, o design, a fotografia, e, ainda, a interatividade, o movimento, a construção em rede” (SPALDING, 2012, p. 238). Tomando-se por base os estudos de Lévy (1993, p. 9), não se pode conferir poderes sobrenaturais ao produtos tecnológicos que emergem com a cibercultura, mas é preciso estar atento ao fato de que “surge um campo de novas tecnologias intelectuais, aberto, conflituoso e parcialmente indeterminado”. Pensar sobre como explorar esse domínio na educação é a questão maior que motiva nossos esforços de pesquisa.

2. LEITURA COLABORATIVA E FORMAÇÃO DE LEITORES Nossa pesquisa nasce da constatação de uma necessidade no campo educacional, a promoção da leitura para alunos de cursos técnicos e tecnológicos, público-alvo que normalmente não tem a leitura literária como hábito. Sabendo das carências em termos de aquisição de materiais impressos,

O conhecimento das ferramentas e o acesso ao universo do social reading iniciou-se com o Workshop Social Reading na Educação, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo, ocorrido em setembro de 2014. 4 Disponível em: . 5 Disponível em: . 6 Disponível em: . 7 Disponível em: . 8 Disponível em: . 9 Disponível em: < http://www.gutenberg.org/wiki/Main_Page>. 3

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

optamos por utilizar a tecnologia como nossa aliada e investigar a receptividade da leitura em ecrã, aliada às funcionalidades do social reading. Iniciamos os estudos com a sondagem inicial de quatro turmas, duas de ensino técnico e duas de ensino superior. Nossa intenção, como já mencionado, é expandir a pesquisa a fim de torná-la um instrumento de formação de leitores e promoção da leitura. Entretanto, sabemos que este é o início de um árduo caminho a percorrer. O questionário diagnóstico foi respondido online pelos estudantes, em uma criação com a ferramenta Formulários Google. No total, 35 alunos de cursos Técnico em Informática, Técnico em Mecânica e Superior em Tecnologia em Sistemas para Internet responderam à pesquisa, o que não corresponde à totalidade dos alunos das respectivas classes. Questionamentos de múltipla escolha e uma questão descritiva integraram a base para o diagnóstico, cujos resultados podem ser lidos a seguir. Na pergunta 1 – Você se considera um leitor?, 71% responderam que sim, enquanto 29% marcaram a opção não. Na única pergunta descritiva - Na sua área de atuação, você considera a leitura uma habilidade importante? Por quê?, a maioria dos estudantes que responderam concordaram sobre a importância da leitura. No registro, optamos por manter a escrita e os eventuais desvios de linguagem; entre as justificativas, destacamos: “Considero, pois muitas vezes terei que escrever relatórios técnicos, e outros tipos de documentos importantes nos quais a leitura ajuda e bastante na escrita correta”. “Sim, porque a informática muda muito e devemos estar nos atualizando tanto em nossa área como em um modo geral também”. “A leitura na minha área de atuação é importantantissimo, pois varias vezes enfrentei e enfrento problemas com vocabulários e sei que a leitura ajudaria muito”. “Nem tanto, mas a atenção necessária para entender a leitura é fundamental”. “Sim, porque a leitura nos leva a gravar mais o conteúdo da matéria. tanto a leitura digital quanto a escrita”. “Mais ou menos. Minha área de atuação exige mais prática do que teoria, mas algumas coisas, temos que buscar em livros, sites e outros modelos de escritas, para sabermos e se aprofundarmos mais no modelo e serviço prestado”. “A leitura é importante em qualquer área, pois através dela adquirimos conhecimento e abrimos a mente para novas ideias. Na área da tecnologia tudo muda muito rápido e sempre há coisas novas a aprender, sendo assim, a leitura é essencial para nos mantermos sempre atualizados”. Na questão 3 - Quantos livros você leu no semestre passado?, 32% responderam “nenhum”; 54% afirmaram que leram de 1 a 2 livros; 9% leram de 2 a 3 e 5% leram mais de 3 livros. Na questão 4 - Para você, leitura é: 66% responderam que leitura é informação; 19% afirmaram que é prazer; 9% identificaram como obrigação, e dois registraram por escrito “prazer e informação” e “conhecimento”. A questão 5 - Você tem o costume de ler na internet?, registrou mais de 67% de respostas sim; cerca de 29% responderam às vezes; aproximadamente 2% responderam que não costumam ler na internet. A questão 6 - Que tipos de site normalmente acessa?, revela entre as preferências vídeos (You Tube), redes sociais, sites de novidades tecnológicas e de música/rádio. Apenas para ilustrar, sites de periódicos científicos estão entre os últimos materiais acessados pelos estudantes. Na questão 7 - Você já ouviu falar em social reading?, 79% dos estudantes responderam não, e 21% afirmaram que sim. Com relação à questão 8 - Você prefere leitura digital ou impressa?, 47% preferem a impressa, e 53% têm preferência pela leitura digital.

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Sobre a questão 9 - Você sabe o que é um e-reader?, cerca de 35% responderam sim; em torno de 38% disseram que não, e aproximadamente 26% já ouviram falar, mas não têm certeza. Na questão 10 - Você já comprou ou compraria um e-book?, o resultado é surpreendente, uma vez que mais de 56% afirmaram que não compraram e não comprariam um e-book, contra cerca de 17% que já compraram, e 26% que não compraram, mas comprariam. Na questão 11 - Você é usuário de redes sociais, como o Facebook?, apenas um estudante respondeu que “não utilizava redes sociais, mas já havia utilizado”; quanto ao restante, todos são usuários. Na questão 12 - Se fosse criada uma espécie de rede social de leitores no campus, com acesso a obras gratuitas na internet, possibilidade de troca de mensagens, compartilhamentos, entre outras funcionalidades, como você definiria a sua participação?, 74% responderam “ativo, mas não sempre”, e 26% afirmaram que seriam “plenamente ativos”. Nenhum dos estudantes assinalou que “não participaria”. Analisando os resultados, consideramos essencial esta sondagem no planejamento de ações mais profícuas a serem desenvolvidas na instituição. Surpreende o fato dos estudantes – na maioria da área de informática – registrarem que não comprariam um livro eletrônico, informação de pesquisa que merece ser explorada. Por outro lado, um dado positivo é o fato de os alunos aparentemente apostarem na ideia de criação de uma rede social de leitores, o que nos leva a ver com olhos mais esperançosos a formação de leitores neste espaço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A reflexão sobre as tecnologias intelectuais enquanto suporte ao surgimento de novas formas de cognição é iminente. Nesse sentido, acreditamos nas potencialidades do social reading, leitura coletiva na rede que se vale de estratégias colaborativas e de compartilhamento. Sabedores da importância da leitura na formação da cidadania, bem como na consolidação do capital cultural (BORDIEU, 2005) de uma nação, procuramos sustentar a introdução consciente e planejada da tecnologia no ensino. Os desafios no processo de formação de leitores são consideráveis. Especialmente em áreas cuja formação privilegia os saberes técnicos especializados, a leitura literária não ocupa lugar de destaque, sendo postergada ou até mesmo banida do espaço escolar. Uma vez que não há disciplinas voltadas a promover a leitura de fruição em cursos técnicos ou de graduação em áreas não pertencentes às ciências sociais e humanas, ações de incentivo à leitura não fazem parte das intervenções institucionais. Desta forma, é como se a promoção da leitura, neste espaço, não fosse fundamental na formação destes profissionais. Tal postura corrobora os resultados negativos que assolam o cenário educacional brasileiro em pesquisas sobre a leitura: cresce o número de estudantes considerados analfabetos funcionais no ensino superior. Se as mudanças não ocorrem na educação básica – especialmente no ensino fundamental, onde a problemática surge e se estende para os demais níveis de ensino, é preciso que sejam promovidas ações de incentivo à formação de leitores nos demais níveis. Justifica-se nossa sondagem de pesquisa e a preocupação em experimentar novas formas de leitura, acompanhando as mudanças da contemporaneidade e celebrando a coexistência entre o manuscrito, o impresso, e as novas formas de comunicação no mundo digital (CHARTIER, 2005). Assim, as mudanças ocorrem num cenário de interação entre sujeitos e ferramentas tecnológicas, por meio de processos de aprendizagem que privilegiam a lógica colaborativa das redes de conhecimento, abertas e polifônicas.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre; NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio Mendes (Coord.) Escritos de educação. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2005. CHARTIER, Roger. A leitura do contexto do século XXI. In: RÖSING, Tania Mariza Kuchenbecker; RETTENMAIER, Miguel; WESCHENFELDER, Eládio Vilmar (Org.). Vozes do terceiro milênio: a arte da inclusão. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005. LAJOLO, Marisa. Livros, leitura e literatura em oito anotações. In: FALLA, Zoara. (Org). Retratos da Leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto Pró-Livro, 2012, p. 163-181. LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Trad.: Carlos Irineu da Costa. São Paulo: 34, 1993. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? Trad.: Paulo Neves. São Paulo: 34, 1998. MARAGLIANO, Roberto; PIREDDU, Mario. História e pedagogia nos media. Annablume, 2012. Disponível em: . Acesso em: 1 set. 2015. PROJECT OPEN BOOKMARKS. Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2015. SANTAELLA, Lucia. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013. SPALDING, Marcelo. Alice do livro impresso ao e-book: adaptação de Alice no País das Maravilhas e de Através do Espelho para iPad. Tese. (Doutorado em Literatura Comparada). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. VLIEGHE, Joachim; RUTTEN, Kris. Rhetorical Analysis of Literary Culture in Social Reading Platforms. CLCWeb: Comparative Literature and Culture 15.3 (2013). Disponível em: . Acesso em: 02 set. 2015.

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RASTREANDO UMA NOTÍCIA NA INTERNET: SOBRE UMA POSSÍVEL LEITURA DE PRODUÇÕES DA MÍDIA NA CULTURA DA CONVERGÊNCIA Liége Freitas Barbosa* (ULBRA) Este trabalho é parte de minha dissertação de mestrado, inscrita no campo teórico dos Estudos Culturais em Educação, que estuda a construção midiática das identidades jovens nas Manifestações de junho de 2013 no Brasil. Neste recorte, tenho como objetivos: a) colocar em evidência a marcante participação dos coletivos de jornalismo alternativo/independente nos protestos; b) discutir a perspectiva teórica da cultura da convergência, de Henry Jenkins (2009), que pensa o complexo ambiente comunicacional contemporâneo a partir de fluxos de comunicação que envolvem produtores e consumidores de mídia; c) relatar a minha experiência em um dos movimentos da pesquisa, que consistiu em uma espécie de “rastreamento” de uma notícia sobre as Manifestações de junho de 2013 publicada pelo site da Folha de São Paulo. O exercício buscou identificar um pequeno circuito que revelasse um dos múltiplos caminhos possíveis percorridos por essa notícia na internet, a fim de demonstrar a materialidade da convergência nos protestos. Uma experiência que também pode dizer algo sobre as possibilidades/peculiaridades da leitura de textos culturais no mundo pós-moderno, profundamente marcado pelas novas mídias e tecnologias de comunicação e informação.

1. OS COLETIVOS MIDIATIVISTAS/MIDIALIVRISTAS Tais como outras mobilizações sociais ocorridas recentemente no mundo (como a Primavera Árabe em 2011, por exemplo), as manifestações de junho de 2013 no Brasil tiveram na internet e nas redes sociais um ponto determinante de organização e articulação dos levantes país afora. Segundo Silva (2014), no contexto das manifestações as novas tecnologias “servem para o registro, a conexão ‘ao vivo’, a internet como lugar da transmissão do espetáculo que a performance da ação nas ruas quer contrapor à espetacularização capitalista” (p. 12). Nesse sentido, a internet não teria sido somente o espaço onde os jovens organizaram as mobilizações e protestos através das redes sociais. Na internet, outro segmento que produz jornalismo também atuou nas manifestações: os coletivos midiativistas ou midialivristas, ou seja, a mídia independente e alternativa que, de alguma forma, parece ter conseguido balançar a primazia da grande mídia tradicional sobre a opinião pública. Segundo Peruzzo, entende-se por jornalismo alternativo as práticas jornalísticas baseadas em uma comunicação livre,“que se pauta pela desvinculação de aparatos governamentais e empresariais de interesse comercial e/ou político-conservador. Não se trata unicamente de jornais, mas de outros meios de comunicação, como rádio, vídeo, panfleto etc” (PERUZZO, 2009, p. 133). É uma mídia ativista que ao longo das manifestações de junho ganhou espaço e revelou sua potência ao exibir pela internet o que se passava nas ruas durante os protestos. Ganharam destaque os episódios de violência, de repressão policial e os depoimentos dos jovens desmentindo versões publicadas por grandes emissoras e jornais. De acordo com Bezerra e Grillo (2014), esses coletivos são formados por pessoas que possuem interesses comuns e produzem um jornalismo voltado para debater questões sociais e denunciar excessos das autoridades de governo. Quem atua nos coletivos, o midiativista ou midialivrista, é considerado por alguns autores o “hacker das narrativas”, ou seja,

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Mestre em Educação, Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, Brasil. E-mail: [email protected]

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

é a pessoa que “produz, continuamente, narrativas sobre acontecimentos sociais que destoam das visões editadas pelos jornais, canais de TV e emissoras de rádio de grandes conglomerados de comunicação” (ANTOUN e MALINI apud BEZERRA e GRILLO, 2014 p. 196). Tais coletivos têm como característica serem autônomos, independentes de financiamento empresarial, e valerem-se das novas tecnologias de informação e comunicação. Bezerra e Grillo (2014) também enfatizam o uso que o movimento midiativista faz da estrutura das redes digitais “para comunicar-se diretamente com ‘a massa’, o que evita hierarquias que reproduzam a velha lógica um – todos que dominou a comunicação da grande indústria da informação no século XX” (p. 196). Por isso a atuação desse tipo de grupo de mídia independente tem sido considerada cada vez mais relevante, uma vez que conseguiram estabelecer um modelo de cobertura alternativa que constrói suas narrativas na internet e alcança a massa de usuários do ciberespaço sem passar pelo crivo da grande mídia. No caso do Brasil, Bezerra e Grillo (2014) constatam que o trabalho dos coletivos midiativistas que já existiam ganhou mais visibilidade e adesão a partir de junho de 2013. Ao mesmo tempo, novos coletivos também se formaram e passaram a divulgar vídeos, fotografias e textos sobre os protestos e temas relacionados às suas pautas de reivindicação. A experiência protagonizada pelos grupos de mídia independente proporcionou o surgimento de novos atores que produziram seus próprios registros, relatos e avaliações sobre os movimentos de junho através da rede. Ao mesmo tempo, colocou em questão o privilégio da grande mídia sobre a formação da opinião pública. Os autores observam que “versões apresentadas por grandes emissoras e jornais sobre as manifestações foram sucessivamente combatidas e desmentidas por usuários de redes sociais como o Facebook, Twitter e Youtube”, (2014, p. 204). Ainda, na visão de Bezerra e Grillo, como consequência das divergências entre as narrativas publicadas pela mídia tradicional e as divulgadas pelos coletivos, houve um agravamento no descrédito do público no que diz respeito às informações publicadas pelos principais veículos. Nesse panorama, a cobertura jornalística independente ganhou cada vez mais destaque, a ponto de conseguir pautar os meios de comunicação, como observa Pretto (2013): “Impressionantes eram as imagens que, através das redes sociais, literalmente pautaram a grande mídia. Imagens publicadas – e traduzidas – entre outros pelo New York Times” (p. 3). Muitas das imagens foram produzidas pelo Mídia Ninja (Narrativas Independentes Jornalismo e Ação), um coletivo de jornalistas voluntários que de forma colaborativa cobriu as manifestações em todo o Brasil. Segundo entrevista de um portavoz do grupo à Revista Exame, eles transmitiram os protestos ao vivo usando smartphones e redes 4G e 3G. Cada repórter registrou os eventos de um smartphone realizando streaming ao vivo, pelo aplicativo Twitcasting. Os vídeos eram acessíveis ao vivo na Internet, com links divulgados na página do grupo no Facebook e espalhados rapidamente pela rede, onde milhares de espectadores acompanhavam as transmissões. O Mídia Ninja é composto por 25 colaboradores, entre editores, redatores, social media, videomakers e fotógrafos, espalhados por todo o Brasil (EXAME, 2013). De acordo com Auton e Malini (2013), o Mídia Ninja “produziu uma experiência catártica de estar na rua” (p. 15), atingindo picos de 25 mil pessoas online acompanhando os acontecimentos. Na ótica dos autores, ao discutir, criticar, estimular a intervir ativamente nas transmissões em tempo real, os “manifestantes virtuais” igualmente participaram dos protestos e se tornaram “uma referência por potencializar a emergência de ‘ninjas’ e midialivristas em todo o Brasil” (idem, p.15).

2. CULTURA DA CONVERGÊNCIA: A NOVA ERA DAS MÍDIAS É necessário pontuar a existência de outras perspectivas teóricas e tendências de pesquisa que ao invés de polarizarem os formatos midiáticos em “novos/velhos”, “digitais/tradicionais”, os enxergam sob outra ótica, a partir de fluxos de comunicação que envolvem os produtores e os consu-

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midores de mídia. É o caso de Henry Jenkins1 e a concepção da convergência de mídias, que trata da evolução das produções midiáticas e como nos relacionamos com elas. Na apresentação do livro Cultura da Convergência, de Jenkins (2009), o escritor Mark Warshaw diz que a forma como consumimos as mídias mudou profundamente e que nessa mudança de paradigma se ouviu um discurso apocalíptico que decretou o fim das velhas mídias, dos comerciais, dos programas de televisão e da indústria fonográfica. Contudo, Warshaw é enfático ao dizer: “As velhas mídias não morreram. Nossa relação com elas é que morreu. Estamos numa época de grandes transformações [...]” (p. 8). O paradigma da revolução digital descrito por Warshaw seria um fenômeno dos anos 1990 e supunha que os novos meios de comunicação eliminariam e substituiriam os antigos. Contudo, não foi isso que aconteceu. Segundo Jenkins (2009), o estabelecimento de um novo meio de comunicação não determina a extinção das mídias anteriores, uma vez que essa nova mídia passa a funcionar dentro de um sistema mais amplo de opções de comunicação. As formas antigas de produção midiática não estariam em extinção, mas em transformação. Palavras impressas não eliminaram as palavras faladas. O cinema não eliminou o teatro. A televisão não eliminou o rádio. Cada antigo meio foi forçado a conviver com os meios emergentes [...]. Os velhos meios de comunicação não estão sendo substituídos. Mais propriamente, suas funções e status estão sendo transformados pela introdução de novas tecnologias (JENKINS, 2009, p.39-40).

Com isso, para Jenkins (2009) não existe a anulação de uma mídia por outra, mas sim uma colisão, um cruzamento entre mídia corporativa e mídia alternativa, “onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis” (p. 27). Para o autor, estamos vivenciando na cultura contemporânea o que ele denomina de “paradigma da convergência”, que presume que novas e antigas mídias irão interagir de formas cada vez mais complexas. Por convergência refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais [...] (idem, p. 27).

A convergência, nesse sentido, vai muito além do aspecto tecnológico de evolução dos meios de comunicação, ou seja, ela não se resume a um processo tecnológico onde múltiplas funções podem ser desempenhadas pelos mesmos aparelhos. Para ele, a convergência representa uma transformação cultural “à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos” (27-28). Os smartphones, muito utilizados pelos manifestantes e integrantes dos coletivos de mídia independente nas manifestações de junho de 2013 são um bom exemplo que resume a convergência midiática. A característica de mobilidade proporcionada por estes aparelhos fornece as condições para que as pessoas acessem e criem conteúdo estando em movimento, o que também faz delas consumidoras – produtoras de conteúdo midiático. Mais que um conjunto de funções tecnológicas, o uso e disseminação desses aparelhos também representa uma mudança cultural à medida que os consumidores participam ativamente dos eventos como cidadãos multimídia, produtores de informação que constroem suas opiniões e as publicam na rede. Essa nova era das mídias apresenta seus conteúdos de forma cada vez mais fragmentada, sendo que a circulação destes depende significativamente da participação ativa dos consumidores. É o que Jenkins (2009) chama de “cultura participativa”, expressão que vai na contramão das no Henry Jenkins é professor de Ciências Humanas, fundador e diretor do Programa de Estudos de Mídia Comparada do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Há decadas estuda e analisa a evolução da mídia, sendo considerado um dos pesquisadores da mídia mais influentes da atualidade.

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ções mais antigas que definiam o espectador como alguém passivo face aos meios de comunicação (p. 28). A partir dessa perspectiva, as fronteiras entre produtores e consumidores ficam borradas. Dessa maneira, para Jenkins (2009), não cabe mais nos dias atuais fazer uma polarização entre os produtores e os consumidores como agentes isolados ou distantes no contexto midiático, pois todos são participantes desse processo em constante transformação. Portanto, estamos vivendo a era da convergência onde as mídias estão em todos os lugares, tempo em que as pessoas são ao mesmo tempo consumidoras e produtoras de conteúdos midiáticos.

3. RASTREANDO UMA NOTÍCIA NA INTERNET: SOBRE A MATERIALIDADE DA CONVERGÊNCIA NOS PROTESTOS No contexto da cultura da convergência as informações chegam até nós de forma cada vez mais fragmentada, em um fluxo de conteúdo que envolve múltiplos suportes midiáticos tais como a televisão, o rádio, os jornais, as revistas, os sites da internet, as redes sociais. Os sites de notícia, por exemplo, são grandes portais multimídia que oferecem as informações agregando texto, fotos, áudios, infográficos e vídeos de reportagens transmitidas nos noticiários das televisões. Desse modo, é possível perceber como estão borradas as fronteiras que separavam esses meios de comunicação, que hoje parecem se misturar, se fundir. Sendo assim, considerando este contexto comunicacional que vivemos na contemporaneidade, marcado pela digitalização e migração constante dos públicos, não é mais possível pensar nas mídias de forma isolada: televisão como sendo apenas televisão, jornal como sendo apenas jornal. Instigada pelo paradigma da convergência, pergunto se seria minimamente possível propor uma espécie de “rastreamento”. Encontrar um pequeno circuito que revele um dos caminhos percorridos por alguma notícia que tenha circulado sobre as manifestações de junho de 2013. Seria muita pretensão de minha parte pensar nos possíveis circuitos percorridos por uma imagem, uma notícia ou um vídeo na internet? Acredito que sim, mas ao mesmo tempo penso que é importante uma tentativa visando demonstrar alguns aspectos da materialidade da convergência. Ao iniciar o que encarei como um desafio, percebi que seria muito mais difícil do que imaginei esboçar o circuito de uma notícia na internet, eu diria quase impossível. Porém, essa dificuldade já me deu uma ideia das infindáveis possibilidades e diferentes apropriações das informações na cultura da convergência. Cultura que impressiona com toda a sua produtividade de fluxos de comunicação que se apresentam de maneira imprevisível e dispersa. Selecionei uma reportagem publicada no site do jornal Folha de São Paulo do dia 13 de junho de 2013. A matéria enfatiza a violência da polícia militar contra jornalistas da Folha que cobriam um protesto em São Paulo. A notícia (fig. 1), que traz como título “Em protesto, sete repórteres da Folha são atingidos; 2 levam tiro no rosto”, teve considerável repercussão: 16 mil compartilhamentos no Facebook e 934 postagens no Twitter. Os números estão disponíveis logo abaixo do título da matéria, ao lado dos ícones que identificam as redes sociais.

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Figura 1: Matéria sobre a violência contra os jornalistas da Folha.

Fonte: Folha de São Paulo, edição de 13 de junho de 2013.

O texto coloca em evidência os atos da PM paulista, que atingiu sete profissionais do jornal com balas de borracha ou spray de pimenta. Também dá destaque à jornalista Giuliana Vallone, repórter da TV Folha que teve a região do olho direito atingida por uma bala de borracha e precisou ser hospitalizada. O jornal declarou que “A Folha repudia toda forma de violência e protesta contra a falta de discernimento da Polícia Militar no episódio”. A matéria encerra com declarações de testemunhas que presenciaram os atos contra os jornalistas e com uma nota do secretário da Segurança Pública de São Paulo lamentando os episódios e determinando a abertura de investigações pela Corregedoria da PM. O fato gerou repercussão e a notícia se espalhou pelos sites da internet e nas redes sociais. Em uma rápida pesquisa, ao colocar em sequência as palavras “protesto” “repórteres” “da” “Folha” “são” “atingidos” no Google, o site de buscas identificou dezenas de links sobre a notícia. Alguns simplesmente reproduziram a matéria publicada na Folha, outros escreveram suas próprias versões da notícia. A apropriação da notícia se dá de diversas maneiras e em diferentes portais como o G1 (da Globo), Terra, Zero Hora, entre outros. No Facebook, a matéria é compartilhada, e no Twitter também. No caso dos dois perfis de usuários onde encontrei a reportagem da Folha colocada em circulação, a postagem do Twitter teve mais repercussão, com 28 retuitadas.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

Figura 2: Matéria da Folha de São Paulo compartilhada em perfil do Facebook e no Twitter.

Fonte: Facebook e Twitter.

Também é relevante pontuar que a reportagem reverberou e foram produzidas outras versões da notícia, mais aprofundadas, como um vídeo especial da TV Folha publicado no YouTube. O vídeo, de 27 minutos, contém o registro das imagens do protesto do dia 13 de junho, depoimentos de especialistas, entrevistas com autoridades de segurança de São Paulo e o relato completo da jornalista Giuliana Vallone, atingida no olho por uma bala de borracha. Aqui é possível perceber que a notícia vai ganhando profundidade e novos contornos na medida em que se expande pelas diferentes mídias. Aqui é possível perceber que a notícia vai ganhando profundidade e novos contornos na medida em que se expande pelas diferentes mídias. Após essa breve tentativa de rastrear uma notícia com a proposta de mostrar alguma materialidade da convergência, percebo que é sim uma intenção pretensiosa buscar revelar os passos da circulação de uma informação como esta na internet. Digo isso porque a sensação é de que a matéria da Folha entrou em uma espécie de “espiral infinito”, onde não se sabe mais onde ela de fato começa, que circuitos percorre, a que lugares chega, sendo lida, visualizada, compartilhada, apropriada e postada por usuários da internet de toda parte. Como afirma Castells (2013), “a comunicação digital é multimodal e permite a referência constante a um hipertexto global de informações cujos componentes podem ser remixados pelo ator comunicativo segundo projetos de comunicação específicos” (p. 15). Dessa forma, não há controle sobre os níveis de circulação da informação. As reverberações são múltiplas em um ambiente comunicacional fluído, imprevisível e heterogêneo como o da cultura da convergência. No que diz respeito à circulação, o que é possível considerar, de acordo com Jenkins (2009), é que possivelmente parte dela tenha se dado por estratégias empresarias, talvez até mesmo pelo empenho da própria classe midiática em mostrar repúdio aos atos violentos da PM contra profissionais que estavam trabalhando. Mas outra parte da circulação se deu por uma tática de apropriação popular de usuários da rede. Pois para o autor, é a participação dos consumidores que determina o nível de circulação dos conteúdos: “A circulação de conteúdos – por meio de diferentes sistemas midiáticos, sistemas administrativos de mídias concorrentes e fronteiras nacionais – depende fortemente da participação ativa dos consumidores” (p. 27).

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3.1. UMA POSSÍVEL LEITURA DE PRODUTOS DA MÍDIA NA ERA DA CONVERGÊNCIA Acredito que, adotar o paradigma da convergência como uma perspectiva atual que nos permite refletir sobre o complexo ambiente comunicacional onde estamos implicados, é perceber a emergência da discussão sobre as constantes e profundas mudanças nas formas como nos relacionamos, consumimos e lemos as mídias na contemporaneidade. Sendo assim, poderíamos cogitar que as evoluções tecnológicas que tão rapidamente nos interpelam na era da convergência, também ajudam a promover certas “revoluções midiáticas” ao permitirem maior interatividade e o fluxo livre de ideias e conteúdos entre consumidores. Esse panorama comunicacional e tecnológico que nos apresenta novas formas de produção, consumo e relação com as mídias, também altera a forma como realizamos a leitura de conteúdos na rede, uma leitura que se configura hipertextual, descontínua e fragmentada. Sendo assim, podemos pensar que o exercício do rastreamento da notícia na internet nos mostra o quão peculiar são as formas de leitura de textos culturais no mundo contemporâneo. Uma experiência que reafirma a infinidade de possibilidades e diferentes apropriações das informações na cultura da convergência. Por fim, dividir um relato de pesquisa como este talvez possa contribuir para a reflexão sobre as possíveis formas de leitura que podem ser realizadas acerca das produções atuais da mídia na era da mobilidade.

REFERÊNCIAS ANTOUN, Henrique; MALINI, Fábio. A internet e a rua: ciberativismo e mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013, 278 p. BEZERRA, Arthur Coelho; GRILLO, Carolina Christoph. Batalha nas ruas, guerra nas redes: notas sobre a cobertura midiática da violência em manifestações. Liinc em Revista. Rio de Janeiro, v. 10, nº 1 (2014), p. 195 – 210, maio 2014. CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: Movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro. Ed. Zahar, 2013. EXAME. Coletivo Mídia Ninja usa 4G para transmitir manifestações. Disponível em: . Data de acesso: 3 dez. 2014. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009. PERUZZO, Cicilia M. Krohling. Aproximações entre a comunicação popular e comunitária e a imprensa alternativa no Brasil na era do ciberespaço. Revista Galáxia, São Paulo, nº 17, p. 131- 146, jun. 2009. PRETTO, Nelson. “Saímos do Facebook”: o que quer nas ruas a geração alt+tab? Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo - Conferência Convergência das mídias. Passo Fundo - RS, 2013. Disponível em: . Data de acesso: 15 jun. 2014. SILVA, Regina Helena Alves da...[et.al.]. (Prefácio) Ruas e redes: dinâmicas dos protestosBR. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. 190p. WARSHAW, Mark. Prefácio: Uma bússola num turbulento mar de transformações. In: JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.

A LEITURA E A EDUCAÇÃO 3.0: DEMANDAS UBÍQUAS PARA A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO Lucas Antônio de Carvalho Cyrino* (UPF)

VIVEMOS EM UMA NAÇÃO DE NÃO LEITORES A frase que apresentamos acima, intitulando as considerações introdutórias deste artigo, também introduziu a pesquisa intitulada “Leitura e ubiquidade: o ensino de Literatura na Educação 3.0”, desenvolvida nas disciplinas de Monografia I e II e apresentada ao Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo, sob orientação da prof.ª Dra. Tania Mariza Kuchenbecker Rösing. Embora o senso comum, especialmente na área de linguagens, possa retificar majoritariamente essa afirmação, valemo-nos de alguns dados quantitativos para abordá-la. É o caso, por exemplo, do PISA (Programme for International Student As-sessment1), que mede trienalmente a habilidade de estudantes de 15 anos em matemática, ciências e leitura nos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e em outros países parceiros. Em sua última avaliação, em 2012, o Brasil somou, na área de leitura, 410 pontos – dois pontos a menos que na avaliação anterior, em 2009, quando obteve 412 pontos –, e ocupou a 55ª posição do ranking (BRASIL, 2012) em um universo de 65 países – muito distante de países como Coreia do Sul, Suíça e Holanda, que figuram entre os dez primeiros colocados da pesquisa na área, bem como da média dos países membros da OCDE – 498 pontos. É importante considerar, no contexto do PISA, que a avaliação feita observa o comportamento de jovens em idade escolar, considerando o letramento em leitura como “[...] a capacidade de compreender, utilizar, refletir e envolver-se com textos escritos, com a função de alcançar uma meta, desenvolver seu conhecimento e seu potencial, e participar da sociedade” (OCDE, 2013 apud BRASIL, 2012, p. 38). A pesquisa revela, ainda, outro fator aterrador: em uma escala de proficiência em leitura que vai de 1 a 6, quase 50% dos alunos brasileiros sequer alcança o nível 2. Isso significa que esses alunos não são capazes de compreender e estabelecer relações entre as informações constantes nos diferentes textos a que são expostos, tampouco entender variantes da linguagem utilizada nos mais distintos contextos – observando, ainda, que o teste, em sua complexidade, já inclui, em 2012, o envolvimento do leitor no meio eletrônico em contextos metacognitivos, ou seja, compreende com grande abrangência os suportes e meios de leitura que os jovens têm a seu alcance. As investigações realizadas pelo Instituto Pró-Livro, denominadas Retratos da leitura no Brasil, trazem, também, significativas constatações sobre o cenário da leitura literária e sobre o perfil do leitor do nosso país. Organizada por Zoara Failla, a última publicação dos resultados das pesquisas que ocorreram em âmbito nacional, em 2011, revela um dado alarmante: “leem mais aqueles que pertencem às classes sociais privilegiadas. Mas, por outro lado, políticas públicas, como a distribuição gratuita de livros a escolas e o abastecimento de bibliotecas têm se mostrado insuficientes para incidir [...] sobre os números dessas estatísticas” (2012, p. 4). As pesquisas ainda apontam que o brasileiro lê espontaneamente, ou seja, quando excluídos os livros recomendados e exigidos pela escola, apenas um livro por pessoa/ano – dez vezes menos que os espanhóis, que leem 10,3 livros por pessoa/ano, e duas vezes menos que os colombianos, os que menos leem no contexto ibero-americano depois do Brasil.

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Acadêmico do curso de Letras da Universidade de Passo Fundo. E-mail: [email protected]. Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes, tradução nossa.

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Unânimes em demonstrar a baixa colocação de nosso país e a baixíssima competência leitora de nossos estudantes, esses índices e pesquisas podem, então, representar de modo ilustrativo e abrangente o contexto escolar brasileiro – entre redes pública e privada – principalmente no que tange ao ensino de Literatura. Ao que parece, constatados os baixos índices de leitura e as diferenças socioeconômicas como fatores agravantes no que diz respeito à relação do leitor com o texto literário, os alunos das escolas brasileiras estão cada vez mais desmotivados pela leitura literária. De outro lado, acompanhamos o avanço da tecnologia e do alcance à informação com velocidades estratosféricas. O boom da internet, desde o final do século passado, até a sua popularização massificada nos dias atuais, deu espaço a inventos da indústria robótica, cibernética e informática que, se imaginados há 50 anos, eram vistos como pura ficção – um mérito da literatura, que desde o início dos tempos expõe os reflexos, preocupações e anseios das sociedades. Os espelhos desse desenvolvimento estão diante dos nossos olhos o tempo todo: é difícil encontrarmos alguém que não possua um smartphone, um tablet, um laptop, etc. Diante dessas realidades, a pesquisa teve como principal objetivo apresentar propostas para o ensino de Literatura voltado ao contexto da Educação 3.0, aliando recursos hipermidiáticos, tecnológicos e digitais no processo de ensino e aprendizagem, imprimindo uma cultura de trabalho coletivo em pequenos grupos, com a orientação de professores de diferentes áreas do conhecimento, garantindo uma perspectiva interdisciplinar neste processo. Abordaremos neste artigo algumas discussões basilares que fundamentaram essa pesquisa para que, no contexto hipermidiático e hipertecnológico em que se insere, a aula de Literatura na Educação 3.0 possa ser desenvolvida notadamente como um processo de formação leitora, partindo de considerações sócio-históricas que abrangem o aluno-leitor, a leitura e a educação.

GERAÇÕES INTELIGENTES: 0.0, 1.0, 2.0 E 3.0 Figueiredo nos apresenta, com base nos estudos de Edward Hall em sua obra Beyond Culture2 (1976, apud FIGUEIREDO, 2009) e nas pesquisas do Committee of Inquiry into the Changing Learner Experience3 - CLEX (2009, apud FIGUEIREDO, 2009), as características que diferenciam historicamente essas Gerações. Nos primórdios desse estudo, datado do início da história da humanidade até meados dos séculos XVIII e XIX, emerge a Geração 0.0, que se relaciona com o mundo à sua volta exclusivamente por meio da oralidade, com acesso à educação – e à leitura e escrita – quase que totalmente restrito às classes mais abastadas (FIGUEIREDO, 2009, p. 1). Como advento da Revolução Industrial, surge, no século XIX, a Geração 1.0, que acompanha a popularização da educação e o acesso à leitura e à escrita. Quando em contato com a informação, os indivíduos pertencentes a essa Geração “[...] têm uma atitude de consumo relativamente passiva: assistem a aulas magistrais horas seguidas, sem desconforto maior, e são capazes de permanecer largos períodos frente à televisão, seguindo as sequências que lhes são apresentadas” (ibid., p. 2). É, de fato, a geração que se comunica com o mundo ao seu redor por meio da escrita, que tem acesso à informação pelas mídias ao seu alcance (de acordo com o seu tempo), mas que se comporta exclusivamente de forma consumista, ou seja, apenas consome a informação, sem aberturas para propositivas interações ou reflexões. Nessa mesma perspectiva, sua relação com a aprendizagem é exclusivamente utilitária: esta só se dá quando e se necessária. Em sequência, a partir da metade final do século XX e do início dos avanços tecnológicos no sentido da informática, surge a Geração 2.0, que passa a se relacionar com a informação mais ati Além da cultura, tradução nossa. Comitê de Inquérito para a Experiência de Mudança do Aluno, tradução nossa. Trata-se de um Comitê autônomo formado por pesquisadores das principais instituições de ensino superior do Reino Unido, que tem por objetivo pesquisar o impacto do uso das tecnologias web na educação de estudantes universitários. Informações disponíveis em .

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vamente: os nativos dessa geração produzem informação, não só a consomem; além disso, diferentemente da Geração 1.0 os nascidos na Geração 2.0 começam a habitar o território da tecnologia e da educação, não somente a utilizá-la quando necessário. A multimídia passa a fazer parte do cotidiano e o virtual passa a fazer parte da realidade, embora não seja vivenciado em sua plenitude e totalidade. A atenção dos nativos dessa geração, ainda de acordo com Figueiredo (2009, p. 2), expressa uma inclinação policrônica, tendendo a executar diversas atividades ao mesmo tempo. É a Geração 2.0 que começa a produzir os primeiros avanços tecnológicos que oportunizam, velozmente, o surgimento de outra geração que seja capaz de acompanhar o efêmero e volátil, desenvolvimento iniciado em curtíssimos espaços de tempo. Já no século XXI, a Geração 3.0 é aquela que, consumista e produtivamente, desde o princípio está imersa em tecnologia. Esta geração desconhece as fronteiras do espaço e do tempo, a considerar que, segundo Santaella, “[...] a condição contemporânea de nossa existência é ubíqua” (2013a, pos7. 156). Os indivíduos não apenas nascem e vivem em ambiente tecnológico e virtual, mas vivenciam quase que de maneira dependente as multimídias ao seu alcance – atributos que, num passado não muito distante, pareciam impossíveis à humanidade (ibid., pos. 1851). A leitura do mundo e o aprendizado – não apenas utilitário, mas automático, no aqui e no agora – se dão em uma esfera dinâmica e efêmera; a informação circula com a velocidade de um toque do dedo na tela do tablet, do celular ou de qualquer outro aparelho eletrônico conectado à internet remotamente (FIGUEIREDO, 2009). A Geração 3.0 traz muitos recursos da Geração 2.0, é verdade, mas apresenta, além da ubiquidade nas relações, mídias e tecnologias ao seu alcance, outra característica que a torna ameaçadora e desafiadora aos novos tempos, principalmente quando tratamos da educação, que será abordada em seção posterior: a capacidade de ler, criar, compartilhar e interagir, instantânea e fragmentariamente, com a diversidade cultural peculiar aos mais diferentes grupos sociais. Apesar de embasarmos essas percepções historicamente, é possível percebermos que, ainda de acordo com Figueiredo, as Gerações podem coexistir simultaneamente em nossos tempos. Os cidadãos analfabetos – no Brasil, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, observado em 9,6% da população com mais de 15 anos4 – são pertencentes à Geração 0.0, uma vez que sua comunicação é estritamente oral. Os cidadãos alfabetizados – não necessariamente letrados, ou seja, não necessariamente leitores funcionais – podem ser facilmente identificados como pertencentes à Geração 1.0, visto que são apenas consumidores da informação e da tecnologia ao seu alcance. Não diferente disso, aqueles que pertencem à Geração 2.0 podem ser reconhecidos como produtores de tecnologia, embora tendam a relutar e/ou apresentar dificuldade para vivenciá-la plenamente – o que é feito pelos jovens de nossos dias, fiéis representantes da Geração 3.0. Apresentamos, no quadro abaixo, uma síntese das principais características das diferentes gerações apresentadas, a partir de uma proposta também ilustrativa e sintética sugerida por Figueiredo para a mesma finalidade (2009, p. 2): Quadro 1 – Comparação entre as Gerações 0.0, 1.0, 2.0 e 3.0. Aprendizagem

Geração 0.0 Limitada

Letramento

Não letrada

Relacionamento com a tecnologia

Inexistente

Relacionamento com informação e cultura

Oralidade

Geração 1.0

Geração 2.0

Utilitária

Construtiva

Decodificadora (leitura e escrita) Consumista

Geração 3.0 Ubíqua Multimídia

Conhece e constrói, passivamente

Habita em sua totalidade e plenitude

Construtivista

Compartilhada

Fonte: elaboração nossa.

Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2015.

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REFLEXOS NA ESFERA EDUCATIVA: EDUCAÇÃO 1.0, 2.0 E 3.0 O avanço das gerações que tratamos no capítulo anterior, enquanto capacidade cognitiva dos indivíduos, acompanha diretamente o crescimento da escola como ambiente de aprendizado e desenvolvimento das capacidades e habilidades dos educandos. Isso é refletido numa linhagem histórico-social contínua, em que no início, na Geração 0.0, a relação com a informação se dava exclusivamente pela oralidade; em sequência a essa época, o acesso à educação era limitado às classes mais abastadas – que, por sua vez, acompanhavam a evolução mais rapidamente pelo que podemos já considerar a Geração 1.0, a partir do estabelecimento do acesso ao conhecimento e à comunicação com o mundo por meio da leitura e da escrita. É com a Geração 1.0 que surge a Educação 1.0, predominante na Idade Média e que atendia perfeitamente às expectativas de suas sociedades, a saber: o ensino era essencialmente eclesiástico, tendo a figura do clérigo como educador e detentor do conhecimento. O objetivo da educação centrava-se basicamente em aprender a ler e a escrever como método de decodificação, não de leitura – com exceção à Bíblia, única obra que a pouca população alfabetizada era conduzida a estudar (FAVA, 2012, p. 22). No caminho dessa evolução, quando chegamos à Geração 2.0 – que vivencia o progresso tecnológico como espectadora, embora seja produtora de informação e não apenas consumidora – podemos considerar, com efeito, que a escola acompanha este desenvolvimento quase que da mesma forma – passivamente. Assim, concebemos a Educação 2.0 em seu contexto prático, que é como temos – e vemos – na atualidade, embora algumas vivências de sala de aula, em sua estrutura física e funcional, como a performance do professor como um suposto detentor do saber nesse âmbito, permitam que se faça referência direta e corriqueira à concepção tida do processo de ensino e aprendizagem nos contextos de Educação 1.0. Presume-se que a Revolução Industrial tenha levantado, oportunamente, discussões, questionamentos e posicionamentos pertinentes à humanidade, que já demonstrava um desejo de mudança bastante alarmante e necessário. Entre os seus benefícios, se assim podemos dizer, além de introduzir uma cultura social que possibilitou a implantação da Geração 2.0, aparece nesse contexto a Educação 2.0 como modelo popular e ideal de ensino. Vê-se, pela primeira vez, o desejo pela universalização e democratização do acesso à escola. Da era Industrial, a Educação 2.0 traz o trabalho individual, repetitivo e mecânico em sala de aula (no mesmo modelo de espaço físico que ainda se utiliza), como ferramenta para a construção de um conhecimento que adequasse os indivíduos à sociedade e ao mercado de trabalho em expansão, independentemente de suas precariedades (id.). Fava ainda afirma que, pela proposta meramente informativa da Educação 2.0, a sincronia do sistema – sala de aula com horários e datas definidas para a aprendizagem – pode ser exemplificada pelo “[...] controle de frequência, [no qual] todos devem estar sempre no mesmo local, na mesma hora, para responder a chamada de forma sincronizada” (ibid., p. 45). A partir disso, com o estabelecimento da Geração 3.0, a Educação 3.0 surge no sentido de agregar as diversas novas tecnologias no processo de ensino e aprendizagem de maneira eficaz, interdisciplinar, coletiva, colaborativa, proativa e participativa. Atento a tudo isso, esse novo modelo de educação se preocupa com os conteúdos, as metodologias, os recursos (predominantemente tecnológicos) e principalmente com as habilidades dos alunos, colocando-os como protagonistas do processo. Na Educação 3.0, o professor passa a ser um mediador participante da aprendizagem, acompanhando a qualidade ubíqua – e desafiadora – que é característica da Geração 3.0. Ainda, passa-se a ocupar todos os espaços do meio social e cultural para o ensino, abolindo a estrutura catedrática e secular da sala de aula, desenvolvendo-se todos os espaços físicos e virtuais. Ilustraremos, a seguir, um quadro que pode resumir sucintamente as três esferas de educação vivenciadas, como segue:

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Quadro 2 – Comparação entre Educação 1.0, 2.0 e 3.0. Professor

Educação 1.0

Educação 2.0

Educação 3.0

Fonte de conhecimento, detentor do saber

Primeiros esboços de uma mediação do conhecimento

Mediador/participante

Modelo social

Cristão/eclesiástico

Popular

Ubíquo/compartilhado

Política de trabalho (aprendizagem)

Individual

Repetitivo/mecânico

Hipermidiático/colaborativo

Ambiente

Igreja

Sala de aula

Todos os espaços – físicos e virtuais

Fonte: elaboração nossa.

Apresentamos, até aqui, características das Gerações 0.0, 1.0, 2.0 e 3.0 e Educação 1.0, 2.0 e 3.0 numa perspectiva diacrônica, que norteiam a discussão sobre as demandas da ubiquidade para a formação do leitor literário. Observar e refletir sobre o caminho que as Gerações percorreram até hoje, no aqui e no agora, frente às demandas de nosso tempo, são fundamentais para que possamos compreender os desafios a que somos lançados na esfera da educação, pois, como afirma Santaella, “[...] vivemos em um tempo em que não há mais lugar nem tempo para a nostalgia. A velocidade tomou conta do mundo e se há uma área da ação humana que não permite que fiquemos à janela vendo a banda passar, essa área é a da educação” (2013a, pos. 1822).

AS CONDIÇÕES DA UBIQUIDADE E AS PERSPECTIVAS NA APRENDIZAGEM O avanço constante e estratosférico da tecnologia exige mudanças no comportamento dos indivíduos e das suas relações em sociedade. A ubiquidade, condizente com o surgimento de um leitor ubíquo (cf. SANTAELLA, 2013a, 2013b), diz respeito justamente a uma “[...] disponibilidade e expansão dos acessos à internet, potencializados pela portabilidade conectada, disseminada por toda parte [...]” (ibid., pos. 1851), que, guardadas as proporções, faz cair por terra a máxima newtoniana de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço: uma vez observada a noção – e existência – do ciberespaço, um indivíduo pode interagir ao mesmo tempo com o mundo à sua volta, no plano físico, e com diversos outros grupos on-line, no plano virtual (ibid., pos. 1970). Para isso, é preciso compreender que, diferente de tudo até então, o modelo de aprendizagem ubíqua pressupõe um aprendizado aberto, não podendo ser confundida “[...] com nenhuma forma de aprendizagem existente até hoje [...]” (ibid., p. 24). Isso significa que o modelo de aprendizado que demanda a ubiquidade não se assemelha com as tecnologias do livro impresso, seculares e adjacentes à Educação 1.0; com a educação à distância, tão massificada na popularização do Ensino Superior, em nossos dias; com a aprendizagem em ambientes virtuais (também conhecida como e-learning) ou a partir de aparatos móveis, como tablets, smartphones, etc. (compreendida como m-learning). Todos esses modelos estão intrinsecamente vinculados ao modelo de escola formal, “[...] porque se trata do desenvolvimento de métodos e ferramentas que têm como alvo o processo de aprendizagem incorporado a uma sistemática pré-determinada” (SANTAELLA, 2013b, p. 25), ou seja, todos são extensões executáveis de conteúdos pré-estabelecidos no ambiente da sala de aula. A aprendizagem ubíqua, então, “[...] espontânea, contingente, caótica e fragmentária aproxima-se, mas não coincide nem mesmo com a educação informal e a não-formal” (ibid., p. 26), já que pressupõe uma aprendizagem aberta – o que demanda, ainda, da figura da escola e do professor. Por que, então, existir ainda um modelo de educação, já que, equipado com algum aparato móvel com conexão à internet, qualquer indivíduo pode, a qualquer momento e em qualquer lugar, fazer pesquisas e satisfazer a sua curiosidade? Santaella apresenta uma reflexão bastante plausível para responder a esse questionamento: “localizar conteúdos nas redes está se tornando cada vez mais refinado. Entretanto, localizar não prescinde da capacidade seletiva, avaliativa e da utilização eficaz

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dos conteúdos” (ibid., p. 27). Cabe à escola, então, o papel de mediar esse processo de formação dos indivíduos, determinando a presença de professores leitores. O maior desafio da ubiquidade para a educação, em todas as suas esferas, de acordo com Santaella, “[...] é o da criação de estratégias de integração dos quatro tipos de leitores, contemplativo, movente, imersivo e ubíquo, ou seja, estratégias de complementação e não de substituição de um leitor pelo outro” (ibid., p. 26), principalmente quando se considera que é provável que, do ponto de vista educativo, mediar, na era das tecnologias digitais, implique enfrentar o desafio de se mover com engenhosidade entre a palavra e a imagem, entre o livro e os dispositivos digitais, entre a emoção e a reflexão, entre o racional e o intuitivo. Talvez o caminho seja o da integração crítica, do equilíbrio na busca de propostas inovadoras, divertidas, motivadoras e eficazes (BALESTRINI, 2010, p. 35 apud SANTAELLA, 2013a, p. 27).

Finalmente, é importante perceber, nessa concepção, que a aprendizagem ubíqua interpenetra as outras formas de aprendizagem, coexistindo e colaborando com as demais formas tradicionais construtiva e complementarmente. Não se substitui uma aprendizagem por outra, assim como não se substitui, sobremaneira, um tipo de leitor em detrimento de outro.

O LEITOR DA GERAÇÃO 3.0 Os apontamentos inerentes à aprendizagem ubíqua nos levam a pensar, mais uma vez, no papel do leitor nesse processo, seja ele contemplativo, movente, imersivo ou ubíquo5. Já explicitamos que a Geração 3.0 tem na sua essência a volatilidade com que transita entre ambientes – reais e virtuais – e a velocidade que dispõe para prontamente interagir com o meio hipertecnológico, na ação de promover o compartilhamento de informações entre seus nativos, habitantes plenos das várias mídias ao seu alcance – naturalmente ubíquos. As diferentes mídias que, por distintos suportes, nos dão acesso à leitura desde o início dos tempos, exigem que hoje, em contextos 3.0, vejamos o leitor em duas posições diferentes, interdependentes entre si: a primeira diz respeito ao isolamento, à leitura solitária, ao passo em que a segunda trata do compartilhamento não apenas do ato de ler, mas dos efeitos gerados a partir da leitura. Passemos a discuti-las.

ELE, LEITOR, SOZINHO O isolamento do leitor quando da leitura não é recente: sua primeira aparição se integra ao leitor contemplativo, em sentido histórico, se considerarmos o contexto de seu surgimento, que remete ao silêncio pétreo instaurado nas bibliotecas universitárias medievais (SANTAELLA, 2004, p. 20). O comportamento silencioso e solitário acompanha, também, o leitor movente, ao passo que, dada a realidade fragmentária com que surge e que o obriga a ler excertos da realidade em uma velocidade provocada pelas emergentes e voláteis mudanças da sociedade, vive “[...] sob efeito do transitório, do excessivo e da instabilidade que marcam o psiquismo humano com a tensão nervosa, a velocidade, o superficialismo, a efemeridade, [...] tudo isso convergindo para a experiência imediata e solitária do homem moderno” (ibid., p. 29, grifo nosso). Não de maneira diferente, a leitura solitária se relaciona com a fragmentação e o mergulho em ambiente digital advindos do leitor imersivo, dado que sua atividade leitora em ambientes hipermídia exige o seu desprendimento do mundo real para navegar livremente no ciberespaço, em uma atividade “obrigatoriamente mais livre na medida em que, sem a liberdade de escolha entre nexos e sem a iniciativa de busca de direções e rotas, a leitura imersiva não se realiza” (ibid., p. 33). Se Ver Santaella, 2004, 2013a, 2013b.

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considerarmos, então, que o leitor ubíquo herda do movente a capacidade transitória e superficial de leitura entre nexos e signos e do imersivo a prontidão conectiva com o ciberespaço a partir de qualquer lugar no plano real (SANTAELLA, 2013b, p. 22), é evidente que a sua atividade de leitura – fragmentária – exige, em algum momento, o seu isolamento.

Essa atividade solitária que abrange os quatro tipos de leitores – coexistentes em qualquer tempo, vale ressaltar – está vinculada ao que a Jauss propunha, na Estética da Recepção, de efeitos da aisthesis e da poiesis. Da primeira, porque a atividade leitora pressupõe, por excelência, uma vivência que renova a percepção de mundo do leitor, em uma atitude dialógica do leitor com o texto que leva Zilberman a afirmar que “pensar pensamentos alheios não implica apenas compreendê-los, mas supostamente conduz a uma alteração naquele que pensa, o leitor” (1999, p. 84); da segunda, porque pressupõe o prazer gerado no leitor da apropriação da obra em um sentimento de coautoria e pertencimento, indicativo da incorporação de vivências que até então lhe eram desconhecidas (GLOWACKI, 2007, p. 259). O solitarismo do contato com o texto literário pode ser exemplificado, então, na postura dos distintos leitores, especialmente do leitor ubíquo, quando da navegação entre os nós e nexos do ciberespaço: lendo – fragmentariamente – a tessitura dos textos literários transpostos do impresso ao digital e dos criados nesses ambientes de hipermídia.

ELE, LEITOR, COMPARTILHANDO Quando falamos em ubiquidade, para além da hiperconectividade (hiper)midiática e da capacidade de estabelecer nós e nexos em múltiplas dimensões, estamos falando basicamente na capacidade de compartilhamento que esse conceito emana aos indivíduos, em se tratando de mobilidade digital. Se entendemos que um dos fatores que alavancou as relações ubíquas do homem foi o advento das redes sociais, não devemos ignorá-las e, nesse sentido, não podemos ignorar a presença da principal delas em nossos dias, o Facebook, especialmente quando falamos em leitura. Como afirma Santaella, “[...] a exponenciação no uso das redes sociais deveu-se grandemente [...] à possibilidade de presença on-line e participação contínua nelas” (2013b, p. 23), o que pressupôs – e ainda pressupõe – um envolvimento cada vez maior dos indivíduos com o ciberespaço. É incorporado a esse contexto o terceiro efeito proposto por Jauss na Estética da Recepção, a katharsis, que se associa ao que tratamos por compartilhamento, em contextos 3.0 de Educação, Geração e leitura, sobretudo quando reconhecemos o perfil do leitor ubíquo. Quando esse leitor se relaciona com o texto (literário ou não literário), coteja, também, ligações entre o seu conhecimento prévio, o conhecimento – fragmentado – ao seu alcance e o conhecimento de seus grupos sociais, uma vez que os dispositivos tecnológicos para a interação ser humano-máquina são incorporados à vida humana como uma segunda natureza. A história, a economia, a política, a cultura, a percepção, a memória, a identidade e a experiência estão todas elas hoje mediadas pelas tecnologias digitais (SANTAELLA, 2013a, pos. 1317).

Da mesma forma, como suporte à relação com o texto, o leitor se vale do seu perfil nas redes sociais para corresponder à coletividade sobre os efeitos que a leitura provoca no seu eu, dando forma à ressignificação comunicativa necessária à arte, neste caso literária (GLOWACKI, 2007, p. 259), ao passo que, ainda de acordo com Santaella,

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ao criar um perfil nas redes sociais, as pessoas passam a responder e a atuar como se esse perfil fosse uma extensão sua, uma presença extra daquilo que constitui sua identidade. Esses perfis passam a ser como estandartes que representam as pessoas que os mantêm. Criam-se novas experiências de subjetivação com uma expressividade funcional inédita (Viana, 2010, p. 137). Cada usuário desenvolve uma maneira de uso e de apropriação das redes que lhe é própria. Cada um decide o que ver, consumir ou com quem quer conviver (ibid., p. 123). Hábitos e usos funcionam como pistas das silhuetas subjetivas de cada usuário (op. cit., pos. 1652).

As formas de ler e de se relacionar com o texto, seja por isolamento ou (consequente) compartilhamento, vinculam-se ao ensino de uma maneira que nos parece fácil ilustrar: a escola tradicional – da Educação 1.0 e 2.0, de movimentos mecânicos e individuais, com o professor na figura do detentor do conhecimento – parece insistir, ainda, que a política medieval de leitura individual e silenciosa é o motor do crescimento; de outro lado, a escola da Educação 3.0, com sua política de trabalho colaborativa e participativa, privilegia o compartilhamento de ideias, posicionamentos e reflexões dos alunos, sempre advindos de leituras, investigações e incursões em ambientes hipermidiáticos. Quando um indivíduo lê um texto literário, seja em suporte analógico ou digital, e particularmente quando essa leitura propicia a (re)significação do texto, permite-lhe não apenas o contraste sincrônico e diacrônico de ideias e ideais, mas também a necessidade de compartilhamento – na linguagem, na cultura e na estética – para a vida interativa (on-line e/ou off-line) em sociedade. Esses diagnósticos nos fazem refletir, portanto, no tipo de aluno-leitor que estamos formando. E mais: remete-nos à latente pergunta: como formamos leitores na sala de aula? Mais do que reconhecer a importância de o jovem leitor se relacionar individual e socialmente com os textos que mantém contato, compartilhando suas inferências e discussões, é importante refletirmos, nesse processo, sobre o papel da leitura na Educação 3.0, como um mediador da interação do aluno com o texto e essencialmente leitor de textos para distintos públicos.

A LEITURA LITERÁRIA NA EDUCAÇÃ0 3.0 Muitas são as formas de buscar compreender a leitura no contexto da Educação 3.0. A principal delas, possivelmente, já foi citada algumas vezes no teor deste trabalho: a concepção de fragmentação, que advém como característica da Geração 3.0, dada a sua prontidão conectiva e volatilidade com que transita entre diferentes ambientes, diferentes sites, diferentes nexos na rede virtual. Reconhecido isso, para que possamos compreender a leitura de textos literários na ubiquidade, precisamos, antes, reconhecer alguns pontos que levam a leitura literária à sala de aula. Há uma expressiva gama da literatura que consideramos, academicamente, clássica ou canônica. É essa literatura que, supostamente, chega à sala de aula; é ela, ainda, que possui a capacidade inerente de fazer com que os alunos reconheçam, na manifestação artística e cultural que é o texto literário, como se “comportaram” as sociedades ao longo da história, e que herança cultural é deixada às gerações que lhe sucederam. Essa mesma literatura, porém, não pode ser simplesmente esquecida em detrimento do avanço tecnológico e da literatura digital/eletrônica que surge no novo século (também fragmentada, muitas vezes); ela ainda precisa ser levada até o aluno-leitor, para que ele reconheça a sua carga valorosa no que diz respeito à representação da sociedade, ao seu entendimento sócio-histórico e à ampliação da visão de mundo. O texto literário canônico deve, então, ser transposto para o ambiente virtual, que é onde o aluno-leitor mais facilmente manterá contato – inserido, então, no contexto da Educação 3.0, em uma leitura com suporte hipermidiático, seja por meio de tablets, kindles, laptops, etc. O grande desafio da literatura em meio eletrônico é, então, a partir dos dinâmicos avanços tecnológicos,

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[...] fazer que esses textos, dinâmicos, atraentes, apesar de efêmeros e contextualizados, sejam leituras que abram espaço para aqueles textos que, pela sua qualidade artística, sejam – ou possam vir a ser – perenes. O texto literário, se, com frequência, não tem a riqueza de recursos dos hipertextos jornalísticos, guarda em si a possibilidade de perdurar, pela universalidade que atinge. E isso o justifica como um “sítio” privilegiado de sentido a ser interpretado e reinterpretado. Em trabalho “em rede”, assim, orientado para a leitura hipertextual, é condição fundamental assegurar e preservar o lugar da palavra artística. É fundamental, na rede construída pelos recursos dinâmicos da leitura, jamais igualar os nós (RETTENMAIER, 2007, p. 199.).

Nessa fundamentação, é preciso compreender o texto literário em duas esferas: a primeira trata do texto impresso, que é transposto ao digital, assumindo um novo suporte para disseminação; a segunda, por sua vez, pressupõe um texto criado em ambiente digital e concebe a leitura hipertextual e hipertecnológica na sua essência, possibilitando a fragmentação contextual na comunicação da Geração 3.0. A partir disso, passamos a referir o texto literário também como hipertexto, em um cenário que este desempenhe, [...] simultaneamente, dois atributos que lhe são fundamentais. Em primeiro lugar, o hipertexto permite a “navegação”. Sua conexão com os demais hipertextos permite, da parte do leitor, um “agenciamento intertextual”, que lhe garante a liberdade de saltar, pelo browser, [...] de página para página da infinita rede do www. Em segundo lugar, o hipertexto permite a convergência de várias mídias. Sua natureza multimidial, ou “multimodal”, permite, assim, que se associem palavras (em movimento ou não), som, imagens, vídeo, gráficos, diversas linguagens num único suporte [...] (RETTENMAIER, 2007, p. 196).

A natureza associativa de convergência entre mídias, conexões e linguagens é o que também integra o conceito pretendido de Educação 3.0, principalmente no seu poder de promoção da interdisciplinaridade e promoção da participação colaborativa e interdisciplinar entre professores e alunos no processo de ensino e aprendizagem (LORDE, 2013), seja ele tradicional (já que, aparentemente, o desejo comum pela continuidade de um ensino catedrático ou o medo de desafiar-se ao novo é latente) ou ubíquo. O exercício de uma leitura hipertecnológica, ou seja, em ambiente digital, voltada ao contexto da Educação 3.0, ainda corrobora com o estímulo ao perfil ubíquo do aluno-leitor que predominantemente encontramos em sala de aula. A participação da leitura – e da aula de Literatura – nas redes, especialmente nas redes sociais, onde o compartilhamento é instantâneo e chama aos olhos de praticamente todos os alunos, reforça [...] a criação de uma identidade digital, inclusive estimula a possibilidade de assumir várias identidades ou papeis para o exercício da fantasia, imaginação e de novos tipos de narrativas ou ficções. [...] Por isso, é fundamental que ‘as pessoas tenham a habilidade de ordenar seus objetos digitais e de administrar suas identidades digitais’ (Viana, 2010, p. 54), uma vez que as redes se constituem em ambientes em que cada um tem a visibilidade no seu entorno, dependendo do uso que decide fazer dele [...] (SANTAELLA, 2013b, pos. 1659).

Essa identidade digital, então, agrega-se às formas de ler – de naturezas solitária e compartilhada – pressupostas pela atitude do leitor em contextos 3.0, evidenciadas nessa pesquisa com aporte na Estética da Recepção (cf. JAUSS, 1979 e GLOWACKI, 2007). Coloca-nos, ainda, frente à necessidade de reconhecer a esfera da cultura permeada por distintos leitores e as perspectivas interdisciplinares e intertextuais que envolvem o ato de ler, especialmente em ambientes hipertecnológicos.

O PAPEL DO PROFESSOR DE LITERATURA NA EDUCAÇÃO 3.0 Por muito tempo se acreditou que o professor fosse o personagem principal no processo ensino-aprendizagem. Essa afirmativa, muito possivelmente, levou a Educação 1.0 a colocar o educador na posição de detentor do saber – feito que até hoje é espelhado no comportamento de alguns docentes,

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mesmo no contexto predominante de Educação 2.0 que encontramos nas escolas. Uma vez que estamos lançados à desafiadora Educação 3.0, Santaella afirma que [...] o desafio maior que a aprendizagem ubíqua traz aos sistemas de ensino é a pressão que ela causa sobre o papel tradicional do professor, que, agora, mais do que nunca, está longe de ser o detentor do saber. Quando a aprendizagem se encontra em céu aberto, qualquer aprendiz pode trazer, para o mestre, informações que este não detém. Conclusão: novas modalidades de diálogo estão emergindo, para as quais o professor deve estar preparado na medida em que tiver a segurança serena em relação ao fato de que ficou no passado a era na qual costumava ser o detentor altissonante da transmissão e da transferência de conhecimento (2013b, pos. 4602).

Essas peculiaridades tornam o conteúdo a ser trabalhado entre professores mais complexo, o que pressupõe um professor mais preparado para a interdisciplinaridade e, no que diz respeito aos docentes de Literatura, exige um perfil de professor-leitor das manifestações da cultura, atento às múltiplas leituras de seu tempo, capaz de mediar leituras para distintos públicos. A aprendizagem vem transcendendo os limites da sala de aula para ambientes virtuais, e o papel do professor passa a ser um conjunto amplo de atividades que direcionem à interdisciplinaridade, sejam elas de mediação, condução, gestão, mobilização, motivação (FAVA, 2014, p. 69). É a partir desse preceito que a atividade dos docentes, hoje, pode ser resultado do que Pierre Levy chama de comunidades de conhecimento, “[...] mantidas por meio da produção mútua e troca recíproca de informações” (ibid., p. 70), ou seja, condicionadas por atividades interdisciplinares – que demandam, por excelência, múltiplos letramentos. Essas atividades são explicadas por Levy da seguinte maneira: o conhecimento de uma comunidade de pensamento não é mais conhecimento compartilhado, pois hoje é impossível um único ser humano, ou mesmo um grupo de pessoas, dominar todo o conhecimento, todas as habilidades. Trata-se, fundamentalmente, de conhecimento coletivo, impossível de reunir e uma única criatura (1999, apud. FAVA, 2014, p. 71).

Em oposição parcial a esse conceito, já defendemos neste mesmo capítulo o compartilhamento quando tratamos da atividade leitora como efeito formador, especialmente com base na Estética da Recepção do texto literário e no contexto de Geração 3.0 perante as mídias e redes sociais existentes na atualidade. Contudo, não deixamos de concordar com a condição colaborativa e coletiva do conhecimento em comunidade, proposto por Levy, principalmente porque “essa cultura [...] não ocorre apenas por meio da tecnologia. Por mais sofisticada que venha a ser, ocorre na atitude, na conduta, na ação, na postura, no comportamento [...] [do professor e] da escola, em suas interações sociais uns com os outros” (FAVA, 2014, p. 70). Na Educação 3.0, especialmente, o que se espera do educador é que ele seja um mediador do processo, que “[...] saiba oferecer causas, muito mais que conteúdo; que promova o desafio, gere necessidade, estimule e não apenas exija” (ibid., p. 72). O desafio do professor de Literatura, nesse novo contexto, está aliado ao que Santaella já propôs como o principal desafio da ubiquidade para a educação: buscar formas de integrar os diferentes tipos de leitores (2013b). O cerne do papel do professor, então, resta definido como um mediador de leitura que seja na sua essência um leitor de textos para diferentes públicos, que dialogue com os distintos perfis leitores e que busque, de fato, formar leitores, capazes de interagir interdisciplinarmente com a cultura, em múltiplas linguagens e meios – hipertecnológicos ou analógicos, virtuais ou reais. O que afirmamos, pois, não quer dizer que o contexto histórico não seja importante, dado que a historicidade evoca o conhecimento intercultural da humanidade, tão importante à formação discente; mas sim que o texto literário pode – e deve – ser o objetivo (e o objeto) central do ensino de Literatura, e não um pretexto para um ensino meramente diacrônico. O texto só pode ser pretexto se assumir o papel de contexto: se evocar as discussões que promovam, na sua essência, a autonomia, a criticidade, a interdisciplinaridade e a leitura de manifestações artísticas e culturais das sociedades de qualquer época (cf. LAJOLO, 2009).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Como ensinaremos Literatura numa perspectiva interdisciplinar, a partir de suas relações com a cultura, inserida no contexto da Educação 3.0? Esse é o questionamento que moveu a pesquisa que deu origem a este trabalho. Não tempos uma resposta objetiva – e muito menos queremos tê-la, já que tratamos e defendemos amplamente conexões e aprendizagens colaborativas, interdisciplinares, compartilhadas e infinitas. Nesse contexto, nenhum trabalho é único, finito, detentor de toda a verdade; o que buscamos, muito modestamente, foi – e é, continuará sendo – apontar caminhos. A escola se distancia do aluno na medida em que não reconhece as transformações que acontecem à sua volta. Seus projetos desconsideram interesses e necessidades dos alunos, que para além dos muros da escola, aprendem interdisciplinar e colaborativamente entre si, fazendo uso de todos os aparatos tecnológicos contemporâneos. Essa realidade impõe novas atitudes docentes, capazes de aproximar os alunos da leitura literária, independentemente do suporte de leitura. Ainda, é fundamental que o professor reconheça o potencial das redes e mídias ao seu alcance, compreendendo a velocidade e volatilidade com que as relações se dão em perspectivas interdisciplinares e multimidiáticas nesses suportes, em conformidade com o posicionamento de Santaella: Estamos hoje em plena era dos tablets e outros dispositivos de interface gestual com potencial inegável para a reconfiguração qualitativa da educação na pluralidade de seus aspectos. Mas, para que essa reconfiguração se dê, exige-se a redefinição cabal, a partir de pressupostos digitais, dos paradigmas pedagógicos herdados do passado. Portanto, os desafios que a realidade educacional hoje apresenta colocam-nos diante da necessidade de mirarmos novos alvos com energia nos braços, muita atenção no olhar e vontade firme no coração (SANTAELLA, 2013b, pos. 1825).

O desafio da mudança está posto e determina novas práticas pedagógicas, alicerçadas no contexto da Educação 3.0, que demanda comportamentos ubíquos para a formação do leitor literário. A tarefa em que se constitui esse desafio, em sua complexidade, exige que o professor seja, antes de tudo, leitor, para que possa se constituir num mediador de leitura capaz de interagir com e integrar diferentes tipos de leitores nas práticas sociais e culturais em diferentes suportes. Evidenciam-se, portanto, novas relações entre leitor e texto, do impresso ao digital, que convergem no processo de significação e formação de identidade dos indivíduos na ubiquidade.

REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Relatório nacional PISA 2012: resultados brasileiros. São Paulo: Fundação Santillana, 2012. Disponível em: . Acesso em: 3 jun. 2015. FAILLA, Zoara (Org.). Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto Pró-Livro, 2012. FAVA, Rui. Educação 3.0: como ensinar estudantes com culturas tão diferentes. Cuiabá: Carlini e Caniato Editorial, 2012. _____. Educação 3.0: aplicando o PDCA nas instituições de ensino. São Paulo: Saraiva, 2014. FIGUEIREDO, António Dias de. A geração 2.0 e os novos saberes. In: SEMINÁRIO PAPEL DOS MÉDIA DAS JORNADAS CÁ FORA TAMBÉM SE APRENDE. 2009, Coimbra, Portugal. Anais.... Disponível em: . Acesso em: 16 jun. 2015. GLOWACKI, Rosamari. Estética da recepção: a singularidade do leitor e seu papel de coprodutor do texto. In: SCHOLZE, Lia; RÖSING, Tania M. K. (Orgs.). Teorias e práticas de letramento. Brasília: Inep, 2007. JAUSS, Hans Robert et. al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. Será que não é mesmo? In: ZILBERMAN, Regina; RÖSING, Tania M. K. (Orgs.). Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. LORDE, Claude. Education 3.0: flipping the learning from consumers to producers of knowledge. In: DIDAKTIK 3.0 SYMPOSIUM, 2013, Heilbronn, Alemanha. Disponível em: . Acesso em: 17 jun 2015. RETTENMAIER, Miguel. A leitura literária e o hipertexto na sala de aula: do centro à periferia. In: SCHOLZE, Lia; RÖSING, Tania M. K. (Orgs.). Teorias e práticas de letramento. Brasília: Inep, 2007. SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. _____. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013a. 1 e-book Kindle. _____. Desafios da ubiquidade para a educação. Revista Ensino Superior Unicamp, Campinas, 2013, n. 9, abr.-jun. 2013b. p. 19-28. ZILBERMAN, Regina. Leitura literária e outras leituras. In: BATISTA, Augusto G.; GALVÃO, Ana Maria de O. (Orgs.). Leitura: práticas, impressos, letramentos. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

SEM FECHAMENTO, EM TEMPO REAL: A PRODUÇÃO E A RECEPÇÃO EM BLOG JORNALÍSTICO Mateus Mecca Rodighero* (UPF) Miguel Rettenmaier** (UPF) Quando Gutenberg inventou a prensa no século XV, as possibilidades de leitura se multiplicaram junto com as páginas dos livros. Não era mais preciso escrever à mão para reproduzir um texto. As reproduções tornaram-se mais comuns e a sociedade moderna e contemporânea adaptou-se a esse ritmo de produção e oferta de textos. Os dispositivos de armazenamento de texto também evoluíram com o passar dos tempos e com o progresso da modernidade. Livros e papéis foram abrindo espaço para computadores. Para Chartier (1998), a comunicação eletrônica proporcionou a “superabundância textual”. Com o passar do tempo e com as mudanças que aconteceram na sociedade, especialmente com a evolução da tecnologia, percebe-se que as formas de leitura e os tipos de leitores também mudaram. A cibercultura de Lévy (1996) abre espaço para a interação, para o hipertexto, uma forma de construção do pensamento baseada em links (nós), e a constituição de um novo tipo de leitor, definido por Santaella (2004) como “imersivo”. O jornalismo também se apropria dessas novas ferramentas, sendo ao mesmo tempo desafiado por elas. Na última década, grandes e tradicionais mídias adotaram “braços” na rede virtual. Sites, redes sociais e blogs passaram a ser ferramentas de disseminação na internet. No mundo virtual não há mais o deadline, a noção de fechamento. Há uma abertura constante, em tempo real, que motiva a participação de quem lê e a atualização de quem escreve. Além dos sites, os weblogs (blogs) ganham destaque. Esse artigo investiga e analisa os efeitos da recepção na produção de blogs jornalísticos, a partir da seguinte pergunta de pesquisa: como se estabelece a relação de interação entre jornalistas e leitores pela via das mídias digitais, em específico, em blogs jornalísticos, em um contexto em que a imprensa obriga-se a trabalhar a informação “sem fechamento, em tempo real”? A partir da observação de quatro blogs jornalísticos, hospedados no site do jornal Zero Hora e de entrevistas com os jornalistas pretende-se compreender a forma como esse leitor se relaciona com o texto e com os autores.

1. ESCRITA E LEITURA: LETRAS, TELAS E LABIRINTOS Das pinturas rupestres, na Pré-História, até a superabundância textual do mundo da comunicação eletrônica, passaram-se milhares de anos. Formatos e plataformas mudaram, mas o texto segue contando a História da Humanidade. Os primeiros livros teriam surgido há 5.300 anos, de acordo com Zilberman (2007). A utilização e a necessidade de escrever passaram a garantir um aprendizado, tal qual viria a ser a escola, muitos séculos mais tarde. A escrita passou a ser a fiadora da permanência da cultura ao longo dos anos. “Mesmo antes da difusão da leitura entre as diferentes classes sociais, [...] era a tradição escrita, não a transmissão oral, que afiançava a vários povos a permanência de sua cultura ao longo do tempo” (ZILBERMAN, 2007, p. 184). Até meados de 1.400 d.C., só era possível reproduzir textos à mão. Segundo Chartier (1998), a prensa de Gutenberg foi uma revolução.

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Mestre em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutor em Linguística e Letras, Pontifícia Universidade Católica-RS, Brasil. E-mail: [email protected]

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A nova técnica de imprimir livros por meio de tipos móveis transfigurou a relação com a escrita. Com a invenção da prensa e da tipografia na Europa em meados de 1450, foi possível reproduzir textos em uma escala, até então, impensável. A revolução causada pela prensa só ganhou uma concorrente de tamanho ou maior impacto com o surgimento das plataformas digitais de escrita e, consequentemente, de leitura. Tudo isso só chega ao fim do século XX, com o advento da informática, da internet e do mundo digital. Entre o século XX e o XXI surge o que Chartier (2007) define como a revolução das revoluções. A “era digital”, conforme Santella (2004), possibilitou a convergência de formatos, conteúdos e plataformas em uma tela. O suporte principal dessa nova etapa é a multimídia, baseada na escrita hipertextual. Defensor da interatividade nesse contexto digital, Xavier (2007) aponta que a evolução da Internet fez surgir a Web 2.0. Essa nova fase levaria em conta muito mais as pessoas do que as tecnologias utilizadas: “trata-se de um novo paradigma de internet, cujo objetivo principal é gerar conteúdo proveniente dos próprios usuários ou alimentado por eles” (XAVIER, 2007, p. 37). A principal diferença da primeira para a segunda fase da internet é a maior capacidade de participação e intervenção dos navegadores na construção do conteúdo que deve ser disponibilizado na rede. O leitor da tela não é apenas contemplativo, que segue a sequência de um livro. Santaella (2004) chama de leitor imersivo, que proporciona um modo totalmente novo de leitura, distinto não só do leitor contemplativo da linguagem impressa, mas também do leitor movente, pois não se trata de um leitor que tropeça, esbarra em signos físicos, materiais, como é o caso desse segundo tipo de leitor, mas de um leitor que navega numa tela, programando leituras (SANTAELLA, 2004, p. 33).

É o leitor conectado por nós (links) num roteiro em que todas as sequências são possíveis, basta que ele construa as relações. Para a autora, este leitor imersivo ainda é pouco conhecido, mas algumas evidências surgem em meio ao processo de leitura. “É uma atividade nômade de perambulação de um lado para outro, juntando fragmentos que vão se unindo mediante uma lógica associativa” (SANTAELLA, 2004, p. 175).

2. JORNALISMO E TECNOLOGIA: DA PRENSA AO BLOG Não foi apenas para o mundo dos livros que a prensa de Gutenberg foi decisiva. A invenção da tipografia pode ser considerada um dos marcos do surgimento da atividade jornalística. Por volta do século XV, as mensagens eram transmitidas por viajantes. Era a forma encontrada para informar alguém, em outra localidade. Não é exagero afirmar que Gutenberg causou uma revolução. Depois dele, vieram os impressos, que mudaram para sempre a forma de transmitir informações. Surgiram os folhetins, os jornais, as revistas. Mais tarde os meios massivos de comunicação, como rádio e televisão. Por fim, todas essas plataformas seriam vistas convergindo em um único suporte, a web, pano de fundo desta pesquisa. Cádima (1996) entende que o ineditismo da criação de Gutenberg mudou os rumos da sociedade contemporânea, passados mais de 500 anos. A tipografia substituiu a palavra oralizada, modo de comunicação mais comum nos séculos anteriores. Após o surgimento da prensa, a oralidade do discurso é substituída pela mediatização. Para entender a noção de jornalismo, é preciso entender o conceito de esfera pública, um espaço social imaginário em que particulares e figuras públicas discutem questões de interesse social. Antes da imprensa, essas discussões ocorriam em ambientes públicos. Em função dessa necessidade é que surge o jornalismo. Dessa forma, para compreender a função dos meios de comunicação nesse contexto, é fundamental traçar uma linha histórica, desde o surgimento dos espaços públicos de discussão até chegar no estágio atual das plataformas digitais de comunicação.

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Não seria exagero afirmar que as redes sociais tiveram suas primeiras origens há mais de quinhentos anos, com a emergência da esfera pública burguesa. No entanto, o espaço público surge como a evolução de uma sociedade ansiosa por espaços conversacionais. Para Cádima (1996), a Antiguidade é repleta de exemplos. Na Grécia e na Roma Antiga, os suportes de escrita eram vários. É fato que algumas características fundamentais que definem o jornalismo apareceriam mais tarde. Os Romanos também traçaram algumas linhas do que viria a ser consolidado após a invenção de Gutenberg. Na Roma Antiga, muitos fatos de interesse público eram registrados nas Actas Publicas. A evolução para estágios mais avançados foi lenta e gradual. Durante a Idade Média, com o fim do Império Romano, o poder bárbaro tomou as áreas dominadas anteriormente pelos romanos. Assim, a cultura e a informação ficaram restritas. A notícia só voltaria ter real interesse social muito tempo depois, por volta do século XIV. Chega-se então ao século XV e, com ele, a prensa de Gutemberg, o que mudaria os rumos da sociedade contemporânea. Conhecido como o Século das Luzes, o século XVIII teve grande disseminação dos jornais impressos. Foi nesse mesmo período que o jornalismo apareceu nas Américas, inicialmente pelos Estados Unidos. No Brasil, o início da atividade jornalística é datado do começo do século XIX. Essa primeira etapa do jornalismo nacional, conforme apontam os autores, é dominada por impressos opinativos chamados de pasquins, panfletos políticos sem grande compromisso com a verdade. O século XX é período de disseminação do rádio, recém inventado. A televisão surgiu no país no início dos anos 50. Segundo Squirra (1990), “a televisão não revolucionou a informação, ela trouxe um elemento importante, que é a imagem instantânea e seu grande poder de comunicação” (p. 50). Foi nesse ponto que o novo veículo se destacou sobre os demais que existiam até então, uma vez que a televisão apresentou a capacidade de reforçar seu texto com as imagens. A internet emerge em meio a esse novo contexto. Uma das grandes vantagens dessa nova plataforma é a capacidade de convergência dos conteúdos jornalísticos. O perfil do profissional que atua no jornalismo também muda com essa nova oportunidade. “O jornalista na Web organiza um tempo que não existe mais” (MIRANDA, 2004, p. 27). O processo de edição, comum na prática jornalística, muda de sentido. Não há mais fechamento diário, a prática do acabamento torna-se dispensável, uma vez que a plataforma está aberta o tempo todo. É para este espaço que migram diferentes produtos jornalísticos tradicionalmente enraizados em outras plataformas. Os weblogs surgem nesse contexto. Um fenômeno ocorrido especialmente nos Estados Unidos ganhou o mundo do jornalismo. Grandes mídias tradicionais começaram a sofrer com crises e dificuldades financeiras na última década e o principal meio de aposta foi o ciberespaço, segundo Hewitt (2007). Jornalistas passaram a adotar uma plataforma em expansão, com custo baixo e de grande repercussão. Era o início dos weblogs. De acordo com o autor, o primeiro blog surgiu em 1999. A origem dos blogs, de acordo com Silveira (2010), está nos diários íntimos. Durante muitos séculos, mulheres adotavam esse recurso para guardar memórias. Beiguelman (2005) lembra que o blog define um site sem finalidades comerciais, com registros atualizados frequentemente. Para que uma página possa ser classificada como blog ela deve preencher algumas premissas básicas, segundo Beiguelman (2005, p. 70), tais como: ser opinativo, gratuito, oferecer o compartilhamento, além de utilizar elementos hipertextuais. Segundo Hewitt (2007), uma forma de garantir sucesso como blogueiro é saber entender o meio, a blogosfera. Conforme o autor, o responsável pelo blog deve manter contato com seu público, mostrando-se útil. Além disso, precisa se preocupar com um leitor que não está em um local definido. O blog é uma plataforma de escrita em que uma das principais características é a colaboração de leitores com os autores. Nesse novo espaço, percebe-se que as conexões possíveis entre autores e leitores contribuem para alterar a forma de produção. Segundo Santaella (2010), os blogs são a prova dessa nova possibilidade, assim com as redes sociais coletivas. “Apesar de ser construído como

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um espaço pessoal, pode ser transformado em uma rede social por meio dos comentários e dos links” (SANTAELLA, 2010, p. 274). Primo (2006) reforça essa potencialidade, quando compara um post de blog a um fórum de discussão. Ao receber o retorno dos seus leitores por meio de texto instantâneo, o blogueiro passa a ter uma maior percepção sobre seus escritos. O processo é dinâmico, envolvendo todos os participantes. O fundamental é identificar a forma como os integrantes desse espaço se relacionam. Após esses conceitos e entendimentos sobre o novo campo da profissão, o estágio atual do jornalismo na web e as possibilidades interativas, permite-se explorar a pesquisa nos blogs escolhidos como corpus deste estudo, fazendo a análise proposta.

3. BLOG: CONVERSAÇÃO VIRTUAL, REAL COMUNICAÇÃO? Que a evolução da tecnologia possibilitou ao homem novas formas de escrita, novas bases para manifestações textuais e outras possibilidades de leitura não se pode negar em pleno século XXI. A hipermídia, plataforma desta pesquisa, sugere trazer mais do que uma nova tela capaz de oferecer signos e símbolos de comunicação e os autores citados como fonte reforçam esse novo mundo. O que se faz agora é analisar os efeitos da recepção na produção de blogs jornalísticos, sob a perspectiva do jornalista, analisando alguns cases que venham a confirmar ou refutar tais afirmações teóricas. O artigo popõe a sistematização da análise a partir de categorias em comum, na tentativa de se compreender como se dá a relação de leitores e autores. Para tanto, escolheu-se um leque de quatro jornalistas de editoriais diferentes, que têm como prática o compartilhamento de ideias em duas mídias – o impresso e o digital – por meio de colunas de opinião e páginas pessoais, os blogs. O jornal escolhido foi o Zero Hora, periódico diário de maior tiragem e circulação do Rio Grande do Sul. A data definida como marco de análise foi 30 de novembro de 2014. Nesta data, foram observados os últimos cinco posts disponíveis em cada um dos quatro blogs, hospedados no site www. zerohora.com. Ao mesmo tempo, realizaram-se entrevistas com os autores. O jornal Zero Hora é o principal periódico impresso do Rio Grande do Sul, com 50 anos de existência. Foi fundado em 1964, após o fechamento do Última Hora e comprado em 1970 pelos empresários da família Sirotsky, que já detinham rádios e emissoras de TV como a Gaúcha. Na web desde 2007, a ZH online já enfrentou inúmeros processos de mudanças. Segundo o próprio site, o objetivo da evolução tecnológico é proporcionar facilidades aos leitores, que migraram do papel para o digital. Hoje é possível acessar a Zero Hora por tablets e smartphones, além do impresso e da web. Jornalistas tradicionais do meio impresso também foram obrigados a se adaptar a uma nova realidade de produção. É exatamente sobre essas mudanças no processo produtivo que este trabalho se apresenta para uma melhor compreensão dos fatos. A etapa de observação foi realizada com total autonomia do pesquisador, uma vez que os posts estavam disponíveis na internet. Já as entrevistas, a partir de roteiros definidos, foram realizadas individualmente. As duas etapas ajudaram a compreender na prática como a relação dos autores com os leitores se estabelece nesses espaços digitais de jornalismo. Esta não é uma pesquisa quantitativa, que pretende encontrar resultados a partir de números. No entanto, os dados também podem ajudar a compreender uma realidade. Quando um pesquisador propõe-se a investigar a interação entre blogueiros e leitores, uma das principais evidências sobre essa capacidade, obviamente, é identificar se os comentários estão presentes nesse espaço digital. Primo (2006) compara os posts de blogs a fóruns de discussão. Portanto, cabe aqui uma reflexão embasada em dados. Foram 20 posts de quatro blogs observados, 14 deles com a presença de pelo menos um comentário de leitor. Alguns provocaram dezenas, outros suscitaram uma interação significativamente menor. De uma forma geral, pode-se afirmar que 70% desse universo contaram com alguma ma-

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nifestação vinda do outro lado da tela. Outras seis publicações não tiveram nenhuma repercussão em forma de texto. Tal número causa uma impressão positiva quanto a capacidade interativa do ciberespaço. Segundo Santaella (2004), essas características são inerentes ao tipo de leitor que surgiu com o advento do ciberespaço, o leitor imersivo. De acordo com a autora, é um tipo de leitor capaz de dialogar com o texto construindo os caminhos. Na prática, no entanto, os números não explicam tudo. Embora alguns posts tenham vários comentários, é indispensável avaliar que, em inúmeros casos, os comentários pouco agregam à discussão jornalística, pois desviam totalmente do foco principal da página. Outra característica, desta vez apontada por Miranda (2004), é a possibilidade de abertura total, ao contrário do fechamento dos meios tradicionais. Este é um ponto a ser valorizado. De fato, as mídias digitais oferecem um avanço nesse aspecto. Não há data e hora fixas para escrever. A plataforma está disponível o tempo todo, 24 horas ao dia. Essa foi uma característica apontada por unanimidade nas entrevistas. Entretanto, esta não é uma análise quantitativa. Por isso, observar como a relação se estabelece é foco central dessa pesquisa. Quando se espera encontrar um espaço de grande fluxo de informação, em uma via de mão dupla entre os atores, identifica-se um formato um tanto convencional na relação blogueiro-leitor. Dos quatro blogueiros, dois não respondem a nenhuma ponderação dos internautas que se manifestam. Os outros dois apresentam apenas uma manifestação cada, em meio aos comentários de outrem. Isso contraria alguns conceitos defendidos por Santaella (2010) quando trata das novas possibilidades do mundo digital: a comunicação colaborativa, a interação em tempo real e a capacidade de informar de forma horizontal. De fato, o que se percebe são espasmos de interatividade horizontal e de comunicação colaborativa, potencializados no suporte digital, mas não se transformam em prática corriqueira. Busca-se então uma análise da presença dessa interatividade nos textos originais, não mais nos espaços de comentários. Todavia, a dificuldade em encontrar elementos de interação se repete. Em todos os 20 posts dos quatro blogs analisados, não há uma manifestação sequer da influência dos leitores no texto original. Não há correção, nem acréscimo de informações partindo dos internautas. O que chama atenção é que os quatro jornalistas foram unânimes ao afirmar que levam muito em conta a participação dos leitores. Na prática, analisando os textos, a situação é diferente, tendendo a um descrédito dos autores para com a participação dos internautas. Quando questionados sobre um exemplo prático dessa relação, apenas um dos jornalistas citou um caso em que um leitor teria ajudado na produção de um post. Nesse novo espaço, de fato, há uma mudança. O leitor torna-se mais compartimentado, ele busca o que quer, reforçando o conceito do leitor imersivo de Santaella (2004). É um leitor que lê aos pedaços, sem grande fidelidade com os sites e que tem a chance de interagir com quem escreve. Aqui encontra-se uma outra descoberta deste trabalho: os leitores aproveitam os espaços digitais de leitura para interagirem entre si, mais do que com os próprios autores. A interação com os jornalistas é quase inexistente, enquanto que entre os próprios leitores o diálogo flui. É possível encontrar leitores dialogando entre si nos comentários. Uma das explicações para esse afastamento dos jornalistas dos espaços de interação, segundo os próprios, estaria no nível de discussão proposto pelos internautas. De forma unânime, os blogueiros afirmaram que há muita falta de respeito por parte dos leitores que comentam. Os indícios são vários, segundo as entrevistas e a análise dos posts: leitores que usam nomes falsos para se expressar, termos inadequados para um convívio social respeitoso, desvio do foco da publicação e desinteresse dos internautas em um debate cordial e construtivo. Dessa forma, três dos quatro jornalistas afirmaram pensar, em algum momento, em suspender a atividade do blog.

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Talvez seja esse descrédito que tenha levado todos eles a reduzir o número de publicações, a se afastar dos espaços de discussão, a deixar de utilizar recursos de hipermídia e a ignorar as possibilidades interativas da plataforma digital.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Não há razão de se escrever que não seja para um leitor. Também não se pode ignorar a importância dos suportes, nesse caso a internet, um ciberespaço capaz de relacionar mídias e proporcionar interação entre quem lê e quem escreve. Por isso, o objetivo central foi investigar e analisar os efeitos da recepção na produção de blogs jornalísticos. Após meses de revisão bibliográfica, a partir de autores com pontos de vista diferentes, porém convergentes de maneira geral, chegou-se a oito questões definidas e estruturadas a fim de responder a algumas indagações pertinentes na busca por tais objetivos. Depois de quatro entrevistas e da análise de 20 posts de quatro blogueiros, é possível traçar algumas considerações. Não são teses definitivas, porém apontamentos reais, baseados numa pesquisa de campo com estudo de caso, em quatro blogs disponíveis na página do Grupo RBS. A tecnologia proporcionou mudanças à prática jornalística e na relação que se estabelece entre leitores e jornalistas. Não há mais a urgência pelo fechamento, uma vez que a internet proporciona uma abertura total, já apontada por Miranda (2004). Percebe-se na prática que os jornalistas não têm hora certa para publicar, assim como podem aproveitar a abertura para publicar a qualquer tempo. Também há que se ressaltar que os leitores ganharam a possibilidade de se fazerem ouvidos no espaço cujo texto original parte de um jornalista reconhecido em alguma das quatro editorias aqui representadas. Há comentários em 70% dos posts analisados. Contudo, não se pode cair na euforia tecnológica. Um aspecto é das oportunidades que se abrem. Outro leva em conta o aproveitamento que os atores fazem das tecnologias. Por isso, é de fundamental relevância apontar que, na prática, os resultados são muito menos eufóricos. As descobertas da pesquisa, do contato com a realidade e os objetos pesquisados contrastaram com elementos da teoria, que, ao longo do processo do trabalho, foram sendo desconstruídos. Se, por um lado, grande parte dos posts recebem comentários, por outro, percebe-se que a interação é quase nula na maioria deles. Há posts em que os comentários dos internautas não têm a mínima relação com a publicação original, constituindo-se numa “Torre de Babel”, em que os indivíduos não parecem falar a mesma língua. O diálogo entre leitores e jornalistas é quase nulo. Não há respostas aos comentários, salvo em duas exceções. Os comentaristas, na maioria das vezes, não se identificam de maneira real, criam personagens, muitas vezes agressivos aos blogueiros. Esse fato é observado nas entrevistas e confirmado nas análises. A maioria dos leitores esconde-se atrás de apelidos, não apresenta-se de maneira real, tornando o debate desequilibrado. Do outro lado da tela, isso não acontece. Há intensa agressividade por parte dos leitores, que provocam com palavras ofensivas. Em grande parte dos casos não há respostas. Três jornalistas revelaram significativo descrédito na ferramenta. Alguns, inclusive, passaram a utilizar outros espaços comunicacionais com maior frequência, como as redes sociais Twitter, Instagram e Facebook para publicar seus textos. Na visão deles, nessas redes os leitores têm “rosto”, ao contrário dos espaços de comentários. Essa relação difícil – por vezes até inexistente – é comprovada pela ausência de contribuição dos leitores nos textos originais. De fato tal influência é praticamente nula visto não ter sido encontrada na prática uma contribuição sequer dos leitores. Eis que encerra-se esta pesquisa com poucas evidências de um avanço significativo da presença do leitor na relação com os autores. Há muito mais um debate entre os próprios internautas e uma comunicação no formato convencional.

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De fato, a Web 2.0, o ciberespaço e as ferramentas de “inteligência coletiva”, conceituadas por Lévy (1993), ainda são um mundo a se descobrir. As potencialidades estão à mostra, à espera de quem saiba usá-las. Talvez esteja aí um dos grandes desafios para quem quer estabelecer uma relação de interação efetivamente concreta. É preciso capacitar o usuário, aquele leitor imersivo, conceituado por Santaella (2004). Ter as ferramentas à mão não significa saber usá-las, conforme ficou claro nesta pesquisa. Pelo contrário, é preciso saber manuseá-las e aproveitar suas potencialidades para que, de fato, elas tornem-se aliadas na relação dos leitores com os autores. A capacidade interativa está em potência, é preciso dar combustível à ela. Com essas ferramentas cada vez mais ao acesso dos usuários, há que se disseminar o conhecimento, a fim de que os espaços de diálogo e de interação possam sair da teoria e tornar-se prática. Há que se ter esperança em um futuro com leitores mais capacitados a se apropriar das ferramentas interativas do ciberespaço. Até porque este meio tão rico segue evoluindo. Enquanto se fala em Web 2.0, a terceira geração bate à porta. A web semântica é uma realidade próxima, capaz de processar informações a partir de dados dispersos. O leitor também deverá se adaptar a isso, evoluindo de um perfil imersivo para um caráter ubíquo, de mobilidade, que anseia atingir seus objetivos com rapidez. Enquanto este trabalho é finalizado, outros precisam iniciar para que não nos confundamos em meio a tantas novidades, a fim de que não nos percamos no labirinto da hipermídia, em um universo em tempo real, que nunca se esgota, nunca se fecha, e que, por isso, nos desafia.

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PRÁTICA DE LEITURA ASSOCIADA ÀS TECNOLOGIAS E MÍDIAS Maura Colet Dalchiavon* (UPF) Silvani Lopes Lima** (IFRS) O presente artigo relata os resultados de uma pesquisa-ação aplicada na Escola Estadual de Ensino Médio Vila Maria, no município de Vila Maria-RS, com alunos do primeiro ano do Ensino Médio Politécnico, na disciplina de Língua Portuguesa. Este trabalho desenvolveu metodologias que buscaram o incentivo à leitura literária, através da mídia impressa, e à produção textual ligada às Multimodalidades da língua, envolvendo a mídia informática através do uso do software educacional movie maker e do blog. Com base na fundamentação teórica, observa-se que é necessário integrar as mídias e tecnologias na educação para despertar um maior interesse dos alunos pelos estudos, além de tornar a promoção à leitura e à escrita mais atrativa e condizente com a realidade dos educandos. Após aplicar as atividades planejadas, notou-se uma significativa aceitação das mídias no ambiente de ensino e um resultado muito positivo quanto ao incentivo à leitura e à escrita. As atividades foram realizadas com comprometimento e a aprendizagem se deu de forma real, permitindo aos alunos a interação com as tecnologias e mídias, formando competências e habilidades necessárias a um cidadão crítico e pensante diante do seu papel social.

1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa ora apresentada teve como tema geral a prática da leitura associada às tecnologias educacionais e mídias, com envolto para a produção textual englobando as mais diversas modalidades da língua. Para tal, a promoção da leitura literária se deu através da mídia impressa e a produção textual através da mídia informática, com a criação de um vídeo no software movie maker, utilizando as habilidades e modalidades proporcionadas pela tecnologia. A problemática da pesquisa partiu da ideia de que com a disseminação das mídias e tecnologias e a facilidade do acesso a elas, a prática da leitura literária decaiu. Dentro desse contexto, há um grande desinteresse e desestímulo pela leitura em mídia impressa, principalmente de obras literárias, e, consequentemente, também uma queda na produção escrita, que acaba se restringindo, no cotidiano, apenas à linguagem utilizada na comunicação online ou, na vida acadêmica, aos trabalhos exigidos nas disciplinas do currículo escolar. Cabe a esta pesquisa, então, evidenciar as dificuldades de ensino existentes e/ou incentivar a leitura literária e a produção textual, buscando responder à questão: como promover a leitura literária através das possibilidades oferecidas pelas tecnologias e mídias? Ainda, como utilizar, na produção textual, as multimodalidades da língua advindas com as tecnologias em benefício do ensino e da aprendizagem? Assim, busca-se através de pesquisa-ação trazer os resultados obtidos e as eventuais respostas a essas perguntas. Da mesma forma, almeja-se atingir o objetivo geral da pesquisa que consiste em desenvolver a habilidade da produção textual em vídeo e, por meio disso, o estímulo pela leitura literária em mídia impressa. Além disso, tem-se como objetivo realizar a leitura literária impressa, individualmente, atentando para as cenas da narrativa e para o clímax; compreender o gênero trailer, a fim de, poste-

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Professora Graduada em Letras-LP e Especialista em Língua Portuguesa pela Universidade de Passo Fundo (UPF) - Brasil; Especialista em Mídias na Educação pela Universidade Aberta do Brasil e Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS)- Brasil. E-mail: [email protected] Professora orientadora. Docente no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), câmpus Ibirubá, Graduada e Mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]

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riormente, produzir um trailer do livro lido através de vídeo; analisar as diferentes modalidades de linguagem, como som, imagem, texto, que podem garantir efeitos de sentido relevantes para atingir a finalidade comunicativa do gênero trailer; interagir com a mídia informática e o software movie maker, buscando e pesquisando os recursos que eles dispõem para a produção textual; construir um blog para que a conclusão da produção textual seja dada através do compartilhamento do vídeo com os demais colegas e internautas da rede, a fim de divulgar os trabalhos produzidos pelos alunos; e, por fim, através da mídia impressa e da mídia informática, realçar o gosto pela leitura literária, desenvolvendo o incentivo e o convite à leitura não apenas individual, mas de maneira coletiva, através da curiosidade investigativa. A justificativa desta pesquisa dá-se pela importância da leitura na formação crítica e social do cidadão. A leitura é o principal ícone no ambiente escolar, independentemente de qualquer disciplina curricular e, por isso, deve sempre ser promovida a fim de atingir uma amplitude muito maior do que aquela fincada apenas no conteúdo teórico. Assim, os educandos, em contato com a leitura, principalmente literária, podem ampliar seu nível de conhecimento global, aumentar o vocabulário, conhecer culturas, expressões e costumes diferentes, além de estimular o pensamento e o raciocínio lógico. Além disso, defende-se a realização desta pesquisa, pelo fato de englobar uma pesquisa-ação, objetivando o aprimoramento da prática pedagógica, com envolvimento direto no contexto de sala de aula. Junto a isso, estão inseridas algumas tecnologias e mídias que fazem parte da vivência rotineira dos educandos e que serão levadas para dentro do ambiente escolar, numa tentativa, então, de motivação para a leitura e a escrita. Quanto à produção escrita, ressalta-se que o contato que é tido com múltiplos tipos de textos, advindos do uso das tecnologias, possibilita a produção textual não mais detida apenas em texto verbal e estático, as multimodalidades da língua permitem a junção de múltiplos textos, dentro de apenas um. Nesse sentido, evidencia-se também a pesquisa como promotora dessas habilidades de escrita que se caracterizam por conter várias formas de leitura possíveis apenas por meio da tecnologia. Portanto, a fim de valorizar a importância da leitura e de promover uma produção textual mais dinâmica, envolvendo mais de um tipo de linguagem, através das tecnologias e mídias inseridas no ambiente escolar, é que se defende o desenvolvimento desta pesquisa.

2. REFERENCIAL TEÓRICO Muito se tem discutido sobre o papel que a escola assume diante da formação de seus educandos, haja vista a reflexão de que ela é o ponto central não apenas para a capacitação das habilidades e competências de aprendizagem, como ler, escrever, pensar, realizar contas, mas também pela responsabilidade de humanizar o educando. A humanização garante espaço, voz e vez a todos os integrantes do espaço escolar, de maneira respeitosa e civilizada. Mas a questão-chave é como gerar essa humanização? Quais são as ações que podem contribuir para a mobilização de um cidadão humano? A língua e a sua manifestação na literatura incorporam a cultura e os valores intrínsecos de vários povos e diferentes regiões, e dar ao aluno o alcance e o poder de conhecer essas questões socioculturais faz parte do processo de humanização que a escola deve assumir, procurando tornar seu aluno um cidadão pensante, crítico e atuante no contexto em que se insere. Dessa forma, o processo de leitura literária da escola vai muito além de uma simples tarefa avaliativa, a literatura faz parte da construção social do indivíduo e da coletividade. Nesse sentido, a leitura literária é

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cultivo e cultura das palavras, revisão do imenso legado escrito, que não é outra coisa senão pensar com o já pensado, desejar com o já desejado; definitivamente, sonhar os sonhos das palavras, que dormem no legado da tradição escrita, da tradição real e que ao sonhar com elas despertamos e, ao mesmo tempo em que as despertamos, despertamos com elas a nós mesmos. (LLEDÓ apud COLOMER, 2007, p. 20)

É ressaltando o princípio de humanização através da literatura, que se entende como de fundamental importância a promoção da leitura literária na escola, pelas suas inúmeras vantagens. Dentre elas, destaca-se o exercício do pensamento lógico, abarcado pelas marcas de subjetividade do autor e de sua cultura, bem como o reconhecimento que o leitor faz de si próprio, como ser integrante de um conjunto amplo de civilizações e conhecimentos. Ademais, a leitura literária enobrece o aluno, pois faz com que ele possa conhecer o mundo de forma prazerosa e estimulante, sendo convidado a retornar ao livro para que sua curiosidade cesse e, assim, tornar a tarefa um hábito que fundamenta o progresso e o desenvolvimento do domínio da língua oral e escrita. É dentro dessas concepções de ensino de Língua Portuguesa que se interpreta a leitura como suporte para a escrita, ou seja, quanto mais leitor for o aluno, melhor será sua habilidade de escrita. Então, voltando-se para as questões de produção textual, também é papel da escola promover a escrita, porém de forma consciente, crítica e sempre com um propósito. Toda atividade linguística é marcada por uma finalidade discursiva, buscar isso na produção textual da escola é simplesmente tornar real e significativo algo que, a princípio, serviria apenas como avaliação ou tarefa a ser cumprida. Assim, a escrita, conforme Antunes (2003, p. 45), implica uma relação cooperativa entre os interlocutores, procurando cumprir sua função comunicativa e atingindo um objetivo específico que está ligado diretamente ao público-alvo do texto. Além dessa reflexão, é necessário destacar que a escrita com vistas a atingir uma função comunicativa é mais atraente e motivadora aos alunos, pois passa a fazer parte do jogo de comunicação entre eles e quem pretendem atingir, desvinculando a ideia de produção textual superficial. Essas decisões abarcam as competências e habilidades que o aluno possui no domínio ou não da produção textual. Esse domínio, por sua vez, perpassa os contatos e vivências do educando e serve como defesa para as mais diversas manifestações e situações que a linguagem pode ocorrer. Nesse ponto, adentra-se a questão dos multiletramentos, que são as diversas formas de significação que a linguagem pode exercer dentro da sociedade, envoltos pelas multimodalidades da língua, que são as mais diferentes manifestações em que um texto pode ser expresso, segundo Rojo e Moura, (2012). Logo, não se pode deixar de vincular o conceito de multiletramentos e multimodalidades com os avanços tecnológicos e midiáticos que abarcam a contemporaneidade. Os multiletramentos compreendem a diversidade cultural de produção textual que transita na sociedade, nas suas mais diversas formas de manifestação, e diz respeito às formas de construção do sentido dos textos que ela própria, a sociedade, utiliza para promover sua cultura e existência. Então, a escola precisa levar até os alunos os multiletramentos que se difundem na sociedade para lhes garantir suporte em todas as culturas letradas. Por sua vez, em concordância com Rojo e Moura (2012, p. 19), as multimodalidades, que são textos compostos de muitas linguagens, exigem práticas de compreensão e produção para tornarem significativos os multiletramentos. Assim sendo, são necessárias novas ferramentas que vão além da escrita manual e da impressa, como áudio, vídeo, edição de imagem e também novas práticas como a produção de texto nessas ferramentas e a análise crítica dos interlocutores na comunicação. De acordo, então, com as mais diversas multimodalidades da língua encontra-se o gênero trailer de livro, que também faz parte dos diversos multiletramentos existentes e que é parte da ação desta pesquisa. O trailer passa a ser um meio eficiente de produção textual, pois engloba som, imagem, escrita, cores, formatos, efeitos especiais, como movimento da imagem, aproximação, afastamento, enfim, diversas modalidades da língua dentro de um mesmo texto, a fim de alcançar deter-

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minados efeitos de sentido. Essa forma de escrita cativa os educandos, pois foge do tradicional papel e lápis, além de atiçar a criatividade e criticidade. É imprescindível, portanto, ressaltar a relevância do papel das mídias e tecnologias na promoção da leitura e produção textual, pois elas podem tornar a atividade mais dinâmica e atrativa, além da interação que é simplesmente facilitada por meio da rede de internet. Em relação a isso, o trailer, como descrito acima, por envolver várias modalidades da língua e ter uma finalidade específica, cativar leitores, diferenciando-se de uma proposta que visasse apenas o resumo da obra literária pós-leitura, só é possível através das tecnologias e mídias existentes. Então, utilizar todos os recursos tecnológicos e midiáticos possíveis dentro da sala de aula é de suma importância, porque, conforme Rojo e Moura (2012, p. 37), a presença das tecnologias digitais já está fincada em nossa cultura contemporânea e através dela é que se criam novas possibilidades de expressão e comunicação, assim como a tecnologia da escrita, que deve ser adquirida também dentro da escola. Então, não há mais como dissociar tecnologias e mídias da educação, porque a formação integral do educando precisa, necessariamente, estar de acordo com os padrões da sociedade em que ele está inserido. O que implica, hoje, na presença de muitos recursos tecnológicos e midiáticos, tornar característica própria do mundo e do conhecimento serem tecnológicos. Dentro disso, também se inclui as novas formas de busca pela informação e de comunicação, que se constituem mais rápidas e de maneira virtual, principalmente entre os jovens, o que altera o jeito de pensar e de agir dentro da escola, porque antes quem detinha todo o conhecimento era a figura do professor, diferentemente de hoje, em que os alunos podem ter acesso a várias informações em poucos minutos. Assim, de acordo com o que ressalta Piorino (apud SEVERINO, 2011, p. 11), o conhecimento tecnológico se torna uma “estratégia de sobrevivência” para o mundo contemporâneo, dessa forma, “traduz-se como um direito que não pode ser ignorado a fim de que o acesso e a apropriação do objeto tecnológico para apreender o mundo não se restrinjam a poucos”. Por isso, é relevante, de fato, um trabalho escolar que se volte também para os interesses e necessidades reais do aluno, que sendo um sujeito integrante dentro de uma determinada sociedade, já carrega consigo várias experiências comunicativas e já tem uma percepção dos sentidos e efeitos provocados por elas. Então, cabe à escola, enaltecer esse contato com a linguagem, seja real ou virtual, para que o educando possa utilizar a habilidade comunicativa inerente a sua condição humana em prol da construção do seu conhecimento, não desprezando o que ele já sabe, mas sim, aprimorando suas capacidades comunicativas através das tecnologias e mídias. Além disso, é através das tecnologias e mídias na educação que o aluno pode se tornar mais ativo e pensante, principalmente quando tratamos de leitura e escrita. O sujeito “fala” e “ouve” sempre por meio da manifestação verbal, então, quando ele está munido de conhecimento a respeito de todas as modalidades em que a língua pode aparecer, quando a escola instiga o sentido que essas modalidades podem dar ao texto, ele pode “defender-se” em vários momentos cotidianos e saber agir de forma coerente com cada situação vivenciada. Portanto, o ensino de língua na escola precisa englobar as mais diversas situações de ocorrência da língua, principalmente em se tratando de tecnologias e mídias, para dar suporte e aprimorar o cognitivo dos educandos. Fica evidente, dessa maneira, que “a relação com as tecnologias pode ser construída de maneira a potencializar as relações do humano, [...] e para que o mundo virtual não se sustente só pela manipulação das tecnologias, [...], mas, sobretudo, pela supremacia do humano”. (PIORINO, 2011, p. 12) É dentro desse contexto que o blog pode assumir, nas aulas de língua portuguesa, uma forma de socialização dos materiais produzidos pelos alunos, transformando a atividade de produção textual significativa e de maior valor, pois o contato com o texto não será apenas do professor, mas de todos os leitores conectados à rede. Além disso, o blog é um espaço em que se podem discutir vários assuntos, buscar informações diversas e, ainda, utilizá-lo como espaço de publicação para as próprias produções do blogueiro. Por isso, evidencia-se que a relação entre o blog e o contexto educacio-

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nal está mais próxima, podendo incluir os novos letramentos digitais e sendo um incentivo à leitura e à produção textual. A criação de um blog e a publicação do trailer neste espaço de divulgação, ações da pesquisa-ação deste estudo, podem servir como atrativo para os alunos, na busca pelo interesse e dedicação aos estudos. Além disso, é uma forma de levar as manifestações verbais construídas na escola para fora de seus muros, como forma também de valorizar e impulsionar os educandos no aperfeiçoamento da leitura e escrita. Franco (2005, p. 312) cita algumas vantagens do uso do blog na escola, como o fato de ser um excelente espaço de comunicação, em que os blogueiros podem interagir e comentar os textos publicados; também, em função do blog ter um espaço limitado, o aluno precisa condensar seu texto no processo em que se insere como escritor e leitor, produzindo um texto claro e compreensível; há a possibilidade de participação ativa dos leitores, inclusive para temáticas de sala de aula; e também, por fim, aumentar a motivação e ensinar habilidades do mundo real, como a narração, por exemplo. Dentro das perspectivas citadas ao longo da fundamentação teórica, conclui-se, portanto, que a prática da escrita dentro das mais diversas modalidades em que a língua pode se manifestar, principalmente no mundo contemporâneo caracterizado pela multiplicidade de recursos tecnológicos e midiáticos, pode ser um dos pontos-chave para o incentivo à leitura literária, necessária à formação do indivíduo. A escola assume, nesse caso, um papel de levar os multiletramentos digitais aos seus educandos, garantindo o acesso e a participação de forma significativa e crítica na sociedade atual. Assim, unem-se maneiras mais dinâmicas e atrativas de busca pelo conhecimento e pela aprendizagem, cumprindo com maior êxito o papel formador da educação.

2.1. RESULTADOS E DISCUSSÕES Com o encerramento das atividades de ação desta pesquisa, pode-se analisar os princípios teóricos que embasam esse estudo, comparando-os com as práticas desenvolvidas. Dessa análise, percebeu-se que a leitura da obra literária foi concluída por todos os alunos, mas entre eles alguns leram apenas por obrigação e outros por interesse e gosto. Além disso, os trailers foram muito bem produzidos, tanto em questão de vocabulário e escrita, quanto em relação à criatividade na montagem das cenas, além de terem atingido a finalidade discursiva do gênero que é convencer o leitor. Alguns livros continham traços históricos, como guerras, outros traços culturais de determinadas regiões, determinados povos, o que propiciou uma discussão mais ampla entre os alunos e o professor, promovendo uma criticidade na leitura e ampliando os conhecimentos que fazem parte das disciplinas do currículo. Então, realmente configura-se muito importante a presença da leitura literária na escola para a formação do cidadão crítico e humanizado. Como já afirma Colomer,“trata-se de desenvolver uma capacidade interpretativa, que permita tanto uma socialização mais rica e lúcida dos indivíduos como a experimentação de um prazer literário que se constrói ao longo do processo“. (2007, p. 29) Voltando-se para a criação do trailer, um dos pontos negativos a serem destacados refere-se ao acesso à internet. Mesmo a escola tendo feito alguns ajustes e concertos, a internet estava lenta, o que exigiu um tempo maior do que o previsto para essa atividade. Então, mesmo havendo uma fala constante de que o acesso à internet e às mídias e tecnologias está facilitado, ainda temos problemas em relação a eles. A escola, espaço público de aprendizagem, necessitaria de uma internet de qualidade, mas nem sempre isso é possível e nem visto em todas as realidades. Mesmo com esse problema, a proposta de produção escrita do trailer, com todas as multimodalidades da língua foi muito bem aceita pelos alunos, que puderam utilizar vários recursos tecnológicos dentro do programa movie maker, como som, cores, movimento, de forma criativa, atraindo, assim, a atenção e o interesse pela realização da tarefa.

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Dessa maneira, aliar as tecnologias e mídias que possibilitam os textos repletos de multimodalidades se mostrou uma forma eficaz de atrair o interesse dos alunos para os estudos, fazendo com que eles interajam, se manifestem e consigam dar um sentido positivo às habilidades que a escola procura desenvolver, pois o que eles dominam acaba sendo inserido na escola. Segundo Rojo e Moura, “um dos letramentos muitas vezes relegado a segundo plano nas esferas escolares é aquele que capacita o aluno a promover sentidos e a interagir com os gêneros digitais presentes nos ambientes tecnológicos”. (2012, p. 99-100). Portanto, constatou-se que integrar nas atividades escolares as novas formas de escrita, no caso o trailer, através do software educacional movie maker, surtiu efeitos relevantes e valiosos para a construção da capacidade e habilidade leitora e escrita dos educandos. Outro ponto positivo a ser destacado no desenvolvimento da ação foi a cooperação entre os alunos nos momentos de criação do trailer e do blog. Percebeu-se, além do empenho individual, uma colaboração mútua para desenvolver as tarefas, através da ajuda, do empréstimo de materiais, do auxílio no programa utilizado, e de outras ações importantes para a formação do cidadão, que a escola deve sempre enaltecer. Essas ações que se referem aos valores humanos, às vezes, passam despercebidas e, nesta pesquisa, o uso da tecnologia, numa esperança de modificar o ensino atual, também colaborou para os pequenos detalhes, que fazem toda diferença no convívio social. Dessa maneira, “o uso de tecnologias, [...] permite o diálogo e aproxima as pessoas para a reflexão de seus problemas, possibilitando a busca de temas importantes que traduzam sua realidade” (PIORINO, p. 11-12, 2011). Toda essa parte, e as demais que foram sendo observadas ao longo da atividade, foi exposta aos alunos na autoavaliação, como meio de incentivá-los a continuar cultivando as boas ações dentro não só do ambiente escolar, mas de todos os contextos pelos quais eles passam. Referindo-se a autoavaliação oral, é de suma importância afirmar a sua proeminência, pois os alunos puderam, de forma espontânea, fazer uma avaliação das atividades propostas e também dos seus desempenhos. Como resposta, não houve manifestação de que a atividade não fosse atrativa a eles, porém ressaltaram que a internet dificultou o trabalho, em função de estar lenta. Também uma questão importante é que todos conseguiram, dentro de suas limitações, finalizar a tarefa do trailer e do blog, mesmo alguns, como foi dito anteriormente, tendo afirmado não gostar de ler e escrever. Então, essa parte foi bem importante para a finalização das ações desta pesquisa. Dando continuidade, pode-se falar também da rica experiência na construção do blog, espaço que a partir dessa atividade também será destinado a postagens de outros trabalhos. O blog era um espaço que muitos alunos nem sequer conheciam e que puderam postar seus trabalhos a fim de que outros leitores possam apreciá-los, tornando o processo de escrita mais significativo. Para tal, o blog pode ser uma oportunidade ao aluno de ser o interlocutor de uma situação real de leitura e escrita, através do uso do computador, com outro interlocutor real. Portanto, fica evidente, que as atividades de pesquisa ação foram válidas e realmente casam com as teorias que demostram a importância de aliar mídias e tecnologias no processo de ensino e aprendizagem na escola. Logo, a participação dos alunos, bem como seu comprometimento e responsabilidade no desenvolvimento das tarefas, são o ponto forte de uma ação que buscava exatamente isso, a promoção da leitura e da escrita de maneira significativa, prazerosa e participativa entre os educandos.

3. CONCLUSÃO Através desta pesquisa-ação, chegou-se à conclusão de que o incentivo à leitura literária é realmente válido, pois enobrece o aluno em todos os sentidos, desde o seu desenvolvimento cognitivo, até a sua relação de convivência com o outro. Além disso, a inserção das tecnologias e mídias na produção textual e a aliança entre a mídia informática, através do software movie maker e do blog, e a

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mídia impressa, por meio das obras literárias, foram um belo exemplo de como possibilitar a leitura e a escrita aos jovens, mesmo diante de outros atrativos tecnológicos, resultando em um processo de aprendizagem significativo e relevante para a formação estudantil. Isso, pois além de garantir ao aluno o contato e a utilização das ferramentas tecnológicas, inserindo-o no mundo atual, também constitui-se conhecimento, a partir das leituras e as ações desenvolvidas. Dentro disso, também está a garantia de um trabalho eficaz e mais atrativo através das novas modalidades da língua, ou multimodalidades, que foram essenciais para atingir o objetivo do gênero trailer e serviram não apenas de recurso, mas também como meio para produzir determinados efeitos de sentido que os alunos buscavam em suas produções. Dessa forma, o uso do vídeo e a postagem no blog se mostraram recursos de extrema valia para trabalhar com manifestações da linguagem, desenvolvendo a interpretação e a escrita, bem como para assegurar uma escrita real e significativa. Portanto, ao final, os objetivos dessa pesquisa foram de fato alcançados, pois houve o estímulo pela leitura impressa, através da criação de um trailer de livro, em que as multimodalidades da língua ficaram em evidência, resultando, também, em um maior comprometimento e interesse. Por fim, destaca-se a necessidade de o educador estar sempre se atualizando e buscando novos recursos que possibilitem atrair os alunos para a escola e, principalmente, para os estudos, colaborando, assim, para a formação de cidadãos comprometidos com os interesses sociais, críticos perante as informações e criativos para buscarem soluções em prol do bem comum.

REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007. FRANCO, Maria de Fátima. Blog Educacional: ambiente de interação e escrita colaborativa. XVI Simpósio Brasileiro de Informática na Educação - SBIE - UFJF – 2005. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2015. PIORINO, Gilda. O currículo: um mundo de tecnologias. In: SALTO PARA O futuro. Tecnologias e Currículos: a serviço de quem? Ano XXI, Boletim 18, Novembro 2011. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015. ROJO, Roxane Helena Rodrigues. MOURA, Eduardo. [orgs.] Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.

JORNALISMO ON-LINE NA IMPRENSA DO INTERIOR DO RS: ESTUDO DE CASO DO SITE WWW.DIARIODAMANHA.COM Nadja Maria Hartmann* (UPF)

1. INTRODUÇÃO Este estudo se propõe a refletir sobre o Jornalismo e a Internet como tema geral e de modo mais específico, a apropriação do jornalismo on line pelo jornalismo regional. O estudo tem lugar no campo que engloba o Jornalismo Regional e a Internet, bem como no novo elemento que resulta da fusão dessas duas instâncias, o jornalismo on-line regional. Tomando como base o site de notícias do jornal Diário da Manhã, pretende-se enfocar o aspecto local da informação no ambiente comunicacional que é a Internet. Através do novo ambiente comunciacional que é a Internet, o jornalismo – que já vive um novo estágio de sua experiência on-line -, se apresenta através de espaços que estão tornando concretas as possibilidades de disponibilizar informações de âmbito local na rede global. Nesse sentido, a imprensa local e regional impoem-se o desafio de manter a comunidade pela qual é responsável atualizada das informações de sua área de abrangência, mas não deixá-la alheia aos acontecimentos que influenciam direta ou indiretamente seu cotidiano. Diante disso, faz-se necessário compreender os tensionamentos advindos de uma comunicação intensamente globalizada através da Internet, diante de demandas especificamente regionais. Para isso, o estudo se apropriará, especialmente, do conceito de Jornalismo Contextualizado, de Pavlik (2005) e Mídia de Proximidade, de Adghirni (2002).

2. O JORNALISMO NA ERA DA INTERNET Não é de estranhar que o aparecimento da Internet tenha gerado transformações no jornalismo. Essas transformações fizeram-se sentir, essencialmente, a dois níveis: em primeiro lugar, nas rotinas jornalísticas de produção de informação; e em segundo lugar, nas formas e formatos de difusão de informação, ou seja, no produto jornalístico. O Jornalismo Online (JOL) pode ser definido como a coleta e distribuição de informações por redes de computadores como internet ou por meios digitais. Os holandeses Bardoel e Deuze usam um nome específico e adequado para esta produção: network journalism, o jornalismo em rede. Independentemente de suas múltiplas definições, o jornalismo online apresenta algumas características específicas em relação a aspectos que quase sempre existiram nas mais diversas mídias, em diversos graus. Autores como Machado e Palacios (2003) e Mielniczuk (2001) citam como as características mais interessantes do Jornalismo Online a instantaneidade; a interatividade; a perenidade (memória, capacidade de armazenamento de informação); a multimediação, programação; a hipertextualidade e a personalização de conteúdo, customização. Sebastião Squirra (1998) jornalista e livre-docente pela Escola de Artes e Comunicação da Universidade de São Paulo (ECA-USP), define o jornalismo on-line como

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(...) um banco de dados em que eu, sendo jornalista, publicitário, dentista, advogado, sendo um fazendeiro lá do Mato Grosso, entro naquele endereço e fico sabendo das informações. São informações na ponta dos dedos. Tempo real, É um jornalismo digital. Aliás, posso traduzir online como tempo real (SQUIRRA, 1998, p.69-70)

Tal definição, além da instantaneidade, remete ao conceito de banco de dados, que é a possibilidade de armazenar e deixar disponível para consulta o que já foi publicado. Assim, os jornais passam a ter o compromisso de não mais simplesmente difundir notícias, mas de fornecer permanentemente informações, aproximando-se do conceito de “usina de informações, onde o leitor de notícias passaria a ser tratado como cliente, usuário da informação e intensificando a concepção de mercadoria subjacente à notícia, produto da indústria cultural”. Diante da complexidade do novo meio no mercado, as empresas jornalísticas buscam alternativas para melhor aproveitar os recursos providos os recursos providos pelo meio digital. Nesse sentido, Coelho Neto (2003), adverte que a estrutura competitiva deste novo setor, difere, em traços fundamentais, daquela instalada entre os jornais tradicionais. Entre outros aspectos, enquanto os jornais impressos funcionam com base em áreas geográficas demarcadas, com acesso à informação restrito, a versão on-line sofre poucas restrições desse tipo, já que o alcance da notícia virtual é, pelo menos em tese, global. Porém, se por um lado fornecer notícias para outras regiões não é problema quando se usa a Internet, com baixos custos de produção e distribuição, o autor questiona se de fato existem interessados por esse serviço fora da base geográfica do veículo. No mercado local de informação, a competição por audiência acontece tanto no nível intramídia quanto intermídia. A disputa dos jornais na Internet (intramídia) é mais intensa do que entre os jornais impressos já que um número maior de empresas mantém serviços de notícia na rede. No entanto, o maior desafio reside na concorrência entre o jornal on-line e as fontes tradicionais de notícias como televisão, cabo, rádio e impressos. Assim é, porque comparado aos meios já consolidados, o formato digital enfrenta séria desvantagem em relação ao quesito credibilidade. (COELHO NETO apud MACHADO; PALACIOS, 2003, p. 67)

De outro modo, o alto grau de volatilidade das novas tecnologias de informação vem desafiando os pesquisadores das ciências sociais e da comunicação, no sentido de fixar um campo de estudo e um objeto de investigação. Se trata de um cenário aberto em permanente evolução, o que também é o caso do jornalismo digital que se expande e evolui de forma ainda mais rápida. Mesmo diante destas dificuldades, alguns autores como Valcarce e Marcos (2004), ao analisar a trajetória do jornalismo na Rede, afirmam que em poucos anos, o jornalismo on-line alcançou a sua maioridade. “O telefone levou 70 anos para se transformar em um meio de comunicação popular, a rádio precisou de 30, a televisão de 15 e o jornalismo na Internet, somente quatro ou cinco” (VALCARCE; MARCOS, 2004, p. 59)

2.1. JORNALISMO ON-LINE E PRODUÇÃO DE CONTEÚDO O jornalismo on-line implica transformações profundas da realidade jornalística que afeta empresas, profissionais, audiências e suportes. Com a digitalização e a tecnologia de redes, a adaptação do conteúdo se dá em diferentes escalas de disseminação de forma automatizada, o que demanda reflexões a respeito das especificidades de acesso das plataformas digitais a contextos específicos. Na passagem do impresso para o meio virtual é preciso, portanto, estar atento para que ocorra a transformação necessária, e não a simples reprodução do jornalismo clássico na Internet. Com um espaço ilimitado, as redes de comunicação possuem uma área global, cobrindo informações de qualquer parte do mundo, que disponibilizadas na Rede podem ser acessadas de qualquer lugar que possua conexão à Internet, conforme observa Bastos (2000):

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Os leitores que buscam informação no ciberespaço, são cada vez mais exigentes e não se contentam com notícias do dia anterior, pressionando os medias presentes na Internet a atualizarem permanentemente a informação ao longo do dia. Não querem um diário que se publica todos os dias, mas sim a todas as horas. (BASTOS, 2000, p. 54).

Para o estudioso, as redações on-line surgem como espaços sócio-materiais, nos quais as considerações técnicas afetam a quem redige os materiais jornalísticos, os tipos de materiais jornalísticos, como se produz e a que público estão se dirigindo. Bokzkwoski (2004) faz objeções ao que ele chama de “postura determinista” que afirma que as tecnologias on-line transformam o jornalismo em direções fixas. Ao analisar o papel dos tomadores de decisão nas redações on-line, o autor destaca que no estudo realizado, todos compartilham da consciência básica de que havia um espectro de opções e elementos interativos e de multimídia, porém aproveitaram estas alternativas de maneira diferente. Algumas das mudanças específicas a respeito do jornalismo tradicional que estiveram associadas com a apropriação da tecnologia on-line, de acordo com o autor, foram: (...) a interpenetração de práticas do meio impresso, audiovisual e dos sistemas de informatização na criação de produtos multimídia; a desreificação das opções midiáticas que ocorrem quando os autores envolvidos podem escolher entre usar texto, áudio, vídeo ou animação para contar uma história; o desafio das identidades ocupacionais estabelecidas que se origina quando os jornalistas do meio impresso se apropriam de alternativas de comunicação disponíveis no meio on-line e o surgimento de uma função editorial voltada para a facilitação e administração dos conteúdos gerados pelos usuários (...) (BOKZKOWSKI, 2004, p.233)

Portanto, apesar das novas tecnologias de comunicação estar servindo às empresas para baratear custos e aumentar o rendimento do processo de produção, nada prova que está ocorrendo uma melhora efetiva na qualidade de informação oferecida, o que pode ser explicado, de acordo com Albornoz ao fato de que um mesmo jornalista ter que se dedicar a uma multiplicidade de edições e suportes, diminui o tempo para se dedicar as tarefas de investigação. (ALBORNOZ, 2003, p.124). A notícia em tempo real confere ao jornalismo on-line, a característica do “jornalismo do agora”. A expressão é do jornalista Carlos Chaparro (2003), que no artigo intitulado “O funeral da notícia impressa”, afirma que: (...) a notícia em tempo real tem, quase sempre, o sentido de bomba teleguiada. Na turbulência que balança o Brasil, esses jornalistas vivem em estado de frenesim, quer estejam nos percursos dos gabinetes oficiais ou instalados à frente de computadores ligados às redes mundiais. Para eles não existe nem o ontem nem o amanhã; apenas o agora. Seu trabalho: captar e distribuir, de imediato, com precisão, os números e os fatos da crise (CHAPARRO, 2003, p. 57)

2.2. JORNALISMO CONTEXTUALIZADO Mais do que se apresentar como uma janela para o mundo, a Internet promove uma espécie de nova cartografia do local a partir da utilização dos seus vários seus recursos e serviços por parte do público em geral. A ‘Grande Rede’ mundial de computadores, termo pelo qual se fez conhecer e consolidar a Internet no meio de usuários, iniciados e mesmo da sociedade em geral, assume outra dimensão ao reforçar as articulações locais, inclusive para além das conexões digitais de seus usuários. Conforme aponta Pavlik (2005), a tecnologia da Internet permite às audiências de qualquer lugar participar em um diálogo global sobre os fatos e as questões do mundo. “Os indivíduos podem entrar em contato direto uns com os outros, ainda que se encontrem separados por milhões de quilômetros, montanhas, oceanos ou fronteiras políticas e culturais”. (PAVLIK, 2005, p.69). Tal possibilidade do jornalismo on-line obriga aos jornalistas a pensarem em uma audiência global, que não só

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lê o que escrevem, como contam e podem comentar com diferentes pontos de vista, oferecendo novas ideias sobre as complexidades de uma sociedade cada vez mais global. “Esta é a essência do jornalismo contextualizado que é possível na era digital”, conclui Pavlik (2005:58). O autor cita ainda que o conteúdo personalizado, aliado ao conteúdo mais dinâmico, a interatividade e a apresentação multimídia, oferece às audiências uma visão de mundo muito mais contextualizada e multidimensional do que os meios impressos ou analógicos. Sobre este aspecto, Silva Jr. (2000) destaca que com a personalização, o conteúdo jornalístico passa a ter a configuração de uma potência, ou seja, de uma série de conteúdos armazenados não mais como depósito ou arquivo, e sim, como uma miríade de conteúdos, atualizáveis segundo a lógica de preferência, histórica e hipertextual de cada usuário. Com a sociedade repleta de informações, cada um alimenta o seu interesse superficial com notícias da maneira que bem lhe satisfaz. Por outro lado, a Internet disponibiliza muita informação de origem duvidosa, conforme aponta Pavlik (2005), onde qualquer um que tenha um computador, um modem e algum interesse particular, pode criar um site web de aparência crível e publicar informações para uma audiência global. Pavlik questiona: “Como pode o consumidor de informação distinguir o que é confiável! Nem sempre é fácil, e por isso a informação digital tem o seu risco.” (PAVLIK, 2005, p.60). Tais preocupações com a abundância informativa só vem reforçar a necessidade de selecionar e filtrar as informações, onde os veículos de comunicação possuem um valor estratégico, como gestores sociais do conhecimento. O professor e pesquisador da Universidade Estadual Paulista, Ricardo Nicola (2008) destaca que ao longo da história, os jornalistas tem tentado situar os temas em um contexto melhor e mais completo. O problema,consistia, porém, que a maioria dos meios de comunicação não contavam com o recurso para fazê-lo. Hoje, as novas tecnologias proporcionam tais recursos. Portanto, a contextualização da informação, além de outras características, como não-linearidade, instantaneidade e interatividade, passa a ser de suma importância como característica do jornalismo on-line, conforme aponta o estudioso: O conteúdo da notícia será a chave do sucesso no jornalismo na rede qualidade da informação nos meios digitais está condicionada pela atualização constante. E essa peculiaridade do meio cibernético definiu a notícia em tempo real e como verdadeira notícia. (NICOLA, 2008, p. 87-88)

Ou seja, com o crescimento da informação disponível aos cidadãos, torna-se ainda mais crucial o papel desempenhado por profissionais que exercem funções de filtragem e ordenamento. Tal entendimento do papel do jornalista, contraria totalmente a ideia sugerida por Pierre Levy (1999, p.188) de um possível desaparecimento do Jornalismo (ou pelo menos dos Jornalistas, como intermediários), em função do desenvolvimento da Internet. Pelo contrário, a função do jornalista enquanto moderador se faz essencial no sentido de manter a confiabilidade dos conteúdos disponibilizados

3. MÍDIA DE PROXIMIDADE E PORTAIS REGIONAIS Se toda tecnologia estende ou amplifica algum órgão ou faculdade do usuário, as redes telemáticas, especialmente a Internet estende o sentimento de comunidade. Assim, também podemos colocar entre as características do jornalismo on-line a formação de comunidades, pois a busca pela fidelização do usuário passou a ser um dos objetivos intrínsecos aos sites para agregar audiência e, sobretudo, para enredar o usuário, reforçando nele o sentimento de pertencimento. Essa característica, conforme Adghrni (2001) de formação de comunidades é ainda mais forte em sites que se enquadram na categoria de portais locais, cujo interesse é “falar” de perto com determinada comunidade fornecendo conteúdo digital original, além de serviços.

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Entre os componentes da noticiabilidade das informações disponibilizadas no site do jornal Diário da Manhã, um, em especial, interessa a esta pesquisa, já que nosso estudo se propõe a fazer um recorte do jornalismo on-line regional, a partir do princípio da proximidade. Apresentado como um portal regional de comunicação, o portal diariodamanha.com possui como característica principal a disponibilização de notícias locais na Rede, em particular, dos municípios do Norte do RS: Passo Fundo, Erechim e Carazinho, municípios-sede das unidades do grupo. Conforme apontado anteriormente, trabalhamos com a ideia do jornalismo on-line como uma mídia de proximidade, nos apropriando do conceito de Zélia Adghirni (2001). Em seus estudos, a autora afirma que os internautas se conectam muito mais para saber o que se passa no seu bairro, na sua cidade, do que no resto do mundo. “Como Mattelard havia demonstrado em seus trabalhos, a localização é o reverso da globalização” (Adghirni, 2001). Segundo a autora, enquanto as tecnologias de comunicação precedentes valorizavam  a informação global, o webjornalismo  privilegia o local. Não há mais necessidade de enviados especiais para cobrir os acontecimentos. “Cada um informa do lugar onde se encontra tecendo os fios e amarrando os nós da imensa rede de informações mundial. Isso permite às empresas de ganhar tempo e dinheiro” (ADGHIRNI, 2001, p.55). Para Pavlik (2005) os jornalistas digitais desempenham um papel central na reconexão das comunidades. Segundo o autor, os novos meios de comunicação estão possibilitando o surgimento de uma nova forma de comunicação, que ele descreve como jornalismo contextualizado, “que incorpora não só as capacidades multimídias das plataformas digitais, mas também as ferramentas personalizadas destes meios que podem dirigir-se a um destinatário preciso” (PAVLIK, 2005, p.88). É neste contexto, que portais regionais como o www.diariodamanha.com ganham dimensão e fortalecem sua importância como mídia de proximidade. Machado e Palácios (2003), ao tratar dos modelos do jornalismo digital notam que nos portais regionais, ainda que ocorra uma certa uniformização nos conteúdos, se dá em menor proporção, por dois motivos: (...) primeiro, porque esses portais estão interessados na cobertura dos fatos e eventos da região, do estado ou da cidade onde estão baseados e, segundo, porque a seleção dos assuntos é realizada no sentido de contemplar os assuntos mesmo nacionais ou internacionais que possam ser mais relevantes para o seu público, pois enquanto os mega portais disputam a audiência de massa, os regionais têm maior interesse na audiência segmentada da sua região ou cidade (MACHADO; PALÁCIOS, 2003, p.63)

Silva Junior (2000) destaca os portais regionais como um modelo de apropriação da tecnologia segundo uma lógica de articulação local-global, que privilegia os conteúdos locais, reforçando a relação entre comunidade e conteúdo. Outro aspecto bastante considerado pelos portais locais é o da formação de comunidades. A fidelização do usuário, segundo ele, se dá através do conteúdo em si - quanto mais próximo mais dirá respeito a ele. Assim, Silva Junior (2000) destaca os portais regionais como um modelo de apropriação da tecnologia segundo uma lógica de articulação local-global, que privilegia os conteúdos locais, reforçando a relação entre comunidade e conteúdo. Por ter foco na segmentação e pelo tratamento dispensado às informações, Adghirni (2001) classifica os portais regionais como uma subcategoria do jornalismo de portal, no momento que para atender a demanda de segmentação e de público, eles convivem sem concorrer com os mega-portais horizontais. Além disso, segundo a autora, a linguagem a híbrida, mesclando conteúdos com atualização contínua e em fluxo, permanecendo as informações, portanto, maior tempo no ar. Cita portanto como grande diferencial dos portais regionais o jornalismo de serviço, onde é explorada uma relação de maior proximidade com o território e com a comunidade.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Levando em consideração as especificidades citadas pelos autores citados nesta pesquisa para jornalismo on-line regional, notamos que o portal diariodamanha.com possui características de portal regional e, por conseguinte, mídia de proximidade, de acordo com os critérios especificados por Machado e Palacios (2003) e Adhgirni (2002a). No entanto, constata-se que o jornalismo on-line implantado no Diário da Manhã, passa ainda por um processo evolutivo, cuja origem e trajetória ocorre dentro da linha evolutiva do jornalismo digital, onde formatos e modelos ainda estão sendo experimentados. Como jornalista com atuação no jornalismo regional, inevitável não apontar certas incoerências com relação ao panorama midiático local e a convivência com o meio digital ao analisarmos a incursão do jornal Diário da Manhã na Rede. Assinalamos, em especial, as deficiências de ordem tecnológica das Redações. Em segundo, o problema gerado pelas estruturas organizacionais das empresas de comunicação regionais, a exemplo da Rede Diário da Manhã. Em terceiro, a necessidade da capacitação dos profissionais atuantes na imprensa regional no sentido de adequarem-se ao novo suporte e aproveitarem as ferramentas disponíveis. Porém, refletindo sobre as afirmações dos autores, a percepção de nosso estudo é que as limitações existentes no caso do portal diariodamanha. com não são apenas tecnológicas, mas, principalmente, estão relacionadas à dinâmica de produções de conteúdos no suporte digital, ainda atrelados aos modelos de jornalismo tradicional. Atentamos, pois, para a necessidade de repensar a estrutura organizativa da empresa, tratando o Portal como um novo suporte, um novo veículo do grupo, distinto dos demais, com a necessidade de mais investimentos, mais pessoal, estratégias comerciais e, sobretudo, novos leitores. Somente desta forma, o portal diariodamanha.com cumprirá o seu papel como portal regional de comunicação, preparado para lidar coerentemente com a informação de proximidade, valorizando as particularidades do local, da comunidade, como fonte de sentido para os cidadãos, para que estes possam utilizar os conteúdos de informação digital trabalhados pelo site. Só assim, acreditamos, o portal diáriodamanha.com ajudará os destinatários a entender a informação que recebem, a diferenciar a informação da comunicação e a conhecer o funcionamento do mercado informativo. Isto mostrará atenção para com os destinatários, respeito para com os fatores culturais, históricos e sociais e, sobretudo, revelará a pluralidade necessária à mídia digital. Como demonstramos no decorrer deste estudo, acreditamos que os portais regionais podem fortalecer o engajamento em torno da localidade, promover a apropriação social das tecnologias, ampliando o sentimento de pertencimento e permitindo aos leitores participarem de uma comunidade não apenas existente no ambiente digital, mas com ramificações e extensões no espaço físico das cidades. O uso conjugado do próprio ciberespaço e de bancos de dados, entre outros, pode ampliar ainda mais as possibilidades para a produção dos conteúdos em portais regionais, permitindo a utilização de maior diversidade de fontes, o que resultará na oferta de informações mais bem contextualizadas. Porém, ao permanecer unicamente como espaço de reprodução do que se gera no impresso, está se afastando a possibilidade de tornar-se lugar de inovação e de transformação, possibilidades que o jornalismo contextualizado pode oferecer.

REFERÊNCIAS ADGHIRNI, Zélia L. Jornalismo online: em busca do tempo real. In: Antonio Hohlfeldt; Marialva Barbosa. Jornalismo no século XXI : a Cidadania. Rio de Janeiro: Mercado Aberto - UFF, 2002. _______. Jornalismo online e identidade profissional do jornalista. In: Luiz Gonzaga Motta. (Org.). Imprensa e Poder. Brasilia: Editora UnB, 2001.

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ALBORNOZ, Luis: Hacia un nuevo sistema mundial de comunicación. Las industrias culturales en la era digital. In: BUSTAMANTE, Henrique.Barcelona: Gedisa, 2003. BASTOS, Hélder. Do jornalismo online ao ciberjornalismo: emergência de novas práticas nos media portugueses. In: TRAQUINA, Nelson. Revista de Comunicação e Linguagens. 27, Lisboa: Ed: Relógio D’Água, fev. 2000. BOCZKOWSKI, Pablo J. Digitalizar las noticias: Innovación em los diarios online. Buenos Aires: Manantial, 2006. CHAPARRO, Manuel Carlos. Sotaques d’aquém e d’além mar:travessias para uma nova teoria de gêneros jornalísticos. São Paulo: Summus, 2008. LEVY, Pierre. Cibercultura. Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. MACHADO, Elias; PALACIOS, Marcos. Modelos de Jornalismo digital. Salvador: Calandra, 2003. MIELNICZUK, Luciana, Sistematizando alguns conhecimentos sobre jornalismo na web. In: MACHADO, Elias; PALACIOS, Marcos. Modelos de jornalismo digital. Salvador: Calandra, 2001. NICOLA, Ricardo. Convergências das redes – nova fronteira pra compreender a cibercidadania e o jornalismo on-line. São Paulo: InterSciencPlace. (v.2), 2008. PAVLIK, John V. El periodismo y los nuevos medios de comunicación. Trad.: Oscar Fontrodona. Barcelona: Paidós, 2005. SILVA JUNIOR, José Afonso. Jornalismo 1.2: características e usos da hipermídia no jornalismo, com estudo de caso do Grupo Estado de São Paulo. Salvador: Facom/UFBA, 2000. SQUIRRA, Sebastião. Jorn@lismo online. São Paulo: CJE/ECA/USP, 1998. VALCARCE, David P.; MARCOS, José A. Ciberperiodismo. Madrid: Sintesis, 2004.

SAGAS FANTÁSTICAS E AS ADAPTAÇÕES: DIVERSAS FORMAS DE VIVENCIAR UMA HISTÓRIA Pedro Afonso Barth* (UPF) Fabiane Verardi Burlamaque** (UPF) Ao longo das últimas décadas a convergência midiática vem fortalecendo o consumo de sagas fantásticas. Sagas são narrativas multimidiais que fascinam leitores de todas as idades e exige deles uma postura ativa e participativa. Assim, são constituídas pela transmidialidade, pois são concomitantemente narrativas literárias e audiovisuais. Por exemplo, Harry Potter, Crônicas de Gelo e Fogo – Game of Thrones-, Jogos Vorazes. Os leitores de sagas buscam sua história favorita nas mais diferentes linguagens, como livros, filmes, quadrinhos, séries, animações, fanfictions, vídeo games e isso posibilita o surgimento das mais diversas adaptações. O presente trabalho tem o objetivo de apontar o papel das adaptações na consolidação das sagas fantásticas e de como leitores e espectadores consomem tais textos. Alberto Martos García (2009), Eloy Martos Núñez (2011) serão os principais referentes teóricos para tratar de sagas. Em relação à adaptação, nos reportaremos a Linda Hutcheon (2011). Uma história pode ser contata, mostrada ou jogada e uma saga permite que a mesma história seja adaptada para as três modalidades. Tal versatilidade tem um impacto nos leitores de uma saga, que esperam e buscam pelas adaptações. Assim, um filme de sucesso faz com o livro que o inspirou seja muito vendido e lido e vice e versa. Nesse contexto, refletir sobre adaptações em sagas é imprescindível para compreender o seu impacto na formação de leitores.

1. SAGAS FANTÁSTICAS O termo saga é de origem norueguesa e seu significado está atrelado ao verbo segja que significa contar. Originalmente, saga identificava um gênero oral específico – composições épicas, associadas às culturas nórdicas e germânicas, que narravam façanhas e feitos memoráveis. O termo saga passou a fazer referência à narrações seriais fantásticas com conteúdos imaginários. (MARTOS GARCÍA, 2009). Alberto Martos García (2009) utiliza o conceito de paracosmos para explicar essa criação de um universo alternativo que é dotado de regras próprias. Paracosmos seria a criação de um universo inventado, representado em formas icônicas e verbais. Criar um paracosmos seria “colocar um mundo em pé” (RIVERA, 2004, p. 65). Assim, uma saga é como um gigantesco palimpsesto que possui uma megaestrutura narrativa, suscetível a ampliações. Sendo assim, a possibilidade de adaptação do universo em diferentes linguagens é uma característica fundamental do paracosmos de uma saga. No início do século XX, com o desenvolvimento do cinema, livros passaram a ser adaptados para as telas (MARTOS NÚÑEZ; MARTOS GARCIA, 2013). Como, por exemplo, obras clássicas como Madame Bovary, de Gustave Fleubert, ou obras que passaram a ser mais conhecidas depois de adaptadas no cinema como Drácula, de Bram Stocker. Nas últimas décadas, com o advento das tecnologias, observamos outras adaptações e traslados: filmes viram vídeo games, quadrinhos viram séries de televisão, séries de televisão transformam-se em livros. A esse fenômeno, os autores espanhóis denominam de transmidialidade e definem que tal conceito “acarreta a pertença a vários meios ou suportes, de modo que uma mesma história ou narrativa seja contada através de diferen* **

Mestrando do curso de PPGL de Letras da UPF na linha de Leitura e Formação do Leitor. Bolsista FAPERGS. Doutora em Letras, Professora do Curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UPF.

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tes plataformas comunicativas”. (NÚÑES; MARTOS GARCÍA, 2013, p. 70). Os autores conceituam transmidialidade a partir dos estudos de Henry Jenkins (2009) que versam sobre narrativas transmidiáticas. Henry Jenkins (2009, p. 47) conceitua narrativa transmidiática como sendo uma nova estética que surgiu em resposta à convergência das mídias e seria “uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento”. Dessa forma, a narrativa transmidiática exige dos seus consumidores o papel de caçadores e coletores de narrativas, perseguindo pedaços da história pelos diferentes canais, comparando e discutindo suas observações e apreensões com as de outros fãs, em grupos de discussão online e colaborando para assegurar que todos os que investiram tempo e energia tenham uma experiência de entretenimento mais rica. Os leitores seguem cada vez menos a forma isolada de leitura – o leitor que lê o livro sozinho e não o discute com ninguém - e sim, tem a necessidade de debater sobre as leituras que fazem, além de busca pela relação com outras leituras midiáticas, sejam literárias ou visuais, quadrinhos ou músicas, cinema ou mangás. Assim, é natural que esse leitor seja atraído pelas sagas fantásticas, histórias que possuem uma predisposição para serem jogadas, representadas, visualizadas recontadas, exploradas, dramatizadas, reproduzidas e até executadas. Para compreender tal mutabilidade de uma saga, torna-se pertinente refletir sobre as adaptações e, para tanto, na próxima seção, nos reportaremos aos estudos de Linda Hutcheon (2011).

2. TEORIA DA ADAPTAÇÃO Devido ao grande número de adaptações e a variação dos tipos de adaptações – tanto entre gêneros e mídias diferentes como dentro de um único gênero e de uma mesma mídia – Linda Hutcheon (2011) empreendeu um estudo teórico sobre adaptação. Além da necessidade de ampliar o conceito de adaptação, outro incentivo para o estudo foi o fato de que as adaptações sofrem uma depreciação crítica, pois, parte-se do pressuposto que a obra original será sempre superior à adaptada. A autora discorda veementemente desse pressuposto e defende que “as obras, independente da mídia, são criadas e recebidas por pessoas, e é esse contexto experimental e humano que permite o estudo da politica da intertextualidade” (2011, p.12). Assim, são textos e obras tão legítimos quanto os originais e merecem ser objeto de estudo e inclusive, servir de base de uma teoria própria. Além disso, ao falar de adaptação, não podemos ignorar a relação intertextual que é estabelecida e portanto, há a necessidade de falar sobre o conceito de intertextualidade. O termo intertextualidade foi cunhado pela estudiosa Julia Kristeva (1974) a partir de leituras de Bakhtin. A autora assinalava que todo texto se constrói como um mosaico de citações, pois absorve e transforma uma multiplicidade de elementos de outros textos. Nessa perspectiva, um texto só existe em relação aos outros textos anteriormente produzidos, podendo ter uma relação de convergência, de conformidade, ou de contestação. A intertextualidade faz com que o texto literário não seja fechado em si mesmo, e sim, que dialogue e tenha pontos de contato com outras obras. Apesar de que nas últimas duas a três décadas o conceito de intertextualidade foi objeto de aprofundamentos e sistematizações, nesse trabalho estaremos ancorados na acepção original do conceito formulada por Kristeva. A intertextualidade é um dos recursos literários mais usados na literatura contemporânea para representar ou ressignificar os textos clássicos e canônicos. Uma espécie muito específica de relação intertextual é a estabelecida por uma adaptação que abarca tanto o processo de transposição de textos canônicos – ou qualquer obra – como o produto gerado pelo processo adaptativo. Há muitas perspectivas teóricas diferentes em relação ao conceito de adaptação. Neste artigo trabalharemos com o conceito de adaptação em seu sentido mais amplo, tal como preconiza Linda Hutcheon (2011).

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Quando um texto é adaptado, ele não é simplesmente reproduzido, pois segundo Hutcheon (2011) ele passa por um processo de reinterpretação e recriação. Assim o adaptador é um intérprete antes de se tornar um criador, já que a transposição criativa da história de uma obra adaptada está sujeita não apenas às necessidades de um novo gênero e de outra mídia, mas também ao temperamento e talento do adaptador, além dos próprios intertextos particulares que filtram os materiais adaptados. Assim, uma adaptação é essencialmente um ato interpretativo e criativo, pois trata-se de um ato de contar uma história já conhecida, reinterpretando-a e desta maneira “Há tanto diferença inevitável como repetição em uma adaptação”. (HUTCHEON, 2011, p. 159). Portanto, há de se considerara também que a transposição criativa da história de uma obra adaptada está sujeita ao temperamento e talento do adaptador, além dos próprios intertextos particulares que filtram os materiais adaptados. Hutcheon (2011) afirma, ainda, que muito frequentemente as adaptações são comparadas às traduções, pois da mesma forma que não há tradução literal, não há adaptação literal. A transposição para uma mídia ou até mesmo o deslocamento de um gênero para o outro – transformar um conto em uma peça teatral, por exemplo - sempre significa mudança. A autora canadense utiliza o termo reformatação para explicar tal fenômeno, considerando que as adaptações são recodificações, ou seja, traduções em forma de transposições de um sistema de signos para outro. Porém, mais importante que analisar a forma, é a análise dos modos de engajamento que a obra propõe ao seu público. Nas palavras de Linda Hutcheon (2011, p. 47): uma definição dupla de adaptação como um produto (transcodificação extensiva e particular) e como um processo (reinterpretação extensiva e particular) é uma maneira de abordar as várias dimensões do fenômeno amplo da adaptação. É necessário incluir um estudo sobre os modos de engajamento, além dos estudos comparativos e midiáticos. É preciso refletir como os membros do público interagem com as histórias. Há três formas, história contada, mostrada e a interativa.

Cada tipo de engajamento apresenta uma resposta diferente do público. Portanto, no estudo das adaptações, há a necessidade de estudar a recepção, não somente os aspectos formais transformados nas mudanças de mídia e formato. Hutcheon (2011) destaca, ainda, que devemos ter cuidado com o argumento de que a literatura sempre possuirá uma superioridade axiomática sobre qualquer adaptação. Torna-se fundamental conceber a adaptação, não como uma cópia, e sim, percebê-la nem inferior e nem superior à obra adaptada, mas sim, com diferenças que merecem ser analisadas. É imprescindível levar sempre em conta que um texto adaptado possui existência própria apesar de possuir uma ligação com a obra original. De tal forma que quem conhece o texto anterior, “sente” a presença dele pairando sobre a adaptação. A autora considera que a análise de uma adaptação exige, fundamentalmente, a contemplação das formas de contato do público com as obras em seus diferentes meios, destacando três diferentes paradigmas de narrativa: contar, mostrar e interagir e todos são, de diferentes maneiras e em graus variados, ‘imersivos’, porém alguns gêneros e mídias são utilizados para contar histórias (romances, contos, etc.); outros para mostrá-las (as mídias performativas, por exemplo); outros permitem-nos interagir com elas física e sinestesicamente (como os vídeo games e passeios em parques temáticos). Esses três diferentes modos de engajamento fornecem a estrutura de analise para essa tentativa de teorizar o que pode ser chamado de o que, quem, por que, como, quando e onde da adaptação. (HUTCHEON, 2011, p.15)

A maior ênfase da teoria da adaptação de Linda Hutcheon é a indicação de que a fidelidade não deve ser um critério de análise, pois, o que deve guiar a análise de uma adaptação são três perspectivas distintas. Em primeiro lugar, é necessário perceber o texto adaptado como uma entidade ou produto formal, ou seja, como “uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis”. Em segundo lugar, como um processo de criação, um ato criativo e interpretativo de apropriação e de recuperação de uma história e, finalmente, deve ser entendido também, como sendo um engaja-

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mento intertextual com a obra adaptada. As três perspectivas se completam e criam mecanismos coerentes de análise, pois levam em conta que uma “adaptação é uma derivação que não é derivativa, uma segunda obra que não é secundária – ela é a sua própria coisa palimpséstica”. (HUTCHEON, 2011, p. 30). Trabalhar adaptações como adaptações significa pensá-las como obras inerentemente “palimpsestuosas” assombradas a todo instante pelos textos adaptados. Se conhecemos o texto anterior sentimos constantemente sua presença pairando sobre aquele que estamos experienciando diretamente. Uma adaptação é um texto autônomo e possui existência própria, entretanto possui ligação com a obra original. Assim, torna-se impossível ignorar que os filmes de Harry Potter são adaptações dos livros. Embora as adaptações também sejam objetos estéticos, somente como obras duplas podem ser teorizadas. “A adaptação, do ponto de vista do adaptador é um ato de apropriação ou recuperação, e isso sempre envolve um processo duplo de interpretação e de criação de algo novo”. (HUTCHEON, 2011, p.45). Assim, a adaptação é uma forma de repetição, porém, é uma repetição que não implica em replicação. Sendo assim, apesar de ter a mesma história como base, as obras jamais serão idênticas, sempre terão diferenças relacionadas com o gênero, a mídia, a linguagem e os objetivos do adaptador. Por isso que além de entender o modo que uma adaptação se articula com os elementos da obra original, para a compreensão do conceito é preciso refletir sobre as motivações da criação de um texto adaptado. Hutcheon afirma que há muitas razões para uma adaptação: o propósito pode ser o de superar economicamente versões anteriores, uma homenagem, a vontade de contestar valores estéticos e políticos do texto adaptado, entre outras. Tal diversidade de motivações permite considerar a retórica da fidelidade como inadequada para discutir adaptações.

3. AS ADAPTAÇÕES EM UMA SAGA FANTÁSTICA O conceito de adaptação pode ser relacionado com as sagas fantásticas. Isso porque nesse tipo de estrutura narrativa a adaptação é quase uma norma: a estrutura do paracosmos de uma saga prevê a adaptação para outras linguagens, e isso é esperado pelo público e fomentado pelo capitalismo de ficção – que lucra quando uma saga de sucesso é adaptada para diferentes formatos. Os três diferentes modos de engajamento citados por Linda Hutcheon (2011) podem ser relacionados com o conceito de sagas fantásticas de Alberto Martos García (2009), pois uma saga seria uma narrativa que permite diferentes modos de engajamento. A maioria das sagas citadas possui versões de histórias que podem ser contadas, mostradas ou servir para a interação. No caso de As Crônicas de Gelo e Fogo, temos nos livros um exemplo de mídia usada para contar a história, na série de televisão Game Of Thrones, há um exemplo de mídia performativa – assistimos a história acontecer e os jogos de vídeo game, por sua vez, permitem uma interação sinestésica com o universo criado pelo autor George R. R. Martin. Os mesmos exemplos poderiam ser aplicados para outras sagas como Harry Potter, Star Wars, Piratas do Caribe... Hutcheon (2011, p. 59) ressalta que “as histórias não são imutáveis, elas evoluem com as adaptações ao longo dos anos”. Tal evolução é percebida de especial maneira nas sagas fantásticas. Por exemplo, a saga O senhor dos Anéis, escrita pelo autor britânico J.R.R. Tolkien foi publicada na década de 50 do século XX. Porém, o paracosmos da obra tornou-se mundialmente conhecido apenas após as adaptações cinematográficas no final do século XX. As adaptações da obra tornaram os livros conhecidos e permitiram o surgimento de outras adaptações. Outras edições dos livros surgiram, remodeladas e reconfiguradas para o novo leitor do século XXI. Hutcheon pontua que uma adaptação não pode ser compreendida considerando apenas filmes e romances, o conceito precisa ser mais abrangente, já que a adaptação de uma história pode ocorrer entre as mais diferentes mídias. Sendo assim, uma saga pode ter seu paracosmos adaptado das mais

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diversas maneiras. Por exemplo, Resident Evil foi um jogo de vídeo game que fez estrondoso sucesso e, posteriormente, foi adaptado para o cinema, para os quadrinhos e para obras literárias. Caminho inverso da saga Harry Potter, que surgiu primeiro nos livros e depois recebeu adaptações em outras mídias, inclusive em vídeo games. Apesar de no seu estudo Hutcheon não apontar explicitamente a transmidialidade, podemos concluir que uma narrativa transmidiática envolve, em algum momento, o conceito de adaptação/ tradução, uma vez que quando uma narrativa passa a ser vinculado em outro suporte, outra linguagem, outro formato, é necessária uma adaptação de seu conteúdo para as especificidades da nova mídia. Por exemplo, a versão literária de As Crônicas de Gelo é Fogo apresenta muitos personagens e tramas. Na adaptação para a televisão, muitos personagens e acontecimentos narrativos foram suprimidos ou substituídos. Provavelmente, tais mudanças ocorreram porque o público de uma série de televisão gosta de agilidade e a fidelidade excessiva aos acontecimentos do livro não permitiria isso. Linda Hutcheon (2011) chama a atenção sobre os objetivos do adaptador ao recriar e adaptar uma história, pois sendo a adaptação uma uma apropriação, uma recriação, é perceptível uma reinterpretação do texto original pelos filtros ideológicos dos sujeitos que adaptam. Podemos perceber isso nas adaptações dos filmes da série Harry Potter: cada diretor imprimiu uma fotografia, um olhar e um clima diferente em cada um dos filmes. Além disso, deve-se destacar que o produto de uma adaptação nunca é neutra às influências do seu tempo. Hutcheon (2011) considera que o produto artístico resultante do processo de adaptação é todo constituído por perspectivas políticas, ideológicas, sociais e culturais, a partir da estética que lhe dá forma. Sendo assim, a recepção da obra também sobre influências ideológicas, pois o produto adaptado pode ser consumido ou não e assim, pode atrair censura para si, ou não, dependendo do contexto em que está inserido. Hutcheon (2011, p. 195) pontua que “o contexto pode modificar o sentido, não importa onde ou quando”. É necessário destacar o quanto a intertextualidade é constitutiva de uma adaptação e como isso é percebido pelo publico consumidor das obras adaptadas. Hutcheon (2011, p. 161) aponta que há um prazer intertextual na adaptação, pois “tal como a imitação clássica, a adaptação estimula o prazer intelectual e estético de compreender a interação entre as obras, de abrir os possíveis significados de um texto ao diálogo intertextual”. Assim, para muitos ver uma nova versão de uma história já conhecida é uma experiência não só válida, como almejada, já que permite essa abertura à novas percepções e releituras. No caso das sagas fantásticas, na maior parte das vezes, há uma motivação na busca das adaptações: leitores buscam de forma aficionada a expansão da sua saga favorita. Os leitores de sagas como Harry Potter, O Senhor dos Anéis e As Crônicas de Gelo e Fogo, vivem e incorporam em sua vida os elementos do paracosmos que se identificam. Não apenas leem os livros e assistem filmes ou séries dos livros que adoram, como produzem textos, escrevem narrativas e discutem sobre o universo do qual são fãs. Sendo assim, são leitores multimidiais: é natural que um leitor dos livros de um paracosmos sinta-se tentado a acompanhar séries televisivas, a produzir fan fictions, ou o contrário, é possível que um telespectador se sinta na obrigação de ler os livros, de consumir os quadrinhos. Ou seja, os leitores de sagas tornam-se produtores e criadores de tipos de adaptações. Nesse sentido, as adaptações alimentam a expectativa do público por meio de uma série de normas que guiam nosso encontro com a obra adaptada que experienciamos. Além disso, diferente do plágio e da paródia, a adaptação geralmente indica sua identidade abertamente (HUTCHEON, 2011). Se conhecemos a obra em questão passamos a ter um horizonte de expectativa e no caso de sagas, há a empolgação e expecativa em ver a história favorita sendo adaptada. Linda Hutcheon (2011) aponta uma restrição ao conceito de adaptação. Não pode ser considerado como texto adaptado aquele decorrente da ampliação de uma história, como por exemplo, fan fictions, sequências, prequelas de filmes. Assim, a continuação do livro Guerra dos Tronos, não é uma adaptação, pois não adapta, não transforma os elementos de uma história de outra maneira

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e, sim, dá prosseguimento à narrativa. Já a primeira temporada da série Game of Thrones é uma adaptação, pois o mesmo enredo é adequado para o novo suporte, no caso, uma série de televisão. Assim, podemos considerar que uma saga é constituída por adaptações e também por ampliações do seu universo narrado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo teve como objetivo relacionar duas perspectivas teóricas: a teoria de adaptação de Hutcheon (2011) com o conceito de sagas fantásticas. Comprovamos que as sagas fantásticas são constituidas por adaptações e assim o cotejo é possível, e mais do que isso, podemos afirmar que Linda Hutcheon fornece importantes contribuições para a análise crítica de sagas. Qualquer adaptação deve ser analisada como uma obra autônoma e não ser constantemente diminuída por ser um produto secundário. O mesmo principio deve ser aplicado na análise de sagas fantásticas. São obras que expressam a infinita criatividade humana. Até porque, conforme Linda Hutcheon (2011, p. 235) “nas operações da imaginação humana, a adaptação é a norma, não a exceção”. Sagas fantásticas, apesar de muito lidas e procuradas por jovens e adolescentes, são muitas vezes, monosprezados e ignorados pela escola. Provavelmente, atingidas do mesma ressalva, que por muito tempo, pairou sobre as adaptações: a condenação como obras menores, sem validade estética e pertinência artística e cultural. Entretanto, como apontado nessetrabalho, isso não se confirma teoricamente. Pelo contrário, sagas e adaptações podem servir como ponte para ampliação de leituras, podem ser o ponto de partida para interessantes trabalhos de letramento literário. Nessa perspectiva, o estudo das sagas no âmbito escolar pode auxiliar para que a leitura de tais obras tenha sentido como atividade social e trazer melhores estratégias para fazer leitores, escritores ou expectadores mais críticos e competentes.

REFERÊNCIAS HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, KRISTEVA, Julia. Introdução a semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. MARTOS GARCIA, Alberto. Introducción al mundo de las sagas. Badajoz: Universidade de Extremadura, 2009 MARTOS NÚÑEZ, Eloy. MARTOS GARCIA, Alberto. Livros de cinema, transmedialidade e literatura nos alvores do século XXI. In: RÖSING, Tania Mariza Kuchenbecker; RETTENMAIER, Miguel. (Coord.). Questões de Ficção contemporânea. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2013. p. 69-99. RIVERA, Glória García. Paracosmos: las regiones de la imaginación (los mundos imaginarios en los géneros de Fantasía, Ciencia Ficción y Horror: nuevos conceptos y métodos). Primeras noticias. Revista de literatura, nº 207, 2004 p. 61-70.

FORMAÇÃO DE LEITORES NO PROGRAMA FEDERAL MAIS EDUCAÇÃO Sadi Zaffonato Júnior* (IFRS-Campus Sertão) Alexandra Ferronato Beatrici** (IFRS-Campus Sertão) O presente artigo é um recorte de pesquisa maior1 realizada neste ano etem como objetivo refletir sobre aspráticas leitoras dos estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental no Programa Federal Mais Educação da Escola Estadual Bandeirantes, localizada no município de Sertão/RS. Devido à verificação do desinteresse pela leitura por parte dos estudantes do 5º ano, foi realizada pesquisa com o objetivo de verificar o porquê de tal comportamento. Observou-se que, a maioria dos estudantes não possui contato com materiais de leitura em suas residências, o que se configura como um fator de desestímulo à ação de ler. Enquanto alguns têm acesso a materiais diversificados de leitura, grande parte somente tem contato somenteno ambiente escolar. Essas dificuldades de acesso são constatadas devido às famílias serem economicamente carentes, pela falta de apoio/incentivo familiar e, ainda, pela localização de suas residências em áreas rurais, inclusive quilombolas e bairros periféricos. Sabe-se que a leitura é importante na vida das pessoas principalmente em fase escolar, especialmente nos anos iniciais do Ensino Fundamental.Nesse sentido,Foucambert (1994), ressalta a importância da leitura e o poder que esta pode propiciar, permitindo que os cidadãos leitores se destaquem na sociedade em relação aos não leitores, pois, além de agregar conhecimento, a leitura contribui também para o desenvolvimento de um pensamento, de um raciocínio reflexivo, lógico, crítico e interpretativo, facilitando, desta forma, tanto a comunicação oral quanto a produção de textos. No momento em que o estudante adquire o hábito da leitura, gradativamente vai propiciando uma mudança de comportamento, no modo de pensar, de sentir e de agir, oportunizando, assim, uma melhor comunicação, facilitando a convivência grupal e social, além de resultar em crescimento pessoal. Por meio da prática leitora, visa-se estabelecer um elo, ou seja, uma ponte entre professor e estudante no sentido de aproximar, de desenvolver no estudante o gosto pela leitura. Ler, além de ser um direito, é também uma forma de inclusão social, pois forma sujeitos críticos capazes de ver e ler a realidade do mundo de múltiplas formas. Para a pesquisa e análise reflexiva deste texto, utilizou-se vários autores, entre eles Gadotti (2009), Moll (2009), Gatti (2006), Luck (2006), Abreu (2002), além de documentos do Ministério da Educação e Cultura (MEC), que abordam questões sobre Educação, Educação em Tempo Integral e o Programa Federal Mais Educação.

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Professor Graduado em Letras Português e Inglês, Pós-Graduando em Teorias e Metodologias da Educação no Instituto Federal de Educação Ciências e Tecnologias do Rio Grande do Sul – Campus Sertão, Brasil. E-mail: [email protected] Professora no IFRS/Campus Sertão. Mestre em Educação, doutoranda em Educação na linha de Políticas Educacionais.E-mail: [email protected] A pesquisa intitulada Formação de Leitores no Programa Mais Educação foi requisito para a conclusão do Curso de Especialização em Teorias e Metodologias da Educação, do IFRS/Campus Sertão. Tendo como orientadora a professora Alexandra Beatrici.

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1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO Um dos primeiros documentos que aparece a ideia de Educação Integral foi o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932, sendo idealizado por Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Cecília Meireles, entre outros vinte e três intelectuais brasileiros, que teve como objetivoestabelecer um sistema de Ensino Público no Brasil capaz de integrar diversas formas de aprendizagem: leitura e escrita; saúde; ciências físicas e sociais; aritmética, artes industriais; educação física; desenho; música; dança e alimentação. Também defendia a educação integral como um “direito biológico” de cada indivíduo e como dever do Estado, que deveria garanti-lo: [...] do direito de cada indivíduo à sua educação integral, decorre logicamente para o Estado que o reconhece e o proclama, o dever de considerar a educação, na variedade de seus graus e manifestações, como uma função social e eminentemente pública, que ele é chamado a realizar, com a cooperação de todas as instituições sociais [...]. Assentado o princípio do direito biológico de cada indivíduo à sua educação integral, cabe evidentemente ao Estado a organização dos meios de o tornar efetivo. (AZEVEDO, 1932).

Conforme pode-se observar no trecho retirado do documento redigido pelo professor, educador, crítico, ensaísta e sociólogo Fernando de Azevedo (1894-1974), aparece a defesa entre outras coisas, do direito das pessoas à educação de qualidade e de tempo integral, com o estado tendo uma função principal dentro desses sistema: a de organizar e tornar efetivo esse modelo de educação. A educação em tempo integral, sempre esteve em debate, e foi vista como uma forma de melhorar a qualidade de ensino e a formação dos estudantes. Diversas metodologias e práticas foram utilizadas para atingir estes objetivos. Pensando nisso, no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criado o Programa Mais Educação, no ano de 2007, como uma maneira de se implantar a educação em tempo integral em todo o país. O Programa Federal Mais Educação2 foi instituído pela Portaria Interministerial número 17 de 24 de abril de 2007, e visa fomentar a educação integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio do apoio a atividades socioeducativas no contra turno escolar.Compreende-se que a educação integral em jornada ampliada no Brasil é uma política pública em construção e um grande desafio para gestores educacionais, professores e comunidades que, ao mesmo tempo, amplia o direito à educação básica e colabora para reinventar a escola. O que se quer dizer, aqui, com reinventar a escola, não significa começar a educação novamente do zero, mas sim, adequar o conhecimento, as estratégias e as políticas públicas à realidade da educação integral e da comunidade/sociedade escolar. Ela vem para complementar o processo de ensino-aprendizagem, uma vez que, segundo Gadotti (2009), nós aprendemos durante toda a vida, não teríamos como separar um período no qual aprendemos e no outro não, logo o correto seria falar de educação em tempo integral, pois aprende-se em todo e qualquer lugar, na escola, na família, na sociedade e etc. Conforme o projeto educativo em curso nas escolas, quatro atividades são escolhidas dentre as mais diversas possibilidades ofertadas. Uma destas atividades deve, obrigatoriamente, compor o macrocampo acompanhamento pedagógico. O detalhamento de cada atividade em termos de ementa e de recursos didático-pedagógicos e financeiros previstos é publicado anualmente em manual Para instituir esse programa o Governo Federal contou com o apoio dos Ministros da Educação; do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; do Esporte e do Ministro de Estado da Cultura, embasado no inciso II do parágrafo único do art. 87 da Constituição Federal, do Art. 34 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 que determina a permanência do aluno na escola; do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que protege os direitos das crianças e dos adolescentes. Nos termos do Art. 227 da Constituição Federal, que prevê o direito à saúde, à vida, à alimentação, à educação dentre outros; de acordo com o Artigo 1o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que prevê a abrangência dos processos formativos que se desenvolvem na vida familiar e comunitária. Apoia-se ainda no Artigo 217 da Constituição Federal, que prevê o direito da criança e o dever do estado no sentido de oportunizar atividades esportivas como parte da formação integral.

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específico relativo à Educação Integral, que acompanha a resolução do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) do FNDE. O caderno Passo a Passo Mais Educação detalha, de forma objetiva, o público alvo do Programa, os profissionais responsáveis, o papel do professor comunitário/professor coordenador, os macrocampos e as atividades, além de dar outras orientações. O programa é coordenado pela Secretaria de Educação Básica (SEB/MEC) com parcerias com as Secretarias Estaduais e/ou Municipais de Educação. A sua operacionalização é feita por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Em 2014, era prevista a adesão de 60.000 escolas em todo o país, atingindo em torno de 7 milhões de estudantes. Escolas que se apresentam com 50% ou mais de estudantes participantes do Programa Bolsa Família, mantêm-se prioritárias para o atendimento, considerando a intersetorialidade do programa com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), por meio do Programa Brasil Sem Miséria.

2. A EDUCAÇÃO EM TEMPO INTEGRAL ATRAVÉS DO PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO A educação em tempo integral tem como finalidade incluir o estudante do ensino fundamental na escola por mais tempo, ou seja, no mínimo sete horas diárias para melhorar a qualidade da aprendizagem do aluno. Visando pôr em prática esta modalidade de ensino, criou-se em 2007 o Programa Mais Educação do Governo Federal. Concordando com a ideia de que para se ter uma educação em tempo integral eficaz, não se deve ter somente atividades de aulas ministradas pelos professores, destaca-se o que diz a professora Bernardete Gatti (2006): Esta ampliação comportaria um processo educativo pensado segundo outras premissas, realizado por atividades, oficinas, experiências, onde (sic) os alunos pudessem trabalhar, não só com os saberes, mas com coisas, cultivar artes aplicadas, cultivar elementos artísticos, criar projetos e desenvolvê-los, sob orientação de profissionais diversificados. (apud GUARÁ, Isa Maria F. Rosa)

Como se pode perceber, é necessário possuirmos atividades diferenciadas para que a educação em turno integral venha enriquecer e ampliar o conhecimento do estudante, favorecendo, assim a melhor convivência social e desempenho em suas atividades profissionais no seu dia-a-dia. Nesse sentido o Programa Federal Mais Educação oferece oficinas em turno inverso, ao que o estudante frequenta as aulas, contribuindo, de certa forma, para a educação em tempo integral. Na atualidade, a maioria das escolas funciona de forma rotineira, em um único turno e voltadas unicamente para repassar conteúdos através de suas disciplinas, fato que já não contribui, na realidade, para uma formação mais ampla. E para mudar esta situação uma das alternativas seria adotar a escola de tempo integral, que, segundo Gadotti (2009), a participação dos pais é de extrema importância. A escola que adortar o tempo integral, precisa saber que em seu Projeto Político Pedagógico terás de ter sido incluso o conhecimento formal, não formal e informal. Gadotti defende a implantação de um sistema escolar que funcione em tempo integral. E para isso é necessário e importante a presença e participação dos pais, da comunidade como um todo, e a presença de alunos em tempo integral na escola. A escola por sua vez deve elaborar um Projeto Político Pedagógico, de forma coletiva, que seja prático e funcional com a finalidade de realizar atividades educativas amplas, abrangentes, além das aulas normais. A escola em Tempo Integral viria a preparar o aluno para melhor viver, conviver, contribuir e desempenhar o seu papel como cidadão no âmbito familiar, pessoal, social e profissional.

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Muitas vezes confunde-se a Escola de Tempo Integral com a Educação Integral, uma vez que ambas são parecidas, mas não são iguais. Quem discute isso é a professora e dirigente da Diretoria de Educação Integral, Direitos Humanos e Cidadania Jaqueline Moll, que afirma: [...] de nada adiantará esticar a corda do tempo: ela não redimensionará, obrigatoriamente, esse espaço. E é, nesse contexto, que a educação integral emerge como uma perspectiva capaz de re-significar os tempos e os espaços escolares. (2009, p.18)

Moll (2009), sustenta que não basta aumentar o tempo e o espaço, na questão da escola em tempo integral, pois de nada adiantará para a melhoria da qualidade do ensino/aprendizagem. Assim sendo, a autora argumenta que é necessário melhorar as condições de trabalho, qualificando e formando o professor para esta finalidade e também aperfeiçoar, inovar e equipar o espaço para viabilizar e ofertar esta modalidade de ensino aos alunos, melhorando, assim, a sua sociabilidade e a integração com a sua comunidade local, regional e global. Muitas foram as tentativas, apesar de metodologias diferentes de implantá-la. No momento o debate público se torna mais forte, como afirma Gouveia (2006, p.84) o assunto da “educação integral” torna a ser discutido publicamente, depois de alguns anos, compreendendo-a como “um caminho para garantir uma educação pública de qualidade.” Segundo ele, é um bom caminho para se implantar e garantir a educação pública de qualidade, qualificando, desta forma, os estudantes, preparando-os melhor para a vida. Podemos dizer ainda que todos os órgãos com responsabilidades educacional no Brasil, independente das esferas às quais pertençam, podem e devem se unir e contribuir cada qual com o seu poder e alcance para que tenhamos uma educação, uma escola, uma comunidade e um corpo docente e discente não apenas melhor preparados, mas também habilitados a viver e conviver em comunidade e com a Educação em Tempo Integral.

3. A IMPORTÂNCIA DA LEITURA O ato de ler pode representar, para as pessoas não habituadas, uma atividade cansativa. Já aqueles que desenvolveram o gosto pela leitura, leem por prazer sem sentir cansaço e principalmente como uma das melhores fontes de informação. O “ideal” seria mesclar a prática leitora com o hábito da leitura, com o gostar de ler, de sentir prazer e ao mesmo tempo a sede pela busca de novos conhecimentos.Na atualidade, temos uma compreensão muito clara a respeito da importância da leitura, as pessoas que não possuem o habito de ler, veem tal ação como algo tedioso e não conseguem ampliar os seus horizontes de formas práticas, pois é nos livros que existe a chance de se atualizar e obter novos conhecimentos. As pessoas não leitoras acabam restringindo o seu grau e nível de conhecimento, uma vez que se comunicam, conversam e aprendem apenas oralmente em conversas com grupos de amigos ou colegas de trabalho. É nos livros que buscamos o desconhecido e é através deles que conhecemos fatos históricos, lugares, “abrimos” nossa cabeça e passamos a ter uma melhor convivência e visão do mundo e da vida. Ler é uma forma de melhorar o aprendizado, tanto pela vida quanto para fins escolares, pois, conforme afirma Lück (2006, p. 8-9), “para melhorar a educação é necessário começar pela leitura”. Ela é um meio que se faz necessário para melhorar a educação e contribuir para uma melhor formação do estudante e do cidadão.Ler é um aprendizado que contribui para a melhoria do ato de se expressar do estudante. Freire (apud Antunes, 2002) afirma que:

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[...] o aprendizado da leitura [...], associado ao necessário desenvolvimento da expressividade, se faz com o exercício de um método dinâmico, com o qual educandos e educadores buscam compreender, em termos críticos, a prática social. (p.65).

Segundo o autor, melhora-se a expressividade através da leitura, uma vez que ocorre um exercício numa dinâmica que permite ao educando e também aos educadores compreender através de análise crítica, vivenciar sua prática social. Muitas vezes, como professor, é muito válido refletir sobre o tipo de livro que estão indicando aos alunos, pois, segundo Lajolo (1997),não foi antes dos anos de 1950 que a ideia de adolescência chegou ao Brasil e com ela veio a classificação dos livros infanto-juvenis. A função/reflexão que recai sobre o professor é se esse tipo de literatura agradará e fará com que o estudante se torne um leitor mais assíduo e, anos mais tarde, venha a ler e gostar dos clássicos, como por exemplo Memórias Póstumas de Brás Cubas. Segundo o professor Ezequiel Theodoro da Silva, “os melhores parceiros para a promoção da leitura que tem um potencial inesgotável, que são os mais solidários com as nossas causas, são os próprios alunos de uma escola com quem convivemos diariamente.” (SILVA, 1991, p.12) Muitas vezes a leitura pode ser muito mais do que um método de adquirir conhecimento, como nos diz Márcia Abreu (2002): “a leitura não é uma prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder” (p.15). Conforme a autora, a leitura é um instrumento que não apenas informa e melhora os conhecimentos do leitor, como também, lhe dá poderes. Gutenberg inventa a prensa móvel, utilizando tinta e moldes que eram prensados em suas formas, produzindo letras que passaram a ser impressas em pergaminho e papel. Um século mais tarde, com a natural evolução e revolução da máquina a vapor, temia-se pelo fim da impressão, seguindo essa ideia.Com a chegada de um produto novo, o anterior iria desaparecer, na seguinte sequência: o livro devido à máquina; a pintura devido à foto; o jornalismo impresso devido ao rádio; e todos esses meios de comunicação seriam extintos com a chegada da televisão, e que nos dias atuais o livro novamente estaria em perigo devido à chegada da internet, que revolucionou o mundo da comunicação. Ler, talvez, seja tão importante quanto se alimentar, pois enquanto os alimentos dão vitalidade ao corpo, a leitura alimenta a alma, rejuvenesce o espírito, educa e reeduca cidadãos, estando eles em fase de estudos escolares ou não, permitindo que o leitor se sinta integrado, inserido, envolvido e bem relacionado, tanto familiar, social, quanto virtualmente. Além de servir como lazer, ainda auxilia no processo de ensino-aprendizagem, melhorando não apenas o conhecimento, mas também permitindo ao aluno ou ao ser humano melhor falar, compreender, se comunicar e conviver socialmente.

4. O UNIVERSO DA LEITURA NO PROGRAMA MAIS EDUCAÇÃO NA ESCOLA BANDEIRANTES A pesquisa foi estruturada tendo como referencial a pesquisa qualitativa. Através desta, busca-se decifrar o que está explícito e também implícito nas respostas do instrumento de pesquisa. De acordo com Ribeiro (2006): Pesquisar qualitativamente é, antes de qualquer outra definição, respeitar o ser humano em sua diversidade. É entender que há singularidade em cada uma das pessoas envolvidas e que essa singularidade é construída na pluralidade; nas múltiplas etnias, nas pluri-manifestações culturais, corporais, lingüísticas. É gostar de ser gente.(apud Magalhães e Albino, 2010, p.5)

Assim, pesquisar de forma qualitativa é respeitar as diferenças existentes em cada ser humano. Existem diversas formas e técnicas de coletas de dados.Utilizou-se nesta pesquisa um questio-

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nário, que se caracteriza por um conjunto de perguntas, que foi lido e respondido, sem a necessidade da presença de um entrevistador. Foi aplicado questionáriopara dezalunos da escola, com o objetivo de verificar quais suas expectativas com relação ao ProgramaMais Educação. Dentre várias questões feitas durante da pesquisa, duas são explanadas aqui, a primeira, sobre quantos livros os alunos haviam lido no Programa Mais Educação, obteve-se o seguinte resultado: um aluno (10%) disse que leu mais de dez livros; dois alunos (20%) responderam que leram de 6 a 10; quatro alunos (40%) disseram que leram de 1 a 5 livros, enquanto que três alunos (30%) informaram que não leram nenhum livro através do Programa Mais Educação.Em resposta à questão: O que mais chama atenção nas obras que lê?, obteve-se as seguintes informações: o aluno que leu Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, destacou a ação que gira entorno da história; O aluno que leu O Senhor dos Anéis, destacou a criatividade dos autores que inventam livros incríveis; a aluna que leu Violetas na Janela, relatou que sempre aparece um personagem legal; a estudante que leu Otalina e a Gata Amarela, escreveu que o que lhe chama atenção é algum personagem e os fatos; por sua vez a aluna leitora do livro Fadas, Duendes e Guinomos disse que as fadas lhe chamaram a atenção e a leitora do livro Sofia e o Bosque Encantado, expôs que a história é o que mais lhe chama atenção. Com os dados coletados e a análise da pesquisa possibilitou-se concluir que tanto a direção quanto os profissionais envolvidos no Programa Mais Educação da Escola Estadual de Ensino Fundamental Bandeirantes, estão imbuídos de grande empenho e um espírito coletivo no sentido de fazer com que este trabalho continue, pois vem frutificando e trazendo bons resultados tanto em âmbito escolar, sala de aula, quanto em família, contribuindo, desta forma, para uma melhoria na qualidade de ensino e de convivência social. Neste sentido, pode-se afirmar que a leitura deve ser oportunizada, oferecida e estimulada aos estudantes de todo estabelecimento de ensino e por todos os profissionais que nele atuam, pois com a união de todos, sem medir esforços, é possível melhorar o ambiente de leitura, criar novos métodos, visando estimular o estudante a gostar de ler e, para que isto ocorra e frutifique, é também importante e necessário ampliar e qualificar o acervo bibliográfico, com obras apropriadas a cada faixa etária. Assim sendo, conclui-se que toda e qualquer prática leitora exerce importante influência na formaçao de novos leitores e além disso também contribuem no sentido de aprimorar, tonar habitual os estudantes que já leem. Pode-se afirmar que é possível desenvolver o gosto pela leitura prazeroso além de oportunizar conhecimento, melhorar a oratória e a construção frasal. O exemplo de professores e alunos oide estimular os não leitores a se envolver no mundo dos livros.

REFERÊNCIAS ABREU, Márcia. Prefácios: Percursos da Leitura. In _____ (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas, SP: Mercado das Letras, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: FAPESP, 2002. AZEVEDO, Fernando. et al. Construção educacional no Brasil: ao povo e ao governo; manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. São Paulo: Nacional, 1932 – disponível em acesso em: 03 de Abril FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Trad. de Bruno Charles Magne. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. ANTUNES, Ângela. Leitura do mundo no contexto da planetarização: por uma pedagogia da sustentabilidade. São Paulo: FE-USP, 2002. GADOTTI, Moacir. Educação Integral no Brasil: inovações em processo - São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2006.

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GADOTTI, Moacir. Educação Integral no Brasil: inovações em processo - São Paulo: Editora e Livraria Instituto Paulo Freire, 2009. - (Educação Cidadã; 4) GATTI, Bernadete, apud GAUARÁ, Isa Maria F. Rosa. É imprescindível educar integralmente. In: Caderno CENPEC: educação, cultura e ação comunitária, n. 2, p. 15-24, 2006. LAJOLO, Marisa. Poesia uma frágil vítima da escola. São Paulo. Ática, 1997 LÜCK, Heloísa. A gestão pedagógica da escola focada na leitura. Gestão em Rede, Curitiba, PR, n° 73, p. 8-9, out 2006. MAGALHÃES, Solange Martins Oliveira; ALBINO, Larissa Carneiro. A pesquisa qualitativa nas produções acadêmicas sobre professores do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFG. In: Anais do XIX Simpósio de Estudos e Pesquisas. Universidade Federal de Goiás. Faculdade de Educação. ISSN 2179-0213. 2010. Disponível em: http://anaisdosimposio.fe.ufg.br/n/30787-comunicacoes-formacao-e-profissionalizacao-docente-pagina-1. Acesso em: 26. mai. 2015. MOLL, Jaqueline. (Org.). Educação integral: texto referência para o debate nacional. Brasília: MEC/Secad, 2009. SILVA, Ezequiel Theodoro da. De olhos abertos: reflexões sobre o desenvolvimento da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1991.

DOM CASMURRO E MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NA COMUNIDADE VIRTUAL SKOOB1 Sandra Mariza de Almeida Silva* (UniRitter) A Skoob é usualmente reconhecida e se autodenomina como uma rede social. “Somos a maior rede social para leitores do Brasil”, assim começa o texto sob o título Quem somos?, disposto em pé de página, na capa da Skoob. Por representar um grupo de pessoas com interesse comum – a leitura –, optamos por utilizar o termo comunidade virtual nesta comunicação em vez de rede social para denominar a Skoob. A mais populosa das comunidades virtuais brasileiras é considerada uma rede colaborativa, tem acesso gratuito e está voltada àqueles que gostam de livros. Desenvolvida em 2009 pelo analista de sistemas Lindenberg Moreira, a Skoob (palavra books ao contrário), que já disponibilizou aos usuários um aplicativo para smartphones, tem hoje mais de 2 milhões e 300 mil usuários (WIKIPEDIA, 20152) e mais de 80 milhões de livros cadastrados (PRESS WORKS, 2014). O usuário da Skoob pode cadastrar novos títulos e registrar os livros que já leu, que está lendo, que pretende ler e aqueles cuja leitura abandonou, marcar os favoritos e dar nota a eles, organizando assim sua estante virtual. O menu Explorar da Skoob disponibiliza ao usuário o acesso direto a listagens de livros cadastrados, autores, leitores, grupos de leitores, livros para troca, cortesias, lançamentos, meta de leitura e também a lista dos Top Mais, a qual exibe, ordenados de um a cem, os livros marcados como os mais lidos. A Skoob é um espaço que facilita ao leitor não somente a organização do acervo de leituras mas também a exibição da preferência por textos e/ou obras, assim como o julgamento sobre elas por meio do registro de resenhas e de comentários vinculados a elas. Desse modo, além de se apresentar como uma via interativa, a Skoob representa um meio de manter o leitor informado sobre as escolhas de outras pessoas – o que poderá nele suscitar novas necessidades de leitura. Pode-se dizer que o skoober tem, nesta comunidade dedicada a pessoas que gostam de ler, um modo não apenas de mostrar o que ele lê aos demais cadastrados, mas de se identificar dentro dela pelo gênero dos livros que cadastra (romance, científico, biográfico, etc.). Essa identidade é reforçada pela opinião emitida sobre as leituras que já fez ou que estão em andamento e pelos comentários que faz sobre as resenhas de outros leitores. Isso, de certo modo, funciona como um uma forma de marketing pessoal, visto que a imagem da pessoa está, neste caso, atrelada ao tipo de leitura que ela afirma fazer e às preferências por determinados livros ou autores.

1. DOM CASMURRO E MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NO CONTEXTO DA SKOOB A lista dos Top Mais da Skoob é uma seleção composta pelos cem livros mais marcados como lidos pelos skoobers. Nesta listagem estão, na maioria, livros de autores estrangeiros contemporâneos, considerados best-sellers, alguns adaptados ao cinema como, por exemplo, os quatro volumes que compõem a saga O crepúsculo (Stephenie Meyer), os sete livros da coleção Harry Potter (J. K.

Graduada em Letras (UniRitter), com pós-graduação em Assessoria Linguística (UniRitter) e aluna do Curso de Mestrado em Letras – PPGL – UniRitter. 1 Este trabalho é parte da dissertação de mestrado desenvolvida no PPG Letras UniRitter, com bolsa CAPES/FAPERGS, sob orientação da profª. drª. Rejane Pivetta de Oliveira e co-orientação da profª. drª. Raquel Bello Vázquez. 2 Dados disponíveis em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Skoob>. Acesso em: 13 ago. 2015. *

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Rowling), os livros de aventura O código Da Vinci, Anjos e demônios e O símbolo perdido (Dan Brown), a trilogia O senhor dos anéis (J. R. R. Tolkien), dois dos cincos volumes que compõem Percy Jackson e os Olimpianos (Rick Riordan), três dos cinco volumes da série As crônicas de gelo e fogo (George R. R. Martin). Também estão lá romances universais como O pequeno Príncipe (A. Saint-Exupéry), A revolução dos Bichos e 1984 (Jorge Orwell), A Metamorfose (Franz Kafka), Orgulho e preconceito (Jane Austen), Romeu e Julieta (Willian Shakespeara) e o livro O diário de Anne Frank (Anne Frank). Ainda se pode verificar compondo essa listagem os autores nacionais Pedro Bandeira (A droga da obediência e A marca de uma lágrima), José de Alencar (Iracema e Senhora), Jorge Amado (Capitães de areia), Joaquim Manuel de Macedo (A moreninha), Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias), Clarice Lispector (A hora da estrela), Paulo Coelho (O diário de um mago, Brida e O alquimista) e Machado de Assis, com Dom Casmurro (DC) ocupando a 18ª posição e Memórias póstumas de Brás Cubas (MP) a 37ª . Em pesquisa efetuada no curso de mestrado em Letras na UniRitter, em andamento, considera-se a hipótese de haver relação entre a presença na Skoob destes romances canônicos, meio a livros considerados como literatura de massa, e a solicitação de leitura destes textos nas escolas e universidades, bem como nos editais e nas consequentes provas de exames vestibulares. Entende-se que a leitura dos romances de Machado de Assis não se produz pelo mesmo apelo midiático empreendido para que se leiam os best-sellers contidos na lista dos Top Mais. Para comprovar, ou então refutar a hipótese acima descrita, torna-se necessário analisar os pressupostos críticos utilizados pelo leitor na leitura de DC e MP e compará-los com a crítica acadêmica. Integrando a crítica do leitor, tem-se as resenhas sobre os romances DC e MP, selecionadas segundo critérios específicos, unidas às respostas de inquérito enviado aos resenhistas. Compondo a crítica acadêmica, serão utilizados estudos crítico-literários especializados sobre Machado de Assis, os quais fazem parte da listagem da bibliografia indicada por professores de disciplinas de programas de pós-graduação em Literatura de diversas universidades brasileiras. Após os procedimentos de pesquisa, coleta, organização e tratamento de dados, será efetuado o cotejamento entre as informações obtidas a partir das resenhas da Skoob, das respostas ao questionário e do referencial teórico – trabalho de análise essencial para firmarem-se conclusões sobre o estudo.

2. MACHADO DE ASSIS NO CÂNONE LITERÁRIO BRASILEIRO O romance surgiu com o Romantismo, primeiro na Inglaterra, Alemanha e França e veio para o Brasil com uma roupagem liberal europeia que não combinava com o Brasil escravista. O romance romântico e suas idealizações passaram, segundo Bosi, por um “processo de crítica”, houve “um esforço, por parte do escritor anti-romântico, de acercar-se impessoalmente dos objetos, das pessoas. E uma sede de objetividade que responde aos métodos científicos cada vez mais exatos nas últimas décadas do século”. (BOSI, 2006, p.167). Segundo Schwarz (2012, p.49-50), “herdávamos com o romance, mas não só com ele, uma postura e dicção que não assentavam nas circunstâncias locais, e destoavam delas. Machado de Assis iria tirar muito partido desse desajuste, naturalmente cômico”. Em meados do século XIX, mais que uma independência política, Machado ansiava por uma independência cultural. Nesse contexto, o autor expõe um Brasil não representado na literatura dos indianistas e naturalistas. Ele caracteriza homens e mulheres de um Brasil urbano, inseridos no espaço e no tempo da cidade, mostra o caráter de seus personagens em suas diversas facetas, deixa transparecer a estrutura do Brasil escravocrata, cuja elite que nele habitava ainda tinha olhos voltados para o continente colonizador. Ao desfazer-se das antigas ideologias, o romance realista de Machado trouxe para o centro da narrativa o que antes era periferia. Nesse sentido, diz Schwarz (2012, p. 53), “o romance realista

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foi uma grande máquina de desfazer ilusões”. “O esquema romântico e dialético, segundo o qual os autores são tanto mais universais quanto mais locais”, diz Schwarz (2004, p.18)3, “integrava o Brasil à civilização”. Sem o ufanismo característico do romantismo europeu, no qual o brasileiro se espelhava, constrói-se a autenticidade e, consequentemente, a universalidade da obra machadiana. A diversificada produção intelectual de Machado de Assis compreende poesia, teatro, conto, peças de teatro, resenha crítica e romance, mas é com o conto e o romance que Machado se sobressai no cânone brasileiro da literatura. Sua obra começa com o romantismo, porém “atinge a plena maturidade do seu realismo de sondagem moral” (BOSI, 2006, p.174), a partir do romance MP (1881), considerado o “divisor de águas” na obra do autor. Segundo Bosi (2006), este romance foi não só uma revolução formal mas também ideológica. Centrada em um narrador morto, a narrativa deixava-o livre para discorrer sobre a essência humana e desnudá-la, deixando ver nela o que há de mesquinho e precário, conforme Bosi (2006), uma “herança inalienável” sobre a qual valia a pena refletir. Era como uma resposta aos românticos idealistas e às ideias liberais que antes Machado defendia, mas que se tornavam obsoletas. A estrutura de DC (1899) é a mesma de MP, calcada na narrativa de memórias de um homem, em primeira pessoa. O narrador, segundo Schwarz (2004), fornece ao leitor pontos de vista insuficientes a respeito dos fatos, pessoas e coisas que ele apresenta e que compõem um passado cheio de dúvidas, sobre o qual prevalece a desconfiança de traição por Capitu e Escobar. Neste romance, como em MP, “o narrador machadiano realizava em grau superlativo as aspirações de elegância e cultura da classe alta brasileira, mas para comprometê-la e dá-la em espetáculo” (SCHWARZ, 2004, p.29). De acordo com Antonio Candido (1995), se a Europa concentrava a maior parte do cânone da literatura, especificamente do romance, o Brasil ainda estava à margem no campo literário, assim como o país estava à margem econômica e politicamente no cenário mundial. Machado de Assis, embora fosse reconhecido no Brasil como o maior escritor do país e tivesse o quilate dos melhores autores internacionais, mesmo no século XX permaneceu um romancista marginal, menos lembrado fora do país do que poderia ser, o que se deve, segundo Candido (1995), ao fato de a língua portuguesa ser também a menos conhecida dos países ocidentais e de o Brasil não ter uma posição política central no mundo. Reconhecido entre seus pares, Machado de Assis foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras – ABL, criada em 1897 segundo o padrão da Academia Francesa. Machado foi também o primeiro presidente da ABL e, dentre seus quarenta membros, ocupou por mais de dez anos a cadeira número 23. A ABL, como se pode verificar em seus estatutos, foi criada com o propósito de promover “a cultura da língua e da literatura nacional”, e seus membros são escolhidos de modo a contemplar os chamados mestres da literatura nacional que tenham “publicado obras de reconhecido mérito ou, [...], livro de valor literário” (ABL, 2014). Segundo o art. 6º do seu Estatuto, “sem vênia da Academia nenhum Acadêmico tem o direito de declarar essa qualidade nos livros que publicar”, o que sugere ser a Academia (os seus membros) o órgão regulador dos parâmetros utilizados para definir o mencionado “valor literário”. A estrutura acadêmica das universidades, especialmente a área de Letras, encarrega-se de perpetuar a ideia de imortalidade associada à plêiade de autores consagrados. Sabe-se que, por força do valor atribuído à obra machadiana no século XIX e do empenho da academia em mantê-la viva, a leitura de romances de Machado de Assis vem sistematicamente sendo solicitada para as provas de literatura dos exames vestibulares4. Como resultado disso, tem-se que essa leitura se tornou obrigatória aos vestibulandos interessados em conquistar uma disputada vaga, tanto nas universidades Do ensaio “A viravolta machadiana”, publicado em julho de 2004, na Revista Novos Estudos, disponível no site http://novosestudos.uol. com.br/v1/Pages/view/sobre-a-revista. 4 As provas vestibulares e ENEM podem ser verificadas nos sites das universidades públicas, dentre elas UFRGS, USP, UNICAMP, UFMG, e do INEP. 3

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públicas quanto naquelas de capital privado. Antes do vestibular, no entanto pelos mesmos motivos acima expostos, essa leitura é solicitada aos alunos de ensino médio, de forma que a prática se torna uma imposição. Deve-se levar em conta que, muitas vezes, em contrapartida, não são consideradas as preferências nem se adéquam os métodos à realidade do aluno. “A obra de arte”, conforme Bourdieu (2013, p.10), “só adquire sentido e só tem interesse para quem é dotado do código segundo o qual ela é codificada”. A despeito disso, o aluno é posto frente a textos que não são refratários à época de produção, mas contêm reflexos mais ou menos fiéis dela, ou seja: ele se vê confrontado com um universo de significações bem diferentes do seu e, muitas vezes, não tem condições de compreendê-lo, visto as diferenças existentes entre o repertório dele e o de produção dos textos. Dessa maneira distanciado, tateando significados, acossado pela iminência de um concurso decisivo para a futura vida profissional, o aluno começa cedo a “ter que” ler e interpretar Machado de Assis. Dadas as condições em que se dão as leituras de textos literários, são poucos aqueles no Brasil que, tendo cursado o ensino médio, ainda não leram algum dos romances ou contos machadianos. É bem provável que se encontrem exemplares de livros deste autor nas estantes dos lares brasileiros pelos motivos aqui expostos, adquiridos por causa das leituras solicitadas no ensino médio e/ou com vistas ao vestibular. A linguagem utilizada, a alusão a hábitos, comportamentos, crenças, ideologias, valores, fatos políticos, tudo faz parte do pano de fundo onde se projetam as imagens do cotidiano que compõe a ficção machadiana. O trabalho criativo, os elementos que compõem o estilo deveras irônico, a crítica por vezes aberta e, em outras, sutil à sociedade burguesa do Rio de Janeiro do século XIX anteciparam Machado de Assis a uma geração de escritores. No discurso pronunciado em 7 de dezembro de 1897, na sessão de encerramento dos trabalhos acadêmicos da ABL, Machado de Assis, na posição de presidente desta instituição, convocava aos seus membros uma atitude guardiã da língua pela preservação do cânone: A Academia, [...], buscará ser, com o tempo, a guarda da nossa língua. Caber-lhe-á então defendê-la daquilo que não venha das fontes legítimas, – o povo e os escritores, – não confundindo a moda, que perece, com o moderno, que vivifica. Guardar não é impor; nenhum de vós tem para si que a Academia decrete fórmulas. E depois para guardar uma língua, é preciso que ela se guarde também a si mesma, e o melhor dos processos é ainda a composição e a conservação de obras clássicas. (ASSIS, 2015).

É por tudo que representou à literatura brasileira que este autor se tornou digno de figurar um posto de membro da Academia Brasileira de Letras e, dessa forma, atingir a categoria de “imortal”. Porém, sem desconsiderar ou julgar seus méritos, ele consta na história e permanece como um ícone da literatura brasileira por força do que um determinado grupo social – do qual ele foi integrante – entende e julga ser competência na arte de fazer literatura. Os romances de Machado de Assis fazem parte de um corpo sólido e duradouro de obras que atravessaram o tempo, perpassando o movimento modernista das artes no século XX, até a atualidade. Nesse contexto, pode-se compreender que, antes de ler (ou não) Machado “por gosto”, lê-se devido ao fato de que a concepção do cânone se impõe, assim como menciona Bourdieu (2013), como agente autorizado a instituir um modelo consagrado e, portanto, a ser sempre lembrado, lido, seguido. Conforme Bourdieu (2013, p.213), “o objeto de arte é a objetivação de uma relação de distinção”. Há uma correspondência entre os campos de produção, de formação do gosto e de consumo de bens – entre os quais incluem-se os objetos de arte – que mantém a dinâmica (a dinâmica dos campos) entre eles e se encarrega de “produzir sinais distintos e distintivos da ‘classe’” (BORDIEU, 2013, p.217). A partir dessa teoria, entende-se que, instituídos pela academia como bons exemplares da literatura brasileira, os romances e contos de Machado de Assis merecem e devem ser lidos, e aquele que os lê pode ser considerado um leitor de “bom gosto”.

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Pelo que foi aqui exposto, considerando os agentes que contribuem para a definição do cânone e a relativa estabilidade deste através do tempo, pode-se compreender porque os romances de Machado de Assis, DC e MP, constam dentre as obras mais lidas da comunidade virtual Skoob, ainda que, em uma escala de um a cem, posicionem-se depois da saga Harry Potter e da trilogia Crepúsculo, por exemplo, entre outros livros considerados literatura de massa. A ABL instituiu os padrões e, de modo homólogo, as universidades encarregaram-se de perpetuá-los formando agentes capazes de reproduzi-los. Assim como a ABL, elas se encarregam de transmitir, através das gerações, a cultura do cânone dentro da literatura e, indo além, de dotar o aluno de competência para discernir tais modelos dos demais, o que o torna também, de acordo com a teoria bourdieana, distinto entre as pessoas que não têm esse aporte de conhecimento. A formação do habitus e, consequentemente, do gosto, segundo Bordieu, começa na infância, através das relações familiares. Mesmo que a leitura não tenha feito parte das práticas no ambiente doméstico, a escola se encarrega, como já dissemos, de apresentar autores e textos e de equipar o aluno de um saber próprio à identificação de traços na literatura que a classificam como legítima, e o faz de forma mais ou menos impositiva. Esta imposição do cânone instituído, embora muitas vezes não “desperte” nos alunos o gosto por determinado texto ou autor, pelo menos faz com que estes saibam da sua existência pelo relacionamento estabelecido na escola. Este contato transcorre em várias fases e em vários níveis. Perpassa uma sequência de ações que se iniciam na instituição da literatura como disciplina, do livro didático como ferramenta de apoio ao ensino de literatura e da seleção de autores que nele estarão representados. Passa pela escolha dos professores em reproduzir aquilo que lhes foi transmitido na academia, o que, neste caso, significa apresentar aos alunos determinados autores (consequentemente excluindo outros), classificá-los em períodos literários e determinar leituras para a disciplina de Literatura, em grande parte relacionadas àquelas predispostas nos editais para exame vestibular e ENEM. Em um nível anterior, orquestrando esta sinfonia de ações perpetuadoras do cânone, estão grupos distintos de professores e especialistas na área responsáveis por fazer com que autores como Machado de Assis, por exemplo, tenham lugar garantido tanto nos livros didáticos como nas mencionadas provas de vestibular e nos currículos acadêmicos. As várias instâncias oficiais do ensino brasileiro compõem um esquema que é permanentemente realimentado: a academia forma professores capazes de transmitir padrões a alunos que também se tornarão, um dia, professores de instituições superiores de ensino aptos a reproduzir esse padrão. Considera-se a possibilidade de haver relação entre a leitura de textos canônicos e a já mencionada prática circular de difusão desses textos. A constatação da presença dos romances DC e MP na comunidade virtual Skoob, entre livros que não fazem parte do cânone, leva a considerar-se essa hipótese, mas também conduz a se pensar na possibilidade de que as resenhas produzidas venham a sinalizar concepções diversas sobre a recepção desses romances. O que se tem evidente é que a leitura de textos consagrados ocupam menos espaço na estante dos mais lidos da Skoob que autores e obras desconsiderados nas práticas de leitura escolares e acadêmicas.

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JOGANDO COM PALAVRAS: O SINCRETISMO EM ASSASSIN’S CREED II E ASSASSIN’S CREED RENASCENÇA Vagner Ebert* (UPF) Miguel Rettenmaier da Silva** (UPF)

1. INTRODUÇÃO A convergência dos meios de comunicação, desencadeada pelos grandes avanços tecnológicos que têm acontecido em diferentes áreas, altera a forma como o ser humano produz e compartilha conhecimento, como se comunica e interage, seja no meio físico ou virtual. Essas mudanças podem alterar a forma como se dá a leitura em meio à tantas tecnologias. Com tantos recursos disponíveis ao mesmo tempo, o jovem, principalmente, assume um papel transitório em meio às diferentes mídias à que tem acesso, estabelecendo diálogos com os diferentes meios de comunicação presentes em seu cotidiano. Há, portanto, alguma semelhança entre os diferentes suportes em que uma narrativa é apresentada ao público? Pode alguma característica migrar de um meio à outro, nessa transição característica da cultura da convergência? Nesse sentido, o objetivo deste estudo é compreender o sincretismo presente na obra Assasin’s Creed: Renascença em contrapartida ao jogo Assassin’s Creed II. Para tanto, a investigação aqui realizada parte do estudo de conceitos como interação mútua e interação reativa a partir das investigações de Alex Primo (2007), também o conceito de imersão em Janet Murray (2003), as investigações de Henry Jenkins (2009) sobre a cultura da convergência e, ainda, o conceito de sincretismo de Massimo Canevacci (2013). Assim se propõe o presente estudo, buscando investigar em meio a cultura da convergência as trocas, os diálogos, os sincretismos que existem entre obras apresentadas em diferentes suportes, em especial as consequências dessa prática sobre a literatura. Os leitores têm migrado do papel para às telas, sem saber que as palavras impressas com tinta guardam muitas e instigantes possibilidades para a leitura.

2. INTERAGINDO E CONVERGINDO NA CULTURA DAS TELAS Os avanços tecnológicos deste século revolucionaram diversos setores da sociedade, abrindo as portas para um mar de informações à que o homem só é capaz de navegar, sem jamais alcançar suas profundezas. Desse cenário, alguns aspectos sobressaem-se aos demais, como o encaminhamento de uma cultura de massa para a chamada cultura participativa, à qual Henry Jenkins (2009, p. 30) defende que, “em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras [...]”. Mas como se dá essa participação? Faz-se necessário, primeiro, investigar alguns conceitos à respeito do tema. A participação que transforma um consumidor de mídia, ou receptor de mensagens, em um sujeito ativo e envolvido nesta comunicação também pode ser compreendida a partir de outros dois conceitos: interação e/ou imersão. O estudo a respeito da interação foi desenvolvido por Alex Primo (2007) para investigar o potencial dialógico dos meios de comunicação, onde apresenta o conceito fragmentado em duas ver* **

Mestrando em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutor em Teoria da Literatura, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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tentes: a interação mediada e a interação face a face. Primo (2007, p. 18-19) diferencia a interação face a face da mediada através do espaço físico da comunicação, isto é, enquanto que a face a face corresponde à relação de aproximação entre indivíduos em um mesmo ambiente físico, a interação mediada pressupõe uso de uma tecnologia – o computador, etc. – como mediador do diálogo. A mediação do diálogo desenvolvida por estes dispositivos tecnológicos, por sua vez, pode acontecer de duas maneiras, configurando assim a interação reativa e a reação mútua (PRIMO, 2007). Para descrever a distinção entre um modelo de interação e outro, Primo (2007, p. 28) afirma que os termos interação e interatividade não representam uma interação real, na perspectiva da comunicação, das tecnologias vendidas com essa classificação; não passam de caminhos pré-determinados – interação reativa – onde o usuário apenas seria capaz de escolher dentre uma série de opções. A interação mútua, por sua vez, é a que se assemelha mais ao diálogo, pois diz respeito às interações que “[...] apresentam uma processualidade que se caracteriza pela interconexão dos subsistemas envolvidos. Além disso, os contextos sociais e temporais conferem às relações construídas uma contínua transformação” (PRIMO, 2007, p. 101). Interagir mutuamente, portanto, acontece sem que uma ação leve à uma reação planejada anteriormente; surge da comunicação entre todos os sujeitos do processo. Ainda segundo Primo (2007, p. 30), “[...] reduzir a interação a aspectos meramente tecnológicos, em qualquer situação interativa, é desprezar a complexidade do processo de interação mediada. É fechar os olhos para o que há além do computador”. Mas o que há para além do computador? Antes das máquinas, há seres humanos envolvidos e comprometidos em um diálogo constante com a vida, seja esta no mundo físico ou no virtual. Para além das fronteiras físicas do mundo material em que vive, a interação possibilitada pelas tecnologias levou o homem à uma nova oportunidade comunicacional, tecnológica e de lazer – entre outros – chamada imersão. Em síntese, é possível compreender a imersão como uma interação realizada de forma mais intensiva, com a totalidade de atenção e das sensações humanas. Janet Murray (2003, p. 102) descreve a imersão como [...] um termo metafórico derivado da experiência física de estar submerso na água. Buscamos de uma experiência psicologicamente imersiva a mesma impressão que obtemos num mergulho no oceano ou numa piscina: a sensação de estarmos envolvidos por uma realidade completamente estranha, tão diferente quanto a água e o ar, que se apodera de toda a nossa atenção, de todo o nosso sistema sensorial.

Se a interação mútua prevê o diálogo, a imersão pressupõe o envolvimento máximo para com o objeto em questão. Mas assim como a permanência prolongada em um mergulho pode provocar a falta de oxigênio, a imersão na perspectiva da comunicação pode também provocar um afogamento “pelo fato de nos sentirmos presentes nesses mundos imersivos, como se estivéssemos no palco e não na plateia, querermos fazer mais do que simplesmente viajar por eles” (MURRAY, 2003, p. 111). Mas o diálogo já não acontece mais apenas em relação aos seres humanos em seus processos comunicativos e interativos; vive-se, devido aos avanços tecnológicos do século XXI, uma convergência das mídias, um encontro, uma transformação dos meios e da própria comunicação. Esse diálogo configura-se em Um processo chamado “convergência de modos” [que] está tornando imprecisas as fronteiras entre os meios de comunicação, mesmo entre as comunicações ponto a ponto, tais como o correio, o telefone e o telégrafo, e as comunicações de massa, como a imprensa, o rádio e a televisão. Um único meio físico – sejam fios, cabos ou ondas – pode transportar os serviços que no passado eram oferecidos separadamente. De modo inverso, um serviço que no passado era oferecido por um único meio – seja a radiodifusão, a imprensa ou a telefonia – agora pode ser oferecido de várias formas físicas diferentes. Assim, a relação um a um que existia entre um meio de comunicação e seu uso está corroendo. (POOL, 1986, p. 112 apud JENKINS, 2006, p. 35)

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Dessa convergência nascem novas formas de comunicação, de interação, de imersão e, inclusive, outras formas de cultura. Massimo Canevacci (2013) apresenta o termo sincretismo, cuja origem provêm de “Sin-cretismo = união ou confederação dos cretenses” (CANEVACCI, 2013, p. 32, grifo do autor). Mas união, confederação e convergência são apenas a ponta do iceberg dessa miscelânea de tecnologias e práticas comunicativas que recebem outros diversos nomes e classificações, as quais envolvem terminologias como híbrido, patchwork, aculturação, entre outras, “todos ligados ao jogo, por excelência ambíguo, da chamada contaminação transcultural” (CANEVACCI, 2013, p. 29). Se o que se vive, como afirma o autor, é uma contaminação transcultural, então não apenas a cultura e a comunicação sofrem transformações, mas a própria vida humana se altera, uma vez que tudo está em sintonia, ou melhor, em convergência. Jenkins (2009, p. 30) afirma que “cada um de nós constrói a própria mitologia pessoal, a partir de pedaços e fragmentos de informações extraídos do fluxo midiático e transformados em recursos através dos quais compreendemos nossa vida cotidiana”. Essa construção se dá, portanto, em meio à essa cultura da convergência que cria novas possibilidades em diferentes áreas da civilização e da vida humana, enquanto possibilita a imersão do homem nessas tecnologias interativas e cada vez mais dialógicas. Mesmo com tamanhas alterações sociais, comportamentais e culturais provenientes dessa convergência midiática, determinados padrões de comportamento, preferências e práticas permanecem pouco ou nada influenciadas. É o caso do fascínio do ser humano para com as narrativas, que não foi esquecido em meio às luminosas e coloridas telas touchscreen1 dos avançados dispositivos tecnológicos; com os suportes que dão acesso às histórias tendo se alterado, “o desejo ancestral de viver uma fantasia originada num universo ficcional foi intensificado por um meio participativo e imersivo, que promete satisfazê-lo de um modo mais completo do que jamais foi possível” (MURRAY, 2003, p. 101). Vive-se, então, uma sociedade de interação, diálogo, imersão e convergência, onde as transformações são tantas e de forma tão veloz e constante que a própria cultura “[...] não é mais vista como algo unitário, que compacta e liga entre si indivíduos, sexos, grupos, classes, etnias, mas sim como algo muito mais plural, descentrado, fragmentado, conflitual” (CANEVACCI, 2013, p. 30). Ser humano, nesse contexto, é ser plural, romper barreiras, ser muitos em um, ou um com muitos, um ser sincrético. E se o maior medo for a fragmentação da vida, a impossibilidade de unir os pedaços de uma cultura tão diversificada, metamorfoseada e pluralmente viva, o sincretismo surge para possibilitar as mutações e os intercâmbios necessários. “Em definitivo, o sincretismo investe, dissolve e remodela a relação entre os níveis alheios e familiares, entre culturas de elite, de massa, de vanguarda e digitais (CANEVACCI, 2013, p. 30). É o que tem acontecido com algumas obras literárias que, apesar de sua estrutura escrita na forma de livro, possuem uma linguagem que se aproxima de outras mídias, modificando a experiência de leitura e promovendo a imersão do leitor na obra literária, enquanto remete às práticas desenvolvidas, por exemplo, nos jogos eletrônicos. Este é o caso da franquia Assassin’s Creed, uma narrativa presente em diferentes suportes a ser apresentada a seguir.

3. ASSASSINOS ONTEM, HOJE E SEMPRE Assassin’s Creed2, ou A Ordem dos Assassinos, na versão em português (ou ainda O Credo dos Assassinos, em tradução livre), é um jogo criado e vendido pela Ubisoft, empresa especializada em jogos, dentre eles os jogos Stealth-action, isto é, jogos de ação em que o objetivo é manter-se oculto, evitando ser percebido pelos antagonistas da narrativa. O jogo também recebe outras classificações, como a de “mundo aberto”, por acontecer em um universo que representa uma determinada região Touchscreen é uma palavra de origem inglesa que refere-se às telas sensíveis ao toque e, assim, determina a tecnologia onde a usabilidade dos dispositivos tecnológicos se dá por meio do toque na tela. 2 Franquia de jogos eletrônicos e outras mídias criada pela Ubisfot (2007). 1

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ou uma cidade, sendo inclusive possível ampliar a narrativa do jogo para outros ambientes próximos. Um jogo sobre sociedades secretas é, como identifica a sua classificação no mundo dos jogos, um jogo sobre permanecer nas sombras, escondido dos seus inimigos, ou melhor, alvos. Esse é o universo dos Assassinos. O jogo conta a história da batalha milenar entre Templários e Assassinos, os primeiros buscando a dominação mundial e os Assassinos impedindo-os de realizá-la à todo custo, inclusive com a própria vida. A nova ordem mundial, planejada pelos Templários, necessita dos chamados “Pedaços do Éden”, relíquias mais antigas que os próprios Templários e Assassinos, cuja origem é incerta, mas que remontam à criação do mundo a partir da teoria criacionista de cunho religioso, que atribui à Deus a criação do mundo, da vida e do ser humano a partir das figuras míticas de Adão e Eva que viveram no Paraíso bíblico. A história, conhecida mundialmente e há muitas gerações, apresenta o pecado na forma da maçã proibida, a maçã do conhecimento. A maçã é, nesta narrativa contemporânea, um dos “Pedaços do Éden” – que são objetos, não necessariamente uma esfera ou uma maçã, criados por “Aqueles Que Vieram Antes”, referindo-se à uma raça superior que criou os seres humanos – tão cobiçados pelos Templários em todas as diferentes etapas da narrativa, desde o período das cruzadas até a Revolução Industrial, ou mesmo o século XXI, quando os Templários escondem-se na chamada Abstergo, uma empresa farmacêutica e distribuidora de medicamentos, mas que secretamente utiliza descendentes dos Assassinos para reviver lembranças de seus antepassados através de uma máquina chamada de Animus. A Abstergo não está presente em todos os produtos da franquia Assassin’s Creed, que constitui-se como uma narrativa transmídia3, uma vez que tem vários suportes, desde o próprio jogo, até livros, filmes, animações, aplicativos, entre outros. Cada elemento dessa grande narrativa conta a história a partir de um ponto de vista, ou melhor, de uma personagem inserida em um período histórico. É o que acontece, por exemplo, em Assassin’s Creed II (jogo) e Assassin’s Creed: Renascença (livro), que baseiam-se na mesma personagem e no mesmo período para desenvolver a história. Essa personagem é Ezio Auditore da Firenze, um jovem italiano que vive em Florença entre 1459 e 1524, durante o período renascentista, com seus pais e seus três irmãos. A diferença existente entre as obras, o jogo e o livro correspondentes, encontram-se na contemporaneidade e na empresa Abstergo, como já mencionado. O jogo acompanha a história de Desmond Miles, descendente de Ezio, que revive as memórias do ancestral por meio de uma máquina chamada de Animus – que constitui-se como a interface técnica do jogo – como uma tentativa de encontrar pistas sobre os “Pedaços do Éden” e, ao mesmo tempo, aprender as técnicas de luta e assassinato de Ezio. Já o livro, um romance escrito pro Oliver Bowden – pseudônimo de um escritor e historiador inglês – em 378 páginas conta apenas a história de Ezio e sua família, como ele se tornou um membro da Ordem e suas disputas contra os Templários, sem nenhuma menção ao século XXI, ou a Desmond e a Abstergo. Ao se fazer um comparativo entre as obras supracitadas, pode-se afirmar que em ambas há uma imersão do usuário, jogador ou leitor, seja ao ver a personagem que controla adentrar às memórias de seu antepassado e ajudá-lo à enfrentar os inúmeros desafios do jogo, seja ao mergulhar na leitura apresentada em terceira pessoa por um narrador que acompanha as façanhas de Ezio pela Florença de 1476. Outrossim, o que parece sobressair aos suportes em que a história é contada é a própria narrativa e a linguagem da jogabilidade, assunto a ser melhor investigado sob a lente do sincretismo de Canevacci (2013).

Uma narrativa transmídia é uma história que é contada em diferentes mídias, sendo que a cada novo suporte apresenta-se uma nova história, uma narrativa própria, mas ao mesmo tempo em consonância com o enredo principal. Henry Jenkis é considerado o criador deste termo.

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4. SINCRETISMOS ENTRE PALAVRAS E GAMES A convergência dos meios de comunicação possibilita constantes trocas e transformações entre diferentes suportes. Segundo Canevacci (2013, p. 45, grifo do autor) “ninguém é mais só espectador e muito menos deseja sê-lo. Expect-atoro”. Há, portanto, um constante diálogo entre o usuário e o conteúdo. Ao se observar um jogo eletrônico, tomando-se por exemplo o jogo Assassin’s Creed II, o que se percebe de início é a construção do jogo na forma de uma narrativa em que se faz necessária a intervenção – ou a participação – do usuário para dar sequência à história. O jogador, portanto, vai tomando conhecimento da narrativa ao mesmo tempo em que lhe dá continuidade, semelhante ao ato de folhear um livro. Assim como o jogo lembra o livro, Assassin’s Creed: Renascença também lembra o jogo. Esse comparativo se dá a partir de cinco elementos: a) missões a serem cumpridas; b) mestres que aprimoram as técnicas da personagem; c) aquisição de novas armas a cada missão cumprida; d) grandes passagens de tempo na narrativa; e e) um antagonista poderoso. Tanto no jogo quanto no livro, a personagem precisa cumprir missões, tarefas que a conduzirão à um propósito maior. Oliver Bowden (2012, p. 116) retrata as missões da personagem do jogo em seu romance quando escreve “– Cada um dos Templários aí listados deverá cair sob minha espada. – disse Ezio, sem se alterar. Seu olhar brilhou ao ver o nome de Francesco de’ Pazzi. – É com ele que começo. É o pior do seu clã e fanático em seu ódio pelos nossos aliados, os Médici”. As missões de Ezio no livro condizem com as missões que a mesma personagem precisa executar no jogo, porém, neste necessita-se que o usuário/jogador execute a missão através da personagem, enquanto que na obra literária não há intervenção por parte do leitor. Resguardadas as participações de cada mídia, a linguagem e a narrativa são construídas, porém, de forma semelhante. Para superar os desafios da narrativa virtual, o usuário/jogador precisará ajudar a personagem a aprender técnicas e táticas de batalha, enquanto que na obra literária os mestres incumbidos de transmitir estes ensinamentos também estão presentes, como nesta passagem da obra, onde Ezio conversa com Paola, uma Mestre Assassina. Ezio lutou contra a desconfiança. – E por que me ensinaria a matar? Ela balançou a cabeça. – Para ensiná-lo a sobreviver (BOWDEN, 2012, p. 65-66). Para sobreviver, a personagem utiliza outra característica mantida na transposição: as armas. No jogo, Ezio vai conquistando novas armas a cada missão cumprida – porém não em todas as missões –, sempre que consegue uma nova página do códex4. A principal arma é chamada de lâmina oculta, uma adaga escondida sobre a manga da camisa de “Ezio, que dessa vez se armara com a adaga de dois gumes no antebraço esquerdo além do braçal de metal, e com a pistola no direito, bem como uma leve espada de cavaleiro pendurada no cinto [...]” (BOWDEN, 2012, p. 300) Entre diferentes missões a serem cumpridas, aquisições de novas armas e novas habilidades com os Mestres Assassinos, o tempo passa para a personagem que, em “certa manhã, no início de agosto de 1503, Ezio, então um homem de 44 anos, de têmporas manchadas de grisalho mas barba ainda castanha, foi convocado pelo tio para se juntar a ele e aos outros da Companhia dos Assassinos [...] (BOWDEN, 2012, p. 346). Assim como as armas e habilidades adquiridas, Ezio conquista experiência e sabedoria, evoluindo do jovem inconsequente para um adulto responsável e respeitável, apto Na narrativa são apresentadas várias páginas de um códex da Ordem dos Assassinos que, juntos, podem revelar um grande segredo, além de conter informações sobre armas e uma profecia antiga.

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à enfrentar seu maior desafio, derrotar Rodrigo Bórgia, O Espanhol, líder dos Templários e que, no decorrer da narrativa, conquista a posição de Papa da Igreja Católica – Papa Alexandre VI – para facilitar a execução dos planos da sua Ordem (BOWDEN, 2012). Bórgia é o grande antagonista da narrativa, fazendo-se presente na vida de Ezio desde os acontecimentos iniciais que o levaram à ser um Assassino, até o desfecho da história, aproximadamente vinte anos após os fatos iniciais, isto é, a morte do pai e dos irmãos de Ezio. É curioso notar que Rodrigo Bórgia é um nome de uma pessoa real, que viveu na Itália no período renascentista e que, como na narrativa ficcional de Assassin’s Creed, se tornou Papa no século XV. Analisados estes elementos, mostra-se importante rever alguns conceitos iniciais. O primeiro deles é a interação que, de acordo com a intervenção possível pelo usuário/jogador/leitor, o que se nota é apenas uma interação reativa, sem que se estabeleça o diálogo mútuo entre a narrativa e o leitor, pois este não tem poder de alterá-la, apenas dar continuidade aos eventos programados. A imersão, por sua vez, mostra-se mais notória, pois no jogo o usuário é responsável pela vida da personagem, pelo sucesso de suas missões e pelo desencadeamento dos fatos da narrativa que, sem a atenção e habilidade do usuário, não prosseguirão. Mas o mergulho pode ser ainda mais profundo, uma vez que se demonstre um pouco de interesse pela narrativa ficcional e some-se à isso alguns conhecimentos sobre a história mundial, pois alguns eventos da narrativa são reais e aconteceram na Itália renascentista, bem como algumas personagens, como o já citado Rodrigo Bórgia, e outros como Leonardo da Vinci, Nicolau Maquiavel, Caterina Sforza e as famílias Médici e De’ Pazzi, inimigas reais na Florença do século XV. Se a cultura da convergência aproxima diferentes meios de comunicação, o que se vê nessa narrativa, seja em livro ou em jogo, é uma construção muito sutil entre o real e o ficcional, entre o material e o digital. Há uma simbiose entre estes universos até então opostos, um sincretismo da linguagem de um para o universo do outro – o jogo conta uma história e o livro parece convidar o leitor à jogar – e da realidade da vida, da história humana, para a ficcionalidade do jogo tecnológico. Outro fator a ser observado é que a transposição da narrativa, do jogo para o livro, manteve intacta a história inventada e, em diversas situações, até mesmo a estrutura das falas das personagens permanece igual. Assassin’s Creed instiga o usuário/jogador/leitor à ir além de uma leitura superficial, instiga a busca pela procura do que é real dentro do imaginário, do ilusório, estimulando a imersão na narrativa, pois “as capacidades de decodificação do espectador mundializado são fortes, o seu colocar-se nas tramas narrativas acentua o jogo semiótico descentrado através das interpretações [...] (CANEVACCI, 2013, p. 45). O termo interpretação parece ser o que melhor representa o papel do indivíduo nesse tipo de narrativa, uma história que, por mais que seja fruto de um processo ação-reação, amarra a mente e o interesse do leitor, fazendo convergir saberes técnicos do jogo, habilidades de leitura e conhecimentos por vezes esquecidos sobre a própria história do homem. Nesse universo, jogar é ler e ler é jogar, e ambos, jogo e livro, são um caminho para novas possibilidades na formação de leitores, que mais do que descobrir apenas um bom livro, esperam uma boa aventura, mal sabendo eles que uma das maiores aventuras é poder viajar com a imaginação a cada página virada nessa missão da leitura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Mais do que ler palavras, se espera de um leitor uma leitura mais profunda, uma leitura de mundo somada à interpretação, ao cruzamento de saberes e informações para a construção de novos conhecimentos. A cultura da convergência amplia as trocas e os diálogos, multiplicando as possibilidades de construção do saber. As tecnologias dialogam entre si e, ao fazer isso, convidam o leitor à participar deste diálogo, seja de modo a seguir caminhos pensados previamente, ou de forma a construir novos caminhos em

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conjunto. Nessa cultura participativa, o que se vê de modo crescente é a imersão dos públicos, que usam e interagem com os suportes de modo mais intenso, uma imersão semelhante à um mergulho de cabeça em profundas águas desconhecidas. Como observou-se nesta pesquisa, a franquia Assassin’s Creed faz um convite, tanto ao usuário/jogador quanto ao usuário/leitor, para que este vá além do que se encontra na superfície, para que sua leitura, seja do jogo ou do livro, aconteça também nas entrelinhas de uma história em que o real e o imaginário encontram-se intrinsecamente relacionados. Para tanto, a narrativa apresenta-se ao leitor de modo sincrético, numa simbiose da narrativa literária e da linguagem do jogo. O sincretismo, na obra literária, é observado a partir de cinco elementos, representados na forma de missões de jogo, Mestres Assassinos, aquisição de armas, passagem do tempo e presença de antagonista, conferindo assim ao livro as características encontradas no jogo eletrônico. A investigação destes elementos na obra e, inclusive, da própria obra, leva à novas indagações e suposições. Diante um livro que, em suas páginas, mescla o real e o ficcional e conduz o leitor à uma sensação de jogabilidade, a pergunta que surge é: quais as possibilidades deste tipo de literatura para os processos de ensino-aprendizagem? O que se nota nos espaços educacionais contemporâneos é a presença de educandos, cada vez mais, com acesso às diferentes tecnologias conectadas à internet, interessados e alfabetizados nessas tecnologias que, infelizmente, encontram fortes barreiras quando o assunto é a sua utilização pedagógica. A escola, os educadores, as famílias e todos os demais que encontram-se envolvidos com a Educação precisam sair de sua zona de conforto e agir em prol de mudanças positivas relacionadas às tecnologias e à aprendizagem por meio destas. Se a literatura se mostra uma opção para esta aproximação, faz-se necessário investigar quais as possibilidades deste uso, qual a melhor maneira de comunicar e ensinar esses jovens envoltos pela cultura da convergência, que aprendem, ensinam e se comunicam como em um jogo, um jogo de palavras, de saberes e de tecnologias que se mesclam, convergem e se sincretizam ao simples toque de uma tecla, uma tecla à espera de que algo positivo aconteça nesse jogo pela Educação.

REFERÊNCIAS BOWDEN, Oliver. Assassin’s Creed: Renascença. Tradução Ana Carolina Mesquita. 21. ed. Rio de Janeiro: Galera Record, 2012. CANEVACCI, Massimo. Sincrétika: explorações sobre artes contemporâneas. Tradução Helena C. Meneghelo. São Paulo: Studio Nobel, 2013. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. Tradução Susana Alexandria. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009. MURRAY, Janet. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. Tradução Elisa K. Daher; Marcelo F Cuzziol. São Paulo: Itaú Cultural, Unesp, 2003. PRIMO, Alex. Interação mediada por computador: comunicação, cibercultura, cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007. UBISOFT. Assassin’s Creed: jogos eletrônicos. Estados Unidos da América, 2007. UBISOFT. Assassin’s Creed II: jogo eletrônico. Estados Unidos da América, 2009.

A LEITURA NA ESCOLA DE EDUCAÇÃO BÁSICA: POLÍTICAS DE GESTÃO DA CLASSE Valdocir Antonio Esquinsani* (UPF) Rosimar Serena Siqueira Esquinsani** (UPF) Há várias estratégias que concorrem para a formação de leitores: eventos literários e culturais; ações – públicas e/ou privadas - de bibliotecas e espaços de leitura; dinamização de leitura em diferentes suportes e mídias; concursos literários; rodas ou cirandas de leitura; intertextualidades advindas de filmes, músicas ou peças teatrais, etc... todas estas estratégias impulsionam a formação do leitor e podem ser acompanhadas, do ponto de vista do texto, pela presença de um protagonista importante: a escola. Assim, o texto tematiza a leitura na escola de educação básica, problematizando as possibilidades de construção de metodologias e estratégias que fortaleçam no aluno uma relação positiva com a leitura, através de ações de gestão da classe e da presença e condução pedagógica do professor. Para sustentar a hipótese de que o fomento a leitura tem espaço privilegiado nas estratégias e ações de gestão da classe, o texto lança mão de três movimentos investigativos: a) elabora uma revisão bibliográfica sobre o tema; b) esquadrinha uma pesquisa empírica de teor qualitativo, realizada com alunos de turmas do primeiro ano do Ensino Médio, em escola pública pertencente à rede estadual de ensino, localizada em um bairro periférico do município de Passo Fundo (norte do Rio Grande do Sul), no período de 2010-2014 e, c) examina os diários de campo do professor, que triangula informações com a revisão de literatura e a pesquisa empírica empenhada. Se aceitássemos uma resposta de senso comum, superficial e aparente em relação a hipótese de trabalho, correríamos o risco de perder dados e informações relevantes no que concerne ao fomento a leitura no espaço protagonista da escola. A pesquisa coloca-se assim, justamente na necessidade de transcendeder as explicações simples, uma vez que... Pesquisa é o ato pelo qual procuramos obter conhecimento sobre alguma coisa [...] Contudo, num sentido mais estrito, visando a criação de um corpo de conhecimentos sobre um certo assunto, o ato de pesquisar deve apresentar certas características específicas. Não buscamos, com ele, qualquer conhecimento, mas um conhecimento que ultrapasse nosso entendimento imediato na explicação ou na compreensão da realidade que observamos (GATTI, 2002, pp. 9-10).

Assim pergunta-se: a atuação do professor na organização pedagógica da sala de aula (gestão da classe) pode impactar para a formação do hábito da leitura? O texto caminha na direção de uma resposta positiva a esta questão, apontando que a atuação docente pode ser um dos fatores concorrentes para que o aluno produza uma relação positiva com a leitura. Por fim, cumpre informar que a pesquisa em foco faz parte de um contexto amplo, com o objetivo de discutir o conceito de gestão educacional, seus diferentes níveis – entre eles a gestão da classe – e possibilidades, sendo que o texto apresentado se consubstancia em parte integrante de um esforço maior de pesquisa, com o propósito de discutir a qualidade na gestão da educação em redes e sistemas públicos de ensino.

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Mestre em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em Educação, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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CAMINHOS E POSSIBILIDADES DO ENSINO DA LEITURA NA ESCOLA Para o desenvolvimento das ideias sobre a gestão da classe e as possibilidades de inserção desta na formação do leitor, partimos de uma pesquisa de teor qualitativo, realizada com alunos de turmas do primeiro ano do Ensino Médio, no período de 2010-2014, em escola pública pertencente à rede estadual de ensino, localizada em um bairro periférico do município de Passo Fundo (norte do Rio Grande do Sul), entendendo-se por periferia os bairros e vilas que se constituem nos limites das cidades, muitas vezes sem condições de urbanização adequadas e aos quais acorrem famílias com menor poder aquisitivo, ‘expulsas’ do centro urbano pela especulação imobiliária que inflaciona as residências mais centrais. Os elementos empíricos foram retirados de dois grupos de documentos: a) registros da biblioteca da escola lócus da pesquisa, de onde foram coletadas informações sobre a frequência dos alunos à biblioteca e o levantamento das obras mais procuradas, e b) memórias, apontamentos e registros produzidos pelos alunos na disciplina de Língua Portuguesa ao longo do período em relevo, destacando a relação que os alunos estabeleciam a partir das obras literárias lidas e/ou trabalhadas em aula. Os documentos arrolados foram comparados com o diário de campo de um professor que atua na educação básica. Tal escolha metodológica parte dos indicativos de Bernard Lahire, quando afirma que o estudo na escala individual carrega o condão de “responder a interrogações do dia-a-dia, leigas, mas essenciais, quanto à vida dos indivíduos em sociedade” (LAHIRE, 2005, p.36). Pois são justamente estas interrograções do dia-a-dia que despertam a necessidade da pesquisa: afinal, qual o impacto que um professor pode ter no fomento à leitura como um gosto? É possível dizer que o jargão recorrente de que o professor leitor forma alunos leitores faz algum sentido? Quais as estratégias de gestão da classe que podem colaborar no fomento a leitura? Aqui importa clarificar que entendemos gestão da classe como um dos níveis da gestão educacional, o espaço em que o professor implica-se com as decisões coletivas e coloca em ação os documentos e decisões pedagógicas da escola, como o Projeto Pedagógico e os Planos de Estudo. Grosso modo a gestão da classe (ou da sala de aula), é compreendida: (...) como o conjunto de condições pré-estabelecidas (agrupamento e distribuição espacial dos alunos, regras de interacção, estrutura e encadeamento das actividades, princípios orientadores da acção docente, rotinas e estratégias, etc) que definem o contexto em que se desenvolve o processo ensino-aprendizagem (RODRIGUES, 2005, p. 429).

Por esta definição, gestão da classe também é um conceito que abarca as decisões individuais do professor. Refere-se às opções pelas quais o professor organiza sua sala de aula; as metodologias de ensino; as estratégias e recursos utilizados e até mesmo a simples disposição do mobiliário. Todas estas decisões e opções influenciam diretamente a consecução de objetivos escolares e envolem, ainda, a particular relação que o professor estabelece com os alunos (afeto, autoridade, empatia, diálogo...). Para a escrita do texto foram consideradas, ainda, as seguintes questões: a) os livros mais procurados haviam sido indicados e/ou comentados em aula? b) Os alunos repercutiam as expectativas do professor em relação às obras? c) as estratégias de divulgação de uma obra surtiam efeito no fomento à leitura? d) as metodologias de gestão da classe ampliaram a frequência dos alunos à biblioteca? Partiu-se da suposição de que a resposta positiva a todas estas questões (ou mesmo a parte deste bloco de questões) implicaria em confirmar, em escala individual, a possibilidade concreta de atestar que o fomento a leitura também assume espaço privilegiado nas estratégias e ações de gestão da classe.

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SOBRE OS ACHADOS DA PESQUISA Quanto à primeira questão (questão de pesquisa a) ou à indagação se os livros mais procurados haviam sido indicados e/ou comentados em aula, é plausível acenar com uma resposta positiva a esta questão: de fato, dos dez livros mais procurados pelas turmas do primeiro ano do Ensino Médio na biblioteca da escola, sete haviam sido mencionados ou indicados em sala de aula. Mas a simples resposta positiva a esta questão não indica que o professor tenha sido a figura decisiva nesta escolha. Igualmente mensurável, a quarta questão (questão de pesquisa d) ou a frequência dos alunos à biblioteca pode ser respondida de forma positiva. Comparando-se os anos de 2010 e 2011; 2011 e 2012; 2012 e 2013 e, finalmente, 2013 e 2014, foi possível perceber que os alunos dos primeiros anos do Ensino Médio aumentaram a frequência à biblioteca da escola em uma média de 10% em cada um dos quatro períodos examinados, acumulando uma média de 40% de aumento regular na frequência da biblioteca entre o ano de 2010 e 2014. Porém, novamente, os números não permitem uma resposta conclusiva ao problema de pesquisa, uma vez que em muitas ocasiões foram organizadas práticas de leitura que condicionavam a frequência à biblioteca, tais como seminários a partir da leitura de determinadas obras; vídeos; pesquisas; consultas a acervos, entre outras práticas realizadas na biblioteca ou a partir da biblioteca. Igualmente é oportuno considerar que a frequencia a biblioteca pode materializar empíricamente os diferentes tipos de leitura e funções da mesma na escola, pois um aluno pode acorrer a biblioteca escolar e buscar um livro tanto para uma leitura analítica (de análise e interpretação de texto), como para uma leitura cursiva (leituras pessoais, autônomas e livres de coerção avaliativa) (ROUXEL, 2012).

Com base nas observações descritas acima e na busca de uma investigação que melhor focalizasse a dimensão de fomento a leitura pelas ações de gestão da classe, foi preciso equacionar os dados numéricos com análises sobre os modos através dos quais os alunos repercutiam as expectativas do docente em relação às obras (questão de pesquisa b) e se às estratégias de divulgação de uma obra surtiram efeito no fomento à leitura (questão de pesquisa c). A resposta a estas duas questões, entretanto, não é tangível numericamente, uma vez que não há como mensurar que um número tal de alunos repercutiram positivamente a uma obra. Aliás, o que consiste em repercutir positivamente a uma obra? Para a construção destas respostas foi essencial o apelo aos diários de campo do professor, suas percepções e ensaios sobre o retorno discente ante as estratégias de apelo à leitura, em especial sobre a organização e gestão de práticas leitoras, uma vez que “... ao professor cabe criar condições para que o encontro do aluno com a literatura seja uma busca plena de sentido para o texto literário, para o próprio aluno e para a sociedade em que todos estão inseridos” (COSSON, 2006, p. 29). As práticas leitoras desenvolvidas e (re) significadas nos diários de campo como parte da pesquisa constituem atividades de leitura preparadas a partir da prescrição curricular de obras literárias, tais como: debates sobre autores (referências biobibliográficas), exposições, contação de histórias, recitais, dramatizações, projeção de filmes, murais, etc. A partir de práticas leitoras desenvolvidas nas aulas de Língua Portuguesa do primeiro ano do Ensino Médio, foi possível organizar um repertório mínimo de ações de gestão da classe que repercutiram favoravelmente ao fomento da leitura ante aos alunos, sobretudo através do exemplo, pois percebemos, pelo diário de campo, que os alunos repercutiam favoravelmente a uma obra depois da indicação pessoal da leitura do professor, ou da leitura de excertos em sala de aula, uma vez que: (...) a leitura em voz alta de narrativas escritas, combinadas com a discussão dessas narrativas com a criança, está em correlação extrema com o ‘sucesso’ escolar em leitura. Quando a criança conhece, ainda que oralmente, histórias escritas lidas por seus pais, ela captaliza – na relação afetiva com os seus pais – estruturas textuais que poderá reinvestir em suas leituras ou nos atos de escrita. (LAHIRE, 2004, p.20)

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No acompanhamento dos diários de campo foi possível perceber que os alunos referiam as obras indicadas pelo professor, sobretudo aquelas sobre as quais o professor havia tecido algum comentário mais particularizado, indicando que a estratégia do exemplo é mais que um jragão acadêmico. De fato, os alunos manifestavam um interesse diferenciado pelas obras pelas quais o professor relatava sua predileção pessoal. Ainda no campo das estratégias de gestão da classe que, ao que indica a pesquisa nos diários de campo, parecem surtir um efeito positivo no incremento a leitura, está a prática adotada pelo professor da leitura de excertos em sala de aula. Tal prática demonstra concretamente que o professor também é um leitor e que aprecia textos literários. Em muitas ocasiões, o excerto lido gerava debates em sala de aula, comentários, proposições e, com frequência, o estímulo a novas leituras de novos excertos. O fato de ver os pais [e os professores] lendo jornais, revistas ou livros pode dar a esses atos um aspecto “natural” para a criança, cuja identidade social poderá construir-se, sobretudo, através deles (ser adulto como seu pai ou sua mãe significa naturalmente, ler livros (LAHIRE, 2004, p.20).

A gestão da classe pressupõe a mediação do professor e a consciência de que cada uma de suas ações terá repercussões sobre as escolhas que os próprios discentes farão de forma autonoma. Portanto, um professor que escolhe, acolhe e incentiva a leitura através de suas ações de gestão da classe está colaborando para a formação de novos leitores, uma vez que “a leitura se faz a partir um espectro múltiplo: homem, ação social e o conhecimento. Se a leitura for individual, solitária, ela se torna inócua. Quando pensamos e refletimos, pensamos a partir de uma realidade específica” (ALMEIDA, 2008, p.22). É preciso perceber a historicidade que está subjacente ao texto, “percebendo que atrás de cada texto há um sujeito, com uma prática histórica, uma visão de mundo (um universo de valores), uma intenção” (KUENZER, 2002, p. 101). O professor é o profissional mais adequado para assumir a tarefa de contextualizar a leitura, mediatizando e trazendo informações relevantes, incorporando e adensando o texto, localizando-o. Na pesquisa em tela, o professor, de forma alguma, é um agente passivo. Seu papel não se limita à indicação de obras literárias e a algum trabalho eventualmente realizado com a obra indicada, como a histórica ficha de leitura. Trata-se de um envolvimento ativo e orgânico, onde o professor, além de indicar obras literárias, também organiza espaços de interação; procedimentos; estratégias de aula que favoreçam a fluência da leitura como desejo, paixão, estilo de vida. Sua participação na forja do gosto pela leitura pode ser decisiva, dependendo como o mesmo, partilha seu próprio gosto pela leitura, pois Quando penso na leitura como experiência (na escola, na sala de aula ou fora delas), refiro-me a momentos nos quais fazemos comentários sobre livros ou revistas que lemos, trocando, negando, elogiando ou criticando, contando mesmo [...] compartilhando sentimentos e reflexões, plantando no ouvinte a coisa narrada, criando um solo comum de interlocutores, uma comunidade, uma coletividade. O que faz da leitura uma experiência é entrar nessa corrente onde a leitura é partilhada e onde, tanto quem lê, quanto quem propiciou a leitura ao escrever, aprendem, crescem, são desafiados (KRAMER, 2000, p. 21) Parece haver certo consenso de que a escola é um espaço para a leitura, a literatura e a formação de leitores, restando apenas a resolução da questão: a leitura é um processo orgânico na escola, ou apenas uma estratégia metodológica? A leitura ocupa, sem dúvida um espaço privilegiado não só no ensino da língua portuguesa, mas também no de todas as disciplinas acadêmicas que objetivam a transmissão de cultura e de valores para as novas gerações. Isso porque a escola é, hoje e desde há muito tempo, a principal instituição responsável pela preparação de pessoas para o adentramento e a participação no mundo da escrita utilizando-se primordialmente de registros verbais escritos (textos) em suas práticas de criação e recriação de conhecimento. (SILVA, 2002, p. 16).

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Isto porque o professor é, em última instância, o responsável pelas modalidades de organização e gestão do trabalho pedagógico em sala de aula. As relações de cultura política, queira o professor ou não, esteja consciente do seu papel ou alheio a qualquer movimento, são constituídas no espaço cotidiano. Qualquer movimento só é possível pela intervenção docente, protagonista que contribuirá decisivamente para o triunfo ou naufrágio de qualquer ato de inovação na gestão ou prática pedagógica. Kuenzer exemplarmente aponta que “leitura, escrita e fala não são tarefas escolares que se esgotam em si mesmas; que terminam com a nota bimestral. Leitura, escrita e fala – repetindo – são atividades sociais, entre sujeitos históricos, realizadas sob condições concretas” (2002, p. 101), assim, a interferência docente no processo é mais do que uma tarefa inerente às suas obrigações laborais. Dentre os pré-requisitos aqui apresentados para o ensino e a dinamização da leitura escolar, o trabalho do professor merece maior atenção Isso porque, sem um professor que, além de se posicionar como um leitor assíduo, crítico e competente, entenda realmente a complexidade do ato de ler, as demais condições para a produção da leitura perderão em validade, potência e efeito (SILVA, 2002, p. 22). Um dos bons textos que aborda a leitura como proposta de gestão articulada pelo crivo da ação docente é o texto de Rizzatti (2008), que concentra-se na atuação do professor na formação do leitor e do produtor de textos, inferindo o papel do professor na instrumentalização da capacidade discente para os atos de ler e de produzir textos de modo proficiente (RIZZATTI, 2008). De igual forma, o texto de Burochovitch (2001) também traz importantes contribuições para o entendimento da compreensão leitora e das atribuições do docente ao adotar a leitura como um processo orgânico de gestão da classe. Além do mais, os estímulos que a gestão da classe – bem conduzida – pode proporcionar tendem a garantir uma efetividade e organicidade à leitura, pois... A universalidade do ato de ler provém do fato de que todo indivíduo está consequentemente capacitado a ele, a partir de estímulos da sociedade e da vigência de códigos que se transmitem, de preferência, por intermédio de um alfabeto. (ZIBERMAN 1999, p.31).

É mister ressaltar, todavia, que o professor - por melhores intenções que possa carregar -, não prescinde da assistência de outras instituições para que este trabalho de formação de uma paixão seja efetivo. Dentre estes ‘parceiros’, o mais orgânico é a família, pois: Se a família e a escola podem ser consideradas como redes de interdependência estruturadas por formas de relações sociais específicas, então o fracasso ou o sucesso escolares podem ser apreendidos como o resultado de uma maior ou menor contradição, do grau mais ou menos elevado de dissonância ou de consonância das formas de relações sociais de uma rede de interdependência a outra (LAHIRE, 2004, pp. 19-20).

A gestão da classe e a mediação docente podem organizar processos de formento à leitura realmente efetivos, todavia carentes de outras parcerias para que se tornem, de fato, orgânicos.

CONCLUSÃO Como conclusão, o texto assume a leitura como um estilo de vida que pode ser ensinado. Nesta direção, aponta que as estratégias e metodologias de gestão da classe são, em grande medida, co-responsáveis pela formação do leitor. Nas palavras de Sacristán: O inimigo da leitura não reside, como actualmente alguns temem, na cultura audio-visual que domina os meios de comunicação e na extensão das novas tecnologias, mas nas desafortunadas práticas de leitura dominantes a que submetemos os nossos alunos durante a escolaridade (2008, p.87).

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As políticas (ou escolhas) através das quais o professor desenvolve sua prática pedagógica junto à classe e que são consubstanciadas por ações como organização dos espaços; proposição de atividades; interação e fomento a interação; favorecimento de situações de aprendizagem; aplicação de estratégias metodológicas; etc, expressam, na medida, o espírito e o conteúdo dos referenciais que guiam o seu trabalho pedagógico, bem como o seu compromisso para com princípios e conteúdos como a leitura, exemplarmente.

REFERÊNCIAS ALMEIDA, Geraldo Peçanha de. Práticas de leituras. Curitiba: Pró-Infantil, 2008. BORUCHOVITCH, Evely. Algumas estratégias de compreensão em leitura de alunos do ensino fundamental. Psicologia Escolar e Educacional. 2001, vol.5, n.1, pp. 19-25. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. GATTI, Bernardete Angelina. A construção da pesquisa em educação no Brasil. Brasília: Plano Editora. Série Pesquisa em Educação, v. 1. 2002 KUENZER, Acacia (Org.). Ensino Médio: construindo uma proposta para os que vivem do trabalho. 3ª ed. Cortez, 2002. KRAMER, S. (2000). Infância, cultura e educação. In PAIVA, A. EVANGELISTA, A. PAULINO, G. VERSIANI, Z. (Orgs). No fim do século: a diversidade - o jogo do livro infantil e juvenil. Belo Horizonte. Autêntica. pp. 9-36. LAHIRE, Bernard. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. 1ª Ed. Porto Alegre: Ática, 2004. _________. Patrimônios Individuais de Disposições: para uma Sociologia à Escala Individual. Sociologia, Problemas e Práticas. n.º 49, 2005, p.11-42. RIZZATTI, Mary Elizabeth Cerutti. Implicações metodológicas do processo de formação do leitor e do produtor de textos na escola. Educação em Revista, 2008, n.47, pp. 55-82. RODRIGUES, Armindo José. A organização e gestão do processo ensino-aprendizagem no 1º ciclo do ensino fundamental. Revista Brasileira de Educação Especial. Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial. Marília: São Paulo, 2005, vol. 11, no. 3, pp. 429-444. ROUXEL, Annie. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do sujeito leitor? Cadernos de Pesquisa. 2012, vol.42, n.145, pp. 272-283. SACRISTÁN, J. A educação que ainda é possível: ensaios sobre a cultura para a educação. Porto: Portoed, 2008. p. 85-109. SILVA, Ezequiel Theodoro da. A produção da leitura na escola: Pesquisas x Propostas. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 2002. ZILBERMAN, Regina. Sociedade e democratização da leitura. In: BARZOTTO, Valdir H. Estado da leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras/ Associação de Leitura do Brasil, 1999. p. 31-45.

LINGUAGEM VISUAL, CULTURA E TECNOLOGIA: UM ESTUDO SOBRE APROXIMAÇÕES Vinícius Nunes Rocha e Souza* (UFRGS) Underléa Miotto Bruscato** (UFRGS)

1. INTRODUÇÃO Há milênios, o ser humano é estimulado por meio de informações visuais, e, consequentemente, aprendeu a comunicar-se por meio desta representação, mesmo que, muitas vezes, de maneira instintiva e intuitiva (DONDIS, 1997; FRUTIGER, 2001). Em determinados contextos, por sua excelência, a linguagem visual pode ser considerada a linguagem mais eficaz e eficiente disponível (SAMARA, 2010). Todavia, os limites do uso da imagem para comunicar uma determinada informação, estão diretamente ligados a amplitude do âmbito cultural no qual a expressão faz sentido para o visualizador (PEIRCE, 2012; JARDÍ, 2014). Na atualidade, vive-se em uma era imagética, onde o avanço tecnológico torna evidente a transformação significativa da linguagem visual. As tecnologias de informação e comunicação, responsáveis pela disseminação do conhecimento e informação, passaram a ganhar imensa importância, intercedendo a sociedade em suas complexas relações e interações existentes na cultura contemporânea (LATOUR, 1994; CASTELLS, 1999). Artefatos digitais como smartphones e computadores pessoais são cada vez mais substanciais em uma sociedade conectada em rede (LÉVY, 1999). Seus dispositivos e sistemas permitem ampla imersão do usuário em ambientes virtuais com alta qualidade em imagem e interatividade. Consideradas como verdadeiras extensões do homem, esses artefatos estão modificando as culturas ao redor do mundo e derrubando as barreiras que impendem sua leitura (PORTUGAL, 2013; CARDOSO, 2013). Entretanto, faz-se impossível tratar de assuntos referentes a cultura, sem considerar a tecnologia que a estimula. Da mesma maneira, é impossível tratar da linguagem visual, sem considerar a cultura no qual o visualizador está inserido. Pode-se concluir que estes três conceitos são mutuamente dependentes um do outro. Logo, o presente estudo pretende aproximar alguns pensamentos que referem-se a linguagem visual, cultura e tecnologia, dissecando-os a fim de levantar discussões e reflexões a respeito de como o conjunto atua na contemporaneidade. Dessa maneira, pode-se chegar a conclusões e estimular reflexões de como a imagem visual exerce sua função como comunicadora, considerando as diversas barreiras culturais e o avanço extremamente veloz da tecnologia.

2. LINGUAGEM VISUAL De acordo com Frutiger (2001), é inquestionável que, desde os primórdios da civilização humana, há milhares de anos, nos comunicamos por meio de imagens. Registros de pinturas rupestres em cavernas, hieróglifos, entre outras manifestações, provam que o ser humano comunica-se visualmente em sua essência. A própria linguagem verbal escrita originou-se de signos visuais, tornando-a cada vez mais complexa na medida em que a própria humanidade a fez necessária. * **

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] Dr.ª, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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A imagem pode ser apresentada de diferentes maneiras, por meio de elementos como as cores, texturas, formas geométricas, pontos e linhas, situando-se em um espectro bem definido entre abstração e representação da realidade, exigindo maior ou menor grau de interpretação do observador. Segundo Samara (2010, p. 166) “a imagem é uma experiência poderosa (...). Ela é um espaço simbólico e emocional que substitui a experiência física (...) na mente do observador no momento em que está sendo vista”. Quando empregada de maneira adequada, torna-se a ferramenta de comunicação mais eficaz e eficiente na transmissão de uma mensagem. Segundo Twyman (1985), a linguagem visual pode ser definida pela composição bidimensional apresentada e intencionalmente voltada a comunicação visível. O autor reavalia os modelos de linguagem existentes, relacionando-as em novos modelos híbridos, como ilustra a figura 1. Para Twyman (1985), a linguagem visual gráfica divide-se, então, em verbal, pictórica e esquemática, respectivamente referindo-se a escrita, utilização de pictogramas e esquemas compostos. Figura 1- Modelo de Linguagem (Adaptado de Twyman, 1985, p. 7).

A linguagem visual faz parte da natureza do homem e, apesar de lidarmos intuitivamente com ela ao longo da vida, ainda existem poucos estudos, em comparação a linguagem verbal escrita e falada. Jardí (2014) aponta que a linguagem visual é compreendida de maneira complexa e necessita de estratégias bem definidas que permitam seu funcionamento de forma adequada. Para que se possa compreender como a imagem exerce seu papel como meio de comunicação, é inevitável que se traga ao presente estudo, a principal contribuição deixada por Peirce (2012). Peirce dedicou parte de sua vida no estudo dos signos, elementos que carregam consigo significados atribuídos pelos seres humanos e que substituem algo sob determinado aspecto ou capacidade. Este estudo, batizado como Semiótica, procura esclarecer a relação das representações com seus significados e suas interpretações, consequentemente, é um dos campos de estudo com maiores contribuições para que se possa avaliar e estudar minuciosamente a linguagem visual. O famoso modelo triádico criado por Peirce (Figura 2), para melhor compreensão de como ocorre a interpretação dos signos, e como estes se relacionam, baseia-se em três elementos: o representamen, que corresponde à realidade do signo; o objeto, correspondendo aquilo que este representa; e o interpretante, que não trata-se de quem interpreta o signo, mas, sim, do conceito mental elaborado a partir da experiência. É importante destacar que as interpretações e relações destes três elementos dependem da leitura que está sendo feita, flexibilizando os resultados de acordo com diferentes contextos (JARDÍ, 2014).

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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Figura 2 - Modelo triádico proposto por Peirce (Fonte: adaptado de Jardí, 2014, p. 43).

Em diferentes casos, de acordo com os signos representados, esta relação pode variar, transformando interpretantes em novos signos em si mesmo, sujeitos a novas interpretações que desencadearão em uma composição de diversos modelos triádicos. Por exemplo, quando o espectador visualiza uma famosa marca de roupas requintadas, não a relaciona somente com os produtos oferecidos, mas, também, ao estilo de vida oferecido pela marca, além de outras diferentes interpretações que, de alguma maneira, estão interligadas (JARDÍ, 2014). Outra enorme contribuição de Peirce ao campo da semiótica, e, consequentemente, ao estudo da linguagem visual, foi a classificação dos signos e as suas relações com os objetos. As representações podem ser divididas em três categorias, classificadas como representação icônica, indicial e simbólica. As representações icônicas mantêm uma relação muito próxima com aquilo que representam, carregando consigo características comuns do objeto a que se refere, enquanto as representações indiciais, mantém uma relação associativa, geralmente mediante uma relação de causa e efeito. Nas representações simbólicas, em contrapartida, os signos não possuem quaisquer relações lógicas com o objeto no qual representa, trazendo consigo significados ligados por convenções que precisam necessariamente serem aprendidas anteriormente pelo observador. Hoje, com a população imersa em um mundo de imagens, faz-se mais do que necessário o reconhecimento desta linguagem e sua alfabetização, não somente aos que irão emprega-la, mas, também, aos que a visualizarão nos mais diferentes formatos (DONDIS, 2007). Os conceitos citados na primeira parte deste estudo podem ser percebidos de maneira muito clara nos projetos de comunicação visual encontrados no cotidiano das pessoas, como, por exemplo, o sistema gráfico de sinalização de trânsito e nas interfaces gráficas de computadores. É inquestionável a eficiência e a eficácia da imagem como comunicadora, que carrega consigo uma gama imensa de significados. Os avanços da tecnologia, ao longo das últimas décadas, ajudaram ainda mais na propagação dessa linguagem, assim como na sua produção e reprodução, transformando-a significativamente. Mas, para que se possa compreender e refletir como a imagem atua na contemporaneidade, e sua relação íntima com o homem e a tecnologia, é necessário, antes, explanar alguns conceitos referente a cultura na qual os visualizadores estão inseridos.

3. LINGUAGEM VISUAL EM UM NOVO CONTEXTO CULTURAL De acordo com Cardoso (2013, p. 83) “O ser humano pensa sempre por meio das linguagens que tem à disposição, e estas são codificadas pelo acúmulo de atividade antecedente naquele domínio.” Os diversos significados intrínsecos às imagens, levam a reflexão das diversas conexões existentes entre elas e o visualizador, de acordo com as culturas com as quais estas estão estabelecidas. Logo, como aponta Jardí (2014), os limites do uso da imagem para comunicar uma determinada informa-

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ção estão diretamente ligados a amplitude do âmbito cultural no qual a expressão faz sentido para o visualizador. O sistema gráfico de sinalização de trânsito é composto por diversas representações visuais que, apesar de certas incongruências, exceções e especificidades em determinados países, informam as regras de trânsito à população com efetividade. Muitos signos são lidos intuitivamente, outros, necessitam de conhecimento prévio, mas, de maneira geral, é possível afirmar que este conjunto de códigos funciona de maneira universal. O mesmo não poderia ser considerado na visualização de uma silhueta do chimarrão (Figura 3), bebida quente tão comum para o povo do sul do Brasil, servida em uma cuia de Porongo acompanhada de erva mate moída e uma bomba semelhante a um canudo. Figura 3 – Silhueta do chimarrão (Fonte: do autor).

Para os sulistas, apreciadores do chimarrão, basta uma simples silhueta para que se possa identificá-lo. Percebe-se também que, em casos mais específicos, este ícone pode exercer outras funções, como, por exemplo, símbolo da cultura do Rio Grande do Sul ou, quando apresentada em cores, times do futebol gaúcho. Mas como esta imagem seria interpretada em outros lugares do mundo, como no Japão, por exemplo? De maneira geral, seria incapaz, ou muito difícil, a correta interpretação da imagem do chimarrão e seus diversos significados, ainda mais quando acrescidos de outros signos, como os citados anteriormente. Todavia, quando apresentada de maneira fotográfica, com sugestão de consumo, a imagem pode ser associada a outros elementos comuns da cultura ocidental, como o chá, facilitando sua interpretação, mesmo que ainda imprecisa quanto aos corretos significados. Elementos como a cor verde da erva mate e os sinais de fumaça, podem ser associados às plantas e a bebidas quentes, muito familiares para os japoneses. Dessa forma, pode-se perceber de maneira muito clara que a cultura no qual o visualizado está inserido, além do seu repertorio de experiências anteriores, interfere diretamente nas interpretações pretendidas pelo comunicador, assim como na maneira como a linguagem visual pode ser apresentada. Embora isso seja verdade, atualmente, mesmo que o visualizador não possua qualquer familiaridade com a imagem apresentada, basta uma simples busca na internet para que suas dúvidas sejam sanadas por meio de outras imagens e conceitos semelhantes. Isso por que vivemos, como cita Cardoso (2013), em uma era onde as experiências precisam ser, de alguma maneira, representadas

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por meio de linguagens, inclusive, e, predominantemente, visuais. Como nos exemplos citados pelo autor, poucas pessoas já pilotaram um carro de Formula 1, ou caçaram um leão na África, porém, esses modelos mentais são facilmente formadas em qualquer um que tenha vivido experiências semelhantes ou que as tenha visualizado em filmes, fotos, entre outros registros. Tem-se como premissa que a sociedade desfruta de um amplo acesso das informações, em um contexto global, com auxílio dos adventos das novas tecnologias digitais que ajudam a formar, como define Lévy (1999), a cibercultura. Essa cultura, baseada em redes de computadores, também é abordada por Jenkins (2008), onde o autor aponta a atual convergência dos meios de comunicação e suas consequências culturais no mundo. Castells (1999) também aborda a complexidade da sociedade contemporânea e as diversas transformações decorrentes da revolução tecnológica, voltada à informação e à comunicação, que afetam, consequentemente, a linguagem visual. Conclui-se que, a partir do significativo avanço da tecnologia, com as quais as pessoas interagem cotidianamente, a cultura e sociedade modificou-se consideravelmente (PORTUGAL, 2013). Fazem-se necessárias novas formas de comunicação, considerando o novo contexto cultural de leitores expertos e ágeis, sedentos por informação, seja esta visual, ou não.

4. TECNOLOGIA E LINGUAGEM VISUAL Para que se possa compreender as relações entre imagem, cultura e tecnologia, faz-se necessário, primeiramente, uma breve compreensão do que aqui considera-se tecnologia, e suas características. Custer (1995), em uma profunda análise dos estudos de Mitcham (1979), descreve as complexas dimensões da tecnologia como um conjunto de quatro conceitos distintos, considerando-a como artefatos, conhecimentos, processos e vontade. Dessa maneira, pode-se compreender o conceito de tecnologia de maneira mais ampla do que comumente e popularmente considera-se tecnologia. Entretanto, este artigo não visa o aprofundamento das dimensões da tecnologia, mas sua relação com a linguagem visual, restringindo-a apenas como artefato. Contudo, segundo Custer (1995), esta dimensão não está restrita apenas a artefatos físicos, mas em uma perspectiva muito mais abrangente, incluindo em seu significado as linguagens, leis e sistemas de gestão. Em uma abordagem mais holística, para o autor, a tecnologia torna-se todo resultado da engenhosidade humana, material e imaterial, dentro dos limites da imaginação. Bruno Latour (1994) explora de maneira muito profunda a relação existente entre a tecnologia e o ser humano, na cultura contemporânea. Para o autor, as mediações, fruto de uma relação íntima entre o humano e o não humano, se dão de maneira mútua, interferindo e influenciando os comportamentos de maneira complexa. Pode-se considerar que, de certa maneira, a tecnologia age como mediatário, intercedendo a sociedade em suas relações e interações existentes. Com o advento do computador e a internet, adventos tecnológicos mais importantes do século XX, a relação entre sociedade e tecnologia nunca esteve tão evidente. Como resultado, a linguagem visual passou a ser condicionada e modificada consideravelmente, moldando-se, progressivamente, aos novos contextos no qual se encontra. Fica claro que os sistemas informáticos não possuem propósitos apenas matemáticos, designados para cumprir tarefas de cálculos complexos, mas apresenta-se como novo meio para as pessoas se comunicarem (BARANAUSKAS; ROCHA, 2003). A partir da década de 1950, as primeiras informações puderam ser visualizadas em telas de computadores por meio de recursos gráficos, levando, anos depois, ao desenvolvimento de interfaces baseadas predominantemente na linguagem visual. Com o passar dos anos e o constante avanço da tecnologia, o desenvolvimento, captação e reprodução de imagens alcançaram níveis inacreditáveis, impactando sobre a visualidade de forma descomunal e redefinindo todos os seus parâmetros (CARDOSO, 2013).

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Na medida em que os artefatos digitais tornam-se cada vez mais acessíveis, percebe-se, também, maior dependência, interferindo na cultura. Estes cenários levam a inúmeras discussões sobre materialidade e imaterialidade, sobretudo, da imagem. Cardoso (2013) afirma que a agilidade em transitar entre o material e imaterial, faz com que sua materialização se torne supérflua, como, por exemplo, no caso da fotografia. De acordo com Jenkins (2008), a convergência digital está mudando a maneira com que os meios operam. Pode-se afirmar que nunca foram captadas e criadas tantas imagens digitais como ultimamente, e, em consequência disso, processos antiquados são praticamente esquecidos, ou se tornaram completamente sem propósitos. Com o avanço da tecnologia e interatividade, a imagem tambem passou a permitir ações recíprocas dialógicas entre sistema e usuário, sugerindo sucessivas ações e reações, sugerindo uma relação física existente. A linguagem visual, dessa vez dotada de interatividade, passou a potencializar as experiências e possibilitar algo além da percepção meramente visual, abandonando a sua ideia clássica bidimensional (FABRIS, 1998; TAVARES, 2001). Isso pode ser percebido em diversos jogos eletrônicos e realidade virtual, onde o usuário se coloca em um contexto com imagens de alta resolução, interagindo com um sistema que proporciona experiências extraordinárias fidedignas a realidade.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O ser humano encontra-se em uma era onde a tecnologia avança de maneira significativa, levando a quebra de diversos paradigmas e a revisão de diversos conceitos, inclusive relacionados a linguagem visual. Por ser uma linguagem que permite entendimento intuitivo e de rápida interpretação, carregando inúmeros significados, necessita ser estudada profundamente e exaustivamente. Como na linguagem verbal escrita e falada, faz-se necessário seu aperfeiçoamento e esquematização, admitindo o desenvolvimento de novos métodos e teorias úteis para que a sociedade esteja devidamente alfabetizada e ciente de sua importância. Jogos eletrônicos, computadores pessoais, televisores interativos, entre diversos outros artefatos, constituídos de linguagem predominantemente visual, deixam claro que a virtualidade está modificando a forma com que os seres humanos se comunicam e interagem. Seria inadequado, neste estudo, prever com exatidão os acontecimentos a respeito da utilização das imagens, assim como suas consequências no futuro. Todavia, já é possível perceber que as experiências virtuais estão cada vez mais próximas da realidade, fazendo uso de todas as linguagens disponíveis. Nesse cenário de seres humanos ciborgues, em uma cultura cada vez mais conectada e imagética, a linguagem visual atuará de maneira cada vez mais intensa, ampliando as possibilidades, derrubando barreiras e diminuindo a distância que separa o real do imaginário.

REFERÊNCIAS BARANAUSKAS, Maria Cecília Calani; ROCHA, Heloísa Vieira. Design e Avaliação de interfaces humano-computador. Campinas: Nied/Unicamp, 2003. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2015. CARDOSO, Rafael. Design para um mundo complexo. São Paulo: Cosac Naify, 2013. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CUSTER, Rodney. Examining the Dimensions of Technology. International Journal of Technology and Design Education, vol. 5, n. 3, p. 219-244, 1995. DONDIS, Donis. Sintaxe da Linguagem Visual. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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FABRIS, Annateresa. Redefinindo o Conceito de Imagem. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, p. 217-224, 1998. FRUTIGER, Adrian. Sinais & Símbolos: Desenho projeto e significado. São Paulo: Martins Fontes, 2001. JARDÍ, Enric. Pensar com Imagens. São Paulo: Gustavo Gili, 2014. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. LATOUR, Bruno. On technical mediation – Philosophy, Sociology, Genealogy. Common Knowledge, v. 3, n. 2, p. 29-64, 1994. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Tradução: José Teixeira Coelho Neto. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. PORTUGAL, Cristina. Design, Educação e Tecnologia. Rio de Janeiro: Rio Books, 2013. SAMARA, Timothy. Elementos do Design: Guia de Estilo Gráfico. Porto Alegre: Bookman. 2010. TAVARES, Mônica. A leitura da imagem interativa. In: Anais do XXIV Congresso Brasileiro de Comunicação. Campo Grande, 2001. TWYMAN, Michael. Using pictorial language: a discussion of the dimensions. In: DUFFY; Thomas; WALLER, Robert. Designing usable text. New York: Academic Press, 1985. p. 245-312.

PARTE 2 LEITURA, LINGUAGEM, TEXTO E DISCURSO

VEJA E RESPONDA: UM DIÁLOGO BAKHTINIANO COM CAPAS DE REVISTA Alan Asturian* (UPF)

INTRODUÇÃO Os meios de comunicação utilizam de forma constante a linguagem visual ou verbo-visual para cativar, mas principalmente para induzir o leitor a ter uma visão prévia dos acontecimentos, fazendo-o posicionar-se ideologicamente frente aos fatos que serão apresentados. As capas de revistas, jornais entre outras cumprem muito bem a função de apresentar previamente as informações aos leitores, fazendo com que assumam um posicionamento axiológico. Por isso o estudo crítico das capas, responsáveis por dialogar com o leitor, direcionando-o para que assuma uma determinada posição, torna-se relevante. Para realizarmos o estudo das capas, nos embasaremos nos preceitos teóricos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin e seu Círculo, mais especificamente os conceitos de gêneros discursivos, dialogismo, palavra, ideologia e a concepção de linguagem. O artigo procura mostrar as dimensões dialógicas presentes nas quatro capas da Revista Veja publicadas dias antes do segundo turno das eleições presidenciais dos anos de 2002, 2006, 2010 e 2014. Pretendemos comprovar ou rechaçar a ideia de que a Revista Veja, mesmo sendo um veículo jornalístico, posiciona-se valorativamente a favor ou contra determinados indivíduos, grupos ou contextos.

1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA O cerne do pensamento bakhtiniano está na concepção social, histórica e evolutiva da linguagem que se dá por meio dos indivíduos que dela fazem uso. Ele não está interessado na estrutura linguística, na sua abstração, mas sim, em sua concretude, no envolvimento comunicativo da comunidade que a utiliza em um determinado contexto sócio-histórico (FARACO, 2009). Nesse viés comunicativo, a linguagem se apresenta e participa da nossa vida através de enunciados. Para Brait e Melo (2013, p. 65), As noções enunciado/enunciação têm papel central na concepção de linguagem que rege o pensamento bakhtiniano justamente porque a linguagem é concebida de um ponto de vista histórico, cultural e social que inclui, para efeito de compreensão e análise, a comunicação efetiva e os sujeitos e discursos nela envolvidos.

Conforme, Brait e Melo (2013, p. 67, grifo do autor), no texto, Discurso na vida e discurso na arte – sobre poética sociológica, o enunciado compreende três fatores “(a) o horizonte espacial comum dos interlocutores (b) o conhecimento e a compreensão comum da situação por parte dos interlocutores, e (c) sua avaliação comum dessa situação”. A enunciação, para a concepção bakhtiniana (apud BRAIT; MELO, 2013, 67-68, grifo do autor), está “situada justamente na fronteira entre a vida e o aspecto verbal do enunciado; ela,

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por assim dizer, bombeia energia de uma situação da vida para o discurso verbal, ela dá a qualquer coisa linguisticamente estável o seu momento histórico vivo, o seu caráter único”. Nesse sentido, os conceitos de enunciado e enunciação estão intimamente ligados, o enunciado nasce e morre na enunciação que se dá através da interação interpessoal. Também, os enunciados configuram gêneros discursivos, que conforme Bakhtin (1997, p. 285), São as correias de transmissão que levam da história da sociedade à história da língua. Nenhum fenômeno novo (fonético, lexical, gramatical) pode entrar no sistema da língua sem ter sido longamente testado e ter passado pelo acabamento do estilo-gênero.

Os gêneros do discurso são vinculados aos aspectos sociais, culturais e históricos, são apreendidos pelos indivíduos que deles se apropriam, fazem uso nas mais diversas realidades comunicativas. Além disso, para Bakhtin (1997, p. 279) existem alguns aspectos que definem os gêneros do discurso, que os situam em determinadas esferas da atividade humana, como o “conteúdo temático, estilo e construção composicional”. Outro aspecto relevante quanto aos gêneros é a sua classificação entre primários e secundários. Os primeiros são “os gêneros da vida cotidiana”, se constituem nas atividades espontâneas do dia-a-dia, por exemplo uma conversa entre familiares. Já os segundos “aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais elaborada”, se constituindo principalmente em atividades mais complexas, como as políticas, religiosas, filosóficas entre outras (FARACO, 2009, p. 132). Além dessa divisão, a relativa estabilidade dos gêneros também é trazida à tona. Faraco (2009, 127) comenta que quando Bakhtin diz que os gêneros são “relativamente estáveis, está dando relevo, de um lado, à historicidade dos gêneros; e, de outro, à necessária imprecisão de suas características e fronteiras”. Porém, a comunicação por ser um ato dinâmico, vivo, torna o gênero discursivo propício à mudanças estilísticas individuais. “Do contrário, em vez de princípios de organização, os gêneros seriam camisas de força” (SOBRAL, 2013a, p. 24). Ainda em relação ao enunciado/enunciação e gêneros do discurso, temos a linguagem não-verbal e/ou verbo-visual tão presente atualmente por meio da diversidade de mídias disponíveis, que Bakhtin não previa, mas para as quais suas formulações teóricas convergem. Dentre as mídias, que utilizam de forma mais contundente a linguagem não-verbal e/ou verbo-visual, estão as capas de revistas, que servirão como corpus para o desenvolvimento deste trabalho. A Capa de Revista, está situada na esfera midiática, pertencente aos gêneros jornalístico e publicitário, unindo a objetividade informacional jornalística com a intencionalidade persuasiva-comercial típica do gênero publicitário. A equipe de produção, e nesse trabalho, em específico, das capas de revistas, quando elaboram um texto, conhecem o público alvo, seu destinatário, suas expectativas, construindo uma relação de diálogo. Relação essa, que não é apenas direta, de um diálogo face a face, mas uma relação dialógica/ responsiva no tempo e no espaço. E, quando falamos em diálogo, adentramos em um dos aspectos mais importantes para Bakhtin. O caráter dialógico para o autor (1997, p. 319) é a essência, o princípio constitutivo da linguagem, que transcende o tempo e o espaço e exige uma resposta, “um locutor não é o Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear”. Nas obras do Círculo, conforme Sobral (2013b, p. 106), o conceito de dialogismo se faz presente de três maneiras distintas,

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a) Como princípio geral do agir – só se age em relação de contraste com relação a outros atos de outros sujeitos: o vir a ser, do indivíduo e do sentido, está fundado na diferença; b) Como princípio da produção dos enunciados/discursos, que advêm de “diálogos” retrospectivos e prospectivos com outros enunciados/discursos; c) Como forma específica de composição de enunciados/discursos, opondo-se nesse caso à forma de composição monológica, embora nenhum enunciado/discurso seja constitutivamente monológico nas duas outras acepções do conceito.

O dialogismo para Bakhtin é constituído pelas inúmeras vozes que se manifestam discursivamente entre indivíduos orientados axiologicamente, posicionados responsivamente. Em suas palavras, “a compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa; toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor” (1997, p. 290). Assim a alteridade se torna indispensável para a constituição do sujeito, pois é na interação que o falante conhece e se reconhece. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 2009, p. 117). A palavra é carregada de histórias, culturas, vivências, sentidos, intenções, enfim conteúdo. Para o pensador russo (2009, p. 36, grifo do autor) “a palavra é o fenômeno ideológico por excelência”, que nos faz compreender e reagir quando as ressonâncias ideológicas nos tocam e nos despertam. Essa ideologia, conforme Faraco (2009, p. 46), é entendida pelo Círculo “como o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política”, é sempre social e histórica, não podendo ser reduzida somente ao mundo exterior, nem só à consciência individual. Voloshinov (apud MIOTELLO, 2013, p. 169) um dos integrantes do Círculo, foi o único que de forma direta conceituou ideologia como sendo “conjunto dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que tem lugar no cérebro do homem e se expressa por meio de palavras [...] ou outras formas sígnicas”. Enfim, todo produto ideológico, dentre eles o Gênero Capa de Revista, que será o objeto de estudo, parte de uma realidade sócio-histórica, possuindo um significado, buscando alcançar um determinado objetivo, refletindo e refratando um posicionamento valorativo. Após essa breve contextualização teórica, teceremos algumas considerações sobre o corpus e o procedimento de análise, utilizado, para então partirmos para a análise dialógica das capas de revistas.

2. METODOLOGIA: CORPUS E PROCEDIMENTO DE ANÁLISE A Revista Veja, conforme dados retirados do site de sua editora, Publiabril, é uma revista semanal, criada por Roberto Civita e Mino Carta em 11 de setembro de 1968, abrangendo uma diversidade de temas. A revista Veja, não esconde o seu posicionamento ideológico, além de fornecer a notícia, ela procura mostrar o contexto e indicar um direcionamento que o leitor deve seguir. Outro aspecto relevante, principalmente para compreendermos melhor o posicionamento político-ideológico da revista Veja, diz respeito à classificação socioeconômica de seus leitores (Classe A 18% - Classe B 51% - Classe C 29% - Classes D e E 3%). Buscando alcançar os objetivos deste trabalho, foram escolhidas quatro capas de revistas Veja que foram publicadas próximas às datas das votações para as eleições presidenciais. As capas que antecederam o segundo turno das eleições presidenciais de 2002, 2006, 2010 e 2014 serão analisadas dialogicamente. Não é objetivo do trabalho, analisar detalhadamente o significado dos efeitos visuais, e sim atentar para o diálogo.

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Primeiro as capas serão contextualizas, por meio da datação e cenário eleitoral. Depois, passaremos às dimensões dialógicas presentes nessas capas. O dialogismo das capas se apresenta externamente, interagindo com o contexto sócio-histórico e internamente, com as próprias matérias que compõem a edição da revista.

3. UM OLHAR DIALÓGICO ENTRE AS CAPAS DA REVISTA VEJA Conforme apresentado no item anterior, analisaremos os diálogos presentes entre as capas de revistas Veja, da editora Abril. As edições aqui apresentadas, são as últimas antes do pleito, referente ao segundo turno das eleições presidenciais brasileiras de 2002, 2006, 2010 e 2014. 1º CAPA

2º TURNO – 27/10/2002 Edição 1774 de 23-10-02

Essa capa (edição 1774, ano 35, nº 42), foi publicada na data de 23 de outubro de 2002, quatro dias antes da votação referente ao segundo turno da eleição presidencial. O segundo turno foi marcado pela disputa entre o candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva, mais conhecido como Lula e o candidato tucano José Serra. Lula havia conseguido uma grande vantagem já no primeiro turno e entrava para a disputa como favorito nesse segundo turno. Atentando para a imagem, percebemos um animal, de cor vermelha, com feições caninas, possuindo três cabeças e com a cauda triangular. Esse suposto cão, faz alusão à mitologia grega, mais especificamente ao Cão de Hades, um monstruoso cão de três cabeças que guardava a entrada do Hades, o reino subterrâneo dos mortos. Porém, esse animal não possui três cabeças caninas, como na mitologia, e sim três cabeças humanas, que pelas caricaturas, e facilmente identificadas pelas plaquetas, pertencem a Karl Heinrich Marx, Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lênin, e Lev Davídovich Bronstein, mais conhecido como Leon Trotsky.

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Karl Marx foi um intelectual, filósofo e revolucionário alemão idealizador do comunismo, deixou seguidores de seus ideais, dentre eles Lênin, que utilizou as ideias marxistas para sustentar o comunismo na União Soviética. Lênin foi um dos líderes da revolução bolchevique, que fez com que chegasse ao poder em 1917. Já Trotsky foi um intelectual marxista, um dos principais líderes da Revolução de Outubro de 1917, que derrubou a monarquia (czarismo) na Rússia. O “animal”, que tem em sua coleira uma estrela vermelha (símbolo do Partido dos Trabalhadores), está em uma posição de ataque, querendo se libertar da corda que o prende, ele possui garras afiadas e as cabeças estão com expressões raivosas. Em relação aos elementos verbais presentes nessa capa temos os seguintes enunciados: “O que querem os radicais do PT”, escrito em caixa alta, letras garrafais brancas para ficar mais visível. Em uma posição inferior: “Entre os petistas, 30% são de alas revolucionárias”; “Ficaram silenciosos durante a campanha”; “Se Lula ganhar, vão cobrar a fatura. O PT diz que não paga”. O diálogo entre os elementos verbais, os não-verbais, a história, e o contexto eleitoral é evidente. A comunicação é prenhe de ideologia e o posicionamento é claro, quando, às vésperas de uma eleição, a revista publica uma imagem “demoníaca”, impactante, chamando a atenção dos seus leitores, para o fato de que o “mal” está próximo. No que diz respeito ao diálogo interno, a capa conversa direta e indiretamente com as matérias. Um dos enunciados “Vai ser preciso segurar. Marxistas, leninistas, trotskistas que compõem o coração radical do PT se preparam para cobrar a fatura caso Lula seja eleito”, é o que mais se destaca. Enfim, essa edição possui várias matérias e imagens que transmitem um posicionamento axiológico em relação ao momento eleitoral e ao candidato petista. Ela inscreve no tempo e no espaço um discurso ideológico e espera alcançar uma atitude responsiva de seus leitores. 2º CAPA

2º TURNO – 29/10/2006 Edição 1979 de 25-10-06

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Essa capa (edição 1979, ano 39, nº 42) foi publicada na data de 25 de outubro de 2006, quatro dias antes da votação referente ao segundo turno da eleição presidencial. O segundo turno foi marcado pela disputa entre o candidato petista Lula, que buscava a reeleição, e o candidato do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) Geraldo Alckmin. A imagem apresenta o candidato à reeleição, presidente Lula, em segundo plano, com sua imagem escurecida. Já em primeiro plano, agora em uma imagem colorida, é apresentado o filho do candidato Lula, Fábio Luís Lula da Silva, conhecido como Lulinha. As imagens parecem se entreolharem em um tom de preocupação e desconfiança. Ainda na capa, são apresentados alguns enunciados: “O ‘Ronaldinho’ de Lula”. “O presidente comparou o filho empresário com o craque de futebol. Mas os dons fenomenais de Fábio Luís, o Lulinha, só apareceram depois que o pai chegou ao Planalto”. As imagens e os enunciados surgem como denúncia. A revista conta com inúmeras matérias e inferências desfavoráveis ao candidato à reeleição. A mais impactante, fazendo ponte com a capa é apresentada sobre o título: “Por que todo mundo não pode ser o Ronaldinho. Eis a explicação do presidente Lula para o tremendo sucesso de seu filho Fábio Luís, que coincide com o mandato presidencial do pai”. Primeiramente temos de explicar que Ronaldinho, possuidor da alcunha de Fenômeno, é um craque do futebol brasileiro. A revista utiliza um enunciado do presidente Lula, e em tom irônico apresenta Lulinha como um “fenômeno” das comunicações após, seu pai ter sido eleito presidente. Lulinha de um emprego simples passou a ser um empresário de sucesso negociando com estatais. 3º CAPA

2º TURNO – 31/10/2010 Edição 2188 de 27-10-10

Essa capa (edição 2188, ano 43, nº 43) foi publicada na data de 27 de outubro de 2010, quatro dias antes da votação, referente ao segundo turno da eleição presidencial. O segundo turno foi

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marcado pela disputa entre a sucessora de Lula, Dilma Rousseff, buscando alcançar o feito de ser a primeira mulher a assumir a presidência no Brasil e o candidato do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), José Serra. A imagem traz o Palácio do Planalto sob um céu avermelhado, e, como se houvesse uma conversa, surge um balão de diálogo. Nessa conversa está escrito “Não aguento mais receber pedidos da Dilma e do Gilberto Carvalho para fazer dossiês. (...) Eu quase fui preso como um dos aloprados”. A capa também traz a indicação de quem havia expressado esse diálogo, “Pedro Abramovay, atual secretário nacional de Justiça, em conversa com seu antecessor, Romeu Tuma Júnior”. Além disso, a capa apresenta o enunciado em letras garrafais amarelas: “A verdade sobre os Dossiês”. A revista Veja, além de apresentar outras matérias citando o governo petista, tais como: “Dilma, curto-circuito no Luz para Todos”, “Serra é agredido e Lula faz chacota”, “MP pede condenação de tesoureiro do PT”, “No Ceará, o PT tenta fazer o seu laboratório de censura à imprensa e às emissoras de rádio e TV”, mostra, de forma contundente, a possível utilização petista da máquina pública. O céu avermelhado na Capa surge novamente na matéria que inicia na página 68, porém com as faces de Dilma, então candidata a presidência, e de Gilberto Carvalho, apresentado pelo enunciado explicativo: “Relações Perigosas. As conversas às quais Veja teve acesso mostram que o braço direito do presidente Lula, Gilberto Carvalho, e a candidata à Presidência, Dilma Rousseff, tentaram usar o Ministério da Justiça para executar ‘tarefas absurdas’”. 4º CAPA

2º TURNO – 26/10/2014 Edição 2397 de 29-10-14

Essa capa (edição 2397, ano 47, nº 44) tem impressa a data de 29 de outubro, três dias após a votação referente ao segundo turno da eleição presidencial, porém a capa e o teor das reportagens

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vieram a público na Quinta-feira, três dias antes da votação. Em uma das eleições mais acirradas em toda a história brasileira, a então presidente Dilma Rousseff, candidata à reeleição, enfrentou, no segundo turno, o tucano Aécio Neves, que se candidatava pela primeira vez. A revista Veja publica alguns dias antes do pleito, uma capa verbo-visual em que aparecem a candidata Dilma e o ex-presidente Lula com seus rostos envelhecidos e olhares aterrorizantes. As faces empalidecidas se destacam em um fundo escuro. Além da imagem, está escrito em vermelho, letras grandes e garrafais: “Eles sabiam de tudo”, alusão à corrupção na Petrobrás que estava sendo investigada. Também são apresentados os enunciados: “PETROLÃO – O doleiro Alberto Youseff, caixa do esquema de corrupção na Petrobras, revelou à Polícia Federal e ao Ministério Público, na terça-feira passada, que Lula e Dilma Rousseff tinham conhecimento das tenebrosas transações da estatal”. A matéria interna traz dois enunciados bem incisivos contra o PT, Lula e a então candidata Dilma Rousseff. O primeiro em formato de diálogo: “– Youssef: ‘O planalto sabia de tudo!’; – Delegado: ‘Quem do Planalto’; – Youssef: ‘Lula e Dilma’”. E o segundo: “Uma marca deletéria: nos doze anos de governo do PT, houve quase um escândalo por ano. Em comum entre eles, poder, dinheiro e corrupção”.

3.1. OUTROS DIÁLOGOS Nota-se o viés político-ideológico da revista Veja, trazendo matérias contrárias aos partidos políticos que não são de sua predileção. A linha de direita da revista é notória, quando “demoniza” a esquerda (capa de 2002), buscando um alinhamento dialógico responsivo com seus leitores pertencentes às classes elitizadas de nosso país. As capas já possuem um modo de ler e antecipar os fatos, induzindo e conduzindo o leitor a posicionar-se antecipadamente, a construir um pré-conceito, antes de conhecer a própria essência da matéria noticiada. Porém, como toda interação, todo diálogo gera e exige um posicionamento responsivo, nem sempre as expectativas são alcançadas. Para Newcomb (2010, p. 384-385), Mesmo quando as mensagens mais poderosas, mais controladas, estão dominantes, elas têm ainda que se defrontar com a “palavra” de resposta do espectador e com o mundo de experiência. As respostas não podem ser previstas a partir do texto ou da teoria social, mas elas têm que ser definidas e descritas na prática de pesquisa que reconhece suas possibilidades variadas.

A revista Veja tentou, de forma veemente dialogar com o seu público leitor e com os eleitores de modo geral, direcionando as interpretações e escolhas. Porém, todo indivíduo está alicerçado social, histórico e ideologicamente no tempo e no espaço, o que fez com que o posicionamento da revista fosse rejeitado, já que nos quatro processos eleitorais, os candidatos opostos ao discurso midiático da Veja venceram.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da aplicação de alguns pressupostos bakhtinianos percebemos que as quatro capas da Revista Veja, publicadas anteriormente às eleições estavam prenhes de caráter ideológico, objetivando que o leitor/eleitor apresentasse um determinado comportamento. Pela palavra, não entendida aqui pela sua abstração, a revista Veja dialogou com seu leitor, se posicionou e impôs sua subjetividade no gênero, modificando-o e afastando-se da característica primária da exposição imparcial de fatos. Através da escolha proposital das matérias, da capa de

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apresentação e do momento de publicação, a revista assume um posicionamento ideológico com o qual espera alcançar e persuadir o seu leitor. Através de um olhar mais atento as capas da revista Veja e ao contexto de suas edições, percebemos o quão é desvelado o seu posicionamento político-ideológico. Não pretendemos aqui emitir juízos de valor, buscar ou não a veracidade dos fatos apresentados, mas sim mostrar que os diálogos estão sempre alicerçados em estruturas ideológicas.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Versão eletrônica disponível em: . Acesso em: 27 out. de 2014. ______, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 13. ed. São Paulo: Hucitec, 2009. BRAIT, B; DE MELO, R. Enunciado/enunciado concreto/enunciação. In: BRAIT, B (Org.). Bakhtin: conceitoschave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2013. FARACO, C. A. Linguagem & diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009. MIOTELLO, V. Ideologia. In: BRAIT, B (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2013. NEWCOMB, H. Sobre aspectos dialógicos da comunicação de massa. In: RIBEIRO, A. P. G; SACRAMENTO, I. (Org.). Mikhail Bakhtin: linguagem, cultura e mídia. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, a.35, v.42, ed. 1774, out. 2002. Disponível em: < http://veja.abril. com.br/acervodigital/home.aspx>. Acesso em: 18 dez. 2014. ______. São Paulo: Editora Abril, a.39, v.42, ed. 1979, out. 2006. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx>. Acesso em: 18 dez. 2014. ______. São Paulo: Editora Abril, a.43, v.43, ed. 2188, out. 2010. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx>. Acesso em: 19 dez. 2014. ______. São Paulo: Editora Abril, a.47, v.44, ed. 2397, out. 2014. Disponível em: < http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx>. Acesso em: 19 dez. 2014. SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, B (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2013a. ______, A. Ético e estético na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In: BRAIT, B (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2013b.

O TEXTO LITERÁRIO EM DISCIPLINA DE LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL NO CURSO DE DIREITO – UMA ESTRATÉGIA DE SEDUÇÃO Ana Márcia Martins da Silva* (PUCRS) Este trabalho pretende relatar a experiência com a leitura do texto literário em disciplina acadêmica de Leitura e Produção Textual no curso de Direito como estratégia de sedução para formação de leitores de literatura. Um dos tópicos da ementa trata dos gêneros do discurso: sua caracterização (forma composicional, tema, estilo verbal), a intergenericidade e a heterogeneidade tipológica, o que nos permitiu, além de apresentar gêneros como charge, artigo de opinião, letras de canções, priorizar a leitura do texto literário. Consideramos que, em geral, os acadêmicos relegam esta prática a segundo plano em função das muitas leituras técnicas, inerentes à grade curricular de seu curso, que têm de fazer. E isso pode deixá-los à margem de um Direito que busca um profissional mais sensível e humano. Se por um lado o jurista torna-se crítico com o estudo da história, da economia, da psicanálise, da filosofia, da sociologia, etc. e suas articulações com o Direito, por outro, atinge o pensamento crítico-sensível ao entrar em contato com a arte e a literatura. Trata-se de um novo perfil do jurista para o século XXI, apto ao uso da empatia e da compaixão, socialmente operativo, humano, para a construção e prática de um Direito também mais humano. (OLIVO, 2012, p. 29)

Para contribuirmos com a formação de novo perfil de jurista, buscamos trabalhar textos literários que possam, além de permitir a fruição da leitura, “conversar” com a área do Direito, estabelecendo a relação Direito e Literatura. São lidos autores como Charles Kiefer, Clarice Lispector, Ignácio de Loyola Brandão, José Clemente Pozenato, Lima Barreto, Machado de Assis, Erico Verissimo e Shakespeare. O estranhamento inicial é substituído, ao longo do semestre, pelo encantamento com o texto literário e com seus autores. Os resultados têm mostrado, via avaliação das disciplinas e da professora em aula, que os acadêmicos não só se envolvem com as leituras como as levam para discussões em outras cadeiras do curso.

1. A METODOLOGIA Os textos literários são utilizados ou para introduzir um determinado conteúdo, ou para concluí-lo, além de servirem como base para as produções textuais e para as duas avaliações (provas) do semestre. Não são, no entanto, pretexto para tais atividades, mas foco, já que nossa pretensão é estimular uma leitura para além da simples decodificação de palavras e frases. Queremos, ao final do semestre, um leitor de entrelinhas e, para isso, procuramos orientá-los na descoberta do “saber ler”, como referido por Curi (2002, p. 47-8): Reverência, admiração, prazer, informação e tudo o mais decorrente da leitura depende de um saber ler, produto de ensino/aprendizagem. Este sempre distinguiu – com diferentes nomes, pouco importa – duas operações intelectuais na leitura: decodificação e compreensão. Desde a escola grega a decodificação tem sido ensinada na escola primária. A compreensão, no primário, secundário e nos cursos superiores. A compreensão [...] vem sendo objeto da hermenêutica, ciência e arte da interpretação de textos. Constituindo-se em importante problema da filosofia atual, a hermenêutica remonta à interpretação dos mitos e das mensagens recebidas pelos oráculos da Antiguidade, à interpretação bíblica das religiões cristãs, à interpretação jurídica, literária e de documentos históricos. (grifos do autor) *

Dr.ª em Letras, PUCRS, Brasil. E-mail: [email protected]

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Para tornar sedutor o processo de ensino/aprendizagem da leitura e da produção textual, valemo-nos de estratégias inspiradas nos trabalhos de CARNEIRO (1992), CLEMENTE (1984), FIORIN; SAVIOLI (2006), GODOY (2003, 2007, 2011), KOCH; ELIAS (2006, 2009), MARCUSCHI (2008) e SCARTON (2002), além daquelas que utilizamos ao longo de nossa prática como docente de língua portuguesa e de literatura.

1.1. OS CONTEÚDOS E A SELEÇÃO DE TEXTOS No início de cada semestre, é disponibilizado aos universitários – via Moodle – um manual com todas as aulas, distribuídas de acordo com os conteúdos estipulados na ementa da disciplina1. Nelas constam, então, textos literários previamente selecionados por nós, mas a interação com as turmas, à medida que o trabalho se desenvolve, provoca a inserção novos textos, algumas vezes sugeridos por eles próprios. No quadro 1, apresentamos os conteúdos e os textos selecionados. Quadro 1 Língua em uso: pessoa, tempo e espaço no discurso.

O homem que devia entregar a carta (Ignácio de Loyola Brandão)

Fundamentos de interlocução

Felicidade clandestina (Clarice Lispector)

Intergenericidade e heterogeneidade tipológica

O homem que sabia javanês (Lima Barreto)

Texto figurativo e texto temático

Uma esperança (Clarice Lispector)

Intertextualidade

O discurso de Marco Antônio nos funerais de César (Shakespeare)

Prova I (Turma 259)

Um apólogo (Machado de Assis)

Prova I (Turma 269)

Monteiro Lobato no céu (Erico Verissimo)

Fonte: material didático elaborado pela autora.

1.1.1. A EXPERIÊNCIA COM A LEITURA DE UMA NARRATIVA LONGA

Durante três semestres, além dos contos e crônicas que já vinham no manual, realizamos a leitura de O caso do martelo, de José Clemente Pozenato (2012/1-2), e Quem faz gemer a terra, de Charles Kiefer (2013/1). Embora novela não seja exatamente um tipo de narrativa muito longa, é maior do que os textos selecionados para trabalho em aula, e o objetivo era que constituísse uma leitura extraclasse guiada. As obras tratam de temas que estão diretamente relacionados com a área do Direito, como crimes, investigação policial, inquirição de testemunhas, e foram escritas por dois autores gaúchos, cujas narrativas enfocam realidades próximas do alunos. No caso de Quem faz gemer a terra, por exemplo, os alunos foram preparados para participar de uma conversa com o escritor Charles Kiefer, que lhes contou sobre o processo de criação do texto e os fatos que geraram sua história, os quais, apesar de reais, são relatados por uma personagem fictícia. Uma das tarefas de preparação consistia em escrever um segundo capítulo para o livro, a partir da leitura, feita em aula, do primeiro capítulo. Depois, lemos os textos e discutimos com os alunos a coerência do que produziram em relação aos dados do enredo disponíveis no primeiro capítulo da obra. Segundo Fiorin (2006, p. 261), “a coerência deve ser entendida como a unidade do texto. [...] No texto coerente, não há nenhuma parte que não se solidarize com as demais.”. Essa discussão permitia identificar incoerências como a inserção na cena do assassinato de uma arma de fogo, por exemplo, objeto “que não se solidariza” com o que foi narrado no primeiro Língua em uso: pessoa, tempo e espaço no discurso. Fundamentos da interlocução: língua, sujeito, texto, discurso e sentido. Gêneros do discurso: caracterização (forma composicional, tema, estilo verbal), intergenericidade e heterogeneidade tipológica. Textualização: elementos de coesão, coerência e intertextualidade.

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capítulo. Assim o narrador criado por Kiefer (2006, p. 9) relata os fatos: “Sim, eu levantei a foice, não nego, a foice que eu tinha usado tantas vezes pra fazer roça nova, e o sol bateu no aço, o sol bateu no aço limpo, o sol bateu no sangue.”. Coerência e criatividade eram também socializadas, como o texto que sugeriu um encontro do narrador, na escadaria da prefeitura, onde se refugiara, com um possível filho do soldado assassinado. Essa leitura extraclasse, no entanto, estava competindo com as das demais disciplinas acadêmicas, e muitas vezes era interrompida pelos alunos antes do final da história, gerando a velha prática de busca por resumos na Internet. Optamos, então, por manter apenas os textos literários cuja leitura seria feita em sala de aula, o que garantiria um grau maior de sedução, uma vez que, assim, evitaríamos a competição com as demais.

2. AS ATIVIDADES Todas as atividades levam em conta a leitura orientada, com a exploração do vocabulário, a análise linguística das estratégias de coesão e do efeito que produzem no todo harmônico do texto (a coerência) e as leituras possíveis a partir do agrupamento “dos elementos significativos (figuras ou temas) que se somam ou se confirmam num mesmo plano de significado” (FIORIN, 2006, p.102). O fechamento do trabalho é com uma produção textual, que se utiliza da experimentação de gêneros narrativos e argumentativos. Por questões de espaço, apresentaremos aqui exemplos do trabalho com alguns dos textos literários, mas as estratégias com os demais variam em pequenos detalhes. Dividimos o relato em leitura orientada e produção textual para que o processo de ensino-aprendizagem seja mais bem visualizado.

2.1 A LEITURA ORIENTADA A estratégia utilizada é a divisão do texto em componentes significativos, tomada a Carneiro (1992), a qual trabalha com segmentos que terminam sempre em um suspense, levando o leitor a levantar hipóteses que poderão, ou não, ser confirmadas na sequência da leitura. No quadro 2, apresentamos as explorações inicial e final do primeiro capítulo de O caso do martelo, de José Clemente Pozenato.

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Quadro 2 O TEXTO A SEGUIR É O INÍCIO DA NOVELA O CASO DO MARTELO, DE JOSÉ CLEMENTE POZENATO. A ANÁLISE DE TEXTO SERÁ FEITA DE FORMA PROGRESSIVA, POR PARTES, DENOMINADAS COMPONENTES SIGNIFICATIVOS, INDICADAS POR UMA LETRA MAIÚSCULA À ESQUERDA. 1. AS BALAS DE ALCAÇUZ (A) O sol, lá fora, estava deslumbrante. O verde das árvores do parque, à frente da janela da delegacia, brilhava, num convite ao passeio. Uma acácia imperial transbordava de flores amarelas, solitária, imponente. Pasúbio sentiu em todo o corpo a vontade de fumar. Abriu a lata, sobre a escrivaninha, e meteu na boca uma bala de alcaçuz. Fez com que ela rolasse de um para outro lado da língua, obrigando os dentes a não esmagá-la. Era o quinto ano consecutivo que tentava abandonar o cigarro. Estava na idade em que o medo do enfarte induz a certas precauções. Ao sair para as férias havia tomado, mais uma vez, a resolução. Resistira ao vício, com galhardia, nos quinze dias de praia. Mas sabia, por experiência, que o difícil viria agora, ao retornar ao trabalho. Levantou-se e se aproximou da janela. Se pudesse sair e passear, o desejo certamente se desfaria. Foi então que bateram à porta. 1. O que se pode dizer sobre o ambiente social e geográfico deste trecho da narrativa? 2. Qual a provável profissão de Pasúbio? 3. Que dados mostram que Pasúbio travava uma luta interna? 4. Que dado indica que haverá mudança no estado inicial da narrativa? (E) Eis um cidadão honesto, pensou Pasúbio, torcendo o nariz. Tão honesto que se acha no direito de comprar a polícia. Contanto que se faça o que ele pensa ser justiça. Com um gesto de mão, cortou a empolgação do gerente. — Não se fala em dinheiro. Ou quer que eu ponha a suspeita no senhor? — Eu? — saltou Camilo Gamba, ofendidíssimo. — Se eu fosse o culpado, não estava aqui agora. — Isso não quer dizer nada — sorriu Pasúbio enigmaticamente. POZENATO, José Clemente. O caso do martelo. 2 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986. p. 5-7

1. Por que, ao oferecer dinheiro à polícia, o gerente da cooperativa pode ser considerado suspeito? 2. O que o comissário insinuou com a frase “Isso não quer dizer nada”? 3. Quais podem ser, a partir deste início de O Caso do Martelo, os próximos passos do comissário Pasúbio? Fonte: Manual de Leitura e Produção Textual – 2012/1, p. 5-6.

As questões do primeiro segmento procuram situar o leitor no espaço-tempo da narrativa, assim como na caracterização da personagem – profissão e aspectos psicológicos. Para a identificação destes, há dados linguísticos no texto, mas a pista sobre a profissão nem sempre leva a uma hipótese – delegado – que se confirmará. Apenas a leitura dos próximos componentes significativos esclarecerá que Pasúbio é comissário, e não delegado. Já as perguntas do último segmento vão além do inscrito no texto, buscando a descoberta do não dito e projetando os prováveis fatos da continuidade da narrativa. Aqui, normalmente, são resgatados pelos alunos conhecimentos adquiridos sobre o desdobramento de uma investigação policial. A leitura da obra, no entanto, reservará a eles algumas surpresas quanto à linearidade, ou não, da narração. Em Koch; Elias (2010, p. 11), encontramos suporte para nossa prática: [...] o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos e não algo que preexista a essa interação. A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. (grifos das autoras)

Este vasto conjunto de saberes acionado na interação texto-sujeitos, apoiado nas pistas linguísticas inscritas no texto, levará à depreensão de figuras, “que podem ser interpretadas segundo mais de um plano de leitura” (FIORIN, 2006, p.102), para que possamos chegar aos temas possíveis. No quadro 3, temos a síntese da análise de O homem que devia entregar a carta, de Ignácio de Loyola Brandão.

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Quadro 3 O texto foi separado em três segmentos. Cada um deles pertence a um momento da narrativa. Assinale com F (falso) ou V (Verdadeiro) a análise desses segmentos em relação ao espaço-tempo do Outro. ( ) O que se pode concluir deste primeiro segmento é que o espaço-tempo ficou determinado entre o “escritório do patrão” e o “terreno baldio”, endereço no qual o boy deveria entregar a carta. O primeiro limiar é o “escritório”, de onde o office boy parte e para onde volta; o “terreno baldio” passa a ser o centro, uma vez que todas as suas ações seguintes para cumprir a missão vão estar ligadas a ele. ( ) O segundo segmento traz o centro do espaço-tempo como determinador de mudança e de crescimento do office boy: o “terreno baldio” torna-se povoado por operários e ocupado pelo edifício, transformando o “nada” em algo concreto que contribui para amenizar a solidão e a aflição do boy. No entanto, apesar de estar reforçado pela relação com seus iguais, ele ainda não conseguiu “entregar a carta”. ( ) No segmento final, percebemos que, apesar de não ter conseguido realizar a tarefa, uma vez que o morador do 114 disse não ser o destinatário da carta, o office boy foi se construindo ao longo do texto, passando da condição de um mero “cumpridor” de ordens à de um indivíduo que tem fala própria. Numa análise mais profunda, podemos concluir que

a) as relações estabelecidas ao longo do texto na verdade representam a trajetória do ser humano na Terra. Nascemos com a missão de sobreviver e de nos tornarmos cidadãos, mas, para concretizá-la, precisamos enfrentar o poder, as distinções de classe estabelecidas pela sociedade, o aprendizado só conseguido por meio da cooperação formada entre nós e nossos iguais e, finalmente, a luta contra nossos próprios limites. b) as relações estabelecidas ao longo do texto referem-se apenas às classes oprimidas da sociedade. c) o autor não deixou saída para seu personagem porque é assim que nos vemos no mundo: incapazes de cumprir nossas tarefas. d) o final aberto nos leva a acreditar que o office boy não continuará sua busca porque será demitido pelo patrão. e) as relações estabelecidas ao longo do texto indicam que o ser humano, por mais que tente, jamais conseguirá se constituir integralmente. Fonte: Manual de leitura e produção textual, 2015/2.

A classificação das assertivas em falso ou verdadeiro foi realizada a contento. Já a identificação da alternativa correta na última questão causou entranhamento aos alunos, que acreditavam não ser possível ir além da relação de poder entre patrão e empregado como tema do texto, apesar de a afirmação correta apresentar uma extensão maior do que as outras, o que já induz à resposta. No entanto, podemos perceber que o office boy é uma personagem representativa de outros tantos seres humanos nessas condições, o que se confirma, inclusive, pelo fato de ele não ter um nome que o individualize. Este foi um dos primeiros textos literários analisados no semestre, e a dificuldade inicial foi sendo substituída pela construção de um caminho conjunto de compreensão “entre produtores e receptores em situações reais de uso da língua, na descoberta de que o sentido não está no leitor nem no texto, nem no autor, mas se dá como um efeito das relações entre eles e das atividades desenvolvidas” (MARCUSCHI, 2008, p. 242). Uma pesquisa rápida na primeira prova demonstrou um percentual satisfatório nas questões que envolviam análises além da superfície do texto.

2.2 A PRODUÇÃO TEXTUAL Depois da leitura dos textos e da consequente determinação do(s) tema(s) possível(is) de que tratam, são propostas atividades de produção textual, experienciando gêneros textuais como conto, comentário, artigo de opinião, resumo e discurso/manifestação a um determinado público. Segundo Koch; Elias (2010, p. 61), “dominar um gênero consistiria no próprio domínio da situação comunicativa [...] e a escolha do gênero, portanto, deverá levar em conta cada caso, os objetivos visados, o lugar social e os papéis dos participantes”. E nossos objetivos incluem a formação de universitários

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capazes de ler e compreender os textos de sua área, a partir de um letramento com o texto literário, e de difundirem suas ideias significativa e coerentemente. No quadro 4, discriminamos os temas extraídos (ou relacionados a) de cada texto e as propostas de produção textual. Quadro 4 Texto/Autor

Tema(s)

Produção Textual

O homem que devia entregar a carta, de Ignácio de Loyola Brandão

As relações de poder (patrão / empregado e a construção do sujeito)

Escrever um final fechado para a história do office boy que não conseguia entregar a carta.

Felicidade clandestina, de Clarice Lispector / Clarice Lispector e o dogma da felicidade, de Arnaldo de Moraes Godoy

A constitucionalização do direito à busca da felicidade

Escrever um texto manifestando seu ponto de vista sobre o tema, a partir da análise dos textos de Lispector e Godoy. (artigo de opinião)

O homem que sabia javanês, de Lima Barreto

O levar vantagem em tudo (Lei de Gérson) e a corrupção nas instituições nacionais

Uma esperança, de Clarice Lispector

A metáfora existencial

Redigir comentário sobre a posição da autora diante do mundo.

Um apólogo, de Machado de Assis

Os aproveitadores, a vaidade e o professor de melancolia

Escrever comentário estabelecendo relação entre a situação apresentada no conto de Machado de Assis e situações da vida real, contemporânea.

Um milagre para o Brasil?

Escrever comentário a partir da afirmação de Monteiro Lobato de que pediria ao juiz supremo um milagre para o Brasil. Orientar-se pelas seguintes perguntas: E você? Acredita em milagres? Acredita que eles poderiam salvar o Brasil? Ou o Brasil não precisa de salvação?

Relações políticas

Escrever um texto manifestando seu ponto de vista sobre o modo de agir do povo brasileiro. Para compô-lo, utilizarse do estilo de Shakespeare no Discurso de Marco Antônio nos funerais de César (Texto I), inserindo passagem(ens) do(s) texto(s) O povo brasileiro não existe, de Vladimir Safatle (Texto II); Viva o povo brasileiro, de Menalton Braff (Texto III); e/ou Carta do povo brasileiro, de vários autores (Texto IV). (discurso ao povo brasileiro)

Monteiro Lobato no céu, de Erico Verissimo

O discurso de Marco Antônio nos funerais de César, de Shakespeare

Redigir o resumo do texto de Lima Barreto a partir de roteiro previamente divulgado.

Fonte: material didático elaborado pela autora.

Este trabalho tem sido fonte de aulas prazerosas para alunos e professora, permitindo grande interação entre todos e gerando novos leitores de literatura, aptos a reconhecer a função sociocomunicativa da língua. Em um semestre apenas, não é possível sanar problemas que são resultado de um longo descaso com a educação no país, mas é possível, sim, indicar um caminho para a busca de melhor qualificação em leitura e escrita. Na verdade, temos um projeto maior, que abrange as demais disciplinas de linguagem oferecidas ao Direito. Em Linguagem e Argumentação, trabalhamos com o filme Questão de honra (1992) na identificação de falácias e silogismos na argumentação, e, em Oficina de Argumentação Oral, lemos o capítulo Um erro judiciário, de Os irmãos Karamazov, de Dostoievski. Procuramos, assim, transformar os encontros dessas disciplinas “eletivas” em laboratórios de linguagem.

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ALTERIDADE E VIOLÊNCIA: CONTOS DE RUBEM FONSECA André Natã Mello Botton* (Universidade Feevale) Marinês Andrea Kunz** (Universidade Feevale)

Ao longo dos anos, a violência tem recebido na mídia um destaque muito grande, de modo que todos os noticiários têm enfocado cenas de violência que acontecem nas cidades. Uma novidade neste início de século é que a brutalidade não é mais privilégio das grandes cidades, mas cada vez mais o interior dos grandes centros urbanos é foco de homicídios, genocídios, chacinas e outros tipos de violência que nos chocam pela bestialidade contra o ser humano. Ao mesmo tempo em que a violência cresce no Brasil, percebe-se o crescimento da abordagem do tema na literatura. Com o passar dos séculos, a literatura procurou eternizar em suas narrativas o cotidiano do homem. Desde Homero, que perpetuou a Guerra de Troia e as aventuras de Ulisses, na Ilíada e na Odisseia, respectivamente, passando pelo Javista na Bíblia, com Victor Hugo, em Os Miseráveis, narrando histórias de uma França efervescente pós-Batalha de Waterloo e os motins de 1832, até Machado de Assis com o seu Rio de Janeiro antigo e com os mais recentes autores contando histórias que vivenciamos ou ao menos com as quais temos contato através das mais diversas mídias, o tema da violência está presente na literatura ao longo dos tempos. A partir disso, o presente trabalho pretende analisar a representação da violência brasileira nos contos Passeio Noturno Parte I e O Outro, de Rubem Fonseca. A análise será embasada nos estudos e no pensamento de Emmanuel Levinas, mais especificamente no seu trabalho sobre a alteridade.

1. LEVINAS E A INFLUÊNCIA DA ALTERIDADE NA FILOSOFIA Ao longo da história da filosofia, uma das perguntas centrais foi “Que sou eu?”. Desde os pré-socráticos, passando por Platão e Aristóteles até os mais modernos, como René Descartes, os filósofos tentaram responder a essa pergunta. Cada um a partir de suas teorias argumentou e justificou o seu pensamento acerca disso. A maioria deles defendia a ideia de um Ser do qual “desprendiam” seres, e, por sua vez, o Eu. Ao longo da história da humanidade, os homens se esqueceram do Ser e também do Eu. Com isso, crises de alteridade surgiram, assim como guerras e desastres humanos impensáveis se o pensamento tivesse seguido sua ordem e continuasse pensando o Eu. Com isso, esqueceu-se também do Outro, pois se o pensamento está voltado para o Eu de alguma forma acabará falando também do papel e da importância do Outro nas relações sociais e subjetivas que envolvem a alteridade. Com a “morte” da metafísica, por Kant, a preocupação com o Ser acabou. Para Levinas, no entanto, o pensamento sobre a alteridade não está esgotado, pois “a subjectividade não é um para si: ela é, mais uma vez, inicialmente para outro” (LEVINAS, 1982, p. 88). Nessa relação é que a filosofia pensa a “linha” de unidade, que, segundo esse autor, se chama responsabilidade. A partir dessa relação de alteridade, que expressa a preocupação com o outro, em que o outro possui importância para um Eu, é que Rubem Fonseca representa a falta de cuidado para com o Outro, o que, de fato, pode ser percebido nos relatos de violência da atualidade. Para Aristóteles, a relação faz parte das categorias fundamentais que dizem o Ser: “termos relativos que envolvem número e potência são todos relativos porque sua própria essência inclui [em

Graduado em Filosofia pelo Instituto Maria Mater Ecclesiae do Brasil; graduando em Letras Português/Inglês pela Universidade Feevale, onde atua como bolsista de Iniciação Científica, Brasil. E-mail: [email protected] ** Doutora em Letras e Linguística pela PUCRS, professora e pesquisadora do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais e do curso de Letras, da Universidade Feevale, Brasil. E-mail: [email protected] *

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sua natureza] uma referência a alguma coisa mais, mas não porque alguma coisa mais está relacionada à sua essência” (ARISTÓTELES, 2006, p. 154), porque todo ser tem intrinsecamente uma alusão a algo exterior a si mesmo, apenas uma referência sem dependência essencial de existência. Quando Levinas escreve sobre alteridade, ao contrário daquilo que os filósofos da Antiguidade defendiam, não parte da Ontologia, do Ser, mas da Ética. Disso decorre toda a sua teoria acerca do que é e como se dá a alteridade, que para ele seria o centro do pensamento moderno. “A condição ontológica [do ser humano] desfaz-se, ou é desfeita, na condição ou incondição humana. Ser humano significa: viver como se não se fosse um ser entre os seres. [...] ser diferente é ainda ser” (LEVINAS, 1982, p. 92). O conceito de alteridade nasce a partir do contato entre dois seres distintos: um Eu e um Outro, que devido a um reconhecimento mútuo, afinidades ou interesses se aproximam. Mais exatamente no movimento do desejo de ver o Outro é que o Eu sai de si para ir ao encontro daquele que está além de si. O movimento para o Outro que está além do Eu nasce do desejo que inquietou primeiramente o Eu. Na comparação entre dois seres diferentes, em que há a percepção de diferença, mas igualdade, enquanto seres pertencentes a um mesmo grupo, o Eu descobre-se. A descoberta subjetiva desse Eu não está vinculada a si mesma, ao contrário do pensamento cartesiano em que o Eu, a partir de si mesmo, se descobre e não precisa do outro. Ou seja, a saída-de-si, para Descartes, não é necessária, o Eu a partir dos seus sentidos é capaz de descobrir-se. O que René Descartes fez foi colocar no centro da “mente” (a substância pensante) o sujeito individual, constituído por sua capacidade para raciocinar e pensar, ou seja, o sujeito estaria no centro do conhecimento, não mais na periferia (cf. HALL, 2005, p.27). As posições do pensamento moderno mudam, assim como o que se pensava do universo e de Deus. O que Levinas defende é totalmente o oposto disso. O Desejo do Outro, que nós vivemos na mais banal experiência social, é o movimento fundamental, o elã puro, a orientação absoluta, o sentido. [...] O Outro que está diante de mim não está incluído na totalidade do ser expresso. Ele ressurge por detrás de toda reunião do ser, como aquele para quem eu exprimo isto que exprimo. Eu me reencontro diante do Outro. Ele não é nem uma significação cultural, nem um simples dado. Ele é primordialmente sentido, pois ele o confere à própria expressão, e é por ele somente que um fenômeno como o da significação se introduz, de per si, no ser. (LEVINAS, 1993, p.57).

Na relação de alteridade, o Outro tem papel fundamental para o autorreconhecimento do Eu, pois é o Outro, a partir da comparação, que vai dar sentido e significado ao Eu, este é enquanto ser pela existência do Outro. Com a aproximação do Outro, o egoísmo (EGO) é quebrado, pois, ao primeiro contato, o Eu torna-se responsável, inclusive pela responsabilidade que o Eu possui sobre o Outro. Essa relação intersubjetiva que existe na alteridade é uma relação não-simétrica, pois, por mais responsabilidade que o Eu possua sobre o Outro, este não possui responsabilidade sobre o Eu, mas o Eu se torna responsável até pela responsabilidade do Outro. E a responsabilidade acontece na medida em que o Eu se sente responsável: “[...] sou responsável de uma responsabilidade total, que responde por todos os outros e por tudo o que é dos outros, mesmo pela sua reponsabilidade. O eu tem sempre uma responsabilidade a mais do que todos os outros” (LEVINAS, 1982, p.91). Ora, a irresponsabilidade vai nascer a partir da tentação da facilidade de romper (ação baseada no egoísmo, em que não enxerga o Outro) a responsabilidade (limitada pela liberdade) para com o Outro. Esse pensamento nos leva a pensar o homem a partir da condição de refém de todos os Outros que estão próximos, pois eles limitarão a liberdade do Eu, assim como haverá um aumento de responsabilidade social pelos Outros. Daí se explica o esquecimento e a ignorância apresentada nos contos, que embora hipotéticos, ajudam-nos a pensar a sociedade contemporânea.

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2. OS CONTOS NOS OUTROS No conto Passeio Noturno – Parte I, de Rubem Fonseca, um rico empresário chega a sua casa cansado e exausto após um longo dia de trabalho. Sua mulher está no quarto bebendo e jogando paciência; seus filhos, cada um em seu quarto. Apenas a esposa se dá conta da chegada do marido. Ela percebe o cansaço do cônjuge e aconselha-o a relaxar, ele assim o faz e vai para a biblioteca para ficar isolado. Depois do jantar, o marido convida sua mulher para dar uma volta de carro, entretanto ele sabe que ela não vai. Durante o passeio de carro, o marido escolhe uma mulher para atropelar, deixando-a ensanguentada sobre o muro de uma casa. O marido retorna mais relaxado e vai dormir, pois, segundo ele, o dia seguinte será terrível na companhia em que trabalha. Logo no início do conto, é perceptível a falta de contato entre a família, pois a mulher fala com o marido sem olhá-lo e não há aproximação direta dos filhos com ele. A esposa demonstra preocupação por meio da expressão “você precisa aprender a relaxar” (FONSECA, 1989, p.61) e, segundo ela, a bebida ajuda a descansar. Mesmo assim, o empresário se isola e vai para a biblioteca, onde ele não faz nada: “eu esperava apenas” (FONSECA, 1989, p.61). Após o jantar, ele sai, como todas as noites, para passear com o carro. Ao receber o convite, a mulher diz que não vai, pois cada vez mais está se desapegando dos bens materiais. Todavia, ao chamá-la para sair, ele já sabe qual será a resposta, pois está na hora da novela. Quando sai de casa, o marido precisa tirar os carros dos filhos do caminho, o que o deixa mais irritado, mas assim que vê o seu fica orgulhoso, e o sentimento de irritação se transforma em euforia. O destino, todas as noites, era incerto, no entanto analisava bem em qual rua atropelaria uma pessoa, pois não podia deixar pistas. Para ele, homem ou mulher, não fazia diferença, apenas confessa que mulheres não têm muita graça, pois é mais fácil atropelá-las. Podemos relacionar o momento em que a personagem vê uma mulher na rua com o que Levinas chama de aproximação entre o Eu e o Outro. A personagem não se sente responsável, uma vez que não está imbuída de senso ético, pois, para ele, as pessoas na cidade são como animais, como moscas. Além disso, em sua casa, é possível perceber que não há responsabilidade entre os membros da família. Ninguém se preocupa de fato com o outro: os filhos falam com o pai apenas para pedir dinheiro; a mulher não pede, pois ambos possuem conta conjunta. A mulher, ainda, quando se aproxima do marido, não está interessada nele. Somente quer que ele relaxe, mas não se interessa em saber sobre o dia de trabalho ou algo do tipo. O único desejo que o empresário possui a respeito do Outro é de morte, de tirar a vida. O movimento do Eu para o Outro acontece neste conto, a diferença é que as intenções subjetivas presentes na personagem principal não são de responsabilidade. Talvez, ao pensar na sua condição, ao comparar-se com os seres diferentes de si, ele não consiga se reconhecer como semelhante do Outro, uma vez que o Outro não possui sentido nem significado para o empresário: como foi dito, as pessoas não são seres humanos, mas moscas que podem ser mortas, no caso, atropeladas por um carro previamente preparado para isso, pois possui para-choques saliente, com reforço especial de aço cromado. Ao pensar na teoria de Levinas, segundo o qual a responsabilidade do Eu pelo Outro se dá na revelação do rosto, entende-se porquê não há sentimento de responsabilidade pelo empresário. Ele é incapaz de ver o rosto nu e descoberto das pessoas, ele mal olha para quem está dentro de sua casa. Assim, sem sentimento algum de culpa, o empresário atropela uma mulher na rua. Ela não é descrita, apenas sabe-se que carregava um embrulho de papel. É atropelada e, com o impacto da batida, é jogada sobre um muro pequeno das casas. Quando retorna para casa, a família está assistindo televisão, a mulher pergunta se o marido está mais calmo, sem olhar para ele, que se despede dizendo que vai dormir, pois o outro dia será terrível na empresa em que trabalha. O vazio de sua existência, pautado pela não responsabilidade

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dos membros da família uns com os outros, é preenchido pela morte violenta desse outro desconhecido na rua. O desprezo pelo outro revela, na contramão, o desprezo por si mesmo, na medida em que o Eu se constitui na relação com o Outro. No mesmo sentido, Rubem Fonseca escreve o conto O Outro, que narra a história de um executivo ocupadíssimo que segue todos os dias a mesma rotina e está sempre sem tempo. No dia em que sentiu uma forte taquicardia, teve o primeiro contato com um sujeito que lhe pediu ajuda. O executivo deu dinheiro e foi ao médico, que lhe recomendou mudar de vida, pois sua saúde estava em risco. No dia seguinte, o mesmo sujeito abordou o executivo na rua, pedindo mais uma vez dinheiro. Nesse segundo encontro, o narrador descreve como era o sujeito: “um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos” (FONSECA, 1989, p.88). No outro dia, o mesmo sujeito, mais uma vez, aborda o executivo na rua pedindo mais dinheiro, agora dando a desculpa de que a mãe estava morrendo e que precisava de dinheiro para comprar remédios. O executivo deu mais dinheiro, e por alguns dias o pedinte sumiu, mas depois de um tempo ele reapareceu dizendo que a mãe havia morrido e que precisava de dinheiro para o enterro. Mais uma vez, o rico deu dinheiro e pediu que acabasse com tudo isso. O sujeito sumiu de novo, mas depois de alguns dias apareceu e seguiu o executivo pelas ruas, correu atrás dele e o segurou pelo braço. Este foi o quinto encontro, e o motivo foi o mesmo: mais dinheiro. Quando os dois estavam próximos, o executivo conseguiu ver bem o rosto do outro, “ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo” (FONSECA, 1989, p.89). Nesse contato, o empresário sentiu uma mistura de medo e nervosismo. Ao contrário do que haviam combinado, esse não foi o último contato, pois todos os dias ele surgia repentinamente pedindo ajuda. Com isso, o executivo pede um afastamento da empresa por dois meses, uma vez que aquela situação estava piorando a sua saúde. Após um tempo longe de tudo, a sua vida era outra. Contudo, um dia saiu de casa para dar sua caminhada e mais uma vez o homem apareceu pedindo dinheiro com a mesma promessa de que seria a última vez e que só tinha ele no mundo, mais ninguém. O executivo levou para sua casa o homem, que, segundo ele, era alto, forte e ameaçador, pois pegaria dinheiro para lhe dar. Deixou o homem esperando na frente de casa, entrou e, quando voltou, matou-o com um tiro na cabeça: “ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto, e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder” (FONSECA, 1989, p.90). Ao comparar os dois contos de Rubem Fonseca, percebe-se que a diferença entre as duas personagens principais está justamente no centro da teoria da alteridade de Levinas. O executivo do conto O Outro possui um senso de responsabilidade pelo Outro, que o empresário de Passeio Noturno – Parte I não possui, pois aos poucos o rosto do pedinte vai se revelando até o momento de sua morte; diferente do que acontece no primeiro conto, em que as pessoas que o empresário escolhe na rua para matar não olham para ele, não há contato, muito menos exposição do rosto e, por isso, ele não se sente responsável por elas, tendo o único desejo de matá-las. Mesmo que em ambas as narrativas tivessem um contato maior, as personagens seriam igualmente mortas, pois o senso de responsabilidade não é sentido, ele está unicamente relacionado à essência do homem. Desde que o outro me olha, sou por ele responsável, sem mesmo ter que assumir responsabilidades a seu respeito; a sua responsabilidade incumbe-me. É uma responsabilidade que vai além do que faço. Habitualmente, somos responsáveis por aquilo que pessoalmente fazemos. [...] Isto quer dizer que sou responsável pela sua própria responsabilidade. (LEVINAS, 1982, p. 88).

É nesse impasse que o executivo do segundo conto se encontra, pois se sente responsável pelo Outro, mesmo não tendo relação efetiva com o sujeito, percebe que, enquanto seres pertencentes à mesma espécie, um necessita do outro para ser. Nessa relação de proximidade, independente do

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espaço em que estão, o executivo sofre com a interferência desse sujeito estranho sem um rosto apresentado a si, ou incapaz de ver um rosto naquele sujeito que está diante de si todos os dias lhe pedindo ajuda. Talvez o executivo saiba dessa responsabilidade essencial que possui sobre o outro, por isso tenta sempre ajudá-lo, ou quem sabe na tentativa de apenas se ver livre daquele incômodo é que lhe dá dinheiro. Ao longo do conto O Outro, contudo, o rosto do pedinte vai se revelando, conforme o nível de medo que a personagem principal possui, sendo que o executivo consegue apenas vê-lo efetivamente no final, com a morte. No primeiro contato, o sujeito praticamente não é visto; no segundo encontro, o narrador tece as características do pedinte: um homem branco, forte e de cabelos compridos. Nos outros encontros, o executivo não o encara e nem o vê, mas no quinto encontro, após ter corrido com medo do pedinte, pela primeira vez ele o encara e vê bem como é o rosto do pedinte - cínico e vingativo. Neste ponto da narrativa, a responsabilidade entre as duas personagens já está estabelecida. Mais alguns encontros acontecem e revelam a identidade do sujeito que aborda todos os dias o executivo, possui hálito azedo e podre de alguém que está faminto, assim como é mais alto, forte e ameaçador em relação ao executivo. Mas é no final do conto que a verdadeira identidade do pedinte é revelada, pois com sua morte o executivo percebe que aquele homem não passa de um menino frágil, com espinhas no rosto, e tão pálido que nem o sangue consegue cobrir sua face. Ou seja, a relação de alteridade estabelecida entre as duas personagens é falsa, pois o executivo é incapaz de deixar seu medo de lado e ver de fato o pedinte. O rosto é o que não se pode matar ou, pelo menos, aquilo cujo sentido consiste em dizer: “tu não matarás”. O homicídio, é verdade, é um facto banal: pode matar-se outrem; a exigência ética não é uma necessidade ontológica. A proibição de matar não torna impossível o homicídio, mesmo se a autoridade da proibição se mantém na má consciência do mal feito – malignidade do mal. (LEVINAS, 1982, p.79).

Com a afirmação de Levinas de que o homicídio não é algo ontológico, mas ético, entendem-se os motivos de ambas as personagens principais matarem outras pessoas. Tanto o empresário quanto o executivo não conseguem ver no outro um ser humano, não há reconhecimento ontológico e ético, as personagens mortas são vistas como objetos que devem ser “tirados” do caminho. A própria família do empresário é evitada, não há olhares, muito menos reconhecimento mútuo, por medo de criar vínculos ou relações de dependência. A mulher do empresário, por exemplo, não pede dinheiro a ele, é independente, não precisa do marido. Quando se vê um nariz, os olhos, uma testa, um queixo e se podem descrever, é que nos voltamos para outrem como para um objeto. A melhor maneira de encontrar outrem é nem sequer atentar na cor dos olhos! Quando se observa a cor dos olhos, não se está em relação social com outrem. A relação com o rosto pode, sem dúvida, ser dominada pela percepção, mas o que é especificamente rosto é o que não se reduz a ele. Em primeiro lugar, há a própria verticalidade do rosto, a sua exposição íntegra, sem defesa. A pele do rosto é a que permanece mais nua, mais despida. A mais nua, se bem que de uma nudez decente. A mais despida também: há no rosto uma pobreza essencial; a prova disto é que se procura mascarar tal pobreza assumindo atitudes, disfarçando. O rosto está exposto, ameaçado, como se nos convidasse a um acto de violência. Ao mesmo tempo, o rosto é o que nos proíbe de matar. (LEVINAS, 1982, p.78).

O executivo não olha para os detalhes do sujeito que está diante de si, ele está sempre sem tempo, inclusive para o outro que se lhe apresenta. O rico só olha nos olhos do pedinte quando este o segura pelo braço, como que implorando que olhasse para ele e lhe desse atenção, pois não tinha mais ninguém no mundo que pudesse ajudá-lo. Mesmo assim, no final da narrativa, o executivo acaba matando-o, pois a exposição do rosto é direta, sem que o executivo o veja como realmente é, pois tem medo e mascara o outro. E só após eliminar quem o atrapalhava viu o verdadeiro rosto daquele não mais homem, mas jovem franzino.

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As duas personagens principais de Rubem Fonseca estão ambientadas em uma cidade, são asfixiadas pela rotina de seu trabalho, prova disso é que uma delas quase morre em decorrência da agitação de sua vida. O que o autor expõe em seus contos não passa, mais uma vez, de uma referência à realidade na qual o homem moderno está inserido, visto que, o traço fundamental do homem urbano se define em termos de um eu fragmentado. No curso de sua vida, ele se torna uma espécie de estrangeiro, que não se adapta à moldura familiar de identidade, à aparente fixidez social, mas passa necessariamente por uma experiência não linear, não sequencial. (GOMES, 2008, p.30)

Essas características que Renato Cordeiro Gomes apresenta são igualmente representadas nos textos de Rubem Fonseca. Um homem perdido no seu universo, num espaço que ajudou a construir, porém sem identidade certa e sem o seu ponto de equilíbrio. No contato com o Outro, perde-se ainda mais, pois não está acostumado a fazer o movimento de saída de si para ir ao encontro de outrem. São relações de alteridade falsas que não mais sustentam e não mais dão as bases para a construção da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nunca se falou tanto em preocupação social como nos últimos tempos, entretanto o que se percebe é que de fato não há essa preocupação com o individual. O homem está preocupado com as constantes crises coletivas e nacionais, mas parece que não se deu conta de que quem forma uma coletividade ou uma identidade nacional são os indivíduos que compõem esse grupo. A preocupação deveria estar voltada para o centro para quem de fato forma o coletivo, ou seja, o sujeito. Se partíssemos da premissa de que é o sujeito na relação com outros sujeitos que forma o coletivo, muitas das questões levantadas ao longo da filosofia – e por que não da literatura – já estariam resolvidas. O que se pretendeu fazer ao longo deste artigo foi analisar ambas as narrativas de Rubem Fonseca a partir da teoria de Levinas acerca da alteridade. Em outras palavras, pôr em contraste o modo como deveriam ser, segundo a filosofia, as relações humanas e o modo como a literatura, enquanto mímese da realidade, revela essas relações como diferentes. E diferentes, porque o homem esqueceu-se do outro como um igual. Pensar Rubem Fonseca é analisar um dos precursores da literatura dita marginal ou brutal1, que surgiu antes dos grandes títulos recentes, como Cidade de Deus, de Paulo Lins, Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, e Capão Pecado, de Ferréz. [...] Fonseca inaugura uma vertente que aponta para a construção de um novo mundo urbano como objeto ficcional, incluindo a denúncia e a crítica implícita de uma realidade autoritária e abandonando o “didatismo” político que até aquele momento caracterizava o realismo social mais engajado. Mas sob a cidade crua e brutal de Fonseca sempre se esconde a melancólica procura do objeto perdido, como o subtexto que motiva a representação afirmativa da violência urbana. (SCHOLLHAMMER, 2000, p.255).

Por fim, vale destacar que a literatura contribui para refletir sobre as relações de alteridade, em especial no tão conturbado e violento espaço urbano do Brasil contemporâneo sobre o qual ainda muito há que ser dito.

Não cabe aqui discutirmos os termos relativos a esse tipo de literatura.

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O CONCEITO DE INTRIGA COMO SUSTENTAÇÃO PARA O METAGÊNERO LITERÁRIO RICOEURIANO Bárbara Tortato* (UC) Na obra Tempo e Narrativa, de Paul Ricoeur, percebe-se que para criar-se a narrativa utilizam-se elementos que pertencem a um campo de pré-compreensão da ação, e que a ação dá sustentação ao ato de intrigar, isto é, que a poética busca na práxis sua ancoragem, e que a práxis serve, assim, de elemento de continuidade entre o regime ético da ação, e o regime poético da narrativa1. Propõe-se aqui perceber de que modo Ricoeur sugere que os elementos recolhidos da práxis devam se combinar para que formem uma totalidade significativa que possa ser chamada de narrativa2, e, principalmente, perceber que a configuração narrativa precisa ser compreendida enquanto função marcada pelo processo de combinar estes elementos: é o que vai ser chamado de “agenciamento dos fatos” e vai ser inspirado no que Aristóteles chamava de muthos. Ricoeur procura na Poética de Aristóteles a atividade deste agenciamento dos fatos através da configuração (muthos) do modelo da tragédia, mas, ao mesmo tempo, faz pensar as limitações desta proposta, apontando na própria obra da Poética saídas para resolver tais entraves. Faz isso, portanto, sem que sejam necessárias alterações radicais ao projeto aristotélico, mas amplificações no sentido da teoria da história e da narrativa de ficção encaminhando-as ao metagênero literário. Apenas após perceber de que modo se justifica o modelo de configuração como este processo que busca na práxis elementos que devem ser intrigados de modo a neles se inspirar (é o que vai definir a criação poética como uma mimese inspirada na práxis (mimèsis praxeôs)), é que se vai partir para o entendimento desta dinâmica do processo de criar esse muthos através da atividade de agenciamento de fatos. Portanto, na economia do presente trabalho procuraremos perceber, numa primeira parte, como se sustenta a atividade mimética pela qual acontece o muthos aristotélico (um muthos que acontece pela mimèsis praxeôs, isto é, que admite a práxis como um lugar donde se podem recolher referências a serem dispostas criativamente exigindo e justificando a leitura e participação do leitor neste processo que tem finalidade de melhor compreender o plano da ação – o que vai se contrapor à ideia platônica) para, num segundo momento, perceber de que maneira existe um embrião nesta própria concepção para que se pense o muthos como modelo para o gênero literário como um todo (metagênero), e não apenas para o drama trágico, que dá conta de agenciar os fatos em cada uma das formas narrativas. A dinâmica sustentada pelo muthos é um modelo de configuração que ainda engloba ambas as narrativas (de ficção e histórica), e Ricoeur o chama originalmente, em francês, de modelo de “mise en intrigue” (RICOEUR, 1983, p. 102) e não de “intrigue”, isto é, de “tessitura da intriga”, conforme a tradução brasileira de Tempo e narrativa, e não de “intriga”. Pode-se pensar também na nomenclatura “pôr em intriga” para se referir a esta configuração: o importante a se afirmar com ela é o caráter dinâmico, operacional, que a configuração ou composição suporta conforme a herança aristotélica3. A configuração precisa responder a uma função e o faz justamente por acontecer por um processo de disposição e não por ser um sistema a ser aplicado.

Mestre, Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: [email protected] “A própria palavra práxis, por sua dupla obediência, assegura a continuidade entre os dois regimes, ético e poético, da ação” (RICOEUR, TetR I, p. 78). 2 E que não seja apenas uma enumeração de elementos uns atrás dos outros em ordem sequencial. 3 Marcadamente, este processo de tecer uma intriga, que é a Mimèsis II, não é apenas um estágio intermediário entre a Mimèsis I e a Mimèsis III. * 1

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Ricoeur sugere, no segundo capítulo do primeiro tomo de Tempo e narrativa, que se pense conjuntamente o muthos e a mimèsis, isto é, o processo de agenciamento dos fatos e a atividade de imitação, ou, mais especificamente, a atividade de representação da ação. Esta quase identificação entre ambos é uma herança da filosofia aristotélica, e se torna possível apenas na medida em que se exclui “toda interpretação da mimese de Aristóteles em termos de cópia, de réplica do idêntico”. Percebe-se esta exclusão na medida em que se consideram estes dois componentes da narrativa como duas atividades, como dois processos ativos. Esta admissão é, simultaneamente, a renúncia à ideia de cópia e o consentimento de uma série de implicações dela decorrente. Dentre os gêneros de conhecimento, segundo Aristóteles, estão as ciências poiéticas que, conforme a palavra grega sugere, são as ciências produtivas. As ciências poiéticas não tratam de uma sabedoria adquirida pela experiência de repetição, capaz de identificar fatos, mas de uma sabedoria que atinge o conhecimento dos “porquês”, superando o puro dado4. Seus produtos são bens exteriores e, portanto, as ciências poiéticas visam o bem do objeto produzido e não um benefício próprio, isto é, são um saber que não é fim para si mesmo. As ciências com finalidade em si mesmas, por sua vez, são as da experiência, da práxis, da ação. Há produtos que têm uma finalidade utilitária e que, portanto, são pragmáticos; há também aqueles que não visam a utilidade: são as belas artes. As artes que complementam e se integram na natureza são as artes pragmáticas; as que imitam e reproduzem a natureza são as belas artes, que, para Aristóteles, “longe de reproduzir passivamente as aparências das coisas, quase recriam as coisas segundo uma nova dimensão” (RICOEUR, 1995, p 485). Por estes dois tipos de produto a ciência poiética se diferencia e diferencia seus modos de criar. Há aqueles produtos que, predominantemente de caráter utilitário, têm uma expectativa determinada quanto à sua forma e, portanto, são gerados a partir de procedimentos metodologicamente prenunciadores, procedimentos estes que dão origem à configuração de técnicas que podem ser repetidas e especializadas; e há aqueles produtos que não podem ser inteiramente predeterminados pela técnica, isto é, pelo saber fazer, porque são mais do que apenas um produto com uma utilidade determinada, com uma finalidade que cumpre toda sua função. Os primeiros produtos podem ser realizados a partir daquilo que, na Grécia Clássica, se chamava téchne. Percebe-se, contudo, que a poeisis não é inteiramente descrita quando se fala de um fazer repetitivo, reprodutivo, invariável. Este saber é característico do artesão, não do artista. “As obras de arte diferem do artesanato e seus congêneres por se constituírem em uma produção cujo modelo referencial para a sua realização não dita totalmente o resultado final” (TIBURI, 1995, p. 106). Quando se procura utilizar do processo de produção para extrair da matéria uma potencialidade reveladora rompe-se com a possibilidade de procedimentos de téchne. Neste caso fala-se de um procedimento não absolutamente determinado, não instrumentalizado. Quando se desvincula da téchne, a póiesis constitui-se num extrair a potencialidade da matéria, dando-lhe uma forma possível. […]. É uma exposição da verdade contida no material que não acontece através da sua dominação, mas através das descobertas ocorridas durante o processo (TIBURI, 1995, p. 108).

Esta aposta nos elementos contingentes não explora apenas o domínio racional sobre o produto, mas também uma dimensão incontrolável que podemos chamar “irracional”, que promove a inspiração, a criação5. Muito mais caracterizável pela dinâmica do que pela aplicação de uma regra, Cf. REALE, História da filosofia antiga, p. 484. “Platão admitia que o poeta submetia a palavra à harmonia do verso. Se a possessão divina realmente era, na verdade, apenas delírio psicológico, então mesmo este delírio producente continha em si regras técnicas – mesmo que não conscientes. A poesia dele resultante se dava pela póiesis que se estruturava através de regras básicas dadas externamente e à base da lógica contingente do material; algo (a linguagem) teria que estar dado de antemão – a produção nunca é completamente espontânea, nem completamente hétero-dirigida” (TIBURI, Crítica da razão mimèsis, p. 107).

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a poiesis do artista afirma o que a origem da palavra grega insinua: “as palavras terminadas pelo sufixo –sis, como poiesis, sustasis, Mimèsis, são substantivos abstratos com o traço semântico de “processo”, “ação”, “dinamismo”.” (SOARES, 2006, p. 144). Esta forma de criação é o que os gregos chamavam de mimèsis. Ao contrário de Platão, que centrava-se no metafísico, Aristóteles fundamentou-se na realidade empírica. A essência, para ele, deixa de ser transcendente e passa a ser substância imanente. A partir desta mudança, procurar-se-á entender a possibilidade de defender a criação poiética como modo de conhecimento. A própria ideia de produção vai mudar: como não mais vê-se necessário aproximar-se quanto mais possível de uma realidade metafísica para que se aproxime da única justificativa de criar uma obra de arte - que seria a de alcançar o Belo, ou o Justo -, não mais se prioriza a téchne como procedimento característico do artista. Não é mais necessário reproduzir a natureza fielmente. O sentido da palavra “natureza” em Aristóteles diz respeito à physis enquanto natura naturans, natureza produtiva, e não natura naturata, a coisa existente em essência. A questão não é a cópia da natureza exterior e ilusória, mas a apresentação de suas possibilidades imanentes (TIBURI, 1995, p. 105).

Considerando a physis enquanto uma natureza produtiva, isto é, cambiante segundo potencialidades, a produção que se fundamenta nela é também variante, representante de possibilidades e não de essências. A produção artística provoca uma nova experiência sobre o real, não necessariamente trazendo este real, mas provocando a irrealidade. É como surge o conceito de mimèsis. “A mimèsis se constitui na produção de outro saber que, ligado à realidade, não provoca o mesmo efeito que ela, justamente porque não a duplica” (TIBURI, 1995, p. 105). O conhecimento gerado pelo produto da mimèsis não é o da duplicação. Ela faz olhar a realidade segundo preceito de potencialidade, de criação, de mudança, provocando a possibilidade de dizer a realidade a partir da não-realidade. É de uma potencialidade que a própria physis oferece que se fala. É sobre a poética, em especial as artes dramáticas, que Aristóteles visa esclarecer na sua obra que poder-se-ia hodiernamente chamar de estudo estético, a saber, a Poética. É nela que Ricoeur vai se inspirar para recolher elementos para sua própria teoria. Ponto fundamental da obra para esclarecer o que constitui a mimèsis trágica é a afirmação de Aristóteles de que quando está tentando imitar o homem e a sua boa ou má aventurança, o poeta está, na verdade, imitando sua ação e sua vida, pois é por meio das ações que pratica que o homem atinge a felicidade ou a infelicidade. Note-se como se destaca a importância da ação para o desenrolar de uma trama: ela é o objeto do drama, que sustenta em si a boa ou a má índole do personagem. Traz-se à poesia trágica a ação, e não o caráter: “nas ações assim determinadas, tem origem a boa ou má fortuna dos homens” (ARISTÓTELES. 1991, VI 30 5-6). Não se pode ver outra senão esta condição para a poesia: a dinamização de fatos que se inspiram na ação para poder devidamente re-presentar a experiência humana. Por isso toda a mimesis é, necessariamente, mimesis praxeos. Esta dinamização, esta sunthesis, é o muthos. Muthos não é sistema, é o traçado, a disposição, o ordenamento do sistema. Isto é, o caráter propriamente operatório, interventivo, da criação poiética. Muthos é o complemento do verbo “compor”, “a poética é assim identificada, à arte de “compor a intriga”” (RICOEUR, 1983, p. 57), é o agenciamento dos fatos em sistema. A inspiração na ação que re-presenta a vida é a mimèsis. Mimèsis, da mesma forma que o muthos, não deve ser percebida como a própria imitação ou representação, mas como os processos, as atividades dinâmicas, de imitação e de representação. Um processo dinâmico que permite a transposição de um conteúdo para uma obra re-presentificadora. Portanto pode-se dizer que a mimèsis por excelência não é nem mesmo aquela que, enquanto dramática, precisa de um palco para se desenrolar; mas aquela que precisa dar voz a um universal

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e não a um particular, não a um fato que ocorreu com o autor, mas algo que poderia acontecer com o ser humano. Este, afinal, é o papel da mimèsis praxeôs: não falar sobre o que foi dado, um dado concreto, dado no cotidiano; mas sobre o que seria possível dar-se. Eis a distinção do modo de representação do drama para o modo de narração da epopeia: esta assume de forma direta, declarada, a voz do narrador enquanto autor implicado. A atitude de um narrador é distinta da atitude de um personagem agente. “Ou o poeta fala diretamente: nesse caso ele narra o que seus personagens fazem [epopeia]; ou então dá-lhes a palavra e fala indiretamente através deles: então são eles que “fazem o drama” (48 a 29) [drama]” (RICOEUR, 1983, p. 62). Por consequência, se a tragédia é superior por todas estas vantagens e porque melhor consegue o efeito específico da arte (posto que o poeta nenhum deve tirar da sua arte que não seja o indicado), é claro que supera a epopéia e, melhor que esta, atinge a sua finalidade. Não demoramos a perceber que Ricoeur não herda de Aristóteles a especificidade da intriga trágicamas “a quase identificação entre as duas expressões: imitação ou representação da ação e agenciamento dos fatos” (RICOEUR, 1983, p. 59). que quase se identificam porque o agenciamento dos fatos faz a representação da ação. Ricoeur não acredita que se impeça a possibilidade de reunir tanto epopeia quanto o trágico sob um gênero comum de narrativa, ao invés de dar ao drama o papel principal nesta categorização. Ambas as formas de representação podem estar sob a mesma categoria porque não deve ser pelo modo (de atitude do autor) de trazer um tema a uma intriga que deve-se medir um modelo, mas pelo objeto, pelo tema, pelos fatos que vão ser dispostos. Resume Ricoeur: “a distinção proíbe-nos de reunir epopeia e drama sob o título de narrativa? De modo algum” (RICOEUR, 1983, p. 62). As diferenças entre drama e epopeia são progressivamente atenuadas pelo próprio Aristóteles. Não tarda ele mesmo a ressaltar que as duas características exclusivas do drama lhes são próprias mas não o definem. O drama se realiza pela arte poética de um narrador que fala indiretamente pelo diálogo de atores que representam ações. “O espetáculo, em particular, é de fato uma “parte” da tragédia, mas “é totalmente estranho à arte e não tem nada a ver com a poética, porque a tragédia realiza sua própria finalidade sem concurso e sem atores (50 b 17-19)” (RICOEUR, 1983, p. 63). O drama realiza-se, assim sendo, pela poética antes de ser levado ao espetáculo. A finalidade da tragédia é atingida independentemente de esta ser levada ao movimento dos atores no palco. Pode ser justamente levada à excelência pelo modo como se leva a epopeia, isto é, pela sua leitura. É por esta razão que Ricoeur considera tanto drama quanto epopeia sob a mesma atividade de disposição de fatos, porque ambos fazem-no, ambos intrigam fatos, dispõem fatos ao seu modo – um por meio da reprodução teatral, outro pela reprodução mental. Portanto cabem drama e epopeia sob o mesmo gênero de narrativa. E coincide narrativa com o que Aristóteles chama muthos. O que expande a possibilidade de o modelo narrativo por excelência não ser apenas o modelo do drama trágico, mas também a epopeia, é o fato de ambos os estilos compartilharem o traço fundamental de configurar suas intrigas pela dinâmica da mimèsis praxeôs. Tanto drama quanto epopeia suspendem a práxis para criar a literalidade – porque o texto intercepta a referência direta e imediata. Disto se pode chegar a um metagênero literário, que cumpre a função de englobar as diversas formas (o “como” é configurado o drama ou a epopeia) de variar sobre o conteúdo (o “que” é configurado por cada um deles).

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REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. In: ______. Coleção os pensadores. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1991. PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Rio de Janeiro: Ed Vozes, 2010. PLATÃO. Íon. Tradução de Victor Jaboouille. Lisboa: Ed. Inquérito, 1988. REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Vol II. São Paulo: Loyola, 1994. RICOEUR, Paul. Temps et Récit I: L’intrigue et le récit historique. Paris: Seuil, 1983. ______. Temps et récit III: Le temps raconté. Paris: Éditions du Seuil, 1985. ______. Mimèsis, référence et refiguration dans Temps et Récit. In: Études phénoménologiques, Tome VI, nº 11. Ed. Ousia, 1990. ______. Réflexion faite: Autobiographie intellectuelle. Paris: Éditions du Seuil, 1995. ______. A metáfora viva. São Paulo: Ed. Loyola, 2000. ______. Être, essence et substance chez Platon et Aristote. Paris: Éditions du Seuil, 2011. ______. Do texto à acção. Porto: Ed. Rés. SOARES, Martinho Tomé Martins. Tempo, mythos e práxis: o diálogo entre Ricoeur, Agostinho e Aristóteles. Coimbra, 2006. TIBURI, Marcia. Crítica da razão e mimèsis no pensamento de Theodor W. Adorno. Porto Alegre: Edipucrs, 1995.

O MACHISMO NAS PROPAGANDAS DE CERVEJA DESVENDADO PELA PERSPECTIVA DO DISCURSO PUBLICITÁRIO Bianca M. Q. Damacena* (UPF)

O presente artigo tem como objetivo analisar uma propaganda veiculada na televisão, no ano de 2013, sob o ponto de vista da teoria Semiolinguística de Patrick Charaudeau a fim de encontrar elementos que indiquem prática de machismo por parte dos publicitários que criaram a propaganda. Os casos de machismo ainda são muito frequentes na sociedade como um todo, mesmo estando em pleno século XXI e entendendo que as mulheres já tenham conquistado boa parte de suas reivindicações desde os primeiros momentos em que se propuseram a lutar por direitos. Ainda são inúmeros os casos de violência física, psicológica e emocional denunciados diariamente, e por isso, ainda não é possível dizer que o machismo é uma questão superada. Inclusive, a televisão com suas propagandas e programações que contribuem para a estereotipação da mulher como objeto sexual, demonstra que a sociedade ainda não superou este problema. Dessa forma, e na tentativa de ajudar que o debate sobre a violência contra a mulher se intensifique, o presente artigo se ocupa de analisar o discurso das propagandas das cervejas Nova Schin e Devassa, tentando provar a partir da teoria Semiolínguística de Patrick Charaudeau, que se tratam de propagandas machistas. A teoria Semiolinguística foi escolhida por se tratar de um ramo da linguística que estuda os discursos sob a perspectiva dos sujeitos envolvidos. Charaudeau, inclusive, dedica uma boa parte de seus estudos ao discurso publicitário, mostrando suas particularidades frente a outros tipos de discurso, o que aqui neste artigo será bem utilizado, principalmente, no decorrer da análise. O artigo está divido em duas grandes seções. A primeira explana sobre a teoria Semiolinguística, mais precisamente sobre o Contrato Comunicacional. Já a segunda seção se ocupa da análise de uma propaganda, fazendo uma breve explanação sobre representação social e machismo.

1. CONTRATO COMUNICACIONAL: UMA PERSPECTIVA SEMIOLINGUÍSTICA Patrick Charaudeau explica que o modelo comunicacional de análise do discurso gira em torno de três competências e três estratégias. A depender da escolha de um ou de outro, é possível obter características acerca da identidade dos sujeitos envolvidos, do tipo de discurso a ser utilizado, entre outras. De acordo com Charaudeau (2009) as competências são: comunicacional (diz respeito ao sujeito e sua competência em reconhecer as estruturas e as restrições da situação de comunicação. É nesta competência que se constituem as características da identidade social dos sujeitos envolvidos, bem como as relações estabelecidas entre eles. A partir do reconhecimento dessas particularidades, surge o que se chama legitimidade, ou o “direito à palavra”); semântica (estabelecida a partir do sujeito em relação à sua aptidão para organizar os diferentes saberes para, enfim, classificá-los em temas); discursiva (trata das possibilidades de organização enunciativa, narrativa e argumentativa do discurso que são estabelecidas dependendo das restrições da situação comunicacional). Charaudeau (2010b) acredita que é através de um “contrato de comunicação” que a prática linguageira acontece. Isto é, a interação entre os sujeitos do discurso depende de um acordo firmado

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Mestre em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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entre eles acerca das normas, convenções, que vão permitir a comunicação. Trata-se de um acordo de cooperação ligando os parceiros, atribuindo a cada um deles um papel (locutor ou interlocutor) e definindo restrições e estratégias a serem seguidas, dadas as condições, ou circunstâncias em que o discurso é produzido. Nas palavras de Charaudeau: Essa situação-contrato de comunicação dá “instruções discursivas” ao sujeito falante para realizar seu ato de fala. Se ele quer ser compreendido por seu interlocutor, deve respeitar essas instruções; Mas o contrato e as suas instruções não sendo o todo do ato de linguagem, é necessário ao sujeito falante usar de estratégias discursivas para ser crido e para captar seu interlocutor (“credibilidade” e “captação”) (CHARAUDEAU, 2010b p. 1-2)

Nesse sentido, as restrições são as condições às quais os parceiros devem se submeter para que se entendam um ao outro e, por sua vez, as estratégias compreendem as diversas formas de configurações discursivas de que o sujeito falante tem à sua disposição para cumprir as condições do contrato e realizar as suas intenções. O autor aponta ainda que as estratégias discursivas tratam, para o sujeito, “de avaliar a margem de manobra de que dispõe no interior do contrato, para jogar entre, e com, as restrições situacionais e as instruções de organização discursiva e formal” (CHARAUDEAU 2010b p. 7). Depois, as estratégias são utilizadas para escolher um modo de organização do discurso e de construção textual, tendo como base os variados conhecimentos de que o sujeito falante dispõe a fim de melhor influenciar seu interlocutor. São elas: 1) Legitimação – surge da necessidade de reforçar a posição de legitimidade do locutor quando este precisa persuadir seu interlocutor a acreditar que ele tem autoridade para falar de tal assunto; 2) Credibilidade - “levam o sujeito falante a não mais assegurar sua legitimidade, mas fazer crer ao interlocutor que o que ele diz é ‘digno de fé’” (CHARAUDEAU, 2009 p. 7); 3) Captação – quando utilizada faz com que o interlocutor “compre a ideia” defendida pelo locutor. É uma adesão não racional e resulta também no respaldo ao locutor. Para além disso, a Teoria Semiolinguística de Charaudeau postula que a significação discursiva é uma consequência dos fatores lingüístico e situacional, e que também resulta da interação entre as instâncias de produção e interpretação do discurso, como mostra a Figura 1 abaixo. Figura 1 – Circuito Comunicacional de Patrick Charaudeau

Fonte: CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso: modos de Organização, p. 52. 2010c.

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Na Figua 1, é possível perceber uma interrelação entre os espaços de produção de sentido, ou circuito interno (linguístico), e o circuito externo (situacional), bem como uma interrelação entre os espaços de produção (EU) e interpretação (TU). Tais instâncias são duplas, pois englobam os chamados parceiros, ou seres psicossociais (o sujeito comunicante e o sujeito interpretante) e os protagonistas, ou seres de fala (o sujeito enunciador e o sujeito destinatário). Para Charaudeau (2010a), ao analisar um discurso, é preciso observar os envolvidos como atores em uma encenação. Para esta encenação, o autor acredita que sempre haverá uma relação de influência resultante da tomada de consciência de um “eu” e um “tu”, um tentando influenciar o outro através de seu discurso. É por isso que todo ato de linguagem acontece em um evento de comunicação padronizado que é composto pela expectativa da troca e pela presença das restrições que definem a posição de legitimidade em que os sujeitos ganham ou não o direito à fala. No entanto, Charaudeau (2010a) pondera: […] como a legitimidade não é o todo do ato de linguagem, é preciso que os sujeitos falantes ganhem em credibilidade e saibam captar o interlocutor ou o público. Ele é, então, levado a apostar na influência, se valendo de estratégias discursivas em quatro direções: 1) o modo de estabelecimento de contato com o outro e o modo de relação que se instaura entre eles; 2) a construção da imagem do sujeito falante (seu ethos); 3) a maneira de tocar o afeto do outro para seduzi-lo ou persuadi-lo (o pathos) e 4) os modos de organização do discurso que permitem descrever o mundo e explicá-lo segundo princípios de veracidade (o logos) (CHARAUDEAU, 2010a p. 58, 59).

Dessa forma, volta-se à questão da importância das estratégias em que se pode entender que a formação de uma imagem do sujeito falante está vinculada à necessidade deste em ser considerado uma pessoa digna de ser ouvida, de ter sua legitimidade reconhecida. Trata-se de um processo de identificação que exige do sujeito falante a construção de uma imagem que atraia seus interlocutores (ethos). Além disso, ainda existem as estratégias de chamar atenção do interlocutor. Charaudeau (2010a p.60) explica que para conseguir isso, o locutor faz uso de “estratégias discursivas que focam a emoção e os sentimentos do interlocutor ou do público de maneira a seduzi-lo”, como numa armadilha (pathos). A situação de comunicação, então, é o espaço onde as instruções que resultam na expectativa de troca acontecem. Por instruções, entende-se a identidade dos parceiros, o lugar que ambos ocupam na troca, a finalidade desta troca, o propósito que pode ser evocado e as circunstâncias materiais em que a troca acontece. O autor ainda coloca que “não podemos dissociar estes componentes uns dos outros, e que é conjuntamente que eles contribuem para definir a expectativa da comunicação” (CHARAUDEAU, 2010b p. 2). Sobre a finalidade, trata-se de um componente que determina a orientação discursiva da troca comunicacional, dependendo do seu tipo. Para o autor, a finalidade equivale a uma intencionalidade de natureza psico-sócio-discursiva, pois, para além da sua ancoragem situacional, ela se orienta pela pragmática do ato linguageiro. Por isso, a finalidade determina a expectativa da comunicação entre os parceiros eleitos. Ela deve ser reconhecida tanto pelo locutor como pelo interlocutor, sendo que o primeiro já a tem em mente a partir da perspectiva de um parceiro comunicacional ideal. Com efeito, a finalidade gera expectativas dependendo da escolha de cada um desses três aspectos: 1) a intenção pragmática do “eu” diante do “tu” 2) a posição de legitimidade do “eu” 3) a posição que, ao mesmo tempo instaura para o “tu”. A partir dessas três formas, constituem-se três tipos de visada. A primeira, a visada da prescrição é caracterizada pela posição de autoridade em que se encontra o “eu” do discurso. Portanto, ele está legitimado a querer fazer fazer algo a “tu”. E o “tu, nesse caso, está na posição de dever fazer. É o caso dos regulamentos, ou do discurso da lei. A segunda visada é a da informação. Nela, o “eu”

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quer fazer saber algo a “tu”e aqui ele se encontra legitimado pela posição de saber, ter reconhecido o seu conhecimento sobre algum assunto. O “tu” fica com a posição dever saber. E por fim, a visada de incitação, mais característica do discurso publicitário e alvo de análise deste artigo. Nela, o “eu” quer fazer fazer alguma coisa a “tu”, exatamente como na visada de prescrição, só que, neste caso, o “eu” não tem autoridade e por isso ele apenas incita a fazer. De acordo com Charaudeau (2010a p. 63) “ele deve, então, passar por um fazer crer a fim de persuadir o “tu” de que será o beneficiário do seu próprio ato, de modo que este aja (ou pense) na direção desejada por “eu””. O “tu” fica com a posição de dever crer no que lhe é dito. Encerra-se aqui uma breve explicação sobre o contrato comunicacional. A seguir, a seção 3 trata de analisar a propaganda selecionada afim de estabelecer, a partir do contrato comunicacional de Charaudeau, se se trata de propaganda machista ou não.

2. ESTERIÓTIPO DA MULHER EM PROPAGANDAS DE CERVEJA: UMA QUESTÃO DE MACHISMO Quando se fala em machismo, é importante ter em mente que se trata de uma conduta social que coloca mulheres em condições inferiores aos homens. Por exemplo, há situações em que para o mesmo cargo, mulheres recebem salários mais baixos (PNAD 2012); hoje no Brasil, a cada dia, 15 mulheres morrem vítimas de violência doméstica (IPEA, 2013). Não se trata apenas de violência, mas sim de violência contra a mulher pelo simples fato de ser uma mulher. E também, não se trata apenas de violência física, mas psicológica e emocional. Este é o caso de certos anúncios, tanto de TV como de revistas, entre outros, quando utilizam da imagem feminina sexualizada para auxiliar na venda de determinado produto. Dessa forma, e na tentativa de ajudar que se intensifique o debate sobre a violência contra a mulher, esta seção do presente artigo se encarrega de analisar o discurso de duas propagandas de cerveja, tentando provar a partir da teoria Semiolinguística de Patrick Charaudeau, que se tratam de propagandas machistas. A propaganda a ser analisada é a da cerveja Nova Schin, que pode ser acessada no site YouTube. O vídeo mostra cinco homens, escorados no balcão de um quiosque de praia. Todos eles estão com uma lata da cerveja e observam o movimento das pessoas. Quando passa uma mulher considerada bonita para os padrões estéticos estabelecidos hoje em dia, eles emitem sons demonstrando que aprovam o que veem. Até que um deles se pergunta: “E se a gente fosse invisível?”. Em seguida, a cena muda para o que se pode considerar a realização do sonho dos personagens, ou seja, ser invisível. Podem-se ver apenas as latinhas de Nova Schin flutuando e uma série de acontecimentos que deixam as pessoas na praia sem entender o que se passa. Todos os eventos estão ligados às mulheres da praia. Eles passam a mão no corpo delas, enganam um rapaz fazendo-o parecer bobo frente à amiga, ou namorada e, por fim, entram em um banheiro feminino do qual as mulheres que lá estavam saem correndo, gritando desesperadas. Trata-se de um comercial bastante polêmico entre os movimentos sociais feministas porque ele pratica de diversas formas o que se chama “violência simbólica de gênero”. Acerca deste tipo de violência, trata-se de constrangimentos morais impostos sobre o feminino e o masculino, que são representações sociais de gênero. Denise Jodelet (2002) afirma que as representações sociais são “uma forma de conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2002 p.22). Tomando-se como base tal perspectiva, pode-se dizer que as representações sociais são pontos de vista construídos a partir de um dado ponto no espaço social, temporal, etc. No entanto, trata-se de um, e apenas um, ponto de vista, reduzindo-se, assim, a realidade.

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O discurso, então, como prática social, corrobora para que as representações sociais aconteçam, principalmente por estar atrelado a um contexto sociocultural e histórico, carregado de ideologia e poder. Sabrina Cruz (2008) coloca que: Como toda ação, os discursos são maneiras dos agentes sociais atuarem no mundo e, igualmente sobre os outros, além de serem uma forma de representação, ou seja, uma significação da realidade, instituindo e construindo a realidade através de significados. Em um movimento relacional dialético os discursos são marcados pelas estruturas sociais e, as estruturas sociais produzem os discursos. (CRUZ, 2008 p. 7)

Por se tratar, então, de uma sociedade que tolera valores machistas, o discurso publicitário das propagandas de cerveja acaba por repetir o machismo que está marcado pelas estruturas sociais e dominantes. Dessa forma, quando se aborda a questão dos gêneros, é possível observar a figura do masculino e do feminino, e como elas se dão na sociedade, por fora dos anúncios. O que se percebe é que tanto em um como no outro, a representação social feminina é a mesma: não há igualdade entre os gêneros, e a mulher é sempre representada como um ser inferior, como objeto de desejo que deve servir ao homem. Para Sardenberg: Temos que nos submeter a determinados rituais, muitas vezes diários, para nos tornarmos mulheres (ou homens) segundo os ditames da sociedade em que vivemos e, assim, definirmos, aos nossos olhos e aos dos outros, a nossa identidade de gênero. E tudo isso, é lógico, acompanhando os padrões vigentes de estética impostos aos respectivos gêneros, padrões esses que variam no tempo e no espaço, tanto geográfico quanto social (SANDENBERG, 2002 p. 59).

Na sociedade capitalista e patriarcal em que se vive hoje em dia, tornaram-se comuns, entre outros, as piadas, músicas, filmes e comerciais que reproduzem e propagam representações sociais por vezes estereotipadas e constrangedoras de mulheres como objeto sexual, como é o caso da propaganda da Nova Schin, descrita acima. Para além da constatação óbvia de que existe violência simbólica de gênero neste anúncio, a teoria Semiolinguística de Charaudeau pode ser aplicada de maneira a comprovar que se trata, sim, de uma propaganda machista. Primeiramente, é preciso lembrar que o discurso publicitário segue alguns critérios. Charaudeau (2010b) coloca que a situação comunicacional de um anúncio publicitário tem três instâncias, a saber, a instância publicitário, que neste caso criou a propaganda para a cerveja Nova Schin; a instância concorrente, que são as outras marcas de cerveja e a instância público que é o telespectador. Esse por sua vez, não necessariamente é considerado o comprador de cerveja, uma vez que nem todos que sentam em frente a uma TV estão ali para assistirem às propagandas. Com relação a isso, entende-se, então, que são dois tipos de instância público: o “consumidor comprador potencial” e “consumidor efetivo de publicidade” (CHARAUDEAU, 2010b). O primeiro é aquele que o anúncio deve “fazer crer” que ele precisa de algo. O segundo é somente alguém que aprecia a propaganda. Dessa forma, e considerando que são apenas 31 segundos de propaganda, o publicitário responsável por ela tentou usar de “bom-humor” para chamar atenção de ambos tipos de instância público. Para o caso da propaganda analisada neste artigo, pode-se dizer que o “comprador em potencial” ideal é um homem e este fato pode ser comprovado por elementos discursivos que rodeiam o discurso publicitário. O primeiro deles diz respeito ao fato de que este telespectador não é apenas um comprador, mas considera-se que a ele falta algo e, portanto, ele precisa realizar um desejo. Além disso, Mello (2006) coloca que o publicitário “deve fabricar uma imagem do destinatário suficientemente sedutora, a fim de que o sujeito interpretante possa com este se identificar” (p. 247). Ao analisar o anúncio da Nova Schin o objeto de desejo não é tão palpável como o de uma propaganda de um carro que promete velocidade, por exemplo. No caso da propaganda da cerveja, o desejo está na pergunta que os personagens, todos masculinos, se colocam: “E se a gente fosse invisível?”.

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A continuação da propaganda também corrobora para que se perceba que o público-alvo dos publicitários da Nova Schin é masculino. Como descrito anteriormente, a cena posterior à pergunta que define o objeto de desejo mostra cinco latinhas flutuantes (mesmo número de homens do início da propaganda) fazendo coisas que deixam as pessoas sem entender o que está acontecendo. Eles passam a mão em duas mulheres que estão se dirigindo ao mar e entram em um banheiro feminino. Como dificilmente mulheres teriam esse desejo caso fossem invisíveis, só resta acreditar que foi uma propaganda direcionada para o público masculino mesmo e aqui não significa que todo homem tenha esse mesmo desejo, mas ainda assim existem casos suficientes de machismo na vida real para dar respaldo à propaganda. Afinal, as representações sociais estereotipadas dos comerciais de TV são a reflexão de padrões pré-estabelecidos socialmente. Tais estereótipos passam despercebidamente pelos espectadores, pois estes não veem necessidade de questioná-los, já que também se apoiam no senso comum. Para além da escolha do público-alvo masculino, que por si só já é bastante machista, afinal, mulheres também gostam de beber cerveja, a proposta de realização do desejo feita pela propaganda também tem sua parcela de machismo. Charaudeau (2010b) coloca que o discurso publicitário age de forma a fazer com que o produto passe a ser o auxílio que faltava para que a instância público consiga realizar seu sonho. Ora, no caso da propaganda, foi constatado que o sonho é se tornar invisível e poder fazer o que quiser. Em todas as cenas, os “invisíveis” estão com latinhas de Nova Schin nas mãos realizando seus sonhos de bulinar mulheres sem serem vistos. Existe aqui, mais um aspecto machista que coloca a mulher como um objeto sexual. Nessa propaganda a situação ainda piora, porque não se trata apenas da sedução ou sensualização do corpo feminino, mas da invasão propriamente dita, já que nenhuma delas consentiu que fosse tocada, ou observada enquanto trocava de roupa no banheiro feminino, o que pode ser comprovado pelas imagens que mostram todas elas sem entender o que está acontecendo ou saindo desesperadas do banheiro invadido. A partir da análise feita acima, pode-se perceber que o discurso publicitário toma imagens, slogans e personagens famosos para construir estereótipos da mulher sob a ótica masculina, machista, constituindo assim violência simbólica de gênero. Além disso, propagandas de cerveja em geral, mas especialmente a analisada neste artigo evidenciam o corpo da mulher como um objeto de consumo que vem junto com a compra do produto (é possível fazer o que quiser quando se é invisível, não importando se se trata de uma pessoa e se ela quer ou não aquilo). Isto só acontece porque o discurso publicitário dá significado pros acontecimentos da sociedade, assim como se baseia no que a sociedade apresenta como sendo uma verdade incontestável e que não precisa ser derrubada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo tratou do Contrato Comunicacional proposto por Patrick Charaudeau e como ele funciona para o discurso publicitário. A partir dos estudos feitos, foi possível perceber que o contrato comunicacional funciona quando os parceiros comunicantes respeitam as regras desse contrato que estão na situação comunicacional, nas restrições e nas estratégias usadas por ambos para conseguir que a troca de função aconteça. O discurso publicitário diferencia em alguns aspectos como, por exemplo, a questão da troca de função. Esta não existe porque os parceiros não estão se comunicando em tempo real. Para os anúncios de TV, essa diferenciação é ainda mais latente, visto que a equipe publicitária precisa idealizar um público-alvo ideal e ainda lidar com adversidades do tipo curto espaço de tempo para passar a mensagem. Neste artigo, a proposta foi de analisar duas propagandas de cerveja, das marcas Nova Schin e Devassa, nas quais identificaram-se, a partir da descrição do discurso publicitário de Charaudeau,

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elementos que estereotipavam as mulheres como objetos sexualizados, constituindo, assim, prática machista. Uma sugestão para futuros projetos que se faça a análise de propagandas voltadas para o público feminino a fim de identificar se há ou não cultura machista também nesse meio e se tem como modificar o discurso desses anúncios de forma a não mais estereotipar o gênero feminino.

REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, Patrick. Identidade social e identidade discursiva: o fundamento da competência comunicacional. In: PIETROLUONGO, Márcia (org.). O trabalho da tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. ______. O discurso propagandista: uma tipologia. In: MACHADO, Ida Lucia; & MELLO, Renato. (orgs.). Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010a. v. 3. p.57-77 ______. Uma problemática comunicacional dos gêneros discursivos. Rev. signos, vol.43 2010b. ______. Linguagem e Discurso: modos de organização. 2a edição. São Paulo: Contexto, 2010c. CRUZ, Uzêda Sabrina. A representação da mulher na mídia: um olhar feminista sobre as propagandas de cerveja. Revista Travessias, Paraná, Vol. 2, N° 2. 2008. IPEA – Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/ Acesso em: 15 mar 2014 JODELET, Denise. As representações Sociais. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002. MELO, Mônica Santos de Souza. Gêneros e Representações sociais: a publicidade na mídia televisiva. In: EMEDIATO, Wander, MACHADO, Ida Lúcia, MENEZES, William (Org.). Análise do discurso: gêneros, comunicação e sociedade. Belo Horizonte: Núcleo de Análise do Discurso. Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos. Faculdade de Letras da UFMG, 2006. NOVA SCHIN - COMERCIAL DO HOMEM INVISÍVEL NA PRAIA. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=8T6XQhLgO20. Acesso em: 17 mar. 2014. PNAD Após dez anos em queda, diferença salarial entre homens e mulheres aumenta – Disponível em: < http://noticias. uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/09/27/pela-1-vez-em-dez-anos-diferenca-salarial-de-homens-e-mulheres-aumenta.htm> Acesso em: 14 mar. 2014 SARDENBERG, Cecília. A mulher frente à cultura da eterna juventude: reflexões teóricas e pessoais de uma feminista “cinquentona”. In: FERREIRA, Silvia Lúcia. NASCIMENTO, Enilda Rosendo do. (org.). Imagens da mulher na cultura contemporânea. Salvador: NEIM/ UFBA, 2002, p.51-68. (Coleção Bahianas, v. 7).

#VEMPRARUA: LINGUAGEM, PODER E JORNALISMO Bibiana de Paula Friderichs* (UPF) Maria Joana Chaise** (UPF)

“Para dizer-se homem, o homem precisa de uma linguagem, isto é, da própria cultura”. Embora o trecho encontrado no ensaio A paz cultural, de Roland Barthes (1988, p.105), seja breve, seu axioma guarda uma imensurável trama de perspectivas inquietantes acerca da dialógica entre o lugar do sujeito e o Discurso, no diligente jogo de constituição dos cenários histórico-sociais aos quais estão ligados. O homem se constitui na linguagem, e os textos em circulação são espaços de realização da sua subjetividade, não apenas porque constrói este ou aquele significado na medida em que é atravessado pelos signos, mas pelas vicissitudes próprias do trabalho de significação, que o colocam diante do caleidoscópio da alteridade. A linguagem não lhe confere só identidade; mais do que isso, confere-lhe existência. É como se o Discurso nos mantivesse invariavelmente frente a um espelho cujo reflexo, embora possa ser reconhecido como igual (um duplo), não é o mesmo (porque é o outro, que nos reconhece e, por ser diferente de nós, dá tangibilidade a essa distinção). Assim, a linguagem também é produto de um contrato coletivo e diacrônico, matéria prima na tecelagem da comunicação. Sob esta perspectiva, é certo que existe uma constate individual de linguagem, a que Barthes (1988) chama de idioleto (tomando emprestada uma noção de Saussure). Trata-se da tensão que todo sujeito enfrenta ao fazer valer a sua palavra (aqui compreendida num sentido amplo), “para não ficar completamente sufocado pela linguagem do outro”, (p.111). Mas como essa linguagem foi tecida? O autor pondera (para além do empréstimo) que mesmo sendo a linguagem o lugar onde se efetiva a subjetividade absoluta, particularmente no que tange ao Discurso (ao produzi-lo ou acessar o do outro), ela também é o lugar da realização de formas transindividuais. Na sua tessitura se desenvolve um jogo afinado às regras da cultura, que fornece uma lista de códigos, convenções, protocolos e estereótipos conduzindo-o, como quem dispõe de peças numa partida de xadrez sem vencedores. E tudo é cultura: “da roupa ao livro, da comida a imagem, a cultura está por toda parte, de uma ponta à outra das escalas sociais” (p.105). No entanto, apesar dessa ubiquidade, não é possível apanhá-la plenamente; qualquer descrição seria restritiva - como a desta escritura - porque nada lhe é exterior, não há restos na cultura; e seus elementos dispersos nos cenários sociais, estão presentes na maneira como falamos (ou nos nossos silêncios), na nossa sintaxe, no entrelaçado que fazemos dos signos, de tal modo que, “não podemos passar para o não discurso porque o não discurso não existe” (1981, p.159), uma vez que ele é metonímia da cultura (e, destarte, da linguagem, onde esta cultura se materializa). Compreender tal dinâmica equivale a apontar para a problemática com a qual nos surpreendemos envolvidos: uma vez que a linguagem é parte do que é o homem, e, em tempo, é fundada pelo atravessamento de todos os textos que ele acessa ao longo da vida, ou seja, da cultura construída pelos grupos sociais aos quais está conectado; podem existir tantas linguagens quantos forem os grupos existentes; o que faz delas linguagens sociais. E, por isso, ainda que a cultura esteja aí “por toda a parte e para toda a gente”, como observa Barthes (1988, p.107) “sem infelicidades aparentes”, em seu úbere se aninha uma guerra: “as nossas linguagens se excluem umas às outras: numa socie-

Doutora pela PUCRS, professora dos cursos de Jornalismo e Publicidade da Faculdade de Artes e Comunicação, da Universidade de Passo Fundo. E-mail: [email protected] ** Mestre pela UNISINOS, professora do curso de Jornalismo da Faculdade de Artes e Comunicação, da Universidade de Passo Fundo. Email: [email protected] *

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dade dividida (pela classe social, o dinheiro, a origem escolar), a própria linguagem divide” (p.106); e para o autor, sua divisão mais simples diz respeito à relação da sociedade com o Poder. Uma vez que esta linguagem traduz as relações sociais, é nela também que se inscreve o Poder; a cada dobra do tecido-texto ele coloca os estereótipos e a edificação das articulações estruturais a serviço de sua manutenção. Os discursos midiáticos, e mesmo a mídia como instituição, embora suplantadas no universo horizontal e colaborativo da Cibercultura, seguem multiplicando-se como os principais canais de produção e distribuição de bens culturais, dominando os espaços de alteridade e de troca. E o Jornalismo, tangibilizado em uma diversidade de formatos discursivos é, consequentemente, uma forma de fala, um texto público, que circula pelo ambiente social e, portanto, provoca certo movimento. Nesse contexto evidencia-se a relevância do movimento #vemprarua e, consequentemente, dos discursos jornalísticos sobre ele (percursos anteriores e posteriores). Observamos, empiricamente, no encontro das plataformas e das narrativas em torno do movimento espaço de fruição, ora provocados pelos descaminhos do texto e do sentido, provocando rupturas na cristalização dos sentidos anteriormente naturalizados, ora observamos sua edificação, a manutenção de figuras de linguagem e, por meio delas, dos poderes já instituídos; enfim, a guerra das linguagens. #vemprarua é uma onda de manifestações por todo o território Brasileiro, e mesmo fora dele - talvez devido à força da noção de identidade nacional e da necessidade de reafirmá-la quando estamos fisicamente distantes. Entretanto a própria descrição do fenômeno, deverá, com o desenvolvimento da pesquisa, ganhar um olhar cauteloso no sentido de identificar e, compreender, quais Discursos (e os respectivos textos que os tangibilizam) serviram como pretexto para sua fundação. Por ora podemos dizer que é um movimento ainda em curso – o que pode comprometer esta análise, fazendo-a parecer ingênua –, e que teve início em junho de 2013. Supostamente a gênese dos protestos está no aumento das passagens de transporte público, primeiro em São Paulo e depois em todo o país; mas tão logo as manifestações se revelaram, associadas a elas, surgiram outras demandas (e outros Discursos?), como efeito dominó: crítica aos investimentos da copa, discussão sobre o papel do ministério público, sobre a precariedade do atendimento médico, o baixo salário dos professores, a questão da ocupação de terras envolvendo agricultores e indígenas, o problema da corrupção. As imagens empiricamente encontradas nas redes sociais, nas publicações imprensas e mesmo nas reportagens televisivas, nos revelam que cada sujeito (e o grupo com o qual construiu relação de pertencimento) sente-se à vontade para fazer valer seu Discurso, expressar sua palavra, até então excluída ou sufocada pelo Discurso vigente, de uma cultura caricaturalmente unificada e que agora, talvez, tenha sua diversidade exposta pela paleta digital. Temos então a impressão da uma explosão de socioleto (quiçá, de idioletos também), e as ruas transformadas no campo de combate das linguagens, tomadas de tal visibilidade que o Discurso amaciado da doxa, desarranjou-se de susto. Para tipificar o cenário (de linguagens) caótico que se configurou nas ruas e nas redes digitais, os Discursos da mídia de massa recorreram aos estereótipos, que se arrastam pela história, como , da , da , , . Evidenciando que a linguagem do outro sucessivamente acaba “percebida segundo as arestas mais vivas da sua alteridade: daí as tão frequentes acusações de ‘jargão’ e uma velha tradição de ironia contra linguagens fechadas que são pura e simplesmente linguagens outras”, (BARTHES, 1988, p.114-115). Procurando dar-lhe um rótulo, muitos programas midiáticos sobre o assunto (ainda reféns de uma lógica massiva de produção - em oposição as possibilidades evidenciadas pela comunicação em rede da internet) investiam em descobrir e explicar a linha em torno da qual todo aquele tecido se amarrava, como se os falares da multidão pudessem ser centralizados em torno de um único tema – uma verdade absoluta – ou um único líder. Tal qual fazia o Formalismo e a Crítica, como eram pra-

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ticados tradicionalmente, obstinados em encontrar o fundo das narrativas, o sentido oculto por trás do texto, o que estivesse escondido nas entrelinhas, na combinação de enquadramentos da imagem, de sons, como se as formas e, enfim, a estrutura, o Discurso (neste caso disperso) fosse constituído por camadas removíveis. Á medida que conseguíssemos remover tais camadas, poderíamos chegar a uma origem, a uma fonte de significação, a um conteúdo correto, ou melhor: . Mas rompendo com esta tradição, propomos (ancorados pela Semiologia) olhar para estes falares como um lugar sem fundo, lugar da multiplicidade de perspectivas e entendimentos, lugar inclusive de contra-sensos, apresentados pelo plural rolante das combinações descobertas pelos sujeitos (na produção e leitura dos Discursos), e que por serem polissêmicas o deslocam, colocam-no em derrisão (destroem ou destituem a conteúdo lido como único). Dizemos isso porque empiricamente observamos que a neste fenômeno, está ligada a subjetividade múltipla da identidade do sujeito contemporâneo (o multivíduo, de Canevacci, 2009), que não necessariamente é mobilizado pela massa (cujo líder se perpetua), mas por uma comunicação descentralizada, viabilizada pela internet e pelas redes de conexão social (Facebook, Twitter, Tumblr, Instagram, Pinterest e etc). O ciberespaço, é um não-lugar (para citar Augé, 2006) numa cultura de transição, território (sem evitar o paradoxo) mais vivido (particularmente através da linguagem) do que historicizado. A ecologia cognitiva que se estrutura ao seu redor supera a lógica de uma comunicação de um para todos, em favor de uma comunicação de todos para todos; cultura essa que estorva o esforço de unificação das linguagens ou coincidência da fala e da escuta. Segundo Levy (1996, p.49) “é como se a digitaliazição estabelecesse uma espécie de imenso plano semântico, acessível em todo lugar, e que todos podem ajudar a produzir, a dobrar diversamente, a retornar, a modificar, a dobrar de novo [...]”. Há também outro elemento que temos de levar em consideração na leitura deste fenômeno político e, por assim dizer, da linguagem, ao apontar para suas relações com o Poder; e não se trata de perceber a linguagem política como se a própria política, algo exterior a linguagem, implantasse nela figuras para politizá-la. Mas uma linguagem que se elabora como prática social. Ela é a própria política, porque a política só existe através e no discurso. Assim, a mediação que intervém entre o poder e a linguagem não é de ordem política (uma cultura política talvez?), mas de ordem cultural. A guerra parece figurar-se, então, na disputa pela propriedade da linguagem (quem é dono do movimento) ou pela apropriação da linguagem do outro (a modo de fazê-lo de tolo, achincalhando sua fala). Nessa brecha de interditos parece-nos haver espaço para nos descondicionarmos da finitude do sentido, deixando-nos desarranjandos diante dos falares, especialmente se a cultura prévia que nos servia de referência não guarda uma verdade absoluta sobre sua origem (ou enfrenta obstáculos para revelá-la), já que esses mesmos Discursos estão sendo, ou precisam ser, reinventados num desconhecido. Para encontrar essas fissuras no Discurso (e se de fato existem fissuras possíveis), onde podemos estar em fruição, dependemos, porém de identificar e reunir os textos que corporificam a linguagem dos diferentes grupos sociais manifestos no movimento; textos esses que hoje são múltiplos e estão dispersos. Precipita-se daí, e a partir da reflexão inicial proposta neste artigo, o próximo passo da pesquisa. Nosso objetivo é, então, estudar a produção de sentido em nível verbal e não-verbal dos Discursos jornalísticos construídos durante as jornadas de junho no Brasil (ou a partir delas), tendo como âncora a Dialética Histórico Estrutural, a Semiologia Barthesiana e a Teoria Construcionista. O corpus da investigação é fundado por notícias publicadas no dia 17 de junho (de forma impressa, televisionada ou online) pela chamada grande mídia, mas também por grupos de mídia alternativa. Trata-se de uma investigação que busca compreender de que forma a discursividade construída pelas narrativas midiáticas evidencia as pertinências e as impertinências do Jornalismo na cons-

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tituição dos discursos sociais ligados ao movimento #vemprarua. Uma problemática que abundou ao observamos empiricamente que a gênese do movimento se constituiu nas redes sociais digitais, tangenciando a mídia tradicional e criando uma guerra em busca da titularidade discursiva ou pela apropriação da linguagem do outro; uma guerra cujas fissuras criadas por seus interditos evidenciam as invariâncias do Poder. O Poder sempre foi objeto de discussão. Diante de sua característica invariante (pois está sempre presente, mesmo nos diferentes tempos históricos, assumindo estados distintos) desperta a atenção e o esforço conceitual de muito pensadores e, consequentemente, tem sido objeto de uma pluralidade de interpretações. Segundo Ramos (2006), nas reflexões barthesianas o conceito de Poder foi, mais uma vez, renovado.  Weber (1967), por exemplo, notabilizou o sentido de poder como dominação. Anotou-o como a capacidade de uma elite impor o seu projeto de desenvolvimento a uma maioria. É a expressão da dominação em seu aspecto vertical, na relação entre elite e o povo. Barthes não jogou fora o sentido weberiano, mas o poluiu. Concedeu-lhe uma abordagem dialética, desembraçando-o de uma perspectiva mecanicista, de enquadramento automático. Vislumbrando-o, com recorrência de um ver psicanalítico (p. 5 e 6).

Para Barthes (1978), o Poder é a libido dominandi, não como prazer sexual, mas como energia prazerosa, que dá motivações ao homem para viver. Baseado nesse pressuposto, não pode ser percebido segundo uma ótica simplista, como se fosse apenas um objeto político: alguns o têm; outros, não. Além disso, o autor adverte que o poder também é um objeto ideológico, que pode ser alcançado através da linguagem, entendida numa perspectiva social; não se restringe ao Estado, mas está em todos os mecanismos de intercâmbio, como nas relações familiares, nos espetáculos teatrais, nos esportes e, até, “nos impulsos libertadores que tentam contestá-lo” (p.11). A linguagem é, então, a expressão das relações às quais estamos submetidos, e os signos, dos quais se apropria para organizar seus Discursos, são instrumentos de Comunicação que tornam possível estabelecer um consenso acerca das ideias de mundo dos diferentes indivíduos envolvidos neste ambiente e, consequentemente, reproduzir ou questionar a ordem social e o modo como seu cotidiano está organizado. Desse modo, o Discurso pode ser o lugar de exclusão ou encerramento dos sujeitos sociais, dependendo da forma que os poderes tomam para se interdizer ou excluir.  Em outras palavras, o Poder habita a linguagem, especialmente através da língua como instituição social, que se reproduz trans-socialmente. Sobreviver no cenário social, nos impõe recorrer a ela, utilizar os seus códigos, respeitar sua estrutura – caso contrário podemos não ser escutados –, embora tal apropriação signifique se submeter às suas regras; o que “implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada” (BARTHES, 1978, p.13). Presos, de forma compulsória, aos entreténs desse exercício, cada um dos grupos que compõem o ambiente social configura formas particulares de fala, os chamados Socioletos. Para Barthes (1988), eles surgem como uma espécie de arma discursiva, a partir da consciência absoluta desses grupos de que é necessário fechar o sistema, proteger-se e excluir dele o adversário ou o diferente (e voltamos a divisão da linguagem). Isso acontece porque, numa sociedade caracterizada pela circulação de textos e bens simbólicos, não há uma cultura homogênea. Existem vários grupos compondo o cenário social, cada qual com seus discursos, dos quais alguns prevalecem e, por isso, são os mais consumidos. Entretanto, consumir o mesmo Discurso não garante homogeneidade; cada um desses grupos, independentemente da fala que consome, continua produzindo o seu próprio Discurso.  Por um lado, os socioletos emergem, então, como reflexo de uma luta para sobrepor o Discurso peculiar a um grupo ou para que ele não seja asfixiado pelo Discurso do outro; de certa forma, oferece algumas vantagens, as mesmas que a posse de uma linguagem dá a todo o Poder que se quer

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conservar ou conquistar. Por outro, os Socioletos não são apenas linguagens de resistência, mas comportam elementos de intimidação com o objetivo de impedir o outro de falar. Para isso, utilizam figuras ofensivas no discurso, responsáveis por constranger o outro.  Observada essa natureza, Barthes (1973) acredita que os Socioletos podem ser de dois tipos: Acrático e Encrático, estruturadas a partir dos discursos de Poder. No Socioleto Encrático a linguagem enuncia-se e desenvolve-se sobre as relações instauradas nos aparelhos estatais, institucionais e ideológicos. É um discurso difuso, disseminado, que impregna as trocas, os ritos sociais, os lazeres, e busca legitimar a fala das classes dominante; constitui-se a partir da doxa, submisso aos seus códigos, que são, eles próprios, as linhas estruturantes da sua ideologia. Ora a linguagem encrática (aquela que se reproduz e se espalha sob a proteção do poder) é estatutariamente uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas respiradoras: a escola, o esporte, a publicidade, a obra de massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido, amiúde as mesmas palavras: o estereótipo é um fato político, a figura principal da ideologia. (BARTHES, 1973, p.55).

Barthes (1988) destaca que, enquanto o Discurso Encrático age por opressão, o Acrático age por sujeição, ambos determinados a intimidar o outro, pressioná-lo. E não apenas o outro; todo socioleto coage também aqueles que o compartilham, pois comporta ¿rubricas obrigatórias¿, estruturas cristalizadas, rótulos, formas que lhe dão consistência, fora das quais a clientela do socioleto (os membros de determinado grupo cultural) não pode falar (não pode pensar), sob pena de exclusão.  Já o Discurso Acrático representa as linguagens que se formam fora do Poder, mas não necessariamente contra ele; trata-se de uma fala revolucionária que busca conquistá-lo, portanto, existe como práxis. Enquanto houver movimento, luta, desejo de escritura polissêmica – diversa dos sentidos amarrados pela linguagem dominante –, o Discurso Acrático pode existir. É, aliás, mas simples percebê-lo, já que para se distinguir (porque quer a ruptura) soa com um assalto, prendendo o sentido em uma direção outra daquela cerceada pelo doxa, não com o objetivo de invadi-lo, mas constrangê-lo; e, ao contrário do Discurso Encrático, não utiliza figuras de amaciamento, não recorre aos álibis de natureza travestindo-se de não discurso (como se isso fosse possível). No entanto, “esta divisão social das linguagens, parece perturbada simultaneamente pelo peso, pela força unificadora do idioma nacional e pela homogeneidade da cultura dita de massa”, (BARTHES, 1988, p.114). Há, para o autor, uma aparente nas sociedades atuais, exaltada pela democracia do objeto (já que ninguém fica fora da cultura) e sob efeito de determinações aparentemente técnicas (dentro de um dado território todos falam a mesma língua); como se a sequência óbvia desse silogismo fosse o adágio: < logo, só existe uma única cultura, da qual todos são reféns>. Ao se definir a cultura de uma sociedade pela circulação dos símbolos que nela se cumpre, a nossa cultura se mostraria tão homogênea e cimentada como a de uma pequena sociedade etnográfica. A diferença é que só o consumo é geral em nossa cultura, não a produção: todos entendemos o que ouvimos em comum, mas nem todos falamos a mesma coisa que ouvimos; os `gosto¿ estão divididos, por vezes até opostos de maneira inexorável (BARTHES, 1988, p. 110). Evidentemente que Barthes pauta estas questões mergulhado em um tanque histórico e um cenário midiático refém do fortalecimento crescente das formas massivas de comunicação. Já nascida, mas não instalada, a Cibercultura enquanto processo de produção de Discursos horizontal, disseminado e colaborativo era pouco tangível no palco onde o autor estava instalado. Hoje a imagem é outra, que desestabiliza nossas referências de linguagem e antepara o intento de sua unificação, o que não inviabiliza recorrer à ele como teórico norteador desse estudo, já que sua preocupação debruça-se sobre aspectos invariantes na sociedade: a produção de sentido e o poder. Ao contrário, a diáspora da linguagem apontada por Barthes, só se intensifica e fortalece nesse novo cenário.

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No homem se acumulam linguagens (em guerra) que o fracionam. A escuta está, parcialmente, comprometida (o mesmo idioma, muitas das mesmas figuras de linguagem); mas o desejo da escritura, o gosto e a produção de Discurso ainda é múltipla, subjetiva/socioletal – o que faz com que haja uma pluralidade de falas lutando pelo Poder. Além disso, para Barthes (1988) a divisão de linguagens não dá conta de glosar a divisão de classes, porque há muitos deslizes, empréstimos, negociações, estorvos, que permitem apropriações marginais dos signos e perversão das estruturas, a partir das quais nascem novos Discursos, tal qual uma roda de moinho, que posto na beira do rio, nunca é abastecido pela mesma água. Essa conjetura revela o crédito barthesiano à polissemia dos signos, ou seja, a suposição de que eles não são filiados a um sentido perene e exclusivo e nem a uma origem, mas constituem-se através do jogo dialético com o qual os significantes e significados estão imbricados. Entretanto, a ligação entre o significante e o significado tem muito menos importância do que a organização dos significantes entre si. Isso porque o significante é vazio; o signo é que é pleno. “O que se transmite não são ideias, mas linguagens, quer dizer, formas que se podem encher de maneiras diferentes” (BARTHES, 1981, p. 31); por conseguinte, que possibilitam ao sujeito atribuir sentidos diversos a um Discurso, negando a existência de uma relação estável entre forma e conteúdo, como quer nos convencer a doxa. Daí de pensarmos nos descaminhos do Discurso e dos textos que o compõe diante do sujeito, menos como um sumidouro e mais como um mapa sem mina, sem ¿xis¿, uma rota abalada, onde a significação pode dispersar-se. E, sob esta perspectiva, ele torna-se o lugar da multiplicidade de perspectivas e entendimentos, lugar inclusive de contra-sensos, apresentados pelo plural rolante das combinações descobertas pelo sujeito, mas que por serem polissêmicas o deslocam, colocam-no em derrisão (destroem ou destituem a conteúdo lido como único). Trata-se de uma libertação da linguagem (no que concerne aos significados, e à propriedade do Discurso), através da produção de um novo modo de fala. Por isso, para a semiologia interessa uma crítica ativa à monossemia ou a polissemia hierarquizante do sentido, condição esta que pauta a escolha do movimento #vemprarua como objeto deste estudo. Se o Poder é invariante ao longo da história, sempre presente, mas camaleônico, também o são os momentos de ruptura dessas suas fantasias ¿ palavra aqui adotada para utilizar a noção de Ficção que Barthes toma emprestado de Nietzsche, ou associar o Discurso a uma “encenação de argumentos, agressões, réplicas, fórmulas, um mimodrama em que o sujeito pode jogar o seu gozo histérico” (1988, p.125).  Esse recorte mencionado, o arcabouço não-linear dos Discursos que constituíram o movimento #vemprarua parecem revelar-se ora como um jogo previsível de signos, ora como um aloucamento da estrutura; acordando novos e múltiplos sentidos sobre concepções ordinárias que estavam confortavelmente acomodadas na bagagem cultural construída pela doxa. E para compartilhar o alvoroço dessa nova narrativa social, este texto característico e muitas vezes privado em que ela se constitui, é que propomos tal investigação. A despeito da complexidade paradoxal do fenômeno, decidimos arriscar uma reflexão; incialmente, a mais vaga possível. Nesse sentido, nossa opção pelos discursos Jornalísticos. Eles estão na interseção entre a referência barthesiana à mídia, a cultura de massa, e a emergência de uma nova forma cultura e estrutura narrativa, a cibercultura. Entretanto, o nascimento da Cibercultura não significa, por metonímia, a morte do discurso midiático, porque ele tem o Poder de se transfigurar nas mais diversas estruturas. Aliás, a linguagem e toda a sua complexidade é a matéria-prima na tecelagem da Comunicação, em particular, da Comunicação Midiática; portanto, é nos seus Discursos que o sujeito contemporâneo se faz e se refaz.  Uma vez que esta linguagem traduz as relações sociais, é nela também que se inscreve o Poder; a cada dobra do tecido-texto ele coloca os estereótipos e a edificação das articulações estruturais

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a serviço de sua manutenção. Os discursos midiáticos, e mesmo a mídia como instituição, embora suplantadas no universo horizontal e colaborativo da Cibercultura, seguem multiplicando-se como os principais canais de produção e distribuição de bens culturais, dominando os espaços de alteridade e de troca. E o Jornalismo, tangibilizado em uma diversidade de formatos discursivos é, consequentemente, uma forma de fala, um texto público, que circula pelo ambiente social e, portanto, provoca certo movimento. Sob esta perspectiva Traquina considera que as notícias são índices do real. Entretanto, também destaca que ao produzir determinado Discurso jornalístico o sujeito realiza uma operação de seleção, exclusão, ou até de acentuação de diferentes aspectos do acontecimento, e com isso o recria, constrói a realidade. A notícia é, portanto, o:  resultado de um processo de produção, definido como a percepção, seleção e transformação de uma matéria prima (os acontecimentos) num produto (as notícias). Os acontecimentos constituem um imenso universo de matéria-prima; a estratificação deste recurso consiste na seleção do que irá ser tratado, ou seja, na escolha do que se julga ser matéria-prima digna de adquirir a existência pública de notícia, numa palavra ¿ noticiável (newsworthy) (TRAQUINA, 1999, p. 169).

O conceito apontado acima torna claro o paradigma surgido nos anos 1970 que defende as notícias como uma forma de construção. A perspectiva, inspirada na sociologia de Berger e Luckman (1971) e trabalhada por Hall (1999), Tuchman (1978), Traquina (1999, 2001, 2005), entre outros autores, rejeita a própria ideologia jornalística e sua hipótese das notícias enquanto espelhos da realidade – primeira teoria oferecida para explicar por que as notícias são como são, e que propõe a realidade como fator que determina o conteúdo noticiado.  Nesse sentido Alsina (2009) destaca, por um lado, que não devemos vincular o conceito de ‘construção social da realidade’ única e exclusivamente com a prática jornalística. De acordo com ele, a noção de “construção social da realidade”, tal como está definida por Berger e Luckmann (1979), localiza-se inicialmente no nível da vida no quotidiano; mas por outro, lembra que também é no quotidiano, em que se dá, no entanto, um processo de institucionalização das práticas e dos papeis. Assim, embora a notícia exista `fora´ ou `antes´ de ser institucionalmente preparada no sistema produtivo midiático, a atividade jornalística tem um papel socialmente legitimado para gerar construções da realidade publicamente relevantes; de forma que as narrativas e consequentemente a memória e as reverberações das jornadas de junho no Brasil, são ao mesmo tempo, social e intersubjetivamente construídas. O que o presente projeto de pesquisa está descobrindo é como esse processo se estrutura.

REFERÊNCIAS ALSINA, M. R. A construção da notícia. Trad. de Jacob A. Pierce. Petrópolis: Vozes, 2009. AUGÉ, Marc. Sobremodernidade: do mundo tecnológico de hoje ao desafio essencial do amanhã. In: MORAES, Dênis. Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1973. _________. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978. __________. O grão da voz. Lisboa: Edições 70, 1981. __________. O rumor da língua. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. BERGER, P.; LUCKMANN, T. The social construction of reality. England: Penguin Books, 1971. HAAL, S. A produção social das notícias: o mugging nos media. In: TRAQUINA, N. (Org.). Jornalismo: questões, teorias e ?estórias?. 2. ed. Lisboa: Vega, 1999.

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RESSIGNIFICANDO O ETHOS: UMA ANÁLISE DA CAMPANHA INSTITUCIONAL DA VIVO “#USARBEMPEGABEM” Caroline Roveda Pilger* (Feevale)

1. E O MUNDO VAI GIRANDO CADA VEZ MAIS VELOZ...1 “Theodore - Sabe o que é engraçado. Desde o meu divórcio, não aprecio a minha escrita. Não sei se era loucura, mas às vezes eu escrevia algo e eu me tornava meu escritor preferido naquele dia. Samantha - Gosto de que possa dizer isso sobre si mesmo. Theodore - Poderia dizer isso pra qualquer um, mas eu disse para você.... Sinto que posso te contar qualquer coisa.”2

Enquanto leio o diálogo entre Theodore e Samantha tenho a nítida sensação da cumplicidade que existe entre os dois. Trata-se de um casal? De dois amigos íntimos? Ou, ainda, a conversa entre uma mãe e um filho? Não se sabe. O que realmente fica evidenciado na fala de Theodore é a confiança que ele sente em Samantha. Se não conhecesse o contexto do qual o diálogo fora retirado, com certeza sugeriria que se trata de duas pessoas próximas em uma conversa cotidiana. Sendo assim, não haveria nada de diferente: duas pessoas, uma conversa, algumas confissões. Relacionamento humano? Seria, se não fosse o curioso fato de Samantha ser um sistema operacional de computador. E é justamente isso, a intensa relação do homem contemporâneo com a tecnologia, o que é explorado pelo diretor Spike Jonze em seu filme Her. O diálogo acima foi retirado de uma cena do longa-metragem lançado no início do ano de 2014 no Brasil, que conta a história melancólica de Theodore e sua relação de amor com a voz do sistema operacional inteligente de computador Samantha. O filme é uma profunda reflexão em torno de certo declínio das relações humanas e sobre as transformações que possamos sofrer por conta do meio tecnológico. Mais do que apenas uma representação, o cenário trazido por Her coloca-nos em uma situação de inquietação. Estaríamos fadados, em um futuro não muito distante, a nos relacionarmos com as máquinas, assim como nos relacionamos com os outros seres humanos? Ou, ainda, estaríamos hoje demasiadamente carentes por conta da ausência de um “olhar humano” a ponto de substituí-lo por aparelhos eletrônicos? Assim, esse texto nasce da inquietação com o imperativo das tecnologias na vida do ser humano contemporâneo, o que parece resultar em uma nova configuração para as relações entre os sujeitos, quando a noção de experiência (LARROSA, 2002)3 é colocada em xeque. Os aparatos tecnológicos parecem ter assumido um valor desmesurado no cotidiano dos indivíduos. Neste sentido, com intuito de “mostrar” e, além disso, problematizar sobre esta realidade contemporânea, a empresa de telecomunicações Vivo lançou no dia 20 de julho de 2015 no canal de vídeos Youtube4 um filme publicitário explorando, justamente, esta relação do ser humano com a Doutoranda e Mestre em Processos e Manifestações Culturais, Universidade Feevale, Brasil. E-mail: [email protected]. Trecho retirado da música Paciência do cantor Lenine. 2 Diálogo retirado do filme Her (2013), dirigido por Spike Jonze. 3 Esclarecemos que a noção de experiência utilizada por Jorge Larrosa é desenvolvida a partir da acepção cunhada pelo filósofo alemão Walter Benjamin. Com o termo experiência o pensador alemão pretende designar algo do patrimônio cultural, da tradição, que desapareceu com o advento da modernidade e da técnica, como a perda de uma experiência coletiva e compartilhada, em favor de uma outra - particular e privada – própria ao indivíduo isolado. De acordo com o autor, surge uma nova forma de miséria com “esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem” (BENJAMIN, 2011, p. 115). Benjamin cita que é no ócio, em momentos de devaneio e silêncio, e mais precisamente no tédio, que encontramos a forma de chegar mais perto da experiência. “O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta” (2011, p. 204). 4 Vídeo disponível no canal oficial da empresa no Youtube pelo link: . * 1

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tecnologia através de uma campanha de conscientização intitulada “Vamos falar sobre isso? Celular, #usarbempegabem”. Realizando um caminho inverso a sistemática publicitária geralmente aplicada em campanhas de empresa de telefonia e tecnologia, e, especialmente, contrariando um discurso propagado nas próprias campanhas apresentadas anteriormente pela empresa, a Vivo traz um filme onde não é oferecido nenhum serviço ou produto tecnológico. Durante quase dois minutos a empresa discute a respeito da utilização do celular no cotidiano do ser humano contemporâneo e remete a todo o momento ao questionamento: “Será que a gente está usando o celular do jeito certo?”. Dessa forma, este artigo tem como objetivo identificar e analisar a ressignificação do ethos da Vivo a partir de campanha institucional da empresa, “Vamos falar sobre isso? Celular, #usarbempegabem”. O problema de pesquisa é de que maneira a Vivo ressignifica seu ethos e que ethé discursivos aciona nesta campanha institucional? Para o desenolvimento da análise será recorrido aos estudos da Análise do Discurso (AD) em Maingueneau (1997, 2008a, 2008b). Serão acionados os conceitos de ethos pré-discursivo, ethos discursivo, ethos efetivo e cenografia para entender as estratégias discursivas apresentadas pela empresa na campanha. É importante salientar que o vídeo possui mais de onze milhões de visualizações no Youtube. Este dado comprova a repercussão e poder que uma campanha como esta pode ter no cenário contemporâneo, quando a publicidade hoje é forte fonte das representações e imaginários sociais, no que diz respeito a como o seres humanos habitam e entendem o mundo em que vivem. Além disso, justifica-se, ainda, a escolha do objeto por ter extrema relevância social, pois trata da relação ser humano e tecnologia, um tema atual e importante no cenário em que vivemos, período marcado por aspectos complexos quanto a significação das relações humanas (BAUMAN, 2001, 2004).

2. ETHOS E CENA ENUNCIATIVA: REFLEXÕES EM MAINGUENEAU No início de seu texto “Problemas de Ethos” Dominique Maingueneau nos lança um questionamento ao mesmo tempo em que pergunta a si mesmo: “por que hoje o ethos suscita tanto interesse.” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 55). Ao apresentar a pergunta, ele também oferece a resposta: afirma que este interesse está, evidentemente, relacionado com o “domínio das mídias audiovisuais” atualmente, e que com elas a atenção, que antes era direcionada para as doutrinas e para os aparelhos que lhes estavam ligados, passou a deslocar-se para “a apresentação de si, para o ‘look’” (ibidem). O conceito de ethos em Maingueneau ultrapassa um quadro simplesmente argumentativo, que antes era proposto pela retórica de Aristóteles. Segundo o autor, além da persuasão pelos argumentos, o conceito de ethos comporta uma reflexão mais geral do processo da aderência dos sujeitos a determinados posicionamentos discursivos. Maingueneau insere o conceito de ethos, que antes se destinava aos campos judiciário e da oratória, para dentro do quadro da análise de discurso e propõe que qualquer discurso escrito possui uma “voz” ou uma “vocalidade específica” que comporta relacioná-lo a uma fonte enunciativa por meio do que ele chama de um “tom” dentro do discurso, que indica quem o disse. “O termo “tom” apresenta a vantagem de valer tanto para o escrito quanto para o oral: pode-se falar do “tom” de um livro.” (MAINGUENEAU, 2008b, 72). Porém, segundo Maingueneau, somente o “tom” não abrange totalmente o campo do ethos enunciativo, pois ele está ligado, essencialmente, ao que ele denomina de um “caráter” e uma “corporalidade” (1997, p. 46). O termo “caráter” equivale ao conjunto de percepções “psicológicas” que o leitor-ouvinte vai atribuir de forma espontânea à figura do enunciador, que irá se dar pelo seu modo de dizer (MAINGUENEAU, 1997, p. 47). Já a “corporalidade”, diz respeito a uma representação do corpo do enunciador dentro da formação discursiva. Este corpo, que não é oferecido explicitamente ao “olhar” do leitor-ouvinte, que é uma “espécie de fantasma”, também irá ser construído pelo destinatário, que o faz a partir de sua leitura da enunciação (ibidem).

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De acordo com Maingueneau (2008a), esta determinação da vocalidade da enunciação e do corpo do enunciador (não o corpo do autor efetivo) que fazem emergir o papel do que ele denomina de um “fiador” do discurso, que é determinado por meio da origem enunciativa e caracterizado como uma instância subjetiva da enunciação. Ou seja, a figura do fiador é a construção deste leitor-ouvinte sobre o enunciador a partir do enunciado. Dessa maneira, o caráter e a corporalidade do “fiador” do discurso amparam-se em um conjunto disseminado de representações sociais, que podem ser valorizadas ou desvalorizadas, e de estereótipos que irão apoiar a enunciação e consequentemente contribuir para reforçá-la ou não. Estes estereótipos, indica o autor, estão registrados em diversos campos da cultura e produção semiótica da coletividade como “livros de moral, teatro, pintura, escultura, cinema, publicidade...” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 72). Outra questão abordada por Maingueneau (2008a, p.70) concerne à aspectos pragmáticos do ethos, quando afirma que o mesmo pode desdobrar-se no registro do “mostrado” e/ou no do “dito”. Maingueneau (2008b, p. 71) deixa claro que a distinção entre o ethos dito e o ethos mostrado por vezes pode parecer difícil, já que os limites entre um e outro estão borrados, quando é impossível definir fronteira nítida entre “o `dito` sugerido e o `mostrado` não explicito”. Maingueneau alerta para o fato de que se o ethos está essencialmente ligado ao ato de enunciação, não podemos ignorar que, mesmo antes de falar, o público já tem condições de construir representações do ethos do enunciador. Ou seja, o ouvinte-leitor constrói o que ele denomina de um ethos pré-discursivo, que seria justamente estas representações e concepções prévias que ele já possui do ethos do enunciador.“ De fato, mesmo que o co-enunciador não saiba nada previamente sobre o caráter do enunciador, o simples fato de que um texto pertence a um gênero de discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos‘. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 71). De uma forma mais geral, explica Maingueneau (2008b), o ethos de um discurso resulta da interação das instâncias do ethos pré –discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado) e também do ethos dito. O resultado das interações desta diversas instâncias também define a construção final do ethos feita pelo destinatário, que o autor chama de ethos efetivo. Um aspecto interessante que não pode ser esquecido é que a eficácia do ethos discursivo tem a ver com o fato de que ele envolve de determinadas formas a enunciação sem estar explícito no enunciado, ele se mostra na enunciação, mas não é dito, “ele deve ser percebido, mas não deve ser objeto do discurso.” (MAINGUENEAU, 2008b, p.59). Dentro do processo de compreensão e análise da formação discursiva, além do ethos, outra composição importante abordada por Maingueneau (2008a) pertence a “cena de enunciação”. Esta cena comporta outras três cenas denominadas de “cena englobante”, que corresponde ao tipo de discurso e engloba seu aspecto pragmático, por exemplo, o discurso literário, publicitário, religioso, etc; a “cena genérica”, que diz respeito ao gênero ou “instituição discursiva” como, por exemplo, um editorial ou um sermão; e a noção, que é a que nos interessa especialmente aqui, de “cenografia”. “Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto: um sermão pode ser enunciado por meio de uma cenografia professoral, profética etc.” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 75). Segundo Maingueneau (2008b, p. 70) a cenografia é a “cena de fala” que o discurso implica para poder ser enunciado, e que, ao mesmo tempo, deve ser validada pela sua própria enunciação. Dentro desta perspectiva, a cenografia é, ao mesmo tempo, de onde o discurso vem e também aquela que o produz. Em um movimento duplo, ela tem o papel de legitimar o enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la também, em uma função que objetiva estabelecer que essa cena onde essa fala surge é exatamente a cena demandada para enunciar (MAINGUENEAU, 2008a). Porém, conforme alerta Maingueneau, não são todos os gêneros de discurso que possuem a possibilidade

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de suscitar cenografias que se afastam de um modelo preestabelecido pelo próprio gênero. Neste sentido, o autor divide os gêneros de discurso em dois pólos extremos: de um lado os gêneros que não acolhem cenografias variadas, que se atém a sua cena genérica, como a “lista telefônica, as receitas médicas, etc”; e de outro lado os gêneros que, naturalmente, exigem a escolha de uma cenografia como os “gêneros publicitários, literários, filosóficos...”. Dessa forma podem existir “publicidades que apresentam cenografias de conversação, outras, de discurso científico etc.” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 76). Após percorrermos sobre os conceitos que são imprescindíveis para o desenvolvimento da discussão, na próxima seção apresentaremos a análise do filme publicitário da Vivo.

3. UM OLHAR SOBRE A VIVO E SUA IMAGEM DE SI Neste momento realizamos os contornos de análise do filme publicitário da Vivo. Antes, porém, é relevante apresentar o cenário em que as campanhas publicitárias da companhia têm trilhado seu caminho. Em pesquisa realizada anteriormente5 analisamos durante dois anos (2012 e 2013) comerciais desenvolvidos pela empresa Vivo e também pelas companhias Claro e Oi. Neste recorte de análise realizado para o estudo anterior6, a Vivo foi marcada pelo desenvolvimento de filmes publicitários que, na maioria das vezes, apresentaram a tecnologia como maneira de diminuir a distância entre as pessoas, principalmente entre os membros da família e amigos. Os filmes exibiam pessoas distantes fisicamente, que supriam ou resolviam a sua ausência por meio da tecnologia. Também foi evidente a apresentação de um discurso, em todos os comerciais, que propagava a ideia da extrema necessidade7 dos aparelhos eletrônicos e serviços tecnológicos para um “melhor andamento” da vida do ser humano contemporâneo e de suas relações pessoais. Alguns filmes publicitários representaram, inclusive, a identidade do ser humano contemporâneo como alguém que deve ser e estar sempre “multiconectado”8. Contribuindo com o discurso do imperativo tecnológico oferecido pela companhia, Ratto (2012, p.49) esclarece que comunicar-se, nos dias atuais, constitui-se como “um apelo quase irresistível”. Conforme o autor, convivemos com o imperativo de estar sempre “conectados”, “plugados”, “ligados” e com a sensação de que devemos procurar “estabelecer conexões”, “fazer links” a todo o momento. Ou seja, neste discurso linear, o sucesso da comunicação entre os sujeitos dependia da tecnologia e de seu uso em todos os momentos. Este discurso pareceu ser o fio condutor das campanhas realizadas até então pela companhia e nos ajuda a compreender e construir seu ethos pré-discursivo, composto, segundo Maingueneau (2008a), justamente por estas representações ou posicionamentos ideológicos prévios que tomamos conhecimento através do discurso propagado anteriormente. Neste sentido, apoiando-nos nos ethé discursivos construídos pelas campanhas institucionais9 da Vivo até então, podemos afirmar que a companhia mostra uma imagem de si através de um ethos de empresa extremamente tecnológica e legitimadora do uso da tecnologia e, além disso, de um ethos de incentivo ao uso de aparelhos e serviços tecnológicos como essenciais para a vida humana. Dessa forma, ela também aciona um ethos de facilitadora da vida apressada do ser humano, um ethos de conectividade. Este cenário explicitado até aqui compõe a formação do ethos pré-discursivo da empresa e é importante para analisarmos como a Vivo ressignifica- o na campanha institucional “Vamos falar sobre isso? Celular, #usarbempegabem”, que é o objeto de análise deste artigo. Dissertação de Mestrado, defendida em fevereiro de 2015, intitulada “Criança, tecnologia e publicidade: a conexão da experiência nos comerciais da Claro, Oi e Vivo”. 6 É importante esclarecer que para este estudo foram analisados somente filmes publicitários que utilizassem a imagem da criança. 7 Para título de exemplo assistir ao comercial da Vivo Internet Box. Disponível em: . 8 Filme publicitário disponível em: . 9 Optamos por considerar todas as campanhas da Vivo como institucionais, até mesmo aquelas em que um produto ou serviço é oferecido, pois a empresa utiliza-se de um modelo de narrativa publicitária que não dá ênfase para as especificidades do produto e sim para uma cenografia que se apoia em uma construção discursiva não mercadológica apostando na reprodução de situações de relação interpessoal, como momentos em família, de lazer entre amigos, conversações etc. 5

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O filme publicitário desta campanha foi postado no dia 20 de julho de 2015 no Youtube e, de certa forma, surpreende pela construção da narrativa discursiva. Com intuito de “mostrar” e, além disso, problematizar sobre esta realidade contemporânea, o vídeo explora, justamente, a intensa relação do ser humano com a tecnologia, utilizando-se de um enunciador que incorpora durante toda sua enunciação um “tom” amigável de aconselhamento, o que auxilia na construção de um ethos discursivo de conscientização. “Parece-nos que a fé em um discurso, a possibilidade de que os sujeitos nele se reconheçam presume que ele esteja associado a uma certa voz (que preferimos chamar de tom)” (MAINGUENEAU, 1997, p. 46). Outro aspecto interessante concerne ao locutor/narrador do vídeo, que é representado pela voz de uma garota, que aparenta ser adolescente. Sua voz, sua maneira de dizer os enunciados (sua fala) são desenvolvidas em um tom de inocência e de amabilidade, o que torna mais fácil a aproximação, afeição e adesão do público ao discurso, além disso, este locutor contribui para a construção de um ethos discursivo de fé em um futuro de mudança social, pois a utilização da voz de uma jovem acolhedora talvez remeta a sentimentos mais humanitários e benevolentes. No tocante a este ponto, Maingueneau (2008a) alerta: [...] o tom específico que torna possível a vocalidade constitui para nós uma dimensão que faz parte da identidade de um posicionamento discursivo. O universo de sentido que o discurso libera impõe-se tanto pelo ethos quanto pela “doutrina”; as “ideias” apresentam-se por uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser, à participação imaginária em um vivido. (MAINGUENEAU, 2008a, p. 73)

Realizando um caminho inverso aos discursos geralmente aplicados em campanhas publicitárias anteriores da empresa, a Vivo, além de não apresentar nenhum serviço ou produto, problematiza como esta relação das pessoas com a tecnologia pode influenciar na maneira com que administram as relações interpessoais uns com os outros. Durante quase dois minutos a empresa discute a respeito da utilização do celular no cotidiano do ser humano contemporâneo e inicia o filme com o questionamento: “Será que a gente está usando o celular do jeito certo?”. Neste enunciado podemos perceber uma construção discursiva que coloca em dúvida, ou em suspensão, os discursos e afirmações já feitas pela Vivo. Ou seja, o enunciador coloca-se em posição de questionador e mostra-se com um ethos discursivo de preocupação com esta questão, o que antes não fazia parte do discurso da companhia. Para Bauman, este é um questionamento importante quando tratamos de refletir sobre as tecnologias na vida do ser humano contemporâneo. Segundo o autor, devemos nos perguntar se manipulamos e utilizamos essas tecnologias realmente a nosso favor, ou se elas vêm tendo um “efeito de nos fazer confiar nelas cada vez mais, a ponto de elas diminuírem nossa independência?” (BAUMAN, 2010, p.236). E é justamente esta perspectiva trabalhada pela cena de enunciação10 proposta pela campanha. Toda sua cenografia (MAINGUENEAU, 2008a, 2008b) aponta para o ponto de vista levantado por Bauman. Os enunciados são ditos através de uma cenografia de conversa amigável, porém estabelecendo sempre um questionamento: “Se todo mundo sabe que não pode, porque que tem gente usando o celular e dirigindo?”; “Muito post e pouca conversa?”; “A gente resolve tudo rapidinho. Mas será que é tudo urgente mesmo?”; “Dá para aprender um monte de coisa no celular. Mas precisa saber de tudo toda hora?”;“Digitar é melhor que conversar? Ou digitar é o novo jeito de conversar?”. O filme utiliza doze cenas distintas de pessoas interagindo com seus celulares, essa cenografia exposta pelo vídeo, legitima a todo o momento o enunciado inicial de questionamento. São cenas que perpassam por momentos vividos pela maioria dos indivíduos contemporâneos como: pessoas dirigindo e falando no celular; casal no cinema e um deles utilizando o celular; casal no restaurante sem se A cena de enunciação (MAINGUENEAU, 2008a, 2008b) comporta a cena englobante que aqui é determinada pelo discurso publicitário; a cena genérica que é o filme. Porém, o que nos importa especialmente é a cenografia.

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falar e os dois utilizando o celular; casal na cama cada um utilizando o seu celular; criança de 4 anos utilizando celular; aniversário de criança e todos os pais gravando a cena. Essas cenas constituem uma cenografia de vivências cotidianas à cena enunciativa. Depois de apresentar todas as cenas no filme, o enunciador faz um questionamento importante: “Será que a gente não está esquecendo o mundo aqui fora?”. Novamente acionando um ethos discursivo de reflexão e preocupação com a sociedade atual. Conforme enfatiza Maingueneau (2008a) o discurso publicitário contemporâneo mantém um laço privilegiado com o ethos, pois tem o objetivo da persuasão em seu discurso e o faz associando os produtos e a marca a uma maneira de habitar o mundo, ao estilo de vida. Como podemos perceber, o discurso estabelece-se não sob a forma de uma afirmação, apresentando uma “verdade” ou certeza sobre o aspecto que levanta, mas sim de reflexão. O ethos discursivo estabelecido a todos os momentos e que também fica claro na cenografia é o de questionamento e inquietação com a situação contemporânea. Ao final do filme publicitário, o enunciador não oferece solução e coloca na mão do co-enunciador encontrar as respectivas “respostas” para os questionamentos feitos: “O que é certo? O que é errado? O que você acha? Pense, discuta, comente. Vamos falar sobre isso? Celular. Usar bem, pega bem!”. Ou seja, mais uma vez o discurso aciona um ethos de abertura ao diálogo, e não de afirmação de alguma verdade ou posicionamento. De maneira geral, o que o discurso da campanha está evidenciando é justamente o que Larrosa (2002) aponta como grande falta em nosso mundo contemporâneo: a possibilidade de viver a experiência plena, de vivenciar algo que toque. O autor, enumera as questões por conta das quais hoje é difícil que se alcance a experiência. Seja por conta da falta de tempo, do excesso de informação, do excesso de trabalho, de se passarem muitas coisas e nada nos passar efetivamente. Investir nesta espécie de enunciação e cenografia que aciona um ethos discursivo emotivo com o ser humano carente, torna-se sem dúvida um investimento oportuno, produtivo, e lucrativo para a Vivo. Por isso a grande aposta em uma cenografia que utilize-se de momentos sensíveis e reflexivos como esta apresentada pela campanha. Neste sentido, o discurso e ideias propostas pela campanha suscitam uma adesão do público por meio de uma “maneira de dizer” que é também uma “maneira de ser” (MAINGUENEAU, 2008b, p.72). O discurso do filme publicitário aponta para a ideia de que estamos cada vez mais conectados, mas não no sentido do apego humano, e sim cada vez mais íntimos da máquina e desconectados do outro. Este discurso instituído através dos enunciados que remetem ao ethos discursivo de reflexão e inquietação com a situação contemporânea, dão o tom da campanha e revelam que o ethos da Vivo sofre uma clara ressignificação, quando agora a empresa mostra uma imagem de si calcada em um ethos efetivo de conscientização e preocupação social, principalmente com as relações humanas. O que não era visto anteriormente, quando a mesma atribuía a si um discurso contrário a esta sistemática, de maneira que em cada campanha reforçava um ethos de incentivo ao uso “sem reflexão” dos aparelhos e serviços tecnológicos em todos os momentos da vida. Bauman (2010) sugere que nossas identidades transformam-se recorrentemente de várias maneiras por conta da introdução de novas tecnologias em nossas vidas, mas também pelo papel do mercado e da cultura de consumo em nosso cotidiano. Acima de tudo uma questão coloca-se a nós: “usamos tais meios para nossos fins, ou esses meios toraram- se fins em si mesmos?” (BAUMAN, 2010, p.25).

4. ...A GENTE ESPERA DO MUNDO E O MUNDO ESPERA DE NÓS11 Durante o percurso deste artigo realizamos uma breve reflexão sobre a relação ser humano e tecnologia. Este foi o pano de fundo para o objetivo que foi identificar e analisar a ressignificação do ethos da Vivo a partir do filme publicitário da campanha institucional “Vamos falar sobre isso? Trecho retirado da música Paciência do cantor Lenine.

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Celular: #usarbempegabem”. O problema de pesquisa foi de que maneira a Vivo ressignifica seu ethos e quais ethé discursivos aciona nesta campanha institucional? Para responder ao objetivo e a problemática foram acionados conceitos da AD em Maingueneau como ethos pré-discursivo, ethos discursivo e cenografia. Porém, através da análise realizada, onde tensionamos os discursos propagados pela empresa nesta campanha com outros apresentados em campanhas anteriores, percebeu-se que a Vivo aciona fortemente um ethos efetivo de conscientização social e preocupação com as relações pessoais contemporâneas mediadas pela tecnologia e com o uso excessivo do celular atualmente. Ela oferece, por meio desta última campanha institucional um “valor social”. Esta campanha auxilia a ressignificação de seu ethos, que antes era vinculado a discursos de legitimação da tecnologia como essencial na vida do ser humano e ao incentivo da utilização das mesmas como auxiliares imprescindíveis para todos os momentos da vida. Cabe concluir que o ethos pré-discursivo Vivo não converge ou assemelha-se com o ethos construído na campanha publicitária em questão. A enunciação legitimada pelo filme estabelece uma direção contrária aos discursos que vinham sendo construídos anteriormente pela companhia, dessa forma infirmando seu ethos pré-discursivo, quando as campanhas apresentam, de certa forma, discursos opostos. Por fim, segundo Bauman (2010), não há dúvida de que os tempos modernos produziram realizações espetaculares, porém, o problema agora é que não estamos apenas diante dos benefícios, mas também dos custos que esses avanços tecnológicos trouxeram.

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SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS, SOB A ÓPTICA DE LUKÁCS Christini Roman de Lima* (UFRGS)

Este trabalho tem como amparo teórico os conceitos de representação e reflexo da realidade de Lukács. Em Narrar ou descrever? (1965) o teórico húngaro opõe os processos de representação do século XIX entre o modo narrativo e o descritivo, destacando que o narrar está mais próximo do participar da construção histórica e o descrever do observa-la. Para ele, na narrativa as ações humanas possibilitam o dinamismo que caracteriza a mudança, demonstram como as coisas poderiam ser. Segundo o teórico, cada parte da vida, da particularidade, representada pela obra, deve corresponder a uma totalidade, a uma cosmovisão, que tem de ser traduzida pela obra. Desta forma, a representação realista deve realizar as mediações entre o destino dos personagens e os grandes conflitos ou transformações sociais nos quais eles estão inseridos. Não só a personagem, mas toda a composição da obra deve convergir para uma representação articulada – e não fragmentada – do mundo ancorada em seu tempo. Já a descrição, própria à estética naturalista, paralisa e produz estagnação, o que gera a alienação. Os indivíduos, próprios à concepção naturalista, com isso, ficam presos à superficialidade e são rebaixados ao nível das coisas inanimadas. Segundo Lukács: O “modo mais natural do mundo” é, aqui, precisamente aquele pelo qual os homens não estabelecem relações entre eles, ou só estabelecem relações do tipo fugaz superficial, que aparecem de improviso e de improviso desaparecem. O destino pessoal dos homens perde o interesse, por não chegarmos a conhece-los realmente; os homens não participam ativamente da ação, apenas passeiam, agitados por pensamentos diversos, sobre o fundo objetivo das descrições que constituem o romance (1965, p. 75).

Entretanto, o filósofo húngaro não condena de todo a descrição. Pare ele, na representação, a descrição deve superar a casualidade e estar a serviço da necessidade: Se não revelam traços humanos essenciais, se não exprimem as relações orgânicas entre os homens e os acontecimentos, as relações entre os homens e o mundo exterior, as coisas, as forças naturais e as instituições sociais, até mesmo as aventuras mais extraordinárias tornam-se vazias e destituídas de conteúdo (1965, p. 63).

Estes dois métodos de representação revelam duas concepções de mundo distintas, resultantes de dois períodos de desenvolvimento do capitalismo: a fase anterior à decadência e a própria decadência ideológica burguesa, com o marco no ano de 1848. É a partir da técnica de representação que Lukács vai considerar a posição do artista em relação à sociedade. Segundo ele, o escritor tem de perceber as contradições da sociedade, contradições geradas pelo apogeu do Capitalismo e pela insatisfação que ele produz. O escritor pode ou não transformar essa contradição em ações. A práxis, segundo Lukács, é a consciência das oposições e do conflito de classes próprio à sociedade burguesa capitalista, assim como é ainda o agir com base na compreensão das relações sociais, o processo de tomada de consciência da realidade que se transforma em ato revolucionário.

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Doutoranda, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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A alienação, por sua vez, consiste na transformação do homem em acessório das coisas. O homem é submetido a uma realidade abstrata e fragmentada, e vai deixando de perceber as mediações entre ele e a totalidade de que faz parte. Assim, ele se torna um ser reificado, alienado. O filósofo destaca, utilizando-se das palavras de Marx, que a alienação é concebida de formas diferentes em relação à burguesia e ao proletariado: “A classe dos proprietários e o proletariado representam a mesma auto-alienação humana. Mas a primeira classe se sente à vontade nesta alienação, por saber a mesma força que se exerce a seu favor e lhe proporciona a aparência de uma existência humana, ao passo que a segunda classe, ao contrário, se sente anulada pela alienação e discerne em tal alienação a sua própria impotência, bem como a realidade de uma existência inumana” E Marx mostra, a seguir, o significado da revolta do proletariado contra a inumanidade da alienação (1965, p. 87).

Lukács aponta que para expressar literariamente essa revolta, o artista tem de se desprender do “maneirismo descritivo e das suas naturezas mortas: a necessidade do entrecho e do método narrativo se impõem espontaneamente” (1965, p. 87).

ANÁLISE DE SÃO BERNARDO A obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, foi publicada no ano de 1934 e é um retrato da realidade do Brasil referente ao período em que fermentava a Revolução de 1930 e desenvolvia-se a modernização do país, preconizada pelo Movimento de 1922. Graciliano apresenta o plano produtivo, a posse da terra mediada pela força e pelo clientelismo, que tem como representantes do centro do poder rural o coronel, que dá lugar ao capitalista/ fazendeiro, este pautado pela figura de Paulo Honório e pela propriedade São Bernardo, o meio em que ainda se efetua a dominação e o poder. O romance é construído por duas veredas, dois movimentos, onde, de um lado, há a trajetória da personagem Paulo Honório, trajetória que o vincula como parte da propriedade São Bernardo, a qual é incorporada a ele; de outro, tem-se o livro de memórias do narrador-protagonista, onde este “amarra as pontas da vida1”, mas não une a meninice à maturidade e sim sua ascensão e decadência; as duas perspectivas convergem-se para o retrato do país, também em transição. O enredo aborda a história de um homem rude, que tinha um intuito na vida: apossar-se das terras de São Bernardo, no interior de Viçosa, Alagoas. A origem e a data de seu nascimento são incertas, uma vez que ele é fruto do abandono dos pais. Sua lembrança mais remota alcança a um cego que lhe puxava as orelhas e à velha Margarida, que vendia doces: “Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me de um cego que me puxava as orelhas e da velha Margarida, que vendia doces. O cego desapareceu. A velha Margarida mora aqui em São Bernardo” (p. 67,68). Quando jovem, fora trabalhador braçal de São Bernardo, propriedade então de Sebastião Padilha. Ganhava a irrisória quantia de “cinco tostões por doze horas de serviço” com a enxada. Aos dezoito anos acaba preso por matar um homem, João Fagundes. Segundo ele, este é seu primeiro ato digno de referência. Permanece na prisão por “três anos, nove meses e quinze dias”, nesse ínterim aprende a ler com Joaquim sapateiro, através de uma bíblia protestante. Depois que sai da cadeia, seu único pensamento é ganhar dinheiro. Por intermédio de uma troca de votos com o chefe político do local e agiota, toma de empréstimo o valor de cem mil-réis, assim principia-se sua ascensão. Segundo aponta, de início o capital desviava-se, mas ele o perseguia resolutamente: “Viajando pelo sertão, (...), realizando operações embrulhadíssimas. Sofri sede e fome, dormi na areia dos rios secos, briguei com gente que fala aos berros e efetuei transações comerciais de armas engatilhadas” (p. 69). Expressão de Dom Casmurro, de Machado de Assis.

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De volta à Viçosa, busca aproximação com o filho do antigo patrão, Luís Padilha, que – diferente do que lhe ambicionava o pai e convinha a sua classe – não se tornou doutor, mas sim um pândego emaranhado aos jogos e à bebida. Paulo Honório tira vantagem da situação do herdeiro, empresta-lhe dinheiro a juros e acaba adquirindo a antiga propriedade: “Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos e quinhentos e cinquenta mil-réis. Não tive remorsos” (p. 81). Ele, a princípio, tem dificuldades para recuperar a fazenda, abandonada por Padilha e já avariada: “Naquele segundo ano houve dificuldades medonhas. Plantei mamona e algodão, mas a safra foi ruim, os preços baixos, vivi meses aperreado, vendendo macacos e fazendo das fraquezas força para não ir ao fundo”. (p. 85). Entretanto, alcança a estabilidade econômica. Com isso, e já aos quarenta e cinco anos, pensa em um herdeiro para perpetuação da propriedade, casando-se, assim, com a professora, também de origem humilde, Madalena. O casamento se configura, como os demais relacionamentos do protagonista, como uma relação de interesse e de domínio, onde este busca enquadrar a mulher como parte de sua propriedade. Madalena não aceita o jugo e suicida-se. Com a eclosão da Revolução e a modernização que exigia novas máquinas e, principalmente, com o suicídio da mulher, Paulo Honório cruza os braços frente à crise e vê a empreitada de sua vida desmoronar. Ele acaba refletindo e tendo consciência da brutalização que incorporou para atingir o propósito de sua luta, brutalização esta que acabou por dominá-lo. Paulo Honório é o retrato da reificação – própria do capitalismo. É o exemplo da fusão entre sujeito e objeto, no caso a propriedade. Candido destaca que São Bernardo era o seu prolongamento: “Em Paulo Honório, o sentimento de propriedade, mais que simples instinto de posse, é uma disposição total de espírito, uma atitude complexa diante das coisas. Por isso engloba todo o seu modo de ser” (1972, p. 22). Em São Bernardo forma e conteúdo confluem-se para representar a realidade, ou, utilizando a designação de Lukács, refletir a realidade social brasileira do período em transição. Na obra, tem-se o caminho por que passou o novo fazendeiro: o autor traça o percurso da acumulação de capital feita pelo protagonista-narrador, que parte do trabalho rural na fazenda até atingir o patamar de proprietário e desemboca na crise da Revolução de 1930, onde este enverga – no entanto a promessa de mudança mostrar-se-á utópica para além das linhas do romance, uma vez que não significou uma ruptura radical da estrutura social: o governo, ditatorial, de Getúlio Vargas ainda representava as antigas classes rurais. Sobre a Revolução de 1930, Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder (1958, p. 247), aponta: Foram os acontecimentos e as ideias da fase pós-guerra a 1924 que aglutinaram o ideário da revolução de 30 e da situação dela emergente. Pode dizer-se que a ideologia daquela quadra era vária e difusa, confundida com elementos utópicos. Dela sairiam correntes socialistas, fascistas e comunistas, caracterizando-se mais pelo não à ordem existente do que pela definição do programa de ação. Os revolucionários sabiam o que não queriam, mas não sabiam o que querer. Desencantos, frias decepções e ousados idealismos estruturaram-se sob a mesma bandeira: o combate era contra as oligarquias estaduais (...).

A travessia apresentada na obra é ancorada na narrativa em primeira pessoa, em que a ação humana, tal qual apregoa Lukács, possibilita o dinamismo que caracteriza a mudança – mudança da personagem e mudança da sociedade. Toda a composição de São Bernardo converge em uma representação articulada, não fragmentada, do período, uma vez que Graciliano almeja à unidade, à relação entre tema e linguagem, personagem e narrativa, enfim, entre toda a composição do romance que deve convergir para a representação realista de sua época. Paulo Honório é um ser único, mas, ao mesmo tempo, é símbolo de uma classe e de um momento histórico brasileiro.

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Lukács afirma na sua Introdução a uma Estética Marxista (1968, p. 199) que: A arte, contudo, jamais representa singularidades, mas sim – e sempre – totalidades; ou seja, ela não pode contentar-se em reproduzir homens com suas aspirações, suas propensões e aversões, etc.: deve ir além, deve orientar-se para a representação do destino destas tomadas de posição em seu ambiente histórico-social. Este ambiente existe artisticamente mesmo quando aparece na obra ligado imediatamente ao homem que existe por si só (...). De fato, todos os lineamentos do homem, ainda que este seja representado isoladamente, trazem em si os traços do seu destino, de suas relações com os homens que o circundam, do êxito das tendências que movem sua vida interior. Assim, todo artista, tomando como assunto (direta ou indiretamente) os destinos dos homens, deve também tomar posições em face deles.

O período em que o romancista alagoano escreve situa-se entre os anos de 1932 e 1934. O momento é marcado pelo crescimento dos movimentos sindicais e da regulamentação das relações de trabalho e o início da Industrialização do país, fatos que deram os primeiros passos na Era Vargas. Tais eventos se chocaram com a mentalidade das oligarquias rurais. Graciliano traz para obra alguns aspectos importantes desse contexto, mostrando, ao longo de sua narrativa, a luta contra a promessa de mudança do movimento revolucionário em curso no tempo em que a trama se passa: final dos anos 20. Por meio da obra, Graciliano Ramos reflete sua posição diante do mundo em que está inserido. Ele faz parte dos artistas empenhados que têm consciência da situação de país subdesenvolvido e que rompem com a perspectiva, até então apregoada, de país novo, ainda não realizado, mas com grandes possibilidades de progresso: (...) dada esta ligação causal de “terra bela-pátria grande”, não é difícil ver a repercussão que traria a consciência do subdesenvolvimento como mudança de perspectiva, que evidenciou a realidade dos solos pobres, das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura paralisante. A visão que resulta é pessimista quanto ao presente e problemática quanto ao futuro (...). Mas, em geral, não se trata mais de um ponto de vista passivo. Desprovido de euforia, ele é agônico e leva à disposição de lutar, pois o traumatismo causado na consciência pela verificação de quanto o atraso é catastrófico suscita reformulações políticas (...). Daí a disposição de combate que se alastra pelo continente, tornando a ideia de subdesenvolvimento uma força propulsora, que dá novo cunho ao tradicional empenho político dos nossos intelectuais (CANDIDO, 2006, p. 171).

Para Luckács, o grande escritor tem que observar a vida e compreender que não pode se limitar à descrição de sua superfície exterior e nem ficar limitado ao relevo, feito de modo abstrato, dos fenômenos sociais. Ele deve captar a relação íntima entre a necessidade social e os acontecimentos da superfície, o que deve ser construído por entrechos que se transformem em “síntese poética dessa relação”. Este aspecto é analisado pelo autor alagoano, em Linhas Tortas (2002), na crônica “O romance de Jorge Amado”, escrita em 1935, quando discute a obra Suor. Graciliano aponta: O livro do Sr. Jorge Amado não é propriamente um romance, pelo menos romance como nós estamos habituados a ler. É uma série de pequenos quadros tendentes a mostrar o ódio que os ricos inspiram aos moradores da hospedaria. Essas criaturas passam rapidamente, mas vinte delas ficam gravadas na memória do leitor. (...) O Sr. Jorge Amado tem dito várias vezes que o romance moderno vai suprimir o personagem, matar o indivíduo. O que interessa é o grupo – uma cidade inteira, um colégio, uma fábrica, um engenho de açúcar. Se isso fosse verdade, os romancistas ficariam em grande atrapalhação. Toda análise introspectiva desapareceria, perderia a profundidade (2002, p. 91, 92).

Em “O fator econômico no romance brasileiro”, também de Linhas Tortas (2002), Graciliano debate a crise no romance de sua época e censura a falta de uma “observação cuidadosa dos fatos” (2002, p. 246) por parte dos escritores seus contemporâneos. Para o romancista alagoano, os autores

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brasileiros se ocupam apenas com a política e deixam de lado os meios de produção. O trabalho e o sustento parecem-lhes “matéria desagradável”, repugnante. Sem os meios de produção as obras apresentam meramente uma “humanidade incompleta”, destaca ele. Graciliano pretende-se à representação que apanhe o todo, que traga os meios de produção para refletir o social e, além disso, busca a caracterização de “tipos que se comportem como toda a gente” e, ao cometerem atos drásticos, a obrigação do escritor é acompanhar a personagem até esta ação, entendendo sua motivação e não trazendo o acontecimento para o texto unicamente como arranjo indispensável ao desenvolvimento da história. Ele pontua ainda:

Está visto que não desejamos reportagens, embora certas reportagens sejam excelentes. De ordinário, entrando em romance, elas deixam de ser jornal e não chegam a constituir literatura. (...). Mas se essas cópias nos desagradam, mais desagradáveis achamos a imitação de obras exóticas, que nenhuma relação tem conosco. Simulando horror excessivo ao regional, alguns romancistas pretendem tornar-se à pressa universais. Não há, porém, sinal de que o universo principie a interessar-se pelas nossas letras, enquanto nós nos interessamos demais por ele e voluntariamente desconhecemos o que aqui se passa. Para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, estuda-las de baixo para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura econômica da região que desejamos apresentar em livro (p. 250-251).

As críticas sobre o romance brasileiro da época são articuladas na estrutura composicional de seus romances. É por meio das ações da personagem, em São Bernardo, que o enredo transcorre. Graciliano apresenta uma estrutura seca, objetiva, concentrada no essencial, esta é dada pela perspectiva de Paulo Honório, que transporta para a obra sua visão utilitária de mundo. De todo modo, a narrativa é veloz, não apresenta pausas que paralisem o fluxo da trajetória do narrador-protagonista. No romance de Graciliano Ramos, tudo é racionalmente ligado ao interesse e aos negócios do proprietário. E por meio da particularidade de Paulo Honório, tem-se o reflexo do social. É por meio do embate entre este e Madalena ou entre ele e Luís Padilha que o conflito se dá, conflito este que envolve os empregados da fazenda, que são subjugados pelo primeiro e provocados pelo último; em paralelo está o conflito entre o protagonista e o pensamento social de Madalena, que se solidariza com os dramas daqueles. Ilumina-se, além disso, um embate que diz respeito à formação social brasileira e que se caracteriza entre o novo fazendeiro, afeito aos ideais capitalistas, e o antigo coronel, que associa trabalho à escravidão, e, portanto, representa uma aristocracia rural decadente. Neste quadro, Paulo Honório supera sua condição de classe, mas imprime nesta elevação a violência dos velhos mandatários e assume condutas patriarcais, o que o coloca em um entremeio – entre o capitalista e o antigo senhor colonial. É neste panorama que se justificam “as liquidações sumárias de vizinhos incômodos, a corrupção de funcionários e jornalistas” e a violência para com os empregados (CANDIDO, 1972, p. 23), mas, apesar disso, o crescimento do narrador-personagem é pautando também pelo trabalho. De outro lado têm-se as personagens de Mendonça e Padilha, simbolizando as antigas oligarquias, contudo, este último, como foi desprovido da posse das terras, muda de patamar, torna-se empregado de Paulo Honório, e, deste modo, acaba assumindo um confronto intelectual contra aquele que lhe arrebatou a propriedade:

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Era ateu e transformista. Depois que eu o havia desembaraçado da fazenda, manifestava ideias sanguinárias e pregava, cochichando, o extermínio dos burgueses. [...] Nesse ponto surgiu-me um pequeno contratempo. Uma tarde surpreendi no oitão da capela (...) Luís Padilha discursando para Marciano e Casimiro Lopes: – Um roubo. É o que tem sido demonstrado categoricamente pelos filósofos e vem nos livros. Vejam: mais de uma légua de terra, casas, mata, açude, gado, tudo de um homem. Não está certo. Marciano, mulato esbodegado regalou-se, entronchando-se todo e mostrando as gengivas banguelas: – O senhor tem razão, Seu Padilha. Eu não entendo, sou bruto, mas perco o sono assuntando nisso. A gente se mata por causa dos outros. É ou não é, Casimiro? Casimiro Lopes franziu as ventas, declarou que as coisas desde o começo do mundo tinham dono. – Qual dono! Gritou Padilha. O que há é que morremos trabalhando para enriquecer os outros. Saí da sacristia e estourei: – Trabalhando em quê? Em que é que você trabalha, parasita, preguiçoso, lambaio? – Não é nada não, Seu Paulo, defendeu-se Padilha, trêmulo. Estava aqui desenvolvendo umas teorias aos rapazes. Atirei uma porção de desaforos aos dois, mandei que arrumassem a trouxa, fossem para a casa do diabo. – Em minha terra não, acabei já rouco. Puxem! Das cancelas para dentro ninguém mija fora do caco (p. 110 e 115, 116).

O trecho apresenta claramente a posição das personagens destacadas: Marciano, o empregado, é resíduo da escravidão, e por isso, pela perpétua condição de excluído, marcado historicamente pela falta de direitos e de educação, percebe a desigualdade apontada pelo herdeiro colonial destituído, mas não a entende direito; Casimiro Lopes, por sua vez, é o cangaceiro fiel, não contesta hierarquia e nem propriedade; já Padilha, incita os empregados às costas do rival, uma vez que também depende dos favores deste. A parte isto, situa-se o embate entre Paulo Honório e Mendonça, o qual busca rebaixá-lo por meio de sua origem: – Há por aí umas pestes que principiam como o senhor e arrotam importância. Trabalhar não é desonra. Mas se eu tivesse nascido na poeira, por que havia de negar? Tentou envergonhar-me: – Trabalhador alugado, hem? Não se incomode. O Fidélis, que hoje é senhor de engenho, e conceituado, furtou galinhas (p. 86).

O fazendeiro ascendente supera o antigo coronel, elimina-o. De outro lado está Madalena, que mantém com o marido uma relação conflituosa, de oposição que passa pelo letramento visto como negativo por Paulo Honório, uma vez que este não tem educação formal, pelos valores humanitários que se chocam com a mentalidade utilitária do capitalista e ancora no confronto entre a estabilidade interior do homem racional e a instabilidade das paixões que a mulher lhe desperta. Madalena, que seria a perpetuação de sua propriedade, gerando o herdeiro que lhe daria continuidade, mantendo a propriedade, torna-se a ameaça para o mundo concentrado e concentracionista que ele quer manter: “Sim senhor”, diz o narrador, “comunista! Eu construindo e ela desmanchando” (p. 188). O casamento, para o protagonista, era fundamental para consolida-lo na posição de senhor, para perpetuar a posse das terras por meio de um herdeiro: “Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma ideia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. (...) Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo” (p. 115). Paulo Honório não é movido por paixões e amores. O casamento é um negócio, um meio, como já dito, de consolidar sua posição. Sendo assim, passa a imaginar a mulher que correspondesse aos ideais para a procriação e a maternidade. Busca, portanto, a mulher ideal com o objetivo prático do matrimônio, mas, ao partir para tratar consórcio com a filha do Dr. Magalhães, depara-se com Madalena, o oposto do estereótipo físico da mulher fecunda: “Precisamente o contrário da mulher que

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eu andava imaginando – mas agradava-me, com os diabos. Miudinha, fraquinha. D. Marcela era bichão. Uma peitaria, um pé de rabo, um toitiço!” (p. 124). Madalena é uma moça bonita, pequena, fisicamente frágil, mas com uma força interior que surpreenderia seu futuro marido. Madalena representa a geração de mulheres que, não sendo de família abastada, tem no magistério o meio de ascensão e sobrevivência. Guacira Louro (2009) aborda em Mulheres na sala de aula a transformação do magistério em um trabalho feminino, segundo ela (2009, p. 453): As jovens normalistas, muitas delas atraídas para o magistério por necessidade, outras por ambicionarem ir além dos tradicionais espaços sociais e intelectuais, seriam também cercadas por restrições e cuidados para que sua profissionalização não se chocasse com sua feminilidade. Foi também dentro desse quadro que se construiu, para a mulher, uma concepção do trabalho fora de casa como ocupação transitória, a qual deveria ser abandonada sempre que se impusesse a verdadeira missão feminina de esposa e mãe.

Madalena fora criada pela tia, D. Glória, com sacríficos e muito trabalho. A proposta de casamento de Paulo Honório, encarada por ele como negócio, o é também por ela, uma vez que o casamento proporcionaria comodidade e descanso a ela e também a sua tia. Portanto, assim como Paulo Honório, ela não enxerga no casamento motivos românticos e deixa claro que não sente amor pelo pretendente, mas aceita o negócio oferecido pelo protagonista. Com o casamento, Paulo Honório espera que Madalena torne-se parte de sua propriedade, mas ela não aceita a dominação e frustra as expectativas do marido. Além de não aceitar passivamente a autoridade, depois de conceber o filho, não é uma boa mãe, não é maternal e a criança arrastava-se, caia e chorava sem atenção. De outro lado, Madalena tinha ideias avançadas. Segundo o narrador, ela não era propriamente uma intelectual, mas este julga que ela descuidava da religião, era materialista, comunista e, portanto, não podia ser confiável, tornando-se perigosa. A partir disso, nasce-lhe o ciúme – “mulher sem religião é horrível. (...) Mulher sem religião é capaz de tudo. (...) Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena – e comecei a sentir ciúmes” (p. 189). Os embates entre o casal passam, com isso, a ser frequentes, porém, eles não têm vencedores. Madalena sucumbe, suicida-se. Paulo Honório se desarticula, abate-se, e a propriedade São Bernardo desmorona, mas em meio aos escombros, cresce nele uma necessidade nova de construção – reconstrução – de São Bernardo como livro de memórias: “no momento em que se conhece pela narrativa, destrói-se enquanto homem de propriedade, mas constrói com o testemunho da sua dor a obra que redime” (CANDIDO, 1972, p. 24). O romance de Graciliano Ramos, portanto, é característico da sua posição frente ao mundo e frente à época em que se situa; posição pautada pelo engajamento e pela consciência social e literária, no entanto ele não se esgota no plano político, está longe do panfletário. Ele é voltado a uma preocupação que une técnica, forma e conteúdo e por isso permanece – com força de javali, diria o poeta mineiro. Assim sendo, São Bernardo dialoga com Lukács, sendo um exemplo de reflexo realista a que o filósofo húngaro apreciaria.

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DISCURSOS E PERCEPÇÕES URBANAS NA LITERATURA: MACHADO E LIMA Cinthia Aparecida Tragante* (IAU-USP)

A cidade colonial do Rio de Janeiro se transformou – espaço e socialmente - de forma muito mais rápida durante o século XIX, sobretudo após a chegada da família real. O investimento urbano inicial na cidade, para acomodação a nova população, foi desde a abertura de ruas à criação de bancos e espaços voltados à cultura. Ao longo de todo o século, o Rio de Janeiro ainda passou por transformações intensas, com investimento em infraestruturas urbanas como água, iluminação, pavimentação, entre outros. Tais mudanças caminhavam junto com as transformações políticas como a independência, que enfatizou a necessidade de transformar a cidade em algo que se aproximasse da imagem que os setores das elites faziam de uma legítima capital, tornando o Rio alvo de investimentos que se intensificaram com o crescimento da economia cafeeira e do comércio. Fundamental a toda as mudanças urbanas foi o investimento em transportes, com a circulação do bonde de burro e do trem a vapor, em 1870, que colaborou para aprofundar a segregação socioespacial em função das possibilidades de mobilidade nas diferentes regiões. Os bondes contribuíram para concentração da elite em bairros nobres, principalmente na Zona Sul, enquanto os trens induziram a ocupação de áreas distantes do centro - os subúrbios - pela população que não podia arcar com os custos das moradias da área central . Quanto à habitação, esta também passou por transformações, as quais envolveram mudanças espaciais, mas também alterações de usos e significados (CORREIA, 2004, p. 01). A adaptação das habitações se fazia para atender a um público mais exigente, melhorar as condições sanitárias e ainda, adequar-se à falta de mão de obra escrava que, lentamente, ia diminuindo. Diversos destes acontecimentos, cenas urbanas e formas de morar são retratados nos romances de Machado de Assis e Lima Barreto, em meados do século XIX e início do XX, respectivamente. Considerando o texto literário como representação desta cidade e fonte de pesquisa, este trabalho procura demonstrar como se dão algumas das percepções dos autores sobre as características e elementos da cidade, bem como retratam e incorporam à trama narrativa as alterações ocorridas na cidade carioca durante o período apontado, inclusive no que tange às mudanças socioespaciais. O texto literário, dialogando com a realidade, pelo seu caráter artístico, é capaz de produzir diferentes olhares sobre o urbano “que traduzem não só as transformações do espaço como as sensibilidades e sociabilidades dos seus agentes” (PESAVENTO, 1999, p. 13). Tais maneiras distintas de criar uma representação da realidade pelos seus agentes possuem motivos vários e, busca-se aqui, entender suas razões. Cada um dos autores passa a seu público uma forma de ver, vivenciar e pensar a cidade. A realidade criada por Lima Barreto em seus romances, por exemplo, mostra aspectos da cidade muitas vezes ignorados por outros observadores. O estudo destas outras formas de ver a realidade – não baseadas unicamente nos documentos oficiais – e a compreensão dos motivos pelos quais tais agentes traduzem seus pontos de vista através da descrição da sociedade, se aproxima da noção de história cultural que Chartier defende (1990, p. 19). Seguiu-se como pressuposto para a pesquisa, assumir que os discursos colocados nas obras dos dois autores em questão não são e nem pretendem ser neutros, mas buscam retratar parte da realidade urbana dentro do contexto em que estão ou como imaginariam e gostariam que ela fosse.

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Doutoranda, Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

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O trabalho, portanto, procura enfatizar as distintas percepções que os dois escritores possuem da cidade do Rio de Janeiro no período apontado, avaliando a presença da cidade observada, imaginada ou relembrada e as possíveis razões das maneiras de perceber e retratar a cidade que os dois escritores possuíam1.

1. LITERATURA E CIDADE A cidade do Rio de Janeiro é amplamente utilizada nos romances tanto de Machado de Assis quanto de Lima Barreto. Machado, de origem pobre, nascido no Morro do Livramento, tem sua vida adulta marcada pela convivência com grupos intelectuais de elite e é bastante reconhecido pelo seu trabalho, tanto como funcionário público, mas especialmente pela sua carreira literária. Lima teve seu trabalho reconhecido em vida de forma bem mais tímida, seu grande prestígio é póstumo. Embora frequentasse cafés, livrarias e trabalhasse no jornalismo profissional, com artigos de destaque e grande dedicação à atividade, não conseguiu viver convenientemente das letras, como desejava (SILVA, 2009, p. 10). Lima procura escrever para denunciar os problemas sociais que vivenciava ou observava, como o racismo que sofria e toda a discrepância urbana que presenciava no seu caminho diário pela cidade carioca . “A função crítica, combatente e ativista ressalta por demais evidente” em seus textos (SEVCENKO, 1983, p. 162). Machado, em uma posição mais confortável, agrega a crítica social – presente claramente em suas obras – com construções com elegância, inteligência e espiritualidade, com artifícios da sedução oratória (TEIXEIRA, 2008, p. 3). Parece se deter em questões ligadas à construção artística na sua produção literária, sem deixar de enfocar as desgraças inerentes à condição humana, as quais Lima denuncia articuladas e agravadas pelas desigualdades e injustiças sociais. Essa diferença de visão e de inserção social é repassada, de alguma forma, nos romances dos dois autores. Nesse sentido, as marcações urbanas, mesmo muitas vezes se tratando de um mesmo espaço da cidade, parecem diferentes no texto de cada um dos autores. É o que parece ocorrer com algumas das citações da Rua do Ouvidor. A Rua do Ouvidor é a síntese da alta sociedade carioca. Nela se localizava a maioria das lojas relacionadas aos diversos setores do comércio e dos serviços direcionados à elite, referente à moda, mas também “hotéis, confeitarias e cafés, fazendo da rua o ponto de encontro da melhor sociedade carioca” (TRIGO, 2001, p. 254). Machado a utiliza como forma de demarcar as atividades, o estilo de vida e o meio dos seus personagens, em grande maioria, da elite. Várias mulheres dos romances de Machado vão à Rua do Ouvidor em algum momento comprar artigos caros, que compunham o vestuário elegante das elites. É o caso de Lívia (RE2), que vai fazer compras para a sua viagem à Europa e de Sofia (QB), que sabia francês “para conversar, para ir às lojas, para ler um romance...” (ASSIS, QB, 2006, p. 697) e o utilizava então para ir às compras. Já os homens se encontravam na Rua do Ouvidor para conversar, se distrair e passear, enquanto se inteiravam da vida política, econômica e privada da cidade. É o ponto de encontro destes, onde colhem e espalham notícias e boatos. É onde Félix (RE) encontra Meneses logo depois de terminar com Cecília (ASSIS, RE, 2006, p. 123) e onde Brás Cubas (MP) encontra Lobo Neves e conversam sobre política (ASSIS, MP, 2006, p. 612). É também onde circulam as notícias sociais, e local em O trabalho aqui apresentado é resultado do mestrado (2014) desenvolvido junto ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU-USP), com orientação da Profª. Drª. Telma de Barros Correia. 2 Adota-se neste trabalho as seguintes siglas para os romances dos autores: Ressurreição (RE), A Mão e a Luva (ML), Helena (HE), Iaiá Garcia (IG), Memórias Póstumas de Brás Cubas (MP), Quincas Borba (QB), Dom Casmurro (DC), Esaú e Jacó (EJ) e Memorial de Aires (MA), de Machado de Assis e Recordações do escrivão Isaías Caminha (IC), Numa e Ninfa (NN), Triste Fim de Policarpo Quaresma (PQ), Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (MJ) e Clara dos Anjos (CA), de Lima Barreto. Nas citações de trechos das obras, além do autor e da página, também se inseriu a referência do romance através da sigla para facilitar a compreensão das análises. 1

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que Brás Cubas espalha propositalmente sobre vir a ser secretário da província, sabendo que uma vez dita, ela percorreria muitos ouvidos (ASSIS, MP, 2006, p. 591). São diversas, enfim, as citações da Rua do Ouvidor em Machado. Em Lima, o espaço central e em especial a Rua do Ouvidor, também recebe essa característica de espaço de encontro em algumas passagens. Assim, Isaías por lá vai passear e encontra Laje da Silva, que o apresenta a outros contatos que serão responsáveis pela sua entrada no jornal. Deste modo, a Rua do Ouvidor, no trecho seguinte, continua cumprindo seu papel de ponto de encontro e negócios. Aventurei-me pela Rua do Ouvidor já preso a outros pensamentos. Agora, tinha rápidas recordações de minha casa. Por momentos, em face daquelas damas a arrastar toilettes de baile pela poeira da rua, lembrei-me dos tristes vestidos de minha mãe, da sua cassa eterna, da sua chita e do seu morim... Mas não pude continuar por ai. Do interior de um café, o Laje chamou-me. (BARRETO, IC, 2006, p. 140).

Nesta passagem, é possível notar a contradição pela qual passa Isaías. Ao ver as damas luxuosas passeando na rua, lembra-se da empobrecida vestimenta da sua mãe e sua busca por tecidos nada nobres. De maneira muito sutil, nesta passagem, Lima revela o sentimento de não pertencimento que Isaías sente em grande parte da sua estadia no Rio. Em diversas outras passagens em Lima, a Rua do Ouvidor (e outros espaços típicos do centro carioca) toma tal aspecto de local pouco íntimo e atrativo aos suburbanos, exatamente por ser o espaço mais representativo dos negócios da alta sociedade carioca, o verdadeiro coração urbano do Rio para esta classe no XIX e início do XX. As descrições de Lima dos espaços do centro da cidade são cúmplices da discrepância existente entre os subúrbios e a área central. Ele mesmo fazia o trajeto entre subúrbio e centro diariamente (RESENDE, 1993, p. 26) e talvez por isso essa temática seja tão presente nos seus romances. O sentimento transpassado pelos personagens de Lima pode ser decorrente, então, de seus próprios, quando neste trajeto diário. Outro ponto de discrepância entre a percepção urbana de Machado e de Lima se trata efetivamente das transformações da cidade, marcadas principalmente pelas reformas urbanas. A Reforma Passos3, e as outras anteriores a ela, tiveram como prioridade sempre o investimento em melhorias e embelezamento das áreas centrais da cidade, onde se localizavam os investimentos do capital financeiro, em detrimento das áreas degradadas em crescimento que necessitavam de infraestrutura urbana, como os subúrbios. A indignação de Lima perpassa essa temática em várias passagens, sendo constantes as críticas diretas às reformas e transformações pelas quais passava a cidade no início do XX. Nos seus romances, surgem algumas críticas satirizando, com bastante ironia, a incansável associação das reformas ao nome de Haussmann: [...] esforçavam-se por obter as medidas legislativas favoráveis à transformação da cidade e ao enriquecimento dos patrimônios respectivos com indenizações fabulosas e especulações sobre terrenos. Os Haussmanns pululavam. Projetavam-se avenidas; abriam-se nas plantas squares, delineavam-se palácios, e, como complemento, queriam também uma população catita, limpinha, elegante e branca: cocheiros irrepreensíveis, engraxates de libré, criadas louras, de olhos azuis, com o uniforme como se viam nos jornais. (BARRETO, IC, 2006, 209-210).

A Reforma Passos (1903-1906), talvez a mais marcante e emblemática remodelagem do centro carioca, se apropriou das ideias da Paris de Haussmann para serem aplicadas no Rio, buscando a resolução dos problemas urbanos que a cidade apresentava e procurando criar a imagem de uma cidade moderna e cosmopolita. Entre as transformações que foram feitas, inclui-se a construção de grandes avenidas, boulevares, alargamento de ruas, melhorias nos espaços verdes e adoção de padrões de acordo com as teorias higienistas. Em meio à reforma, priorizando as áreas centrais, houve a extirpação de cortiços, proibição de quiosques e outras medidas que afetavam a população mais pobre.

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Pouco aparece em Machado a crítica urbana direta como a faz Lima. Embora no tempo de Machado as transformações na cidade fossem menos drásticas, não eram pouco relevantes, mas o autor de Memórias Póstumas as comenta de forma menos enfática. Algumas passagens sugerem uma inquietação do autor, mas nada semelhante ao que vemos em Lima. A enseada não difere de si. Talvez os homens venham algum dia a atulhá-la de terra e pedras para levantar casas em cima, um bairro novo, com um grande circo destinado a corridas de cavalos. Tudo é possível debaixo do sol e da lua. A nossa felicidade, barão, é que morreremos antes. (ASSIS, EJ, 2006, p. 1002).

A passagem sugere que as transformações da cidade podiam ser insuportáveis a Aires, agraciando o fato de estar morto antes de vê-las. A crítica machadiana às transformações urbanas parece ser mais presente em suas crônicas. Nos romances, ela é feita de maneira mais sutil e menos presente. Na verdade, Machado, em uma primeira leitura, parece pouco enfatizar os problemas urbanos do Rio oitocentista. Comparativamente às fortes críticas de Lima, em Machado parece haver unicamente a descrição de um Rio de Janeiro idealizado e elitista. No entanto, é possível encontrar sempre nas obras, alguma passagem em que Machado fala, de maneira menos explicita que Lima, dos mais pobres. Em alguns destes trechos, o autor coloca seus personagens, típicos da elite, para vivenciar cenas e espaços urbanos que apresentavam problemas sociais. É o caso das duas irmãs (EJ) que vão ao Morro do Castelo visitar a vidente que dirá sobre o futuro dos gêmeos Pedro e Paulo. A narração transpassa a denúncia dos espaços empobrecidos da cidade: [...] o Morro do Castelo, por mais que ouvissem falar dele e da cabocla que lá reinava em 1871, era-lhes tão estranho e remoto como o clube. O íngreme, o desigual, o mal calçado da ladeira mortificavam os pés às duas pobres donas. (ASSIS, EJ, 2006, p. 947).

No trecho, a denúncia do “íngreme, desigual e mal calçado da ladeira” se dá pois dificulta a sua subida pelos pés das duas senhoras que certamente não estavam acostumadas àquilo. Quando mais adiante, Natividade e Santos (EJ) vão à missa em São Domingos, também a precariedade do local é vista não como um problema urbano, mas unicamente um incômodo individual. – Venho cheia de pulgas, continuou ela; por que não fomos a São Francisco de Paula ou à Glória, que estão mais perto, e são limpas? Santos trocou as mãos à conversa, e falou das ruas mal calçadas, que faziam dar solavancos ao carro. Com certeza, quebravam-lhe as molas. (ASSIS, EJ, 2006, p. 955).

Machado, portanto, ao falar dos problemas urbanos da cidade os descreve de maneira muito discreta e pontual. São poucas as passagens que tratam disso e quando ocorrem, possuem um realismo seco e antissentimental, adotado também em relação às pessoas pobres que habitam tais lugares (GLEDSON, 2006, p. 355). Mesmo com essa sensação de distanciamento emocional, Gledson acentua que a Machado estas visões não passam indiferentes e se mostram como um desejo de conservar uma dimensão humana que o próprio Machado vivenciou (GLEDSON, 2006, p. 355). A estratégia que o autor utiliza para inserir tais visões em meio às obras é a apontada por Zilberman, em que trata de um trecho de Brás passando próximo ao Valongo: Posicionando o protagonista no centro do cenário criado para a exposição dos escravos e para o exercício do comércio de seres humanos, Machado pode delatar o problema que representa, não por meio de um panfleto denunciatório, mas por intermédio da paisagem que o simboliza. (ZILBERMAN, 2012, p. 132).

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Ou seja, posicionando o protagonista nos espaços precários e empobrecidos da cidade, Machado nos mostra esta realidade, mas nunca com um tom de denúncia, como faz Lima. A autora ainda conclui sobre a presença do espaço urbano em Machado: Quando Machado de Assis se debruça sobre a vida urbana, cuja representação é tênue em sua obra e dá-se pelo viés da percepção de algumas de suas personagens, ele confere à paisagem a condição de texto. O espaço torna-se o significante de um significado moral, conforme se observou. Essa propriedade de seu discurso torna seu autor um alegorista, razão por que a maior parte das cenas em que o mundo urbano aparece [...] constitui fragmento isolado, que descontinuam a sequencia das ações, não sendo depois retomadas. (ZILBERMAN, 2012, p. 145).

Lima Barreto, por outro lado, é essencialmente denunciatório em suas representações, muito presentes e colocadas repetidas vezes nos romances. Suas críticas são ainda mais marcantes quando se trata dos subúrbios. A área suburbana da cidade, à época de Machado, ainda era pouco desenvolvida, não havendo praticamente nenhuma menção sobre ela em suas obras. Mas em Lima, trechos como o seguinte são muito recorrentes: Os subúrbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa coisa em matéria de edificação da cidade. A topografia do local, caprichosamente montuosa, influiu decerto para tal aspecto, mais influíram, porém, os azares das construções. Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e, conforme as casas, as ruas se fizeram. [...] Os cuidados municipais também são variáveis e caprichosos. Às vezes, nas ruas, há passeios, em certas partes e outras não; algumas vias de comunicação são calçadas e outras da mesma importância estão ainda em estado de natureza. (BARRETO, PQ, 2006, 319-320).

Em praticamente todos os romances o narrador de Lima busca um espaço no qual possa se dedicar à descrição dos subúrbios como uma das maneiras encontradas para criticar a valorização exacerbada da área central e o ambiente artificial dos bairros das elites contraposto ao descaso com a área suburbana e precariedade resultante. É uma crítica abrangente que inclui de Botafogo aos subúrbios, passando pela reforma do centro e que se coloca como uma dimensão de uma crítica mais ampla à nossa ordem social. Isso se deve, em parte, ao fato de Lima Barreto ver a literatura pela sua função social transformadora da realidade: Como Lima Barreto via na literatura a função de reforçar a solidariedade entre os homens, explicando-lhes seus defeitos e zombando dos motivos fúteis que os separavam, essa remodelação da cidade do Rio de Janeiro se apresentou como um terreno profícuo para o desenvolvimento dos objetivos de sua escrita. Isso se deve ao fato de que ela promoveu uma maior segregação social, refletindo na organização do espaço urbano a ordem pretendida pelo regime republicano. (NORONHA, 2011, p.04).

Deste modo, nos romances barretianos, há uma crítica focada nas contraposições da cidade, vista por alguém que a conhece perfeitamente pois, ao mesmo tempo que vivenciou os subúrbios cariocas, Lima Barreto tinha total domínio territorial da área central, onde vivia diariamente. Quanto aos espaços de habitação presentes nas obras, as relações entre personagem, localização das moradias e suas características, talvez sejam as marcações mais fortes e de mais fácil percepção das características sociais da cidade atreladas ao texto e componentes do enredo, tanto em Machado quanto em Lima. Exemplo icônico é o bairro de Botafogo. A presença de Botafogo nos romances, tanto de Machado quanto de Lima é bastante forte. Em ambos aparece como símbolo de espaço elitista, embora esta representação seja feita através de marcações distintas. Em Machado, Botafogo é essencialmente local de moradia dos personagens mais enriquecidos. O enriquecido personagem de Rubião (QB) mora no bairro do Botafogo, em uma bela casa herdada de Quincas Borba. Além dele, no final do mesmo romance, Palha e Sofia se mudam para um

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palacete – possivelmente comprado com grande parte do dinheiro do já falido Rubião – no mesmo bairro e buscam demonstrar a todos, a partir desta suntuosa residência, a sua nova posição social. Botafogo ainda é o bairro em que vive a baronesa (ML) e a família de Santos (EJ), marcadamente abastada. Nos romances de Lima Barreto, há também a presença de Botafogo como bairro de moradia dos personagens enriquecidos. É o caso do compadre de Policarpo, Coleoni: Rico com os lucros das empreitadas de construções de prédios, viúvo, o antigo quitandeiro retirara-se dos negócios e vivia sossegado na ampla casa que ele mesmo edificara e tinha todos os remates arquitetônicos do seu gosto predileto: compoteiras na cimalha, um imenso monograma sobre a porta da entrada, dois cães de louça, nos pilares do portão da entrada e outros detalhes equivalentes. (BARRETO, PQ, 2006, p. 294).

Diferente de Machado, a colocação de Botafogo em Lima assume um papel não só de caracterizar a posição social através das habitações dos personagens, mas pode-se dizer que a região assume um papel de sintetizadora do modo de vida da elite no Rio Belle Époque, sendo o bairro caracterizado como espaço de moradia dos abastados, mas também marcado como espaço de exclusão social. Devemos lembrar que nos romances barretianos, a região de Botafogo já está bem mais desenvolvida comparada à descrição nas obras de Machado. Botafogo seria então, para Lima, o extremo oposto dos subúrbios: elitista e admirado pela sociedade carioca da época, alvo, portanto, de crítica de Lima. Essa recorrência pode ser percebida nos comentários de Gonzaga (MJ), alertando o seu amigo Augusto Machado, companheiro de passeios pelo Rio, sobre a necessidade de explorar toda a cidade: “Vocês só conhecem a Tijuca e o Botafogo. O Rio tem mais coisas belas...” (BARRETO, MJ, 2006, p. 574). Assim como a marcação do local de moradia dos personagens demonstra a sua posição social nos romances, a decoração interna muitas vezes é instrumentos dos romancistas para sugerir sentimentos e maneiras de pensar ou viver dos personagens. Nesse sentido, a casa onde mora Clara (CA), de seu pai Joaquim dos Anjos, demonstra a simplicidade, porém cheia de honestidade da família. Clara é, com certeza, a vítima ingênua do romance, que busca seus direitos ao fim do enredo e termina de forma trágica. Seus pais e a casa que elegem para viver refletem a educação que recebeu: [...] Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações. Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu buraco, como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples. Tinha dois quartos; um que dava para a sala de visitas e outro para a sala de jantar, aquele ficava à direita e este à esquerda de quem entrava nela. À de visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. (BARRETO, CA, 2006, p. 638).

No extremo oposto, há a descrição da casa de Cassi Jones, o vilão da história: Tinha boa aparência a residência da família do Senhor Azevedo; mas quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente dela, a parte da cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto, era nova. De fato, quando o pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e modesto chalet, mas, com o tempo, e com sua vagarosa, mas segura, prosperidade, pôde ir, também devagar, aumentando o imóvel, dando um aspecto de boa burguesia remediada. Na frente, não era alto; o terreno, porém, inclinava-se rapidamente para os fundos, de forma que, nessa parte, havia um porão razoável, onde, ultimamente, habitava Cassi. O puxado, na traseira da casa, também tinha porão, porém, com maus quartos, que eram ocupados pelas galinhas do filho e por coisas velhas ou sem préstimo, que a família refugava, sem querer pôr fora de todo. (BARRETO, CA, 2006, p. 746).

A casa em que mora Cassi é descrita com um fator que chama atenção: a sua aparência enganosa, que espelha uma prosperidade recente. Embora tenha uma boa aparência, ao se deter em olhá-la com cuidado, é possível perceber que os elementos que chamam atenção são postiços, sobrepostos em

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uma casa simples. Postiço também é o prestígio social de Cassi no subúrbio, que desaparece quando pisa no centro. Ainda, Cassi mora na parte mais obscura da casa, o porão. Cassi divide o espaço com animais e com “coisas velhas ou sem préstimo, que a família refugava, sem querer pôr fora de todo”. A simbologia é simples e direta, Cassi parece fazer parte destas coisas que a família não consegue se livrar. Embora o pai de Cassi não tenha uma boa relação com ele, a família o continua amparando, especialmente sua mãe, que ofende Clara no fim do romance. A presença das habitações, portanto, parece funcionar dentro dos romances de ambos escritores como elemento bastante forte tanto na composição das cenas urbanas – marcando as características socioespaciais da cidade – como na composição narrativa, enfatizando, sobretudo, aspectos relacionados aos personagens. Avalia-se, com os exemplos destacados neste trabalho, que a cidade é incorporada pelos escritores como elemento de extrema importância dentro da trama narrativa e do ideal literário dos escritores. Embora representem em suas obras a mesma cidade, suas percepções são bem diferentes. Machado de Assis a sintetiza através, prioritariamente, da descrição da sociedade, principalmente da elite carioca, descrição esta feita sobretudo a partir da narração de suas práticas e dos espaços que frequentam. Lima Barreto compõe a cidade através da clara descrição e crítica denunciativa direta dos problemas urbanos, mostrando o modo de vida dos diversos personagens das camadas sociais. O que torna os romances algo mais que um simples relato descritivo da cidade é que, tanto Machado quanto Lima, procuram não só retratá-la com suas transformações, mas compreendê-la. Mostram visões urbanas de formas distintas e selecionadas, com o possível intuito de assinalar aos seus leitores uma maneira de entender a cidade em que viviam, contribuindo para que a literatura se manifestasse como veículo de crítica a uma cidade em intensa transformação.

REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Machado de Assis: Obra Completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2006. BARRETO, Lima. Lima Barreto: Prosa seleta .Organização de Eliane Vasconselos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. CORREIA, Telma de Barros. A Construção do habitat Moderno no Brasil, 1870-1950. São Carlos, RIMA, 2004. GLEDSON, John. Machado de Assis e o Rio de Janeiro em vários tempos. In: GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. NORONHA, Carlos Alberto Machado. Lima Barreto e a “reconstrução” da cidade do Rio de Janeiro: uma análise histórica do romance Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional De História – ANPUH. São Paulo, 2011. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano – Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. Porto Alegre: Ed Universidade/UFRGS, 1999. RESENDE, Beatriz. Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos. Rio de Janeiro: Editora. UFRJ; Editora Unicamp, 1993. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1983. SILVA, Adriana Carvalho. A Leitura Urbana de Lima Barreto em Clara dos Anjos. Espaço e Cultura, UERJ, RJ, nº 25, p. 7-16, jan/jun de 2009.

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TEIXEIRA, Níncia Cecília Ribas Borges. Imagens Urbanas da Cena Escrita: Machado ee Assis e Lima Barreto: um Rio De Janeiro escrito a quatro mãos. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, vol. 5, nº 1, janeiro/março de 2008. TRIGO, Luciano. O viajante imóvel: Machado de Assis e o Rio de Janeiro de seu tempo. Rio de Janeiro: Record, 2001. ZILBERMAN, Regina. Brás Cubas autor Machado de Assis Leitor. Ponta Grossa, Editora UEPG, 2012.

INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE: UMA ANÁLISE DA LINGUAGEM UTILIZADA NA CAMPANHA PUBLICITÁRIA CONTOS DE MELISSA Clícia Frigo* (UPF)

INTRODUÇÃO Os anúncios publicitários buscam cada vez mais inovar e capturar os clientes por outros fatores que não sejam os de uma simples lógica mercantil de demanda e oferta. As agências de publicidade buscando o novo para sua atuação no mercado e idealizando agrupar um número maior de clientes, utilizam de ferramentas do cotidiano ou do imaginário coletivo, acoplando a essas ferramentas os sistemas de valores sociais e ideológicos que a marca ou a empresa deseja difundir no mercado. Uma das estratégias usadas pelas agências é capturar os consumidores por meio de imagens fantásticas que estão armazenadas em seu inconsciente desde muito pequenos. E para essa estratégia nada melhor que a utilização daqueles contos fantásticos que fazem parte da infância de todas as pessoas, os contos de fadas. Esses contos trazem a magia do desconhecido e alimentam a imaginação. Segundo a perspectiva de Bettelheim (1980), é por isso que ainda hoje esses contos perpetuam e continuam sendo encantadores tanto para as crianças como para os adultos. A publicidade armada com esses contos de fadas propõe que seus consumidores adentrem no reino das fadas por alguns instantes por meio de suas propagandas e com elas se encantem fazendo com que entrem em acordo com os valores da empresa em questão. Para esse estudo, serão utilizados dois anúncios publicitários da campanha “Contos de Melissa”, que estão veiculados na revista Capricho, de agosto de 2007. Estes anúncios são constituídos por imagens de personagens típicas das histórias infantis, como Chapeuzinho Vermelho e Cinderela que deixam claro o uso das sandálias da marca Melissa. E neste novo contexto em que foram retratadas, as características angelicais e ingênuas somem e dão lugar a sensualidade, mostrando que as “jovens meninas” cresceram. Tendo como ponto de partida a teoria de Bakhtin acerca dos estudos envolvendo enunciação, linguagem, intertextualidade e interdiscursividade pretende-se nesse artigo estudar as campanhas da Melissa que remetem ao mundo dos contos de fadas e os propósitos de tal remissão. Segundo pesquisas realizadas por Bakhtin em todo discurso há um “eu”, enunciador, que produz um texto ou enunciado e um “tu”, enunciatário, que recebe o texto ou o enunciado, produzido pelo enunciador, mas para que haja a comunicação é necessário que tanto o enunciador quanto o enunciatário estejam inseridos em um mesmo contexto. Trazendo esse conceito de Bakhtin para o corpus que está sendo analisado neste artigo, pode-se dizer que no anúncio publicitário há um “eu”, no caso a empresa, funcionário responsável pela publicidade, que produz um texto, um enunciado, a um “tu”, o enunciatário que é o consumidor da marca, mas para que haja a correta interpretação do anúncio, tanto o “eu” quanto o “tu” devem estar inseridos num mesmo contexto, trazendo a bagagem cultural necessária para essa comunicação. A partir deste conceito percebemos que um texto não está pronto ao ser enunciado, ele deve ser construído junto com seu enunciatário, que o interpreta e assume uma atitude responsiva, todavia, *

Aluna do Mestrando em Letras do Programa de Pós-Graduação em Letras – PPGL da Universidade de Passo Fundo - Brasil; Bolsa Institucional UPF 50%. E-mail: [email protected]

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a correta interpretação depende da bagagem leitora adquirida pelo enunciatário, já que um texto dialoga com outros textos (intertextualidade). Por esse motivo tem-se como objetivo definir interdiscursividade e intertextualidade, como também, analisar seu uso, no anúncio publicitário da Melissa. Juntamente com esse estudo da interdiscursividade e intertextualidade, será feita a definição e análise da linguagem verbal e não verbal na campanha publicitária citada, já que o único texto verbal que acompanha essas imagens é o título da campanha.

1. INTERDISCURSIVIDADE E INTERTEXTUALIDADE Bakhtin desenvolveu através de seus estudos o conceito de dialogismo. Durante seus estudos sua maior preocupação foi a de que um discurso não se constrói do nada, mas sim se elabora a partir do outro. No entanto com o passar do tempo seu pensamento foi exaurido, então o rico conceito de dialogismo se opôs aos conceitos de intertextualidade e interdiscursividade que foram postos em voga por Kristeva. Este conceito de dialogismo, em um mesmo segmento discursivo, vai aparecer no texto através dos conceitos de interdiscursividade e de intertextualidade. A linguagem textual pode se dar através de um texto verbal, de uma imagem, de um gesto, de uma palavra ou de uma frase expressos dentro de um contexto. Desde que a criança nasce ela é uma leitora de mundo, faz observações, antecipações, interpretações e interações, dando significados a tudo que a rodeia. Então toda essa caminhada como leitora é importante para qualquer interpretação, já que todo texto dialoga com outros textos, criando assim uma intertextualidade. Porém, o leitor apenas notará a presença da intertextualidade se tiver leituras anteriores que forneçam a base na identificação dos cruzamentos dos textos. Segundo Fiorin (1994, p. 30), “a intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo”. A leitura é um diálogo em que o autor e o leitor constroem juntos o sentido do texto, o que significa que para a compreensão o leitor deve trazer suas experiências socioculturais e seu interdiscurso, estabelecendo assim leituras diferentes para cada leitor e também diferentes para um mesmo leitor, conforme seus conhecimentos, objetivos e interesses do momento. Ao entendermos o conceito de interdiscurso concordamos com Bakhtin, que diz que todo discurso dialoga com outros discursos e que toda palavra é cercada de outras palavras. Então o que eu enuncio não é somente meu, minha obra prima, também o discurso dos outros me constituiu, consciente ou inconscientemente, por meio de outros enunciados (interdiscurso). “A interdiscursividade é o processo em que se incorporam percursos temáticos ou figurativos, temas e figuras de um discurso em outro” (FIORIN, 1994, p.32). Podemos perceber assim que a interdiscursividade é uma condição da linguagem, pode-se ter um texto sem intertextualidade, mas jamais haverá um texto sem interdiscursividade. A interdiscursividade não implica a intertextualidade, embora o contrário seja verdadeiro, pois, ao se referir a um texto, o enunciador se refere, também, ao discurso que ele manifesta. A intertextualidade não é um fenômeno necessário para a constituição de um texto. A interdiscursividade, ao contrario, é inerente à constituição do discurso. [...] O discurso não é único e irrepetível, pois um discurso discursa outros discursos. Nessa medida o discurso é social. (FIORIN, 1994, p. 35)

Enquanto a interdiscursividade é parte de qualquer discurso e está gravada no inconsciente do sujeito, a intertextualidade é a retomada consciente e intencional da palavra do outro. O intertexto é um texto que fala de outro texto, mas o cruzamento dos textos só é possível de ser verificado se o leitor tiver uma leitura prévia que de suporte a isso, caso contrário o intertexto nem será notado.

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Os criadores dos anúncios publicitários analisados nesse trabalho foram completamente felizes na escolha de seus intertextos, pois buscaram personagens que, com certeza, fizeram parte da infância da maioria das consumidoras da marca. Os anúncios da marca Melissa aqui analisados fazem alusão aos contos de fadas e o enunciatário, ou seja, a consumidora, ao ver o anúncio já entenderá que o que será explorado na propaganda é o imaginário. Mas é muito importante destacar que a captação desse sentido só será possível se esses contos de fadas fizeram parte do contexto em que o enunciatário esteve ou está inserido. A propaganda fazendo uso desses fatores tem como ideia persuadir a consumidora da marca a comprar as sandálias da Melissa, por isso ela foi criada pensando no público a quem quer atingir, já que há alguns anos a marca Melissa era voltada apenas as crianças, que usavam as Melissinhas. Como essas crianças cresceram seus objetivos e visão de mundo também mudaram. Assim, essa mocinha consumidora deseja agora seduzir, e essa campanha publicitária vai de encontro a esse desejo. Os contos de fada recriados nos anúncios da Melissa foram feitos sob a perspectiva de um contexto diferente daquele em que foram escritos originalmente. Esse novo contexto deu nova forma a enunciação e as personagens dos contos de fadas de antigamente foram adaptadas a esse novo contexto. Nestes anúncios de Melissa, a utilização dos contos de fadas visa persuadir a mulher consumidora da marca de sandálias que a Melissa pode transformá-las naquilo que elas desejam e sonham ser, mulheres poderosas. Pode-se dizer assim que o enunciador adaptou os contos ao contexto em que seus receptores estão inseridos, dessa forma a comunicação se dá corretamente e o objetivo de vender o produto é alcançado. A partir de tudo que foi exposto pode-se dizer que um texto ao ser incorporado em outro, só será coerente ao enunciatário a partir do momento em que ele o reconhece e percebe a intenção de sua utilização, já que a intertextualidade se dá de forma implícita, pois como se poderá ver a seguir, foram usadas imagens de mulheres vestidas como as personagens dos contos de fadas, mas em nenhum momento houve a menção dos nomes destas personagens, no entanto, apesar da ausência dos nomes o leitor/enunciatário/consumidor que possui conhecimentos prévios acerca desses contos, consegue recuperar o ambiente retratado.

2. TEXTOS SINCRÉTICOS: VERBAL + NÃO VERBAL O texto como mencionado anteriormente, pode ser uma imagem, um gesto, uma palavra, uma frase, inserida dentro de um contexto, a partir de um enunciado, ou seja, de um conjunto de signos. Percebemos assim que dispomos de linguagem verbal, escrita, e de linguagem não verbal, imagens, gestos entre outros. Por ser um fenômeno social, a comunicação acontece por intermédio de algum tipo de linguagem, que como sabemos se altera conforme o uso que se faz dela. Verbais ou não verbais criamos sinais que tem significados para o grupo de pessoas em que estamos inseridos. As comunidades humanas, espalhadas no tempo e no espaço, têm estruturas de pensamento subjacentes próprias, moldadas segundo suas experiências históricas e expressas por meio de linguagens que lhe são significativas. Como são múltiplas as condições de vida dos núcleos sociais, os códigos inventados para a expressão e a comunicação de suas necessidades são os mais variados. Contudo, podemos dividi-los, em principio, em dois grandes grupos: o verbal e o não verbal. O primeiro organiza-se com base na linguagem articulada, que forma a língua, e o segundo vale-se das imagens sensoriais varias, como as visuais, auditivas, cenestésicas, olfativas e gustativas. (AGUIAR, 2004, p. 25)

As variadas formas de comunicação em massa e as mídias em geral vêm sendo estudadas e analisadas por diferentes áreas do conhecimento e por variadas perspectivas teóricas. Mas a semiótica é uma das teorias que vem se destacando nesses estudos. A teoria semiótica é uma ciência que tem por objeto de investigação todas as formas de linguagem, ou seja, estuda todo e qualquer

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fenômeno de produção de significação e sentido. Não trata somente do verbal linguístico, mas do extralinguístico, como a música, o teatro, a poesia, o cinema, as propagandas, as noticias e as imagens. A semiótica de linha francesa tem por finalidade o exame dos processos de significação dos textos, para mostrar o que o texto diz, que sentidos produz e com que procedimentos linguístico-discursivo constrói os sentidos. Entre esses procedimentos incluem-se as relações intertextuais e interdiscursivas que contextualizam o texto em exame. Trata-se de uma teoria geral, que procura dar conta dos diferentes níveis de organização dos textos e dos discursos. (BARROS, 2012, p. 26)

Entre tantas funções a principal ao se estudar o texto e o discurso é contribuir de alguma forma para o conhecimento da linguagem e, pela linguagem, do homem, bem como possibilitar o conhecimento da história, da sociedade e da cultura. O texto, produto das escolhas de um enunciador e do fazer interpretativo de um enunciatário, compreende uma complexa rede discursiva caracterizada pela escolha de gêneros textuais, instauração de estratégias argumentativas e adoção de determinados modos de interação. Todo texto faz uso de ferramentas discursivas, para demonstrar formalidade ou informalidade, construir efeitos de aproximação ou distanciamento, simular objetividade ou subjetividade. Para dar conta de textos formados pela multiplicidade de linguagens, como um cartaz, uma página de jornal, um anúncio publicitário, um blog ou uma história em quadrinhos, a semiótica operacionaliza o conceito de sincretismo, “serão definidos como sincréticos os textos cujo plano de expressão é caracterizado pela mobilização de múltiplas linguagens apreendidas na mesma enunciação” (TEIXEIRA, 2014, p. 320). O conceito de sincretismo vem de encontro ao estudo de textos que são formados por mais de uma forma de linguagem, textos que fazem o uso de imagens e verbal, para chamar ainda mais atenção do leitor. A Teoria Semiótica mostra assim que toda comunicação é uma forma de manipulação e que são utilizados pelo enunciador quatro diferentes modos de persuasão, a tentação, na qual se apresentam os valores que o interlocutor deseja; a intimidação, em que são apresentados os valores que o interlocutor teme e quer evitar; a sedução, em que são apresentadas imagens positivas do interlocutor e de sua competência; e por fim a provocação, em que são apresentadas imagens negativas do interlocutor e de sua competência. Mas para que essa manipulação funcione o interlocutor precisa interpretar a persuasão do outro, caso contrário à comunicação não será completa e não terá o fim desejado. Nos dois anúncios aqui analisados há, além da imagem, apenas o registro “Contos de Melissa”, no canto superior das figuras, remetendo ao tipo literário “Contos de Fadas”. Não há presença de mais nenhuma linguagem verbal para completar a mensagem intencionada pela propaganda. No entanto, por mais que não haja outro elemento de linguagem verbal, é clara a ideia que o anúncio cria. Isso é proporcionado pela intertextualidade criada entre as imagens elaboradas pela marca Melissa e os contos de fadas associados a elas, que tem como base o conhecimento de mundo, a bagagem leitora do interlocutor. Entendido o texto como um entrelaçamento de outros textos, no qual se pode observar a estrutura gerativa de sentido, a teoria semiótica pressupõe que “a descrição de uma estrutura não é mais que a construção de um modelo metalinguístico, percebido em sua coerência interna e capaz de mostrar o funcionamento, no seio de uma manifestação, da linguagem que se supõe descrever” (GREIMAS, 1967, p. 125). A publicidade oferece ótimos exemplos de organização enunciativa em textos verbais, visuais e sincréticos, que mostram assim, a importância de uma proposta geral de enunciação que permita o exame e diferentes tipos de textos. Munindo-se com esses conceitos, instrumental teórico, parte-se para a análise do corpus em questão.

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3. O CORPUS – OS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS “CONTOS DE MELISSA” Existem três palavras que são capazes de prender a atenção de qualquer um, Era uma vez..., mas não são apenas essas palavras que exercem o poder, mas sim o que elas significam e o que introduzem. O que vem após essas três palavras mágicas é capaz de despertar sonhos e marcar memórias para sempre, e é desta maneira que começam a maioria dos contos de fadas. A campanha publicitária “Contos de Melissa”, da marca de mesmo nome, Melissa, foi encomendada pela Grendene, uma empresa voltada para a fabricação de calçados, e tinha como objetivo divulgar a sua nova coleção para a estação primavera/verão 2008, usando como meio a revista Capricho e visando o publico feminino, consumidor da marca. O anúncio “Contos de Melissa” utilizou-se de um fundamento que foi aderido a sociedade há muitos séculos, as narrativas dos contos de fadas. Os contos de fadas sempre existiram e fizeram parte da história do homem, fazendo parte de seu imaginário. Assim sendo, as personagens criadas nos anúncios fazem parte de uma história, como as personagens das narrativas e elas nos remetem a algo através de suas ações, criam novas personalidades que se mesclam as situações do mundo moderno e transmitem a mensagem desejada pelo enunciador. E toda essa junção de surreal e magia com o real permite que a consumidora sinta-se atraída pelo anúncio. A partir da utilização do termo “contos”, de algumas características das roupas, dos personagens, e do lugar em que se passa a cena, entre outros fatores, é possível perceber a intertextualidade entre a infantilidade dos contos de fadas e as atitudes de mulher adulta, segura de si, tirando partido da pureza e inocência das personagens originais, transformando-se me personagens sedutoras e maliciosas com postura de mulheres dominadoras capazes de incitar desejos e fantasias, ainda que com ares de pureza e inocência. Percebe-se assim que o enunciador na publicidade “Contos de Melissa” fez uma releitura das narrativas de Chapeuzinho Vermelho e Cinderela, atribuindo as personagens atitudes eróticas, de apelo amoroso e sexual, contrárias às observadas nos contos originais que são pureza, inocência, ingenuidade e fraternidade, permitindo-se assim atingir seu público alvo, que está passando pela transição de idade infantil a adulta. Isso significa que a forma como a publicidade representa a figura feminina impacta na subjetividade delas, as consumidoras da marca, afetando assim seu consumismo. A publicidade trabalha com a ligação de ideias, ela se utiliza de uma forma de raciocínio em que uma ideia é ligada a outra, isso significa que, o publicitário parte de um conhecimento comum da sociedade para criar suas peças/anúncios. Ao utilizar-se de elementos dos contos de fadas, a publicidade aumenta suas chances de a mensagem que esta passando ser reconhecida, recebida e armazenada na memória das pessoas que possuem aquele conhecimento prévio. É do conhecimento de todos que os contos de fadas são carregados de magia e encantamentos, que permitem fantasias, aliás, no mundo das fadas tudo é possível. Assim toda campanha da Melissa é marcada pelo apelo presente nessas personagens. Porém, esses contos não são mais simples contos de fadas, mas sim de Melissa, “Contos de Melissa”, indicando que são de posse da mesma. É também muito importante ressaltar que a única preocupação que a marca teve em usar linguagem verbal, foi através desta frase. Embora os dois anúncios publicitários estejam relacionados aos contos de fadas, é possível apontar diferenças quanto à atualidade.

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Texto I:

Chapeuzinho Vermelho Este anúncio mostra uma moça vestida de vermelho carregando uma cesta e a figura de um lobo, que remetem ao conto Chapeuzinho Vermelho. Na versão original a narrativa é revestida de uma conotação infantil, na qual, o lobo, que serve como um intimidador para a desobediência das crianças, usa de certas artimanhas para enganar as meninas inocentes, já nos “Contos de Melissa”, o lobo não precisa de grandes artimanhas para desviar Chapeuzinho de seu caminho, nem Chapeuzinho é inocente. Chapeuzinho Vermelho, identificada principalmente pela capa vermelha, é representada no anúncio por uma mulher alegre, não mais uma menina, aparentemente sedutora, logo, longe da ideia de ingenuidade. Chapeuzinho tem cabelo loiro, que preso para traz torna o rosto mais claro e reluzente, ressaltando a beleza e graciosidade e colabora para o perfil da mulher independente, dinâmica e que valoriza a aparência. Ela veste cinta liga e regata e sapatos vermelhos, cor que simboliza a paixão, sedução e sexualidade, porém usa meia 7/8 branca que simboliza a pureza, mostrando que sua atitude não é de total malícia. Chapeuzinho carrega uma cesta, não mais cheia de doces como no conto original, mas com uma garrafa de champanhe que remete a ideia de comemoração. O lobo por sua vez usa óculos de sol, jaqueta de couro preta e piercing na orelha, fiel reprodução de um “ser” homem atual. Ele traz em seu rosto um sorriso rasgado e a língua a mostra no canto da boca. O lobo e Chapeuzinho montam uma motocicleta robusta que possui o desenho de chamas, que assim como a cor vermelha, remete ao erotismo. Quem guia a moto é o lobo, mostrando que é ele quem escolhe a direção do casal. A cena se passa na floresta, mas ao contrário da original esta é iluminada e aconchegante, mas a moto segue o caminho contrário da luz, que novamente nos remete a ideia de perigo. A floresta aqui retratada esta repleta de animais que se mostram curiosos com a

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cena que vêem. Os coelhos representam a fertilidade, remetendo ao erotismo novamente. Há também a presença de uma coruja, que gira o pescoço para acompanhar a cena, um veado atrás de uma árvore e um rosto estampado na árvore, todos observando a aventura do casal. Observando-se a imagem percebe-se que o cenário e os personagens são mais modernos que os originais, Chapeuzinho e o lobo não estão mais a pé, ela parece bastante animada com o passeio ao lado do lobo, e na imagem não aparece nem um caçador que possa proibir os desejos da jovem, que é livre para fazer suas escolhas e embarcar em aventuras. A mensagem deixa clara a ideia de que se o enunciatário, no caso as mulheres, usarem as sandálias da Melissa, se tornarão atraentes e desejadas e possuirão o poder sobre suas escolhas. Texto II:

Cinderela Neste segundo anúncio vemos uma linda moça entrando em uma carruagem e um homem sentado na escadaria segurando um belo sapato deixado pela moça. Este anúncio retrata o conto “Cinderela”, que em sua nova versão possui pele morena. Percebe-se que ela veste um corpete e sua expressão facial conota a sensualidade, desejo e ousadia. Nota-se que ela parece não ter perdido o sapato, mas sim deixado para traz de propósito, assim como o trilho de peças de roupa que fez até a carruagem. A carruagem também ganhou ares de modernidade com espelhos, rodas esportivas e som potente. Pelas janelas do castelo percebemos que o baile é dominado por luzes coloridas, totalmente contrárias ao clássico baile do conto original. Além de tudo não há nem um relógio que faça referência ao horário do fim do encanto, mostrando que a moça não se preocupa com isso, já que permanecerá encantada para sempre. No conto original Cinderela é submissa e não vai atrás do que

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quer, já da maneira que foi retratada na campanha é sedutora, poderosa e capaz de conquistar o que deseja. Pode-se destacar que tanto o conto original quanto a releitura são perfeitos para a campanha da Melissa já que os dois deixam claro que um sapato pode mudar a vida de uma mulher, deixando-a mais bela, desejada, realizada e segura de si dando-lhe a possibilidade de encontrar seu príncipe encantado. Após a análise individual de duas das imagens que constituem a campanha “Contos de Melissa” percebe-se semelhanças entre elas, as princesas vestem trajes sensuais explorando a eroticidade, os cenários são claros, bonitos e agradáveis, e há abundância e luxo, resultado da sociedade consumista dos dias de hoje. O texto sendo sincrético possui também elemento verbal, que é o título da campanha “Contos de Melissa”. Imagem e palavra se completam e se relacionam de tal maneira que um vem para completar o outro ou acrescentar informações que só um deles não é capaz de transmitir. Retomando o conceito de Fiorin sobre intertextualidade, pode-se dizer que elementos como, lobo mau, roupa vermelha, carruagem, entre outros das específicas narrativas dos contos de fadas foram incorporados nos anúncios da Melissa, entretanto o perfil das personagens foi se transformando, de moças ingênuas para sensuais. Como se pode notar, o texto publicitário tende sempre a um objetivo, simples e bem-humorado para cumprir seu papel de persuasão, por meio do estímulo dos sentimentos e da emoção, que por sua vez, regula a intensidade da manipulação sobre o enunciatário.

CONCLUSÃO A partir dos estudos feitos e da análise dos anúncios publicitários percebe-se que todo texto é um interdiscurso que depende de um enunciatário, e a intertextualidade aparece nos casos em que há o cruzamento de dois ou mais materiais textuais que se completam e tornam o texto um jogo de esconde-esconde com o leitor, pronto para ser decifrado. Na análise dos anúncios nota-se claramente a importância da intertextualidade e como ela está presente nos anúncios analisados, uma vez que sem esta os sentidos dos anúncios estariam reduzidos, o que diminuiria em muito o poder de persuasão, que depende quase que basicamente da interpretação do plano visual para completar o plano de conteúdo. Houve o embasamento nas teorias de Bakhtin, Fiorin, Barros, Gomes, para analisar até que ponto a referência a outros textos é importante e significativa ao leitor, já que a partir do momento que o enunciatário desconhece o texto original, ele não entenderá o sentido do texto influenciado. Constatou-se também a semiose entre o verbal e o visual, que juntos conseguem conscientizar o enunciatário sobre algo que apenas um deles não seria capaz. Os anúncios analisados são formados essencialmente pela linguagem visual, em vista de a única marca de verbalidade ser o título da campanha, “Contos de Melissa”. A linguagem não verbal é fortemente marcada e influenciadora no sentido destes textos. Os elementos não verbais presentes na campanha relacionam-se com a questão da sedução, e a partir da não verbalidade os textos seduzem as mulheres a comprarem os calçados da marca Melissa. Os contos de fadas são fonte de inspiração para as mais variadas áreas, desde a literatura até os produtos midiáticos. E por fazerem parte do imaginário de diversas gerações, eles são utilizados pela publicidade de forma recorrente. A empresa cria uma atmosfera de fantasia e encantamento que desperta a atenção do consumidor, fazendo-o acreditar que os produtos que a empresa oferece funcionam como fórmulas mágicas para resolver todos os problemas. Nos anúncios aqui analisados as personagens dos contos de fadas são transportadas para a realidade do mundo de hoje, adquirem nova postura e passam a ter outros objetivos, diferente das personagens dos contos originais. As

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personagens destas campanhas mostram que a mulher tem o poder de ser o que quiser desde que esteja usando o produto que a marca vende. Para concluir esse estudo, pode-se dizer que apesar de possuir a mínima presença de linguagem verbal, estes anúncios dizem muito através da linguagem visual. A presença da intertextualidade, de elementos verbais e não verbais e da influência do meio na enunciação, torna o anúncio significativo para seu enunciatário/consumidor (a), influenciando fortemente a mulher consumidora da marca a comprar este produto. Afinal, seduzir é o que a consumidora da Melissa deseja.

REFERÊNCIAS AGUIAR, Vera Teixeira de. O verbal e o não verbal. São Paulo: Editora UNESP, 2004. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Traduzido do russo por Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011. Título original: Estetika Sloviésnova Tvórtchestva. BARROS, Diana Pessoa de. Algumas reflexões semióticas sobre a enunciação. In: FANTI, Maria da Glória di; BARBISAN, Leci Borges (orgs.). Enunciação e discurso: tramas de sentido. São Paulo: Contexto, 2012. P. 25-49. BETTELHEIM, Bruno. Psicanálise dos Contos de Fadas. Traduzido por Arlene Caetano. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. Título Original: The uses of enchantment: the meaning and importance of fairy tales. FIORIN, José Luiz. Polifonia Textual e Discursiva. In: BARROS, Diana Luz P. de; FIORIN, José Luiz (orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakthin. São Paulo: Editora da USP, 1994, p. 29 – 36. GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. Tradução de Alceu Dias Lima et al. São Paulo: Contexto, 2008. REVISTA CAPRICHO. São Paulo: Editora Abril, Edição 1025, Agosto de 2007. TEIXEIRA, Lúcia; FARIA, Karla; SOUSA, Sílvia. Textos multimodais na aula de português: metodologia de leitura. In: Desenredo: revista do Programa de Pós-graduação em Letras/Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, v. 10, n. 2, p. 314-336, jul./dez. 2014.

LINGUAGEM, OBJETOS MATEMÁTICOS E EDUCAÇÃO PARA ARISTÓTELES: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Débora Peruchin* (UCS)

Este trabalho apresenta algumas considerações sobre a concepção de linguagem para Aristóteles e a relaciona com educação e Matemática. Para Aristóteles, a linguagem é instrumento de acesso à realidade, sendo essencialmente comunicativa. Quanto à Matemática, Aristóteles a considera uma ciência de aspectos abstratos e defende que os objetos matemáticos são acessíveis aos homens pelo conhecimento e pelos sentidos. Como base para este trabalho, foram utilizados textos de pesquisadores sobre o pensamento de Aristóteles, relacionados à linguagem e à Matemática, além da obra Retórica, tida como foco de estudo quanto à concepção aristotélica de linguagem.

1. INTRODUÇÃO Aristóteles (384 – 322 a.C.) é um dos mais geniais filósofos gregos (GADOTTI, 2004). Nasceu na cidade de Estagira e, por ser de uma família abastada, recebeu uma educação privilegiada (BARBOSA, 2009). Aos 17 anos, Aristóteles foi à Atenas e iniciou seus estudos na Academia de Platão, fato que, conforme Barbosa (2009), “mudaria para sempre a história”. Os estudos da língua e da linguagem receberam grande influência dos gregos, especialmente de Platão e Aristóteles. Para Aristóteles, a língua tem caráter arbitrário, por ser apenas uma convenção entre os homens. Os nomes são símbolos das coisas e o som é símbolo do que está na alma. Do descompasso entre o conceito e o que está na alma, o discurso é percebido como verdadeiro ou falso (PAVIANI, 2012). A natureza da linguagem humana é apresentada por Aristóteles considerando o homem como ser político e sua capacidade de falar, o que o diferencia dos animais não racionais (PAVIANI, 2012). A curiosidade sobre a linguagem humana é tema de discussões entre filósofos e sábios desde a Antiguidade até os tempos atuais. No final do século XVIII, a linguística – ciência que estuda a linguagem – foi a primeira disciplina de humanidades a receber status científico (BIZZOCCHI, 2000). No decorrer do desenvolvimento das culturas, surgem novos problemas práticos e teóricos. Entre os produtos da cultura humana está a Matemática, promovendo constantes questionamentos que necessitam da filosofia para um tratamento adequado (SILVA, 2007). Aristóteles, especialmente, exerceu grande influência na história da matemática, refletindo sobre a mesma e determinando o rumo do seu desenvolvimento. Conforme Silva (2007), a Matemática fornece às ciências empíricas uma linguagem e um aparato conceitual apropriados, questões estas discutidas por Aristóteles. Considerando a influência de Aristóteles para a Matemática e sabendo que, para ele, a linguagem é essencialmente comunicativa e é meio de acesso à realidade, pergunta-se: Como a educação e a Matemática podem ser pensadas a partir da concepção de linguagem de Aristóteles?

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (RS), Brasil. Licenciada em Matemática pela mesma universidade. E-mail: [email protected]

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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2. ARISTÓTELES E LINGUAGEM: COMUNICAÇÃO A ciência, em Aristóteles, é pensada a partir da percepção sensível, considerando que sentir, elaborar, recordar e imaginar libertam o homem. O ato de pensar tem seu grau superior na abstração, a capacidade de pensar sem a presença da coisa, permitindo ao ser humano fazer ciência e distinguindo-o dos outros animais (LOPES, 2008). Aristóteles privilegia a proposição como sentença declarativa, característica da linguagem científica (ROCHA, 2005). Os filósofos gregos consideravam que linguagem e pensamento eram iguais, então para compreender o pensamento precisavam estudar a linguagem (BIZZOCCHI, 2000). Aristóteles, assim, propôs categorias do pensamento, como substância, atributo e ação, o que Bizzocchi (2000) explica ser uma proposta das classes gramaticais atuais, correspondendo a substantivo, adjetivo e verbo. Além disso, Aristóteles definiu também a primeira concepção de signo linguístico: um som com significado estabelecido (BIZZOCCHI, 2000). Por exemplo, a palavra cão representa esse animal por ter sido estabelecido assim por convenção (BIZZOCCHI, 2000). Conforme Dinucci (2009), Aristóteles considera que a palavra é símbolo de um estado psíquico – imagem das coisas reais –, de modo que o ser não se relaciona com a linguagem de forma imediata e a linguagem não tem relação de semelhança com as coisas. As palavras não são naturais, são convencionais e diferentes de acordo com cada língua. Aristóteles observa que as palavras dependem das regras de uso de cada comunidade, por terem o caráter convencional, portanto não são significantes por elas mesmas, ao contrário dos estados de alma, que são semelhantes às coisas a que correspondem (DINUCCI, 2009). As palavras, vozes significativas convencionais, são compostas por partes que por si só não são significativas, são apenas sons vocais sem um sentido. Para adquirirem significado, as palavras devem ser constituídas de uma estrutura articulada, que é convencional (DINUCCI, 2009). Para Aristóteles, o homem utiliza os símbolos linguísticos para pensar, portanto o discurso reflete as coisas reais simbolizadas pela linguagem. Assim, o discurso é verdadeiro quando se assemelha às próprias coisas, e falso quando não reflete conexões reais (DINUCCI, 2009). Aristóteles declarou-se contrário aos sofistas pelo fato de estes serem indiferentes à verdade e considerarem a palavra como uma maneira de dominar as relações humanas ao utilizá-las para explorar o poder de persuasão (ROCHA, 2005). Um signo, conforme Aristóteles, é o que manifesta alguma coisa que não ele próprio. Para Aristóteles, a linguagem humana tem caráter simbólico, pois quem fala comunica um conteúdo determinado a quem escuta. Ao considerar que as palavras significam, Aristóteles reconhece que por meio do discurso o ser humano não somente fala a alguém, mas também fala de algo determinado (DINUCCI, 2009). A linguagem, para Aristóteles, não manifesta a realidade, mas a significa; não é reprodução, é o símbolo do real. Conforme Rocha (2005), para Aristóteles os sons emitidos pela voz são símbolos dos estados da alma e a escrita é o símbolo dos sons emitidos pela voz. Desse modo, os nomes são correspondem às coisas, são apenas os seus símbolos (ROCHA, 2005). res e parte essencial das funções humanas (ALEXANDRE JÚNIOR, 2005 apud ARISTÓTELES, 2005). No prefácio da obra Retórica, Alexandre Júnior afirma que a retórica aristotélica, enquanto arte e ciência, é “instrumento mediante o qual podemos inventar, reinventar e solidificar a nossa própria educação” (ALEXANDRE JÚNIOR, 2005 apud ARISTÓTELES, 2005, p. 10). Na obra Retórica, Aristóteles afirma que o discurso deve comunicar com clareza para cumprir sua função adequadamente, pois “a virtude suprema da expressão enunciativa é a clareza” (ARISTÓTELES, 2005, 1404b). É importante destacar o caráter comunicativo que Aristóteles atribui ao discurso.

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Conforme Aristóteles, é preciso expressar-se corretamente, conforme cinco aspectos gramaticais principais: utilizar as partículas coordenativas conforme a natureza das mesmas; empregar termos específicos, e não gerais; não utilizar vocábulos ambíguos; distinguir o gênero das palavras – masculino, feminino e neutro; empregar singular e plural de forma correta (ARISTÓTELES, 2005, 1407a-1407b). Quanto à construção das frases, Aristóteles afirma que os períodos não devem ser nem muito breves nem muito extensos (ARISTÓTELES, 2005, 1409b). O ritmo do discurso deve ser adequado, de modo que a expressão não seja “nem métrica nem desprovida de ritmo” (ARISTÓTELES, 2005, 1408b). Segundo ele, o final do discurso deve ser claro não porque possui a marca de parágrafo, mas sim por haver um ritmo adequado (ARISTÓTELES, 2005, 1409a). Aristóteles afirma ainda que a aprendizagem é agradável a todos e que as palavras, tendo significado, são agradáveis na medida em que proporcionam conhecimento (ARISTÓTELES, 2005, 1410b). Ao longo da obra Retórica, Aristóteles explica como um discurso deve ser bem feito. Sua concepção de linguagem é essencialmente enunciativa, pensada em seu uso e considerada como forma de acesso à realidade.

3. ARISTÓTELES E FILOSOFIA DA MATEMÁTICA Aristóteles exerceu grande influência na história da Matemática, não apenas no desenvolvimento da mesma, mas também ao refletir sobre a matemática por meio da filosofia (SILVA, 2007). As principais questões envolvem a natureza dos objetos matemáticos e o caráter do conhecimento matemático, conforme Silva: O que estuda a matemática? A resposta óbvia: a matemática trata de números, figuras, e outros objetos abstratos do gênero; mais que uma solução, é fonte de novos questionamentos, pois o que são, afinal, os números, as figuras e os outros objetos matemáticos; que realidade atribuir-lhes, são meras invenções nossas ou existem independentemente de nós e, em caso afirmativo, que lugar habitam, já que não são objetos espaço-temporais? Em geral, que tipo de objeto é um objeto abstrato da matemática? (SILVA, 2007, p.14)

Aristóteles, discípulo de Platão, discordava da filosofia do mestre em alguns pontos. Platão foi um dos primeiros filósofos e matemáticos a buscar fundamentos para estruturar a Matemática com o rigor de uma ciência. Para ele, os objetos matemáticos eram ideais, perfeitos e verdadeiros, e somente eram acessíveis à mente humana pelo conhecimento. O homem deveria, assim, se esforçar para conhecê-los e, consequentemente, evoluir (MONDINI, 2008). A Matemática, de acordo com a filosofia platônica, é “uma verdade independente de qualquer verificação empírica” (MONDINI, 2008). Os objetos matemáticos, para Platão, são um modelo para as formas mundanas e aparecem no mundo humano apenas como uma reprodução grosseira do que realmente são: “o mundo em que vivemos seria como uma imagem imperfeita refletida num espelho imperfeito do mundo das ideias” (MONDINI, 2008, p. 2). Desse modo, para Platão, um matemático não cria objetos, e sim os descobre. Aristóteles também considerava que a Matemática existe independente do ser humano. Para ele, porém, os objetos matemáticos estão no mundo humano, e não fora dele, e são acessíveis às pessoas pelo conhecimento e pelos sentidos, apesar de considerar que os sentidos não são confiáveis em plenitude. Segundo Aristóteles, o homem não é apenas um descobridor, como apresentado na filosofia de Platão. O homem, conforme a ideia aristotélica, é construtor do mundo matemático, com poder de criar e pensar sobre a Matemática (MONDINI, 2008). Aristóteles considera que a Matemática estuda os objetos matemáticos como uma abstração a partir de aspectos dos objetos empíricos (SILVA, 2007). Ao tomar-se uma bola como uma esfera, por exemplo, abstrai-se da bola a sua forma geométrica:

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Uma bola é apenas aproximadamente uma esfera. Como, então, podemos tratá-la matematicamente como uma esfera? [...] A abstração aristotélica, a operação pela qual consideramos objetos e coleções de objetos empíricos como objetos matemáticos, comporta também um elemento de idealização. Tratar uma bola como uma esfera é uma operação complexa: abstrai-se da bola a sua forma mais ou menos esférica e, simultaneamente, idealiza-se essa forma, isto é, desconsideram-se as diferenças entre ela e a esfera matemática perfeita (determinada pela sua definição como um lugar geométrico de pontos espaciais equidistantes de um centro). Uma esfera matemática é, assim, a idealização de um aspecto da bola, e só assim ela existe (SILVA, 2007, p. 46).

Para Aristóteles, assim como para Platão, a verdade matemática é independente da ação de um sujeito, mas enquanto Platão considera que é possível acessá-la contando apenas com o entendimento, Aristóteles defende que é preciso também contar com os sentidos. Para Platão, caso o mundo experimentado pelos sentidos deixasse de existir, nada aconteceria à Matemática. Aristóteles, ao contrário, acredita que isso destruiria as verdades matemáticas (SILVA, 2007). Segundo Aristóteles, os objetos matemáticos existem independentemente de um sujeito, mas não estão separados dos objetos reais, de forma que os considera objetos do mundo em que se vive e não de um mundo de ideias, como defende Platão (SILVA, 2007). Conforme explica Silva: Para Platão, o mundo real apenas reflete imperfeitamente um mundo puro de entidades perfeitas, imutáveis e eternas – os conceitos matemáticos entre elas. Para Aristóteles, o mundo sensível é a realidade fundamental, os entes matemáticos são “extraídos” dos objetos sensíveis por meio de operações do pensamento, e os conceitos matemáticos são apenas modos de tratar o mundo real (SILVA, 2007, p. 37).

Os objetos matemáticos para Aristóteles, portanto, são abstratos e independem de um sujeito para existir, porém precisam da ação de um sujeito para tornarem-se efetivamente objetos. O conhecimento matemático, para ele, é um conhecimento intelectual que envolve os sentidos para que se tenha acesso aos objetos matemáticos, pois são apenas aspectos de objetos reais (SILVA, 2007). Para Aristóteles, a Matemática se aplica ao mundo real por ser “uma ciência (racional) de aspectos abstratos do mundo empírico” (SILVA, 2007, p. 56). Para Aristóteles, a ciência tem caráter universal e uma conclusão não pode ser alcançada apenas com a repetição de um determinado experimento. Para demonstrar que determinado triângulo contém dois ângulos retos, por exemplo, é preciso demostrar que isso é válido para todo triângulo. Assim, são necessárias demonstrações e definições universais, tanto na ciência, em geral, como especificamente em Matemática (BARBOSA, 2009). Aristóteles foi importante na Matemática principalmente por ter desenvolvido uma estruturação lógica para o raciocínio matemático, considerando que são necessárias regras para atingir a verdade científica e construir conhecimentos seguros (PEDROSO, 2009). Aristóteles sistematizou o estudo da lógica e do raciocínio dedutivo. Um exemplo clássico é partir das premissas “Todos os homens são mortais” e “Sócrates é homem” para concluir que, portanto, “Sócrates é mortal” (FLOOD; WILSON, 2013, p. 25). A ciência, para Aristóteles, precisa de coerência interna e deve ser construída a partir de um encadeamento lógico de verdades (PEDROSO, 2009). Aristóteles, assim, deu contribuições importantes e decisivas para o desenvolvimento da Matemática.

4. ARISTÓTELES E EDUCAÇÃO Aristóteles considera que as ideias estão nas coisas como a própria essência das mesmas, contrariando o idealismo de Platão. Quanto à sua concepção educacional, Aristóteles também é realista e considera três fatores principais para o desenvolvimento humano: disposição inata, hábito e ensino (GADOTTI, 2004). Para Aristóteles, a educação é condicionante e pode levar o homem a tornar-se

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a melhor ou a pior criatura. Para ele, o homem aprende fazendo, da mesma forma que torna-se justo ao agir de forma justa (GADOTTI, 2004). A aprendizagem é discutida por Aristóteles, que questiona como é possível aprender os elementos de todas as coisas sem saber algo antes. Afirma, assim, que todo aprendizado parte de premissas anteriormente conhecidas e ocorre por meio de demonstração ou definições (CURY, 1994). Conhecimento e ensino, para Aristóteles, são inseparáveis, pois considera que a capacidade de ensinar difere quem sabe de quem não sabe. Para ele, é mais sábio quem tem mais conhecimento em uma ciência e quem tem capacidade de ensiná-la a outros (BARBOSA, 2009). O ensino, assim, para Aristóteles, ocorre por meio da linguagem, em sua função comunicativa de falar algo determinado a alguém.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Aristóteles, como um dos grandes filósofos da Grécia Antiga, deixou importantes contribuições à ciência. Ao estruturar a lógica, considerando a abstração do ato de pensar, Aristóteles pensou a Matemática juntamente com a filosofia, questionando-se a respeito do caráter do conhecimento matemático. Para ele, os objetos matemáticos estão no mundo humano e, por meio do conhecimento e dos sentidos, tornam-se acessíveis ao ser humano. Percebe-se aqui que a linguagem é considerada por Aristóteles como instrumento de acesso aos objetos matemáticos. A educação é pensada por Aristóteles também em relação com suas ideias a respeito da Matemática e da linguagem. Para ele, a aprendizagem ocorre a partir de demonstrações considerando premissas anteriormente conhecidas. Desse modo, o homem aprende fazendo. Aristóteles considera que um homem sábio, além de ter conhecimento sobre o assunto, deve ser capaz também de ensiná-lo. Ele considera que o homem comunica determinado conteúdo por meio do ensino e, para isso, utiliza como ferramenta a linguagem. A linguagem para Aristóteles assume caráter simbólico: os nomes são símbolos das coisas, não correspondem a elas. As palavras, na relação entre nome e coisa, são consideradas convenção. Além disso, Aristóteles considera que os enunciados devem ser expressados com clareza, tendo em vista o caráter comunicativo do discurso. Por meio da obra Retórica, é possível observar que o discurso de Aristóteles é coerente com o que ele mesmo orienta a respeito de como deve ser um bom discurso: com ritmo adequado, respeitando as regras gramaticais e expondo os assuntos de forma convincente, ou seja, pensando em comunicar adequadamente algo a alguém. A linguagem para Aristóteles, reafirma-se, é concebida em sua função comunicativa.

REFERÊNCIAS ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel. Prefácio. In: ARISTÓTELES. Retórica. 2 ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. (Obras completas de Aristóteles; Volume III, Tomo I). p. 9-11. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2015. ARISTÓTELES. Retórica. 2 ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005. (Obras completas de Aristóteles; Volume III, Tomo I). p. 244-274. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2015. BARBOSA, Gustavo. Platão e Aristóteles na Filosofia da Matemática. 2009. 135 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Educação Matemática, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2009. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2015.

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BIZZOCCHI, Aldo. O fantástico mundo da linguagem. Ciência Hoje, v. 28, n. 164, set. 2000. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2015. CURY, Helena Noronha. As concepções de Matemática dos professores e suas formas de considerar os erros dos alunos. 1994. 276 f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, nov. 1994. Disponível em: . Acesso em: 24 jul. 2015. DINUCCI, Aldo. Notas sobre a teoria aristotélica da linguagem. Cadernos UFS de Filosofia, Sergipe, v. 5, p. 7-16, jan/jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2015. FLOOD, Raymond; WILSON, Robin. A história dos grandes matemáticos: as descobertas e a propagação do conhecimento através das vidas dos grandes matemáticos. São Paulo: M.Books, 2013. GADOTTI, Moacir. História das ideias pedagógicas. 8 ed. São Paulo: Ática, 2004. LOPES, Rosa Guedes. Quem é o sujeito da psicanálise? Tempo psicanalítico, Rio de Janeiro, v.40.2, p. 249-272, 2008. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2015. MONDINI, Fabiane. O logicismo, o formalismo e o intuicionismo e seus diferentes modos de pensar a matemática. XII Encontro Brasileiro de Estudantes de Pós-Graduação em Educação Matemática. Rio Claro, SP, 2008. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2015. PAVIANI, Neires Maria Soldatelli. Estudos da linguagem na educação. Caxias do Sul: Educs, 2012. PEDROSO, Hermes Antonio. História da matemática. 2 ed. São José do Rio Preto: Gráfica da UNESP, 2009. ROCHA, Antônio Wagner Veloso. A análise da linguagem: linguagem essencial e linguagem de informação. In: ______. Heidegger: da pergunta pela filosofia à essência da poesia. 2005. Dissertação (Mestrado) - Departamento de Filosofia, Pontifícia Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005. Cap. 4. p.49-68. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2015. SILVA, Jairo José da. Filosofias da matemática. São Paulo: Unesp, 2007. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2015.

A CONSTITUIÇÃO DO ETHOS E DA CENOGRAFIA NAS CRÔNICAS DE PHILEAS FOGG Elisângela de Britto Palagen* (UPF)

A crônica jornalística é uma manifestação discursiva viva, sendo um dos gêneros literários mais procurados por ser uma leitura agradável, onde o leitor interage com os acontecimentos do cotidiano, muitas vezes se identificando com as ações tomadas pelas personagens que a compõe. Em 1970, o escritor gaúcho Josué Guimarães criou o personagem Phileas Fogg, correspondente internacional do jornal Zero Hora, que transformou conversas triviais com celebridades mundiais em uma série de crônicas chamadas Volta ao mundo. A crônica de Phileas chamava a atenção do público pelo fato do jornalista estar em um canto do planeta a cada semana, adentrando a casa das personalidades mais poderosas do mundo como um querido amigo íntimo. Ao escrever suas crônicas, Fogg projetou a imagem de uma pessoa abastada financeiramente e intelectualmente, extremamente requintada e influente. Por consequência de seus predicados, incluindo títulos de nobreza, integrava o círculo de amigos das personalidades mais poderosas e famosas do cenário mundial. A cenografia implantada pelo discurso de Fogg, engendrada por intermédio de conversas informais entre amigos, legitima seu discurso e torna-se responsável pela construção do ethos mostrado pelo jornalista nas suas crônicas. Dessa forma, a série de crônicas de Fogg obteve, em sua época, grande repercussão, pois trazia ao público, de forma a beirar a realidade, informações sobre os fatos mais íntimos das grandes celebridades mundiais. Pode ser atrelado ao sucesso das crônicas de Fogg o fato de ter havido a incorporação do ethos discursivo do jornalista pelos seus leitores. Diante dos fatos de que os leitores da coluna de Phileas Fogg acreditaram nos valores sócio-históricos identificados pelo ethos discursivo do jornalista e pela grande repercussão que essa coluna ganhou em seu tempo, tornou-se relevante a análise dos textos que compõe a série Volta ao mundo, por meio dos pressupostos teóricos de Dominique Maingueneau (1997/2001/2006//2008/201 0/2011/2013). De acordo com o teórico, os discursos são encenados a partir de três cenas simultâneas e complementares, capazes de recompor, minimamente, o quadro espaço-temporal em que foram produzidos. O teórico também enfatiza que todo discurso pressupõe uma imagem daqueles que estão envolvidos em um processo de interação. Ao projetar uma maneira de dizer algo, o sujeito enunciador não pode desprezar as consequências desse ato, e tal atitude induz a construção de uma imagem de si que condiciona toda a ação comunicativa, ou seja, o sujeito se instala em um discurso através do ethos discursivo. De posse dos conceitos de Maingueneau, esse estudo objetivou descrever e analisar, através de elementos linguísticos inerentes aos textos de Phileas Fogg, as características ideológicas assumidas pelo enunciador para construir sua imagem, seu caráter e seu corpo por meio de seu discurso, discurso esse capaz de autenticá-lo como um sujeito habilitado a acessar os lugares e as pessoas mais inacessíveis do planeta. Atrelados ao objetivo principal, foram estabelecidos como objetivos específicos: apresentar a cenografia enunciativa, da qual deriva o ethos discursivo e, consequentemente, mostrar os mecanismos responsáveis pela construção do ethos discursivo mediante a situação de enunciação em que se desenvolve discursivamente a crônica. Não menos importante, o terceiro

* Mestre em Letras, Leitura e Produção Discursiva, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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objetivo está na tentativa de resgatar a memória do escritor e jornalista Josué Guimarães, mostrando, entre outras coisas, o esplêndido trabalho criativo do autor empregado na construção da série de crônicas Volta ao mundo. O presente artigo é fruto de uma pesquisa de natureza bibliográfica e documental, descritiva, com abordagem qualitativa. Foram estabelecidos como corpus para as análises as crônicas As mágoas do presidente, publicada em 8 de maio de 1970, Sir Alf Ramsey e o sexto sentido, publicada em 9 de junho de 1970, Um Casamento que Pode Acabar, publicada em 16 de junho de 1976. A primeira crônica foi escolhida por ter sido a primeira a ser publicada, as demais por confirmarem a estabilidade do ethos discursivo e da cenografia em textos publicados em períodos bem distintos. Os procedimentos metodológicos se basearam em estudos contínuos no Acervo Literário Josué Guimarães (ALJOG/UPF), onde se encontram catalogadas as publicações na imprensa do escritor, incluindo nestas documentações os jornais Zero Hora e Chaimite, que contém a coluna Volta ao mundo. Após a leitura das crônicas de Fogg, que somam no ALJOG um número superior a 300 publicações catalogadas, fez-se a análise propriamente dita. Os referenciais teóricos abordados na pesquisa estão estabelecidos na perspectiva da análise do discurso da linha francesa, mais especificamente nos pressupostos teóricos de Dominique Maingueneau (1997/2001/2006/2008/2010/2011/2013), Patrick Charaudeau (2008) e Ruth Amossy (2013). No intento de contribuir para futuros estudos, esse trabalho visa desempenhar o papel de instrumento de reflexão acerca das teorias da Análise do Discurso, mais enfaticamente sobre os conceitos de ethos discursivo e cenas enunciativas. No entanto, esse artigo se propõe, também, como uma leitura de fácil assimilação aos sujeitos simples, livres das coerções acadêmicas, para que esses possam assimilar em suas rotinas diárias as concepções de ethos discursivo e cenografia como uma maneira de melhor entender os discursos a sua volta e de melhor impor seu discurso aos outros.

1. AS CENAS ENUNCIATIVAS Para considerar um ato enunciativo, segundo a epistemologia de Dominique Maingueneau, se faz necessária a contemplação de pressupostos teóricos pragmáticos, já que não é possível separar o ato da fala da instituição na qual acontece a enunciação. O discurso é o elemento que possibilita alcançar a relação entre sujeito, sociedade e ideologia por meio das análises entre o linguístico e o extralinguístico que contemplam uma determinada enunciação. Para Maingueneau (1997), o texto, seja ele do gênero que for, é um objeto discursivo, pois se manifesta como unidades verbais que integram um discurso. Outra afirmação do teórico em relação ao texto é que ele “[...] não é um conjunto de signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada.” (MAIGUENEAU, 2011, p. 85). É a partir desta proposição que se projeta o conceito de cena enunciativa, e consequentemente, o desenvolvimento da noção de ethos discursivo articulado à cena de enunciação (AMOSSY, 2013). A cena de enunciação é apreendida no interior de um enunciado e é possibilitada pela referenciação poderosa dos dêiticos discursivos que, segundo Maingueneau (2011, p. 41) definem as coordenadas espaço-temporais implicadas em um ato de enunciação. Estes dêiticos correspondem aos marcadores de eu-tu, aqui-agora que no discurso constituem os elementos essenciais para a encenação e são constituídos pelos seguintes elementos: enunciador e co-enunciador, cronografia (tempo) e topografia (espaço). A cena de enunciação, também denominada de situação de comunicação, é definida como um “espaço instituído, definido pelo gênero de discurso, mas também sobre a dimensão construtiva do discurso, que se coloca em cena, instaura seu próprio espaço de enunciação” (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 95). Esta encenação enunciativa compreende três cenas: cena englobante, cena genérica e cenografia, como melhor explicita Maingueneau:

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A “cena de enunciação” integra de fato três cenas, que proponho chamar de “cena englobante”, “cena genérica” e “cenografia”. A cena englobante corresponde ao tipo de discurso: ela confere ao discurso seu estatuto pragmático [...]. A cena genérica é a do contrato associado a um gênero, a uma instituição discursiva [...]. Quanto à cenografia, ela não é imposta pelo gênero, ela é construída pelo próprio texto [...]. (MAINGUENEAU, 2013, p. 75)

A cena englobante se refere a um tipo de discurso gerado em uma situação de enunciação. Em uma igreja, por exemplo, ter-se-á um discurso religioso, e esse irá compor a cena englobante. A cena genérica compreende o gênero do discurso inserido na cena englobante. Levando em conta a cena englobante de um discurso político, por exemplo, a cena genérica pode ser um santinho, um debate entre candidatos ou um comício. Conforme Maingueneau, os locutores “só interagem nas cenas englobantes através de gêneros de discurso específicos, de sistema de normas: pode-se então falar de cena genérica.” (MAINGUENEAU, 2010, p. 206). Essas duas cenas compõem o quadro cênico do discurso constituindo-se como espaço estável no interior do enunciado e delas se valida uma cenografia. Logo, a cenografia corresponde ao contexto que o enunciado implica. Ela não é um cenário que já se apresenta construído, determinado. É a própria enunciação que, à medida que se desenvolve, vai construindo a cenografia. Segundo Maingueneau (2011, p.87) “a cenografia implica um processo de enlaçamento paradoxal, ou seja, é ao mesmo tempo a fonte do discurso e aquilo que ele engendra.” Deste modo, a cenografia se apóia em cenas de fala instaladas na memória coletiva, atribuindo legitimidade ao discurso de modo que o enunciador consiga convencer o outro.

2. O ETHOS DISCURSIVO Ao se projetar uma forma de dizer algo, tal ação provoca a construção de uma imagem de si no discurso e, numa situação de interação comunicativa, os participantes desta interação exercem poder um sobre os outros, mostrando através dos discursos os papéis sociais que definem seus caracteres. É a partir da enunciação que se delineia um autoretrato no qual são impressas qualidades, pois os modos de dizer produzem uma imagem daquele que enuncia. Desde os antigos gregos, esse autoretrato discursivo, conhecido como ethos, caracteriza-se como “a construção de uma imagem de si destinada a garantir o sucesso do empreendimento oratório” (AMOSSY, 2013, p. 10). Para Maingueneau (2013) não existe um ethos preestabelecido, ele é construído no âmbito da atividade discursiva. Nesta perspectiva, a imagem de si é um fenômeno que se constrói dentro da instância enunciativa e se mostra através do discurso. O ethos liga-se ao enunciador pelas escolhas linguísticas feitas por ele e são essas escolhas que revelam vestígios da imagem do enunciador, durante o processo discursivo. A imagem pertinente a um enunciador é composta de duas partes: o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo. O ethos pré-discursivo se refere à imagem que o coenunciador constrói do enunciador, antes mesmo que este pronuncie algo. Embora se saiba que o ethos é construído no próprio ato de enunciação, “não se pode ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale” (MAINGUENEAU, 2013, p. 71). Já o ethos discursivo compreende o ethos dito e o ethos mostrado. O ethos dito é criado através das informações diretas do enunciador que caracteriza a si mesmo no discurso, enquanto o ethos mostrado não é explícito no discurso, a imagem do enunciador não está diretamente representada no texto, mas é construída pelos indícios de uma imagem que o enunciador oferece ao coenunciador no momento discursivo. Essas duas categorias relacionam-se mutuamente a partir do momento em que o ethos pré-discursivo pode ou não ser confirmado pelo ethos discursivo. Dessa relação entre o ethos pré-discursivo e discursivo, e deste o ethos dito e mostrado, resulta o ethos efetivo.

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3. A CRÔNICA VOLTA AO MUNDO E SEU AUTOR PHILEAS FOGG Em 1970, Josué Guimarães fazia parte do quadro de colunistas do jornal Zero Hora, onde publica a coluna Volta ao mundo. Para tanto, o jornalista se vale da proteção do pseudônimo Phileas Fogg, por meio do qual suas opiniões e experimentações formais estariam resguardadas pelo anonimato, já que estava envolvido nas demandas do estado burocrático- autoritário do regime militar. A coluna de Phileas Fogg relatava histórias sobre viagens pelo mundo, onde o correspondente jornalístico visitava e entrevistava grandes personalidades reais da época, principalmente do cenário político mundial, como por exemplo, o presidente dos Estados Unidos Nixon ou a ex-primeira- dama estadunidense Jackeline Onassis. O cronista Phileas Fogg faz alusão direta a personagem de Júlio Verne da obra A volta ao mundo em 80 dias. A crônica trazia à tona os principais temas do seu tempo, acrescentando a isso elementos humorísticos, por meio dos relatos das conversas informais instituídas entre o jornalista fictício e as grandes personalidades internacionais a quem ele tinha acesso. Também na década de 70, o escritor Josué Guimarães se exilou em Portugal, levando consigo a coluna Volta ao mundo, bem como o cronista Phileas Fogg, publicando as crônicas no jornal Chaimite de Lisboa.

4. A CENA ENUNCIATIVA DA CRÔNICA DE PHILEAS FOGG Na análise da crônica jornalística Volta ao mundo, no que tange as cenas discursivas, contempla-se um quadro enunciativo em que a cena englobante é preenchida pelo discurso literário, a cena genérica pela crônica e a cenografia pelas memórias inseridas na crônica, como um diário, onde são relatadas as conversas informais do narrador com velhos amigos. A cena englobante, por atribuir ao discurso um estatuto pragmático, é entendida como um “tipo discursivo”. Sendo assim, a coluna do jornalista Phileas Fogg tem como cena englobante o discurso literário, já que é um discurso que se apodera de elementos ficcionais e onde o cronista é o literato dos acontecimentos do dia-a-dia. Percebe-se essa literariedade na coluna Volta ao mundo no trecho da crônica As Mágoas do Presidente: Nixon esgotado e envelhecido, cabelos mais ralos, espalmou a mão sobre o meu joelho. Notei que queria desabafar. “Muitas preocupações extras?”, perguntei. “Algumas, algumas”. Abriu uma porta da escrivaninha e tirou dois copos e uma garrafa de cristal. “Chivas Riegal de 20 anos, presente da Casa Real inglesa”. Bebeu um pequeno gole e aproveitou o meu silêncio. “Phileas, daria um reino para trocar de posição com você. Vai para onde quer, escolhe seu próprio hotel, tira férias, assiste futebol “association”, caminha na rua, toma táxi, dorme, ah, Phileas, dorme, que saudades eu tenho de dormir”. Levantou-se e foi até a janela. A luz coada pelos vitrais deu a ele colorido de palco, ficou quase irreal. (FOGG, Phileas. Zero Hora, 1970)

A cena genérica “crônica” corresponde à forma convencionalizada pela qual o enunciado é percebido e equivale, em certa medida, ao rótulo recebido pelo texto. A cena genérica da crônica pode ser reconhecida, em alguns casos, pelo número da página em que habitualmente ela aparece, em outros pela posição fixada na coluna dentro de algum caderno específico do jornal, pelo pseudônimo ou assinatura do escritor, título ou rótulo do gênero ou ainda por indicações metalinguísticas. Em todos esses casos, no entanto, tal cena genérica indica uma dimensão discursiva essencialmente de entretenimento. Assim, a crônica deverá informar e entreter, captar leitores por meio de estratégias próprias e desenvolver assuntos capazes de agradar tanto a mentes simples como a raciocínios mais complexos. A crônica Volta ao mundo investe-se de uma cenografia de “conversa entre amigos” entre o jornalista Phileas Fogg e seus amigos íntimos, amigos esses extremamente famosos em vários segmentos da sociedade mundial. Essa especificidade da cenografia é cabível justamente por ser dada

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aos co-enunciadores a prerrogativa de se tratarem um ao outro de modo totalmente informal. No entanto, o relato destes encontros entre amigos é exposto na coluna em forma de diário, onde o jornalista transcreve minuciosamente as conversas e fatos ocorridos durante suas visitas. Tem-se, então, a ideia de um gênero dentro do outro, uma hibridização, isto é, a princípio a cenografia se mostra como uma conversa entre amigos, posteriormente se apresenta como um registro em diário que, por último, é transformado em uma crônica. A diversidade de assuntos, procedimento constituinte do gênero crônica, encontra uma forma adequada e verossímil de expressão na estrutura comunicativa conversacional imposta na coluna de Phileas Fogg. Por ser ele um correspondente internacional, suas crônicas são todas iniciadas pelo lugar do mundo onde ele encontrará seus entrevistados. Como cada um desses lugares tem suas particularidades sócio-político-culturais, os assuntos levantados nas conversas informais fazem parte das problemáticas recorrentes de cada espaço e de cada tempo por ando andou o jornalista. É possível vislumbrar essa perspectiva no fragmento da crônica As Mágoas do Presidente: WASHINGTON - Saindo de Guadalajara onde assisti, a convite do meu velho amigo Stanley Rous, à partida entre Brasil e Checoslováquia, aproveitei a proximidade para cobrar de Nixon um bate-papo amigável na Casa Branca. A última vez que eu havia falado com ele fora ainda durante a campanha eleitoral: ele acreditando na vitória e eu apostando dois dólares nele contra a sua mulher, que estava totalmente pessimista quanto à eventualidade de vir a ser a primeira dama. (FOGG, Phileas. Zero Hora, 1970)

Já na coluna Um Casamento que Pode Acabar o tema da conversa é sobre as possíveis traições do milionário Aristóteles Onassis contra sua esposa Jackie, como se pode ver no fragmento que segue: ATENAS - Falei com Onassis por telefone, em Londres. Disse a ele que gostaria de conversar com Jacqueline, tantas são as notícias espalhadas pelo mundo a respeito dele e da sua mulher. Ele estava num momento de euforia. Havia fechado novo contrato com o governo grego. Marquei o encontro para dois dias depois em Skorpios. Quando cheguei lá Jackie tomava banho de sol no terraço junto à piscina, em companhia de duas cunhadas. Cumprimentou-me sem muito entusiasmo. (FOGG, Phileas. Zero Hora, 1976)

5. O ETHOS DO CRONISTA Ao tomar a palavra, o sujeito constrói uma imagem de si ao outro por meio do ethos discursivo, que pode ser avaliado em termos de maior ou menor verossimilhança e não como propriedade subjetiva verdadeira ou falsa. Sendo o ethos um simulacro criado pelo sujeito do discurso, sua configuração varia em função das variadas situações comunicativas vivenciadas por esse sujeito. Na instauração do narrador da crônica Volta ao Mundo, o correspondente internacional Phileas Fogg constrói seu ethos a partir das cenografias variadas, dos sujeitos com quem interage e dos lugares e tempos históricos em que se encontra, como se pode observar no fragmento da crônica Sir Alf Ramsey e o sexto sentido: GUADALAJARA - Voltei ao México atendendo a uma chamada telefônica de Sir Alf Ramsey, o meu velho Alf dos pubs de Londres, enobrecido pela Rainha face às suas conquistas com a seleção inglesa. Quando Alf me chama algo de grave se passa. Foi assim quando o seu time levou os 5x1 do Brasil e quando a ilha britânica se preparava para abrigar a luta pela Jules Rimet. Já foi homem de falar pelos cotovelos, mas hoje preferiu adotar a fleuma nacional. Isso oferece uma dupla vantagem: não arrisca a dizer bobagens e pratica uma excelente guerra de nervos com o adversário. Da Cidade do México vim para cá de táxi aéreo. Alf me esperava em seu quarto, nervoso, fumando um cigarro depois do outro, com as palmas das mãos a escorrer água, literalmente. Ao me ver levantou-se, abraçando-me: “Phileas, preciso desabafar com alguém que me entenda. De fato estou arrasado”. Procurei acalmá-lo. (FOGG, Phileas. Zero Hora, 1970)

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Nesse fragmento, é possível observar a construção do ethos discursivo do jornalista: um homem amigo e acessível, a quem se recorre para desabafar as mágoas. Como já foi mencionado anteriormente, o ethos se origina da cenografia empregada em um discurso. Desta forma, é possível notar nos discursos das várias crônicas analisadas o emprego de um ethos que não se altera. Phileas Fogg passa a imagem de um homem culto, erudito, de grandes poderes aquisitivos, amigo e audiente, extremamente simples e acessível a todos que o rodeiam, nunca faz interferências, acusa ou aconselha seus amigos sobre o que eles lhe dizem. Phileas apenas ouve e relata o que lhe é falado em suas crônicas, mas impõe um diálogo envolvente com todos os seus célebres amigos durante seus encontros. Fogg só pode representar seu ethos discursivo justamente pelas abstrações das ideologias e de valor que o compõe. Necessita, também, de um corpo, físico ou imaginário, instrumento esse que obedecerá às ordens enunciativas. Para Maingueneau (1997), a fala do enunciador é incorporada e a maneira de dizer atesta, de algum forma, a legitimidade do que é dito, conferindo autoridade ao enunciador. Ao encarnar uma voz que dará sustentáculo ao texto, o enunciador independente da veracidade do que diz, mostra uma atitude, uma performance, já que, independente de ser verdade ou não, o sujeito da enunciação deverá convencer o coenunciador através da autoridade demonstrada pelo seu caráter performático. O ethos é, além da circunstância dimensional da voz, as determinações físicas e psíquicas que são essenciais para a construção ética da imagem do enunciador.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A crônica, por ser integrante do discurso literário, estimula a função do sonho e da reflexão e, por isso, não possui a mesma racionalidade de um editorial ou de uma notícia. Em função de suas condições de produção, a crônica incorpora as propriedades dos variados gêneros discursivos que a circundam, transportando-os aos leitores por meio de uma linguagem acessível, capaz de promover uma coexistência harmoniosa da multiplicidade de vozes presentes no jornal. Essa flexibilidade, essa capacidade de inserção de vários gêneros, torna a crônica um instrumento capaz de favorecer apropriação de temas sociais por meio da dramatização desses temas, recurso capaz de problematizar a sociedade através da linguagem. A coluna do cronista Phileas Fogg, criação do escritor Josué Guimarães, foi criada em um período lamentável da história do Brasil, onde se instaurou um regime de supressão das liberdades individuais, entre elas a liberdade de expressão. Nesse sentido, Guimarães, com o intento de preservar sua integridade física e profissional, utilizou do pseudônimo para poder trabalhar e, até mesmo, sustentar sua família. Mesmo envolto sob as nuvens negras da ditadura, o escritor concebeu um personagem que perambulou pelo mundo contando histórias íntimas das grandes celebridades mundiais de forma leve e bem humorada. Na série de crônicas Volta ao mundo, a aparente realidade é esculpida por uma linguagem que se molda de acordo com o jogo de intenções subjacentes ao nível do enunciado, mas articulado no nível da enunciação. A cena enunciativa da crônica de Phileas Fogg revela uma cenografia na qual o ethos construído é aquele que parte da possibilidade de interação do jornalista com grandes nomes da realidade mundial da época em que a coluna foi publicada, da apresentação da vida íntima de amigos famosos através do relato de suas conversas informais a respeito de toda a gama de assuntos que pudessem ser relevantes ao escritor. O estilo empregado pelo cronista ao escrever sua crônica lembra o velho diário, onde suas memórias são escritas sem apelos críticos. Seu texto não é a uma reação aos fatos do mundo, é apenas sua presença neste mundo inacessível a qualquer sujeito. Dessa forma, o enunciador investe em valores historicamente especificados pela sociedade para garantir a eficácia de seu discurso. O ethos discursivo é quem garante essa identificação, pois o enunciador, que fala da posição de amigo íntimo de celebridades, assume a imagem de um homem

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abastado financeiramente e intelectualmente, um homem requintado, honesto, cordial e fiel. Por consequência desses predicados, Fogg fez parte do círculo de amigos das personalidades mais poderosas e famosas do cenário mundial. Como o ethos discursivo não se diz, mas se mostra, o enunciador, sem perceber, reproduz em seu discurso toda a sua conceituação, sua postura e suas visões de mundo para que seu discurso possa ser legitimado. A cenografia implantada pelo discurso de Fogg através das conversas informais entre amigos legitimou seu discurso e tornou-se responsável pela construção do ethos mostrado pelo jornalista nas suas crônicas. O sucesso das crônicas de Fogg se deve ao fato de ter havido a incorporação do ethos discursivo do jornalista pelos seus leitores. Dessa forma, a série de crônicas de Fogg obteve, em sua época, grande repercussão, pois trazia ao público, de forma a beirar a realidade, informações sobre os fatos mais íntimos das grandes celebridades mundiais. Sendo assim, torna-se imperativo afirmar que o gênero discursivo, a cena enunciativa e o ethos discursivo são elementos que atuam conjuntamente na produção de sentidos das crônicas do jornalista Phileas Fogg e que as coerções genéricas pertencentes ao gênero crônica determinam as coerções ideológicas assumidas pelo enunciador para construir sua imagem, seu caráter e seu corpo por meio de seu discurso. O ethos age, então, como um modelador das atividades do cronista nas circunstâncias em que ocorre o seu discurso. Deste modo, torna-se possível afirmar que o ser humano age com determinada postura diante de cada situação que vivencia através do ethos que impõe no discurso, mesmo sendo ele um ser fictício.

REFERÊNCIAS AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: AMOSSY, R. (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2013. CHAIMITE. Lisboa, mar. 1976, p. 2. CHARAUDEAU, P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2008. FOGG, Phileas. As mágoas do presidente. ZERO HORA, Porto Alegre, 8 de maio. 1970, p. 3. ______. Sir Alf Ramsey e o sexto sentido. ZERO HORA, Porto Alegre, 9, jun. 1970, p. 4. ______. Um Casamento que Pode Acabar. ZERO HORA, Porto Alegre, 16, jun. 1976, p. 3. ______. Os casos do guarda da Rainha, ZERO HORA, Porto Alegre, 25, jun. 1982, p. 2. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. Tradução Freda Indursky. Campinas: Pontes; Ed. da Unicamp, 1997. ______. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. S.(Org.) Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008a. ______. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola, 2008b. ______. Doze conceitos em Análise do Discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. ______. Análise de textos de comunicação. 6. ed. Tradução Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2011. ______. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth. (org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2013

FICÇÃO E REPORTAGEM EM CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA Fábio Luis Rockenbach* (UPF) Márcia Helena Saldanha Barbosa (orientadora)** (UPF)

Mesmo que jornalismo e literatura tenham, ao longo da história, continuamente mantido relações de proximidade, uma indecisão no que se refere à condições de convergência entre ambas as áreas tem dominado as discussões que regem chamado exercício do jornalismo de fôlego (as grandes reportagens e os livros-reportagem). O motivo é o fato de ambos – jornalismo e literatura – apoiarem-se nas mesmas bases para sua existência (o texto e a narrativa) porém com diferentes aproximações. Essa mesma base, que aproximou as duas áreas em muitos momentos, distanciou-as a partir do tempo em que o jornalismo passou a ser regulado por características e preceitos definidos pelas necessidades do ato informativo. Escritor e jornalista, o colombiano Gabriel García Márquez sempre defendeu que as duas áreas mantêm mais proximidades do que separações. O escritor teve, ao longo de quarenta anos, uma destacada atividade no jornalismo e na literatura e, em diversos momentos de sua trajetória, creditou boa parte de seu estilo e crescimento como escritor aos ensinamentos aprendidos na redação de um jornal - inclusive à uma peculiar capacidade de conferir verossimilhança aos relatos mais mágicos; de inserir interesse humano a histórias aparentemente banais, algo que ele aplicou em sua carreira como escritor. O presente trabalho condensa as considerações abordadas em uma dissertação de mestrado acerca desse peculiar talento e sua aplicação em um caso específico: o livro “Crônica de uma morte anunciada”.

1. CONVERGÊNCIAS ENTRE LITERATURA E JORNALISMO Quem se dedicou a tentar encontrar características específicas que discernissem o texto literário do jornalístico foram Fiorin e Savioli, que encontram na função do texto um elemento que pode servir de base para essa diferenciação. Enquanto o texto jornalístico tem a função de informar, o texto literário, segundo os autores, tem função estética, onde “o plano de expressão não serve apenas para regular conteúdos, mas recria-os em sua organização de um modo que importa não apenas o que é dito nele, mas o modo como se diz. Ao resumi-lo, perde-se o essencial dele” (FIORIN & SAVIOLI, 1995, p. 17-18) Ponte (2005, p.46) enxerga, por parte do jornalismo, uma apropriação de certas técnicas comuns a uma corrente literária, o realismo, que fazia uso de um narrador “obrigado a dar à ficção as aparências de realidade”. Desenvolvendo-se paralelamente à essa corrente literária, o jornalismo do século XIX encontra “no realismo algumas de suas metáforas fundadoras, como ‘espelho da vida’ [...] ou a sua matéria-prima, os acontecimentos, como mimeses dos seres e das coisas” (PONTE, 2005, p.45). A autora também destaca a importância do papel do narrador, que pode, então, controlar os eventos reportados, os personagens, o tempo e os cenários, “mantendo as distâncias entre o real e a ficção”, havendo no processo a opção de escolher quem será chamado para o lead1. (p.46).

Mestre em Produção e Recepção do Texto Literário, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em Teoria da Literatura, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] 1 O lead busca responder às perguntas básicas do jornalismo no primeiro parágrafo da matéria, de forma que as principais informações sejam recebidas pelo leitor desde o início. (LUSTOSA, 1996, p.78). *

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Abordando as proximidades entre jornalismo e literatura em artigo publicado em 2004, Herscovitz menciona um grupo de escritores hispânicos que conduziram a literatura produzida na América Latina a um outro patamar em termos mundiais – e que ajudaram a criar o chamado “realismo mágico”, particularidade que se tornou uma espécie de estereótipo da época para os leitores europeus, quando o tema era a literatura hispânica. É difícil traçar um perfil daquela geração de escritores. Eles não faziam parte de uma escola literária específica, mas compartilhavam uma preocupação com a linguagem e a forma [...] Alguns deles começaram sua carreira profissional como jornalistas, entre eles García Marquez, Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier, Julio Cortazar [...]. Grande parte desse grupo tinha formação intelectual influenciada pela avant-garde européia, a novela francesa e o modernismo norte-americano (HERSCOVITZ, 2004, p.176) Parte desse grupo influente, Gabriel García Márquez, mesmo sem uma formação específica na área, aprendeu de forma natural, pela experiência conquistada em diferentes jornais da Colômbia, que para cada gênero jornalístico poderia haver um tipo específico de tratamento textual. É particularmente interessante a opinião proferida em 1981 pelo próprio García Márquez sobre o uso da descrição detalhada, um estratagema para tornar suas narrativas fantásticas em passagens de realismo claramente mágico, mas ainda assim aceitáveis a seus leitores. Diz Márquez: É um truque jornalístico, quando você também pode aplicá-lo à literatura. Por exemplo, se você diz que há elefantes voando no céu, as pessoas não acreditarão em você. Mas se você disser que há quatrocentos e vinte e cinco elefantes voando no céu, as pessoas provavelmente acreditarão em você. (MÁRQUEZ apud STONE, 1981)

O uso dessa ferramenta narrativa adquire, em muitos textos de García Márquez, um significado que Erbolato (1997) considera fundamental a partir do sentido ou da motivação do que se escreve. Para o autor, a atenção a um detalhamento de cenário, costumes, expressões e outras descrições “só farão sentido se o repórter souber atribuir significados ao símbolos e tiver a sensibilidade para projetar a ressignificação feita pelo leitor.

2. FICÇÃO E NÃO-FICÇÃO EM UMA MORTE ANUNCIADA Ao lançar “Crônica de uma morte anunciada” em 1981, García Márquez definiu seu novo livro como uma “falsa” obra de ficção, e uma “falsa” obra jornalística (MARTIN, 2010, p.403), por mais difícil que possa ser, inicialmente, compreender como o livro poderia situar-se entre essas duas definições. É normal vincular a origem da influência jornalística apontada por García Márquez, no livro, aos acontecimentos que deram origem à sua trama. O escritor esperou três décadas para poder, enfim, relatar um caso de assassinato que, se não foi presenciado por ele, envolveu diretamente familiares, amigos e conhecidos na cidade de Sucre, no interior da Colômbia, onde a família García Márquez vivia no início dos anos 50, enquanto o escritor trabalhava em El Heraldo. De fato, García Márquez relata um fato verídico, mas nunca usa nomes reais para recriá-lo, o que justifica que o escritor tenha descrito a obra como uma “falsa reportagem”. Talvez motivado pela proximidade que Martin (2010) lembrou ser incômoda a ele e à sua família, o escritor nunca nomeia a pequena cidade onde ocorreu o crime, nem identifica, diretamente, a data em que ele ocorreu. É possível aludir tal medida ao desconforto citado anteriormente porque, curiosamente, García Márquez modifica o nome de todos os envolvidos, mas mantém reais os nomes dos membros de sua família, como forma de incluir-se na narrativa. Público e crítica começaram a compreender a estranha definição oferecida por García Márquez a seu livro tão logo ele foi lançado: uma matéria denominada García Márquez lo vio morir, dos jornalistas Julio Roca e Camilo Calderón, reportagem exclusiva para a revista colombiana Al

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Día, minuciosamente recuperou os fatos acontecidos em 1951 e comparou-os com a trama escrita pelo escritor. Para Diáz-Migoyo (1988, p.74-75), foi o próprio García Márquez quem teria sugerido a reportagem aos dois jornalistas, mas o escritor salientou as diferenças entre a forma como os fatos são narrados em ambos os textos, em uma declaração dada enquanto estava no México, poucos dias após o lançamento do livro: O romance foi lançado segunda-feira, e uma revista em Bogotá já publicou uma história no lugar onde tudo acontece, com fotografias dos supostos protagonistas. O trabalho deles é excelente de um ponto de vista jornalístico, mas é surpreendente que o drama contado aos jornalistas por testemunhas seja totalmente diferente do que ocorre no romance. Talvez a palavra “totalmente” não seja correta. O ponto de partida é o mesmo, mas a evolução é diferente. Eu fico lisonjeado por ver que o drama no meu livro é melhor, mais controlado, mais estruturado (DIÁZ-MIGOYO, 1988, p.426).

A mais importante diferença pode ser encontrada na própria estrutura narrativa: a recriação feita por García Márquez coloca o narrador como uma testemunha dos fatos, e também como uma personagem. Para Diáz-Migoyo (1988, p.81), a opção por usar a primeira pessoa foi praticamente uma necessidade, porque, “como narrador da história, ele precisa ter sido o investigador dos eventos”. A importância desse fato está em constatar, também, que mesmo não nomeando a si próprio durante a trama, o escritor, em diversos momentos, demonstra que o narrador-testemunha é ele próprio, ao identificar os únicos personagens reais que insere na trama, a sua própria família. Estão presentes na narrativa, em diferentes momentos, sua irmã, seus irmãos e sua tia, com seus nomes reais. Se, comprovadamente, García Márquez, o narrador-testemunha, não estava em Sucre na manhã em que Gentile foi assassinado, pode-se compreender suas afirmações em contrário como parte de uma estratégia para emular uma reportagem investigativa em seu livro. Tais pistas são fornecidas pelo próprio escritor em seu texto, já que ele encarrega-se de inserir nele outras passagens que comprovam o caráter ficcional da obra. A passagem em que ele afirma ter reencontrado Ângela Vicário é um exemplo: Muito depois, em um tempo de dúvidas, quando tentava entender algo de mim mesmo vendendo enciclopédias e livros de medicina pelos povoados da Guajira, cheguei por acaso àquele morredouro de índios. Na janela de uma casa frente ao mar, bordando à máquina na hora mais quente, havia uma mulher de meio luto com óculos de arame e cãs amarelas, e sobre sua cabeça estava pendurada uma gaiola com um canário que não parava de cantar. Vendo-a assim, dentro do marco idílico da janela, não quis acreditar que aquela mulher fosse quem eu pensava, porque me recusava a admitir que a vida acabasse por se parecer tanto à má literatura. Mas era ela: Ângela Vicário 23 anos depois do drama (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p. 130-131).

Essas liberdades criativas com as quais o escritor busca conferir verossimilhança à sua obra de forma planejada não perdem seu valor quando confrontadas com informações reais, externas à trama, sobre os fatos ocorridos. No relato de Crônica de uma morte anunciada, a verossimilhança é mais importante que a suposta verdade dos fatos reais ocorridos em Sucre.

2.1 A REPORTAGEM COMO INSPIRAÇÃO Pode-se tentar compreender a afirmação do autor analisando a obra a partir de dois aspectos: o primeiro referente aos valores de gênero jornalístico presentes na trama, e o outro relacionado às marcas textuais típicas do texto jornalístico, de forma semelhante ao que foi feito anteriormente, quando foram analisados textos da obra jornalística do escritor. O primeiro aspecto, que se refere aos valores de gênero, também dizem respeito a processos de produção do jornalismo. Pela sua extensão, pelo número de fontes utilizadas pelo narrador e pelo

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desenvolvimento temporal do fato narrado, claro parece que „Crônica de uma morte anunciada“ é uma obra de ficção profundamente ancorada em conceitos próprios da reportagem jornalística. Para reconstruir o assassinato, García Márquez faz uso de diferentes hábitos produtivos do exercício jornalístico, e é então que surgem elementos que permitem relacionar a obra ao jornalismo: a história do assassinato é recontada a partir de inúmeros depoimentos recortados, que são unidos a partir das lembranças do repórter, como testemunha dos fatos e como investigador, trinta anos depois. Esses dois tempos misturam-se na narrativa e são identificados por Álvarez-Borland (2007) como dois níveis temporais da percepção do narrador – e do leitor também. O primeiro nível, contemporâneo ao assassinato, envolve as declarações das testemunhas e as memórias do narrador, pois ele estava na cidade, na madrugada do crime, como se percebe nos fragmentos abaixo: O navio foi embora com as luzes acesas, deixando uma trilha de valsas de pianola, e, por um instante, ficamos à deriva sobre um abismo de dúvidas, até que voltamos a nos reconhecer uns aos outros e nos afundamos na bagunça da festa (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.67). Santiago Nasar e eu, com meu irmão Luís Enrique e Cristo Bedoya, fomos para a casa de virtudes de Maria Alejandrina Cervantes. Por ali passaram entre muitos outros os irmãos Vicario, e estiveram a beber conosco e a cantar com Santiago Nasar cinco horas antes de o matarem (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.68).

O segundo nível temporal, segundo Álvarez-Borland (2007, p.220), “inclui a retrospectiva da memória de múltiplas testemunhas, bem como as memórias da própria reminiscência do narrador sobre o crime”. O narrador, então, coloca-se em um tempo posterior aos fatos narrados, assumindo sua condição de investigador, ao afirmar como reencontrou e conversou com os envolvidos, muitos anos depois. Percebe-se isso em passagens como a do seu reencontro com Ângela Vicário e em passagens como as abaixo: Segundo me disseram anos depois, tinham começado por procurá-lo na casa de Maria Alexandrina Cervantes, onde estiveram com ele até as duas (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.75). Durante anos, em minha casa, continuaram falando que meu pai voltara a tocar o violino de sua juventude em honra dos recém-casados, que minha irmã freira dançou um merengue com o hábito de rodeira, e que o doutor Dionísio Iguarán, primo irmão de minha mãe, conseguiu viajar no navio oficial para não estar aqui no dia seguinte quando viesse o bispo (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.65).

Independentemente do nível temporal em que se encontra o narrador, García Márquez desenvolve sua narrativa como se a construísse a partir da veracidade oferecida por um repórter escrevendo uma reportagem, gênero em que “o narrador observa [...] atitudes exteriores [dos personagens] e flagra seus comportamentos contraditórios, engraçados, mesquinhos ou, mesmo, trágicos” (SODRÉ & FERRARI, 1986, p.87). Assim, García Márquez parece motivado a deixar claro que o livro é resultado de um processo investigativo, ainda que autores já citados anteriormente deixem claro que os fatos, personagens e detalhes da trama não condizem com o que realmente ocorreu. As duas passagens abaixo exemplificam essa busca por verossimilhança através da reprodução de um processo de reportagem jornalística investigativa: Três pessoas que estavam na pensão confirmaram que o episódio tinha acontecido, mas outras quatro puseram dúvidas. Em compensação, todas as versões coincidiam em que Angela Vicario e Bayardo San Román se tinham visto pela primeira vez nas festas patrióticas de Outubro, durante uma verbena de beneficência em que ela tinha por encargo cantar os números das rifas (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.44). Os primeiros clientes eram raros, mas vinte e duas pessoas declararam ter ouvido tudo quanto disseram, e todas coincidiam na impressão de que eles disseram o que disseram com o propósito único de serem ouvidos (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p. 77).

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Ao inserir a menção do narrador ao testemunho de sobreviventes do fato, anos depois, o escritor evidencia o caráter jornalístico da narrativa, conduzida não por um personagem que estivera na cidade naquela época, mas pelo repórter que voltou anos depois para investigar o ocorrido.

2.2 JORNALISMO, VERACIDADE E VEROSSIMILHANÇA No livro de García Márquez, identificam-se não apenas elementos relacionados aos processos de produção jornalística. Se a estrutura é construída sobre dois tempos que nos permitem perceber a presença de um “repórter investigador” e todo o desenrolar dos fatos se constrói através de depoimentos, é importante lembrar que o narrador inicia o livro anunciando sua “notícia”: mataram Santiago Nasar. A inevitabilidade do fato que sustenta toda a trama do livro, por si só, a aproxima do relato jornalístico por não esconder, em momento algum, o fato em si, e apenas se preocupar em explicar ao leitor “como” ele aconteceu – tal inevitabilidade diz respeito a algo que já ocorreu e não há como essa verdade básica ser alterada. García Márquez inicia Crônica de uma morte anunciada com uma prolepse, que anuncia o que aconteceria com o personagem futuramente, e instiga no leitor a curiosidade de conhecer o fato gerador de toda a trama já na primeira sentença: “No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m da manhã para esperar o navio em que chegava o bispo” (p.9). Ao utilizar esse processo anacrônico e, ao anunciar o fato, abrir mão do mistério maior em torno “do que” aconteceu, García Márquez provoca, também, a curiosidade no leitor, que provido de uma informação tão importante volta sua atenção para a busca de respostas para outras duas perguntas básicas do fazer jornalístico: “como” e “por quê”. Se, contrário ao que seria de se esperar de uma reportagem, García Márquez nunca estabelece conclusões definitivas sobre os acontecimentos, ele constrói seu relato utilizando uma riqueza descritiva de diferentes elementos de sua trama como parte de sua estratégia de propiciar essa interpretação livre dos fatos, bem como de assegurar o interesse do leitor e conferir ao suposto relato testemunhal a necessária verossimilhança. A descrição detalhada não é uma característica exclusiva do jornalismo factual. Ainda que a descrição de personagens, cenário e elementos importantes ao fato possa ser vista como imprescindível, ela está presente também na literatura. A técnica, que foi importante para o desenvolvimento do realismo mágico de suas narrativas, surge em Crônica de uma morte anunciada com outros objetivos. Inicialmente, García Márquez faz uso da riqueza de detalhes para dar autenticidade ao relato: o leitor, mesmo o sabedor de que a trama do livro não é totalmente verídica, confere aos fatos narrados o benefício da dúvida a partir da rica quantidade de informações que os acompanham. Tais detalhes são fruto de uma investigação real ou são uma forma do escritor convencer seu leitor acerca da veridicidade das informações? A dita liberdade que García Márquez exaltou ao comparar seu texto com textos jornalísticos a respeito do assassinato está diretamente relacionadas ao uso dessa estratégia, mas Williams (2010, p.119) chama a atenção para outro estratagema adotado por García Márquez. Para o autor, um dos segredos do escritor colombiano é oferecer um texto ambíguo ao leitor, de forma a nunca deixá-lo completamente ciente das informações importantes à história. “Uma de suas técnicas para a criação da ambiguidade em Crônica está no uso de observações detalhadas sobre assuntos irrelevantes, enquanto é impreciso e vago a respeito de pontos de real importância.” Há discrepâncias, até mesmo, nas lembranças de como estava o tempo na manhã em que o personagem morre, mas o narrador reconstrói as últimas horas de vida de Nasar com uma precisão cirúrgica em alguns aspectos. Sabe-se que Santiago chega da festa de casamento às 4h20m, levanta-se às 5h30m, sai de casa às 6h05m, cruza a praça com Bedoya às 6h25m e entra na casa de sua noiva às 6h45m, para então descobrir que querem matá-lo. Percebe-se essa precisão desde a primeira frase do livro, e ela se repete ao longo da narrativa:

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As muitas pessoas que encontrou desde que saiu de casa às 6h05m até que foi retalhado como um porco, uma hora depois, lembravam-se dele um pouco sonolento, mas de bom humor, e com todos comentou de um modo casual que era um dia muito bonito. Ninguém estava certo se ele se referia ao estado do tempo (GARCÍA MÁRQUEZ, 1981, p.10).

Importa a García Márquez provocar no seu leitor o que Ponte (2005, p.48) relaciona com o realismo literário. A autora cita Jan François Tétu ao afirmar que a descrição não funciona como mero ornamento, mas como elemento constitutivo para uma impressão de “ter estado lá”. É essa busca, pela impressão de veracidade, que constrói uma curiosa relação de dubiedade com as informações falsas por meio das quais García Márquez parece brincar com o leitor. Ou, por outro lado, a possibilidade de que o livro possa ser uma proposta de García Márquez de “derrubar as fronteiras entre jornalismo e literatura para criar uma obra especial para o homem contemporâneo, que é um homem inegavelmente influenciado pelos meios de comunicação de massas (RABELL, 1994, p.41-42)”.

CONCLUSÃO Se García Márquez, na juventude, concebia o jornalismo como “um meio para alcançar um fim maior, e uma forma inferior de escrita” (MARTIN, 2012, p.110), é possível constatar, pela recuperação de sua trajetória e por suas declarações ao longo de quarenta anos, que o tempo legou ao escritor o reconhecimento da importância da prática jornalística no seu amadurecimento pessoal e profissional. Veio também do jornalismo a principal ferramenta para que acontecimentos mágicos presentes em seus livros fossem aceitos pelo leitor com uma insuspeita verossimilhança, envolvendo mulheres que voam, rios de sangue e pessoas que se transformam em porcos, como ocorre em Cem anos de solidão: a descrição detalhada ao extremo. As pessoas não acreditarão em um elefante voando, mas 425 elefantes voando é um exagero por demais detalhista para ser mentira. O lançamento de Crônica de uma morte anunciada, em 1980, permitiu ao escritor unir suas duas grandes paixões: a liberdade criativa da ficção e o poder de denúncia de uma grande reportagem. García Márquez fez de seu livro (baseado em um acontecimento real), como ele próprio afirmou, um falso romance (porque construído a partir do estilo de uma reportagem e baseado na declaração de dezenas de fontes identificadas como tais na narrativa) e uma falsa reportagem (porque dotado de mudanças feitas pelo escritor em torno dos fatos e personagens que apresenta). García Márquez transita entre esses dois gêneros, evitando a objetividade excessiva de um texto jornalístico. Porém, ele concebe sua narrativa a partir do processo de construção de uma reportagem, ainda que composto por depoimentos inconclusivos e divergentes. O escritor opta por “anunciar” sua notícia já em seu primeiro parágrafo e, tal qual uma reportagem jornalística, jamais esconde do seu leitor a natureza do fato: Santiago Nasar morreu, e seus assassinos são conhecidos. Cabe ao repórter/jornalista descobrir como isso aconteceu, e quais foram os motivos. Para tanto, mesmo sem jamais nomear a si próprio, García Márquez deixa implícito que o narrador da história é ele mesmo, pela identificação que faz de seus familiares como testemunhas e participantes dos acontecimentos. É através dessas estratégias – textuais e de procedimento – que García Márquez consegue conferir verossimilhança a uma história que se mantém entre a ficção e a reportagem de forma harmônica, por mais que a simples ideia de que uma narrativa seja ficcional e real, simultaneamente, possa soar absurda. Nesse caso, é compreensível: poucos escritores tornaram o absurdo tão palpável quanto Gabriel García Márquez.

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REFERÊNCIAS ALVAREZ-BORLAND, Isabel. From Mystery to Parody: (Re)readings of García Márquez’s Crónica de una Muerte Anunciada. in BLOOM, Harold (ed). Bloom’s Modern Critical Views: Gabriel García Márquez, Updated Edition. Chelsea House: New York, 2007. DIÁZ-MIGOYO, Gonzalo. Truth Disguised: Chronicle of a Death (Ambiguously) Foretold in ORTEGA, Julio (ed).Gabriel Garcia Marquez and the Powers of Fiction. Austin:University of Texas Press, 1988. ERBOLATO, Mário L. Técnicas de codificação em jornalismo. 5. ed. São Paulo: Ática, 1997. FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e redação. 11. ed. São Paulo: Ática, 1995. GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Crônica de uma morte anunciada. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 1981. HERSCOVITZ, Heloiza Golbspan. O jornalismo mágico de Gabriel Garcia Márquez. In Estudos em jornalismo e mídia, vol. I, nº 2, 2004 LUSTOSA, Elcias. O texto da notícia. Brasília:Unb, 1996 MARTIN, Gerald. Gabriel García Márquez: uma vida. Rio de Janeiro:Ediouro, 2012 PONTE, Cristina. Para entender as notícias: Linhas de análise do discurso jornalístico. Florianópolis : Insular, 2005. RABELL, Carmen. Periodismo y ficción en Crónica de una muerte anunciada. Santiago de Chile: Departamento de Estudios Humanísticos de la Universidad de Chile, Monografías del Maitén, 1994. Disponível em https://www.academia.edu/attachments/6979964. Acessado em 28 dez. 2013. SODRÉ, Muniz; FERRARI, Maria Helena. Técnica de reportagem: notas sobre a narrativa jornalística. São Paulo: Summus, 1986. STONE, Peter H. Gabriel García Márquez: The art of fiction. The Paris Review, N.82, Paris, 1981. Disponível em http://www.theparisreview.org/interviews/3196/the-art-of-fiction-no-69-gabriel-garcia-marquez. Acessado em 22 out. 2013 WILLIAMS, Raymond Leslie. A Companion to Gabriel García Márquez. Woodbridge: Tamesis, 2010

ESCOLHAS ENUNCIATIVAS NO TEXTO: “MARIA VAI COM AS OUTRAS” DE MARIANA KALIL Giana Giacomolli* (UPF) Luciana Maria Crestani** (UPF)

INTRODUÇÃO O presente artigo tem como corpus de análise uma crônica de Mariana Kalil, veiculada na coluna “Por Aí” da revista Donna do jornal Zero Hora dominical. Trata-se do texto “Maria Vai com as Outras”‚ publicado em seis de outubro de dois mil e treze. As crônicas dessa coluna tratam de temas simples, cotidianos, de uma forma bem-humorada e, pelos recursos enunciativos mobilizados, assumem uma identidade diferente das demais publicadas no jornal. Nesse sentido, realizar-se-á uma análise de recursos linguísticos e imagéticos que constituem o texto e constroem os feitos de sentido deste, imprimindo características peculiares aos textos da coluna. O interesse pelo texto da coluna “Por Aí” ocorreu devido aos recursos multissemióticos de que autora lança mão na construção de seus enunciados. Voltados ao universo feminino, os textos buscam seduzir e fidelizar esse público de mulheres de diferentes faixas etárias bem como os homens que interagem e se questionam acerca desse universo. A análise do texto apontará alguns dos recursos mobilizados pela autora para a constituição do texto e os efeitos de sentido projetados por tais recursos no texto, tendo como embasamento teórico principal autores como: José Luiz, Fiorin, Diana Barros e Nilton Hernandes. Este artigo vem organizado em três seções, assim constituídas: na primeira seção, discorremos sobre a classificação do gênero em análise, na segunda seção sobre o texto sincrético e a enunciação; e, na terceira, efetuamos a análise de algumas marcas enunciativas e os efeitos de sentido produzidos.

1. O GÊNERO CRÔNICA E A REVISTA É por meio dos enunciados que aqueles que acreditam num mesmo objetivo, têm um mesmo ideal de vida, comungam de um mesmo ponto de vista ou interesses em comum, unem-se. E é na busca dessa união acerca de interesses e valores que as relações se estabelecem e se estreitam. Todo enunciado tem como ponto de partida as atividades humanas e a utilização da linguagem em diferentes situações de interação social. Assim, os enunciados são categorizados em gêneros distintos, e sua classificação se dá através da reiteração de certas características. Os gêneros são, pois, tipos de enunciados relativamente estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. Falamos sempre por meio de gêneros no interior de uma dada esfera de atividade. Os gêneros estabelecem, pois, uma interconexão da linguagem com a vida social. (FIORIN, 2007, p.61)

Mestre em Letras (2015) pelo programa Strictu Sensu Universidade de Passo Fundo. Possui graduação em LETRAS/LP pela Universidade de Passo Fundo (2007). Professora - no Centro de Ensino Superior Riograndense (CESURG), na cidade de Marau/RS, ministra aulas de Português Instrumental nos cursos de Ciências Contábeis e Eng. de Produção. E-mail: [email protected] ** Doutora em Letras (2010) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP, Mestre em Educação (2002) pela Universidade de Passo Fundo-RS e graduada em Letras - LP (1997) pela mesma universidade. É professora do programa de Mestrado em Letras na Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: [email protected] *

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Os gêneros textuais atuam como legitimadores discursivos frente a relações e contextos sócio-históricos-culturais, dando sustentação aos objetivos individuais do interlocutor, por isso não se pode tratá-los independente da realidade. Por outro lado, cada gênero tem uma identidade própria que condiciona nossas escolhas e interpretações. Esses estilos próprios de cada gênero, que possibilitam a criação de uma identidade, é que nos permite reconhecê-los, bem como utilizá-los para materializar nosso discurso. O gênero une estabilidade e instabilidade, permanência e mudança. De um lado, reconhecem-se propriedades comuns em conjunto de texto; de outro, essas propriedades alteram-se continuamente. (FIORIN, 2007, p. 69).

Dessa maneira, o que possibilita classificar um texto como pertencente ao gênero crônica são as características relacionadas à estrutura composicional, ao conteúdo temático e ao estilo (escolhas linguísticas) que se reiteram na construção dos enunciados. Ou seja, podemos definir os textos da coluna “Por aí” como crônicas devido aos temas cotidianos que são abordados (geralmente direcionados ao público feminino), à estrutura assumida na composição e às escolhas linguísticas próprias do estilo, como o uso da 1ª pessoa, a aproximação com a linguagem coloquial (ou menos formal). Além disso, também o veículo de divulgação – uma revista dentro do jornal – e o fato de ser assinado apontam que se trata de uma crônica. Sabe-se, também, que a crônica é considerada um gênero opinativo dentro do fazer jornalístico. É possível ainda distinguir os gêneros entre os informativos e os opinativos. Estes últimos teriam a estrutura da mensagem co-determinada por variáveis controladas pela instituição jornalística, que assumem duas feições: autoria e angulagem (temporal e espacial). [...] há um evidente diálogo entre linguagem da crônica e a do jornal. (GUARACIABA, 1992, p.84)

Porém com o surgimento da internet e de outras ferramentas comunicacionais os gêneros não são mais estanques e aparecem, desaparecem ou ganham novas roupagens, novos sentidos. Assim, também alguns gêneros de textos impressos (suporte papel) sofrem influências do suporte web, flexibilizando algumas de suas características. No caso específico do jornal impresso, é possível perceber que, cada vez mais, os textos ali expostos apelam para recursos não verbais como cores, formas, imagens, enfim recursos que possam arrebatar a atenção do público. O jornal sempre foi considerado um meio de comunicação que atinge aos mais diferentes públicos e, assim, informa os fatos atuais sem se direcionar a um determinado grupo de interesses. Melo (2003, p.28) diz que “o jornal e a revista atraem o público que busca distração, comentando aspectos pitorescos da vida cotidiana em histórias de interesse humano”. Já a revista busca dialogar com o público, ela tenta entender e suprir as necessidades de um nicho de leitores, tornando-se, dessa maneira, participante da vida e dos posicionamentos adotados pelo público-leitor. [...] enquanto o jornal ocupa espaço público, do cidadão e o jornalista que escreve em jornal fala sempre com uma plateia heterogênea, muitas vezes sem rosto, a revista entra no espaço privado, na intimidade, na casa dos leitores ( SCALZO, 2003, p.14).

Ao perceber o potencial de angariar leitores, o jornal buscou, ao longo das últimas décadas, um formato que se parecesse com a revista, porém sem perder seu foco e tampouco o “status” adquirido ao longo de anos de publicação. Por este motivo, os jornais mais conceituados do país agregaram em suas publicações cadernos e revistas de entretenimento, as quais vêm encartadas, em sua maioria, junto às publicações dos finais de semana. Nos conteúdos dessas revistas, utiliza-se uma linguagem mais informal, abordam-se temas mais leves, ou maneiras mais suaves de expor temas já explorados nas edições anteriores, criando, dessa maneira, suplementos para públicos específicos. Imbuído dessa tendência mercadológica, o jornal ZH também se utiliza dessa estratégia para angariar e até fidelizar leitores, lançando, em 1993, o caderno Donna, um suplemento direcionado

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ao entretenimento. Em 2012, o caderno Donna recebeu novo layout e passou a ser considerada uma revista semanal: Uma evolução do Donna – suplemento que estreou no jornal em maio de 1993, está pronta para chegar aos leitores de Zero Hora no próximo domingo (27). A mudança valoriza ilustrações, fotografia e publicidade, transformando o caderno em uma revista semanal. Mesmo contemplando assuntos tradicionalmente tratados pelas revistas femininas, como moda, beleza e comportamento, Donna firmou-se como um caderno da família, contando com dois dos mais lidos cronistas do Brasil: Luis Fernando Verissimo e Martha Medeiros. O www.donnazh.com.br também ganha um novo layout, com a mesma cara do caderno, um visual mais moderno (GRUPO RBS, 2012, s/p).

Na buscar por fidelizar seus leitores foi que a Revista Donna passou a utilizar-se cada vez mais de recursos verbais e não verbais que atraem e despertam a curiosidade do público-leitor, criando espaços diferenciados entre os quais está a coluna “Por Aí”, cujas crônicas, além de apresentarem as características anteriormente apontadas, também agregam à sua constituição recursos não verbais, criando um sincretismo de linguagens que desperta a curiosidade do leitor e impingem uma certa identidade às crônicas. O leitor já sabe que, nas crônicas de Kalil, encontrará cores, balões de fala, traços e, principalmente, imagens de dois cães (mascotes da autora) e de mulheres com expressões exageradas.

2. SINCRETISMO TEXTUAL E ENUNCIAÇÃO NA PERSPECTIVA DA SEMIÓTICA DISCURSIVA Na nova contextualização social, onde tudo ocorre de maneira muito dinâmica, onde se tem pressa, é possível observar uma tendência cada vez maior à heterogeneidade de linguagens na constituição dos gêneros textuais, pois os recursos não verbais, como fotos e infográficos, possibilitam uma visualização rápida do fato relatado e constituem recursos de arrebatamento da atenção do leitor. Essa diversidade de recursos que se apresentam num mesmo plano material formam o que chamamos de sincretismo de linguagens, ou textos sincréticos, na medida em que elementos de diferentes linguagens (verbais e não verbais) convergem para a construção dos sentidos de um texto, ou seja, cada elemento constituinte está a serviço do sentido do texto e é essencial para a significação global. Ao abordar o sincretismo, é necessário ter em mente que se passa a trabalhar com diferentes materialidades no plano de expressão, constituído pelo não verbal e o verbal. Na linguagem verbal, as marcas de expressão, de temporalidade, certos itens lexicais darão conta de compreensão do texto enquanto plano de conteúdo. Na linguagem não verbal, são os traços, as fotografias, as cores, a pintura, os contornos apresentadas pelo plano de expressão que, ao mesmo tempo em que constituem uma linguagem por si só, também integram um todo coerente e dão unidade de sentido ao plano de conteúdo, reafirmando ideias, agregando outras ou complementando o que foi expresso no plano de conteúdo. Cada linguagem tem uma função e os conteúdos que veicula interagem na relação de parceria estabelecida para a conquista da significação do texto. Cada linguagem pode concretizar diferentes perspectivas e focalizações em que os fatos são dados a ver, sejam elas convergentes ou divergentes. A inter-relação de linguagens pode instaurar implícitos, modos de dizer sem dizer e pode fazer enxergar os fatos, o mundo re-produzido no discurso, de uma nova forma. Pode fazer sentir concomitantemente a um fazer saber, produzindo os efeitos de vivenciar as experiências narradas. (GOMES, 2009,p.1)

Assim, para compreender as relações existentes entre elementos constituintes do texto e entender como produzem e projetam sentidos, buscamos suporte numa teoria do texto de linha francesa, a semiótica greimasiana, que tem como seu fundador Algirdas Julien Greimas. A teoria semióti-

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ca “procura descrever e explicar o que o texto diz e como faz para dizer o que diz” (BARROS, 1997, p.7), ou seja, procura explicar quais sentidos são produzidos através dos procedimentos linguístico-discursivos adotados na construção do enunciado. A semiótica greimasiana concebe o processo de produção do texto como organizado em três níveis: fundamental, narrativo e discursivo. Esses três níveis compõem um percurso gerativo de sentido, porque parte-se do plano mais simples e abstrato (fundamental) ao mais concreto e complexo (discursivo), num processo de enriquecimento semântico. Assim, compreende o texto como um conjunto de níveis crescentes e constitui um simulacro metodológico de análise, em que o leitor necessita fazer abstrações a partir do texto para compreendê-lo (BARROS, 1997; FIORIN, 2000). O nível que interessa neste trabalho é o nível discursivo (ou superficial), pois é neste nível que se manifestam as escolhas enunciativas do sujeito da enunciação e, em decorrência delas, os efeitos de sentido. As estruturas discursivas instauram relações entre as instâncias da enunciação, responsável pela produção e pela comunicação do discurso o texto-enunciado. Enquanto o sujeito da enunciação enriquece e organiza o discurso com as escolhas que lhe são possibilitadas, essas escolhas de pessoa (actancial), tempo (temporal) e espaço (espacial), convergem para suas intencionalidades. A projeção das categorias da enunciação (pessoa, tempo e espaço) no enunciado se dá através do mecanismo de debreagem. Através desse mecanismo, o enunciador pode optar por projetar ou não no enunciado as categorias da enunciação (eu-tu, aqui, agora). Quando no enunciado vêm explícitos o “eu-tu, aqui, agora”, cria-se um texto de caráter subjetivo. Quando as categorias da enunciação são “apagadas” do enunciado, surgem os textos de caráter objetivo, ou textos em 3ª pessoa, como são conhecidos. No primeiro caso, quando se projetam no enunciado as marcas/categorias da enunciação, temos um texto enunciativo. No segundo caso, quando se apagam as marcas da enunciação no enunciado, temos um texto enuncivo. Também os recursos não verbais se manifestam no nível discursivo e produzem efeitos de sentido de ordens diversas. Como já mencionamos, nas crônicas da coluna são vários os elementos não verbais que se evidenciam (cores, formas, traços, balões de fala, imagens de cães, de mulheres) e ajudam na construção dos sentidos do texto. Neste artigo, porém, vamos nos deter à análise das imagens de mulheres que se manifestam na crônica. Estas imagens, de acordo com estudo de Barros (2012), dependendo do posicionamento e da gestualidade assumidos pelo ator, também apresentam caráter enunciativo ou enuncivo, ou seja, as imagens também podem produzir efeitos de sentido de aproximação e subjetividade ou de distanciamento e objetividade.

3. ANÁLISE TEXTUAL O texto da coluna “Por Aí”, datado do dia seis de outubro de 2013, traz como temática as corridas de rua que, ultimamente, viraram moda. Assim, a narradora textualiza um acontecimento ocorrido com ela, uma inflamação que a impossibilitou de trabalhar durante uma semana, resultado de uma atividade física realizada por ela sem o cuidado e o preparo físico exigido pela atividade. Fato que deu inspiração para a crônica “Maria vai com as Outras”. Além de um título sugestivo, Mariana também utiliza como recurso enunciativo a debreagem enunciativa de pessoa, instaurando-se no enunciado em primeira pessoa do singular, o que se evidencia nas formas verbais (tenho, vou, decretei, inventei...). Cria-se, assim, uma atmosfera de subjetividade, de pessoalidade, de cumplicidade e de aproximação entre leitor e autora. Tal recurso, é válido dizer, é uma estratégia enunciativa comum ao gênero crônica. Observem-se os trechos: Tenho predileção por inventar moda. A última moda que inventei para mim foi a moda da corrida. “Também vou correr”, decretei Eu tive a capacidade de escolher (KALIL, 2013, p.5).

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Assim, ao projetar-se como “eu” no enunciado, a autora também parece dialogar com o público-leitor, já que o instaura como “tu” enunciatário. O uso de pronomes que remetem a primeira pessoa, como os possessivos, também intensificam esses efeitos de subjetividade, pessoalidade, como ocorre nos trechos “[...] Meu tempo até que foi bom para uma iniciante” e “[...] meu tendão direito está inflamado há três semanas” (KALIL, 2013, p.5). Quanto à categoria de tempo, esta também ocorre no texto por meio de debreagens temporais enunciativas, pois as expressões que marcam o tempo, como os verbos, ou se referem ao presente (agora da enunciação), ou o tomam como referência para o dizer, como pode ser observado, respectivamente, nos enunciados “Estou de repouso obrigatório, tomando anti-inflamatório...” e “A última moda que inventei pra mim foi a moda da corrida.” Também a variante linguística utilizada pela autora na crônica projeta efeitos de subjetividade e aproximação entre leitor-autor. As gírias também estão presentes no texto, como por exemplo: “Passei a me sentir um E.T”, “Santa Ignorância”. A propósito, tal forma de linguagem é comum em cadernos de entretenimento e revistas. Este tipo de linguagem acaba por tornar o texto descontraído, diferenciando-o dos demais textos publicados nas demais seções do jornal, como notícias, reportagens, em que a enunciação assume características de um enunciado-enunciado, ou seja, onde se apagam as marcas da enunciação (como a projeção de pessoa no enunciado, as gírias, os adjetivos, as apreciações pessoais, etc.) e busca-se, através das escolhas linguísticas, manter um distanciamento do narrador frente ao fato narrado, criando (nestes) efeitos de sentido de seriedade, de objetividade, de impessoalidade. Por fim, recurso muito utilizado pela autora também são as imagens de mulheres com expressões comuns e femininas que trazem ao texto uma atmosfera lúdica e descontraída, brincando com o exagero das expressões, o drama e a autoridade exercida por algumas mulheres em meio a situações diversas. As imagens seguem abaixo:

Além disso, em todas as imagens, as figuras de mulheres (atores) aparecem voltando seus olhares e gestos para o leitor. Isso configura debreagens enunciativas, pois cria-se o simulacro de uma intração, de um diálogo face a face entre ator e leitor. Assim, também por meio das imagens instauradas no texto se criam efeitos de subjetividade, de aproximação com o público leitor. Além disso, a utilização recorrente de imagens de mulheres com expressões exageradas (além de outros traços) atribui uma identidade própria à coluna, que é reconhecida (e lida) por suas marcas enunciativas.

4. CONSIDERAÇOES FINAIS O texto traz à tona o questionamentos acerca de atitudes e também de modismos que são comum ao momento atual, porém levanta também reflexões acerca do quão preparados estamos para eles. Construído de maneira diferenciada dos demais publicados na Revista Donna, os textos de

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Kalil recorrem a diferentes recursos verbais e não verbais criando texto com uma linguagem descontraída, coloquial, que convida à leitura e que acaba fidelizando os leitores que se identificam com os temas e com esse estilo descontraíso, pessoalizado, subjetivo e que desencadeiam também efeitos de humor no texto. Porjetam-se, assim, efeitos de sentido de aproximação, amizade, cumplicidade. No texto também se projetam algumas características do público feminino, como as imagens de mulheres que remetem a atitudes e vivências, tornando enunciador e enunciatário parecidos em suas dúvidas e fragilidades. O que contribui para um texto irreverente, interessante e diferenciado dos demais publicados na mesma revista, possibilitando uma leitura descompromissada e prazerosa.

REFERÊNCIAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática,1997. ______. Algumas reflexões semióticas sobre enunciação. In: DI FANTI, M. G; BARBISAN, L. (Orgs.) Enunciação e discurso: tramas de sentidos. São Paulo: Contexto, 2012, p. 25-49 FIORIN, José Luiz. A noção de texto na semiótica. Organon, Porto Alegre, v.9, n. 25, p.163-173, 1995. ______. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2000. ______. Em busca do sentido: estudos discursivos. São Paulo: Contexto, 2008. GOMES, Regina Souza. O sincretismo no jornal. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de; TEIXEIRA, Lucia (Org.). Linguagens na comunicação: desenvolvimentos de semiótica sincrética. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2009. p. 215-245. v.1. GRUPO RBS. Zero Hora transforma caderno Donna em revista. 24 maio 2012. Disponível em: . Acesso em: 14 jun. 2015. GUARACIABA, Andréa. Crônica. In: MELO, José Marques. Gêneros jornalísticos na Folha de São Paulo. São Paulo: FTD, 1992. p.82-89. KALIL, Mariana. Maria vai com as outras. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 6 out. 2013, p. 5. [Caderno Donna, seção “Por Aí”]. MELO, José Marques. Jornalismo opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3. ed. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003. SCALZO, Marília. Jornalismo de revista. São Paulo: Contexto, 2003.

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OS SENTIDOS ARGUMENTATIVOS DE TRABALHO EM TEXTOS DE ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO E EM TEXTOS OFICIAIS Gilmar de Assis Euzébio* (UPF) Vanda Aparecida Fávero Pino** (UPF)

No ano de 2011 iniciou-se no Rio Grande do Sul a implementação, na maioria das escolas da rede pública estadual, o Ensino Médio Politécnico. O intuito do programa é principalmente realizar a vinculação entre teoria e prática na formação dos alunos, partindo das discussões pertinentes à sociedade. Nesse contexto os professores foram preparados para atuar diante desse novo desafio, tendo materiais sobre o mundo do trabalho como apoio teórico principal, o qual foi produzido por estudiosos de destaque na área. Material que foi repassado as escolas e desde o inicio deste projeto já se passaram 5 anos. Em vista disso, este estudo tem como objetivo cotejar a concepção de trabalho em textos produzidos por jovens estudantes com as concepções de trabalho verificadas em textos oficiais. Consideramos que refletir sobre a afirmação e os significados de que “só não trabalha quem não quer” é fundamental para entender como evoluíram as relações de trabalho na sociedade e como os sujeitos envolvidos neste processo percebem-se dentro deste contexto. A semântica argumentativa apresenta-nos a oportunidade de termos um “olhar” linguístico sobre a argumentação que permeia os textos sobre esta questão do trabalho. Desenvolvida por Oswald Ducrot e Anscombre e ampliada por Marion Carel, a teoria tem como base a análise dos encadeamentos argumentativos que criam sentidos nos textos. E esse é o marco-teórico deste trabalho. Assim, foi confirmada a hipótese de que os sentidos argumentativos sobre trabalho expressos nos textos dos estudantes aproximam-se dos sentidos argumentativos apresentados pelos textos oficiais. As análises demonstram que há uma “conformidade” com as indicações sociais apresentadas pela sociedade de que o trabalho conduz ao êxito e de que “somente não trabalha quem não quer”, pois a organização social oferece condições a todos os sujeitos que estão dispostos a participar da vida social a alcançar o êxito pessoal através do trabalho. E, linguisticamente, apresenta-se uma concordância normativa em relação aos textos oficiais, ou seja, na produção textual dos estudantes evidenciam-se os encadeamentos em X portanto Y, e não há ocorrências transgressivas do tipo X mesmo assim Y. Assim, surge a necessidade de aprofundar, no uso de uma discussão linguística, os vários argumentos sobre o mundo do trabalho que transitam na sociedade capitalista. A importância de se discutirem esses argumentos e os sentidos coletivo e individual que são suscitados a partir desses argumentos, são chaves para que se aprofunde cada vez mais o debate sobre os significados e sentidos do trabalho. Mesmo diante da certeza de que há muitas “verdades”, de que a linguagem não descreve diretamente a realidade, a leitura argumentativa abre outras portas para uma instigante discussão sobre o tema deste estudo: a relação dos sentidos argumentativos de trabalho em textos de estudantes de escola pública e em textos oficiais. É nesse sentido que buscamos relacionar e analisar os sentidos do trabalho expressos nos textos produzidos por jovens estudantes do ensino médio de duas escolas públicas de uma cidade do Planalto Médio do Rio Grande do Sul, bem como relacionar estes sentidos argumentativos de trabalho apresentados pelos estudantes com as concepções de trabalho apresentadas em um documento oficial do governo estadual direcionado à preparação dos professores. Ele visa orientar os professores sobre os novos objetivos da educação do ensino médio Mestrando do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Licenciado em Letras Português, Inglês e respectivas Literaturas pela UPF; [email protected] ** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Licenciada em Letras/Espanhol e suas respectivas Literaturas pela UPF; [email protected] *

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a nível estadual, apontando para discussões centralizadas também na pesquisa e preparação dos alunos para o conhecimento e ingresso no mercado de trabalho. É válido apresentar esse documento justamente pelos argumentos que são reiterados, afinal, neste material, o trabalho é entendido como tendo um caráter de libertação, a forma de tornar o ser humano ator social e participante efetivo da sociedade do trabalho.

1. TRABALHO E SOCIEDADE Labore, labor, travaille, oeuvrer, tâche, lavorare, operare, trabajar, work, werk, arbeit. Para nós, “simplesmente” trabalho. Mas não entendamos como um termo de significado concluso, que pode ser compreendido com uma consulta ao dicionário. A atividade pode significar “realizar uma obra que te expresse, que dê reconhecimento social e permaneça além da tua vida; e a de esforço rotineiro e repetitivo, sem a liberdade, de resultado consumível e incômodo inevitável.” (ALBORNOZ, 1997, p.9). O trabalho é relacionado ao esforço intelectual, como a produção das artes ou elaboração de materiais de cunho cientifico; é uma expressão usada para determinar trabalhos escolares; nos referimos, também, ao trabalho de parto; assim como outras inúmeras definições. Mas vale ressaltar que “trabalho é esforço e também seu resultado”, assim como “o trabalho do homem aparece cada vez mais nítido quanto mais clara for a intenção e a direção do seu esforço.” (ALBORNOZ, 1997, p.11). São noções que ultrapassam muito seu sentido escrito, pois será a separação entre esforço e resultado-nítido que mobilizará inúmeros conflitos através de toda a história da sociedade. Pesquisando as origens do termo, e seus primeiros significados, soube-se que a palavra origina-se de tripalium - latim -, instrumento desenvolvido por agricultores para trabalhos no campo. Segundo alguns estudos, este instrumento teria também sido usado para prática de torturas, e consequentemente o termo foi utilizado para nomear as duras atividades desempenhadas por pessoas, na atuação braçal dessas sobre a natureza (ALBORNOZ, 1997, p.10). Evidentemente, para a formulação desses conceitos sobre o tema trabalho, consideramos neste estudo os fatores culturais, políticos, sociais, econômicos, e aqueles que foram e são de alguma maneira determinantes para a construção do entendimento do trabalho através da história e estão envolvidos na transformação desse instigante assunto. Também, procuramos ressaltar acontecimentos que, de alguma forma, influenciaram justamente no processo de transformação e mudança dos sentidos e significados do trabalho, bem como os atores envolvidos no processo. Até mesmo porque, perceber que o ato de trabalhar perpassa a vida de todas as pessoas e molda as estruturas e relações sociais é condição primeira a todo estudioso, independente de sua área de estudo. Logo, é evidente que a compreensão do que é o trabalho e seus significados históricos são fundamentais para que entendamos as ligações existentes entre o trabalho e as outras esferas da vida humana, assim omo compreender as relações internas existentes nas sociedades. Na sociedade feudal, por exemplo, “jamais se pensou em termos de igualdade entre senhor e servo. O servo trabalhava a terra e o senhor manejava o servo. E no que relacionava o senhor, este pouca diferença via entre o servo e qualquer cabeça de gado de sua propriedade.” (HUBERMAN, 1986, p.8). Uma clara descrição das relações meramente econômicas a que muitas pessoas foram submetidas, pessoas que foram tratadas como uma mera propriedade de outras em prol da riqueza dessas. Huberman (1986), em seus estudos sobre essas relações, mostra que a relação do servo com o senhor feudal era de dependência econômica naquele momento histórico, pois havia algumas “regras” e “leis” vigentes no período que diferenciavam a forma de exploração do trabalhador servo para um trabalhador escravo. A organização econômica e social do contexto concedia a esse trabalhador servo alguns “benefícios”, pois, Mas esse contexto feudal, essas relações estabelecidas entre graus minimamente organizados de servidão, começaram a ruir com o surgimento do comércio intenso e além mar. Huberman (1986) traz

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relevantes informações sobre transformação desse processo, ao destacar o fortalecimento das relações de comércio na Idade Média, mais especificamente por volta do século XI. Essa expansão do comércio mudou profundamente as sociedades européias da época e criou valores que fizeram surgir uma ambição para descobrir novas mercadorias e novos produtos. O desfecho de tal investida comerciária foi o princípio de relações globais mais intensas e expansionistas, uma prévia do conceito de globalização moderno Bem diferente das novas pretensões do sistema industrial, onde “não pode parar, sob pressão do controle da produtividade e qualidade, e o afã do lucro, não pode ser intercalado nenhum lazer com a aplicação atenta e desgastante a um mesmo gesto, uma mesma operação especializada.” (ALBORNOZ, 1997, p.38). Ou seja, inicia-se um processo de distanciar ainda mais as pessoas do contato com seus familiares e o meio onde moram, tudo em prol dos objetivos da minoria burguesa. Diferentemente da concepção de trabalho dos artesões, onde “o trabalho não obedece a nenhum motivo ulterior além da fabricação do produto e dos processos de sua criação: a esperança de fazer um bom trabalho, realizar um produto, e a arte de fazê-lo.”. Um processo que mantém o vínculo entre a produção e o produto final do trabalho. Enorme diferença da visão do trabalho a partir do olhar do produtor capitalista, que percebe no tempo ocioso o desperdício de seu lucro. Não há a aproximação, nem há o objetivo, entre a vida que a pessoa leva e o trabalho por ela desempenhado.

2. O TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO A relação que se estabelece entre o ensino na escola com a vida do jovem aluno é de desconsideração do conhecimento adquirido pelo educando fora do espaço escolar. O educando traz para o interior da escola todos os seus valores e suas experiências, adquiridas a partir do contato com sua família e do meio comunitário em que vive. Assim, Iara Borges Aragonez apresenta a importância de que na escola ocorra, então, o reconhecimento e a compreensão, justamente, da articulação entre o saber do jovem educando e a realidade social do trabalho, desde os fundamentos do processo produtivo até o reconhecimento das técnicas que fazem parte desse processo de produção. Ou seja, ao abordar a importância de que o jovem estudante se empodere do conhecimento do funcionamento do trabalho que rege as relações sociais e de que nesse há muitas técnicas responsáveis pela produção de nossas riquezas, a autora já traz o trabalho, então, para o centro da discussão na esfera escolar. Ainda, nesse sentido, Aragonez considera importante um avançar nas discussões na escola no que tange a aprofundar as explicações das verdadeiras ciências por trás da organização do trabalho, inclusive fomentando experiências práticas do educando para com o reconhecimento dessas ciências. Por fim, evidencia-se, então, que a autora questiona o sentido firmado pelo capital que tem como noção preparar o jovem trabalhador para um mercado já “pronto”, sem que haja nem a compreensão desse mercado e muito menos uma atuação sobre ele. Segundo Aragonez (2013, p. 168), é importante que se repense a organização escolar para que se possa “propiciar aos jovens a construção de trajetórias formativas e profissionais, em consonância com os novos tempos, além de formar pessoas aptas a interferir e transformar a realidade em que estão inseridas.”.

3. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA A Teoria da Argumentação na Língua (ADL) foi criada em 1983 por Jean-Claude Anscombre e por Oswald Ducrot. Os autores salientam o caráter estruturalista de seus estudos, que se iniciaram a partir da linguística saussuriana. Os estudos da linguagem a partir de Saussure ganham uma nova roupagem e passam a ter o caráter de explicar o funcionamento da linguagem. Graeff (2014, p.95), destaca que “durante muito tempo acreditou-se que uma língua era a representação de estruturas de pensamento. Cuidava-se, então, que a formalização linguística fosse fiel ao pensamento,

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uma vez que a expressão escrita e especialmente falada ‘tendiam a deturpar as ideias’.”. Ou seja, a partir dos estudos de Saussure, no seu Curso de Linguística Geral (1916) a língua passa a ser entendida como um instrumento de comunicação, sem ter relação direta com o pensamento. Ducrot (2005), nesse sentido ainda, abordando a questão da pragmática, deixa claro que essa não se separa da semântica. Ou seja, as palavras dão indicação do contexto as quais pertencem, elas orientam o sujeito falante no tempo e no espaço, não podendo ser separadas da realidade a qual estão imersas. O autor descreve (2005, p. 14) que o contexto da enunciação “também é construído pelo discurso: as palavras empregadas indicam o que se deve procurar e como se deve procurar, no ambiente “real” para constituir o quadro dentro do qual o discurso deverá ser interpretado, e que não preexiste à fala enquadrada nele.” Ou seja, a enunciação, por meio das palavras, estabelece os limites e os pontos de vista dos locutores e enunciadores envolvidos no processo de enunciação. Outro importante questionamento abordado pela ADL é a concepção de sentido de um determinado enunciado. Ducrot ponta que geralmente o sentido de um enunciado apresenta três tipos diferentes de indicações. Elas seriam indicações objetivas, subjetivas e intersubjetivas. As indicações objetivas seriam uma representação da realidade, as subjetivas indicariam a atitude do locutor frente a esta realidade e as intersubjetivas se refeririam às relações do locutor com seu interlocutor. O referido pesquisador questiona esta concepção e defende que tais separações não são características da linguagem e que esta não teria acesso “direto” à realidade. Ducrot (1990) afirma que a “maneira como a linguagem ordinária descreve a realidade consiste em fazer dela o tema de um debate entre os indivíduos”. E mais: que é o valor argumentativo das palavras que dá a orientação ao discurso, que torna possível ou impossível a sua continuação. E esse valor argumentativo é capaz de “dar conta dos principais efeitos subjetivos e intersubjetivos de um enunciado” (DUCROT, 1990), sendo também o nível fundamental da descrição semântica. Nessa fase da Teoria dos Blocos Semânticos (TBS) considera-se que um encadeamento argumentativo estabelece relação entre dois, e somente dois segmentos. Estes segmentos são interdependentes, e o sentido é constituído a partir da conexão estabelecida entre eles por meio dos conectores donc (portanto) e pourtant (mesmo assim). Esses conectores são de dois tipos: portanto é do tipo normativo e mesmo assim do tipo transgressivo. E esta forma é sempre a mesma: segmento1 + conector + segmento 2 = sentido argumentativo. Temos como exemplo oportuno, então, o seguinte bloco semântico, que apresenta o discurso de que o trabalho conduz a pessoa ao êxito:

Transposto Não trabalhar MESMO ASSIM ter êxito

Conversos

Recíprocos

Não trabalhar PORTANTO não ter êxito Transposto

Recíprocos

Trabalhar PORTANTO ter êxito

Trabalhar MESMO ASSIM não ter êxito

Nesse quadrado argumentativo, temos quatro encadeamentos, dois normativos e dois transgressivos. O discurso de que o trabalho conduz ao êxito em trabalha portanto ter êxito. Seu recíproco, e também normativo, é não trabalha portanto não ter êxito. O quadrado nos apresenta, também dois transgressivos. Trabalha mesmo assim não ter êxito é o transgressivo e converso, do normativo trabalha portanto ter êxito. O transgressivo não trabalha mesmo assim ter êxito é converso do enunciado não trabalha portanto não ter êxito. Passemos a análise do texto oficial e das produções das poesias feitas pelas alunos.

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4. ANÁLISE POLIFÔNICA E ARGUMENTATIVA DOS TEXTOS PRODUZIDOS A análise dar-se-á conforme princípios e conceitos da Teoria dos Blocos Semânticos e da Teoria da polifonia. Vale ressaltar novamente que a análise buscará apresentar, além dos encadeamentos evocados a partir dos textos oficiais e das produções textuais, as hipóteses de sentido, principalmente da palavra trabalho; os discursos que circundam os textos dos alunos; a posição assumida pelo locutor diante dos enunciadores que se apresentam no texto; e os principais sentidos que são reiterados pelo conjunto das produções. Apresentando essa leitura argumentativa do trabalho de acordo com a Teoria dos Blocos Semânticos, entendemos que podemos retirar três importantes enunciados do corpus do artigo de Iara Borges Aragonez, que foi destinado as escolas públicas da rede estadual do estado do Rio grande do Sul: 1) Ser homem portanto ter que trabalhar. Esse encadeamento pode ser suscitado a partir do trecho do artigo de Aragonez (2013, p.167), em que a autora explicita justamente a relação do homem para com o trabalho, escrevendo que a atividade “é inerente ao ser humano – no sentido ontológico. É pelo trabalho que os seres humanos transformam a natureza e reproduzem a sua existência.” Apresenta-se o argumento estabelecido no documento, a partir da leitura em Marx, de que o trabalho é inerente ao homem e de que, necessariamente, o homem se diferenciou dos outros animais justamente pela sua condição de ter de “pensar” o trabalho desempenhado. Assim, então, o ser humano surge a partir da relação intrínseca estabelecida com o trabalho. 2) Trabalhar portanto apropriar-se da natureza. Esse encadeamento pode ser evocado a partir do seguinte trecho: “[...] foi e é por meio do trabalho que os seres humanos se apropriam da natureza, criando os meios de vida para sua subsistência, e é nesse processo, no pensar e no fazer cotidiano, que se humanizam e constroem o conhecimento.” (ARAGONEZ, 2013, p. 174). 3) Trabalhar portanto estar inserido na sociedade. Temos o argumento de que, através do trabalho, o homem pode se inserir na sociedade. Aqui se entende que não somente na sociedade capitalista, mas desde as mais remotas tribos há uma evidente necessidade de ter de atuar sobre o meio para dele retirar o sustento básico. Evidentemente, na sociedade capitalista esse básico tem outra argumentação interna que constitui seu sentido, ele deixa de ser trabalhar para retirar sustento, para tornar-se trabalhar para produzir e poder consumir. A segunda parte da análise dedicou-se ao estudo dos textos produzidos pelos alunos. Realizamos uma análise com vários textos produzidos. Abaixo, estão três textos que foram analisados entre essas produções textuais. No processo de análise não solicitamos que os alunos indicassem o nome nos textos, nem o nome da escola. Nossa intenção foi de analisar apenas os aspectos linguísticos dos textos abaixo:

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Texto 1: De certa forma o trabalho é uma oportunidade para ter um futuro melhor, ter o que precisamos. Afinal, a maioria dos jovens quer ter um emprego melhor do que os pais hoje, com um cargo melhor e salário bom. Primeiro emprego é sempre difícil de conseguir por isso a maioria dos jovens procura estágios, que são uma boa forma de conhecer uma carreira. O texto apresenta o discurso do trabalho como forma de se conseguir um futuro melhor, ter aquilo que se precisa. A fato novo nesse texto em relação as outras produções é a comparação da vida que os pais desse jovem levava com a intenção que a maioria dos jovens tem atualmente; a juventude quer um emprego melhor que o de seus pais, um cargo melhor, um salário maior. Mas o ponto de partida não é fácil de ser iniciado, surge o discurso “ser jovem portanto ter dificuldade de se conseguir o primeiro emprego”, discurso não oficial da sociedade capitalista, que defende a tese de que se o jovem não consegue emprego é pela sua pouca formação educacional, os poucos cursos que o jovem estudante fez durante a juventude. A alternativa são os estágios. Apresentados pela sociedade como sendo uma boa solução desse problema, o locutor assume esse discurso, defende que há uma solução. Texto 2: Quem trabalha o pensamento merece mais que um movimento pois tem muito escasso reconhecimento é quase invisível como o vento. O reconhecimento aparece nessa produção como sendo pouco comum no mercado de trabalho. O discurso capitalista de que aquele que trabalha, dedica-se a suas tarefas no local de trabalho, será reconhecido não é assumido pelo locutor do texto. A ênfase que o mercado de trabalho dá a dedicação para que se alcance o sucesso é questionado, o encadeamento trabalho mesmo assim não é reconhecido fica evidente. Também, o locutor trata no texto do trabalho que usa o pensamento como atividade, ou seja, das profissões que trabalham o pensamento. Texto 3: O trabalho não é só um meio de ganhar dinheiro, é um meio de você ter comunicação, você ter conhecimento, você ter responsabilidade, é se sentir útil, é gostar do que faz e fazer direito, procurar ter sucesso mas não deixar a ganância ser maior. O locutor apresenta vários encadeamentos ligados ao trabalho, que é o caminho para se alcançar o sucesso. O trabalho não é somente o meio para ganhar dinheiro, mas também possibilidade de

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comunicar-se, ter responsabilidade, sentir-se útil. O locutor ainda destaca que é importante gostar do que se faz, assim como realizar o trabalho “direito”, com responsabilidade. O locutor também termina o texto deixando claro que deve-se procurar ter sucesso, mas não deixar a ganância ser maior, referindo-se a tendência do sujeito que alcança o sucesso financeiro a “sucumbir” a ganância pelo dinheiro.

CONSIDERAÇÕES As análises através da TBS, utilizando os conectores donc e pourtant foram importantes para entender os sentidos dos enunciados construídos pelos alunos e o valor linguístico nos termos empregados nos enunciados. O ponto de vista desses alunos ficou claro com a realização das análises. A partir do exposto entende-se que a teoria de Ducrot pode ser alicerce para importantes outras análises linguísticas a serem realizadas. O sentido presente nos textos foi contextual, pois o jovem argumenta a partir das leituras realizadas e também por meio das ideias que circulam em sua comunidade, numa clara definição da ligação pré-existente entre pragmática e semântica. E claro, nestas análises, ora aparecem visões tradicionais em relação ao trabalho e ora reflexões sobre as dificuldades do jovem encontrar um trabalho. E os sentidos argumentativos de tais enunciados ficam bem marcados, apresentando assim os anseios e convicções do jovem atual que se preocupa com uma vida melhor, encontrando no trabalho esta resposta. Com isso e a partir das análises realizadas, percebe-se a TBS como uma importante aliada no entendimento da argumentação presentes nos mais diversos enunciados.

REFERÊNCIAS ALBARNOZ, Suzana. O que é trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1997. ARAGONEZ, Iara Borges. Trabalho como prática pedagógica do real. In: AZEVEDO, José Clovis; REIS, Jonas Tarcísio. Reestruturação do Ensino Médio – Pressupostos teóricos e desafios na prática. São Paulo: Fundação Santillana, 2013. DUCROT, Oswald. A pragmática e o estudo da língua. Letras de Hoje. Porto Alegre, 2005. HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Rio de Janeiro: LTC, 1986. GRAEFF, Telisa Furlanetto. O sentido argumentativo estrutural versus contextual: ánalise de ocorrências de velho e idoso em discursos. IN: OLIVEIRA, Esther Gomes de. SILVA, Suzete (Orgs). Semântica e Estilística: Dimensões atuais do significado e do estilo. Homenagem a Nilce Sant’anna Martins. Campinas, SP: Pontes Editora, 2014.

PLATAFORMA EDMODO: UM RECURSO PARA A APRENDIZAGEM DE CUANDO, AUNQUE E DONDE EM ESPANHOL Gisele Benck de Moraes* (UPF)

Neste artigo, tratamos da aprendizagem do presente do subjuntivo em espanhol, mais especificamente, o uso do tempo verbal com as conjunções cuando, aunque e donde. Como suporte de ensino em sala de aula, utilizamos a Plataforma Edmodo para a preparação de atividades escritas e para a aplicação dos testes. A pesquisa foi desenvolvida com estudantes de nível intermediário, futuros professores de espanhol, em uma instituição privada do interior do Estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa foi orientada por princípios qualitativos e quantitativos na escolha dos traços e critérios para elaboração e nos procedimentos para a coleta e análise dos dados. Como suporte teórico para este trabalho, utilizamos os aspectos descritivos e normativos da língua portuguesa e espanhola. Assim, apresentamos na primeira seção o presente do subjuntivo no português brasileiro (PB) e no espanhol, tanto do ponto de vista da gramática normativa quanto da gramática descritiva, pelas seguintes razões: é necessária a apresentação da forma alvo desse estudo na gramática normativa uma vez que nosso contexto de pesquisa é formal, ou seja, os alunos estarão expostos à norma culta; por outro lado, faz-se necessária a descrição de como os falantes produzem o subjuntivo tanto no PB quanto no espanhol, visto que será possível verificar possibilidades de uso do infinitivo com cuando tanto no português quanto no espanhol. Para finalizar, apresentamos a investigação realizada e a análise dos dados com os aspectos relevantes para a aprendizagem de cuando, aunque e donde em espanhol.

1. O PRESENTE DO SUBJUNTIVO EM ESPANHOL E NO PORTUGUÊS DO BRASIL A seguir, apresentamos o estudo realizado acerca das gramáticas normativas e descritivas do PB e do espanhol.

1.1 A GRAMÁTICA NORMATIVA DO PB Para Cegala (2002, p.183), os modos indicam as diferentes maneiras de um fato se realizar e, em especial, o modo subjuntivo “enuncia um fato possível, duvidoso, hipotético”. O autor traz como exemplos: “É possível que chova”; “Se você trabalhasse, não passaria fome”. Continuando a apresentação do modo subjuntivo, Cegala (2002) refere-se ao presente do indicativo como o formador do presente do subjuntivo: digo – diga, digas, diga, digamos, digais, digam. De acordo com Bechara (2002), em Moderna Gramática Portuguesa, o modo subjuntivo, também chamado pelo autor de conjuntivo, faz referências a fatos incertos, como por exemplo: talvez cante. Tal ocorrência se dá normalmente nas orações independentes optativas, nas imperativas negativas e afirmativas (nestas últimas com exceção da segunda pessoa do singular e plural), nas dubitativas com o advérbio talvez e nas subordinadas em que o fato é considerado como incerto, Doutora em Linguística Aplicada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2014). Atualmente é professora Titular I do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo. Email: [email protected]

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duvidoso ou impossível de se realizar. O autor traz como exemplos: “Bons ventos o levem”. “Não emprestes, não disputes, não maldigas e não terás de arrepender-te”. “Louvemos a quem nos louva para abonarmos o seu testemunho”. Para o mesmo autor, nas orações adverbiais usa-se o subjuntivo nas temporais com antes que, assim que, até que, enquanto, depois que, logo que, quando ocorrem nas negações ou nas indicações de simples concepção, e não uma realidade (caso em que aparece o indicativo). Como exemplo: “Cumprirei o que ordenas, porque jurei obedecer-te cegamente enquanto não salvássemos a irmã de Pelágio” (BECHARA, 2002, p. 285). Em comparação à apresentação das duas gramáticas, enquanto Cegala (2002) explica que o modo subjuntivo indica fatos duvidosos, hipotéticos, Bechara (2002) afirma que esse modo ocorre em orações independentes. Dito de outro modo, o primeiro autor utiliza o critério semântico para definir o modo subjuntivo, ao passo que Bechara faz uso do aspecto sintático como critério para indicar esse modo.

1.2 A GRAMÁTICA NORMATIVA DO ESPANHOL Para Llorach (1995), o indicativo “indica”, marca uma determinada noção, enquanto o subjuntivo alude a um comportamento sintático, ou seja, se subordina a algo. Quando faz referência a orações adverbiais temporais, mais especificamente com “quando” e em relação a orações nas quais se emprega o “cuando” e que muitas vezes utilizam “que”, a referência que fazem essas orações da realidade pode ser simultânea com o tempo marcado no núcleo verbal, ou seja, podem marcar a anterioridade imediata ou indicar a simples sucessão, como por exemplo: Y cuando os hiervan los sesos, avisad (LLORACH, 1995, p. 360). O autor também chama atenção para o fato de que se o verbo núcleo se refere a algo que está por vir, ou à posterioridade, o verbo deve ser colocado em subjuntivo. Por exemplo: Mientras no se pruebe la fruta todo marchará bien. De acordo com os gramáticos Hermoso, Cuenot e Alfaro (1999) da Gramática de español lengua extranjera, utiliza-se o subjuntivo em orações independentes como: mandato/proibição (Venga aquí. No venga aqui); probabilidade – com advérbios quizás, tal vez (Quizás esté enfermo); e, para expressar desejo – utilizando a estrutura que + presente do subjuntivo (¡Qué descanses!) (HERMOSO, CUENOT, ALFARO, 1999, p. 120). A gramática também apresenta o uso do subjuntivo em orações subordinadas segundo alguns critérios: quando o verbo subordinado expressa uma ação ainda não realizada ou experimentada, então, se utiliza o subjuntivo. Mais especificamente, se utiliza o presente de subjuntivo com orações temporais introduzidas por cuando, a medida que, antes (de) que, así que, apenas, cada vez que, desde que, después (de) que, en cuanto, hasta que, mientras, nada más que, siempre que, tan pronto como etc. Como por exemplo: Volverá así que pasen cinco años (HERMOSO, CUENOT, ALFARO, 1999, p.129). Em relação ao uso de aunque, conjunção subordinada concessiva, Hermoso et al. (1999) explicam que se utiliza o presente do subjuntivo quando o verbo subordinado expressa uma ação não realizada ou experimentada, como por exemplo: Me casaré aunque no tenga dinero. A mesma explicação os autores trazem para o advérbio de lugar donde. Acrescentam somente que o advérbio pode vir precedido de algumas preposições, a saber: a, de, desde, en, hacia, hasta, por, como exemplo: Busco un sitio donde esté tranquilo. A partir do exposto, podemos observar que os gramáticos indicam que o modo subjuntivo está presente em orações subordinadas, isto é, utilizam caráter sintático para identificá-lo.

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1.3 A GRAMÁTICA DESCRITIVA DO PB Para Abaurre e Pontara (2007), no modo subjuntivo, o conteúdo do enunciado é tomado, pelo falante, como duvidoso, hipotético, incerto, como apresenta em “Espero que você traga o material que eu pedi. Eu ficaria agradecida se você me ajudasse a terminar os exercícios de matemática. Quando o Brasil resolver seus problemas sociais, todos os cidadãos terão uma vida melhor” (ABAURRE, PONTARA, 2007, p. 277). As autoras asseveram que os tempos do subjuntivo são sempre utilizados em estruturas subordinadas, nas quais mantêm uma relação com o tempo e o modo da ação expressa na oração principal. Quando utilizado, o presente do subjuntivo aparece em dois contextos básicos, associado ao tempo presente, como em “É uma pena que alguns jovens não conheçam o prazer da boa leitura”, ou ao tempo futuro, como em “Mudarei para uma cidade de praia no dia em que não precise mais trabalhar”. Em relação às orações concessivas, Abaurre e Pontara (2007) consideram que são aquelas que indicam concessão, ou seja, exprimem a ideia de que algo que se esperava que acontecesse, contrariamente à expectativa, não acontece. Uma relação de concessão traduz, portanto, algo inesperado em determinadas circunstâncias. Dizem também que a conjunção subordinativa típica de concessão é “embora”, como por exemplo: “Embora pretendesse chegar a tempo para o churrasco de final de ano, João acabou se atrasando”. Outra gramática descritiva é a Nova Gramática do Português Brasileiro, de Castilho (2010), para quem o presente do subjuntivo expressa simultaneidade problemática, somada aos valores modais de: a) incerteza, probabilidade, possibilidade – Por que o portão não abre? Talvez esteja quebrado / Talvez, possivelmente, provavelmente venha / Quiçá apareça o livro perdido; b) volição, opção- Oxalá venha / Que venha logo! / Antes chova, bem melhor do que faltar água; c) Exortação imprecação- Que se dane!/ Um raio te parta e o diabo que te carregue!;d) pedido, ordem – Traga-me um copo d´água, por favor! Desculpe-me, não vi que você deixou o pé na minha frente. De acordo com Castilho (2010), do ponto de vista sintático, o subjuntivo predomina nas sentenças subordinadas. Para o autor, subjuntivo e subordinado são termos sinônimos, pois remetem à ordenação das sentenças numa posição de dependência. Semanticamente, o subjuntivo expressa um estado de coisas duvidoso. Castilho (2010) faz referência às orações concessivas, dizendo que as mesmas estabelecem um contraste com a matriz, assumindo a estrutura “Embora p, q”. Exemplo: Embora as adversativas e as concessivas andem de mãos dadas, deveriam discutir a relação (CASTILHO, 2010, p. 371). Na oração concessiva, o desgosto vai estampado logo de cara, na primeira sentença. Ou seja, você escolhe discursivamente se quer negar logo de uma vez ou se acha melhor adiar o conflito. Em relação às adverbiais temporais, Castilho (2010) faz referência ao quando. Segundo o autor, as temporais expressam um tempo anterior, simultâneo ou posterior ao da matriz. Por exemplo: “Quando você chegar, eu já terei comido toda a sobremesa” (CASTILHO, 2010, p. 379). Percebemos novamente, nesse caso, o uso da conjunção temporal quando com o verbo no infinitivo. Castilho (2010) faz apenas uma pequena menção sobre o uso de onde. Segundo o autor, deve haver uma relação entre a sintaxe e o uso crescente do advérbio onde, que substituiria a estrutura padrão em que: Não há uma área em São Paulo onde a polícia não entre (CASTILHO, 2010,p. 368). Percebemos a utilização do presente do subjuntivo com a oração de relativo onde, observando que essa expressão tem a chance de ocorrência quando o antecedente representa a categoria de lugar ou tempo. Para Maria Helena de Moura Neves (2000), em Gramáticas de Usos do Português, o modo subjuntivo não aparece trabalhado separadamente. Quando a autora descreve o uso dos verbos, os descreve sem especificar o tempo, mas recorrendo ao “uso”, ao contexto no qual podem aparecer. A única menção que a autora faz ao modo subjuntivo é quando descreve as orações temporais: “o modo

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subjuntivo pode ser usado na oração temporal iniciada por quando, o que ocorre especialmente no futuro, resultando em expressão de eventualidade” (MOURA NEVES, 2000, p. 792). Explicita ainda que a oração principal leva o verbo no presente do indicativo ou no futuro do indicativo e/ou do subjuntivo, mas não no presente do subjuntivo. Em relação à conjunção concessiva embora, para Neves (2000), a construção concessiva é constituída pelo conjunto de uma oração nuclear, ou principal, e uma concessiva. Como por exemplo: Embora ninguém prestasse atenção, alisou de novo a saia. As estrelas, muito distantes, são consideradas fixas, embora não o sejam. Podemos perceber que, nas gramáticas descritivas do PB, existe convergência em relação ao aspecto duvidoso, incerto do modo subjuntivo. Também podemos perceber que a conjunção concessiva embora, em português, se utiliza com o modo subjuntivo, o que pode influenciar no fato de os alunos transferirem essa estrutura para o espanhol ao utilizar a conjunção aunque. A seguir, apresentamos a gramática descritiva do espanhol quanto ao uso do presente do subjuntivo.

1.4 A GRAMÁTICA DESCRITIVA DO ESPANHOL Para Matte Bon (1995), a característica essencial que distingue o subjuntivo de todos os demais tempos do espanhol é que o mesmo não apresenta informações novas. Segundo o autor, o enunciador põe os verbos no subjuntivo quando somente quer fazer referência da relação entre um sujeito e um predicado, sem dar informações sobre o sujeito do verbo. E afirma ainda que, ao contrário, com verbos no indicativo ou em condicional, tem-se informações novas sobre o sujeito de cada verbo. Quando se refere ao uso do presente do subjuntivo, Matte Bon (1995) considera incompatível que se use o presente do subjuntivo com ideia de passado. Ele reafirma que em todos os empregos do modo subjuntivo a função é marcar que o dito não constitui informação e revelar que esse controle mantém o enunciador em todo momento. Em seguida, Matte Bon (1995) aponta uma série de usos do modo subjuntivo, contudo, nos ateremos ao objeto de nosso estudo, presente do subjuntivo. Assim, o autor afirma que se emprega o subjuntivo nas orações subordinadas em que o enunciador queira referir-se a uma entidade de futuro com relação ao momento da enunciação ou com respeito ao momento do passado do qual está falando. Dessa maneira, para nos referirmos a um momento de futuro podemos empregar uma data precisa e dizer, por exemplo, Mañana a las tres de la tarde, ou ainda podemos utilizar uma definição relacionada com algo que ainda vai acontecer, como por exemplo, cuando llegue Andrés (MATTE BON, 1995, p. 273). Enfim, Cuando llegue Andrés não é nem mais nem menos que uma definição de um momento futuro. Esse tipo de recurso, conforme o autor, se utiliza especialmente quando o falante não dispõe de elementos precisos. Segundo Matte Bon (2001, p.141), quando se refere ao futuro com referência ao momento em que se fala, utiliza-se o presente do subjuntivo: “Por favor, cuando llegues, llámame.”. Em referência à conjunção concessiva aunque, Matte Bon (1995) considera que, se a oração concessiva introduzida por aunque é nova para o interlocutor, ou quando é apresentada como uma informação nova, o verbo da oração principal deve estar no indicativo, mas também é possível encontrar aunque seguido de futuro ou condicional. Por outro lado, quando a informação mencionada na oração concessiva introduzida por aunque não constitui informação nova (porque se trata de algo que os dois interlocutores já sabem e aceitam que o enunciador não dispõe de elementos que lhe permitam informar ou não quer informar), o verbo deve estar no subjuntivo. Também se utiliza o subjuntivo quando a informação tem um caráter hipotético, nesse caso, o foco desta investigação. De acordo com Matte Bon (2001, p. 107), para introduzir uma oração concessiva se utiliza, entre outras possibilidades, a conjunção aunque: “Aunque llueva, tengo que salir”.

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Segundo esse mesmo autor, quando se diz: “No importa, aunque esté lloviendo, tengo que marcharme”, o elemento A (aunque esté lloviendo) apresentado na oração concessiva introduzida por aunque é o motivo pelo qual o falante considera que não deveria ir, ou seja, o elemento B (tengo que marcharme). Ao formar uma oração concessiva, o que faz o falante é dizer explicitamente que está levando em consideração o elemento A e que, apesar de tudo, tem de expressar o elemento B (MATTE BON, 2001, p. 212). Outra gramática descritiva do espanhol é a de Bosque e Demonte (1999). No capítulo 47, os autores começam a tratar das orações subordinadas temporais fazendo a seguinte referência ao uso de cuando: “Quando o tempo da oração principal pertence à esfera do presente, na oração subordinada aparece o presente do subjuntivos e o conector for quando e o tempo principal indicar posterioridade”1 (BOSQUE; DEMONTE, 1999, p. 3119). Conforme Bosque e Demonte (1999, p. 3313), as orações introduzidas por cuando se comportam, de maneira geral, semelhantemente ao restante das orações temporais e aparecem em indicativo se designam eventos factuais (passados, presentes ou habituais), como no subjuntivo, se remetem a contextos posteriores e não factuais como em: “No encontrará a nadie cuando llegue”. Também se referem ao contraste entre indicativo e subjuntivo, na medida em que o tempo da oração principal pode assumir um valor de presente habitual ou de futuro: “Cuando nos habla/ hable, así, le damos un cachete” (BOSQUE e DEMONTE, 1999, p. 3313). Com o indicativo, a oração subordinada designa um fato habitual (e a conjunção cuando assume um valor semelhante ao da locução sempre que); com o subjuntivo, ao contrário, a oração se refere a uma eventualidade futura e assume um valor próximo ao das orações condicionais. Bosque e Demonte (1999) também fazem referência ao uso de aunque. Para os autores, em relação ao uso dos modos na oração subordinada, o fato de que esta oração designa uma causa ineficaz podo ser verdadeira ou não. Em estudos sobre esse tipo de oração é bastante comum diferenciar dois tipos de orações concessivas: as concessivas propriamente ditas, que têm um caráter factual, e as condicionais concessivas (condicionais hipotéticas), que têm um caráter não factual ou contrafactual. Essa diferença tem repercussões modais, já que o subjuntivo se utiliza necessariamente no segundo caso, e segundo o qual se aplica o estudo desta tese. Por exemplo: “Aunque llueva mañana, saldremos de excursión; aunque ahora esté lloviendo, saldremos de excursión” (BOSQUE e DEMONTE, 1999, p. 3300). Bosque e Demonte (1999) trazem, também, uma pequena explicação sobre outras orações subordinadas adverbiais, no caso, as orações locativas introduzidas pelo relativo donde. A possibilidade de utilizar o subjuntivo com o donde está diretamente relacionada com a aparição na oração principal do verbo “buscar”, por exemplo: “Busco un libro donde se analice el modo en las oraciones de relativo” (BOSQUE e DEMONTE, 1999, p. 3259). Portanto, podemos dizer que alguns verbos, como no caso buscar, criam um tipo de contexto adequado para o uso do subjuntivo. Podemos perceber que essas descrições, principalmente da gramática descritiva do espanhol, vêm ao encontro do que propomos neste estudo, pois consideram a língua como um recurso efetivo de comunicação.

2. O ESTUDO REALIZADO Este estudo foi realizado durante o primeiro semestre letivo de 2013, em uma turma de nível intermediário, VI nível, de um curso de Letras – Espanhol, em uma universidade privada do interior do Rio Grande do Sul. A pesquisadora não é a professora titular da turma, mas trabalhou conjuntamente com a referida educadora. “Cuando el tiempo de la oración principal pertenece a la esfera del presente, en la oración subordinada aparece un presente, que es de subjuntivo si el conector es cuando y el tiempo principal indica posterioridad”

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Trata-se de um estudo qualitativo, pois precisa levar em consideração a história pessoal de cada participante, assim como as condições específicas em que se dá a apropriação dos conhecimentos. Assim, podemos dizer que os participantes, em sua grande maioria, provêm de diversas cidades do interior do Rio Grande do Sul, próximas do município da universidade privada cujos alunos são participantes da pesquisa. Participaram da pesquisa 12 acadêmicos, com idades entre 18 e 40 anos. Para a realização da pesquisa, foi utilizada a Plataforma Edmodo com a proposta de realização das seguintes tarefas para a execução das três etapas de pesquisa: descrição de imagem; completar lacunas; múltipla escolha e contação de histórias. Em todas as atividades os alunos deveriam utilizar o presente do subjuntivo. Após a realização do pré-teste, a investigadora e a professora titular realizaram 8 horas aula com uso da gramática específica no presente do subjuntivo e com a utilização da Plataforma Edmodo. Após as 8 horas/aula, os alunos realizaram o pós-teste imediato e, 40 dias após, o pós-teste postergado.

2.1. ANÁLISE DOS DADOS A seguir, apresentamos os dados gerados com as aplicações das três etapas de pesquisa. Tabela 1 – Uso do português/espanhol no presente do subjuntivo Tipos de formas linguísticas

Pré-teste

Pós-teste imediato

Pós-teste postergado

Não Aplic./Total

Uso do infinitivo no lugar do presente do subjuntivo com cuando

122/179=68,1%

3/165=1,82%

4/155=2,58%

129/499= 25,85%

Uso do presente do indicativo no lugar do presente do subjuntivo com aunque

61/155= 39,35%

4/156= 2,56%

4/151= 2,65%

69/462=14,94%

Uso do presente do indicativo no lugar do presente do subjuntivo com donde

55/107= 51,40%

5/118= 4,24%

12/152= 7,89%

72/377= 19,10%

Fonte: Elaborado pela autora (2014).

Podemos perceber o alto índice de uso do infinitivo no pré-teste. Os participantes, sem terem estudado especificamente o presente do subjuntivo com a conjunção cuando, tendem utilizar o infinitivo (68,1%) ou o infinitivo pessoal (10,6%). Podemos perceber esse uso quando os estudantes utilizam, por exemplo: Cuando estiver en Barcelona; Cuando volver a viajar; Te invitaré a tomar algo cuando salirmos del cine. Podemos perceber que o uso do infinitivo se assemelha ao que dizem as autoras Abaurre e Pontara (2007, p. 277) na gramática descritiva do Português. Para elas, no modo subjuntivo, o conteúdo do enunciado é tomado, pelo falante, como duvidoso, hipotético, incerto, como apresentam no seguinte exemplo: “Quando o Brasil resolver seus problemas sociais, todos os cidadãos terão uma vida melhor”. Acreditamos que os participantes tenham feito uso desse entendimento para realizar a tarefa proposta. Notamos, assim, que antes das aulas-tratamento ou intervenções da investigadora e da professora titular os alunos praticamente utilizavam a base do português como regra para o uso da conjunção cuando em espanhol. Mas, após a intervenção, podemos perceber que o índice de uso do verbo no infinitivo diminui para 1,82% no pós-teste imediato e 2,58% para o pós-teste postergado, mantendo a durabilidade de uso do presente do subjuntivo com a conjunção cuando em espanhol.

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Podemos perceber esse resultado pelo índice de manutenção do presente do subjuntivo utilizado pelos alunos em espanhol no pós-teste imediato e no pós-teste postergado. Após o pós-teste postergado podemos perceber que o uso do presente do subjuntivo com cuando em espanhol já se assemelha com o indicado na gramática descritiva do espanhol de Bosque e Demonte (1999, p. 3313), cujas orações introduzidas por cuando no subjuntivo remetem a contextos posteriores como em: “No encontrará a nadie cuando llegue”. Acreditamos que os alunos tenham passado a compreender a ideia de uso do presente do subjuntivo com a conjunção cuando. Quanto ao uso do presente do subjuntivo com a conjunção “aunque” em espanhol, podemos perceber que houve um alto índice de uso do presente do indicativo no pré-teste, 39,35%. Como em português a conjunção concessiva “embora” faz uso do presente do subjuntivo na conjugação, acreditamos que os participantes tenham utilizado o presente do indicativo pela dificuldade na hora de conjugar o verbo no presente do subjuntivo em espanhol ou pela simples falta de compreensão do enunciado, como podemos perceber: “Yo le conteste que sí, aunque demore; aunque hoy; aunque viernes”. De acordo com Castilho (2010), o problema é que o indicativo também pode ser precedido de conjunções e os participantes podem ter transferido o uso do português para o espanhol para facilitar na hora da conjugação. Podemos perceber que nos pós-teste imediato e no pós-teste postergado os participantes já conseguem fazer o uso do presente do subjuntivo em espanhol, pois ambos os testes apresentam os seguintes índices de uso do presente do indicativo, respectivamente: imediato (2,56%); postergado (2,65%). Em relação ao uso do presente do subjuntivo com donde, podemos perceber no pré-teste um alto índice de uso do presente do indicativo (51,40%). Esse índice nos faz acreditar que a dificuldade na hora de conjugar o verbo no presente do subjuntivo tenha sido o fator influenciador e determinante na hora da escolha do tempo verbal. Segundo Bosque e Demonte (1999, p. 3259), as orações locativas introduzidas pelo relativo donde apresentam a possibilidade de utilizar o presente do subjuntivo diretamente ligado com a aparição na oração principal do verbo “buscar”, por exemplo: “Busco un libro donde se analice el modo en las oraciones de relativo”. Essa possibilidade aparece claramente no seguinte enunciado do pré-teste, mas o participante faz uso do presente do indicativo: “Busco un trabajo donde yo puedo me realizar”. Esse exemplo demonstra claramente a falta de compreensão do participante na hora do uso do presente do subjuntivo com o relativo donde. Após a intervenção da pesquisadora e da professora titular com atividades específicas voltadas à aprendizagem com IFF, percebemos o índice de uso do presente do indicativo com o relativo “donde” diminuiu, conforme segue: pós-teste imediato (4,24%) e pós-teste postergado (7,89%). O que corrobora com a ideia de Castilho (2010) em português também. Pois, segundo o autor, percebemos a utilização do presente do subjuntivo com a oração de relativo onde, observando que essa expressão tem a chance de ocorrência quando o antecedente representa a categoria de lugar ou tempo, como segue o seguinte exemplo dos pós-testes: “Busco un sitio donde pueda encontrar amigos”. Portanto, percebemos que o maior índice de uso do presente do indicativo ocorreu com a conjunção “cuando” no pré-teste. Isso nos leva a crer que realmente há uma certa influência da LM, principalmente, com o uso de “cuando” em espanhol. Nesse sentido, reforçamos a ideia de que aulas de gramática especificamente são benéficas para a aprendizagem de gramática em espanhol e acreditamos que a utilização a Plataforma Edmodo tenha contribuído para a aplicação das tarefas e para a manutenção da motivação dos participantes durante a realização da investigação.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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REFERÊNCIAS ABAURRE, M. L.; PONTARA, M. Gramática texto: análise e construção de sentido. São Paulo: Moderna, 2007. BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. BOSQUE, I.; DEMONTE, V. Gramática descriptiva de la lengua española: las construcciones sintácticas fundamentales. Madrid: Espasa Calpe, 1999. CASTILHO, A. T. Nova Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010. CEGALA, D. P. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. 45ª ed. São Paulo: Editora Nacional, 2002. EDMODO. Disponível em: http://www.edmodo.com. Acesso em: 31 out. 2012. HERMOSO, A.; CUENOT, J. R.; ALFARO, M. S. Gramática de español lengua extranjera: normas, recursos para la comunicación. Madrid: Edelsa, 1999. LLORACH, E. A. Gramática de le lengua española. Real Academia Española. Madrid: Espasa Calpe, 1995. MATTE BON, F. Gramática Comunicativa del español: de la lengua a la idea. Tomo I. Madrid: Edelsa, 1995. _______. Gramática Comunicativa del español: de la idea a la lengua. Tomo II. Madrid: Edelsa, 2001. NEVES, M. H. M. Gramática de Usos do Português. São Paulo: UNESP, 2000.

TEMPO DE ESTAR CALADO, TEMPO DE FALAR: DA PALAVRA AO ETHOS DISCURSIVO NA LITERATURA DE EDUARDO GALEANO Iverton Gessé Ribeiro Gonçalves* (UPF)

Na intensão de compreender as implicações da palavra, na perspectiva dialógica, e apreender o ethos discursivo, da abordagem enunciativo-discursiva, nos propomos a analisar a literatura de Eduardo Galeano, buscando averiguar de que forma se constrói o cenário de legitimação da enunciação num contexto em que fazer uso da palavra, isto é, enunciar-se, é proibido. Vivemos um período em que as opiniões tem se radicalizado e as identidades cada vez mais buscam um lugar de apoio para se constituírem, portanto, entendemos que a temática escolhida se justifica por trazer à tona as repercussões do uso da palavra e o direito de expressão ou a falta dele. O estudo da atitude responsiva frente ao signo linguístico e ideológico no processo dialógico da linguagem, bem como a descrição das cenografias para a apreensão do ethos discursivo nos impulsiona a analisar e compreender as restrições e permissividades no uso da palavra em contexto ditatorial e construção de sentido no discurso sobre a liberdade. A temática pensada para esse estudo suscita a seguinte questão norteadora: Os acabamentos dados ao signo ideológico no discurso sobre a palavra, oportunizados na literatura de Eduardo Galeano, nos permite identificar uma cenografia e um ethos que entram confronto com inúmeros outros discursos não afinados a uma mesma conjuntura ideológica. Dessa forma, o objetivo deste trabalho se define em interpretar os discursos sobre o uso da palavra, através da análise das cenografias construídas na obra de Galeano e a identificação dos ethé conflitantes no signo ideológico. A base teórica acionada para o desenvolvimento deste artigo compreende os princípios que descrevem a palavra como arena da luta de classes para o dialogismo, proposto pelo Círculo de Bakhtin, através dos estudos de Volochínov (2006) e Bakhtin (1997). Apontamos ainda a cenografia enunciativa e o ethos discursivo, propostos por Maingueneau (2002, 2008b, 2008c, 2013), como categorias teórico-metodológicas a serem utilizadas neste trabalho. Os procedimentos metodológicos norteadores da análise qualificam nossa pesquisa como descritiva, de base bibliográfica e documental e abordagem qualitativa. Reduzimos, para abordarmos nesse artigo, a grande gama de produções de Eduardo Galeano por meio de um recorte de dois contos que compõem os corpora deste estudo, sendo eles: A casa das palavras e Pájaros prohibidos. O trabalho é composto por uma seção que realiza um percurso teórico sobre o dialogismo, mais especificamente sobre o signo ideológico, a palavra e as refrações de sentido. A segunda seção se presta a apresentar as concepções de cenografia enunciativa e ethos discursivo, na perspectiva enunciativo-discursiva. Posteriormente, são detalhados os procedimentos metodológicos. Nessa mesma seção apresentamos a constituição dos corpora. Por fim, consta a análise dos corpora e, as considerações finais.

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Licenciado em Letras pela Universidade de Caxias do Sul. Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo – UPF, Brasil. E-mail: [email protected]

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1. SIGNO LINGUÍSTICO E IDEOLÓGICO EM BAKHTIN: A PALAVRA Admitidos que trabalhando com alguns conceitos da perspectiva dialógica do Círculo de Bakhtin corremos o risco de generalizar princípios muito bem especificados. A afirmativa de que “a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signos”. (VOLOCHÍNOV, 2006, p. 32) nos impulsiona a investigar o uso da palavra na literatura de Eduardo Galeano e compreender as respostas dadas a palavra por inúmeros discursos que a atravessam. Mesmo em contexto ditatorial, em que a palavra é cassada e que os sentidos dados aos signos são, socialmente, homogeneizados, ainda assim o signo não perde sua capacidade de ser respondível. O signo, nessa perspectiva, é o conteúdo ideológico impregnado na consciência. A realidade objetiva do signo é a realidade dos fenômenos ideológicos, e é esse fator ideológico o eixo propulsor não só da consciência, mas também da própria linguagem, considerando que não há outra instância, senão a linguagem, em que a característica ideológica se apresente de forma tão clara e completa. Compreendemos, dessa forma, “a palavra [como] fenômeno ideológico por excelência”. (VOLOCHÍNOV, 2006, p. 34). A palavra, materialidade de um sistema semiótico, se caracteriza, deste modo, como um signo social, instrumento da consciência e acompanha toda a criação ideológica. Volochínov (2006, p. 40) afirma que “as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios.” Entende-se que a palavra é o modo mais puro e sensível de todas as relações entre indivíduos. Para evitar as respostas dadas ao signo seria necessário isolar os indivíduos da convivência social e privá-los da capacidade da linguagem. Aproximando a abordagem sobre a palavra ao contexto da ditadura representados na literatura de Eduardo Galeano, emprestamos de Bakhtin (1997, p. 313, grifos do autor) três possíveis existências da palavra para o locutor. como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois na medida em que uso essa palavra numa determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou na minha expressividade.

A palavra de ninguém pode ser entendida como a unidade da língua enquanto sistema, é neutra. Nos dois últimos apontamentos, a palavra, numa forma geral, expressa o juízo de valor de indivíduo socialmente engajado. Há que se considerar que a palavra neutra, existente dentro da língua, não é dotada da capacidade de expressar emoções, juízo de valores ou outras intenções. É somente no processo de utilização ativa da língua no enunciado concreto que a palavra, sendo tomada como minha ou como do outro, deixa de ser alheia aos sentimentos e arrazoamentos do indivíduo. Esse entendimento se confirma nos estudos sobre a palavra em Bakhtin, realizados por Stella (2013), pelo que afirma que o falante dá vida à palavra com sua entoação e dialoga com os valores sociais demarcando seu ponto de vista. No processo dialógico, cada locutor atribui o seu valor à palavra, fazendo dela um índice social de valor. O índice social de valor é o conteúdo do signo, sem essa valoração social, o signo não é nada. Volochínov (2006) descreve que pelo fato de o signo ser criado entre indivíduos ele conserva-se vivo e móvel, por isso mesmo constitui-se em uma arena para a luta de classes. As forças sociais dominantes tentam estabilizar os conflitos, definindo o signo de acordo com domínio ideológico de seu interesse. A descrição apresentada por Volochínov reforça essa nossa leitura. Conforme o autor “em todo ato de fala, a atividade mental subjetiva se dissolve no fato objetivo da enunciação realizada, enquanto que a palavra enunciada se subjetiva no ato de descodificação que deve, cedo ou tarde, provocar uma codificação em forma de réplica”. (VOLOCHÍNOV, 2006, p. 66). Eis a concepção em que mais minimamente se percebe a palavra enunciada como palco para a interação viva das forças sociais.

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Encontramos ainda alguns outros apontamentos sobre a palavra como material para o projeto discursivo. Stella (2013, p. 181) afirma que a escolha das palavras para determinado projeto discursivo só é possível porque “já foram experimentadas por outros locutores em situações semelhantes”, isto é, as palavras a serem escolhidas são inoculadas pelo gênero do discurso no projeto discursivo pretendido. Como se pode ver, em todo o processo da linguagem, posta em uso, interferem forças sócio históricas, seja na constituição do signo, do ser no signo e até mesmo do projeto discursivo, isso porque para Bakhtin “a grande força que move o universo das práticas culturais são precisamente as posições socioavaliativas postas numa dinâmica de múltiplas inter-relações responsivas”. (SOBRAL, 2013, p. 38). Percebe-se, a partir dessas afirmações, que as variações do signo o demarcam como flexível de acordo com as situações concretas de enunciação e o processo de compreensão é realizado pela descodificação do signo, inserindo-o em um novo contexto, o contexto ideológico do interlocutor. (VOLOCHÍNOV, 2006). Dessa forma, a palavra, seja proveniente do locutor, seja inserida no contexto de compreensão do interlocutor, estará sempre carregada de um conteúdo ideológico ou vivencial. O caráter inacabado do signo, mais especificamente da palavra, é o ponto fundamental da proposta de dialogismo, pois ao mesmo tempo em que o signo recebe um acabamento, isto é um índice social de valor, por parte do locutor, esse acabamento pode ser alterado pelo processo de compreensão do interlocutor. Mais não se encerra por aí, o tratamento que o locutor dá a uma palavra se constitui como uma resposta aos inúmeros outros discursos que foram enunciados antes dele, assim como seu enunciado se lança na grande corrente da interação verbal, passível de ser respondido por outros. Pode-se pensar, por essa afirmativa, que a palavra nunca será una. De fato, tantas são as significações da palavra quanto forem possíveis os contextos, já que o contexto é o fator determinante de sentido da palavra. Apesar disso, a palavra reserva em si uma unicidade fonética e uma unicidade de significação. Isso significa que “a palavra, como signo, é extraída pelo locutor de um estoque social de signos disponíveis, mas esse signo será determinado nas relações sociais de enunciação”, (VOLOCHÍNOV, 2006, p. 115) assim como a própria realização desse signo na enunciação é definida por forças sociais. Por isso Volochínov (2006, p. 97) afirma que a “língua, para a consciência dos indivíduos que a falam, de maneira alguma se apresenta como um sistema de formas normativas”, pelo contrário a disponibilidade do aparelho da língua age de modo a despertar ressonâncias ideológicas nos indivíduos. Frente a isso, cabe admitir que os contextos são caracterizados como espaços tensos de conflito ininterrupto para fazer com que a ideologia dominante prevaleça no signo e refrate os acabamentos ideológicos contraditórios. Por fim, se toda a palavra, como sugere Volochínov (2006), comporta duas facetas – procede de alguém e se dirige a alguém – é preciso supor um horizonte social estabelecido ideologicamente para enunciar-se. Explicitada a característica ideológica e os conflitos que ocorrem no signo, abordaremos, a seguir, o cenário construído para o processo de comunicação, mais especificamente, na enunciação e a imagem que o locutor lança de si no discurso através das concepções de cenografia enunciativa e ethos discursivo.

2. ENUNCIAÇÃO E DISCURSO: CENOGRAFIA E ETHOS EM MAINGUENEAU Para realizarmos a revisão das categorias teóricas de cenografia e ethos, desenvolvidos por Maingueneau (1997), cabe situar esse trabalho quanto à compreensão sobre a análise do discurso. A linguagem, na concepção de Maingueneau (2013), é assimétrica porque o enunciador não tem controle sobre a interpretação de seu enunciado. No processo enunciativo, o enunciado fica a mercê da interpretação do coenunciador. Por isso é importante que o enunciador construa, no processo enunciativo, um caminho de interpretação que possa servir de parâmetro para que o coenunciador siga,

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isto é, “a pessoa que interpreta o enunciado reconstrói seu sentido a partir de indicações presentes no enunciado produzido, mas nada garante que o que ela reconstrói coincida com as representações do enunciador”. (MAINGUENEAU, 2013, p. 22). Para prender o coenunciador numa interpretação desejada, o enunciador recorre a fontes que fornecem informações para interpretação, são elas: o ambiente físico da enunciação (pessoa, tempo, lugar), o cotexto (sequências verbais encontradas antes ou depois da unidade a ser interpretada) e o conhecimento de mundo (memória / saberes compartilhados anteriores a enunciação). Essas fontes vão sendo evocadas ao longo da enunciação para que, por elas, o coenunciador chegue ao acabamento interpretativo desejado. No que se refere ao contexto, Maingueneau (2013) estabelece um desdobramento entre contexto enunciativo e cotexto linguístico. O contexto aponta para a situação enunciativa composta pelas categorias de pessoa, tempo e espaço. Já o cotexto nada mais é que as sequências linguísticas que compõem o enunciado. Para entendermos o imbricamento dos aspectos teórico acima elencados, recorremos à descrição conceitual de cena da enunciação. Maingueneau (2013) nos orienta para a possibilidade de descrevermos a cena da enunciação de três formas. A primeira delas o autor chama de cena englobante. A cena englobante diz respeito ao tipo de discurso ao qual se filia o enunciado (religioso, político, filosófico etc). Essa cena define o quadro espaciotemporal, uma vez que a formação de um enunciado se dá a partir de um discurso que define o tratamento a ser dado às categorias de pessoa, tempo e espaço. A segunda cena é denominada por Maingueneau (2013) como cena genérica. A cena genérica é definida pelo gênero de discurso. O gênero acionado para a construção da enunciação define os papéis sociais dos parceiros enunciativos. Numa sala de aula, por exemplo, se tomarmos a aula como um gênero de discurso, aquele que ensina e orienta a aprendizagem é definido pelo papel de professor, enquanto que aquele que manuseia as informações num processo de construção do saber é tido como aluno. Alguns gêneros permitem a construção da terceira cena descrita por Maingueneau (2013), a cenografia, enquanto que outros gêneros como, o edital, o parecer administrativo, o relatório técnico, etc, são marcadamente rígidos, não permitindo o desenvolvimento de uma cenografia enunciativa específica para a legitimação daquela enunciação. A cenografia, terceira cena da enunciação, é um movimento percebido ao longo do discurso. Não podemos entender a cenografia como um instrumento pronto, acionado pela enunciação. A cenografia deve legitimar a enunciação que a constrói ao mesmo tempo em que o enunciador, por meio da enunciação, consegue legitimar a cenografia que impõe. (MAINGUENEAU, 2013). Para o autor, tomar a palavra constitui-se num risco mediante a atitude do outro, no entanto, o enunciador, ao falar, vai construindo seu próprio dispositivo de fala. “A cenografia é a fonte do discurso e aquilo que a engendra. Essa cenografia onde nasce a enunciação é precisamente a cenografia exigida para enunciar como convém” (MAINGUENEAU, 2013, p. 98). O autor aponta para o fato de as cenografias, em sua maioria, serem constituídas a partir de modelos valorizados ou rejeitados pela coletividade. Esses modelos recriam o que Maingueneau (2013) chama de “cenas validadas”, isto é, cenas que já estão instaladas na memória coletiva. Da cenografia criada para controlar e legitimar a enunciação, se depreende um enunciador encarnado, o qual, pela própria enunciação deixa transparecer sua personalidade. A ideia de enunciador encarnado é, nas reformulações de Maingueneau (1997), o ethos discursivo. O ethos discursivo vem a ser a imagem que o enunciador constrói para si no discurso. A imagem que vai sendo construída pelo enunciador pode ser percebida pelo tom que soa da enunciação. O termo tom aparece em Maingueneau (2008b) em substituição à voz. Diferente da vocalidade, o tom tem a vantagem de remeter a imagem do enunciador tanto em registro oral quanto escrito. O tom, imagem do enunciador, permite que o coenunciador elabore, ele também, uma imagem do enunciador. De acordo com a

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imagem elaborada pelo coenunciador, podemos dizer que o ethos construído na enunciação se instaura como fiador do que é dito. A noção de ethos discursivo, além do tom, é segmentada em caráter e corporalidade. O caráter diz respeito aos traços psicológicos apontado nos indícios da enunciação. A corporalidade refere-se a compleição física e a maneira desse enunciador se movimentar na enunciação. (MAINGUENEAU, 2013). Segundo Amossy (2008) o ethos implica um comportamento do enunciador. Os traços que compõem o ethos podem aparecer na materialidade discursiva através das referências que o enunciador faz a si mesmo e, nesse ponto, estamos tratando do ethos mostrado. O ethos dito, outra maneira de manifestação do ethos, refere-se ao movimento do enunciador no todo enunciativo, a considerar os posicionamentos que ele assume. A essas duas facetas do ethos discursivo se soma a descrição de ethos prévio, ou ethos pré-discursivo, que é a construção da imagem do enunciador antes mesmo que ele se enuncie. Essa construção se embasa no contexto enunciativo, no posicionamento interdiscursivo da enunciação, no gênero que permite a realização da enunciação e na memória coletiva de estereótipos que fornece identidade a determinado enunciador. Todo esse percurso resulta num ethos efetivo, legitimado pelo corpo que cria para si próprio, pela incorporação de fiador que o coenunciador lhe confere e pela incorporação da comunidade ao seu discurso. Esse enlaçamento enunciativo só é possível se o ethos discursivo estiver afinado à conjuntura ideológica a partir da qual se enuncia. Na seção seguinte constam os procedimentos metodológicos e a análise.

3. METODOLOGIA E ANÁLISE DOS CORPORA Depois de discorrermos sobre as categorias teóricas de cenografia e ethos discursivo, na perspectiva enunciativo-discursiva, e a palavra em Bakhtin, apresentamos, nesta seção, os procedimentos metodológicos que mapeiam nosso fazer científico com vistas a atender os objetivos propostos nesse trabalho.

3.1 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS Este estudo se caracteriza como exploratório-descritivo quanto aos objetivos; bibliográfico e documental no que se refere aos procedimentos técnicos e qualitativo por sua abordagem. Dois são os contos selecionados da vasta produção de Galeano para compor nosso objeto de estudo. O conto A casa das palavras consta n‘O Livro dos Abraços (2002) e o conto Pájaros prohibidos faz parte da obra Memória del fuego III (2005). Os procedimentos metodológicos são assim expressos: a) Descrição da cena englobante, da cena genérica e da cenografia de cada um dos contos; b) Descrição da constituição do ethos discursivo a partir da cenografia construída para a enunciação e com base na natureza responsiva do signo bakhtiniano. c) Análise do discurso sobre ditatorial a partir da cenografia construída pelos contos e descrição das cenas validadas invocadas para legitimação desse discurso. d) Análise da postura do enunciador sobre o uso da palavra como elemento de lutas sociais ocorridas no signo ideológico “liberdade”. Na sequência, consta a análise dos corpora, guiada pelos procedimentos metodológicos descritos nessa subseção.

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3.2 SONHOS E DIBUJOS: A PALAVRA CASSADA Iniciaremos as análises com o conto A casa das palavras. A materialidade linguística que dará condições de promovermos nosso trabalho investigativo será apresentada em sua íntegra ao longo do trabalho. Justificamos a escolha destes contos, e não de outros, por entendermos que estes textos favorecem a construção de cenografias que aludem ao contexto ditatorial uruguaio e que permitem perceber os inúmeros atravessamentos de sentido que ocorrem sobre o signo “palavra” como liberdade de expressão. Quadro 1 – A casa das palavras Na casa das palavras, sonhou Helena Villagra, chegavam os poetas. As palavras, guardadas em velhos frascos de cristal, esperavam pelos poetas e se ofereciam, loucas de vontade de ser escolhidas: elas rogavam aos poetas que as olhassem, as cheirassem, as tocassem, as provassem. Os poetas abriam os frascos, provavam palavras com o dedo e então lambiam os lábios ou fechavam a cara. Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido. Na casa das palavras havia uma mesa das cores. Em grandes travessas as cores eram oferecidas e cada poeta se servia da cor que estava precisando: amarelo-limao ou amarelo-sol, azul do mar ou de fumaca, vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho... Fonte: Galeano (2002, p. 13)

Como primeira abordagem, podemos descrever a cena englobante desse conto como parte do discurso literário. É por essa inscrição que o conto se permite ultrapassar o mundo concreto e mesclar, num processo de verossimilhança, elementos de ficção e de realidade. Se apreendermos o caráter literário desse texto desvencilhado da função social da literatura, nossa análise se restringe a aspectos textualizantes. No entanto, por entendermos esse grande enunciado como uma produção passível de ser respondida, a cena englobante sofre uma variação significativa. A função social da literatura inscreve o conto em outro discurso, além do literário. Concebemos que as lutas ocorridas no signo fazem da cena da enunciação desse texto um enunciado filiado ao discurso político também. Como cena genérica, cabe o apontamento de que esse enunciado se configura numa estrutura relativamente estável de conto. O enredo é curto, o número de personagens é reduzido e o tempo e espaço da narrativa são minimizados. Por se tratar de um conto, os papéis sociais do envolvidos são definidos como: enunciador, enquanto narrador da situação construída e coenunciador, no papel de leitor da narrativa. Passemos agora para a análise da cenografia construída. O título do conto já inicia o processo legitimante dessa enunciação quando fornece pistas para que o leitor entenda a “palavra” como um elemento materializado. O indício que o enunciador dá de que as palavras possuem uma casa permite ao leitor concretizar as palavras como objetos tangíveis. Ao descrever que Helena Villagra sonhou com a casa das palavras, o enunciador convida o leitor para um mundo onde tudo é possível e nada precisa de explicações lógicas: o mundo dos sonhos é um convite para a fuga da realidade. A personagem Helena é a única identificada com um nome próprio, não porque ela seja um elemento que estará presente em toda a narrativa, mas porque ela é quem possibilita a narrativa do sonho existir. Logo em seguida Helena deixa o protagonismo para ser ocupado pelas próprias palavras. Os poetas, personagens dos sonhos, servem como cena validada para dar sentido ao mundo do imaginário. O poeta é quem manuseia as palavras, as palavras são matéria-prima para o que o poeta produza. Embora as palavras sejam protagonistas, nesse conto, elas são descritas como figuras passivas (guardadas, se ofereciam, loucas de vontade de serem escolhidas). Os velhos frascos de cristal nos quais as palavras eram guardadas delegam a elas um traço de especiaria. Mais uma vez se confirma

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o entendimento de que as palavras são descritas como objetos concretos, passíveis de serem apreendidas pela visão (olhassem), pelo olfato (cheirassem), pelo tato (tocassem, provavam palavras com o dedo) e pelo paladar (provassem, lambiam os lábios). A cenografia que vai sendo criada é de uma mercearia em que há um indivíduo que possui todas as palavras e que as fornece para o consumo. Quem as consome, as manuseia são os poetas, portanto, compradores. A sequência Os poetas andavam em busca de palavras que não conheciam, e também buscavam palavras que conheciam e tinham perdido problematiza a narrativa, fazendo o leitor enfrentar uma crise no enredo. Essa afirmativa pode parecer insólita, porém, se a relacionarmos ao contexto da ditadura, entendemos que os poetas, ávidos por denunciar o autoritarismo dos governantes, são censurados, ameaçados, calados. Por essa repressão, andam eles a procura de palavras que expressem seu inconformismo. Procuram palavras que não conhecem e palavras que conheciam mas que acabaram perdendo. Essa cenografia é a cenografia que mais convém ao enunciador construir para legitimar sua dificuldade de enunciar-se num tempo e espaço em que as palavras estão apassivadas, não são usadas. A vontade do enunciador em usá-las todas se expressa no próprio comportamento das palavras (loucas de vontade de ser escolhidas). A cenografia que vai construindo o discurso do reprimido no meio da ditadura é a mesma que encontra formas de burlar a censura da palavra e, num sonho infantil, proclama sua indignação por ter perdido as palavras que tinha e por não conhecer outras que expressem sua condição. Na sequência, a descrição da mesa de cores, deixa as palavras como coadjuvantes, e passa a descrever as cores. Entendemos que, pela responsividade bakhtiniana, as cores, como palavras no discurso, são, também, respondidas. Novamente é reforçado o caráter de comércio sobre o qual a cenografia se ampara. Num sonho em que palavras e cores são vendidas, poetas andam em busca de palavras que desconhecem e compram cores das quais precisam. O termo precisam supõe necessidade, portanto, admitimos que os poetas vivem em um contexto em que algumas cores estão faltando. A narrativa dá espaço para a descrição das cores. O amarelo-limão e amarelo sol indicam vida, energia, calor. O azul do mar denota tranquilidade, serenidade mas é ofuscado pela cor da fumaça que desvirtua a visão, aliena, embaça. A narrativa que é propiciada por um sonho infantil descreve poetas comprando palavras, carente de cores em um contexto de censura e repressão através da violência. Essa narrativa não poderia terminar diferente. O sonho de Helena termina com o vermelho-lacre, vermelho-sangue, vermelho-vinho. A cenografia enunciativa que legitima um conto situado como contrário à ditadura precisa denunciar, mesmo que por palavras camufladas em cores, a fatalidade, a coerção autoritária e a morte. Num contexto de ditadura até sonhar é perigoso pois até mesmo o sonho acaba com vermelho-sangue. O enunciador que se depreende desse discurso deixa transparecer, pelo seu tom sonhador, ingênuo e distraído, uma imagem de quem já se conformou com a violência do regime totalitário, mas que, em realidade, anda em busca de palavras novas para escapar da censura de denunciar o atentado à vida. O ethos discursivo do enunciador que toma a palavra no contexto da ditadura não poderia ser outro. Apreende-se um ethos que aparentemente concede ao governo ditatorial toda a submissão ao se propor narra um sonho infantil, no entanto, disfarça, nas palavras que escolhe, prova e desaprova, sua insubmissão, sua revolta, sua revolução. A perspectiva bakhtiniana nos oportuniza realizar essa leitura sobre o conto uma vez que a luta de poder, de acordo com Bakhtin (1997), ocorre na palavra. É na apropriação do signo linguístico e ideológico que os indivíduos se encontram para delegar o sentido que intentam à palavra. De uma lado o ditador, numa força homogeneizadora, repele o sentido do revolucionário e ocupa a arena do signo com todas as forças. De outro lado, o poeta, finge aceitar a derrota, mas anda em busca de novas palavras, de novas arenas, não se cala, não se cansa. A seguir apresentamos a análise do segundo conto.

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Quadro 4 – Pájaros prohibidos/1976 Los presos políticos uruguayos no pueden hablar sin permiso, silbar, sonreír, cantar, caminar rápido ni saludar a otro preso. Tampoco pueden dibujar ni recibir dibujos de mujeres embarazadas, parejas, mariposas, estrellas ni pájaros. Didaskó Pérez, maestro de escuela, torturado y preso por tener ideas ideológicas, recibe un domingo la visita de su hija Milay, de cinco años. La hija le trae un dibujo de pájaros. Los censores se lo rompen a la entrada de la cárcel. Al domingo siguiente, Milay le trae un dibujo de árboles. Los árboles no están prohibidos, y el dibujo pasa. Didaskó le elogia la obra y le pregunta por los circulitos de colores que aparecen en las copas de los árboles, muchos pequeños círculos entre las ramas: - ¿Son naranjas? ¿Qué frutas son? - La niña lo hace callar: - Ssshhhh. Y en secreto le explica: - Bobo. ¿No ves que son ojos? Los ojos de los pájaros que te traje a escondidas. Fonte: Galeano (2005)

A cena englobante desse conto, semelhante a do conto analisado anteriormente, dissolve o discurso político e literário num mesmo caldeirão, por se tratar de um texto literário que denuncia as práticas de repressão e promove a catarse por meio do sofrimento do reprimido. O gênero conto, narrativa rápida que caracteriza a cena genérica, acelera o processo discursivo, uma vez que o contexto ditatorial impõe um sentimento de instabilidade e insegurança, isto é, não muito tempo para narrativas demoradas, é preciso falar tudo, falar rápido e falar. A cenografia herda da cena genérica a mesma instabilidade quanto à extensão dos enunciados. Enunciados sucintos e objetivos contribuem para a construção de uma cenografia em que nem mesmo espaço para contextualizar o leitor há. Os elementos 1976 (título) e presos políticos uruguaios exigem que o leitor deduza o tempo e o espaço da enunciação. O emprego verbal no presente (não podem) indica para uma continuidade, ou seja, a repressão ainda não teve fim. A negação não podem se relaciona com presos políticos e com o título (Pássaros proibidos) de maneira que, num primeiro momento, o leitor entenda que metaforicamente os presos são descritos como pássaros proibidos de falar, assobiar, sorrir, cantar, caminhar rápido ou saudar outros presos. Entendemos que o discurso ditatorial delega a essas palavras um índice de valor que implica liberdade, portanto, devem ser proibidas. Além dessas proibições, a ditatura impede que os presos desenhem ou recebam desenhos que contenham mulheres grávidas, casais, borboletas, estrelas e pássaros. Essas restrições, no contexto ditatorial, nos interessa por entendermos que essas práticas (e no conto, as palavras) são carregadas de inúmeros sentidos, atravessadas por variados discursos. As mulheres grávidas recebem um tratamento de sentido que denota vida, progresso. Os casais indicam fertilidade e romantismo. As estrelas e pássaros possuem asas, podem voar, são livres, desimpedidos. E as estrelas são inatingíveis, além disso seu brilho não pode ser ofuscado. Todos esses sentidos delegados pelo discurso ditatorial é proibido. A cenografia de censura e encarceramento dos sentidos que levam a liberdade apresenta um problemática inesperada. Um dos presos, Didásko Pérez, professor, está detido por ter ideias ideológicas. Nesse sentido, ter ideias ideológicas é ir contra as coerções do poder ditatorial que instaura a prática de “não ter ideias”. Sua filha Milay tenta passar pela censura com um desenho de pássaros. O desenho que é rasgado pelos guardas é uma demonstração das forças centrípetas que operam sobre o signo, denotando que pássaros só podem significar liberdade, e nada mais. A menina poderia ter atribuído outro sentido a pássaros, mas seu acabamento é repelido por um discurso mais forte e avassalador. Diferente dos pássaros, os desenhos de árvores não estão proibidos, isto é, o acabamento dado ao desenho de árvores não problematiza a privação da liberdade no discurso da ditadura. No en-

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tanto, um dos signos no desenho (e para nós, no conto) passa despercebido pela censura ditatorial por se tratar de algo irrelevante. Os pequenos círculos representam o elemento fundamental para a constituição do ethos discursivo no discurso contrário à ditadura. Embora até mesmo o pai, possuidor de ideias ideológicas, tenha dado outro acabamento aos círculos, Milay carrega-os de um sentido que é genuinamente revolucionário. São os olhos dos pássaros que estão escondidos nas árvores, tal como as ideias ideológicas escondidas pela repressão militar. O ethos discursivo contrário à ditadura admite a homogeneização do sentido na palavra pássaro, promovida pelo discurso da ditadura, mas não admite a reprimenda da expressão de sua contrariedade. A cenografia de prisão é burlada não pela força revolucionária e grandes ideias ideológicas, mas pela ingenuidade e capacidade fantasiosa de uma criança. O leitor é surpreendido com a atitude responsiva da criança frente ao totalitarismo do poder ditatorial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos do Círculo de Bakhtin, a saber, Volochínov (2006) e Bakhtin (1997), e a abordagem enunciativo-discursiva de Maingueneau (2002, 2008a, 2008b, 2008c, 2013) oportunizaram a realização desta leitura interpretativa acerca do uso da palavra em contexto ditatorial. O objetivo norteador desse trabalho visava analisar a atitude responsiva ao signo ideológico no processo dialógico da linguagem, bem como sobre a descrição das cenografias e do ethos discursivo, a fim de compreender as restrições e permissividades que interferem na construção do sentido dos diferentes discursos sobre a palavra. A base teórica acionada contemplou o caráter ideológico do signo e suas repercussões na luta por um acabamento, sob a perspectiva dialógica bakhtiniana e as categorias de cenografia e ethos discursivo desenvolvidas por Maingueneau (2002, 2008a, 2008b, 2008c, 2013). Vimos, com a descrição da cenografia e do ethos discursivo, que o discurso ditatorial, por sua própria instauração como totalitário, inscreve seu outro, o discurso revolucionário, como desviante. O uso da palavra, discursivizado pelo enunciador revolucionário, aponta para uma atitude insubmissa e descontente, destacando que a consequências causadas pelo poder repressor. O discurso ditatorial veta todos os demais sentidos que as palavras têm e impõe um único sentido, proibindo qualquer acabamento que apregoa o direito de liberdade e ao uso da palavra. A cenografia legitimada disfarça um ambiente de submissão, infantil, imaginário, mas constrói uma frente de resistência à homogeneização absolutista. A palavra, na construção literária de Galeano, é usada para camuflar uma transgressão às coerções ditatoriais. A ditadura proíbe a expressão das ideias através da restrição de determinadas palavras, mas a refração de significados burla o autoritarismo ditatorial e instaura um ethos que parece ser resignado e submisso, mas que, em realidade, não se deixa calar. Por fim, esse trabalho se apresenta como uma modesta contribuição aos estudos que estabelecem uma interface entre a perspectiva dialógica do Círculo de Bakhtin e a perspectiva enunciativo-discursiva de Maingueneau. Cremos na necessidade de aprimorar e aprofundar ainda mais as relações que podem ser estabelecidas entre as duas teorias. Por ora, propomos esse estudo como uma singela leitura e interpretação de diferentes discursos sobre o uso da palavra em contexto ditatorial.

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REFERÊNCIAS AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In. ______. (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008. p. 9-28. BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. GALEANO, Eduardo. Celebração da voz humana/4. In.: ______. O livro dos Abraços. tradução de Eric Nepomuceno. 9. ed. Porto Alegre: LPM 2002. GALEANO, Eduardo. A casa das palavras. In.: ______. O livro dos Abraços. tradução de Eric Nepomuceno. 9. ed. Porto Alegre: LPM 2002. GALEANO, Eduardo. Pájaros Prohibidos. In.: ______. Memoria del Fuego III: el siglo del viento. Siglo XXI. Madrid, 2005. MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Tradução de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2013. ______. (2005). Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Tradução Dilson Ferreira da Cruz, Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2008b. p. 69-92. ______. (2006). Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008c. STELLA, P. R. Palavra. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2013, p. 177-190. SOBRAL, A. Autor e autoria. In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2013, p. 37-60. VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006.

IDENTIDADE E PODER NA FAMÍLIA SHAKESPEAREANA: O MASCULINO E O FEMININO EM HAMLET Jaime Fernando dos Santos Junior* (UFRGS) “Traição, traição!”. Os gritos de traição na última cena da peça carregam em si, ao mesmo tempo, uma acusação e uma confissão coletiva. A única frase declamada em coro pelos personagens potencializa o problema da desobediência às autoridades e à ordem divinamente estabelecida, levando o corpo político à desagregação. O resultado é a morte de todos os traidores, o fim de uma dinastia, e a paz trazida por um novo e estrangeiro soberano. A chegada de Fortinbras representa uma possibilidade de reconstrução da ordem pública, retirados os cadáveres de cena. A missão que Hamlet deixa a Horácio – de contar a todos a sua história – é, também, um pedido de revelar ao mundo os erros que cometeram, como uma forma de evitá-los no futuro. A teleologia moral que Horácio revela ao mundo é a mesma que a peça/texto apresenta à audiência/leitor: o risco de autofagia do corpo político e desordem social, caso não sejam respeitadas as hierarquias. A tragédia fornece, por meio da representação desta ameaça à sociedade, um senso de conformação e conservação da ordem estabelecida ao exemplificar os vícios que devem ser evitados e as virtudes a serem seguidas. A rede de traições construída durante a encenação/leitura faz com que todos os envolvidos em seu fim trágico sejam, simultaneamente, juízes e vítimas, acusadores e confessores, traidores e traídos; responsáveis por um final em que todos saem derrotados (VIANNA, 2008; VIANNA, 2009; DOLAN, 1992). O tema da desordem política e social está intimamente ligado às tópicas do “mundo às avessas” e da “loucura do mundo”. O surgimento de novas ideias científicas, religiosas, políticas, a crescente mobilidade social e territorial, o sentimento de que todas as certezas se esvaiam e que o mundo era regido pela mudança, gerou um grave sentimento de crise nos homens e mulheres quinhentistas e seiscentistas, uma sensação que o mundo estava fora dos eixos (MARAVALL, 1997; KOSELLECK, 1999; STONE, 2000, p. 194). Como sugere José Antônio Maravall, contudo, “se se pode falar de um mundo às avessas é porque se supõe um direito” (1997, p. 252). Com uma percepção tão aguda das severas mudanças em curso, o desejo por algum tipo de ordenação, mantendo cada um no seu devido lugar, era cada vez mais evidente. Diversos textos, sermões, poemas, panfletos da época, ao mesmo tempo em que colocavam a insubordinação e a rebelião como pecados mortais, exaltavam a obediência como a principal das virtudes. Obedecer aos superiores era se submeter a uma ordem instaurada diretamente por Deus. Esses valores eram amplamente propagados pela monarquia e pela igreja estatal inglesa. Como indica Julia Briggs, o rei “Jaime I identificava a autoridade de Deus com a do monarca, dos bispos, dos magistrados e dos chefes de família, defendendo uma por analogia e associação com as outras” (1997, p. 24). Respeitar o mandamento divino: Honrarás pai e mãe; era essencial para a manutenção da ordem, pois isto significava respeitar todas as autoridades desde o microcosmo familiar até o macrocosmo político. Para os súditos, “o soberano simbolizava, a um só tempo, o pai, o senhor, o rei e Deus” (OSTRENSKY, 2005, p. 52). Rebelar-se contra um superior seria uma ofensa contra todos os outros, associados por uma analogia direta. Assim, a partir da ideia de que existia uma ordem divinamente estabelecida, benéfica e necessária, buscava-se conter possíveis revoltas e insubordinações. A ordenação divina pressupunha a *

Mestre em História pela Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. Doutorando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Brasil. E-mail: [email protected]

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submissão dos inferiores aos superiores para a melhor condução da sociedade e o combate aos males que ameaçavam a estruturação social. Utopias igualitárias eram vistas como algo extremamente subversivo. O respeito às hierarquias era fundamental para a manutenção da ordem. Um súdito deveria se submeter a um rei, assim como um filho a um pai e uma esposa a um marido, sendo que todas essas relações de poder estavam associadas diretamente uma a outra. Desta forma, quando Jaime I discursou no Parlamento em 1603, dizendo “Eu sou o marido, e toda a ilha é minha leal esposa, Eu sou a cabeça e ela é meu corpo” (apud BRIGGS, 1997, p. 47), estava evocando uma teoria política que via a família e o Estado como estruturas de poder paralelas (MONTEIRO, 2005; SCOTT, 1995, pp. 89-90). Se por um lado, a manutenção da ordem e das hierarquias seria um dos desígnios divinos, por outro a insubordinação seria influenciada por Lúcifer, o anjo que liderou uma rebelião contra o próprio Deus. Assim como era comum textos exaltando a obediência, muitos outros foram impressos condenando a traição. A segunda metade do reinado de Elisabeth I e os primeiros anos do governo de Jaime I mostram a centralidade que este tema teve nos discursos oficiais. “As produções discursivas de traição (prisões, julgamentos, execuções, panfletos e sermões) impregnaram o ambiente sociocultural” inglês, entre os anos de 1581 e 1610. Biografias de traidores executados corriam pelas mãos dos leitores da Inglaterra elisabetana e jacobita, como uma forma de desacreditar suas atitudes e exaltar a posição do soberano, como um ser ungido por Deus (VIANNA, 2008, pp. 179-182). Não apenas as revoltas políticas eram condenadas. Qualquer tipo de insubordinação, qualquer rebelião doméstica era vista como uma traição. Embora legalmente recebessem o nome de petty treason [pequena traição], as punições aos traidores eram, muitas vezes, tão pesadas quanto as recebidas por aqueles acusados de conspiração contra a monarquia. Se um homem matasse sua esposa, ou um senhor o seu servo, eram simplesmente acusados de assassinato, no entanto, se o contrário acontecesse, se uma mulher matasse seu marido, ou um servo o seu mestre, eram acusados de traição e punidos a partir disso. Essa distinção legal mostra o quanto a insubordinação a alguém considerado hierarquicamente superior era tida como grave, pois não representava apenas uma desobediência à ordem doméstica, mas também à ordem social. A quebra das hierarquias no microcosmo familiar poderia levar à perda de respeito às hierarquizações políticas e subverter todas as relações de poder presentes na sociedade. Como se acreditava, se uma mulher se rebelasse contra seu marido, um filho frente ao seu pai, estaria aberto o caminho para que um súdito se insubordinasse contra o seu rei. A isso se deve a preocupação com o tema. Muitas narrativas sobre casos de petty treason circulavam na Inglaterra durante os séculos XVI e XVII. Baladas, panfletos, crônicas, ajudavam a modelar comportamentos morais e políticos dos súditos do reino, ao mostrar as desordens causadas pelas conspirações dos subalternos aos seus senhores e as extraordinárias punições recebidas como forma de coagir práticas revoltosas (DOLAN, 1992, pp. 317-318). O tema da obediência, do respeito às hierarquias, assim como seu contrário, a condenação da insubordinação e da traição eram também frequentes no teatro. Em uma população com grande número de iletrados, que recebiam os preceitos da submissão por meio de sermões, as encenações teatrais também tinham um papel importante na busca da conservação das estruturas sociais e na prescrição de comportamentos identitários. Embora não seja possível analisar as encenações teatrais em si, muitos indícios podem ser percebidos nos vestígios textuais, baseados nessas representações, que chegaram até nós. Muitos impressos ligados ao nome de Shakespeare dialogam profundamente com a cultura política da época. Nesse sentido, as relações de poder familiares, durante a Idade Moderna, não eram um objeto restrito ao âmbito doméstico, à vida privada. Ao contrário, estavam intimamente ligadas à esfera pública, à governação política. Reforçavam a ordem e a estrutura social. Os papéis adequados a serem assumidos por homens e mulheres, por pais e filhos eram culturalmente prescrito e descrito,

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ajudando a fortalecer a ideia de que havia uma distinção “natural” entre os sexos e que as funções estavam naturalmente distribuídas na sociedade (SCOTT, 1995). Identificar a construção cultural desses papéis na literatura e no teatro nos parece uma forma de compreender essa distinção discursiva, que indicou comportamentos e formou identidades para além das observáveis diferenças biológicas. Desta forma, para tentar entender os símbolos que estavam disponíveis culturalmente na construção das relações de poder familiares e entre os sexos, durante a Idade Moderna, escolhi como objeto de análise uma importante obra da cultura ocidental: o texto da peça Hamlet de William Shakespeare. Sob esse raciocínio, analiso o texto para entender as relações de poder presentes entre os personagens, observando como se adequavam ou negavam as hierarquias sociais e como cumpriam seus deveres de mulher, homem, filho, pai, mãe etc. Ou seja, quais as relações de reciprocidades, dominação e sujeição envolvidas dentro das funções política e familiar, procurando compreender como as ações encenadas em Hamlet poderiam dialogar com a cultura política da sociedade inglesa nos reinados de Elisabeth I e Jaime I. Na estrutura dramática da peça, há dois núcleos familiares. O primeiro é a família real, formado pelo rei Hamlet (fantasma), o rei Cláudio, a rainha Gertrudes e o príncipe Hamlet. Apesar dos seus cargos públicos e superiores na hierarquia política do reino, estabelecem entre si relações de poder baseadas, também, na composição familiar. O segundo é formado por Polônio, um nobre com grande simpatia do rei e por isso uma espécie de conselheiro-mor do monarca, e seus filhos Laertes e Ofélia. Exposto isso, tentarei perceber como se dão essas relações de poder dentro do microcosmo familiar nos núcleos em questão. O aparecimento do fantasma do antigo rei Hamlet na plataforma do castelo de Elsinor revela um desequilíbrio na ordem natural das coisas. Se a ordem cósmica era um reflexo da ordem terrena, esta havia sido profanada fazendo com que o espírito errante surgisse clamando por vingança. Em seu primeiro encontro com o fantasma de seu pai Hamlet, o príncipe descobre o ato torpe de seu tio, que havia assassinado o antigo monarca, lhe privando, ao mesmo tempo, da vida, da coroa e da rainha. Hamlet não conseguia aceitar a morte de seu pai e, igualmente, o rápido casamento de Gertrudes, sua mãe, com o seu tio Cláudio, que havia se tornado o novo rei, a quem Hamlet considerava inferior se comparado ao antigo monarca. Essa questão parece incomodar também o espírito, pois, antes mesmo de revelar ao seu filho como havia sido assassinado, tratou de contar como seu irmão havia seduzido sua rainha e esposa (Ato I, cena V). 1 Não é possível saber ao certo se houve ou não adultério antes da morte do Rei Hamlet. O fantasma chama Cláudio de “animal incestuoso e adúltero”, mas isso não necessariamente confirma a traição física, pois ela poderia ter acontecido por pensamento. Segundo o Evangelho de Mateus: “todo aquele que lançar um olhar de cobiça para uma mulher, já adulterou com ela em seu coração”, (BÍBLIA SAGRADA, 1985, 5. 28) e o fantasma podia estar dialogando com essas referências. No entanto, a suspeita permanece durante toda a peça. Não é o meu intuito descobrir se houve ou não adultério. No entanto, podemos tentar supor o que representaria essa desconfiança para a audiência/leitores coetânea, nos ajudando a refletir as estruturas de poder configuradas na época. A proibição ao adultério era em si um problema religioso, um dos mandamentos divinos, mas não devemos pensar essa questão fora das relações hierárquicas da sociedade. O casamento era visto como a união de um homem e uma mulher, em que esta sairia do domínio paterno, para se submeter a um novo “senhor”, o marido. Assim, nessa relação não isonômica dos pares, a traição masculina, embora condenada pela Igreja, era tolerada pela sociedade, devido à suposta superioridade masculina. Muitos filhos bastardos eram assumidos e sustentados A fim de se adequar aos limites indicados à publicação nos anais do evento, preferiu-se retirar todas as citações diretas da peça/texto, indicando, no lugar, apenas o ato e a cena em que podem ser encontradas às encenações descritas.

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publicamente pelos seus pais. Contudo, a mulher adúltera era demonizada e acusada de insubordinação, era vista como um assalto à ordem patriarcal. Por isso, diversos panfletos e textos corriam na Inglaterra moderna falando sobre as ameaças do adultério. O tema chegou, inclusive, aos palcos ingleses. Era importante para hierarquia social a preservação da hierarquia familiar, e esta passava pelas tentativas de controle da traição feminina (BRIGGS, 1997, p. 68). Na outra ponta do problema estavam os “cornos”. Julia Briggs afirma que nada era tido como mais engraçado no teatro elisabetano do que “a menção de chifres, o tradicional acompanhamento invisível dos cornos” (1997, p. 68). Apesar do elemento cômico, era ultrajante para os homens serem feitos de bobos aos olhos do mundo, era uma ofensa à sua honra, à sua suposta superioridade. Shakespeare, inclusive, utilizou esse aspecto em Otelo. Tragédia e comédia se misturam na peça para potencializar o dever de preservar as hierarquias familiares (SHAKESPEARE, 2008). Mesmo que não se tenha certeza sobre o adultério de Gertrudes, é possível que a mera desconfiança da audiência esteja baseada nessas ideias. A queda da rainha aparentemente virtuosa poderia indicar uma traição ao seu marido zeloso, o que seria visto como uma desobediência às hierarquias impostas. Essa suspeita poderia elevá-la, inclusive, a cúmplice do assassinato do rei, uma insubordinação ainda maior. Embora não seja explícita a traição, para Hamlet, o segundo casamento de sua mãe com Cláudio já era, em si, uma ofensa grande ao seu pai. Embora o príncipe aponte o problema da rapidez do novo matrimônio e a infeliz escolha de seu tio como novo parceiro de sua mãe, o problema pode não estar relacionado ao tempo e à pessoa com quem se casou, mas sim ao fato de, simplesmente, ter se permitido casar novamente. Mesmo sendo comum a prática do segundo matrimônio na Inglaterra elisabetana e jacobita – principalmente por homens que precisavam de uma nova esposa para ajudá-los a cuidar de seus filhos pequenos –, muitos escritores estavam preocupados com a posição e a postura das viúvas na sociedade. Apesar da Reforma ter alterado a visão católica do casamento como “um mal necessário”, do celibato e do sexo; discursos condenatórios ao segundo matrimônio eram frequentes. Muitos acreditavam que nos votos feitos entre marido e esposa existia uma ligação espiritual que permanecia mesmo depois da morte de uma das partes. Assim, a mulher, tornando-se viúva, deveria se manter casta, se apegando a Cristo e a seus filhos, além de rezar para a proteção e paz do reino em épocas difíceis (KEHLER, 1995). Na obra, a utilização de vários planos sobrepostos de encenação (a peça dentro da peça) era uma forma de imbricar as diversas camadas “cênicas” e reafirmar o caráter teatral da existência humana, dialogando diretamente com a função integradora e acomodatícia da Inglaterra moderna, que desejava ratificar a necessidade de cada um permanecer em seu papel social. A utilização em Hamlet da peça dentro da peça, “A ratoeira”, (Ato III, cena II) ao mesmo tempo em que desejava mostrar à rainha os problemas do segundo casamento, também poderia indicar uma crítica de Shakespeare a essa prática na sociedade inglesa. Além de ser uma ode à castidade na viuvez, e da ligação espiritual dos votos matrimoniais mesmo depois da morte, a cena lança novamente a dúvida do adultério e do assassinato. Como afirma a atriz que representa a rainha: “Só se casa com o novo [marido] a que matou o antigo!”. Assim, a peça não é apenas um plano de Hamlet para capturar a consciência do rei, mas, também, sua condenação ao segundo casamento da rainha, sua mãe. Tal ato, para o príncipe, seria um desrespeito, uma desobediência ao seu pai, um homem descrito varias vezes como um verdadeiro vir virtutis. Na sociedade patriarcal da Inglaterra moderna, o homem era o chefe da família e por isso a autoridade máxima deste núcleo. Tanto esposa quanto filhos estariam subordinados aos desígnios da figura masculina. Após analisarmos a ideologia pregada durante o reinado de Elisabeth I e Jaime I sobre os deveres de uma mulher perante o seu marido e algumas das possíveis quebras de deferência nesta relação presentes na peça, passemos a analisar as estruturas de poder que se dão entre pais e filhos.

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Mesmo Hamlet, que colocou na peça “A ratoeira” uma crítica ferrenha às ações de sua mãe, sabia que dentro do microcosmo familiar lhe devia respeito. Por isso, pedia aos céus para que não agisse contra a Natureza, na primeira conversa que teriam depois da encenação teatral e que havia deixado o Rei Cláudio furioso (Ato III, cena II). Em vários momentos da peça, Hamlet retrai suas críticas ou as esconde em engenhosos trocadilhos para não ofender sua mãe diretamente. O próprio fantasma de seu pai, ao mesmo tempo em que clama por vingança, relembra ao príncipe para não atentar contra Gertrudes. Embora não concorde com as ações de sua mãe, lhe deve respeito filial. É na linha tênue entre a obediência e a insubordinação, em que a rainha chega, inclusive, a achar que o filho irá lhe matar, que ele atingirá sua harmatia através da morte de Polônio. A ação desencadeará uma série de consequências que o levarão ao destino trágico (TEIXEIRA, 2008, p. 9). Embora o príncipe mostre o desejo de não cometer um ato desnaturado, chega bem próximo a isso. Tomado pela hybris, totalmente fora de si, esquece da hierarquia e exterioriza frases que atingem sua mãe como punhais. No entanto, é impedido e advertido pelo fantasma de seu pai (Ato III, cena IV). A desobediência aos pais era vista como um ataque à natureza e aos mandamentos divinos e, por isso, deveria ser evitada. Da mesma forma, tinham que receber homenagens e reverências de seus filhos. A cada manhã, era esperado que as crianças se ajoelhassem na frente de seus pais para serem abençoadas, o mesmo acontecia quando partiam ou chegavam à casa paterna, mesmo depois de crescidos (BRIGGS, 1997, p. 58). É este, por exemplo, o gesto que Laertes faz antes de sua partida para França (Ato I, cena III). Ajoelhar-se para pedir benção indicava submissão às autoridades familiares. Laertes pratica o mesmo comportamento perante o rei (Ato I, cena II). Se o microcosmo familiar era considerado uma analogia ao macrocosmo político, seria natural que um nobre da corte real pedisse a graça do rei, o pai do reino, para partir. O interessante é que Cláudio, mesmo sendo rei da Dinamarca, não se sobrepõe à autoridade paternal. É Polônio que intervém por Laertes pedindo a permissão do monarca. O trecho mostra o respeito devido às hierarquias nos vários patamares sociais. Cláudio sabe que a legitimação de seu poder passa pela legitimidade de todas as outras autoridades menores. Nisso, é notável que seja justamente Laertes e Hamlet que atentarão contra a vida do monarca. Impulsionados pelo código de honra medieval, que dizia que um filho deveria vingar seu pai assassinado, o dever filial se chocará com a obrigação política. Outro exemplo importante do poder exercido pelos pais frente aos filhos se dá na relação entre Polônio e Ofélia. Aqui, todavia, além do papel de submissão que deve exercer enquanto filha, vemos o cuidado que a figura masculina, chefe da família, tem com a honra da donzela. Preocupado com as intimidades que se davam entre sua filha e Hamlet, que como o homem tinha o “cabresto mais largo”, o conselheiro real a proíbe de conversar com o príncipe, temendo que esses encontros manchassem a sua imagem (Ato I, cena IV). O medo de que as intenções de Hamlet fossem impuras e que pudessem manchar a honra da virginal Ofélia, faz com que Polônio a proíba de encontrá-lo. No período tratado, a virtude das mulheres estava intimamente ligada à castidade e à virgindade, consideradas como um “crédito” oferecido ao seu marido na consumação do matrimônio (BRIGGS, 1997, p. 63). Era isso que Polônio queria preservar. A obediência inquestionável de Ofélia pode causar espanto para os indivíduos do mundo contemporâneo, no entanto, a atitude da donzela era o que o decoro social determinava: a submissão total à figura paterna. Afinal, como aponta Vianna, “na tensão entre autoridade e liberdade nos séculos XVI e XVII, é ainda a expectativa de vitória da primeira sobre a segunda que prevalece como expectativa modelar de comportamento” (2009, p. 5). No entanto, quando Polônio passa a desconfiar que o príncipe esteja louco por amor à Ofélia, ao contrário de proibir-lhe os encontros com Hamlet, faz de sua filha um joguete do poder real. Trama

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situações em que a donzela, sempre obediente ao pai, simule conversas para que a loucura do príncipe seja descoberta, mesmo fazendo-a sofrer (Ato III, cena I). Escondidos, Cláudio e Polônio espionam a conversa de Hamlet e Ofélia. O príncipe, no entanto, desconfia, tem um acesso ou finge ter um acesso de loucura, amaldiçoa a donzela e se vai transtornado. O rei então chega a conclusão de que a loucura de Hamlet não se deve ao amor, mas a algo perigoso presente em sua alma e incubado por sua melancolia. As relações de poder presentes no microcosmo familiar da peça são constantemente subvertidas. Cláudio mata seu irmão e se casa com a cunhada. Gertrudes “trai” os votos sagrados do casamento, seja por um adultério que não se confirma durante a encenação, seja por não ter se mantido casta após ter se tornado viúva. Hamlet atenta contra a mãe e deseja a morte do tio. Polônio utiliza a filha para conseguir as graças do rei. Dentre os personagens analisados e que fazem parte dos núcleos familiares examinados, Laertes e Ofélia são os mais obedientes. No entanto, são os que mais se desestabilizam após a morte do pai. Perdida a autoridade paterna, o filho de Polônio vai liderar uma revolta política contra o rei e depois se aliar a esse em seus planos de destruir Hamlet, e a donzela chegará à loucura e, posteriormente, ao suicídio. Se associarmos a composição familiar como uma analogia do Estado, vemos que esse pequeno núcleo social já não consegue manter sua ordem, o que gera, também, uma instabilidade política. A análise do microcosmo familiar não se restringe em si. Se durante vários séculos tentaram separar os âmbitos privados do público, o doméstico do político, essa divisão não é possível durante a Idade Moderna, como se percebe em Hamlet. As relações de poder se encadeavam em analogias do menor ramo ao maior. Assim, a sujeição/dominação de um filho perante seu pai, de uma mulher frente ao seu marido, de um servo diante de seu senhor, era considerada semelhante à relação de poder que se constituía na posição e comportamento que um súdito deveria ter perante seu rei. Como se acreditava no seiscentos inglês, a sublevação política começava com o rompimento das hierarquias familiares. Analisá-las é tão importante quanto o estudo das revoluções.

REFERÊNCIAS BIBLIA SAGRADA. São Paulo:Editora Ave Maria, 1985. BRIGGS, Julia. This Stage-play World, texts and contexts, 1580-1625. Oxford University Press, 1997. DOLAN, Frances E. The subordinate(‘s) Plot: Petty treason and the forms of domestic rebellion. Shakespeare Quartely, Vol. 43, 1992(3). HANSEN, João Adolfo. Retórica da Agudeza. Letras Clássicas (USP), São Paulo, v. 4, 2002. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999. MARAVALL, José Antonio. A Cultura do Barroco: Análise de uma Estrutura Histórica. São Paulo: Edusp, 1997. MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Família, soberania e monarquias na República de Jean Bodin. In: BICALHO, M. F; FERLINI, V.L.A.. Modos de Governar. São Paulo: Alameda, 2005. OSTRENSKY, Eunice. As revoluções do poder. São Paulo: Alameda, 2005. SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995. SHAKESPEARE, William. A tragédia de Hamlet Príncipe da Dinamarca; tradução Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1955.

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SHAKESPEARE, William. Otelo. In:____. Tragédias: teatro completo; tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008. STONE, Lawrence. Causas da Revolução Inglesa 1529-1642. Bauru: EDUSC, 2000. TEIXEIRA, Felipe Charbel. As máscaras do mundo: Hamlet e os limites da Tragédia. Fênix (UFU. Online), v. 5, 2008. VIANNA, Alexander Martins. As ameaças à corporidade Estatal em Romeu e Julieta. Fênix (UFU. Online), v. 6, 2009. VIANNA, Alexander Martins. Estado e Individuação no Antigo Regime: Por uma leitura não romântica de Shakespeare. Tese (Doutorado). UFRJ/ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/ Programa de Pós-Graduação em História Social, 2008.

MULTIMODALIDADE E A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS Josiane Boff* (UPF) Luciana Maria Crestani** (UPF)

Imagens tomam conta cada vez mais das ruas. Por vezes olhamos, mas não nos importamos com o seu significado, a não ser que venha acompanhado por algo que chame a atenção. Mas o que realmente chama nossa atenção? Quais são as estratégias utilizadas para atrair determinado público diante de tanta correria do dia-a-dia? Talvez a resposta mais adequada para essas perguntas sejam os textos multimodais. A multimodalidade apresenta duas ou mais modalidades de formas linguísticas, abrangendo linguagem verbal e não verbal. A linguagem verbal envolve as manifestações orais e escritas da língua. Já os gestos, imagens, códigos, símbolos, setas, desenhos, etc. fazem parte da linguagem não verbal. Procuramos, neste artigo, analisar um texto publicitário utilizado para a divulgação da Festa Nacional da Maçã, que aconteceu na cidade de Veranópolis, localizada da Serra Gaúcha, no intuito de entender como as linguagens verbal e não verbal que o constituem convergem para a construção dos sentidos deste e contribuem para chamar a atenção do leitor. Para tanto, inicialmente retomamos o conceito de gênero discursivo e apontamos algumas características dos gêneros publicitários. Num segundo momento, como se trata de um texto que remete a outros discursos já cristalizados na memória, diferenciamos os conceitos de interdiscurso e intertexto, considerando a dialogicidade entre os discursos. Por fim, procedemos à análise do texto utilizado para a divulgação do evento.

1. GÊNEROS DISCURSIVOS A todo instante a linguagem é utilizada para permitir a comunicação entre os seres humanos. Para demonstrar tal afirmação, tomemos como exemplo uma reunião de professores, cuja pauta é o planejamento semestral da escola. Cada educador fará anotações sobre os assuntos debatidos, uns elaborarão listas, outros escreverão parágrafos, mas todos, possivelmente, farão seus registros e elaborarão seus planejamentos. Por fim, repassarão aos alunos as principais orientações como os critérios para avaliações, as leituras e livros prévios, como as aulas serão desenvolvidas, entre outras. Essa breve descrição deixa claro que todas as atividades humanas, por mais variadas que sejam, estão relacionadas com a utilização língua, efetuando-se em forma de enunciados, sejam eles orais ou escritos. Bakhtin (1997, p. 279) assim explica tal questão: “[...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso.”. Os gêneros são infinitos, pois há uma variedade inesgotável de atividades humanas e para cada uma delas é necessário reportar-se de uma maneira, ampliando e diferenciando os gêneros discursivos à medida que as atividades se desenvolvem. Sendo assim, cabe salientar a heterogeneidade dos gêneros do discurso, tanto orais quanto escritos que são adaptados conforme as necessidades de comunicação. Aprendemos, inconscientemente, a moldar nossos enunciados em forma de gêneros a partir do que já vimos ou conhecemos, portanto é fácil identificar sobre o que o outro irá falar a partir de suas *

Mestranda em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em Letras, Mestre em Educação, Professora no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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primeiras palavras. Bakhtin (1997, p. 302) deixa claro que “se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível.” Sendo assim, os gêneros discursivos contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas. Por serem maleáveis e dinâmicos, os gêneros surgem através das necessidades socioculturais. Inicialmente eles eram poucos, mas com a invenção da escrita e o avanço da tecnologia, os gêneros multiplicaram-se e, são “[...] nossa forma de inserção, ação e controle social no dia-a-dia.” (MARCUSCHI, 2012, p. 161). Os gêneros discursivos implicam critérios de ação prática, funcionalidade, composicionalidade, estilo, conteúdo temático e circulação histórica. Diversos são os gêneros discursivos: notícia jornalística, bilhete, carta pessoal, reunião, aula expositiva, horóscopo, telefonema, lista de compras, piada, conversa espontânea, bate papo por computador, cardápio de restaurante, entre outros. Para circularem socialmente, os gêneros precisam de um suporte que os veicule. Marcuschi (2012, p. 174) define como suporte um locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto. Pode-se dizer que suporte de um gênero é uma superfície física em formato específico que suporta, fixa e mostra um texto. Essa ideia comporta três aspectos: Suporte é um lugar (físico ou virtual) Suporte tem formato específico Suporte serve para fixar e mostrar o texto.

Os suportes textuais são classificados em duas categorias, conforme Marcuschi (2012, p. 178): a) Suportes convencionais: típicos ou característicos, produzidos para essa finalidade (livros, revistas, jornais, encarte, folder, outdoor, faixas, quadro de avisos...). b) Suportes incidentais: podem trazer textos, mas não são destinados a esse fim de modo sistemático nem na atividade comunicativa regular (embalagem, roupas, muros, paradas de ônibus, paredes, para-choques e para-lamas de caminhão...). Nessa acepção, podemos conceber nosso objeto de estudo como sendo um anúncio publicitário veiculado em outdoor, um suporte convencional. Consideramos se tratar de uma peça publicitária porque seu objetivo é “vender” um evento: Festa Nacional da Maçã, que aconteceu na cidade de Veranópolis – RS, nos dias 10 a 12 e 17 a 21 de abril de 2015. Poderíamos ter pensado em denominá-lo como convite, mas, para tanto, ele deveria conter as características principais desse gênero: data, local, horário e quem convida. Além disso, o convite pretende convidar alguém para algum evento com a finalidade de comemorar algo: um aniversário, um casamento, uma formatura, etc. Normalmente estes eventos possuem um número limite de convidados e não há comércio envolvido na situação. Assim, o objetivo do convite não é vender algo.

1.1. ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS Os gêneros do domínio publicitário são expressos de diferentes formas, mas com o mesmo propósito: oferecer seus serviços ou produtos. O texto publicitário busca persuadir o público de que algum produto ou serviço lhe é necessário, mesmo que, muitas vezes, não o seja. A intenção é convencer o outro de que algo deve ser adquirido. A linguagem publicitária utiliza recursos estilísticos e argumentativos para informar e manipular o público-alvo. Os textos dessa natureza agregam linguagem verbal e não verbal, como imagens, cores, sons, movimentos, elementos esses que participam do processo de persuasão. Nesse sentido, as imagens não devem ser consideradas meramente ilustrativas, visto que significam e exercem papel importante. A publicidade é leve e sedutora. Segundo Carvalho (2000, p.10) a publicidade não tem autoridade para ordenar, então utiliza uma manipulação disfarçada, sem deixar transparecer suas ver-

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dadeiras intenções, para convencer e seduzir o receptor, podendo utilizar diversos recursos como a ordem (fazendo agir), a persuasão (fazendo crer) e a sedução (buscando o prazer). A mensagem do texto publicitário concilia o princípio do prazer com a realidade, indicando o que deve ser usado ou comprado, destacando a linguagem da marca ou o ícone do objeto. O papel da publicidade é tornar familiar o produto e ao mesmo tempo valorizá-lo com diferenciação. Os anúncios publicitários podem ser veiculados em diferentes suportes como: cartazes, folhetos, placas, anúncios em rádio e televisão, entre tantos outros. Por ser nosso objeto de estudo, nos deteremos no suporte outdoor, que em termos de mensagem publicitária ocupa lugar de destaque por se basear na palavra escrita e direcionar o seu sentido para a imagem. O outdoor é um suporte textual que gera uma leitura rápida e, de acordo com Carvalho (2009, p. 16), é um cartaz de grandes proporções posicionado em locais estratégicos, de modo a ser visto por um grande número de pessoas que passam de carro, de ônibus ou mesmo a pé, faz parte da máquina de criar desejos e transformá-los em necessidades. Utiliza mensagens curtas e diretas associadas a imagens igualmente simples e fortes para convencer as pessoas a respeito de uma ideia ou produto.

Por ser um texto multimodal, devemos ler a mensagem de um outdoor considerando seu nível semântico e estético. No primeiro modo, o significado é explícito e comum ao emissor e receptor, é um ato de comunicação. Já no segundo modo, o nível é inconsciente, porque a mensagem estética, ou visual, implica percepções, implícitos e subconscientes. Como braço direito da tecnologia moderna, a publicidade tem o poder de transformar um relógio em joia, uma casa em castelo, já que “a palavra deixa de ser meramente informativa, e é escolhida em função de sua força persuasiva, clara ou dissimulada. Seu poder não é simplesmente o de vender tal ou qual marca, mas integrar o receptor à sociedade de consumo” (CARVALHO, 2009, p. 18). A publicidade impõe, nas linhas e entrelinhas, valores, ideais e outras elaborações utilizando recursos verbais e não verbais para atingir o leitor. Portanto, deve-se analisar o texto como um todo de sentido, constituído por partes, e não separar a imagem do texto escrito, afinal, muitas imagens trazem mensagens implícitas que não poderiam ser descritas com palavras em determinados gêneros ou suportes. Ao compreender um texto, percebe-se que seus enunciados fazem diálogos com outros. Bakhtin (1997) explica que os enunciados, em sua totalidade, têm a propriedade dialógica, uma vez que neles coexistem outros enunciados aos quais respondem ou com os quais dialogam. Ou seja, todo enunciador leva em conta o discurso de outrem, utilizando-o, de alguma maneira, na constituição do “seu” discurso. O autor russo complementa que “a própria compreensão é de natureza dialógica num sistema dialógico, cujo sistema global ela modifica. Compreender é, necessariamente, tornar-se o terceiro num diálogo” (BAKHTIN, 1997, p. 355). Com essa relação de dialogismo1, surgem os conceitos de intertexto e interdiscurso, os quais também nos remetem às relações entre os enunciados

2. INTERTEXTO X INTERDISCURSO Os textos não nascem isoladamente. Escrevemos em resposta a alguém e relacionando nosso discurso com outras leituras. Não escrevemos sobre algo que nunca tenhamos lido ou ouvido falar, desse modo, os textos são elaborados a partir de dialogismos. Essas relações nos remetem aos conceitos de intertextualidade e interdiscursividade, mas, para falarmos disso, precisamos esclarecer o que concebemos como texto, enunciado, discurso.

O dialogismo se dá entre discursos/enunciados, não entre falantes. Dialogismo não é sinônimo de diálogo ou de conversação face a face entre dois sujeitos.

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Iniciamos com a noção de texto, lembrando que ele não se limita a enunciados verbais, podendo ser constituído por imagens, gestos, sons, etc. Fiorin (2006) esclarece que o texto é da ordem da manifestação e o enunciado é da ordem do sentido. Ou seja, o texto é a unidade material de manifestação do enunciado. Fiorin (2006, p.180), tomando como base os estudos de Bakhtin (1997), explica que: o texto pode ser visto como um enunciado, mas pode não o ser, pois, quando o enunciando é considerado fora da relação dialógica, ele só tem realidade como texto. Pode-se ter uma Lingüística que estuda o texto, mas o faz como entidade em si, fora das relações dialógicas, já que essas não podem ser objeto da Lingüística.

O discurso, por sua vez, é concebido pelas abstrações e correntes de pensamento, que só se dão a conhecer quando transformados em enunciados. A concepção de texto como materialidade e enunciado/discurso como sentido implica diferenças entre as terminologias “intertextualidade” e “interdiscursividade”. A interdiscursividade está relacionada ao sentido do enunciado, por isso pode ser tomada como sinônimo de dialogismo. Isso acontece porque todo enunciado dialoga com outros enunciados, há sempre uma corrente de relação entre eles, formando um contínuo de criação e transformação do que já foi e ainda será dito/escrito. A intertextualidade, por outro lado, mostra as relações dialógicas na materialidade do texto, é quando identificamos em determinado texto elementos materiais de outro texto, com o qual dialoga. Nesse sentido, como explica Fiorin (2006), toda intertextualidade pressupõe uma interdiscursividade, mas o contrário não ocorre, visto que esta é composta por materialidade e aquela, por sentido. Dessa forma, entendemos que para analisar um corpus textual é preciso considerar ambas as relações. No item a seguir, analisaremos um anúncio publicitário veiculado no suporte outdoor, considerando as relações dialógicas e discursivas.

3. ANÁLISE DO ANÚNCIO PUBLICITÁRIO DA FEMAÇÃ Frequentemente encontramos publicidades espalhadas pelas cidades para divulgar festas, eventos ou feiras. Foi desta maneira que Veranópolis - RS, Terra da Longevidade e Berço Nacional da Maçã, tornou-se conhecida e muito comentada nas redes sociais e meios de comunicação. Após eleitas, costumeiramente, elas passam a ser vistas em diversos meios de divulgação usando vestidos, coroas e penteados que nos lembram verdadeiras rainhas e princesas. Por conta do traje típico das soberanas, ou pela falta dele, o anúncio da Festa Nacional da Maçã e Agroindústria de Veranópolis causou estranhamento e ganhou grande repercussão na região. A publicidade escolhida para divulgar a festa conta com o slogan “Caia na tentação” e, ao lado, a imagem de três lindas mulheres fotografadas da cintura para cima com os seios cobertos por maçãs. Como mostra a figura 1 (FEMAÇÃ, 2015), a peça publicitária veiculada em outdoor para divulgação da feira.

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Figura 1 - Anúncio Publicitário

Ao visualizar a imagem, percebemos que se trata de um texto multimodal, pois é composto por elementos verbais e não verbais. Iniciaremos nossa análise pelas cores utilizadas. A cor verde utilizada no slogan da festa, marcando os dias em que o evento acontecerá e na parte inferior da imagem, é geralmente associada à esperança, à saúde, à natureza, à vitalidade, ao dinheiro e à liberdade. O vermelho, presente nas maçãs, no nome do evento e no local em que a festa acontecerá é uma cor quente, que representa poder, energia, amor e paixão. É a cor do coração humano e simboliza, também, a chama que mantém vivo o desejo e a excitação sexual. A cor azul, utilizada como fundo da imagem simboliza serenidade, tranquilidade e harmonia. As cores não foram escolhidas aleatoriamente, suscitam a ideia de que se poderá vivenciar esse misto de sensações num único local – na Femaçã. Ainda, o verde e o vermelho simbolizam as cores das maçãs, que tentarão o paladar do público presente na festa. Os slogans preferencialmente são escritos no modo imperativo, projetando uma ordem ao interlocutor. Em nosso objeto de estudo, temos materializado no texto o imperativo “caia” (você) persuadindo o público a participar do evento. Aparentemente, por estar escrito em caixa baixa, no canto superior esquerdo da imagem, o slogan da feira possui pouco destaque visual diante de outras informações, mas, ao ser lido por completo podemos fazer outras interpretações a respeito deste anúncio, principalmente quando unido aos demais elementos do anúncio publicitário. Considerando que os textos são dialógicos, este anúncio suscita outros discursos com os quais dialoga e também expressa em sua materialidade marcas intertextuais que remetem a outros textos. As mulheres seminuas, com postura e olhares insinuantes, remetem aos discursos de apelo à sexualidade, e, assim, o anúncio dialoga com outros discursos que tomam a mulher como objeto sexual, como o discurso machista da mulher-objeto, por exemplo, estabelecendo com estes uma relação interdiscursiva. Aliado a isso, as maçãs vermelhas e o slogan “caia na tentação” remetem imediatamente aos discursos bíblicos sobre o pecado original, quando Adão e Eva “caíram na tentação” e comeram o fruto proibido. A Bíblia não faz menção explícita à maça como sendo tal fruta:

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A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé Deus havia feito. Ela disse para a mulher: “É verdade que Deus disse que vocês não devem comer de nenhuma árvore do jardim?” A mulher respondeu para a serpente: “Nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Vocês não comerão dele, nem o tocarão, do contrário vocês vão morrer’”. (BÍBLIA, 2005, p. 16).

No entanto, conceber a maçã como sendo o fruto proibido faz parte da cultura popular, do imaginário construído e cristalizado na mente das pessoas. A fruta era tão tentadora que Eva não resistiu, comeu-a e ofereceu a Adão, que também experimentou o fruto proibido. Talvez pela cor vermelha, pelo formato esférico ou pelas sementes representando a fertilidade, que a maçã se tornou o fruto proibido. Ao simbolizar o pecado, a escolha errada proporciona a liberdade e, ao mesmo tempo, o cessar dos privilégios da vida no paraíso. À vista disso, as três soberanas seminuas segurando maçãs apetitosas lembram Eva, que também vivia nua no Jardim do Éden até provar o fruto proibido. Dessa forma, os elementos do anúncio, mulheres e maçãs, juntamente com o slogan da feira reportam à sexualidade, tida como sedução e tentação. As maçãs e o slogan são os dois elementos principais que permitem estabelecer a intertextualidade (e a interdiscursividade, já que aquela implica esta) deste anúncio com os textos bíblicos. Lembramos, ainda, que, na literatura, muitas histórias utilizam a maçã como fruto símbolo. Provavelmente a história infantil “A Branca de Neve e os sete anões” é a mais conhecida de todas. Nela, a fruta aparece com destaque, pois é o fruto enfeitiçado pela bruxa e oferecido à Branca de Neve que cai no sono e só desperta com o beijo do príncipe. Mais uma vez a maçã é tomada como fruto proibido, que desperta a vontade por sua aparência extremamente apetitosa, mas que não deveria ser provada sob pena de desencadear consequências negativas. A imagem das soberanas da Femaçã, expostas à sociedade seminuas e com postura insinuante, corrobora outros discursos que tomam a mulher como símbolo de sedução, posto que, em inúmeras publicidades a mulher é utilizada como símbolo sexual, persuadindo e tentando o público alvo. Com o intuito de atrair o público para a Festa Nacional da Maçã, os responsáveis pela publicidade utilizaram três recursos básicos para ordenar, persuadir e seduzir o interlocutor. Neste anúncio, a conjugação dos elementos verbais unidos aos elementos não verbais, produziram-se sentidos que ativaram outros discursos na memória do leitor. O interdiscurso harmonizado com o intertexto repercutiu no caráter polêmico desta publicidade, logo que foi apresentada, a imagem de divulgação provocou estranhamento, elogios e diversas críticas por conta da sensualidade, ousadia e beleza das três soberanas. Certamente a grande repercussão causada por este anúncio publicitário somente foi possível pelas escolhas dos elementos verbais e não verbais, residindo na interdiscursividade e na intertextualidade a principal estratégia de arrebatamento da atenção do leitor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Observou-se que no anúncio publicitário da Femaçã o diferencial está na junção do verbal com o imagético, gerando outras associações ao interlocutor, como a sexualidade, desse modo, causando estranhamento aos leitores. Apesar de receber críticas, a peça publicitária foi bem aceita por possibilitar diversas leituras e, principalmente, por atingir o seu principal objetivo: persuadir o público alvo, neste contexto, instigando as pessoas a participarem da feira. Portanto, uma das principais estratégias desse gênero discursivo é utilizar a multimodalidade envolvendo a intertextualidade em seu interdiscurso, a fim de produzir efeitos de sentido distintos, influenciando o interlocutor a acreditar no poder de sedução e tentação do locutor. Por fim, é importante salientar a importância da utilização de textos multimodais em sala de aula. Analisar textos compostos por mais de uma linguagem pode agregar muito na formação de

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leitores capacitados, para isso, é preciso que o professor mostre os caminhos necessários, unindo o verbal e não verbal, associando textos já conhecidos e possibilitando novas interpretações. O trabalho com este tipo de textos desperta a curiosidade para outros gêneros e assim, novos leitores são conquistados.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada: Edição Pastoral. Tradução: Ivo Storniolo, Euclides Martins Balancin. São Paulo: Paulus, 2005. p. 14 - 17. CARVALHO, Nelly de. Publicidade: a linguagem da sedução. 3. ed. São Paulo: Ática, 2000. FEMAÇÃ. Festa Nacional da Maçã. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2015. FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAITH, Beth (Org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. p. 161 -194. MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2012.

DEFUNTO AUTOR E SEU MESTRE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: A RELAÇÃO DE FAVOR REPRESENTADA NO DISCURSO DE MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS Kamila Vieira* (UPF) Ivania Campigotto Aquino** (UPF) Ernani Cesar de Freitas*** (UPF)

O FAVOR NO SÉCULO XIX A relação de favor ou o paternalismo atravessa a sociedade do século XIX e move os interesses e a convivência entre as classes da sociedade da época. Conforme Schwarz (2000a, p. 16), “o favor é a nossa mediação quase universal.” Efetivamente, a troca de favores esteve presente em diversas atividades e relações como as políticas, as de negócio, as de indústria, as de comércio, as de vida urbana, etc. Mesmo as profissões liberais e qualificações operárias, que na visão europeia “não deviam nada a ninguém”, entre os brasileiros da época eram governadas pelo favor. Assim como o médico, ou o tipógrafo que dependiam dele para o exercício de sua profissão, o pequeno proprietário também dependia do favor para a segurança de seu comércio. Na relação de favor, uma pessoa bem-sucedida financeira e socialmente colabora com a ascensão de outra menos favorecida nos diversos meios da vida social (carreira, negócios, relações, política etc.), fazendo com que haja dependência: o burguês oferece o capital e diversas possibilidades ao homem “livre”, proporcionando uma vida social um pouco melhor, para que este possa promover seu negócio e satisfazer seus interesses, enquanto o homem “livre” oferece ao burguês sua fidelidade, concordando com tudo que lhe é dito e apoiando as decisões de seu “parceiro”. A cumplicidade aparece fortemente nessa relação, pois nenhuma das partes pode acusar a outra pelos favores que estabelecem entre si, por mais errados que sejam.

O DISCURSO LITERÁRIO DE MAINGUENEAU: A CENOGRAFIA E O ETHOS A cenografia não é mero alicerce, ou uma maneira de transmitir somente conteúdos, mas o centro em torno do qual gira a enunciação. “A literatura é um discurso cuja identidade se constitui através da negociação de seu próprio direito de construir um dado mundo mediante uma dada cena de fala correlativa que atribui um lugar a seu leitor ou espectador.” (MAINGUENEAU, 2012, p. 264). A terceira subárea presente na cena de enunciação, a cenografia, segundo Maingueneau (2012, p. 252), pode intervir no discurso, pois “a cena na qual o leitor vê atribuído a si um lugar é uma cena narrativa construída pelo texto, ‘uma cenografia’”. É através das cenografias presentes na obra Memórias póstumas de Brás Cubas que identificamos a relação de favor.

Acadêmica, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em Letras (Ufrgs). Professora de Literatura no curso de Letras e no PPGL da UPF. Brasil. E-mail: [email protected] *** Doutor em Letras, área de concentração Lingüística Aplicada (PUCRS/2006); Professor (Titular) de Ensino Superior na Universidade Feevale, Programa de Pós-graduação em Processos e Manifestações Culturais, e professor permanente no PPG em Letras na Universidade de Passo Fundo (RS). Brasil. E-mail: [email protected] *

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A definição de ethos foi primeiramente estabelecida na Retórica por Aristóteles; nessa publicação, o ethos tem a função de persuadir esse ou aquele tipo de indivíduo através da oralidade. “O ethos retórico está ligado à própria enunciação, não a um saber extradiscursivo sobre o locutor.” (MAINGUENEAU, 2012, p. 267 grifo do autor). Segundo Maingueneau (2012), a eficácia do ethos relaciona-se com o fato de ele envolver a enunciação sem ser explicitado no enunciado, o locutor é assim caracterizado a partir do interior do enunciado. Dessa forma, podemos observar que, por mais simples que a definição seja, está envolvida em diversas complexidades. O ethos é ligado ao ato de enunciação, mas o público constrói representações desse ethos antes mesmo de o enunciador começar a falar, é o ethos prévio.

FAVOR, CENOGRAFIA E ETHOS EM MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS Duas perspectivas teóricas orientam esta análise de Memórias Póstumas de Brás Cubas: uma ligada à crítica literária de Roberto Schwartz (2000a e 2000b) e outra ligada à linguística de Dominique Maingueneau (2012).

ÓBITO DO AUTOR E GENEALOGIA No capítulo I, intitulado Óbito do autor, Brás Cubas inicia narrando as condições de sua morte, sua idade, seu estado civil, sua situação financeira, a data de falecimento e o número de amigos presentes em seu velório: “onze amigos!”. Um destes resolve então discursar o quão triste e irreparável era aquela perda. Brás faz questão de retomar a fala do amigo - por meio de uma citação indireta enfatizando a profundidade das palavras carregadas de sentimentalismo exagerado e conclui: “bom e fiel amigo! Não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei.” (ASSIS, 2013, p. 19). Observando essa ação ocorrida na narrativa, podemos identificar vestígios da relação de favor. Dentre todas as onze pessoas que estavam presentes no velório, este “bom e fiel amigo”, que recebeu as vinte apólices de Brás Cubas, é o que resolve discursar e dizer que a perda havia sido irreparável e caracteriza o defunto como um dos mais “[...] belos caracteres que tem honrado a humanidade.” Observamos nesse caso um indivíduo que deve sua ascensão ou melhora de condições financeiras ao finado e como forma de gratidão profere palavras de conforto e de lembrança a Brás Cubas, que, na condição de narrador e receptor deste discurso, reconhece a fidelidade desse senhor. Percebemos através da narrativa que o discurso proferido pelo amigo é falso e tem como finalidade principal prestar contas pelas vinte apólices recebidas, ou seja, é uma resposta ao benefício que lhe foi proposto. Quanto ao defunto-autor, fica a possibilidade de, ao caracterizar o amigo como “bom e fiel”, estar sendo irônico. Já no capítulo III, no qual Brás Cubas narra sobre seus antepassados, observamos certo desprezo por Damião Cubas, que conquistou todo o capital que hoje pertence à família de Brás. Damião era tanoeiro e, além disso, foi lavrador, o que lhe ajudou a melhorar suas finanças. Quando morreu, deixou tudo para seu filho, Luís Cubas, jovem que recebeu todos os méritos pelas boas condições financeiras da família. Brás Cubas mostra seu posicionamento a favor de todos os méritos dados a Luís Cubas, ao passo que esse teve uma profissão importante e fora bem visto pela sociedade da época. “[...] o Damião Cubas era afinal de contas um tanoeiro, e talvez mau tanoeiro, ao passo que Luís Cubas estudou em Coimbra, primou no Estado, e foi um dos amigos particulares do vice-rei conde da Cunha.” (ASSIS, 2011, p. 22). O reconhecimento por uma questão de status e posição social aparece visivelmente nesse trecho. O pai pobre, que trabalhou honestamente para conquistar melhor condição de vida, foi apagado pelo filho, que, perante a sociedade, era o homem que merecia respeito pelo cargo que ocupara. Essa

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questão abordada por Brás Cubas mostra o quão importante era uma boa profissão para que houvesse reconhecimento da sociedade; dessa forma, nos deixa claro que o status é um bem maior para o período da narrativa.

O “AMOR” E O ETHOS DE MARCELA Marcela “era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de rapazes.” (ASSIS, 2011, p. 48). O narrador faz questão de marcar o ethos da personagem para mostrar ao leitor sua visão póstuma da moça pela qual ele se apaixonara em sua adolescência. Brás Cubas na adolescência, cego de amores por Marcela, não percebe esses traços narrados por ele agora, após a morte. O defunto-autor possui privilégios no que diz respeito à visão da história. Por mais que ele tenha vivido aqueles momentos, seu ponto de vista antes e pós-morte é diferente, narrando suas memórias, Brás Cubas pode refletir, criticar e analisar melhor sua vida do que quando estava vivo. Mediante a narrativa do defunto-autor, percebemos a relação de favor e interesse entre casal Brás Cunas e Marcela. Ela, interessada somente no dinheiro e nos presentes do jovem Brás, era capaz de jurar amor ao rapaz a cada joia e ornamento por ele dado. Ele, cego pelos encantos da espanhola, extorquia sua família para ter o amor da moça. Era meu universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas do meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma coisa, que me dava às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a assinar com obrigações, que devia resgatar um dia com usura. (ASSIS, 2011, p. 50).

Brás chega ao ponto de roubar da herança de seu pai somente para agradar sua amada que, ao receber um destes presentes caríssimos, fingia estar ofendida, brigava com Brás, mas, ao ganhar uma dessas preciosidades, costumava “contemplá-la entre os dedos, a procurar melhor luz, a ensaiá-la em si, e a rir, e a beijar-me com uma reincidência impetuosa e sincera; mas, protestando, derramava-se-lhe a felicidade dos olhos, e eu sentia-me feliz com vê-la assim.” (ASSIS, 2011, p. 51). O defunto-autor percebe o quão foi ingênuo na sua juventude e narra ironicamente boa parte de suas memórias. Marcela “jamais consentiria que lhe comprassem os afetos. Vendera muita vez as aparências, mas a realidade, guardava-a para poucos.” (ASSIS, 2011. p. 52). Essa parte da narrativa não condiz com as atitudes reais da jovem, que, apesar de relutar para receber os presentes que lhe são oferecidos, nunca negou algum. O defunto-autor é irônico quando se lembra de uma cruz de ouro que a moça ganhou de outro romance e que ainda carregava dizendo que aquela, por ser “um mimo de escasso preço”, ela não havia demorado a aceitar. A bela moça tenta se passar por humilde, mas não consegue, pois deixa que os presentes a corrompam e lhe comprem o amor e o afeto. Em meio ao drama encenado de Marcela e aos subornos do jovem Brás pelo amor da moça, eis que surge uma bela reflexão - um tanto irônica - feita pelo próprio narrador. No capítulo XVI, intitulado Uma reflexão imoral, Brás fala sobre a importância dos joalheiros para os relacionamentos, “um terço ou um quinto do universal comércio dos corações” (ASSIS, 2011, p. 53), deixando a entender que o amor nada mais é do que uma relação de negócios e interesses. Para fechar o capítulo com uma reflexão um tanto ácida, nosso defunto-autor conclui que “a mais bela testa do mundo não fica menos bela se a cingir um diadema de pedras finas; nem menos bela, nem menos amada. Marcela, por exemplo, que era bem bonita, amou-me...” (ASSIS, 2011, p. 53). Essas reticências utilizadas ao

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final do trecho nos mostram o ar de deboche do narrador, ele mesmo confessa que esse amor não passa de encantamento pelas joias e presentes caros. No romance, uma frase em especial resume o relacionamento de Brás Cubas com a Marcela. Essa passagem ocorre no capítulo XVII - Do trapézio e outras coisas, no qual o narrador inicia dizendo que a jovem Marcela “amou-me durantes 15 meses e 11 contos de réis; nada menos” (ASSIS, 2011, p. 53); trata-se de um amor caro e de pouca duração. A ideia de juntar tempo e dinheiro nesse caso comprova que Brás Cubas obteve uma consciência póstuma - e que se autoafirma a partir de outras percepções - de que fora explorado para poder ter uma demonstração de afeto da bela moça. A expressão final da frase “nada menos” nos mostra também a consciência de que ele gastou muito com sua paixão e obteve um retorno inferior se comparado com o gasto. Mesmo após a constatação, Brás faz questão de relembrar a última tentativa de conquista do “coração” da jovem. Essa acontece quando ele recebe a notícia de que iria para Europa estudar e cisma em querer levar a espanhola consigo. Nesse alvoroço, o jovem Cubas faz um empréstimo e compra para a moça a melhor joia da cidade, um pente de marfim com três diamantes grandes. Marcela até então estava decidida a permanecer no Brasil. A reação da moça ao ver o presente é mais uma evidência de que, nesta relação amorosa, o que menos existe era amor. O que há é uma relação por interesse, carregada de chantagens e trocas de favores. [...] Marcela teve um leve sobressalto, ergueu metade do corpo e, apoiada num cotovelo, olhou para o pente durante alguns instantes curtos; depois retirou os olhos, tinha-se dominado. [...] - Doido - foi sua primeira resposta. A segunda foi puxar-me para si, e pagar-me o sacrifício com um beijo, o mais ardente de todos. Depois tirou o pente, admirou muito a matéria e o lavor, olhando a espaços para mim, e abanando a cabeça, com um ar de repreensão [...] - Vens comigo? [...] - Vou. Quando embarca? - Daqui a dois ou três dias. - Vou. (ASSIS, 2011, p. 56).

Neste trecho percebemos que Marcela abdicou seu papel de “boa moça” e não nega o presente, o máximo que sai de sua boca é um “doido”, que não podemos interpretar como uma recusa. A narrativa deixa claro que a jovem ficou surpresa e o defunto-autor faz questão de mostrar a reação corporal da moça ao olhar e receber o mimo mais caro do envolvimento com o jovem. A relação por interesse fica escancarada e, de certa forma, Machado de Assis mostra nestes capítulos de “amor ao dinheiro” - e não a Brás Cubas - que tudo e que todas as relações têm seu preço. Nessa situação, para o burguês que narra suas memórias, a compra do afeto é a única forma que ele encontra para livrar-se da solidão. A relação de favor, praticada constantemente, gera a dependência da pessoa, a exceção à regra, a cultura interessada, remuneração e serviços pessoais. No caso do romance de Brás Cubas e Marcela, o amor é o serviço pessoal que ocorre somente através da remuneração que é feita através de joias, presentes e mimos oferecidos pelo burguês. Esse relacionamento materialista constitui uma crítica à sociedade do século XIX e nos mostra que inclusive o “sentimento mais puro” nada mais é do que uma moeda de troca.

BRÁS CUBAS RETORNA AO BRASIL E... Encontra sua mãe doente, em poucos dias ela falece e Brás resolve isolar-se do mundo em uma das casas da família, na Tijuca. Passado algum tempo, seu pai resolve visitá-lo e faz uma proposta tentadora: um lugar de deputado e um casamento. “Era-me necessária a carreira política, dizia

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ele, por vinte e tantas razões, que deduziu com singular volubilidade, ilustrando-as como exemplos de pessoas do nosso conhecimento.” (ASSIS, 2011, p. 72). Para Brás Cubas, essa era a única saída para uma vida exemplar e de sucesso, pois sua graduação na Europa de nada servira, já que foi, na maior parte, regada de festas e folia. A carreira política era a única forma de o senhor Cubas ser reconhecido pela sociedade carioca da época, e claro, como bom político, não poderia faltar-lhe uma bela esposa. No caso de Brás, não era um casamento qualquer que lhe interessava, e sim um casamento com a filha do Dutra, “o conselheiro Dutra [...], uma influência política.” (ASSIS, 2011, p. 75). O casamento com Virgília seria carregado de interesses, mais uma vez o amor é tratado como moeda de troca, um contrato estritamente profissional no qual as duas partes se beneficiam, uma - neste caso o homem - mostra o quão bem-sucedido e respeitável é e a outra - a mulher - encontra no casamento a segurança e mostra à sociedade que é uma mulher que deve ser respeitada por cumprir os padrões burgueses. A burguesia da época, muito preocupada com o status familiar perante a sociedade, procurava manter seus sucessores em bons cargos, fossem políticos ou de outras áreas; também era a favor do casamento que instituía tanto ao homem quanto à mulher um papel de pessoa bem vista aos olhos dos outros e aos olhos de Deus. Uma fala dita pelo pai de Brás Cubas, ao tentar convencê-lo de que deveria aceitar as propostas feitas a ele, mostra que tanto o casamento quanto o cargo político nada mais eram do que um pagamento ao investimento feito pelo patriarca: “não gastei dinheiro, cuidados, empenhos, para te não ver brilhar, como deves, e te convém, e a todos nós; é preciso continuar o nosso nome, continuá-lo e ilustrá-lo ainda mais.” (ASSIS, 2011, p. 76). Mais do que uma sugestão, torna-se um dever de Brás satisfazer à vontade do pai, que tanto investiu em seu filho para vê-lo um homem nobre, fazendo jus ao sobrenome que carregava. A relação de favor nesse caso é encontrada dentro da própria família, já que o pai fornece o necessário - e até o supérfluo - ao filho, e este deve cumprir com as ordens instituídas pelo pai, ainda que essas imposições não o façam feliz. A vida não se encontra na felicidade, e sim nos bons negócios. Ao final do longo diálogo cheio de propostas, Brás resolve aceitar as condições do pai. Aceita o diploma, o casamento com Virgília e a câmara dos deputados.

DONA PLÁCIDA No decorrer do romance, Virgília – prometida a Brás Cubas – casa-se com Lobo Neves, Brás vira amigo íntimo do casal e acaba envolvendo-se com a senhora. O romance fora do casamento estava prestes a ser descoberto quando o senhor Cubas e Virgília resolvem adotar como ponto de encontro uma casa retirada aos olhos de curiosos. Dona Plácida aparece nessa história como a caseira e a responsável por guardar o segredo e a infidelidade da jovem senhora e do senhor Brás para com o político Lobo Neves. Apesar de saber que o que fazia era errado, Dona Plácida, mesmo com a consciência pesada, esquecia daquilo principalmente quando se lembrava da possibilidade de uma vida melhor. Brás narra que a senhora sentia nojo por estar sendo cúmplice desses encontros às escondidas; contudo, o asco de D. Plácida desaparece quando o senhor Cubas resolve dar-lhe cinco contos que havia achado em Botafogo. O defunto-autor narra a reação da velha ao receber o ‘presente’: “Dona Plácida agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e nunca mais deixou de rezar por mim, todas as noites, diante de uma imagem da Virgem, que tinha no quarto. Foi assim que lhe acabou o nojo.” (ASSIS, 2011, p. 130). Esta é mais uma passagem do livro que demonstra o quão as relações dependem do favor, geralmente de um burguês, para com uma pessoa menos abastada. A relação de favor mais evidente no livro é, sem sombra de dúvidas, a de Brás Cubas com Dona Plácida. Outro momento em que o favor está presente na relação de patrão /subordinado se faz no

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momento em que Virgília reclama à Dona Plácida a falta de carinho e afeto da senhora para com a nobre dama. A velha responde: “- Virgem Nossa Senhora! [...] Não gosto de Iaiá! Mas então de quem mais eu gostaria nesse mundo?” (ASSIS, 2011, p. 133). O narrador entra em cena e narra o momento de cumplicidade de empregada/nobre senhora: “E pegando-lhe nas mãos, olhou-a fixamente, fixamente, até molharem-se-lhe os olhos, de tão fixo que era. Virgília acariciou-a muito; eu deixei-lhe uma pratinha na algibeira do vestido.” (ASSIS, 2011, p. 133). Machado de Assis mostra que não há carinho sem reconhecimento financeiro, assim como não há “trabalhador livre” sem burguês. A linguagem utilizada por Dona Plácida evidencia sua condição social e denota de onde ela vem. Também explicita a relação do pobre, no caso a senhora, para com o rico, Brás Cubas e Virgília. Ao chamar a nobre Virgília de Iaiá, já percebemos a hierarquia estabelecida entre a dama e a senhora. No decorrer dos capítulos destinados à Dona Plácida, eis que surge a história de vida da velha senhora: Era filha natural de um sacristão da Sé e de uma mulher que fazia doces pra fora. Perdeu o pai aos dez anos. Já então ralava coco e fazia não sei que outros trabalhos de doceira, compatíveis com a idade. Aos 15 ou 16 casou com um alfaiate, que morreu tísico algum tempo depois, deixando-lhe a filha, com dois anos, e a mãe, cansada de trabalhar. Tinha de sustentar três pessoas. Fazia doces, que era o seu ofício, mas cosia também, de dia e de noite, com afinco, para três ou quatro lojas, e ensinava algumas crianças do bairro, a dez tostões por mês. Com isso iam-se passando os anos, não a beleza, porque não tivera nunca. Apareceram-lhe alguns namoros, propostas, seduções, a que resistia. (ASSIS, 2011, p. 133).

Observando a narrativa de Brás Cubas, percebemos que a velha senhora teve uma vida sofrida, cheia de obstáculos e tristezas e que nunca lhe foi proposto algo que fizesse com que suas condições de “trabalhadora livre” melhorassem. Dona Plácida é grata a Brás Cubas, o senhor doutor, e Virgília, a Iaiá que, segundo ela, protegeram-na e impediram que ela se tornasse uma moradora de rua. Por isso, Dona Plácida deve se sujeitar a ser cúmplice de um romance às escondidas; caso ela se opusesse à situação, provavelmente estaria em condições piores de vida. A relação de favor neste caso é imposta pelo burguês - “aquele que salva” - à “trabalhadora livre” - aquela que faz o que for necessário para que continue tendo um teto para cobrir-lhe a cabeça. Em um devaneio de Brás Cubas, ele vê Dona Plácida questionando por qual motivo o sacristão havia lhe chamado. A resposta dada pelo sacristão - imaginada por Brás Cubas - foi a seguinte: chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal ou não comer, andar de um lado para o outro, na faina, adoecendo e sarando, [...] triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital. (ASSIS, 2011, p. 135).

Percebemos que, para Brás Cubas, o pobre não tem espaço na sociedade e está resignado sempre à dor e ao sofrimento, até que um dia a sua salvação, neste caso a morte, chegue e ele possa descansar em paz. No caso de Dona Plácida, a salvação aparece a partir da submissão ao senhor doutor e a Iaiá. Um dos poucos momentos de consciência alcançados por Brás ocorre no capítulo LXXVI, denominado O estrume. O defunto-autor inicia o capítulo sentindo-se culpado pela situação a qual sujeita Dona Plácida: súbito deu-me a consciência um repelão, acusou-me de ter feito capitular a probidade de dona Plácida, obrigando-a a um papel torpe, depois de uma longa vida de trabalho e privações. Medianeira não era melhor que concubina, e eu tinha-a baixado a esse ofício, à custa de obséquios e dinheiro. (ASSIS, 2011, p. 136).

No fundo, o defunto-autor sabe que a situação vivida pela senhora não é a mais digna, porém o momento de consciência é curto. O senhor Cubas prefere acreditar que o que está fazendo por Dona

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Plácida é totalmente aceitável e digno de méritos: “concordei que assim era, mas aleguei que a velhice de dona Plácida estava agora ao abrigo da mendicidade: era uma compensação. Se não fossem os meus amores, provavelmente dona Plácida acabaria como tantas outras criaturas humanas [...]” (ASSIS, 2011, p. 136). A partir deste capítulo, podemos utilizar uma reflexão de Schwarz (2000b); segundo o teórico, não é exagero afirmar que o favor pessoal e o capricho são colocados em primeiro plano pela estrutura social presente no país no século XIX. De certa forma, é natural que esses temas, mais as humilhações e esperanças que também estão interligadas ao favor e ao capricho, sejam abordados no romance brasileiro. “O leque dos destinos disponíveis, de amplitude vertiginosa e catastrófica para a parte pobre, é para a parte proprietária, o campo das opções oferecidas ao exercício do capricho.” (SCHWARZ, 2000b, p. 89). Brás prefere orgulhar-se de sua atitude a admitir que era errado comprar o silêncio e a lealdade de dona Plácida. É importante ressaltar que Brás Cubas faz caridade, pois tem pena de dona Plácida, seus gestos não são solidários e inferiorizam e distanciam ainda mais a velha senhora de seu patamar social e econômico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A relação de favor foi um grande marco da sociedade brasileira do século XIX, e Machado de Assis, na obra Memórias póstumas de Brás Cubas, conseguiu evidenciar, mediante o discurso e as cenografias propostas ao longo do texto, como ocorriam esses favores que partiam do burguês para o homem livre. Machado é irônico e brinca com seus leitores ao tornar um defunto-autor, já que Brás só consegue fazer uma retrospectiva de seus melhores e piores momentos após a morte, assim como analisar a relevância de sua vida. A burguesia carioca é representada na figura do defunto-autor, a pouca disposição para o trabalho, a vontade de ganhar dinheiro fácil, a graduação realizada na Europa apenas para a melhora do status social, bem como a necessidade de fazer uma aliança com pessoas menos abastadas refletem boa parte das ideias fora do lugar presentes no Brasil do século XIX. Percebemos, por meio das ações discursivas, a recorrência da ironia de Brás Cubas e o quanto sua vida é fútil e medíocre perto de outras personagens. Brás constitui uma sátira ao burguês brasileiro e reflete a indignação de Machado de Assis com a sociedade em que vivia. Apesar de ser uma obra publicada no ano de 1891, Memórias póstumas de Brás Cubas continua sendo atual e verossímil.

REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012. SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as batatas. 5. ed. São Paulo: Ed. 34, 2000a. _____. Um mestre na periferia do capitalismo. 4. ed. São Paulo: Ed. 34, 2000b.

RELAÇÃO NARRADOR E PERSONAGEM EM NARRATIVAS DO PRESENTE Laura Fontana Soares* (UFFS)

1. INTRODUÇÃO Este trabalho é resultado do projeto de pesquisa em fase de desenvolvimento, vinculado ao PET- Programa de Educação Tutorial, da Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Chapecó, orientado pelo professor Valdir Prigol, no eixo temático dos estudos literários. Primeiramente, no início deste estudo, pensou-se em ter como eixo estruturante o movimento de literatura comparada, devido às questões afins percebidas através de minha experiência como leitora, entre o romance O Paraíso é Bem Bacana, de André Sant’Anna, publicado em 2005, e a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, de 1938. Entretanto, a partir da indicação de referencial teórico feita pelo orientador e as discussões acerca dos encaminhamentos dos trabalhos, optou-se por manter a questão inicial, do jogo das vozes entre narradores e personagens, com o acréscimo de uma nova problemática: a historicidade das narrativas literárias. Para responder a esta última questão, optou-se partir do estudo de um romance do século XXI e relacionar as memórias de produções anteriores que marcaram a história da literatura, para que se atente a questões que se mantiveram vivas no percurso da produção literária. A pesquisa que originou este trabalho concretizou-se, principalmente, devido ao anseio de compreender questões inerentes à literatura do presente, reflexão que surgiu a partir da leitura do livro de André Sant’Anna, intitulado O Paraíso é Bem Bacana. O que primeiro marcou minha leitura pessoal, e um tanto despretensiosa, foi o enfoque dado ao narrador, este que apresenta linguagem coloquial, marcada por expressões pouco polidas. O romance de André Sant’Anna, além de retomar problemáticas figuradas em narrativas literárias já exitentes, estabelece relação com Vidas Secas a partir do tratamento estabelecido entre narrador e narrados, estudada a partir do uso da linguagem. Em ambas as obras há a problemática do inculto, do iletrado que vive à margem da sociedade, oprimido e sem voz. Tal questão que perpassa o enredo e o universo ficcional chama atenção justamente por se apresentar em romances com diferença cronológica significativa Com o suporte de textos teóricos que analisam as obras separadamente, nota-se a sobrevivência desta relação estruturante, inclusive em textos literários além do gênero romance. Assim, torna-se possível a aproximação dos romances, além de estudos já consolidados acerca da relação entre narrador e personagem em narrativas literárias.

2. O PARAÍSO É BEM BACANA Voltando-se ao enredo de O Paraíso é Bem Bacana, temos, em meados dos anos 2000, Mané, o menino pobre que se tornou a promessa do futebol, em estado de coma. Ao ir para o time de juniores do Herta Berlim, na Alemanha, o adolescente de “mente primitiva”, virgem e tímido, como é descrito no depoimento de uma das personagens, encontra como fuga para seus dilemas e inseguranças o alento das promessas oferecidas pela religiao Islâmica. Todavia, traduções errôneas e mal *

Graduanda, Universidade Federal da Fronteira Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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fundamentadas levam Mané a almejar, como único objetivo, o paraíso de Alá com suas 72 virgens, reservado aos mártires. Após seu frustrado atentado terrorista, o menino mutilado encontra-se no hospital, em coma. O tempo da enunciação centra-se em Manuel dos Anjos já em coma e, através do enunciado, o leitor absorve o julgamento de terceiros sobre o mártir islâmico. Tem-se acesso ao pensamento e aos delírios do ex-jogador, por intermédio do narrador e de depoimentos das demais personagens. Este narrador que permite conhecermos Mané a partir de si, e da narrativa de terceiros, não intervém na fala da personagem, apenas a reproduz sem alterações, como pode ser observado no trecho a seguir, em que Mané, em coma, pensa estar morto, no paraíso de Alá: Se eu soubesse que era tão bom morrer, eu já tinha morrido muito tempo antes. Explodido, que não dói nada, é tudo na mesma hora e é por causa de Deus que é Alá. Explode tudo e pronto, chega na mesma hora e é por causa dessas mulher todas que me amam e são minhas e essa coisa que não tem mais nenhum problema nada e é só coisa boa e alegria calma que o tempo vai passando, mas nem precisa passar porque é pra sempre e não tem tempo. (SANT‘ANNA, 2005, p. 45.)

O romance também chama a atenção do leitor pela sua estrutura reiterativa, organizada em forma de entrevistas, em que as personagens fornecem suas impressões pessoais acerca de Manoel dos Anjos, o Mané; sobre o enredo, pode-se resumi-lo de acordo com Angela Maria Dias: Trata-se de uma ficção alucinada, repetitiva e prolixa em que Mané, um desvalido do interior de São Paulo, espécie pós-moderna de Macabéa – a personagem de Clarice Lispector –, por talento especial e trapaças da sorte, termina em Berlim jogando futebol. Uma vez convertido ao Islamismo, comete um atentado terrorista, como homem-bomba, no qual não atinge ninguém, só por acreditar nas setenta e duas virgens do paraíso de Alá.(DIAS, 2008, p. 151)

Sabe-se que a personagem principal Manoel dos Anjos, o Mané, posteriormente, Mohammed Mané, é um garoto marginalizado, negro, pobre, sem suporte familiar, com uma mãe alcoólatra e prostituída. No interior de São Paulo, mais especificamente em Ubatuba, Mané vivencia seus primeiros infortúnios. Em meio à mediocridade, é mais um que vive à margem de nossa sociedade contemporânea, característica denotada inclusive pelo seu apelido, “mané”, termo coloquialmente empregado para designar um menino de rua. A partir desta constatação, afirma-se que este mané, destituído de individualidade, figura um tipo social, uma massa sem características, sem voz. Desde o início da narrativa, nota-se o posicionamento peculiar do narrador, ao dar voz à personagem, como no trecho a seguir: O Mané podia ter dado uma porrada bem no meio da cara daquele gordinho filho-da-puta. Mas não. O Mané ficou rodando em volta do gordinho filho-da-puta, olhando para os lados, esperando que algum filho-da-puta logo apartasse a briga. Mas não. Eles eram todos uns filhos-da-puta e queriam ver um filho-da-puta batendo no outro.(SANT‘ANNA, 2005, p. 7.)

O excerto supracitado elucida a fala do narrador, marcada diversas vezes pela expressão “Mas não.”. Tal narrador, que absorve a fala da personagem, parece posicionar-se contra esta, em negativo, como pode ser observado no trecho a seguir: Então, o Mané descobriu uma brecha no meio da roda de filhos-da-puta e saiu correndo para se tornar um viado filho-da-puta. (SANT‘ANNA, 2005, p. 8.)

Estas características podem ser interpretadas como um gesto de aproximação entre aquele que detém a voz, no caso o narrador, daqueles que são narrados. Ângela Maria Dias, em seu ensaio “O Paraíso é Bem Bacana: a última “teogonia às avessas” de André Sant’Anna” já pontua questões

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sobre a linguagem das personagens; para esta, a redundância de interjeições, exclamações e a fala onomatopeica caracterizam a expressão oral intrínseca aos sentidos. Para analisar a questão da linguagem adotada no romance de André Sant’Anna, partindo do que foi teorizado até agora pela produção crítica literária, enquanto alguns estudiosos a interpretam como não-objetiva, estruturada pelo clichê da Pulp Fiction, outros compartilham do viés desta pesquisa, como Azevedo (2008) que, em seu artigo intitulado “Representação e performance na literatura contemporânea”, lê a expressão “Mas não.” como expressão de resistência em optar por uma crítica engajada ou por uma legitimação alienada. Ainda se pode justificar o recorrente adjetivo “filho-da-puta” e as minuciosas descrições das narrativas orgiásticas como a mimetização dos estereótipos e a imbecilização das condutas. Assim é a problemática, percebida por Azevedo, das questões pertinentes ao “engajamento político da prática artística” que estabelece uma relação de sobrevivência na abordagem tanto de André Sant’Anna quanto na de Graciliano Ramos, em sua obra Vidas Secas, em relação aos seus personagens que representam um Outro que, por sua vez, englobam um tipo social arquetipicamente marginalizado e sem representatividade.

3. O PARAÍSO É BEM BACANA E VIDAS SECAS Com uma diferença temporal de mais de 70 anos, vemos esta questão do jogo que se apresenta em O Paraíso é Bem Bacana, também em Vidas Secas. O sertanejo miserável, junto a sua família, considera-se um “animal”, embrutecido, que tem dificuldade de se comunicar verbalmente, contudo, essas personagens, quase incapazes de falar, são instituídas de humanidade, por intermédio do narrador, um intelectual que não forja uma fala regionalista, e cuja linguagem culta não os descaracteriza. Essa incapacidade de comunicação afeta a vida da família de um modo geral, limitando-os. Contudo, assim como Manoel dos Anjos, o Mané, todos eles são dotados de racionalidade, porém, incapazes de ultrapassarem os limites impostos pelo exterior. O livro é dividido em capítulos, os quais podem ser lidos aleatoriamente, uma vez que a história de Vidas Secas é apenas mais umas das inúmeras viagens que os retirantes nordestinos percorreram em suas vidas. Antonio Candido, no ensaio sobre Graciliano Ramos, presente no livro Ficção e Confissão teoriza sobre a estrutura em rosácea da obra, na qual o início e o fim se tocam. Tal estrutura inovadora recebe destaque em diversos ensaios literários, assim como a relação entre a pobreza vocabular das personagens e suas vidas de retirantes. O uso do discurso indireto livre marca o jogo entre aquele que cede a voz àquele que não a domina, fazendo as personagens existirem. No ensaio intitulado “Cinquenta anos de Vidas Secas”, Antonio Candido aponta uma característica do autor, relevante para a pesquisa sobre a influência da narrativa na obra, que é de só dizer o essencial. Segundo João Cézar de Castro Rocha, Gaciliano Ramos não pretendia representar pobres retirantes; o que, numa abordagem tradicional, demandaria uma narrativa estruturada através de ações continuadas dos personagens.”, logo, a narrativa adotada pelo autor condiz com a característica pessoal, apontada por Candido. Nota-se o reconhecimento da força do narrador em Vidas Secas, através da fala de Silviano Santiago, em uma mesa-redonda sobre Graciliano Ramos, na qual participou juntamente a Alfredo Bosi, Candido, entre outros. Ao registrar a opinião pessoal sobre o autor, Santiago chama atenção para o fato de Graciliano não ter forjado uma linguagem regionalista para a família nordestina. Em Graciliano Ramos, o que eu vejo de muito bonito, por exemplo, em Vidas Secas é que não há uma tentativa de dar voz aos camponeses, aos retirantes. Quero dizer que eles não incutem nos retirantes uma determinada forma de pensamento que fosse compatível com a maneira que ele pensava a marcha da História (SANTIAGO, 1987, p.434.)

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4. RELAÇÃO NARRADOR E PERSONAGEM EM DEMAIS NARRATIVAS LITERÁRIAS É por meio do tratamento dado à questão da linguagem entre narrador e personagem que se pode traçar semelhanças entre os dois romances até então analisados. Expandido a análise ao fecundo universo literário, aproxima-se, ainda, da relação entre narrador e personagem percebida por Antonio Candido, entre o conto “Mandovi”, de Coelho Neto, e a obra Contos gauchescos, de João Simões Lopes Neto. Aqui, novamente, surgem questões relativas à linguagem, ao narrador e aos seres sociais figurados a partir dos personagens, gaúcho e sertanejo, dois representantes de “povos sem voz” no meio “culto”. Antonio Candido, em seu texto “A literatura e a formação do homem” (2002), arrola a gama de questões que tornam o regionalismo ou representação humanizada, ou representação desumanizada do homem e das culturas rurais. Para exemplificar, Candido analisa produções de autores distintos, sendo que ambos produziram num momento de “grande voga da literatura regionalista”. Apesar da situação do regionalismo ser um grande imbróglio, tanto entre críticos como entre escritores, neste estudo, focalizar-se-á na questão da linguagem que, como veremos, pode ser artificial, para distanciar narrador e personagem ou pode dar voz ao outro. Do livro Sertões, de Coelho Neto, Candido traz fragmento do conto “Mandovi”. Nota-se, desde o início, a distinção entre o narrador, que é um homem culto, e a personagem, iletrada. A fala típica regionalista do caboclo Mandovi beira a notação fonética, como pode ser observado no trecho a seguir: Depois de uma hesitação, o caboclo decidiu-se: – Quá! Isso é tonteira. Aquele Manezinho é bicho tão escorvado que é até capaz de botar alguma côsa na bebida mode tontear a gente, só pra ganhar na certa. Quem é que há de gritar meu nome a esta hora, neste descampado? Isso é tonteira memo. Passou a mão pelos olhos, e, resoluto, animou o cão: Bamo, Tigre. Então ocê não ouve, véio? Bota a boca nesse diabo que tá aí tomando confiança com a gente. Bota a boca, Tigre. (NETO, 1926, p. 242.)

Antônio Cândido considera o estilo de Coelho Neto uma técnica ideológica, em que a dualidade das falas de narrador e personagem revela o distanciamento do homem da cidade e do caboclo, pois puxa o texto para dois lados e, assim, separa a personagem como objeto exótico. Desta forma, é através do estilo divergente entre a fala de narrador e personagem que se estabelece uma relação entre estas duas entidades ficcionais que alicerçam a narrativa. Em contrapartida ao distanciamento entre narrador e personagem, evidenciada pela linguagem desses, a maneira humanizada de figurar o homem e a cultura rústica é percebida por Candido em Contos Gauchescos, de João Simões Lopes Neto. A relação entre narrador e personagem é estabelecida já a partir da introdução do livro, anterior ao primeiro conto, na primeira frase: “Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano.” (LOPES NETO, 2012, p.3). No decurso dos 14 contos que constituem a obra, o enfoque narrativo recai sobre o narrador rústico, o próprio gaúcho Blau Nunes. Observa-se isto no fragmento do conto “Contrabandista”, apresentado em “A literatura e a formação do homem”.

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Era já lusco-fusco. Pegaram a acender as luzes. E nesse mesmo tempo parava no terceiro a comitiva; mas num silêncio, tudo. E o mesmo silêncio foi fechando todas as bocas e abrindo todos os olhos. Então vimos os da comitiva descerem de um cavalo o corpo entregue de um homem, ainda de pala enfiado... Ninguém perguntou nada, ninguém informou de nada; todos entenderam tudo...; que a festa estava acabada e a tristeza começada... Levou-se o corpo para a sala da mesa, para o sofá enfeitado, que ia ser o trono dos noivos. Então um dos chegado disse: - A guarda nos deu em cima... tomou os cargueiros... E mataram o capitão, porque ele avançou sozinho pra mula ponteira e suspendeu um pacote que vinha solto...e ainda o amarrou no corpo...Aí foi que o crivaram de balas...parado...Os ordinários!... Tivemos que brigar, pra tomar o corpo. (LOPES NETO, 2012, p. 122.)

Essa indissociação cultural entre narrador e personagem, presente em Contos Gauchescos, projeta o valor da obra para muito além da ilustração da realidade, pois mais significante que isto é o ato de um letrado, no caso o ouvinte de Blau Nunes, passar a palavra integralmente para um não letrado, “o velho cabo Blau Nunes, que se situa dentro da matéria narrada” (CANDIDO, 2002, p. 90) e a maneira como esta ação é realizada. É neste ponto que as reflexões de Candido, em seu texto, aproximam-se do objeto de estudo desta pesquisa, pois os narradores de O Paraíso é Bem Bacana e Vidas Secas compartilham do gesto de aproximação de suas personagens, bem como o narrador de Contos Gauchescos. A ação humanizadora, alcançada com êxito por Simões Lopes Neto, só é possível devido à maneira que narrador e personagem se relacionam, por meio da linguagem. Esta ação é o que Antonio Candido aponta como essência humanizadora da literatura, uma vez que esta é uma das modalidades mais ricas de fantasia, necessidade elementar para a satisfação humana.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do livro de André Sant’Anna acionam-se outras obras e textos teóricos, como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, “A literatura e a formação do homem”, de Antonio Candido, entre outros, os quais apresentam a linguagem entre narrador e personagens como questão estruturante do fazer literário, movimento recorrente que encontramos ao longo da história da literatura brasileira. Outrossim, além das observações já tecidas pela crítica literária, centra-se a pesquisa em uma nova perspectiva, que consiste na relação forjada entre narrador e personagem, uma vez que se vê a força da obra nesta relação, percebida em O Paraíso é Bem Bacana, Vidas Secas e Contos Gauchescos.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, Luciene. Representação e performance na literatura contemporânea. 2008. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015. CANDIDO, A. 50 anos de Vidas Secas . In: CANDIDO, A. Ficção e Confissão. Rio de Janeiro, 2006. p. 143151._____. Textos de intervenção. São Paulo: 34, 2002. CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. In: CANDIDO, A. Textos de intervenção. São Paulo: Editora 34, 2002. p. 77-92. DIAS, Ângela Maria. O paraíso é bem bacana: a última “teogonia às avessas” de André Sant’Anna. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2015. GARBUGLIO, José Carlos; BOSI, Alfredo; FACIOLI, Valentim. Graciliano Ramos: antologia e estudos. Participação especial: Silviano Santiago et al. São Paulo: Ática, 1987. (Coleção Escritores Brasileiros).

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LOPES NETO, J. Simões. Contos gauchescos: folclore regional. Florianópolis: UFSC, 2012. 179 p. NETO, Coelho. Mandovi. In: NETO, Coelho. Sertão. 5.ed. Porto: Chardron, 1926. p. 208-225 RAMOS, G. Vidas Secas. 110ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2009. SANT’ANNA, A. O Paraíso é Bem Bacana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

PROCEDIMENTOS DE LEITURA DE PROPOSTAS DE REDAÇÃO DO ENEM, COM BASE NA TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS Lauro Gomes* (UPF) Telisa Furlanetto Graeff** (UPF)

1. INTRODUÇÃO1 Cada vez mais a educação tem sido reconhecida como um dos setores mais importantes para o desenvolvimento sustentável de um país. Com isso, tem-se verificado, no Brasil, grande interesse do Ministério da Educação (MEC) em expandir e regular eficientemente a qualidade da educação básica e da superior. Por meio de avaliações externas, verifica-se que o MEC visa não apenas a regular aprendizagens e apontar índices sobre o nível de letramento dos estudantes, mas também a assegurar justiça, igualdade para todos. Desse modo, aos docentes de língua materna, avaliar tem sido uma atividade desafiadora, especialmente em se tratando de contextos de avaliações em larga escala, como Enem, em que, a cada nova edição, aumenta o número de participantes e a objetividade precisa ser assegurada no julgamento de desempenhos em todas as competências avaliadas nas suas redações. Entretanto, pode-se constatar que, em processos seletivos e em avaliações em larga escala, a objetividade2 faz-se essencial em todos os critérios, não só para agilizar o processo, mas também, e sobretudo, para assegurar um tratamento justo, igual para todos. Em vista disso, este trabalho propõe uma leitura argumentativa integrada dos textos que constituem a proposta de redação do Enem 2011, a qual explicita a relação entre as ideias centrais de cada texto, para chegar à ideia central da proposta. A partir disso, buscam-se estabelecer os limites de entendimento, tangenciamento e fuga da ideia central da proposta de redação, cujas noções são essenciais a toda a avaliação de desempenhos em leitura. Para tanto, apresentam-se, na próxima seção, os princípios e conceitos da Teoria dos Blocos Semânticos, para, a seguir, explicitarem-se a metodologia e a análise do corpus. Por fim, apresentam-se as contribuições deste trabalho para a área de Letras e Linguística nas considerações finais.

2. NOÇÕES DA TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS Criada com a tese de doutorado de Marion Carel (1992), a Teoria dos Blocos Semânticos (TBS) – considerada como uma terceira fase da teoria da Argumentação na Língua – defende que o sentido de uma entidade linguística constitui-se por certos discursos que dela se podem evocar. Esses discursos, denominados por Carel e Ducrot (2005) de encadeamentos argumentativos, constituem intralinguisticamente o sentido e manifestam-se sob a fórmula X CONECTOR Y. Todavia, enquanto Mestre em Letras (UPF); Doutorando em Letras pela Universidade de Passo Fundo (bolsista PROSUP/CAPES). Professor de Leitura e Produção Textual do Colégio Franciscano São José de Erechim - Rio Grande do Sul - Brasil. E-mail: [email protected] ** Doutora em Linguística Aplicada pela PUCRS (2001), com pós-doutorado pelo Centre de Recherches sur les Arts et le Langage, da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris (2011). Docente do Programa de Pós Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - Brasil. E-mail: [email protected] 1 Este trabalho foi desenvolvido na dissertação de mestrado de Lauro Gomes, intitulada Avaliação de leitura e produção de textos dissertativo-argumentativos pela teoria da Argumentação na Língua, orientada por Telisa Furlanetto Graeff, defendida no PPGLetras da Universidade de Passo Fundo, em 2014. 2 Saliente-se que a objetividade à qual se faz referência aqui é uma objetividade que evita a discrepância. Reconhece-se a impossibilidade de se eliminar plenamente a subjetividade do examinador no processo de avaliação; crê-se, no entanto, que, atribuindo critérios linguísticos de avaliação de leitura e escrita, é possível envolver menos as crenças pessoais do avaliador no processo de avaliação. *

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nas fases anteriores à TBS considerava-se haver apenas o conector donc (portanto) – que constituía os encadeamentos argumentativos normativos – Carel (1995) também considerou a existência do conector pourtant (mesmo assim), que constitui os encadeamentos argumentativos transgressivos, antes considerados uma anomalia por transgredirem normas da comunidade linguística. Quando Carel e Ducrot (2005) explicam o porquê de seu interesse pelos dois tipos de encadeamentos argumentativos, os normativos e os transgressivos, destacam que é nesses dois tipos de concatenação que cada um dos segmentos encadeados ganha sentido. Postulam, desse modo, que é da interdependência semântica, isto é, da relação que um segmento mantém com o outro que surge o sentido. Assim, em (1) Há um verdadeiro problema, portanto o deixemos de lado, o segmento X: há um verdadeiro problema só recebe seu sentido pela continuação Y: portanto o deixemos de lado, e o segmento Y: portanto o deixemos de lado somente adquire sentido em relação com X. Ressalte-se, porém, que um discurso normativo de tipo A DC B – como o que é explicitado por (1) – não possui nenhuma relação com o que habitualmente se chama de “raciocínio”. Isso deriva do fato de que, em discursos dessa natureza, recorrentes nas línguas naturais, o que se diz no primeiro segmento, isto é, no predicado A somente passa a ter sentido quando determinado por aquilo que se diz no segundo segmento, isto é, no predicado B. Considerando-se um encadeamento argumentativo X CON Y, pode-se denominar A o segmento X e B, o segmento Y. Tomando-se como exemplo o encadeamento (2) O hotel está perto da Universidade, portanto é fácil chegar, Carel e Ducrot (2005, p. 20) chamam A para perto e B para fácil chegar. Admitida essa convenção, os referidos autores definiram a noção de aspecto argumentativo. Para tanto, convencionaram chamar A DC B de aspecto, visto que representa um conjunto de encadeamentos argumentativos normativos X DC Y. Salientam que um aspecto A DC B contém, entre outros, encadeamentos como (2) O hotel está perto da Universidade, portanto é fácil chegar., (3) A Catedral está perto da Faculdade, portanto é fácil chegar. e (4) Meu dormitório está perto do teu, portanto é fácil chegar., uma vez que, em todos os casos, o pertinente é A, perto, e B, fácil chegar. Feitos esses esclarecimentos, destaque-se que é exatamente da chamada interdependência semântica que se estabelece entre os dois predicados de um encadeamento argumentativo que se origina o chamado bloco semântico. Segundo Carel e Ducrot (2005), um bloco semântico pode ser definido como uma entidade semântica, unitária e indecomponível, expressa nos encadeamentos argumentativos. São também conceitos essenciais aos propósitos deste trabalho os de argumentação interna (AI) e de argumentação externa (AE). A fim de os explicitar, convém destacar, segundo Carel (2012), que a TBS distingue duas maneiras de ligações entre um termo e os aspectos argumentativos que ele significa. Isso revela que essa distinção – que, segundo a autora, está relacionada ao estudo argumentativo das “frases sintáticas” – deve ocorrer em virtude de que o vínculo existente entre os enunciados e as entidades semânticas tanto pode ser interno como externo. Conforme Carel (2012, p. 39, grifo do autor, tradução nossa), uma frase como (5) Até mesmo Pedro, que é muito solitário, veio à inauguração. (même Pierre, qui est très solitaire, est venu à l’inauguration), pode ser estudada argumentativamente de duas maneiras. A primeira, que se interessa nas argumentações desenvolvidas no interior da própria frase, é capaz de explicitar que (6) Pedro é muito solitário mesmo assim veio à inauguração (Pierre est très solitaire pourtant il est venu à l’inauguration) revela a AI de (5). E a segunda, que se interessa pelas argumentações às quais a frase (5) pode integrar-se, é capaz de explicitar que (7) Até mesmo Pedro, que é muito solitário, veio à inauguração, portanto o diretor está contente (même Pierre, qui est très solitaire, est venu à l’inauguration donc le directeur est content) revela a AE de (5).

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Diante disso, conforme esclarecem Carel e Ducrot (2005, p. 65, tradução nossa), a argumentação externa de uma entidade linguística é constituída pelos encadeamentos argumentativos que chegam à entidade ou que partem dela. Partindo da palavra prudente, por exemplo, encontram-se encadeamentos como (8) Pedro é prudente, portanto não terá acidentes (Pedro es prudente, por lo tanto no tendrá accidentes) e (9) Pedro é prudente, portanto estará seguro (Pedro es prudente, por lo tanto estará seguro). Ademais, encontram-se formando a AE de prudente encadeamentos que chegam até prudente, como é o caso de (10) Tem medo, portanto é prudente (Tiene miedo, por lo tanto es prudente).

3. METODOLOGIA E ANÁLISE DO CORPUS Revisados os conceitos da TBS essenciais aos propósitos deste trabalho, saliente-se que a metodologia utilizada na análise dos textos que compõem a proposta de redação do Enem 2011 – corpus de análise neste trabalho – constou em evocar, inicialmente, as unidades semânticas básicas, isto é, os encadeamentos argumentativos em DC ou em PT que os resumem e em associar a cada um deles o aspecto argumentativo do bloco semântico que expressam. Em seguida, encontrou-se a ideia central de cada texto que constitui a proposta e, por fim, a ideia central da proposta. É importante salientar, primeiramente, que, em virtude de a proposta de dissertação ter sido estabilizada como um gênero, segundo notado por Graeff e Gomes (2012), ela apresenta uma estrutura relativamente estável de enunciados; e, portanto, no Enem, normalmente inicia com instruções ao estudante, relativas ao gênero em que deverá desenvolver sua redação – dissertativo-argumentativo – ao estilo de linguagem a ser utilizado no discurso – a norma culta da língua portuguesa – e ao tema a ser abordado – Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado. Segue, abaixo, o primeiro texto da proposta, intitulado Liberdade sem fio. Leia-se: A ONU acaba de declarar o acesso à rede um direito fundamental do ser humano – assim como saúde, moradia e educação. No mundo todo, pessoas começam a abrir seus sinais privados de wi-fi, organizações e governos se mobilizam para expandir a rede para espaços públicos e regiões aonde ela ainda não chega, com acesso livre e gratuito. ROSA, G.; SANTOS, P. Galileu. Nº 240, jul. 2011 (fragmento).

Desse discurso evoca-se, de início, o encadeamento argumentativo normativo [A ONU declara que o acesso à rede é direito fundamental, portanto pessoas, organizações e governos se mobilizam para expandir a rede a todos, com acesso livre e gratuito] ao qual se associa o aspecto argumentativo SER DIREITO FUNDAMENTAL DC TER GARANTIA DE ACESSO LIVRE E GRATUITO, que constitui a argumentação interna de liberdade de acesso, cuja expressão está diretamente relacionada ao título do texto. Nessa direção, o conteúdo argumentativo do texto em foco, filtrado pela subjetividade dos estudantes, poderia servir-lhes como ponto de partida de sua redação e, fundamentalmente, deveria perpassar seus projetos de texto. Abaixo, apresenta-se o segundo texto da proposta, intitulado A internet tem ouvidos e memória. Confira-se nos cinco trechos a seguir: Trecho 1: Uma pesquisa da consultoria Forrester Research revela que, nos Estados Unidos, a população já passou mais tempo conectada à internet do que em frente à televisão. Os hábitos estão mudando. No Brasil, as pessoas já gastam cerca de 20% de seu tempo on-line em redes sociais. É importante observar que a organização semântico-argumentativa desse primeiro trecho organiza-se em torno da argumentação interna (AI) de mudança de hábitos, constituída pelo aspecto argumentativo FAZIA X PT NEG-FAZ MAIS, à qual, de acordo com Graeff (2012), os enunciados [Uma pesquisa da consultoria Forrester Research revela que, nos Estados Unidos, a

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população já passou mais tempo conectada à internet do que em frente à televisão] e [No Brasil, as pessoas já gastam cerca de 20% de seu tempo on-line em redes sociais] conectam-se pelo processo de similaridade, visto que ambos funcionam como exemplos e, portanto, reiteram a AI de mudança de hábitos. Em razão disso, conforme Graeff (2007), a propósito do encadeamento argumentativo e do encapsulamento anafórico, verifica-se que o enunciado Os hábitos estão mudando funciona como um “encapsulamento anafórico” do enunciado que o antecede e do que o segue, uma vez que a relação que existe entre eles é sinonímica do ponto de vista argumentativo. Trecho 2: A grande maioria dos internautas (72%, de acordo com o Ibope Mídia) pretende criar, acessar e manter um perfil em rede. O julgamento argumentativo desse trecho é constituído pelo encadeamento argumentativo normativo [ser internauta, portanto criar, acessar e manter um perfil em rede] e pelo aspecto argumentativo nele expresso, SER INTERNAUTA DC TER IDENTIDADE, que constitui uma AE de internauta. Trecho 3: “Faz parte da própria socialização do indivíduo do século XXI estar numa rede social. Não estar equivale a não ter uma identidade ou um número de telefone no passado”, acredita Alessandro Barbosa Lima, CEO da e.Life, empresa de monitoração e análise de mídias. Interessante observar que esse trecho explicita um par de encadeamentos argumentativos normativos cujos aspectos do bloco semântico mantêm entre si relação de reciprocidade. O primeiro encadeamento, [estar numa rede social, portanto ter participação social], tem como aspecto expresso ESTAR EM REDE DC TER IDENTIDADE SOCIAL e o segundo, [não estar numa rede social, portanto não ter uma identidade ou um número de telefone no passado], possui como aspecto NEG-ESTAR EM REDE DC NEG-TER IDENTIDADE SOCIAL, recíproco do anterior. Essa ocorrência merece destaque, pois, conforme Ducrot (1990, p. 131), a propósito da análise de enunciados negativos, um enunciado como Se fizeres as tarefas te darei um bombom, dito por um pai a seu filho, terá como subentendido “se não fizeres as tarefas, não terás o bombom”. Desse modo, caso o filho optasse por não fazer as tarefas e o pai, apesar disso, resolvesse dar-lhe o bombom, o filho entenderia que o pai não foi coerente com o que prometera e que, portanto, o enunciado proferido por ele fora totalmente desnecessário, já que, de todos os modos, decidiu dar-lhe um bombom. Trecho 4: As redes sociais são ótimas para disseminar ideias, tornar alguém popular e também arruinar reputações. Um dos maiores desafios dos usuários de internet é saber ponderar o que se publica nela. Desse trecho, pode-se evocar o encadeamento argumentativo [as redes sociais disseminam ideias para o bem e para o mal, portanto exigem cuidado com o que é publicado], cujo aspecto expresso é TUDO É PÚBLICO NAS REDES SOCIAIS DC PRECAUÇÃO COM O QUE SE PUBLICA, que constitui uma AI de prudência em rede. Por haver o acréscimo de uma nova AI no texto, note-se que a conexão existente entre os enunciados desse quarto trecho com os que constituem o terceiro trecho ocorre pelo processo de contiguidade. Trecho 5: Especialistas recomendam que não se deve publicar o que não se fala em público, pois a internet é um ambiente social e, ao contrário do que se pensa, a rede não acoberta anonimato, uma vez que mesmo quem se esconde atrás de um pseudônimo pode ser rastreado e identificado. Aqueles que, por impulso, se exaltam e cometem gafes podem pagar caro. Desse trecho, que constitui um argumento por autoridade, evoca-se o encadeamento argumentativo normativo [não se fala em público, portanto não se fala na rede] cujo aspecto nele

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expresso, NEG-DIZÍVEL EM PÚBLICO DC NEG-DIZÍVEL EM REDE, corresponde à AI de conteúdo privado. Na sequência do discurso, evoca-se o encadeamento [é ambiente social, mesmo assim não acoberta o anonimato], que, de acordo com o que propõe Graeff (2012), conecta-se por similaridade ao encadeamento seguinte, [esconder-se atrás de um pseudônimo, mesmo assim ser rastreado e identificado], uma vez que ambos têm o mesmo aspecto expresso, É AMBIENTE PÚBLICO PT SER IDENTIFICADO, que constitui a argumentação interna (AI) de inexistência de anonimato. Notadamente, esse último aspecto argumentativo relaciona a ideia de que quanto maior o espaço social maior o anonimato. Fala-se de anonimato em cidades grandes em contraposição à responsabilidade numa cidade pequena. A internet tem cidadãos do mundo que deveriam ser completamente anônimos, mas, ao contrário, não há anonimato em rede, podendo-se, por conseguinte, ter um “avatar” a qualquer momento. Por fim, o encadeamento argumentativo que esse trecho permite evocar é [exaltar-se, portanto sofrer consequências], cujo aspecto expresso, DIZER O QUE NEG-DIRIA EM PÚBLICO DC SOFRER CONSEQUÊNCIAS, constitui a AI contextual de justiça. Diante disso, chega-se à conclusão de que a ideia central desse segundo texto, que também compreende o conteúdo argumentativo do primeiro, pode ser resumida no aspecto argumentativo único, TER GARANTIA DE ACESSO À REDE PT NEG-SER LIVRE PARA PUBLICAR O QUE QUISER, o qual está diretamente relacionado ao tema da proposta de redação. Destaque-se que ele é transgressivo, posto que explicita uma exceção de TER GARANTIA DE ACESSO À REDE DC SER LIVRE PARA PUBLICAR O QUE QUISER. Analisados os dois primeiros textos, contendo apenas linguagem verbal, confira-se, a seguir, o último texto da proposta, o qual relaciona linguagem verbal e não verbal: Figura 10: Quadrinhos dos anos 10

Fonte: figura retirada da proposta de redação do Enem 2011, em cujo texto explicita-se a seguinte referência: DAHMER, A. Disponível em: http:// malvados.wordpress.com. Acesso em: 30 jun. 2011.

Trecho 1: Malditas câmeras, somos monitorados o tempo todo! O encadeamento argumentativo que esse trecho permite evocar é [há câmeras em todo lugar, portanto ser monitorado o tempo todo], cujo aspecto expresso é HAVER CÂMERAS EM TODA PARTE DC SER SEMPRE MONITORADO, que constitui a AI de Sociedade do Controle. Observe-se que a AI de malditas, nesse trecho, é constituída pelo aspecto argumentativo NEG-DEVERIA HAVER CÂMERAS PT HÁ.

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Trecho 2: Se você está me ouvindo, saiba que podemos lutar contra a Sociedade do Controle juntos! Da análise semântico-argumentativa dos enunciados desse segundo trecho do texto resultam dois aspectos argumentativos neles expressos: o primeiro, SE OUVIR DC SABER [QUE PODE LUTAR CONTRA O CONTROLE], constitui uma AI de cidadania, e o segundo, HÁ SOCIEDADE DO CONTROLE DC LUTAR CONTRA O CONTROLE, constitui uma AE de Sociedade do Controle. Trecho 3: Apenas linguagem não verbal Observe-se que esse terceiro trecho, contendo apenas linguagem não verbal, permite evocar o encadeamento argumentativo transgressivo, [monitorar, mesmo assim ser monitorado], ao qual se pode associar o aspecto argumentativo, já relacionado no primeiro trecho, no qual se constitui a AI de Sociedade do Controle: HAVER CÂMERAS EM TODA PARTE DC SER SEMPRE MONITORADO. Desse modo, verifica-se que esse terceiro quadrinho da tira tem a função de exemplificar, por meio de imagens, o funcionamento da Sociedade do Controle, explicitando que até mesmo quem monitora é monitorado. Portanto, de acordo com o que propôs (GRAEFF, 2012), pode-se dizer que esse trecho conecta-se aos anteriores pelo processo de similaridade, permitindo que fosse colocada, entre o segundo e o terceiro quadrinho, a expressão por exemplo. Nessa direção, o sentido desse terceiro quadrinho, contendo apenas linguagem não verbal, é garantido pela linguagem verbal – igualmente notado por Graeff e Gomes (2014)3, a propósito do estudo da relação entre linguagem verbal e não verbal em tiras pela semântica argumentativa. Diante do exposto, é possível afirmar que a ideia central desse último texto que compõe a proposta de redação pode ser resumida no aspecto argumentativo HAVER CÂMERAS EM TODA PARTE DC SER MONITORADO, visto que explicita o próprio sentido de Sociedade do Controle. Entretanto, é importante que se observe, aqui, o acréscimo de um novo tema à proposta de redação, uma vez que o tema Viver em rede no século XXI: os limites entre o público e o privado já está delimitado ao âmbito da internet, mais especificamente das redes sociais. Logo, não pode ter relação direta com o tema Sociedade do Controle. Em realidade, o que os dois podem apresentar em comum é apenas o assunto a que pertencem. Ambos poderiam se conectar, por exemplo, num assunto como Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTICS). Acredita-se, em razão disso, que os alunos poderiam apresentar dificuldade em relacionar e, sobretudo, em articular esse último texto aos dois anteriores, dentro dos padrões do texto dissertativo-argumentativo, sem tangenciar ou até mesmo fugir ao tema proposto. Por fim, destaque-se que a ideia central da proposta de redação pode ser resumida no aspecto argumentativo transgressivo TER LIBERDADE ILIMITADA DE INTERAÇÃO PT TER DE LIMITAR O QUE PUBLICA, cujo bloco semântico relaciona [liberdade ilimitada de interação] a [limite do que se publica em rede].

4. CONCLUSÃO Encontrada a ideia central da proposta de redação, podem-se definir os conceitos de entendimento, tangenciamento e fuga de tema, essenciais para a avaliação de desempenhos em leitura. Nessa perspectiva, entender o tema significa explicitar os dois predicados que constituem o aspecto argumentativo da ideia central da proposta; tangenciar o tema significa explicitar, no texto, ape Este trabalho, intitulado A relação semântica entre linguagem verbal e não verbal em tiras com base na semântica argumentativa, de autoria de Telisa Furlanetto Graeff e Lauro Gomes, foi apresentado no II Seminário de Estudos sobre Discurso e Argumentação (II SEDiAr), promovido pela Faculdade de Letras da UFMG. Como ainda não foi publicado em periódico, não consta nas referências deste trabalho.

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nas um dos predicados dessa ideia central e fugir do tema significa não explicitar nenhum dos dois predicados que constituem a ideia central da proposta. Tendo-se os referidos conceitos bem estabelecidos, pode-se assegurar uma avaliação qualificada dos desempenhos do participante em leitura e na constituição da coerência linguístico-discursiva. Assim sendo, levar as ferramentas de análise linguístico-discursiva, postas à disposição pela semântica argumentativa, pode favorecer o trabalho com redação na escola, visto que, como se apresentou neste trabalho, além de poder ensinar procedimentos de leitura de propostas, como as do Enem, o professor também conseguirá garantir aos estudantes uma avaliação mais justa de seus desempenhos de leitura e de escrita, porque ele próprio terá mais clareza no estabelecimento dos critérios de identificação, tangenciamento e fuga da ideia central da proposta4.

REFERÊNCIAS CAREL, Marion. Vers une formalisation de la Théorie de l’Argumentation Dans la Langue. Thèse de Doctorat Nouveau Régime, EHESS, 1992. ______. Pourtant: argumentation by exception. Journal of Pragmatics, v.24, p. 167-188, 1995. ______. Introduction. In: CAREL, M. (Org.). Argumentation et polyphonie: de Saint Augustin à Robbe-Grillet. Paris: L’Harmattan, 2012. p. 7-58. ______; DUCROT, Oswald. La semántica argumentativa: una introducción a la teoría de los bloques semánticos. Tradução: María Marta Negroni e Alfredo M. Lescano. Buenos Aires: Colihue, 2005. DUCROT, Oswald. Polifonía y Argumentación. Conferencias del Seminario Teoría de la Argumentación y Análisis del Discurso. Cali: Universidad del Valle, 1990. GOMES, Lauro. Avaliação de leitura e produção de textos dissertativo-argumentativos pela teoria da Argumentação na Língua. 2014. 123 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, UPF, Passo Fundo, 2014. GRAEFF, Telisa Furlanetto. Encadeamento argumentativo e encapsulamento anafórico. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 42, n. 2, p. 191-200, jun, 2007. ______. A conexão entre os enunciados no texto com base na semântica argumentativa. Desenredo, v. 8, n.2, p. 197-208, jul./dez, 2012. ______; GOMES, Lauro. De prática discursiva a um novo gênero: proposta de redação. In: IV Seminário Nacional de Língua e Literatura: Teoria e Prática – Diálogos em Discursos. Anais, Passo Fundo: UPF, 2012. p. 1-10. INEP, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A redação no Enem 2012: Guia do Participante. Brasília, INEP/MEC, 2012. ______. A redação no Enem 2013: Guia do Participante. Brasília, INEP/MEC, 2013.

Vejam-se, em Gomes (2014, p. 94-108), exemplos das três situações de desempenhos em leitura.

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LINGUAGEM E NARRAÇÃO HISTÓRICA A PARTIR DO DIÁLOGO SOFISTA DE PLATÃO Lucas Josias Marin* (UCS)

1. INTRODUÇÃO A linguagem deve ser entendida como um sistema de códigos e símbolos que tem como objetivo informar. Através da linguagem qualificamos o ser. Colocamos nele características (RIBEIRO, 2006). Isto ocorre por diferentes meios, sejam escritos, verbais ou pictóricos. A história da educação, como qualquer outra área da história, se vale dos registros de memória ainda preservados para analisar e debater seus objetos de estudo. No entanto, deve-se levar em consideração que estes registros históricos estão imersos em uma conjectura, isto é, eles não estão desprendidos das pessoas que os produziram nem do momento em que foram elaborados. Esta situação faz com que possa haver mais de uma interpretação possível dos dados e mais de uma forma de os analisar e narrar. Assim, “a ideia de verdade que ainda parece resistir e persistir como crença, além de mutante, múltipla e efêmera, é ora aquela que construímos, ora aquela que testemunhamos a sua construção.” (BENEDIKT, 2007, p. 73) Portanto, a noção de verdade será o foco deste trabalho, além de discorrer sobre a narração histórica, levando em consideração a multiplicidade de formas de entrar em contato com o acontecido e como relata-lo. Para tanto, como referencial para a discussão, serão utilizados os conceitos de Platão no diálogo Sofista.

2. NARRAÇÃO HISTÓRICA O passado deu a possibilidade de criação do presente. Para tanto, analisar os fatos já ocorridos é uma maneira de melhor compreendermos a situação em que nos encontramos atualmente (ARANHA, 1996). Neste sentido, “a história é o exercício da memória realizado para compreender o presente e para nele ler as possibilidades do futuro, mesmo que seja de um futuro a construir, a escolher, a tornar possível” (CAMBI, 1999, p. 35). Qualquer pesquisa não consegue alcançar o patamar de neutralidade imposto à ciência pelo positivismo. A partir do momento em que o pesquisador escolhe um tema, o delimita, cria perguntas de pesquisa já está o fazendo por motivações pessoais. Além disso também há parcialidade na escolha do referencial de análise. Será que narrar a Guerra do Paraguai valendo-se do materialismo histórico terá o mesmo resultado se fosse feito através da história cultural? Neste sentido, narrar uma história é criar uma história, é um processo de invenção do passado, é uma interpretação de um ponto de vista. Não é um relato do real, do exato, mas sim uma ficção (BURKE, 1992; CERTEAU, 1982, 2005). Frente a esta situação, observo que a alternativa para superar a total ficção na narração histórica é especializar-se. Ao invés de explicar o todo, com a pretensão de verdade e universalidade,

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Mestrando em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Caxias do Sul, Brasil. Graduado em Psicologia, Universidade de Caxias do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]

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busca-se explicar o fato, a partir da percepção e dos documentos acessíveis. Saindo de um relato histórico1 para uma narração histórica2 (PESAVENTO, 2004). Contar histórias é reviver algo já conhecido e já feito (CERTEAU, 2005). Narrar uma história é ler as pistas deixadas por algo ou alguém. Porém, somente observando com o máximo de detalhes, é possível estruturar uma narração mais precisa, no entanto, a história do que de fato ocorreu é inatingível (GINZBURG, 2003). As informações coletadas são parte de um todo, não representam a totalidade e, da mesma maneira que a psicologia da Gestalt indica, o todo não é a mera soma das partes. Portanto cada indício, cada dado, cada pista tem a sua verdade e sua particularidade. Desta maneira merecendo cuidado e atenção por menor que pareça ser a importância que essa informação inicialmente forneça. No mesmo sentido que a Alegoria da Caverna de Platão, o historiador não tem acesso a verdade. Ele somente consegue observar as marcas e vestígios que são deixados sobre o mundo. Assim, procura-se entender a realidade histórica através dos registros e narrações. No mesmo caminho segue o terapeuta, ele tenta entender / conhecer seu paciente a partir do discurso e comportamento. Por ser produto da simbolização humana, a história pode adquirir sentidos e significados diferentes para cada indivíduo. Assim, “tudo o que hoje acontece terá, no futuro, várias versões narrativas” (PESAVENTO, 2004, p. 16). No entanto, as representações não são impostas como verdades, elas são aceitas. Precisam de coerência para serem merecedoras de credibilidade Desta maneira, o discurso gera percepções e não fatos, pois é uma narração e não descrição (CERTEAU, 2005). Assim, “o homem ‘reconstrói’ a história a partir do seu presente, a cada novo fato o faz reinterpretar a experiência passada” (ARANHA, 1996, p. 17).

3. PLATÃO E A LINGUAGEM EM O SOFISTA Ao discorrer este diálogo, Platão debate sobre a forma como os sofistas entendem o que é discurso e aproveita a situação para expor suas concepções acerca do tema. Ele entende que seja um enunciado de algo, formado por nomes e verbos. Nomes designam o sujeito e verbo a ação. Assim demonstra o devir, o passado, a formação das coisas, ou seja, um discurso não somente nomeia as coisas, muito mais que isso, ele discorre sobre elas, as expressa, as expõe, as relata (PLATÃO, 1972). Também deve-se levar em consideração que discurso e pensamento são a mesma coisa, porém, este último caracteriza-se por ser um diálogo consigo mesmo, interior (SILVA, 2001; PLATÃO, 1972). Primeiramente temos uma opinião, a partir dela, em conjunto com a sensação, criamos a imaginação. Como não controlamos totalmente nossas sensações, podemos criar imaginações falsas. Desta maneira, podem ser criados os discursos falsos (PLATÃO, 1972). O discurso nasce da combinação das formas. Se tudo fosse separado e parado, nada haveria. Algumas ideias podem se combinar com outras ideias, assim se formam as palavras e frases. O que define quais podem ser combinadas é o significado que elas geram, ou seja, se elas expressam significância (RIBEIRO, 2006). Por isto, um discurso pode ser qualificado como verdadeiro ou falso. Verdadeiro quando discorre sobre o ser e falso quando discorre tendo o não-ser como conteúdo (PLATÃO, 1972). O ser é tudo ao mesmo tempo. O ser é o resultado dos extremos, do diferente. O ser é o resultado. Porém nem tudo pode resultar em combinação. Há coisas combináveis e há coisas incombináveis (PLATÃO, 1972). O que limita a união, como dito anteriormente, é a capacidade de gerar sentido. Essa possibilidade de gerar sentido é possível através da dialética, através da comparação profunda de cada um Entendo por relato uma produção que tem por objetivo descrever o que ocorreu, sempre em busca da maior objetividade e veracidade. Entendo por narrativa uma produção a partir de uma percepção, não necessariamente preocupada com a verdade.

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dos itens. Isto só é possível a aquele que é virtuoso, ou seja, aquele que conhece a filosofia (PLATÃO, 1972). O filósofo não tem acesso a verdade, porém chega mais próximo a ela. Distancia-se do falso, portanto, utilizando-se da ética e ferramentas pedagógicas busca a formação ideal do homem através das fábulas (MEDEIROS, 1994). O acontecido é, é ser. O texto é, também é ser. Porém quando o texto se refere ao acontecido não há ser, o texto não é. Eles não se associam criando um discurso de verdade, eles somente se aproximam criando um discurso de verossimilhança. O discurso deve ser entendido como uma representação e apenas imitação da realidade, não sendo a própria realidade. Esta imitação pode ser realizada por pessoas que conhecem o objeto e por pessoas que não conhecem o objeto original. Quem conhece tem mais chance de se aproximar da verossimilhança, enquanto quem não conhece fica mais próximo ao simulacro. O primeiro se vale da mimética sábia e o segundo da doxo-mimética (PLATÃO, 1972; RIBEIRO, 2006). Assim, quanto mais longe do modelo inicial, mais imperfeita e incompleta é a cópia (MEDEIROS, 1994). A mimética tem dois entendimentos, o primeiro como cópia, se caracteriza quando se mantem as proporções e a estrutura da forma original e; o simulacro, o qual tem por base a simulação da cópia, ou seja, é uma adaptação do original (PLATÃO, 1972; RIBEIRO, 2006). Neste sentido, o simulacro pode representar o não-ser, pois seria o falso. Porém ao afirmar o falso ele se torna ser, ao menos no nível do texto. Desta maneira ele passa a existir, mesmo não sendo verdadeiro (PLATÃO, 1972). Assim, um discurso falso não nega o Ser, apenas afirma o que ele não é. Mesmo falso ele tem significado, pois foi formulado com uma combinação adequada de nomes e verbos (RIBEIRO, 2006). Acredita-se que esta argumentação de a possibilidade da criação de uma narrativa ficcional, mesmo não tendo completa relação com o acontecimento, ela se torna uma versão. A comunicação escrita não produz algo concreto, apenas virtual, pois não se tem acesso a Ideia a partir da linguagem. Ela não é perene, não é perfeita, não consegue mostrar a essência das coisas. A linguagem é uma cópia da percepção que temos do mundo. Esta também entendida como uma cópia do nível das Ideais (MEDEIROS,1994). As palavras têm poder, pois operam mudanças nas pessoas. Através da educação, a linguagem “deixará de ser endemoniada para alinhar-se, com a música e a ginástica, na Paideia visando a formação do bom cidadão.” (MEDEIROS,1994, p. 30), isto é, a linguagem é também responsável pela formação do bom cidadão. Platão argumenta que um método utilizado no ensino é a repreensão, porém não tem muita eficácia, pois quem é repreendido é ignorante e não sabe como se deve agir antes de agir. O que possui melhores resultados é a argumentação e refutação, pois estas desarmam o indivíduo, mostram que o que ele pensa saber é, por vezes, sem sentido. Este método tem por princípio de mudança a própria percepção do indivíduo. Muito embora criticados e rechaçados pelos filósofos, quem se faz valer deste último método são os sofistas (PLATÃO, 1972). Para superar a ignorância e ir em direção a razão, a arte mais apropriada é o ensino. Ensino se refere a virtudes enquanto educação se refere a aprendizagem das profissões (PLATÃO, 1972).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, a linguagem é vista como a responsável por enunciar o verdadeiro e o falso, ou seja, cria a concepção de verdadeiro e falso. Além disto, a linguagem está mais próxima da doxa, isto é, da crença e um pouco mais distante da episteme, da ciência.

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Para se conhecer, a linguagem tem papel secundário. Conhecemos as coisas pelo pensamento / ideias. Enquanto a linguagem desvirtua o pensamento, pois ela é limitada e, por vezes, ambígua. Não deve ser entendida como um meio de conhecer, mas sim um meio de expressão. Isto ocorre, pois, o discurso linguístico gera ambiguidades, palavras podem ser interpretadas de diferentes maneiras, inclusive analisando a mesma situação. Entendo que a percepção seja responsável por gerar esta situação. Criamos concepções de mundo, ou seja, o imaginário e, a partir dele, entendemos e interpretamos o mundo. Entendo o imaginário como “um sistema de ideias e imagens de representação coletiva que os homens, em todas as épocas, construíram para si, dando sentido ao mundo” (PESAVENTO, 2004, p. 43). Assim, o imaginário é o conjunto das representações de um determinado grupo em um determinado tempo. Esta percepção é muito importante para o historiador, seja no momento em que está escrevendo sua síntese, ou analisando um documento, ou quando são utilizadas narrativas orais como fonte de pesquisa. Pois o relato do personagem é verdadeiro para ele mesmo, dentro de um determinado contexto temporal, não importa se os dados indiquem outra coisa. Isto ocorre pois nós nos baseamos em representações do mundo. Representação é o “processo de construção mental da realidade, produtor de coesão social e de legitimidade a uma ordem instituída, por meio de ideias, imagens e práticas adotadas de significados que os homens elaboravam para si.” (PESAVENTO, 2004, p. 24), em outras palavras, é um processo de simbolização. Acredito que a realidade não é algo objetivo, ela está sempre vinculada ao discurso do sujeito, ou seja, ela é representada pela linguagem (CHARTIER, 1994). Assim, a linguagem é o meio de interpretação da realidade, ou ao menos, o que se crê por realidade. Esta linguagem, pode ser entendida como linguagem oral, escrita, símbolos ou quaisquer outras formas de enunciação. Para se evitar cair em generalizações ou em algum tipo de interpretação contaminada, tem-se utilizado a descrição densa. Ela é uma tentativa de descrever o máximo possível os sinais observados. Assim, a partir da reunião destes sinais, começa-se a organiza-los de maneira que criem uma nova possibilidade de interpretação. A intenção, com isto, é conseguir chegar nos significados não aparentes das coisas. Para tanto, não há primazia pela teoria para justificar os fatos, mas sim os fatos tentando justificar os fatos através da observação acurada do pesquisador (LEVI, 1992).

REFERÊNCIAS ARANHA, M. L. de A. História da educação. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1996. BENEDIKT, A. A. Nem tudo é verdade: o outro lado da imagem digital. Alceu, v. 7, n. 14, p. 70-85, jan./jun. 2007 BURKE, P. (Trabalho original publicado em 1991). A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: ______. (Org.) A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992, p. 327-348. CAMBI, F. (Trabalho original publicado em 1995). História da pedagogia. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: UNESP, 1999. CERTEAU, M. (Trabalho original publicado em 1975). A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CERTEAU, M. (Trabalho original publicado em 1990). A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2005. CHARTIER, R. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 97-113, 1994.

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GINZBURG, C. (Trabalho original publicado em 1986). Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução de Federico Carotti. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. LEVI, G. (Trabalho original publicado em 1991). Sobre a micro-história. In: BURKE, P. (Org.) A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1992, p. 133-161. MEDEIROS, P. T. C. Aquém do ser, além do falso: em torno do problema da linguagem em Platão. Informação & Sociedade: Estudos, v. 4, n. 1, p. 22-33, jan./dez. 1994. PESAVENTO, S. J. História & História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. PLATÃO. Diálogos: O banquete; Fédon; Sofista; Político. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1972. (Os Pensadores). Tradução de Jorge Paleikat e Joao Cruz Costa. RIBEIRO, A. A. A filosofia da linguagem em Platão. 2006. 143 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Porto Alegre. 2006. Disponível em: < http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/3507/1/000345370-Texto%2bCompleto-0. pdf >. Acesso em: 3 jul. 2015. SILVA, M. F. de A.  Platão e os fundamentos da linguagem. Caderno de Atas da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF), n. 1, p. 167-173, 2001.

LINGUAGEM VERBAL E NÃO VERBAL EMPREGADA NO DISCURSO POLÍTICO: UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS UTILIZADAS PELOS CANDIDATOS DURANTE A PROPAGANDA ELEITORAL Margarete Maria Soares Bin* (UPF) Tania Mariza Kuchenbecker Rösing** (UPF)

1. INTRODUÇÃO Ter e manter uma boa imagem é um fator preponderante para um candidato que almeja um cargo público. Quando se deseja convencer os eleitores para o voto, os pretendentes não medem esforços para chamar a atenção, na busca do que melhor agrada, conquista ou escandaliza. O objetivo deve ser alcançado mesmo que isso dependa de uma transformação perante a tela. Eis que a televisão se torna o alvo essencial nesse processo, mesmo que hoje haja a propaganda eleitoral pela internet, mesmo que muitos eleitores escutem a propaganda pela rádio, ainda é a televisão que abrange um número maior de eleitores, unindo a linguagem verbal e não verbal nesse processo. O discurso apresentado nela pode ser essencial para que o candidato tente ser aceito pela população, bem como suas propostas sejam apresentadas como legítimas. Segundo Bourdieu (2004) o que dá poder às palavras é a crença na legitimidade delas ou daquele que as pronuncia. É preciso, então, considerar que em política dizer é fazer, quer dizer, fazer crer, que se pode fazer o que se diz. Para que a promessa adquira estatuto de verdade passível de crença, irá depender, dentre outros fatores, da autoridade de quem está pronunciando, de sua capacidade de fazer crer na veracidade e autoridade. A partir disso, é necessário ressaltar que a questão fundamental passa a ser a violência simbólica que se apresenta. O conceito de violência simbólica foi criado por Pierre Bourdieu (2004) para descrever o processo pelo qual a classe dominante impõe sua cultura aos dominados. A manutenção dessa cultura e a busca para emitir um discurso legítimo torna-se essencial e para isso os candidatos a cargos eletivos se utilizam de diversas estratégias de persuasão, sendo que algumas delas serão investigadas neste trabalho. A razão pela qual o candidato lança mão de todas as armas para conquistar os eleitores está no fato de ganhar a eleição ou seu partido obter mais votos. Percebe-se, então, que quando bem elaboradas, essas estratégias se tornam o fator decisivo de uma campanha. A função da violência simbólica é fazer o eleitor aceitar o que o candidato impõe, considerando este como emissor legítimo de um discurso e também o próprio eleitor se imbuindo do que seja ele próprio, a sociedade e também a política. Diante dessa afirmação convém salientar que a questão que se pretende estudar neste trabalho é: Qual a importância da linguagem verbal e não verbal no discurso do candidato? Perante a questão acima se pode formular a seguinte hipótese: A linguagem verbal e não verbal é utilizada como estratégia de persuasão a fim de conquistar o voto dos eleitores. Acrescenta-se que há um longo caminho a percorrer até que se consolidem as bases para o entendimento da violência simbólica e se perceba sua presença na política, especialmente na propaganda eleitoral.

Mestre em Letras pela UNIOESTE de Cascavel-PR, Aluna especial do Doutorado em Leitura e Formação do Leitor da UPF, Docente da Faculdade IDEAU de Passo Fundo dos Cursos de Medicina Veterinária, Agronomia, Psicologia, Administração e Educação Física. E-mail: [email protected]. ** Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. *

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2. A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA ENQUANTO MANIPULAÇÃO DE ELEITORES As características do discurso político para muitos líderes já estão bem delimitadas. Estes, colocam-se como mestres que levarão a nação há tempos melhores, articulando em seus discursos elementos da realidade local (tais como desemprego, corrupção, entre outros), fechando desta forma o círculo com o qual buscam fazer do povo sujeito assujeitado de seu discurso. O povo é constituído como aquele que quer as mudanças, que precisa ser doutrinado. Partindo-se do pressuposto de que o eleitor busca escolher seus candidatos da maneira mais racional possível, ou seja, maximizando seu “lucro” pessoal e social, o discurso político é um mecanismo para que o candidato se mostre como o melhor porta-voz. A aceitação deste discurso, concretizada no voto, nos leva a crer que os eleitores não só reconhecem os candidatos como autoridades, como legitimam o discurso recebido e interiorizado, aceitando a violência simbólica que é exercida pelo candidato. Percebe-se que a violência simbólica é estabelecida desde o instante em que se fundamenta a posição dos agentes pelos quais se dá o exercício da autoridade tendo como aliadas as mensagens, cujo veículo é a televisão. Esta convida a dramatização: põe em cena, em imagens um acontecimento e exagera-lhe a importância e o caráter dramático. Com as palavras ocorre o mesmo. O mundo da imagem é dominado pelas palavras. As palavras fazem coisas, criam fantasias, medos, representações falsas. Para Maria do Rosário Gregolin (2003), o corpo torna-se recurso central dessa linguagem de aparência que é a teatralização do político. Adotam-se estilo de vida cotidiana por meio do agenciamento da gestualidade. São as técnicas de comunicação de massa aplicadas ao discurso político que, homogeneizado, torna-se um produto de consumo. Assim, políticos oscilam entre heróis de novelas e mercadorias à venda. Ainda, tem-se uma linguagem cheia de ilusões, receitas e promessas e o candidato apresenta-se como sujeito infalível, aproveitando-se de todos os recursos. Dessa maneira, um fator importante da propaganda é formar uma visão positiva do candidato a fim de evitar desconfianças, garantindo os votos que tem e atingindo os votos futuros. Efetivamente, pode-se dizer que a propaganda eleitoral gratuita veiculada pela televisão, pelas características que impõe através da violência simbólica, transformou-se numa peça fundamental das eleições, influenciando na intenção do voto dos eleitores. Além disso, a propaganda eleitoral delimita os temas que serão tratados, assim, o eleitor não escolhe o assunto que estará em discussão (Agenda Política), por outro lado, esta não pode se furtar a tratar os temas que estão nesta mesma agenda. Com isso não há como negar as relações de poder que se fazem presentes nas mensagens veiculadas durante as propagandas eleitorais gratuitas na televisão, assim, é plausível afirmar, seguindo Foucault (1998) que os dispositivos de poder atuam com frequência nos discursos, nos mecanismos de controle exigidos para a manutenção de situações em cuja perpetuação haja interesse. As pessoas são influenciadas por esses engendramentos e mesmo que haja mudanças nos mecanismos, eles continuarão sempre a existir. Dentro dessa estrutura salienta-se que o discurso apresentado na televisão adquire uma grande importância: serve para reforçar ideias, direcionar opiniões, contrastar elementos, mascarar a realidade. Para que isso ocorra se utilizam de palavras estrategicamente pensadas a serem pronunciadas, empregam recursos sonoros, desenvolvem atitudes e comportamento diante das câmeras, contratando muitas vezes profissionais para organizarem sua campanha eleitoral na televisão a fim de tentarem persuadir o público pela imagem. O marketeiro, que é a pessoa responsável para organizar as campanhas eleitorais e pelas estratégias do jogo político, transforma um candidato. Tarefa difícil, pois a figura tem que se apresentar pronta durante a propaganda, sem muitas vezes ter condições para isso. É o caso dos candidatos que têm 30 segundos para falar, mas em vez de falarem

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trinta segundos, falam somente quinze segundos, devido a dificuldade de discursarem. Assim, o resto do tempo é preenchido com um texto falado por um locutor. E para aqueles minutos concedidos a fala, há todo um trabalho a ser feito desde questões de gramática até a postura diante das câmeras. Há que se acrescentar também a presença da montagem branca, sutil mecanismo de produção, a que Szpacenkopf (2003) se refere, na qual o candidato, bem como sua equipe de marketing, seleciona determinada luz, tomadas de ângulos e close. Pode-se perceber a presença da montagem branca nos programas eleitorais, em que se usa de mecanismos para sustentar credibilidade. A montagem branca está a serviço de tentar garantir que o eleitor não abandone o programa. Assim, o candidato, bem como toda a sua programação põe o olhar sobre fatos, oferece algo que foi decidido para ser olhado e com os ingredientes que visam a prender o olhar. Posto isso, cabe destacar a importância do poder simbólico de Bourdieu (2004) para a política. Segundo o autor este poder de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo é um poder que permite obter igualmente daquilo obtido pela força física e só se exerce se for rejeitado como arbitrário. Dessa maneira, quanto mais criativos os candidatos forem, melhor seu perfil será fixado pelos eleitores. Pode-se, então, comparar os candidatos a atores em representação num teatro. Emprega-se aqui, a metáfora teatral, para sinalizar o ritual presente na propaganda política. Foucault (1996) nos coloca que o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam e que no diálogo devem ocupar determinado tipo de posição e formular determinado tipo de enunciados. Assim, para que o ritual funcione e opere, primeiro é preciso que ele se apresente e seja percebido como legítimo. A legitimidade é operada pela televisão, pois na propaganda eleitoral a linguagem verbal e não verbal do ator social é imprescindível para influenciar o público na interpretação que se quer direcionar. Nesse sentido se pode destacar a estratégia. A palavra estratégia é empregada por Foucault (1996) para designar a escolha dos meios empregues para chegar a um fim; enfim, trata-se dos meios destinados a obter a vitória. As estratégias durante os programas eleitorais vão desde a postura de sedução, que busca transmitir segurança e confiança por meio de sua linguagem, entonação da voz, imagem até o olhar para os eleitores com quem fala, dominando o espetáculo e se constituindo em violência simbólica. Pode-se considerar então, que o campo político, pode ser percebido como lugar onde se estabelecem dominações, aceitam-se servidões, organizam-se resistências no jogo das representações. É uma violência exercida pela imposição dos que têm competência para exercer uma retórica política, com certa linguagem, concentrando nas mãos de poucos estas habilidades e impondo uma submissão aos demais. Partindo dessas estratégias da televisão, convém salientar que é de grande influência o discurso verbal e não verbal na persuasão dos eleitores, considerando a força que possui as mensagens veiculadas pela televisão para reorganizar todo o jogo político. Neste sentido a propaganda política torna-se manipulação, conduzindo o grupo ao qual exerce o poder. Para Pierre Lévy (1997) os meios de comunicação de massa, dentre eles a televisão seguem a linha cultural do universal totalizante iniciada pela escrita. Dado que a mensagem mediática será lida, ouvida, vista por milhares de pessoas, é composta de maneira que encontre o denominador comum mental de seus destinatários e seu alvo são os receptores. Por circular num espaço desprovido de interação, a mensagem mediática não pode explorar o contexto particular que envolve o receptor, ignora sua singularidade, suas aderências sociais, sua microcultura, seu momento e sua situação especial. Tal dispositivo, ao mesmo tempo redutor e conquistador, é que fabrica o “público” indiferenciado, a “massa” dos meios de comunicação de massa. Universalizante por vocação, a mídia totaliza sobre o atrativo emocional e cognitivo mais baixo, para o espetáculo contemporâneo, ou de maneira muito mais violenta, sobre a propaganda do partido único. Interagindo com os outros meios de comunicação, a televisão traz à tona um plano emocional de existência que reúne os membros da

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sociedade numa espécie de macrocontexto flutuante, sem memória e de rápida evolução. Os telespectadores, embora emocionalmente implicados na esfera do espetáculo, jamais são atores.   Efetivamente, pode-se dizer que a propaganda eleitoral gratuita veiculada pela televisão, pelas características que impõe através da violência simbólica, transformou-se numa peça fundamental das eleições, influenciando na intenção do voto dos eleitores. A questão então passa a ser: como se consegue este efeito sobre os eleitores, ou seja, de que maneira a linguagem verbal e não verbal é exercida na construção da vontade do eleitor? Com essa reflexão procura-se avançar na observação das estratégias discursivas, bem como persuasivas do horário eleitoral gratuito para deputados estaduais e de seus efeitos na transmissão de ideias. A partir daí, pretende-se tratar neste trabalho, dessa categoria de políticos que ao entrar em cena, apresenta estratégias mais marcadas, sejam elas explícitas ou implícitas. Estas estratégias utilizadas pelos candidatos são primordiais, muitas vezes, para ganhar o voto dos indecisos, conquistar os eleitores dos adversários e reforçar os seus simpatizantes.

3. ANÁLISE DA PROPAGANDA ELEITORAL DE ALGUNS CANDIDATOS A DEPUTADOS ESTADUAIS-2006 DO PARANÁ Procedeu-se a análise de alguns candidatos a deputados estaduais que oferecem maior material para análise e apresentam características marcadas, por este motivo se diferenciam um do outro. O primeiro candidato observado, ao iniciar seu programa, aparece em um cenário escuro com uma bandeira do Brasil de fundo, vestido de preto, com o rosto coberto, com roupas de ninja (kimono e faixa preta), dando golpes de karatê em três bonecos que estão parados e desmontando-os, sendo que cada um deles contém uma palavra: sanguessuga, mensalão, corrupção. Os bonecos são quebrados em três posições diferentes. Este processo lembra filmes de ação, o que é somado a uma música agitada e alegre, tal como nestes filmes acontece quando o super-herói passa a bater no vilão (Bem vencendo o Mal). Os bonecos apresentam-se bem vestidos e aparentam ter idade avançada, longa trajetória na política. Dos bolsos dos bonecos saem notas de dinheiro, tal como o personagem Deputado João Plenário do programa A Praça É Nossa. Esta estratégia mostra o uso do humor e da violência. A cena em que o candidato derruba os bonecos é muito rápida e também rapidamente ele tira o capuz, olha fixamente para a tela e com as mãos preparadas para uma luta enuncia: “É uma questão de atitude”. Esta mesma frase, tão presente nos manuais de autoajuda de hoje e que remete a este discurso aparece na tela aos eleitores. Pela rápida encenação do candidato acredita-se que constrói a imagem de político com coragem e destreza para derrubar os corruptos e utiliza-se da metáfora da força para demonstrar que tem competência para o ato. É esta a forma que o candidato utiliza para atrair a atenção do eleitor para si no curto tempo que dispõe. Este discurso do candidato tem uma característica bastante presente no discurso político. A saber: a tentativa de colocar-se como moralizador (o ninja que aniquila os corruptos). O eleitor pode ser entendido como aquele que tem atitude e quer romper com o status quo, fazendo isto através do voto no candidato. O nome e o número deste são anunciados logo após a quebra dos bonecos. Observa-se que o poder aparece na forma como o candidato se impõe na tela, marcando um lugar de destaque, pois ele sozinho consegue eliminar todo político inescrupuloso. Eis a ideologia de um partido correto, um candidato honesto que representa os eleitores a fim de defendê-los dos aproveitadores políticos, que não encobre falcatruas e denuncia as irregularidades. Uma “atitude” que tanto tempo pode estar sendo esperada pelo Paraná, que contempla em seu histórico fraudes que foram encobertas e consideradas normais, muitas vezes.

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Além disso, procura mostrar que será o porta-voz do povo quando necessitar denunciar aqueles que se aproveitam do cargo para proveito próprio. Outro candidato observado aparece vestido de palhaço, com roupas coloridas e está parado diante da tela, o humor é novamente aqui um recurso. O cenário apresenta cores apagadas, para se dar ênfase ao candidato. Expressão do rosto sorridente, o candidato fala: “Eu acredito.” O que está bem destacado na tela é o número do partido, o que chamou a atenção, pois é bem maior que o número do candidato e o seu apelido, o qual é relacionado com a sua apresentação. Supõe-se que se trata de um personagem desconhecido publicamente, então o interesse aqui poderia ser o encaminhamento para o voto ao partido (legenda) e não a pessoa do candidato, mostrando a ideologia de um partido que demonstra interesse em fazer com que o eleitor se familiarize mais com os ideais partidários do que com a pessoa do candidato, assim a função do eleitor seria apertar em dois números, talvez por ser mais fácil de gravar do que os cinco números do candidato a deputado. A figura do palhaço remete, muitas vezes, ao medo que está enraizado na sociedade e se cultiva nas crianças. Esta figura pode estar relacionada com a representação do político que é visto como o perverso que deixa o povo triste pelas suas atitudes, que amedronta quando aparece. O candidato, ao se posicionar de tal forma na tela, pode levar a entender que os eleitores são também uns palhaços, uma vez que assistem a tal programa/realidade/circo sem reagir e consequentemente são sujeitos assujeitados pelo discurso. Assim, “Eu, que sou palhaço, acredito em tudo o que está aí.” Nesse caso a significação de tal programa seria no sentido de: “Portanto, eleitor, não seja palhaço, vote no meu partido e mude” ou se poderia pensar também na seguinte construção: “Ô, seu palhaço, você vai votar neles de novo?” Além disso, ao pronunciar a frase “Eu acredito” pode-se fazer uma série de inferências sobre o significado a que remete, além das análises já feitas, principalmente a seguinte “eu acredito que o povo gosta de espetáculos”, por isso vou ganhar a eleição, porque me vesti dessa forma. Quer dizer o “ator” veste-se de forma engraçada, a plateia ri e ele tenta conseguir votos ao partido. Pode, também, estar refletindo a seriedade com que a população trata a política. Há um discurso que perpassa esse discurso aparentemente tranquilo. A ruptura aparece aqui não através da atitude violenta (golpes de karatê) contra a corrupção, mas na firme determinação de não ser palhaço e de não entender a política como palhaçada, e, portanto, votar no candidato ou no partido que assim propõe. Este tipo de porta-voz é proposto, numa forma diferente de chamar a atenção. Aparece, então, a ideologia de um partido que satiriza a política, diante de tanta palhaçada que se vê acontecendo no Legislativo. O poder se apresenta na supremacia do partido ao candidato, ao observar o destaque do número daquele em relação a esse. Pode-se, com isso, acreditar que este candidato foi apenas utilizado como uma imagem para destacar o partido. O próximo candidato já atuou no legislativo, não como deputado, mas como vereador: Candidato “Sou (apelido) do partido (nome do partido) número (diz o seu número). Surgi das camadas sociais mais discriminadas e sofridas do nosso país. Sou vereador pela 2ª vez em Corbélia e mostrei que tem jeito de fazer política diferente. Sou formado em direito e estou preparado para lutar por um Paraná melhor. Um abraço e a luta continua companheiros.” Candidato jovem, com cabelo longo, preto, camiseta preta com jaqueta de couro preta, usa cavanhaque, um estilo despojado. Quando diz “a luta continua companheiros” faz sinal de paz e amor com os dedos. Essas estratégias discursivas se apresentam de forma bastante sutil. No jogo de dizeres do discurso, há elementos de solidariedade, de carisma e de envolvimentos emocionais que podem induzir os eleitores ao uso daquelas imagens como ferramenta para a legitimação do candidato. Esses elementos são representados pelo visual, gestos, palavras marcantes.

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Mostrar-se como vítima do descaso social foi a estratégia escolhida para iniciar seu discurso. Recurso interessante quando se pretende um voto por caridade ou quando se quer propor a superação das enormes mazelas sociais brasileiras. A reflexão a que pode remeter aos eleitores está no fato de ter sido pobre, com uma vida difícil e ter superado tudo isso, ter estudado, hoje ser um advogado e ter conquistado por duas vezes os eleitores de um município buscando fazer especialmente este município sentir-se representado na Assembleia. Talvez o candidato faça parte de uma tribo, pela forma como se veste. Sua roupa traz em si o símbolo da juventude, da contestação. Acrescenta-se, que a forma escolhida para se apresentar, pode ser considerada uma junção de discriminação com rebeldia, uma mistura do discurso político com movimento hippie na forma de vestir-se e falar (a contestação às injustiças sociais e discriminações) e no gesto, ao fazer sinal do paz e amor (dois valores defendidos pelos mesmos) o qual remete aos anos 60-70, época de ditadura (tanto pode se referir a protestos como a ideia de conquista), ao mesmo tempo rock and roll (muitos rockeiros se vestem de preto). A fala do candidato é tranquila o que pode demonstrar segurança e facilidade em lidar com questões políticas, visto que já atua na área. Verifica-se as condições de produção do discurso ao observar a utilização da palavra “companheiros”, à qual remete a fala de Lula durante as propagandas eleitorais de 2006, o que gera o sentido de proximidade, familiaridade, já que o candidato pertence ao mesmo partido de Lula. Bem como a expressão “camadas sociais mais discriminadas e sofridas” remete ao discurso de Lula durante esta mesma eleição. Acrescenta-se também a expressão “tem jeito de fazer política diferente”, e por esse motivo mostra-se um político com discurso voltado aos menos favorecidos. Dessa forma, o candidato em análise pretende compactuar com grande parte da população que se considera integrante desse grupo. A tendência é a de fazer com que o eleitor se sinta representado nesse processo. O candidato procurou mostrar uma imagem de alguém que sofreu, porém, venceu na vida e assim vê os eleitores, como sujeitos que estão precisando de apoio para alcançarem o que almejam. Este apoio está nele, o candidato, que sentiu “na pele” esta situação e que seu discurso não é apenas um discurso vazio. O poder está relacionado com o fato de o candidato pertencer ao partido do presidente e já ter conquistado por duas vezes a câmara municipal. Essas foram algumas análises realizadas com o intuito de ilustrar as informações teóricas discutidas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscou-se apresentar por meio de algumas análises mais marcantes, um panorama geral de como está se encaminhando a propaganda política para deputados, o que se está priorizando e a violência simbólica atuando nas mensagens verbais e não verbais. O que se percebe é que estas se tornam o foco principal pelas quais se tenta a conquista dos eleitores. É por elas que se busca o retorno (voto) e principalmente em se tratando dos candidatos analisados, percebe-se a presente marcante tanto de uma como da outra. Diagnosticou-se que há grande preocupação por parte dos candidatos em serem aceitos pelos eleitores, já que são estes que definirão a eleição. Observou-se que o eleitor além de ser o centro de toda a estratégia que se articula para angariar o voto, é visto como sujeito que percebe e muitas vezes aceita a situação à qual a política se transformou, gosta e até participa dos espetáculos. Assim, tenta-se conquistá-los pelo humor, a aparência dos candidatos não pode ser desconsiderada, mesmo que na maioria das vezes não seja percebida como proposital pelos eleitores. E ainda, utilizam-se os movimentos do corpo, gestos e encenações. Também, outra alternativa recorrida pelos candidatos é aproximar-se das categorias trabalhistas por meio de propostas que vão ao encontro das necessidades essenciais que são reivindicadas ou apresentar-se como representante dessas prioridades.

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Pelo exposto nestas reflexões, destaca-se a presença da violência simbólica encontrada nas propagandas analisadas e que pretende confirmar a teoria apresentada na introdução do trabalho. Pela teoria e análise percebe-se o estabelecimento das características da propaganda política e a presença de um emissor com direito exclusivo de falar e de direcionar os conteúdos da agenda.

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil Ltda., 2004. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Trad. Laura Fragor de A. Sampaio. Ed. Layola, São Paulo, 1996. ______ Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1998. GREGOLIN M. R. (org). Discurso e Mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. LÉVY, Pierre.  O Universal Sem Totalidade, Essência Da Cybercultura–http://www.dhnet.org.br/direitos/direitosglobais/paradigmas/pierrelevy/universidade.html traduzido de Pierre Lévy: Cyberculture. Paris: Odile Jacob, 1997. SPACENKOPF, Maria Isabel Oliveira. O olhar do poder: A montagem branca e a violência no espetáculo telejornal. RJ, Civilização Brasileira, 2003.

FOTOGRAFIA DE FAMÍLIA: MEMÓRIA E IMAGINÁRIO Maria Goreti Baptista Betencourt* (UPF)

1. RETRATO DE FAMÍLIA A questão do retrato não é fato recente na historia do homem. Chama a atenção que em qualquer época, faz-se o registro visual do individuo com impressionante insistência. Conforme sinaliza Gombrich,(1985) pode-se constatar isso em épocas mais remotas como já na própria antiguidade egípcia no período de Aknaton, o faraó herege, cuja efígie, estranha de si próprio, contrasta com a beleza serena de sua esposa Nefertiti, mostrando direções que a arte assumiu além dos caminhos da representação simbólica das imagens enquanto atributos para o divino. A esse primeiro exemplo seguem-se outros na historia da arte, desde os retratos impressionantes dos romanos, mais tarde, do Renascimento até as representações com algum fundo irônico de Goya, por exemplo. Mesmo a arte moderna não deixou de explorar este tipo de representação aproximando as novas técnicas e estilos ao conceito especial que o artista também estava construindo. Portanto o “uso” do retrato persistiu, respeitando as novas variações e injunções articuladas pela arte moderna. A tentativa de representação da natureza encontra na arte seu mais impressionante instrumento de transporte. Embora nem sempre essa tentativa se vincule ao ser humano propriamente dito, há uma certa obsessão por parte do homem em conter, através de seus recursos disponíveis uma parte do mundo exterior que lhe interesse por uma ou outra razão. Sem procurar discutir aqui os motivos pelos quais as obras artísticas foram criadas, constata-se que a arte através dela e do artista, e num grau subsidiário o espectador procura transfigurar tanto o que vê como o que apercebe dentro de si. Porque, ao apropriar-se das coisas, a arte separa-se de sua função natural, conferindo-lhe, como se sabe desde kant, um fim em si.(HUYGHE,1985, p. 17)

O surgimento da fotografia, por volta de 1836, e seu desenvolvimento, após 1850 causaram uma sensação desagradável entre artistas e teóricos. Sontag faz referencia a essa questão quando diz: A fotografia entrou em cena como uma atividade arrogante que parecia usurpar e diminuir uma arte com créditos-a pintura. Para Baudelaire, a fotografia era o “inimigo mortal” da pintura. Mas com o tempo,negociaram-se tréguas e a fotografia foi considerada como a libertadora da pintura (SONTAG,1986, p.130)

Ou seja, com o advento da fotografia, teoricamente, libertava-se a pintura de suas amarras da representação fiel, podendo, portanto, prosseguir sua tarefa rumo a um trabalho mas “abstralizante”. Permitiu-se assim, que a fotografia e a pintura seguissem no processo paralelas, ainda que com propostas diversificadas. Na prática, contudo, não foi bem assim, pois os pintores nunca deixaram de imitar os efeitos realísticos da fotografia. Sontag (1986), afirma E a fotografia, longe de se confinar à representação realista deixando a abstração para os pintores, seguiu de perto e absorveu todas as conquistas anti naturalistas da pintura. Por outro lado, a experiência da fotografia como “registro da obra de arte” transformou-se na experiência visual por excelência, como é o caso do registro fotográfico da arte conceitual, como nas

Mestre em Comunicação e Semiótica, docente da FAC/UPF. [email protected]

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paisagens empacotadas de Christo, nas obras efêmeras e/ou exageradamente grandes. Além disso a maioria das obras de arte são conhecidas através do registro fotográfico. Convém lembrar que a fotografia, até pela sua praticidade, talvez tenha mesmo debilitado nossa experiência com a pintura. Mas isso é outro e profundo discurso que neste momento foge do objetivo inicial que é o de discutir a fotografia enquanto registro icônico de uma época e de um grupo determinado. Tanto o temor às imagens de vários grupos étnicos e religiosos, como as fobias ao retrato, da parte de indivíduos, provém da característica da imagem como duplos e/ou reflexos, usadas muitas vezes como substitutos no lugar da pessoa retratada. Ao trabalhar com a linguagem fotográfica como transmissão de um tipo de imagem, é possível passar para a compreensão desta linguagem algumas formas de transmissão (também metafóricas) das imagens oníricas, próximas da rede de configuração das lembranças. (LEITE, 1993, p.24)

O primeiro uso popular da fotografia estava relacionado com comemorações e realizações de indivíduos enquanto membros de uma família, bem como de outros grupos. Cada família, constrói, através da fotografia uma crônica de si mesma, uma série portátil de imagens que testemunha a sua coesão(...) A fotografia torna-se um rito familiar precisamente no momento em que nos países industrializados da Europa e da América, a própria instituição familiar começa a sofrer uma transformação radical. A medida que o núcleo familiar, unidade claustrofóbica, se afastava de um agregado familiar muito mais vasto, a fotografia surgia para recordar e restabelecer simbolicamente a precária continuidade e o progressivo desaparecimento da vida familiar. (LEITE,1993, p.18)

Sobre a questão da fotografia enquanto rito, enquanto marca simbólica e persistente na historia das famílias desde o século passado é que se pretende posicionar este estudo, uma vez que mesmo com o aparecimento de novos procedimentos tecnológicos com relação a captação de imagem, os mitos e rito relativos a família ainda persistem virtualmente intactos.

2. A FAMÍLIA NO FINAL DO SÉCULO XIX E INÍCIO DO SÉCULO XX A vida familiar europeia na virada do século XX delimitava bem a vida publica da vida privada, pensamento esse que já vinha se articulando após a Revolução Francesa. O pensamento francês sobre as famílias se apresenta particularmente rico no século XIX devido aos agudos problemas ligados a reconstrução politica, jurídica e social pós-revolucionaria. Os grandes pólos de reflexão são três: as fronteiras entre o publico e o privado, e as ideias de esferas, o conteúdo da sociedade civil, os papeis masculino e feminino. (PERROT, 1991,in Historias da vida Privada. Vol 4, p.95)

Os intelectuais da época pós revolucionaria da França mostravam-se interessados em defender a fronteira entre o publico e o privado a liberdade nos será tanto mais preciosa quanto mais exercício de nossos direitos políticos nos deixar tempo para dedicar a nossos interesses privados. Esta frase de Benjamim Constant registra bem o que os intelectuais preconizavam, ou seja, uma postura que perduraria durante o século XX, pelo menos mais intensamente nos primeiros sessenta anos, com relação a algumas evoluções familiares e também tecnologia. O século XIX presenciou a hegemonia paterna e a figura poderosa do pai de família, que domina desde a generosidade ao despotismo extremos. Nomes como Victor Hugo, Proudhon, Renan, Marx, acolheram a moral pós revolucionaria no bojo da burguesia. No final do século XIX, as relações familiares, pelo menos as de casal passaram por algumas transformações, não apenas pela inserção da mulher no mercado de trabalho, fato já corriqueiro entre o proletariado, mas pela questão de tanto homens quanto mulheres desejaram algo

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mais de suas relações afetivas que o simples contrato sobre gerar e criar filhos. O final do século XIX contudo, ocupa mais do que nunca o centro da família, embora segundo Michelle Perrot, o final do século presenciou uma redução da natalidade, especialmente na França, onde a criança recebe uma atenção até então não havida. É difícil, no entanto, detectar essa mesma situação no Brasil, principalmente no interior para onde vieram as famílias de imigrantes, visto que se observou nas fotografias recolhidas um grande numero de filhos. E o que Perrot certamente acentuou, em seu trabalho foram os novos rumos estabelecidos pela elite intelectualizada da Europa, realidade essa que não pode servir aos imigrantes os quais, mesmo que fossem procedentes da Europa, não estavam entre a florescente burguesia. A vida privada, o recolhimento tranquilo (ou quem sabe nem sempre) junto a família vem expresso nos retratos e nos escritos dos homens e mulheres que os viveram. Ainda nessa sequencia de pensamento Miriam Leite reitera que uma das formas de descrição das relações sociais é feita frequentemente em livros de viagem, esboços de desenhos e fotografias. Os relacionamentos de parentesco e convívio são de difícil percepção – ou quase invisíveis- também por constituírem uma área da vida privada, cujos hábitos apesa de reiterados e até repetitivos, devem ser mantidos ocultos ou, pelo menos, tratados com discrição especial (LEITE, 1993. P. 54)

A família do século XIX encontrava-se em situação contraditória conforme nos coloca Perrot, que por uma lado, vê nela um mecanismo regulador fundamental e, por outro entende-se que o progresso gera angustias, pressões e até rupturas. Desta forma o retrato de família, tentava localizar em bloco único um feliz grupo inquebrantável. É necessário estabelecer de alguma forma uma parâmetro para o que chamaríamos de cultura, afim de proporcionar um continente para a questão da família, no contexto da modernidade. Se por cultura, entendemos, conforme observa Anthony Smith apud Featherstone, 1994. Um modo coletivo de vida, ou um conjunto de crenças, estilos, valores e símbolos. Poderíamos conectar esse conceito com as questões da família, principalmente no que tange aos valores que foram anteriormente colocados e que expressam o significado do grupo de família em meio aos valores da comunidade na qual está inserida e em um espaço politico-econômico definido. O mundo do fim do século passado e inicio deste, estava passando por uma modificação, não apenas politica e que detonaria as grandes guerras mundiais, mas também de cunho simbólico Assim conforme foi abordado também as relações familiares passaram por processos de transformação, embora a identidade da família estivesse de certa forma vinculada a “estabilidade” do estado, conforme desejavam seus pensadores e governantes, viu-se que essa estabilidade era falsa, e que de uma “uma grande família”, com valores mais ou menos comuns, as famílias passam a pulverizar seus membros em grupos cada vez menores. A impressão que as fotografias de família deixam é que ao mesmo tempo em que as comunidades europeias, principalmente, reelaboravam novos conceitos para o que veio a ser a família moderna, muitas delas catapultavam parte de seus membros para a América, como que buscando um novo jardim do Éden, trazendo consigo seus mitos, valores e símbolos especiais, preservado assim parte do patrimônio cultural. De certa forma, o retrato do grupo familiar agregado, cheio de crianças, avós, parentes, denota isso, contudo: ...não se pode haver na pratica uma coisa como “cultura” e sim somente culturas históricas especificas que possuem conotações emocionais fortes para aqueles que compartilham de uma determinada cultura. Naturalmente, é possível inventar e até mesmo manufaturar tradições e utilidades para servirem a classes ou a interesses étnicos particulares. Entretanto, elas só sobreviverão e prosperarão como parte do repositório da cultura nacional, se puderem se tornar continuas, com um passado muito mais longo, de tal sorte que os membros desta comunidade suponham que as mesmas constituem sua herança.(FEATHERSTONE, 1994,p.191)

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3. A FUNÇÃO SOCIAL E SIMBÓLICA DO RETRATO A função social a função direta como diz Freund, 1995, faz parte do esforço da personalidade para afirmar-se e tomar consciência de si mesmo, e isto se estende ao retrato de família. A fotografia então, permita a democratização do retrato. As fotografias são, sem duvida, artefatos. Mas seu poder de atuação vem-lhes de também parecerem. Num mundo abarrotado de relíquias fotográficas, possuir o estatuto de objetos encontrados, fragmentos involuntárias do mundo. Desse modo, exploram simultaneamente o prestigio da arte e a magia do real são nuvens de fantasias e pastilhas de informação. (SONTAG, 1986, p. 130)

Sontag, por sua vez, coloca que a fotografia torna-se a quinta essência da arte das sociedades esbanjadoras e insatisfeitas. É instrumento da nova cultura de massa que nos Estados Unidos toma forma após a guerra civil e na Europa após a segunda guerra mundial. Muito embora os valores desse meio já estivessem estabelecidos nas classes abastadas desde meados do século XIX. Baudelaire in Sontag p.69, descreve melancolicamente que A sociedade imunda se deixou narcisisticamente fascinar por esse meio barato de propagar a aversão pela historia que se deve a Daguerre. A fotografia ou o desejo de reter a própria imagem e de seu clã está apenas nesse plano do narcisismo, mas está certamente, além da retenção apenas da juventude e, eventualmente da beleza. Os fotógrafos perceberam isso de uma forma muito completa com os estúdios-teatros, abarrotados de acessórios, cortinas, colunas, cadeiras, fato, alias, que não parece ter se modificado ao longo do tempo ao menos em essência. A pose invade a vida cotidiana, milhões de retratos inseridos cuidadosamente em álbuns, impõe normas gestuais, ensinam a olhar para o corpo, principalmente as mão, os gestos cenicamente estudados constituem essas novas imagens cotidianas. Corbin diz que o álbum de fotografia de família delimita a configuração da parentela e conforta o grupo frente a ameaça da evolução econômica. A foto de família renova a nostalgia por sua particularidade de rememoração, operando-se uma mudança das referencias da memoria familiar. Com a demanda da rainha Vitoria na Inglaterra que queria preservar a imagem-memoria de seus parentes houve um grande numero de encomendas por fotografias de defuntos em poses muitas vezes que lembravam um sujeito vivo. Os fotógrafos da época lançavam mão de recursos cênicos e de maquiagem para que de fato assim fosse. Este cenário certamente dava a família uma ilusão de perpetuação daquele sujeito vivo junto aos outros efetivamente vivos. E por outro lado lida com os conceitos simbólicos da morte e do desaparecimento. De toda forma a foto ajuda a manter viva a lembrança daquele sujeito e de algum jeito o carrega para a imortalidade. De uma maneira geral, a possessão simbólica de outra pessoa tende a canalizar os fluxos sentimentais, valoriza a relação visual em detrimento da relação orgânica, modifica as condições psicológicas da ausência. A foto dos defuntos atenua a angustia de sua perda e contribui para desarmar o remorso causado por seu desaparecimento. (CORBIN, IN HISTORIAS DA VIDA PRIVADA, 1991,p 426)

De acordo com Sontag, o primeiro uso popular da fotografia estava relacionado com as comemorações familiares, especialmente casamentos. Além disso, tornou-se uma habito as famílias fotografarem seus rebentos Cada família constrói atavés da sua fotografia uma crônica de si mesma, uma serie portátil de imagens que testemunha a sua coesão(...) a fotografia torna-se um rito familiar. (SONTAG,1986, p 18) A autora prossegue ainda, dizendo que nos países industrializados da Europa e da América, a própria instituição familiar começava a sofrer transformações, ou seja, quando este grupo hermético afastava-se de um agregado mais vasto.

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A fotografia surgia para recordar e restabelecer simbolicamente a precária continuidade e o progressivo desaparecimento da vida familiar. As fotografias são marcas fantasmáticas que permitem a presença simbólica dos parentes dispersos. (SONTAG,1986, p. 18)

Talvez essa razão de ser o senso de agregação ser mais visível nas fotos da família. Uma forma de preservação da identidade é o apelo á posteridade, as gerações futuras, sendo que esse apelo ao coletivo oferece garantias de lembrança. De certa forma o transplante de espaço sofrido pelos imigrantes e a passagem para a modernidade trazem consigo o fantasma da desintegração e o ritual da fotografia de família não deixa de ser o registro da preservação da memoria familiar e étnica. As vezes o que resta da família esta catalogado nos álbuns familiares e é interessante observar que, quando buscamos entender nosso proceder, voltamos para o passado para rastrear o que há lá que pode justificar o que aconteceu ali. E agora quando sentimos medo disparamos mas quando sentimos nostalgia fotografamos como afirma Sontag. 1986. Fotografar é participar da mortalidade, vulnerabilidade de uma pessoa ou de alguma coisa. A fotografia é uma testemunha imparcial da dissolução do tempo. Mesmo que nos pareça fatalista com ele Sontag nos remete ao cotidiano da fotografia de família. Logo no inicio da fotografia, no final do século passado, William Fox Talbot, assinalou a especial capacidade da câmera para registrar os estragos do tempo, Fox Talbot referia-se ao que ocorre em relação a edifícios e monumentos. Para nós os desgastes mais interessantes não são dos da pedra mas os da carne. Através da fotografia acompanhamos de modo mais intenso e perturbador a realidade do envelhecimento de uma pessoa. Ver uma velha fotografia nossa, de alguém que conhecemos, ou de uma personalidade muito fotografado é sentir antes de mais, como nós (ele, ela) éramos muito mais novos naquela época. A fotografia é o inventario da mortalidade, um toque de dedo já é suficiente para investir em momento de uma ironia póstuma. A fotografia mostra as pessoas irrefutavelmente ali e numa época especifica das suas vidas, agrupa pessoas e coisas que, um momento mais tarde já se dispersaram, transformaram e prosseguiram os seus destinos independentes (...) a fotografia afirma a inocência, a vulnerabilidade das vidas que se dirigem para a sua própria destruição, e essa ligação entre a fotografia e a morte assola todas as fotografias de pessoas. (SONTAG, 1986, p. 70)

Por outro lado, Jean Marie Schaeffer, evidencia a fotografia como um signo de recepção (embora não exclusivo) apresentando uma classificação interessante sobre a dinâmica receptiva da fotografia. De um dos segmentos, ele reserva o que chamou de imagem-recordação e a imagem-rememoração, para aclarar as relações entre o interpretante e o representamem. Diz o autor que quando folheia um álbum de fotografias de família de alguém, está contemplando imagens que são fotos-recordação, contudo para ele (observador), são testemunhos, visto que não provém da família de quem está olhando, mas não são redundantes em relação a própria historia o observador. A foto-recordação não visa apenas (talvez nem mesmo primordialmente) nos informar, fornecer indicações precisas sobre tais impregnantes, mas também ( e sobretudo) reativar nosso passado pessoal e familiar (SHAEFFER,1996, p. 79) De acordo com Shaeffer, muda-se de universo quando se passa da recordação ao testemunho, deixa-se o mundo privado pelo mundo publico. Portanto o que o autor enfatiza é que a imagem-recordação está de algum modo, contida na memoria do receptor, enquanto que a imagem-testemunho vem do exterior e liga-se a ele de maneira periférica, onde se encontra seu conhecimento mais ou menos heteróclito do mundo publico. O autor ainda reforça que a maior ou menor proximidade de uma imagem, ou seja a facilidade maior ou menor de introjeção depende essencialmente do universo perceptivo. Assim antes que seja informada pela imagem de algum dado que se desconhecia, é

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importante que se reconheça essa imagem, para isso é necessário que existam informações anteriores de quem, para quem eram as pessoas retratadas nas imagens. A questão da fotografia de família, nesse contexto, torna-se um ritual pelo qual todos passam e esse registro marca no tempo a estada desse grupo especifico em um lugar também especifico. Por outro lado a fotografia em si, atrai as questões ligadas ao devaneio e a memoria. Uma fotografia é simultaneamente uma pseudo presença e um signo de ausência. As fotografias, especialmente de pessoas, de paisagens distantes e cidades longínquas, de um passado irrecuperável, assim como uma lareira numa sala, são incitamentos ao devaneio (....) todos esses usos talismânicos da fotografia exprimem uma sensibilidade emotiva e implicitamente magica: são tentativas de alcançar ou possuir outra realidade. (SONTAG, 1986, p. 25)

A estrutura da fotografia de família, segue uma construção que remete ao sagrado no sentido de que todo o momento de sua criação não deixa de representar um ritual através do qual se fará a perpetuação daquele determinado grupo familiar. O que é essencialmente distante é o inacessível e a principal qualidade de uma imagem que serve ao culto é ser inacessível. Por sua própria natureza, ela é sempre distante por mais próxima que esteja. Ao contrario do que foi muitas vezes adiantado, acho que o valor cultural da imagem (tudo o que faz dela um objeto único, magico, participante no ritual de um culto tudo o que faz dela um objeto de crença mais do que a visão), encontra como se realizar no dispositivo fotográfico bem mais plenamente do que na maioria das outras formas de imagem. (DUBOIS 1994, p 311)

4. FOTOGRAFIA DE FAMÍLIA EM TEMPOS MODERNOS As fotografias do século XIX e inicio do século XX mostravam uma família claramente patriarcal com o privilegio da figura do pai ou avô, bem como a mãe a avó estes geralmente sentados e o restante da família em volta de pé, quando muito uma criança pequena no colo. Assim o objetivo dos retratos das famílias era confirmar uma imagem idealizada proclamando sua importância hierárquica e embelezando suas aparências.. embora as imagens não sejam exatamente da elite da época com é o caso das famílias imigrantes, o cuidado das pessoas com a aparência é sempre relevante. Os homens com ternos e gravatas e as mulheres em seus melhores vestidos e penteados, mesmo as crianças estão em seus trajes domingueiros. Os chefes de família, aparecem como verdadeiros patriarcas, figuras quase bíblicas em sua constituição, olhos que se fixam em um ponto diretos e firmes. A seriedade evidencia que este membro do tronco familiar gerou um clã e é sobre ele que pesa significativamente esse olhar seja ele masculino ou feminino. Aparecem alguns poucos sorrisos porque nesses grupos de fotografia do fim do século XIX e inicio do século XX. Duas podem ser as razões a pratica é o tempo que levava para se realizar o retrato, o modelo precisava ficar quieto e firme um certo tempo. O outro e mais relevante diz respeito a seriedade que este retrato tinha no imaginário desses sujeitos. No inicio, inclusive os retratos vinham em formato de carte de visite, apresentando uma moldura que derivava da impressão fotográfica sobre um papel cartão rígido e maior que a foto, pareando com o retrato a óleo que também é contido em uma moldura oferecendo um grau de importância ao sujeito representado. Mesmo os cenários muitas vezes lembravam a estrutura neoclássica com colunatas e cortinas, quando o retrato era feito em um estúdio. No entanto mesmo nas casas das famílias o cenário também era preparado para criar um aparato digno de glorificar de um jeito ou outro a família. Neste caso as mãos ganham relevância e são estudadamente colocadas. Depois da década de quarenta no século XX se observa que os sorrisos aumentam privilegiando este gesto em detrimento das mãos nas fotos mais antigas. Em todos os exemplos o que fica claro que ou o as fotografias em si ou o ato de realiza-las equivalia a um ritual que tinha um que de sagrado.

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Atualmente o ritual perdeu o impacto mais forte, isto ocorre por diversas razões e uma delas, talvez seja, o fato de a fotografia ter perdido a aura da dificuldade, ou seja, antes era preciso que houvesse um fotografo com todo o aparato e toda a liturgia da profissão para realizar um retrato. Hoje qualquer pessoa pode fazer isto, uma vez que a tecnologia para tal ficou democraticamente disponível a quem queira. Também com a fotografia digital a escolha de poses especificas se perde e se faz quantas fotos o usuário desejar. Assim a fotografia como um evento ritualístico em si perdeu o valor. Contudo o conteúdo da imagem continua tão significativa quanto quando foi criada a fotografia. (...) Enquanto as fotografia antigas completam a nossa imagem mental do passado, as fotografias de agora transformam o presente numa imagem mental, semelhante ao passado. As câmeras estabelecem uma relação dedutiva com o presente (a realidade é conhecida através das suas marcas) e proporcionam uma visão da experiência instantaneamente retroativa. (SONTAG, 1986, p.147).

REFERÊNCIAS CORBIN, Alain. In A Historia da Vida Privada Da revolução francesa a Primeira Guerra Mundial. (vol 3) São Paulo: Cia das Letras, 1991 DUBOIS, Philippe- O ato Fotografico. São Paulo: Papirus, 1994 FEATHERSTONE, Mike, org. Cultura Global, Nacionalismo, Globalizaçao e Modernidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1994. FREUND, Gisele. Fotografia e Sociedade. 2 ed. Lisboa: Comunicação e Linguagem, 1995. GOMBRICH. E. H A Historia da Arte. 4 ed. Rio De Janeiro: Zahar editores, 1985 HUYGUE, René. O Poder da Imagem. São Paulo: Martins Fontes, 1985. LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Familia. São Paulo: Edusp- Fapes, 1993. PERROT, Michelle (org) A Historia da Vida Privada Da revolução francesa a Primeira Guerra Mundial. (vol 3) São Paulo: Cia das Letras, 1991 SHAEFFER Jean- Marie. A Imagem Precária. São Paulo: Papirus, 1996. SONTAG Susan, Ensaios Sobre Fotografia. Lisboa: Don Quixote publicações,1986

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ANÁLISE DO DISCURSO E DISCURSO DRAMÁTICO: (DES)APROXIMAÇÕES Maria Thereza Veloso* (URI)

Falar sobre a Análise do Discurso (AD) de filiação francesa é falar sobre a linguagem, sobre o sujeito, sobre a história e a ideologia. Portanto, falar sobre a linguagem na perspectiva da AD é aludir a procedimentos de análise capazes de nos levar a entender melhor nossa relação com o mundo, confrontados que somos, pois, com a linguagem e, por meio dela, com outros sujeitos, ela sempre como instrumento estruturante dos sentidos que criamos e que nos vinculam como agentes e produtos da História. Tendo a AD como instrumental teórico-analítico e considerando que os sentidos (re)construídos permanentemente, há algum tempo meu foco de pesquisa está voltado às formas como o discurso que vaza pelos chamados bens culturais de uso massivo permanentemente gera sentidos e provoca deslocamentos. A propósito, em seu “Análise do Discurso – Princípios e procedimentos” (2015, p. 50), Orlandi já afirmou que a condição da linguagem é a incompletude, ou seja, nem sujeitos, nem sentidos estão prontos. Ao contrário, constituem-se e funcionam nos entremeios – da relação, da falta, do movimento, para usar palavras da mesma autora na página citada. Depois de haver analisado recortes de canções, aqui entendidas como conjunto de letras em ritmos melódicos característicos do RS, em que sobressaiu o discurso conservador presente nas letras musicadas; e depois de haver analisado recortes fílmico-imagéticos de uma obra cinematográfica de Pedro Almodóvar (Todo sobre mil madre), que me confrontou com um discurso transgressor, diametralmente oposto ao anterior, hoje estou voltada à análise do discurso da imagem/linguagem em movimento, mas sob outra forma de expressão, a dramática.

1. A IMAGEM NO CINEMA E NO TEATRO Na imagem do cinema, pelo movimento a um ritmo constante imprimido à projeção dos fotogramas – vinte e quatro por segundo -, a situação discursiva criada pela atuação dos atores adquire uma legitimidade simbólica simuladora de uma realidade que aparentemente acontece no momento mesmo da projeção cinematográfica. Essa similitude com uma situação discursiva real, atuando no imaginário da plateia, cria sentidos, induz e provoca gestos de interpretação, de identificação com o espectador. Em outras palavras, atua no subconsciente deste e acabará se refletindo na sua forma de ver e atuar no mundo. Essa verossimilhança possível do discurso fílmico-imagético com a realidade seria, no entanto, semelhante à provocada pelo discurso dramático? Tal como a canção dentro e fora dos festivais que movimentam plateias; semelhantemente ao cinema, que também atua no imaginário do público que acorre às salas de projeção, o teatro se insere entre os bens culturais de uso massivo, seja ele de acesso mais popular, como o teatro circense ou teatro de rua, ou aquele restrito às salas fechadas, aos palcos internos das casas de espetáculo. Portanto, como a Análise do Discurso de filiação francesa dialogaria com o discurso dramático e por qual viés o faria? De que forma seria possível apreender o já-lá que caracteriza o já-dito da teoria pecheutiana, especialmente se atentarmos para a pertinente observação de Derrida sobre a *

Doutora em Letras, pela Universidade Católica de Pelotas-UCPel. Docente do Departamento de Linguística, Letras e Artes, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões-URI/Brasil. E-mail: [email protected] / [email protected]

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irrepresentabilidade? Ao mencionar o irrepresentável no teatro, afirmou ele haver várias maneiras de pensá-lo. No ensaio “O Sacrifício”, incluído na obra “Pensar em não ver: escritos sobre a arte do visível”, escreveu ele (2012, p. 405): “A visibilidade é noturna, não se vê o diáfano, aquilo através do que se vê, aquilo que queima o visível. Há, contudo, uma outra maneira de pensar o irrepresentável, não simplesmente como o que, tornando possível a representação, não se apresenta, mas como o que está para ser excluído, marginalizado, censurado, reprimido ou recalcado. Não devemos nos esquecer que o reprimido (no sentido político) ou o censurado (no sentido do recalque inconsciente) sofre apenas um deslocamento tópico; a censura, no sentido psicanalítico do termo, não aniquila a memória, ela desloca de um lugar para outro, ela põe em reserva, metaforiza e metonimiza, mas não destrói.” Avaliar essa possibilidade de diálogo entre a Análise do Discurso e o discurso do teatro que se manifesta no e pelo corpo do ator, ao vivo, sobre o palco; pelo uso que faz da voz e pelos gestos, a cada nova apresentação aparentemente os mesmos e, no entanto, sempre novos – palavra e gesto –, eis a intenção que, a título ainda incipiente porque inicial, anima este trabalho. Ao se tomar o discurso cênico como uma combinação entre o verbal e o imagético-corporal em movimento, como seria possível, por exemplo, ler aspectos discursivos como ambiguidades, metáforas, deslizamentos, de modo a trazer à tona da superfície discursiva o já-lá que sustenta ideologicamente todo discurso como produção de determinada Formação Discursiva?

1.1. A LINGUAGEM IMAGÍSTICA NA REPRESENTAÇÃO TEATRAL Atentando-se para o fato de que, a cada apresentação cênica, a presença física dos atores sobre o palco e o seu diálogo direto e ao vivo com a plateia estarão sempre criando e recriando sentidos, certamente um percurso analítico se fará pelo uso de recursos que contemplem a forma linguístico-histórica, mas não só. Deverão envolver também a representação teatral, sem ficar apenas nas evidências que se produzem pela ideologia. Isso porque se deve considerar que o ator é seu corpo, e para compreendê-lo há que contemplá-lo em ação, em vida, como afirmam Greiner e Amorim em “Leituras do Corpo”. (2003, p. 120.) Pelo caráter de imagem total com que é compreendida da cena inicial à final, uma representação cênica, independentemente da finalidade com que tenha sido idealizada e materializada sobre o palco, por seu caráter sensorial e evocativo, será uma imagem-de-arte que criará tantos sentidos quantos forem os sujeitos com quem venha a dialogar. Nisso, pelo contexto imagístico-discursivo que cria e em que existe, à semelhança de um poema, de uma pintura, de uma sinfonia, a imagem em que, aos olhos da plateia, uma representação cênica existe como recriação de realidade, embora sendo uma forma sensorial, não será, enquanto tal, determinada em si mesma, mas sim em função de sua contribuição à constituição/veiculação de sentidos em dada formação discursiva. A exemplo do que afirma Peacock, de que A grande descoberta humana implícita na arte, e renovada em cada obra bem sucedida, é a de que o jogo das formas e da imagística pode ser levado a encarnar sentimentos e aspectos da experiência que são axiomaticamente profundos e não passíveis de expressão por outro modo (PEACOCK, 1968, p. 76.),

se transportada ao discurso das imagens e das palavras que sustenta a arte teatral sobre um palco, provoca, não apenas com relação aos atores, mas também à plateia, uma experiência sensível diversa daquela provocada pelo discurso da arte fílmica projetada em uma tela. Na representação teatral – pela presença física dos atores em cena – acontece uma espécie de comunhão entre a vida pulsante sobre o palco e vidas semelhantes que pulsam na plateia. Sendo ao mesmo tempo individual e grupal, o discurso que vaza em cada cena se torna supraindividual –

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dele participam uns e outros sujeitos, os atores e os espectadores – construindo sentidos diversos na interação verbal e gestual-simbólica que se vai delineando no espaço cênico, tal como uma metáfora de humanidade que transcende o individual e, ao fazê-lo, alcança o coletivo, não apenas ressoando, mas reverberando e se traduzindo em uma experiência discursivo-sensorial significante acontecida nos dois lados da quarta parede.

2. O DISCURSO DA/NA ARTE DRAMATÚRGICA Importa salientar aqui que, em termos de análise discursiva sob o viés pecheutiano, a abordagem com que se realizam estas, e se realizarão outras análises de textos teatrais, privilegia o teatro portador de objetivo político, ou em sentido amplo, objetivo social. Assim, embora sem menosprezar a forma com que se expressam os valores em jogo no discurso dramatúrgico, o olhar da analista se detém no texto que, portando o já-dito que o vincula a uma experiência criadora anterior que se ressignifica pelo uso da linguagem verbal “contaminada” pela exterioridade, conjuga igualmente a linguagem do corpo e, nisso, tece o simbólico da linguagem teatral, ou seja, a linguagem que age sobre a plateia a partir dos registros que compõem a cadeia significante na teoria lacaniana – o real, o simbólico e o imaginário. Pela concepção teórica que alicerça este estudo, o texto dramatúrgico em análise, resultante de um ato criador pré-discursivo, anterior ao ato criativo propriamente dito, ocupa o espaço que Lacan denominou como objeto ‘a’, no centro do Nó Borromeano, formado este por três círculos entrelaçados que representam, respectivamente, o Real, o Simbólico e o Inconsciente. O texto dramatúrgico que daí resulta determina como necessário, portanto, trazer à tona o seu papel social, considerando que é um operador de memória social, mas entendido diferentemente do sentido psicologista resultante da memória individual que lhe possa eventualmente ser atribuído, dos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória inscrita em práticas, e da memória construída pelo historiador, como lembra Michel Pêcheux (1999, p. 50).

2.1. TEATRO: LINGUAGEM IMAGÍSTICA DIRIGIDA AOS OLHOS E AOS OUVIDOS A linguagem teatral incorpora elementos de representação e de expressão; nasce da experiência e também a reflete, como se fora um espelho. Como se fora uma revivência, a linguagem dramatúrgica incorpora imagens visuais de cenários e de pessoas que dialogam em cena, que expressam emoções e sentimentos, conflituosos ou não, entrelaçando o figurativo e o expressivo de forma singular e característica dessa forma artística. Para existir o teatro como um discurso na acepção pecheutiana da palavra, ou seja, como criador de sentidos entre interlocutores, seja entre atores e plateia, seja entre atores em cena, é preciso que exista a ação, ou seja, situações e acontecimentos necessitam estar acompanhadas por tensões, mudanças inesperadas e um clímax, aspectos esses que tenham a ver com a existência de um significado, de uma proposição central, seja ela do caráter que for, que repercuta na assistência gerando um clima de reciprocidade de sentidos criados e/ou ressignificados. Essas características discursivas estão presentes em todo texto dramatúrgico, do mais simples ao mais complexo ou sofisticado, seja ele ritualístico, trágico ou cômico, conforme a estética dessa linguagem artística. Da forma mais ampla e generalista possível, uma peça teatral interessará às plateias pelo que possa oferecer ao olhar e ao ouvido do espectador, tanto pela habilidade do dramaturgo ao engendrar situações em que pontificam a palavra e o gesto, quanto à eloquência associada à naturalidade obtida pelo ator no ato de interpretar, atribuindo verossimilhança às cenas, granjeando-lhes a simpatia do espectador e o prazer e o interesse deste para acompanhar o desenrolar da peça.

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2.2. EXEMPLIFICANDO... Tomando-se o drama como exemplificação do afirmado até aqui, é oportuno lembrar o ponto de vista de Peacock (1968, p. 2013). Afirma ele que “No drama propriamente dito, a fórmula básica é a de que as pessoas tomam decisões e agem segundo estas, com consequências que envolvem outras pessoas, donde se seguem complicações e crises. (...) um passado e um futuro estão sempre implícitos nas cenas iniciais, o que em verdade também pode ser dito a respeito de qualquer outro momento subsequente da peça: isto constitui um aspecto essencial de um enredo ao qual tudo se liga em relação tensa por um curto espaço de tempo. Quando falamos de situações dramáticas falamos daquelas que nascem de personalidade humanas interligadas e suas circunstâncias (...). Um dos efeitos mais marcantes e poderosos do drama (em contraposição à narrativa ou ao filme) nasce do fato dele apresentar um grupo de pessoas, simultaneamente presentes no palco, assim reunidas pelo braço do destino.” É perceptível, no texto de Peacock, a possibilidade do diálogo entre o discurso dramatúrgico e os fundamentos teóricos que sedimentam a AD como instrumental de análise. Ao afirmar que Quando falamos de situações dramáticas falamos daquelas que nascem de personalidade humanas interligadas e suas circunstâncias, o estudioso está de alguma maneira remetendo à existência do sujeito do discurso, ao discurso, à exterioridade que o constitui. Tomemos como exemplo de discurso dramatúrgico de forte teor social, e consequente perceptível empatia com a plateia, a peça Esperando Godot, de Samuel Beckett. A propósito, é importante salientar que, remetendo à solidão e ao absurdo da vida, os textos dramatúrgicos de Beckett, se considerados externamente, remetem ao teatro naturalista. Embora não tenha sido um realista, as personagens do dramaturgo irlandês estão imersas em um realismo comum, do dia a dia, condição que as aproxima discursivamente de uma formação discursiva com a qual os espectadores acabam por identificar-se e também se angustiem com o que veem no palco. Esperando Godot, texto surgido em 1953, garantiu a Beckett uma importante repercussão para além da Irlanda, seu país natal. Tendo por tema uma chegada que não acontece, o cenário é simples e despretensioso – no primeiro ato, apenas uma árvore sem folhas, no centro. As personagens inicialmente apresentadas à plateia são dois vagabundos, Vladimir e Estragon, que se encontram após uma noite de separação e acabam por iniciar um diálogo sobre o calor, o chapéu e a miséria de cada um. Eles conversam e assim matam o tempo, enquanto esperam Godot, personagem que não será identificada ao longo da peça, mas a quem devem esperar. Nada há a fazer além de esperar Godot e, às vezes, conviver com o espantalho do suicídio. Haveria possibilidade do enforcamento na árvore, mas um morreria e o outro ficaria imerso na solidão, mal maior do que o de esperar sem qualquer perspectiva por alguém que não chega. Que relação estabeleceriam com Godot, é a pergunta que se fazem. Vladimir imagina essa relação como uma esperança, Estragon a vê como uma dúvida. Outras duas personagens também entrarão em cena – Pozzo e Lucky, patrão e empregado/escravo que aceita passivamente a autoridade do primeiro. Quando esta última dupla que chegou se afasta, o foco da ação outra vez se voltará para Vladimir e Estragon, ambos recaindo no marasmo inicial. Um rapaz, que entra em cena na sequência, traz um recado de Godot: sem poder vir nesse dia, certamente virá no seguinte. Cai a noite e Vladimir e Estragon se separam. Está concluído o primeiro ato. Virá o segundo, agora com a árvore coberta de folhas, com o retorno das personagens presentes no primeiro ato e na mesma situação angustiante de esperar por Godot, que não chega, mas envia outra vez seu mensageiro justificando sua ausência. Nada se altera no segundo ato, como não se alterara no primeiro. O discurso do vazio que circunda as personagens é o mesmo. Prevalece a solidão, o vazio da condição humana e uma vaga esperança de salvação que se materializa na espera por Godot.

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3. A TÍTULO DE (IN)CONCLUSÃO... Tem-se claro, portanto, que o tema de Esperando Godot é a espera. Essa, a espera, é o acontecimento discursivo que, sem ter acontecido diante do espectador, por isso mesmo se torna um acontecimento discursivo operado no silêncio significante, no sentido que escolhe “não se dizer”. No aparente sem sentido de uma situação discursiva pautada pela ausência, tem-se a geração de outros sentidos: o não-dito, o não-acontecido, o esperado, mas não chegado, são reprises dos múltiplos movimentos de um silêncio que reatualiza simbolicamente a história da humanidade como uma evidência, um gesto de interpretação possível, eis que remete a sentidos novos, não apenas ao que traduz a inércia da espera como óbito da esperança, mas à vida permanentemente sem resposta às incertezas cotidianas; remete a um contínuo movimento de espera pelo que há de vir, simbolizado discursivamente na imagística dramática de Esperando Godot pela árvore que renova sua folhagem a cada estação. Além desses outros sentidos antes elencados, o discurso dramatúrgico de Beckett remete igualmente à definição lacaniana de sujeito como baseado na noção de vazio, como se fora ele, sujeito, um conjunto vazio. O fundante do sujeito é o significante, que “tem força ôntica extraindo do real a existência que assinala e anula. O que ele forja, entretanto, não possui nenhum sentido substancial ou material” (FINK, 1988, p. 75). No caso das personagens de Beckett, elas se estruturam no vazio de uma espera que ao mesmo tempo assinala e anula. Ao desejar a vinda de Godot, Vladimir e Estragon são, simultaneamente, assinalados, presentificados, significantes. São sujeitos de fala, provindos de dois espaços – o eu ou self e o Outro, este segundo espaço sendo originário de um outro, que não é o eu, que é localizável de alguma maneira e que Freud chamou de inconsciente, ou discurso do Outro, segundo o próprio Freud (FINK, 1988, p. 20). Note-se ainda que, ao mesmo tempo, como seres de palavra, as duas personagens são anuladas pela ausência do que esperam, mas não alcançam. Há uma espécie de vazio que não é suprido. Uma palavra, um discurso que de alguma forma e de/em algum lugar os precedeu, também os sucederá, indefinidamente. É o Outro da linguagem, ou como linguagem. Esse Outro como linguagem incompleta é o esperado, ansiado pelas personagens beckettianas em Esperando Godot. Elas vivem não por si mesmas, mas pelo que esperam. Esse esperar é que lhes permite estar sendo. No palco, com a linguagem mutante que se (re)expressa pela fala e pela voz do corpo em movimento a cada cena, Godot continuará sendo o Outro, o objeto do desejo, o esperado que (re)existe na tensão entre o imaginário e incompletude e a opacidade do Outro como linguagem - refluindo permanentemente, ultrapassando limites e expectativas.

REFERÊNCIAS DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012. FINK, Bruce. O sujeito lacaniano: entre a linguagem e o gozo. Trad. de Maria de Lourdes Duarte Setter. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. GREINER, Christine; AMORIM, Claudia (Orgs.). Leituras do corpo. São Paulo: Annablume, 2003. ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015. PEACOCK, Ronald. Formas da literatura dramática. Trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre. Papel da memória. Trad. de José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.

A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM EM ARISTÓTELES E SUA RELAÇÃO COM OS ASPECTOS COTIDIANOS DA SALA DE AULA Mariana P. B. Dalsotto* (UCS)

Aristóteles, em seu texto Retórica, apresenta a comunicação como função primordial da linguagem. Sua concepção de linguagem diz respeito ao uso da palavra, preocupando-se com a forma mais adequada para o interlocutor dirigir-se ao ouvinte. A preocupação com a palavra e sua função comunicativa é a arte do bem falar. O autor comenta que devemos estar atentos à forma de expressão do que queremos dizer e apresenta alguns aspectos sobre como expor o assunto de forma conveniente. Aqui, buscaremos fazer interagir algumas ideias de Aristóteles expressas em seu texto com alguns aspectos da prática em sala de aula, com o objetivo de discutir as práticas observadas em muitas salas de aula atualmente. Para introduzir a temática, será feita uma introdução sobre a concepção geral de Aristóteles sobre linguagem, seguindo com aspectos que tratam o livro III do texto acima referido para, num terceiro tópico fazer uma relação com a prática educativa. Para isso, Além do próprio autor e seu texto já citado, fundamentaremos este artigo através de alguns comentadores como Höffe (2008) e Neves (1981), além de utilizar o dicionário de Abagnano (2007) para auxiliar na conceituação de alguns termos considerados importantes. Para Aristóteles, o único animal que possui o dom da fala é o homem. Este animal racional e social, que possui sentimentos sobre as qualidades morais, tem a linguagem de forma inata, e dada para que ele possa atingir sua excelência, lhe possibilitando ser político. O discurso retórico, para Aristóteles tem uma função prática que diz respeito a este caráter político. Por isso ele dá importância ao emprego da fala, à elevação e conveniência dos estilos, à adequação do estilo ao gênero do discurso, etc. Isto deve ser feito observando o efeito que o discurso terá aos que o ouvem, com o objetivo de fazê-lo cumprir sua finalidade. Neste texto, comentaremos sobre a concepção de linguagem de Aristóteles remetendo-a ao seu texto Retórica. A Retórica, segundo Höffe (2008, p. 35), “é um tipo de ciência auxiliar da ética e da política; ela objetiva não o mero convencimento, mas também pode contribuir para a eupraxia, para o bem agir”. A retórica, visando a práxis política, apresenta o discurso civil, fazendo observações quanto ao efeito do discurso e quanto à sua finalidade, pois “aproxima-se da ética e da política porque o orador quer influenciar decisões e, nesse sentido, ela perfaz uma parte da práxis política. Além disso, ela não quer convencer, mas servir ao fim último tanto da práxis quanto da política, a felicidade” (HÖFFE, 2008, p. 64). Ou seja, a preocupação de Aristóteles na Retórica é com o discurso que é levado em conta nos momentos de ação do homem enquanto ser político (que tem como objetivo último a felicidade). A retórica também se preocupa com seus ouvintes e isto, se dá pelo fato de não apresentar-se como conversa e sim como discurso, no qual não tem retorno imediato dos ouvintes, mas precisa possibilitar o entendimento da fala, pois almeja influenciá-los para posterior ação. Segundo Höffe (2008), para que o discurso atinja seus objetivos, sendo comprometido com o verossímil1, são necessários alguns elementos como: o caráter do orador, sua capacidade de despertar paixões e seus argu Pedagoga, Mestranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] Verossímil: “O que é semelhante à verdade, sem ter a pretensão de ser verdadeiro (no sentido, p. ex., de representar um fato ou um conjunto de fatos). Portanto, uma narrativa, seja um romance ou uma tragédia, pode ser V. sem ser minimamente provável (…) Nesse sentido, foi constante o emprego do conceito de V. na estética, a partir de Aristóteles. ‘narrar coisas efetivamente acontecidas’ — dizia Aristóteles — ‘não é tarefa do poeta; dele seria a tarefa de representar o que poderia acontecer, as coisas possíveis segundei verossimilhança ou necessidade’ (Poet., 9, 1451 a 36). Nesse sentido, V. é o caráter de enunciados, teorias e expressões que não contradigam as regras da possibilidade lógica ou as das possibilidades teóricas ou humanas.” (ABAGNANO, 2007, p. 1000).

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mentos. No caso dos argumentos, enfatiza que estão para o uso na retórica os meios argumentativos da indução e dedução. Sendo assim, ela se coloca como um dos modos de apresentação do saber, da racionalidade humana, diferentemente dos animais que não possuem este ‚logos2‘. Neves (1981) aponta que a linguagem é natural no homem por sua natureza de animal racional e sua finalidade política. Neste sentido, aponta que, para Aristóteles A linguagem está no homem suscitada pela sua vocação de animal político e operada pela sua natureza, a fim de que essa vocação se possa cumprir. Só a voz articulada, a palavra humana, tem um sentido, o qual é dado pela faculdade exclusivamente humana de distinguir o bem do mal, o justo do injusto, isto é, pela condição de animal político que é característica do homem. (NEVES, 1981, p. 58)

No mesmo viés, Aristóteles relaciona “a razão e a sua articulação, a linguagem e o seu sentido” (HÖFFE, 2008, p. 162) e entende o homem através do logos, onde este expõe o homem como o que ele é e porque o é, sendo sua tarefa apresentar a verdade. A linguagem assim serve principalmente à educação para que, a partir dela, também sirva “para fins pragmáticos, sociopolíticos e morais” (HÖFFE, 2008, p. 164). Em seu texto, Aristóteles apresenta o discurso nos gêneros do discurso político, o discurso festivo e o discurso de tribunal, dedicando-se à pragmática3 linguística. Trata no livro III sobre o estilo e a estruturação do discurso. Aristóteles exige clareza, amabilidade e também originalidade; ele fala sobre erros de estilo, pureza de linguagem (hellênismos), espírito (asteia) e acentua a diferença entre exposição oral e escrita. Dedica uma atenção especial ao uso transferido da palavra, à metáfora (por exemplo, Rhet. III 2, 4, 6 e 10-11; ver também Poet. 21). Na metáfora, trata-se de uma comparação encurtada e refinada até a identificação. Aristóteles salienta o poder de produção de conhecimento. (HÖFFE, 2008, p. 62).

Sobre a Retórica, e principalmente o livro III, apresentaremos a seguir uma breve explicação de alguns pontos importantes para, posteriormente, podermos relacionar com a educação e sua prática em sala de aula. É importante expressar que entendemos que esta não é a única forma de discurso que deve existir neste ambiente, por ser necessário a interação entre as pessoas para que possa haver a construção de aprendizagem.

LINGUAGEM E SUA FUNÇÃO COMUNICACIONAL Buscaremos agora apresentar alguns aspectos mais específicos sobre o livro III da Retórica de Aristóteles. Para Höffe, este livro, tem uma “origem decerto independente” (2008, p. 62) do restante da Retórica e faz referência a um tipo de texto específico, o discurso, a enunciação. Para Aristóteles, um dos cuidados que devemos ter quando estamos anunciando algo é com a clareza. Esta é fundamental, pois ao ter clareza, o enunciado atingirá sua função essencial que é comunicar algo de maneira adequada, harmoniosa, de modo correto, não unicamente de acordo com a gramática. A clareza é “a maior virtude do discurso retórico” (ARISTÓTELES, p. 246, 2005). Há dois estilos de expressão enunciativa: o estilo poético e a prosa (ambos devem ser expresas com harmonia, de forma adequada). No estilo poético busca-se ornamentar a fala, causando admiração para que a fala pareça mais agradável, porém, sem a preocupação com aproximar a fala ao público que está ouvindo, pelo contrário, o afastamento torna-a mais solene, sendo necessário a utilização de uma linguagem não familiar. Sua condição essencial é o ritmo, os estímulos emotivos e não o trato de coisas necessariamente acontecidas. O cuidado também se torna necessário ao observar Logos: “A razão enquanto V- substância ou causa do mundo; (…) o Saber, o Eu, a Imagem, cujo fundamento é a vida divina.” ABAGNANO, Nicola. (2007, p. 631). 3 Pragmática: Uma das partes da semiótica (v.), mais precisamente a que compreende o conjunto de investigações que têm por objeto a relação dos signos com os intérpretes, ou seja, a situação em que o signo é usado. 2

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quem a pronunciará, e o assunto a ser tratado (não sendo trivial, nem pronunciado por alguém que a sociedade é descrente). Já na prosa, deve haver maior naturalidade na fala, a utilização de palavras que simples, utilizando o termo de acordo com o assunto, que deve ser cotidiano e não apresentar tantos recursos como a poesia. Porém, a metáfora pode ser utilizada para produzir clareza. O discurso, forma de expressão comunicativa, que tem como estilo de expressão a prosa, será mais detalhadamente comentado para poder ser relacionado com o discurso em sala de aula. Para o discurso, os termos utilizados devem ser simples, próprios do conteúdo e apropriados para o ouvinte, no contexto em que se encontram. Além destes termos, a metáfora4 também pode ser utilizada no discurso para expressar os conteúdos e para que o texto tenha clareza. Esta analogia, poderá dar mais prestígio ou desprestigiar o que é dito pois, por meio de sua utilização o sentido do texto pode ser alterado. Para a utilização de metáforas deve-se perceber se elas são ou não adequadas para compor o texto em questão e produzi-lo de maneira mais bela. Ainda sobre metáfora, Aristóteles comenta que devem ser utilizadas para auxiliar na compreensão do que está sendo dito, causando relação de semelhança entre as coisas, sendo elas iguais ou mesmo diferentes. Outro aspecto importante diz respeito ao estilo do texto. Ao pensarmos que o discurso deve apresentar uma linguagem simples, não é necessário apresentar palavras compostas, glosas (comentários ou observações desfavoráveis), epítetos extensos ou inoportunos5 nem metáforas inapropriadas (sendo elas cômicas ou trágicas). Outro apontamento do autor tema deste texto, diz respeito ao uso de símiles que é um elemento poético e, por isso não deve ser usado na prosa. Traz ainda que na expressão enunciativa é básico falar corretamente e, para isso, é necessária a correção gramatical. Esta acontece na medida em que são colocadas corretamente no texto as partículas coordenativas que organizam os elementos do texto, em que são utilizados termos específicos do assunto ao qual se refere, não causar dubiedade de sentido, distinguir o gênero das palavras e empregar corretamente o plural. É preciso, portanto, que a escrita do discurso seja legível e pronunciável, para que ao ser pronunciado seja claro, sem erros de gramática (pois, a clareza é a virtude da expressão anunciativa). No texto, Aristóteles também coloca a questão da adequação do estilo do discurso ao assunto a ser tratado, pois é necessário ter analogia entre o que será falado e a maneira de falá-lo. O uso do estilo apropriado, com a adequação da voz ao conteúdo abordado, torna o assunto convincente. É necessário para isso que o discurso tenha um ritmo conveniente para sua fala, não sendo métrico, nem desprovido de ritmo. Ainda sobre a forma de escrita do discurso, Aristóteles aponta para a atenção na construção de suas frases: o estilo pode ser contínuo ou periódico. O contínuo não é mais utilizado por que se torna cansativo e desagradável. O periódico se organiza em períodos que possuem início e fim, sendo mais completo, visto como um todo que produz sentido. A elegância da retórica é também uma característica comentada em seu texto e apresentada quando utilizam-se metáforas. Ao utilizar metáforas desconhecidas e oposições para dizer o que se deseja; ao formar frases inesperadas, fazer sínteses com as palavras e estabelecer correspondências entre os termos, se formará um discurso elegante. Dando segmento, Aristóteles comenta sobre o gênero do discurso, que pode variar sendo teatral, deliberativo, judiciário, epidíctico. Cada um destes gêneros possui características diferentes tanto no que diz respeito ao seu conteúdo e à forma de escrevê-lo, como também na forma de pronunciá-lo, devido às diferentes situações a que cada um cabe. Além dos diferentes gêneros, é importante também dar atenção às partes dos discursos. A primeira, anuncia o assunto e na segunda ocorre a sua demonstração. Uma é necessária para a outra,

“Aristóteles diz: 'A M. consiste em dar a uma coisa um nome que pertence a outra coisa: transferência que pode realizar-se do gênero para a espécie, da espécie para o gênero, de uma espécie para outra ou com base numa analogia' (Poet., 21, 1457 b 7).”(Apud, ABAGNANO, 2007, p. 667). 5 No caso dos epítetos deve ser observada uma justa medida, pois quando são muito utilizados ou de maneira incorreta pode haver falta de clareza nos discursos, bem como superficialidade. 4

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sempre nesta mesma ordem de apresentação: a primeira parte é exposição do assunto a segunda são as provas. Ambas são necessárias para compor o discurso e para que ele atinga seu objetivo. Outro apontamento sobre o discurso se refere ao proémio. Este é o início do discurso, a preparação do caminho, que para cada gênero tem componentes diferentes. “A função mais necessária e específica do Proémio é, por conseguinte, pôr em evidência qual a finalidade daquilo sobre que se desenvolve o discurso” (ARISTÓTELES, 2005, p. 281). Ainda também o discurso pode levar à refutação de outro, onde pode ser utilizada uma narração (que pode se organizar de diversas maneiras, de acordo com o gênero do discurso, mas que sempre deve levar em conta a ética). Esta narração pode levar o orador a demonstrar as provas do que foi ou está sendo narrado, podendo, posteriormente, também ser interrogado pelo oponente (através de diversas formas de perguntas que podem ser referentes à contradições, irônicas, etc.). Para então concluir o discurso, deve-se compor o epílogo. Nele, é preciso provocar o ouvinte, reafirmar os pontos principais do discurso, colocando sua ideia como favorável, pois findado o discurso, o ouvinte deverá pensar sobre e julgar o que foi dito. A partir de seu julgamento, o ouvinte deverá levar em consideração o que foi exposto (sendo favorável à conclusão ou contrário a ela), para que possa colocar-se como homem político diante das situações em que seu agir for necessário. Neste tópico, buscamos apresentar as ideias de Aristóteles sobre o discurso para que possamos apresentar a seguir uma possível relação de suas ideias sobre o discurso com a fala de professores e alunos em sala de aula. Esta relação será feita, pensando que a expressão enunciativa, utilizada em sala de aula nas apresentações, explicações e exposições de conteúdos, sendo utilizada com o cuidado das características que Aristóteles apresenta, pode fazer com que os alunos entrem em contato com os conteúdos de forma mais aproximada e com mais facilidade de entendê-los.

A RELAÇÃO COM A PRÁTICA EDUCATIVA Alguns dos pontos abordados anteriormente (e a Retórica de um modo geral) serão agora abordados na perspectiva de seu uso na sala de aula. Sabemos que o ideal de prática educativa não é o uso exclusivo da Retórica, mas sim, de sua complementação com a dialética, que faria com que os alunos interajam, troquem experiências e saberes, sendo esta uma prática para a construção de conhecimentos. Porém, ao expor sobre algum assunto, ou os próprios alunos ao fazer uma apresentação de trabalhos, podem utilizar-se dos estudos da retórica para fazê-lo com mais atenção, buscando atingir os objetivos da apresentação, que são os mesmos da Retórica. A retórica é uma forma de apresentar o saber, a racionalidade humana, podendo ser utilizada durante a explicação dos conteúdos, como formas de expressão deste saber. Para iniciar, contaremos com uma citação encontrada no próprio livro III da Retórica que aproxima as ideias de Aristóteles e relação de diálogo existente em sala de aula: Daí que, em qualquer método de ensino, seja necessário que haja algo referente à expressão; pois, no que respeita a demostrar algo com clareza, há uma certa diferença entre exprimirmo-nos deste ou daquele modo. Ela não é certamente muito grande, mas tudo isto consiste num processo de expor e destina-se a um ouvinte. (ARISTÓTELES, 2005, p. 243)

Assim, ao proferir uma explicação de conteúdos, por exemplo, o professor deve estar atento para sua fala, no que diz respeito ao público para o qual ele vai se dirigir, à forma de falar que ele utilizará (termos, linguagens), como ele organizará o conteúdo, o que é necessário estar no início ou no final da explicação e também como ele vai se expressar durante a explicação (o que fará com que os alunos/ ouvintes possam sentir entusiasmo ou até mesmo tédio, de acordo com a forma que o professor estiver falando). Esta última questão, a pronunciação, é um dos apontamentos que Aristóteles faz em seu texto. O professor expressará sua emoção a partir do emprego da voz, os tons, os

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ritmos e o volume utilizados para falar aos alunos, que poderão compartilhá-la ou não, mas serão influenciados a ouvi-lo. Para Aristóteles, ao darmos atenção à pronunciação de nossas falas, estaremos praticamente representando. O autor apresentava os poetas como os “oradores que falam da forma mais bela” e por isso, poderiam falar sobre qualquer assunto de forma que sempre seria escutado com beleza. Assim, em sua arte de ensinar, os professores devem estar atentos e utilizarem-se de uma arte do falar, observando que os conteúdos sejam explicados utilizando-se da forma de linguagem adequada para a aula e utilizando assim a fala também de forma bela para que chame a atenção dos alunos, fazendo-os se interessarem pelo assunto que está sendo explicado para que, num momento posterior, eles também possam interagir, utilizando a linguagem para expressarem seus entendimentos sobre o que ouviram e que isto possa ser parte da sua construção de conhecimentos. Como já mencionado anteriormente, para que a retórica (ou no caso a ser aqui comentado: a explicação do professor) atinja seu objetivo, de forma comprometida com a verdade, são necessárias as características apontadas primeiramente por Höffe: o caráter do orador, a capacidade de despertar paixões e os argumentos utilizados. Estas características são necessárias também ao professor no que se refere ao trato com os alunos, à forma de despertar sua curiosidade e fazer com que o conteúdo seja realmente interessante e que seja entendido de forma que os alunos percebam a importância de estarem estudando tal assunto.

CONCLUSÃO Com esta breve exposição sobre o pensamento de Aristóteles a respeito da linguagem, a especificação deste pensamento através de um de seus textos, a Retórica, e a posterior transformação destas ideias inicialmente expostas numa relação com o que ocorre em sala de aula, buscamos apenas iniciar uma reflexão que pode e deve ser feita sobre a forma de comunicação existente nas escolas. Ao apresentar os elementos da retórica, Aristóteles orienta, de forma geral, como o discurso deve ser realizado, seus elementos e a atenção que deve ser dada a alguns aspectos para que o discurso atinja seus objetivos, fazendo com que quem ouvir entenda e possa se utilizar deste discurso para agir como homem racional, político, social que é, sempre buscando com suas ações o fim máximo a ser atingido que é a felicidade. A construção de conhecimentos basicamente inicia pela retórica, a explicação de conteúdos e assuntos para os alunos que no momento inicial são ouvintes, é extremamente importante para que depois os conteúdos abordados sejam problematizados por eles, possibilitando a mediação entre alunos e conteúdos e assim, a construção de conhecimentos, com o objetivo de que os alunos possam utilizar os conteúdos aprendidos em sala de aula em seu cotidiano, em sua vida e, principalmente, que estes sejam utilizados para o agir humano, para o exercício político que o homem é chamado e que o faça pensando no bem supremo a ser atingido e mais estimado que, segundo Aristóteles, é a felicidade.

REFERÊNCIAS ABAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. 5ªed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ARISTÓTELES. Retórica. 2ªedição revisada. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Centro de Filosofia, Universidade de Lisboa, 2005. HÖFFE, O. Aristóteles. Porto Alegre: Artmed, 2008. NEVES, M. H. de M. A teoria linguística em Aristóteles. São Paulo: Alfa, 1981.

LEITURA INTERSEMIÓTICA DO ROMANCE SATOLEP (2008) DE VITOR RAMIL Maribel Barbosa da Cunha* (IFC Câmpus Concórdia) Miguel Rettenmaier** (UPF)

1. INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo principal promover uma leitura intersemiótica do romance Satolep (2008), do pelotense Vitor Ramil. Assim, para realizar tal feito, foi elencado como objeto de análise o próprio romance Satolep (2008), visto que a narrativa é contada pela disposição de fotos e textos narrados, acentuando-se a intertextualidade dessa leitura intersemiótica, sendo esta, a base de análise deste artigo. A escolha pelo romance Satolep (2008) justifica-se pelo seu caráter contemporâneo e sulista, pois ainda que a literatura advinda do sul apresente vasta contribuição para a literatura nacional através de grandes escritores, a literatura brasileira ainda permanece focada na literatura produzida em e sobre as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Além disso, Satolep (2008) é uma narrativa que abre possibilidades de estudo entre fotografia e texto, já que a riqueza presente nesta obra é a relação que o escritor concentra nesses dois pontos, que são cruciais ao entendimento da narrativa como um todo. Isso, podemos atribuir ao propósito primeiro deste trabalho, de realizar uma leitura intersemiótica do romance Satolep (2008), de Vitor Ramil, estabelecendo essa relação mútua entre fotografia e texto. Assim, este artigo está estruturado basicamente em três seções: introdução, fundamentação teórica e análise, e considerações finais, além das referências utilizadas para embasar este trabalho.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E ANÁLISE “Os detalhes esclarecem o todo, que esclarece os detalhes.” (KOTHE, 1981, p. 32)

O romance Satolep (2008), do pelotense Vitor Ramil, já surpreende o leitor pela capa, que remonta a Satolep úmida através do azul-água empregado para inferir (não só) a umidade da cidade sulista de Pelotas, no Rio Grande do Sul, mas a questão de um processo de esquecimento do patrimônio temporal/cultural de uma Pelotas que ficou para trás, de um passado icônico, que desvela algumas personagens ilustres, tais como: João Simões Lopes Neto, Lobo da Costa, Francisco Santos, dentre outros. Dessa forma, procurando entender a narrativa e seus elementos constituintes, os quais dão sentido a toda a prosa, remetemo-nos aos estudos de literatura e sistemas intersemióticos propostos pelo, também gaúcho, Flávio Kothe. Como pressuposto desses estudos, precisamos entender que todo sistema possui linhas de estruturação, assim, para se entender o sistema, precisamos entender as linhas que o estruturam. “O conceito de sistema pode ser entendido como um conjunto de elementos coerentes entre si e distintos

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Mestre em Ciências da Linguagem (UNISUL). Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (IFC Câmpus Concórdia). Doutor em Letras (PUC/RS). Professor de graduação e pós-graduação strictu sensu (UPF). Orientador.

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de seu meio. Eles são organizados segundo um determinado princípio, que é a dominante.” (KOTHE, 1981, p. 33). Entendendo o romance como uma narrativa pertencente a um sistema maior, chamado Literatura, podemos inferir que, neste artigo, o objeto de análise constitui-se como esse sistema. Assim, em relação à Satolep (2008) temos: Figura 1 – Esquema de Sistema e Dominante em Satolep (2008)

Fonte: Elaborada pela autora, 2015.

Satolep (2008), a obra literária, constitui-se como um sistema cuja dominante é a própria Satolep, ou seja, a própria cidade de Pelotas, que é quem se faz presente em todos os momentos da narrativa, e todos esses momentos são organizados por ela. Kothe (1981, p. 35) ainda enfatiza que “Os escritores muitas vezes designam no título a dominante.” A exemplo, na Literatura Brasileira, podemos tomar por base romances como: Dom Casmurro (Machado de Assis) e Macunaíma (Mário de Andrade), em que as personagens de Bento Santiago e Macunaíma, respectivamente, são quem dão o nome ao livro, não necessariamente por serem as personagens principais da obra, mas porque são elas quem detêm a dominante do enredo; os elementos da narrativa giram em torno delas [das dominantes]. “Sistema e Dominante são categorias que se implicam mutuamente. Uma não pode existir sem a outra.” (KOTHE, 1981, p. 33). Por essa razão, muitas vezes a confusão entre uma e outra é frequente, pois ambas se precisam, não existe um sistema que se organiza sem uma dominante, da mesma forma que não existe uma dominante sem um sistema que a ampare. Ainda pensando na dominante, por ela estar presente em todos os elementos do sistema, esta também é definida por eles. Portanto, a dominante não tem uma identidade, pois é dominada e definida pelo que não é. “Ela [a dominante] é dominada pelo que ela domina.” (KOTHE, 1981, p. 34). Levando-se em consideração que a dominante é quem domina a narrativa, inclusive se mescla ao sistema, podendo confundir junto a ele ou sendo ele, “A dominante é e não é o sistema.” (KOTHE, 1981, p. 35), a dominante possui também seus dominados, que só são definidos como dominados porque têm uma dominante, identificando-se com ela, tornando-se também uma pequena dominante, ou seja, uma subdominante.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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Conforme podemos observar no esquema abaixo: Figura 2 - Esquema de Sistema, Dominante e Subdominantes em Satolep (2008)

Fonte: Elaborada pela autora, 2015.

É a dominante que estabelece conexões entre elementos que aparentemente não possuem nenhum valor conectivo. A dominante manifesta-se em todos e em cada um dos elementos dominados, aos quais ela seleciona, transforma e controla, mas dos quais, por sua vez, ela não deixa de ser uma decorrência. Por isso ela tende a desaparecer de tanto aparecer. Às vezes ela procura camuflar a sua natureza, pois ela não é apenas a dimensão das possibilidades, mas também dos limites e das limitações do seu sistema. Os componentes do sistema não encaram geralmente a dominante como dominação, pois, sendo eles componentes do sistema e mantendo-se como tais, ela aparece como representação, princípio organizador, fortaleza, adequação, reforço, sustentáculo. (KOTHE, 1981, p. 36)

Dessa forma, enquanto Satolep, a cidade, apresenta-se como dominante, manifestando-se em todos e em cada um dos elementos dominados, é claro seu posicionamento frente ao sistema, pois embora seja uma dominante, não é tipificada como dominação, mas como princípio organizador da trama, o qual serve como sustentação ao sistema e que por vezes sofre as mais diversas influências, dos seus também subdominados: as fotografias, que recontam a história de Pelotas e que servem de mote para todo o desenvolver da narrativa, já que podemos dizer sem sombra de dúvidas que as 28 fotografias, datadas de aproximadamente 1922 e que integram o romance Satolep, são cruciais para a remontagem do passado de Pelotas e da fluição do romance Satolep (2008); a presença do narrador-personagem Selbor, o fotógrafo, que se faz como elemento de ligação entre as fotografias, os pequenos textos encontrados e a narrativa que vai sendo escrita; das personagens icônicas, tais como João Simões Lopes Neto, Francisco Santos, Lobo da Costa, dentre outras, representantes das mais variadas artes, que afinal, simbolizam essa junção, essa fusão do ser artista, da arte como um todo e não como elemento isolado; e, além da própria umidade da cidade, que conforme já citado,

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ganha seu espaço já de antemão na capa do livro, local onde a narrativa começa sua sustentação e vai se infiltrando (assim como a névoa de Pelotas) por entre as palavras. Após abordado o conceito de sistema e dominante na obra Satolep (2008), continuamos colhendo no romance algumas evidências do seu caráter (ainda) de sistema cíclico, muito próximo do método adotado por Ana Miranda no romance Amrik. Em Satolep (2008), podemos identificar esse mesmo método, visto que sua narrativa se apresenta como enredo circular, ao qual percebemos no início e no final do texto a mesma narração, como se toda a narração desenrolasse, mas mesmo assim, terminasse no mesmo ponto. Junto a isso, somam-se as fotografias, vistas aqui como elementos de análise e fator de compreensão do todo do romance Satolep (2008), de Vitor Ramil. Para confirmar a ideia circular do romance, optamos por abordar apenas o início e o final deste, assim, já no início do romance temos em uma de suas páginas a seguinte imagem: Figura 3 – Casarão retratado no início do romance Satolep (2008)

Fonte: RAMIL, 2008, p. 6.

Através da figura acima, podemos evidenciar a presença de uma grande casa, também conhecida em algumas cidades do sul como casarão, além da disposição de várias pessoas que emolduram o quadro da família, ao qual até mesmo o motorista [que não é parte da família] participa, tendo em vista a importância do momento e a necessidade de retratá-lo. Acompanhando a imagem acima, tem-se seguido o texto: Seguem minhas visões de Satolep em ruínas. Hoje foi nossa casa que eu vi: telhado e muro desabados; a face norte destruída, sala, copa e cozinha entregues à ventania; a porta de entrada caída sob plantas tortuosas, entre os tijolos expostos da fachada. Inscrições à tinta, que não pude ler, sujavam as janelas apodrecidas. Não restavam marcas da nossa família. [...] Meu irmão visionário, minhas irmãs e eu paramos muito próximos uns dos outros, na entrada da casa; o pai e a mãe, na janela lateral, que futuramente não estaria mais ali. (RAMIL, 2008, p. 7).

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O escritor retrata a quebra da família, o esquecimento da cidade, as ruínas em que tudo se transformou. No entanto, apesar de não termos família, nem cidade, ou termos quase nada de ambas, temos a fotografia, que rememora esses tempos ditosos. Inclusive, são elencados os participantes desse momento, sejam eles: o irmão mais velho, as irmãs, o pai, a mãe, além do motorista. Em função da relevância deste acontecimento, era necessário chamar um fotógrafo. O final do livro, retrata o mesmo grupo familiar, porém em um outro espaço, o qual apresenta-se também espaçoso, mas com um aspecto mais urbano que o de antes - exposto do início da narrativa. Assim, temos: Figura 4 - Sobrado retratado no final do romance Satolep (2008)

Fonte: RAMIL, 2008, p. 282.

Nesse novo modelo de casa, configurada como um sobrado, a presença da família extingui-se restando apenas um participante, o irmão mais novo, montado à frente do portão. Mais uma vez o discurso é o mesmo, não há a presença da família e a visão que ele tem de Satolep é de apenas ruínas. Conforme podemos observar no trecho: Seguem minhas visões de Satolep em ruínas. Hoje foi nossa casa que eu vi: pó dos leões e das máscaras ao alcance da mão, flores dos vidros bisotê sob meus pés, ferros retorcidos da marquise enferrujando entre pilhas de lascas de madeira escura, a inscrição 1918 sumindo no ar como areia fina do vaso de uma ampulheta. Não restavam marcas da nossa família. [...] Posei de pé, sozinho, junto ao portão, que futuramente não estaria mais ali. (RAMIL, 2008, p. 283-284).

Confirmando a natureza cíclica da narrativa, caracterizamos a comparação entre as partes escritas do início e final do romance e, assim, através do quadro comparativo, temos:

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Início do romance Satolep (2008)

Final do romance Satolep (2008)

Seguem minhas visões de Satolep em ruínas. Hoje foi nossa casa que eu vi: telhado e muro desabados; a face norte destruída, sala, copa e cozinha entregues à ventania; a porta de entrada caída sob plantas tortuosas, entre os tijolos expostos da fachada. Inscrições a tinta, que não pude ler, sujavam as janelas apodrecidas. Não restavam marcas da nossa família.

Seguem minhas visões de Satolep em ruínas. Hoje foi nossa casa que eu vi: pó dos leões e das máscaras ao alcance da mão, flores dos vidros bisotê sob meus pés, ferros retorcidos da marquise enferrujando entre pilhas de lascas de madeira escura, a inscrição 1918 sumindo no ar como areia fina do vaso de uma ampulheta. Não restavam marcas da nossa família. [...]

[...] Meu irmão visionário, minhas irmãs e eu paramos muito próximos uns dos outros, na entrada da casa; o pai e a mãe, na janela lateral, que futuramente não estaria mais ali. (RAMIL, 2008, p. 7).

Posei de pé, sozinho, junto ao portão, que futuramente não estaria mais ali. (RAMIL, 2008, p. 283-284).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em entrevista cedida ao grupo RBS, Vitor Ramil (2008) pontua que o romance Satolep foi o livro ao qual ele dedicou 8 (oito) anos de laboriosa confecção. Nele, conta a história de Selbor, o fotógrafo, que, volta a Satolep, seu terreno particular de invenção e memória. Sua Pelotas (ao avesso), e por que não, cíclica? Já que podemos lê-la de trás para frente e de frente para trás que teremos a Satolep-Pelotas, que inicia e termina no mesmo lugar. Satolep (2008) constitui-se de uma prosa vagarosa, que infiltra o que está narrando, quase como a umidade que ele descreve como símbolo dessa identidade de Satolep, a cidade. Além de, como já mencionado, contar com fotografias bem conhecidas em Pelotas, as quais datam de 1922. Dessa forma, a fim de promover uma leitura intersemiótica do romance Satolep (2008), de Vitor Ramil, utilizou-se como metodologia deste trabalho a pesquisa de cunho bibliográfico para alcançar este objetivo, assim, embasando-se nos estudos intersemióticos de Flávio Kothe (1981). Assim, tentamos, primeiramente, mostrar a estruturação da narrativa através da identificação de seu sistema e dominante, bem como suas subdominantes. Após, realizar a leitura do início e do final da narrativa por meio das fotografias e dos textos, confirmando a ideia de narrativa cíclica, inclusive no nome Satolep. E, pelo que tivemos chance de poder abordar neste artigo, ficamos com as palavras de Candido et al. (2011, p. 48), que nos permitem fazer coro de que “a ficção é [realmente] um lugar ontológico privilegiado.”

REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio; et al. A personagem de ficção. 12. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. MOREIRA, Carlos André. Névoa, umidade e imagens. Porto Alegre, Blog ClicRBS, 03 jun. 2008. Entrevista com Vitor Ramil. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2015. KOTHE, Flávio René. Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1981. RAMIL, Vitor. Satolep. São Paulo: COSACNAIFY, 2008.

A LEITURA COMO ATO ENUNCIATIVO Marlete Sandra Diedrich* (UPF)

Compreender a leitura como ato de apropriação da língua e conhecer mais acerca da experiência humana da linguagem a partir da relação entre homem, linguagem e cultura expressa no ato de leitura são os objetivos que nos movem nesta reflexão. Para isso, partimos de princípios enunciativos propostos por Émile Benveniste, os quais constituem os artigos do linguista publicados em Problemas de Linguística Geral I e II. Em O aparelho formal da enunciação (1970/1989, p. 82), Benveniste apresenta seu conceito mais conhecido para “enunciação”: “colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização.”. A partir desse conceito, entendemos que no momento de leitura esse ato de apropriação também acontece, por isso, propomos entender a leitura como ato enunciativo, o que coloca em cena aspectos bastante particulares para serem discutidos. No caso deste artigo, focalizamos a interpretância da língua em relação à experiência da leitura como elemento a ser analisado. Para tanto, na sequência, discorremos sobre a relação simbólica que une homem, linguagem e cultura e como ela se manifesta no ato de leitura, o que fazemos por meio da análise de fatos enunciativos característicos da linguagem de uma criança de 2 anos e 7 meses, a qual já revela, mesmo sem estar alfabetizada, a apropriação dos traços culturais impressos na língua, os quais chegam até ela por meio da experiência com a leitura vivida em meio ao mundo do adulto.

1. PRINCÍPIOS ENUNCIATIVOS Acreditamos que no ato enunciativo há uma especificidade no modo de cada locutor se apropriar da língua, a qual se revela e se marca na língua por meio de determinados arranjos vocais, os quais derivam do aspecto vocal da enunciação, entendido por nós a partir do seguinte princípio: Os sons emitidos e percebidos, quer sejam estudados no quadro de um idioma particular ou nas suas manifestações gerais procedem sempre de atos individuais, que o linguista surpreende sempre que possível, numa produção nativa, no interior da fala. (BENVENISTE, 1970/1989, p. 82).

Com essa afirmação do linguista, autorizamo-nos a pensar a realização vocal da língua como manifestação da singularidade do locutor no ato de apropriação da língua, uma vez que esse ato é particular e individual: “para o mesmo sujeito, os mesmos sons não são jamais reproduzidos exatamente, e que a noção de identidade não é senão aproximativa mesmo quando a experiência é repetida em detalhe” (BENVENISTE, 1970/1989, p. 83). Essa condição revela especificidades acerca da relação do locutor com a língua relacionada à situação enunciativa, o que convoca à análise a relação locutor-língua, locutor-alocutário, locutor-enunciação, manifestadas nas vocalizações do locutor que se enuncia. A partir das manifestações do aspecto vocal na enunciação, encontramos a realização de determinados propósitos, denominados “propósitos significantes sobre a significância”, com base no que Benveniste (1969/1989, p. 66) diz acerca do privilégio da língua de comportar simultaneamente a significância dos signos e a significância da enunciação. Dessa condição é que, segundo o autor, provém o poder da língua de criar um segundo nível de enunciação, “em que se torna possível sustentar propósitos significantes sobre a significância” (BENVENISTE, 1969/1989, p. 66).

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Doutora em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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A experiência do homem na linguagem, portanto, é sempre revelada por meio dos propósitos significantes sobre a significância, os quais se realizam na relação de interpretância da língua em relação aos demais sistemas e em relação a ela mesma, concretizada na tríade homem-linguagem-cultura e na qual o aspecto vocal da enunciação assume papel fundamental. Essa experiência do homem na linguagem manifesta-se desde cedo na história de enunciações da criança. A criança, ao mobilizar arranjos vocais na constituição do discurso, realiza propósitos significantes que procuram dar conta da realidade significante que não apenas a cerca, mas da qual ela faz parte, e os quais se sustentam em outras relações de significância instauradas a cada enunciação, na mobilização dos domínios semiótico e semântico superpostos no ato enunciativo. No domínio do semiótico, uma entidade precisa ser reconhecida como signo no universo da linguagem: “a questão não é mais definir o sentido” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 227), mas reconhecer que a entidade tem um sentido. Já no domínio do semântico, há a comunicação da experiência, por meio da qual o sentido se realiza formalmente na língua pelo agenciamento de palavras, pela relação que elas exercem umas sobre as outras, na atualização da língua pelo locutor. No entanto, semiótico e semântico “se superpõem na língua tal como a utilizamos” (BENVENISTE, 1967/1989, p. 233), uma vez que os dois domínios comparecem no discurso, possibilitando que estejam implicados no que o autor chama de língua-discurso.

2. PROPÓSITO SIGNIFICANTE SOBRE A SIGNIFICÂNCIA: VALORES CULTURAIS IMPRESSOS NA LÍNGUA Para melhor entendermos a relação simbólica que une homem, linguagem e cultura, focalizamos a realização de propósitos significantes na experiência da criança na linguagem, uma vez que, com essa abordagem, encontramos o homem constituindo o seu espaço de dizer quando ainda criança, sempre em relação com o outro da enunciação. Julgamos importante, inicialmente, retormarmos as palavras de Benveniste (2014, p. 127), proferidas em 1969, mas extremamente atuais: “Vivemos na civilização do livro, do livro lido, do livro escrito, da escrita e da leitura. Nosso pensamento está, em qualquer nível, constantemente informado pela escrita.” Certamente, hoje, poderíamos retomar as palavras de Benveniste, atualizando-as da seguinte forma: “Vivemos na civilização do livro, do livro lido, do livro escrito, [do livro digital], da escrita e da leitura.” Não temos dúvida de que em nossa pesquisa as enunciações que compõem nosso corpus de análise evidenciam o “pensamento informado pela escrita” a que o autor se referiu. Deixemos claro que não temos a pretensão de discutir questões específicas do universo de pesquisa que envolve as definições de letramento, mas centramos nosso olhar no fato de a escrita ser um instrumento, uma vez que é ela que permite à língua realizar “uma objetivação de sua própria substância” (BENVENISTE, 2014, p. 156). A escrita, dessa forma, passa a ser o meio de se representar o discurso e, justamente por isso, entendemos que a criança, em suas enunciações, relaciona-se com esse meio de representação de forma particular, estabelecendo relações entre o universo cultural da escrita e o universo da fala, os quais implicam um mover singular da criança para se apropriar dos “dados herdados” que se imprimem nos discursos específicos que envolvem esses universos, ou seja, acreditamos que a criança mobiliza um modo de dizer “o que está escrito”, o que, em suas enunciações, pode ser relacionado a uma simulação do ato de ler um enunciado. Ela faz isso por meio dos seguintes arranjos vocais: alongamentos consonantais, alongamentos vocálicos, silabação, pausas e gestos constitutivos das emissões, como percebemos no recorte enunciativo a seguir. Sobre esse recorte, esclarecemos que se trata do registro de uma situação cotidana no qual Ber representa a criança mais velha, Mar somos nós, que também fazemos parte do ato

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enunciativo e a linha nomeada “corpo” registra os movimentos corporais da criança cujas falas são analisadas, uma vez que entendemos ser o gesto, em alguns momentos, constitutivo do dizer. Participantes: Ber e Dália Data da coleta: 12/01/2013 Idade da criança: 2; 7; 18 Situação: Dália e Ber brincam no apartamento de Dália, sob os olhos das mães e dos pais. Dália procura uma coroa de brinquedo.

Dália mas EEle/ olha :::::::: corpo levanta o indicador em riste Dália quuaan-do eu vô botá a miinha/ corpo Mãos na cintura. Dália QUUUAAANDO eu vô pe-gá a minha COO-ROO-A eu vô botá :::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: corpo Ergue as mãos como os adultos fazem quando contam um caso. Dália minhAcroa sssrempe PARA ::::::: corpo Mãos em frente ao rosto se abrem num gesto expansivo. Dália mais eu num consiiguu achá minha/ ::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::: corpo Mãos na cintura se erguem até se encontrarem num bater de palmas frente ao corpo para depois se abrirem num gesto de desolação. Ber ó táaqui dentro

O recorte revela um mundo simbólico que se manifesta nos arranjos vocais, nos gestos constitutivos do dizer da criança e que aponta para a realidade fantástica da literatura, um mundo de coroas de reis, rainhas e princesas, um jogo simbólico teatral constituído na experiência de linguagem

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da criança com o outro, muito provavelmente o adulto que lê histórias de reis e rainhas com base em livros coloridos e inspiradores. Essa é a experiência da significação.

3. ENFIM É possível afirmarmos que a criança se apropria da língua e dos rudimentos da sua cultura que se acham nela impressos. Isso acontece na dependência da emissão e da percepção dos arranjos do outro, numa relação de dupla alteridade: o outro traz impressos na língua os traços culturais dos quais a criança, de maneira singular, também se apropria, apreendendo, com a língua, o mundo do qual faz parte: o mundo da leitura.

REFERÊNCIAS BENVENISTE, Émile. (1967). A forma e o sentido na linguagem. In: ______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. ______. (1969). Semiologia da língua. In: ______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989. ______. (1970). O aparelho formal da enunciação. In: ______. (1974). Problemas de Linguística Geral II. Campinas: Pontes, 1989.

CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO NO ROMANCE ORGULHO E PRECONCEITO Mayara Corrêa Tavares* (UPF) Ernani César de Freitas** (UPF)

O tema desta pesquisa tem como enfoque a análise do discurso no texto literário, sobretudo a construção da cenografia e do ethos discursivo no romance, da escritora inglesa Jane Austen. A obra apresenta-se discursivamente na burguesia inglesa do século XVIII/XIX, período em que os casamentos eram realizados por interesses socioeconômicos. Para a personagem central, Elizabeth Bennet, esse costume não se aplicava, pois idealizava um casamento que fosse construído, acima de tudo, com amor – contrariando os planos de sua ambiciosa mãe, a Sra. Bennet. A análise do discurso de base enunciativa possibilita descrever a cenografia discutida ao longo do romance: bailes, passeios, encontros, bem como o ethos presente na personagem Elizabeth Bennet nessas cenas. Justifica-se a escolha desta obra em analisar o discurso literário dentro de um clássico universal e os elementos que o constituem: a cenografia e o ethos discursivo, este focalizado na personagem principal, além da importância da interdisciplinaridade entre literatura e linguística, considerando que é a linguagem é o que as une. O estudo torna-se, portanto, significativo no ensino de língua e literatura. O objetivo geral desta pesquisa consiste em descrever e mostrar cenografias e ethos discursivo da personagem Elizabeth Bennet no romance inglês. Como objetivos específicos estabelecemos: a) identificar cenografias e o ethos discursivo no romance Orgulho e preconceito; b) explicar de que forma se constrói o ethos discursivo na voz da personagem Elizabeth Bennet, através da situação de enunciação, cenografias, em que se desenvolve discursivamente o romance; c) mostrar como se constituem cenografias enunciativas da quais se origina o ethos discursivo da personagem Elizabeth Bennet. A fundamentação teórica que sustenta a análise do romance concentra-se na teoria enunciativo-discursiva de Dominique Maingueneau (2008, 2013), quanto à abordagem linguística, bem como nos estudos de Bakhtin (1997, 2011), além do Discurso Literário, obra na qual Maingueneau (2012) traz elementos da escrita literária. O corpus de análise desta pesquisa constitui-se do romance Orgulho e preconceito1, publicado em 1813, escrito pela inglesa Jane Austen (1755-1817). A obra é constituída em 392 páginas distribuídas em 61 capítulos, sendo que o prefácio é apresentado pelo tradutor Ivo Barroso (intitulado “Jane Austen, a ‘boa tia de Steventon’”) e os capítulos não possuem títulos específicos (são somente numerados: Capítulo1, Capítulo 2, etc.). A escolha foi feita por interesse pessoal em analisar a personagem central, Elizabeth Bennet, e como é construído o seu ethos discursivo dentro da cenografia da obra. Dessa forma, o recorte desse corpus está previsto em analisar como o capítulo dezenove do romance para que nos possibilite identificar as cenografias e ethé compreendidos na personagem central, Elizabeth Bennet, e o contexto da época. A ênfase para o capítulo justifica-se, sobretudo, pela recusa da personagem central a um pedido de casamento – inadmissível para aquela época, e Graduanda em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e Língua Inglesa e suas respectivas literaturas na Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: [email protected] ** Doutor em Letras pela PUCRS, com pós-doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP/LAEL); pesquisador nas áreas Linguagem e Trabalho, Semântica Argumentativa, Semiolinguística; professor do Mestrado em Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF); professor do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, Novo Hamburgo, RS. Email:[email protected]. 1 Neste trabalho, utilizamos a edição de 2010, traduzida por Celina Portocarrero. Destacamos que todas as informações e citações serão retiradas desta edição. *

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para tecer cenografias que implicam a imagem de Elizabeth no romance. Realizamos este estudo por meio da pesquisa dedutiva, bibliográfica, com abordagem qualitativa. O romance é ambientado na burguesia inglesa do século XVIII/XIX e as possibilidades de ascensão social eram limitadas para uma mulher sem dote. A família Bennet possui cinco damas em busca de um matrimônio que se realize visando tais interesses (a principal motivação de sua mãe, a sra. Bennet). Contudo, Elizabeth Bennet contraria esses estereótipos e idealiza um casamento concebido através de laços afetivos. Dona de uma personalidade forte e humor característico, ela conquista o nobre sr. Darcy, detentor de inúmeras posses e índole orgulhosa. Através da ironia e da riqueza lexical, Jane Austen coloca a personagem central, Elizabeth Bennet, em destaque na literatura mundial. Além da introdução, considerações finais e referências, este artigo conta com duas seções que, primeiramente, apresenta os gêneros do discurso e sua relevância no processo de leitura e, em seguida, o discurso literário na composição da cenografia e do ethos discursivo, visto que são depreendidos do processo de leitura, para que a análise esteja de maneira integrada a esses aspectos.

1. GÊNEROS DO DISCURSO E O PROCESSO DE LEITURA Os gêneros do discurso são ricos e de infinitas possibilidades, conforme os fundamentos teóricos bakhtianos, sejam eles primários ou secundários e consolidam-se através do tema, da composição organizacional e do estilo. Em consonância com o corpus desta pesquisa, a temática, que se refere ao domínio de sentido de que se ocupa o gênero (FIORIN, 2008), é focada nos costumes daquele período: o modo como os casamentos eram realizados (visando interesses socioeconômicos), a pouca ou nenhuma representatividade da opinião crítica feminina. É também na personagem central, Elizabeth Bennet, que se justifica o título da obra: sua relação com o sr. Darcy, homem muito orgulhoso e de muitas posses que, ao apaixonar-se por Elizabeth, luta contra seus sentimentos devido as condições socioeconômicas e familiares dela. A composição organizacional diz respeito à organização e estrutura do texto, conforme os seus respectivos gêneros e é pertinente com a narrativa e o romance, pois há, no início, uma problemática central e seu desfecho, uma narrativa por excelência. Segundo Barthes (2011, p. 24), a narrativa “participa da frase, sem poder jamais se reduzir a uma soma de frases: a narrativa é uma grande frase, como toda frase constatativa de uma certa maneira o esboço de uma pequena narrativa”. Sendo assim, Orgulho e preconceito possui um tempo cronológico linear; o narrador é onisciente intruso, logo está em terceira pessoa e faz comentários sobre as personagens e a situação em que elas se encontram. Por sua vez, o estilo, de acordo com Bakhtin (1997), exprime a individualidade de quem fala ou escreve e por isso que é na literatura que se encontra sua primazia. Jane Austen foi audaciosa ao escrever Orgulho e preconceito, visto que eram raras as mulheres escritoras de literatura. A autora faleceu em 1817, aos 41 anos, em Hampshire, Inglaterra. Jane Austen chegou a publicar seu primeiro livro sob pseudônimo e o que mais surpreende em suas obras, e que lhe rende tamanha popularidade, é o tom “moderno”, uma vez que utilizou a narrativa para criticar a sociedade em que vivia, que zelava a moral e os bons costumes, preferindo a ironia ao sermão, escrevendo, assim, sobre as tentativas de ascensão na escala social, o valor das pessoas determinado pela sua renda anual, o grau de ignorância dos falsos nobres, a maldade das pessoas boas e a luta das mulheres para se casarem (BARROSO apud AUSTEN, 2014). Desse modo, a autora criou personagens vivos e inesquecíveis, como Elizabeth Bennet, mesmo vivendo em um ambiente limitado de uma pequena paróquia (seu pai era uma espécie de pároco-professor). O estilo está intimamente relacionado à cenografia/ ethos, pois o leitor, por meio da linguagem literária, utiliza competência enciclopédica e o conhecimento linguístico que possui para construí-

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-los. A competência enciclopédica é o conhecimento que temos adquirido sobre o mundo, que varia em função da sociedade em que se vive e da experiência de cada um (MAINGUENEAU, 2013), e por conhecimento linguístico entende-se pelo que é preciso para perceber as remissões, os pressupostos, os implícitos. O processo de leitura torna-se fundamental para que haja um entendimento do papel feminino naquele momento e a importância de Elizabeth Bennet, a personagem central, que se destaca por ser uma mulher a frente de seu tempo. Tal reconhecimento é possível mediante as marcas linguísticas empregadas pela autora para enfatizar a personalidade forte de Elizabeth. Ao mobilizar a leitura para compreensão da obra, culturas são traduzidas, acionando diversos conhecimentos do leitor. Entre eles o processo afetivo, a identificação do leitor para com a obra e os diversos sentimentos que a leitura pode provocar; e simbólico, a interação entre a literatura e a cultura dominante de um meio e uma época, estabelecido por Thérien2 (apud JOUVE, 2002), pois há identificação do leitor com a obra e interesse na personagem central, Elizabeth Bennet, do mesmo modo que a literatura e cultura dominante daquele momento interagem entre si. O leitor pode identificar-se com a obra pelo conflito amoroso entre Elizabeth Bennet e sr. Darcy, a família Bennet, as relações por interesses socioeconômicos, por exemplo; por sua vez, temos a cultura da era vitoriana, como os bailes, os casamentos realizados pelo desejo dos pais visando certas vantagens, a alfabetização das mulheres, quando possível, era realizada em casa – traduzidos fielmente em Orgulho e preconceito. O processo de leitura é responsável pelas cenografias originadas sobre as personagens, a obra, o autor. A próxima seção destina-se a análise da cenografia e ethos discursivo depreendidos no capítulo dezenove do romance Orgulho e preconceito e, em seguida, na personagem central, Elizabeth Bennet.

2. O DISCURSO LITERÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DA CENOGRAFIA E ETHOS DISCURSIVO O discurso literário, consoante estudos de Maingueneau (2012), mantém uma relação fundamental com a memória. Nesta seção analisaremos o capítulo 19do romance Orgulho e preconceito, inicialmente, para fundamentar a cenografia e o ethos discursivo que consolidam a personagem central, Elizabeth Bennet, ao longo da obra. A escolha desse capítulo, para análise, foi realizada diante da recusa da personagem ao pedido de casamento feito pelo seu primo, sr. Collins – comportamento incomum para as jovens do século XVIII. A legitimização do discurso é realizada através de alguns elementos da cena de enunciação, conforme Maingueneau (2013): cena englobante, cena genérica e cenografia. A cena englobante corresponde ao tipo de gênero do discurso o qual pertence a obra, o discurso literário; a cena genérica refere-se ao subgênero a qual a obra se insere, o romance. A cenografia, considerando que se realiza para além de toda cena de fala expressa no texto e construída através dele, envolve o leitor sem que isso seja determinado. Dessa forma, abordaremos a cenografia construída nesse capítulo e vinculando à personagem central, Elizabeth Bennet, ao longo do romance. No fragmento textual temos a situação inicial de um pedido de casamento feito pelo sr. Collins a Elizabeth Bennet. Ele mostra-se determinado a isso, decidindo pedir a mão de sua prima logo após o café da manhã. Para referir-se a Elizabeth, sr. Collins utiliza a expressão “bela filha” ao pedir para sra. Bennet uma conversa particular com a personagem central. Contudo, Elizabeth trata-o sempre do mesmo modo, chamando-o de “sr. Collins”/ “senhor”, além de demonstrar divertimento com Professor em estudos literários na Universidade de Quebec. Sua pesquisa está centrada na relação da literatura com a imaginação e a memória.

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a situação – “os sentimentos que se dividiam entre angústia e diversão” (AUSTEN, 2010, p. 121). Seu primo, ao informar os motivos pelos quais o levaram a escolhê-la como sua futura esposa, não menciona de forma alguma estar apaixonado por ela ou que nutre qualquer outro sentimento dessa natureza e, apesar de não fazer questão da propriedade que herdará quando o pai de Elizabeth vier a óbito (o casal Bennet tem cinco filhas, assim o sr. Collins, o próximo herdeiro, tem direito a propriedade da família, em Longbourn), ao ter o pedido de casamento recusado demonstra o contrário: minhas razões para acreditar nisso são, em resumo, as que seguem: não me parece que minha mão seja indigna de ser aceita, ou que a situação que lhe posso oferecer seja menos do que altamente desejável. Minha posição na vida, minhas relações com a família De Bourgh e meu parentesco com a sua são circunstâncias que pesam muito a meu favor. E a senhorita deveria levar em consideração que, a despeito de seus inúmeros atrativos, não é de modo algum garantido que outra oferta de casamento lhe venha a ser feita. Seu dote é infelizmente tão pequeno que com toda a probabilidade anulará os efeitos de seu encanto e suas admiráveis qualidades. (AUSTEN, 2010, p. 125).

Ao ter sua oferta rejeitada, o sr. Collins também muda a maneira como refere-se a Elizabeth: inicialmente utiliza os termos “bela filha”, “srta. Elizabeth”, “senhorita”, “companheira de minha vida futura”, “bela prima” e posteriormente apenas “senhorita”. Maingueneau (2013, p. 129) utiliza os termos embreagem como “o conjunto das operações pelas quais um enunciado se ancora na sua situação de enunciação” e embreantes, conhecidos também como “elementos dêiticos”, “os elementos que no enunciado marcam essa embreagem”. Primeiramente, nos deteremos aos embreantes de pessoa. O sr. Collins faz uso dos seguintes embreantes de pessoa: ao reportar a si mesmo – “eu a escolhi”, “meu caso”, “seus paroquianos”, “eu possa fazer”, “minha intenção geral”, “eu herdar esta propriedade”, “eu não ficaria tranquilo”, “eu já disse”, “meu motivo”, “eu tiver a honra”, “minha insistência”, “minhas razões”, “minha posição na vida”, “minhas relações”,” a meu favor”; para expressar seu desejo pelo matrimônio – “minhas palavras”, “minha vida futura”, “meus sentimentos”, “minhas razões para casar”, “minha felicidade”; dirigir-se à Elizabeth Bennet – “sua modéstia”, “sua natural delicadeza”, “minha bela prima”, “sua própria agudeza de espírito e vivacidade”, “sua estima”, “seu pai”, “seus inúmeros atrativos”, “suas admiráveis qualidades”, “seu desejo”, “seus excelentes pais”; e a eles como um casal – “[nós] estivermos casados”. A cenografia possui relação fundamental com o leitor, ao envolvê-lo com o texto sem que isso seja imposto. Segundo Maingueneau (2008, p. 77), “a cenografia é, assim, ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la”. Dessa forma, temos a cenografia inicial do sr. Collins como um homem decidido a casar-se com Elizabeth e que ela o aceitaria como esposo diante, apenas, de suas boas condições sociais e financeiras, alterando, então, sua cenografia para de um homem que não aceita a recusa de seu pedido de casamento, diante de sua posição na sociedade, e que acredita que Elizabeth irá mudar de ideia, já que é natural, para ele, as mulheres rejeitarem tal proposta, mencionando até seu o valor inferior do seu dote na tentativa de que ela mude de ideia, apelando, por fim, aos pais da jovem para intercederem a seu favor. Maingueneau (2012, p. 102) estabelece que “uma cenografia pode apoiar-se em cenas de fala” e classifica-a de cenas validadas, pois estão inseridas na memória coletiva. No capítulo analisado a cena validada é o café da manhã, visto que após o desjejum o sr. Collins aproveita a presença da família Bennet e de Elizabeth para formalizar suas intenções a moça. Além disso, a refeição matinal nos remete a cena familiar, facilitando, assim, que o sr. Collins tenha sucesso em seus planos. Outras cenas validadas surgem ao longo do romance, como bailes e jantares. O ethos discursivo tem sua eficácia validada ao envolver a enunciação sem que isso esteja claro no enunciado (MAINGUENEAU, 2008). Por esse motivo é que cenografia e ethos estão interligadas. Maingueneau (2008) divide o ethos discursivo em ethos dito e ethos mostrado. O primeiro diz res-

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peito ao enunciador que apresenta de imediato suas características, salientando ser aquela ou esta pessoa; o ethos mostrado é construído através de marcas ou sinais fornecidos no discurso, tendo em vista que o enunciador não se apresenta de forma direta. O ethos prévio (ou pré-discursivo) refere-se à imagem que o coenunciador faz do enunciador antes mesmo que ele fale e o ethos efetivo “resulta da interação dessas diversas instâncias, cujo peso respectivo varia de acordo com gêneros do discurso” (MAINGUENEAU, 2012, p. 270). O sr. Collins apresenta ethos prévio de um homem preocupado em casar-se, independentemente quem será a esposa, já que possui boas condições socioeconômicas. Ao apresentar-se discursivamente, ele constrói o ethos dito de um homem polido, que deseja atender ao pedido de sua benfeitora e servir de exemplo para seus paroquianos através do matrimônio. Por fim, o ethos mostrado do sr. Collins confirma sua cenografia: deseja-se casar com uma moça de boa postura para servir de exemplo para seus paroquianos, pensando em sua própria felicidade e por conselho de sua benfeitora. Ao ter seu pedido rejeitado acredita que aquela que escolheu para ser sua companheira irá mudar de ideia, já que as mulheres lutam contra seus sentimentos, menciona o baixo valor do seu dote (que, apesar das inúmeras qualidades de Elizabeth, é pouco provável que outro cavalheiro a peça em casamento) e que irá fazer a proposta aos seus pais, mostrando-se egoísta, egocêntrico, pouco importando a opinião firme e clara da personagem central – ethos efetivo. Além dos embreantes de pessoa, neste fragmento capitular há também dêiticos espaciais (o lugar onde se dá a enunciação) e temporais (as marcas verbais e palavras com valor temporal). Identificamos como dêiticos espaciais “Longbourn” – vilarejo onde reside a família Bennet, “Hertfordishire” – a cidade localizada na Inglaterra e situamo-los como “aqui”, em relação ao contexto, além de “Hunsford” – cidade onde sr. Collins mora que, em relação ao enredo, localizamo-lo como “lá”. Os dêiticos temporais são reconhecidos como “dia seguinte”, “sábado seguinte”, “sábado à noite” e distribuídos entre verbos no passado – “inaugurou”, “saísse”, “conseguiu”, presente – “penso”, “estou convencido”, “sou”, e futuro – “contribuirá”, “verá”, “serão”. Elizabeth Bennet apresenta a mesma postura do início ao fim do capítulo e é convicta de seus argumentos – “o senhor não poderia me fazer feliz e estou convencida de que sou a última mulher do mundo que faria o mesmo pelo senhor”, e quando o sr. Collins insiste que suas convicções irão mudar ela afirma de forma clara que ele não deve considerá-la “como uma mulher elegante com intenções de torturá-lo, e sim como uma criatura racional, exprimindo a verdade de seu coração” (AUSTEN, 2010, p. 125). Ela faz uso dos seguintes embreantes de pessoa: para reportar-se a si mesma – “sairei eu”, “minha recusa”, “a meu respeito”, “eu disse até agora”, “minha sinceridade”, “meus sentimentos”; referir-se ao pedido de casamento feito pelo sr. Collins – “sua proposta”, “meu senhor”, “sua esperança”, “ao recusar a sua mão”, “seus sentimentos”, “ele insistisse em considerar suas repetidas recusas”; e em nenhum momento faz menção a eles como um casal. Sua imagem, neste capítulo e ao longo do romance, é de uma mulher segura de suas convicções acerca do casamento e recusa a proposta feita pelo sr. Collins de maneira elegante e objetiva. Elizabeth Bennet acredita veemente que o matrimônio deve ser conquistado por amor, principalmente por ver o modo como seus pais se relacionam. A personagem possui personalidade forte, sensata e bem humorada: ao ser dispensada para dançar pelo sr. Darcy por não ser bonita o bastante, Elizabeth conta para as suas amigas o que aconteceu com muita graça, “pois tinha um temperamento vivo e brincalhão e se deliciava com tudo o que fosse ridículo” (AUSTEN, 2010, p. 28) e adquire destaque por isso ao longo do romance. Diferente de suas irmãs, ela demonstra grande interesse pela literatura, preferindo, muitas vezes, ler a jogar com seus amigos. Percebe-se que as escolhas lexicais feitas pela personagem central colocam-na a frente do seu tempo e destacamos o quanto ela é madura para uma jovem de 20 anos, considerando todo o contexto do século XVIII/ XIX. Após traçar sua imagem ao longo do livro, podemos construir as seguintes cenografias, consoante Maingueneau (2012): Elizabeth Bennet é uma jovem segura, sensata, inte-

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ligente e bem humorada, que deseja casar-se com alguém que a ame e o sentimento seja recíproco; não concorda com o comportamento de sua família na sociedade (a mãe, a sra. Bennet, deixa claro para todos o quanto idealiza que suas filhas tenham um casamento promissor na elite inglesa) e em especial com o comportamento de uma das irmãs mais novas, Lydia, que é fútil e “namoradeira”. Em relação ao ethos, segundo Maingueneau (2012), identifica-se como ethos dito: Elizabeth Bennet é confiante, sagaz e divertida, seja no fragmento capitular assim como no decorrer do romance; ethos mostrado: uma jovem que idealiza um matrimônio consolidado através de relações afetivas, contrariando o desejo de sua mãe. Considerando que o fiador atribui a si um caráter e uma corporalidade, Maingueneau (2008, p. 72) estabelece que “o ‘fiador’, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se assim, investido de um caráter e de uma corporalidade, cujo grau de precisão varia conforme os textos”. Sendo assim, a personagem central, Elizabeth Bennet é fiadora em Orgulho e preconceito, apesar dela não ser a narradora do romance. Percebe-se, pois, através de marcas textuais no romance e na biografia de Jane Austen que a personagem é a sua voz na narrativa, através de elementos como ironia, crítica indireta à sociedade, humor, para construir o caráter e atribuir corporalidade à Elizabeth Bennet. Por fim, o ethos efetivo de Elizabeth é de uma jovem que rompe com o preconceito acerca da representatividade crítica feminina, e ao saber dos reais sentimentos que o sr. Darcy nutre por ela, que ele a ajudou no momento em que ela mais precisou, seu comportamento em relação a ele muda e Elizabeth aceita casar-se com ele, sendo plenamente feliz ao seu lado e com as escolhas que faz. Os ethé discursivos de Elizabeth Bennet, bem como as cenografias, só podem ser originados diante do conhecimento do leitor e em como ele associa literatura, mundo imaginário e mundo real sem perceber que está realizando tais vínculos e posicionando-se criticamente. Em síntese, Bordini e Aguiar (1988, p. 15) afirmam: a riqueza polissêmica da literatura é um campo de plena liberdade para o leitor, o que não ocorre em outros textos. Daí provém o próprio prazer da leitura, uma vez que ele mobiliza mais intensa e intereiramente a consciência do leitor, sem obrigá-lo a manter-se nas amarras do cotidiano. Paradoxalmente, por apresentar um mundo esquemático e pouco determinado, a obra literária acaba por fornecer ao leitor um universo muito mais carregado de informações, porque o leva a participar ativamente da construção dessas, com isso forçando-o a reexaminar a sua própria visão da realidade concreta. A atividade do leitor de literatura se exprime pela reconstrução, a partir da linguagem, de todo o universo simbólico que as palavras encerram e pela concretização desse universo com base nas vivências pessoais do sujeito.

Diante do exposto, verificamos que há relação entre as cenografias e ethé de Elizabeth Bennet identificados, inicialmente, no capítulo analisado e em conformidade com a obra em seu âmbito geral. Na sequência, registramos as considerações finais deste estudo, de modo a contemplar a teoria estudada em relação com o corpus de pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao optarmos pela seleção do corpus neste estudo sabíamos que a nossa missão seria complexa para uma pesquisa de graduação. Contudo, esperamos ter atingido êxito em relação ao nosso propósito no que tange aos estudos linguísticos e literários. Propomo-nos, inicialmente, apresentar que essas duas áreas, embora sejam estudadas de maneira distinta, podem ser trabalhadas de maneira interdisciplinar. Diante das possíveis limitações desta pesquisa, tendo vista a complexidade deste romance em suas centenas de páginas e a riqueza discursiva da personagem Elizabeth Bennet e que possibilitam diferentes pesquisas no meio acadêmico, podemos afirmar que são de origem quantitativa em consideração ao corpus deste estudo, um romance, clássico literário universal, que possui diversos

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conteúdos em seu enredo, tornando possível analisá-lo de inúmeras maneiras, permitindo, assim, cumprir os objetivos e aplicar a metodologia desenvolvida. Levando em conta a extensão do corpus, outras análises poderiam ter sido realizadas, contudo, o espaço deste estudo não nos concede. Temos a expectativa de que esta pesquisa tenha contribuído no ensino de língua, sobretudo no uso da língua em relação ao texto, e literatura, perante a infinidade de clássicos universais que são ricos discursivamente. O corpus deste estudo é um dos mais aclamados romances de Jane Austen e, assim como suas demais obras, possibilita diferentes pesquisas, associando-os, até mesmo, aos longas-metragens, que possuem tanta repercussão quanto às obras. Além disso, também, a produção cinematográfica ficcional é rica em aspectos discursivos e, em alguns casos, apresenta cenografia e ethos diferentes do que é proposto na literatura. Os resultados aqui apresentados, embora não sejam inéditos, podem, também, contribuir a futuras explorações acerca da perspectiva teórica do tema. Sugerimos aos analistas do discurso a possibilidade de analisar cenografia e ethos discursivos nas demais obras de Jane Austen, bem como associar esses estudos entre literatura e produções cinematográficas, posto que grande parte do legado da autora foram adaptados em longas-metragens. Esse tipo de análise auxilia no ensino de Língua Portuguesa devido a construção lexical, que possibilita inúmeros estudos acerca das escolhas realizadas pela autora para colocar a obra em posição de destaque na literatura mundial. Jane Austen revolucionou a literatura em um período em que poucas mulheres escreviam e muitas, infelizmente, não sabiam nem ler. Elizabeth Bennet é uma das personagens femininas de maior destaque nos clássicos literários universais. Assim, acreditamos ter atribuído à devida importância de ambas as mulheres no decorrer desta análise e transposto a admiração de seus leitores.

REFERÊNCIAS AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. Tradução de Celina Portocarrero. Porto Alegre: L&PM, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _____. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. BARROSO, Ivo. Jane Austen, A “boa tia de Steventon”. In: AUSTEN, Jane. Orgulho e preconceito. Tradução de Celina Portocarrero. Porto Alegre: L&PM, 2010, p. 5-13. BARTHES, Roland. Análise estrutural da narrativa. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002. MAINGUENEAU, Dominique. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008, p. 69-92. _____. Discurso literário. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012. _____. Análise de textos de comunicação. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2013.

BONSÁI: DO LIVRO AO FILME Michele Neitzke* (URI)

Há muito se fala sobre adaptações de livros para obras cinematográficas, as quais são constantemente entendidas pela crítica como uma violação a obra literária e frequentemente tratadas, segundo Stam (2009, p. 19), como “profundamente moralistas, ricas em termos que sugerem que o cinema, de alguma forma, fez um desserviço à literatura”. Tanto o romance quanto a literatura, não ocupam mais um lugar privilegiado, pois a adaptação acaba assumindo um lugar legítimo ao lado do romance, como apenas mais um meio narratológico. Desta forma, segundo Stam (2009) “dentro de um mundo extenso e inclusivo de imagens e simulações, a adaptação se torna apenas um outro texto”. Termos como “infidelidade”, “traição”, “deformação”, “violação”, “abastardamento”, “vulgarização”, e “profanação” proliferam no discurso sobre adaptações, cada palavra carregando sua carga específica de ignomínia. “Infidelidade” carrega insinuações de pudor vitoriano; “traição” evoca perfídia ética; “abastardamento” conota ilegitimidade; “deformação” sugere aversão estética e monstruosidade; “violação” lembra violência sexual; “vulgarização” insinua degradação de classe; e “profanação” implica sacrilégio religioso e blasfêmia (STAM, 2009, p. 19).

Tudo isso se deve ao fato de que é apenas observado o processo de perda e deformação em relação ao texto original, não sendo levado em consideração que o texto fílmico tem apenas a função de apropriação do texto escrito e que em sua tradução é necessário que ajustes sejam feitos e assim se tenha um resultado de equivalência. Embora seja fácil imaginar um grande número de expressões positivas para as adaptações, a retórica padrão comumente lança mão de um discurso elegíaco de perda, lamentando o que foi “perdido” na transição do romance ao filme, ao mesmo tempo em que ignora o que foi “ganhado” (STAM, 2009, p. 20) No ano de 1926, Virginia Woolf, denunciou o quão fracas pareciam as adaptações de suas obras para o cinema, Stam (2009, p. 20) afirma que uma vez que estas “adaptações reduziam as complexas nuances da ideia de amor num romance a um beijo, ou representavam a morte de forma literal, como um carro funerário”. Ainda de acordo com Robert Stam (2009, p. 20), “existe uma certa superioridade da literatura em relação aos filmes, a qual pode ser parcialmente explicada pelo fato inegável de que muitas adaptações baseadas em livros literários são medianas ou mal orientadas.” Sendo assim, esta adaptação acaba por não atingir a expectativa nem mesmo do seu publico alvo, muito menos de um crítico de cinema. Entretanto esta regra não pode ser generalizada, uma vez que as adaptações não tem por objetivo a “fidelidade” do texto filmico, mas sim a tradução intersemiótica realizada de um texto para o outro: Em qualquer situação, o processo de tradução consiste na procura de equivalências entre os sistemas. Isto quer dizer que um elemento x que ocupa um determinado lugar num determinado sistema de signos, o teatro, por exemplo, seria substituído, na tradução, por um outro elemento x’ que exercesse a mesma função, porém no outro sistema de signos, o cinema (Diniz, 1994, p. 1003)

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação Curso de Mestrado em Letras Área de concentração: Literatura Comparada na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões - Campus de Frederico Westphalen. E-mail: [email protected]

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Robert Stam (2009, p. 21) nos afirma que já nas décadas de 60 e 70 a semiótica estruturalista tratava de sistemas de significação intertextuais, onde já não era necessário existir esta “fidelidade” entre os textos filmico e literário, abolindo a hierarquia entre uma e outra obra. A fidelidade, tanto requisitada pelos críticos, não passa de mera ilusão, uma vez que os objetos literários e cinematográficos precisam ser tratados de forma única, respeitando os limites e possibilidades de cada um. Para Thaís Diniz (1998, p. 313), ”a tradução intersemiótica é definida como a tradução de um determinado sistema de signos para outro sistema semiótico”, ou seja: Quando usamos uma linguagem, produzimos sentido. Mas podemos significar também através de outros atos, como por exemplo, os que fazemos quando nos movimentamos, ou quando acenamos bandeiras, ou colocamos sinais ou linhas nas estradas (DINIZ, 1994, P. 1001)

Desta forma entende-se que a tradução do texto literário para o filmico é um processo de transformações, onde um texto que foi contruído dentro de um determinado sistema de signos, passa por modificações necessárias resultando em um outro sistema, um outro texto. Thaís Diniz (1994, p. 1003) afirma que isso “implica em que, ao decodificar uma informação dada em uma “linguagem” e codificá-la através de um outro sistema semiótico, é necessário mudá-la, nem que seja ligeiramente, pois todo sistema semiótico é caracterizado por qualidades e restrições próprias, e nenhum conteúdo existe independentemente do meio que o incorpora.” Quando existe esta tradução de um sistema de signos para o outro, é necessário que alguns pontos importantes sejam considerados, como, por exemplo, o tempo entre a obra escrita e a adaptação cinematográfica ou aspaectos culturais de uma época. Segundo Robert Stam (2009, p.48) “as adaptações fazem malabarismos entre múltiplas culturas e múltiplas temporalidades, elas se tornam um tipo de barômetro das tendências discursivas em voga no momento da produção.” O conjunto dos sistemas de signos cinematográficos pode ser considerado como um construto ao qual damos um significado. O mesmo acontece com o conjunto de signos teatrais. Juntos, constituem o conjunto no qual se integram o que chamamos de aspectos intersemióticos da tradução (DINIZ, 1998, p. 315)

Levando em consideração que muitos anos podem se passar entre a obra literária e a obra filmica, Stam afirma que (2009, p. 48) “cada recriação de um romance para o cinema desmascara facetas não apenas do romance e seu período e cultura de origem, mas também do momento e da cultura da adaptação”. Esta diferença de anos entre a obra escrita e a cinematográfica, podendo ser milenios ou apenas cinco anos, permite com que o diretor do filme tenha mais liberdade em sua adaptação, permitindo uma reinterpretação sincronizada com os discursos atuais. Consequentemente, segundo Robert Stam (2009, p. 42) “o adaptador desfruta de mais liberdade para atualizar e reinterpretar o romance.”

UM OLHAR SOBRE O BONSÁI: OBRA LITERÁRIA E FILMICA A obra literária de Alejandro Zambra, é o primeiro romance do autor chileno, publicado em 2006 pela editora Anagrama na Espanha. No ano de 2007 ganhou dois importantes premios no Chile: Premio de la Crítica de Chile 2007 de Mejor novela del año 2006 e o Premio del Consejo Nacional del Libro de Chile 2007. Devido ao seu grande sucesso, a obra foi traduzida para a língua portuguesa e publicada em 2012 pela editora brasileira Cosac Naif. A obra filmica Bonsái: uma história de amor, livro e blá, blá, blá, foi adaptada pelo cineasta chileno Cristián Jiménez, é uma co-produção entre a Jirafa Films (Chile), Rouge-International (França), Rizoma Films (Argentina) e Ukbar Filmes (Portugal). O longa-metragem foi lançada no ano de 2011 no Festival de Cannes sendo considerado um romance terno e arrebatador sobre livros, plantas e sobretudo sobre o amor.

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Com um enredo simples, mas que desde o primeiro momentoo filme envolve, abraça e contém o espectador na sua frágil mas densa atmosfera. Bonsái tem como ponto principal a separação de um casal, Julio e Emilia, e os caminhos que cada um segue após esse rompimento. Os dois se conhecem nos anos da faculdade de Letras. Logo seus interesses se cruzam e entre os diversos pontos em comum está o fato de que ambos amam literatura, nenhum dos dois havia lido Proust, e o estranho vicio por chás. A obra literária é uma história de amor e também do fim deste amor, levando o entedimento sobre o fim das coisas, pois logo no inicio conta o desfecho desta história de amor e que nada pode ser feito para impedi-la de acontecer. Toda a história passa pela literatura, a trama avança juntamente com os livros de famosos autores como Tchekhov, Onetti e Carver. No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Figamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura. (ZAMBRA, 2013, p. 10).

E quando ele diz “o resto é literatura”, é de fato, pois ambos os personagens, estudantes de Letras, são apaixonados por ler e assim, no decorrer da obra, encontramos diversas referências literárias: liam um para o outro, contos, narrativas e poesias. Liam Proust e Tantália, de Macedonio Fernández, que acaba sendo o marco para o fim do relacionamento do casal. Tantália é a história de um casal que decide comprar uma plantinha para conservá-la como símbolo de amor que os une. Percebem, tardiamente, que se a plantinha morrer, morrerá com ela o amor que os une. E como o amor que os une é imenso e por nenhum motivo estão dispostos a sacrificá-lo, decidem fazer a plantinha se perder entre uma multidão de plantas idênticas. Depois ficam inconsoláveis, infelizes por saber que nunca mais poderão encontrá-la (ZAMBRA, 2014 p. 29)

O autor vai relatando cenas do cotidiano, vividas pelo casal, cenas quase sem importância como a primeira mentira, a primeira poesia que leram juntos, como encaravam a relação antes de se tornar um relacionamento sério. Julio é considerado o tronco de uma pequena árvore, um bonsai, e dele vão saindo galhos que se expandem em outros galhos, como Emilia e seus amigos, Anita e Andrés, ou então Gazmuri, que abre para o fictício romance Bonsái. Com a intenção de mostrar a importancia de nossas relações e o quanto elas nos ajudam a nos moldar, esta história, tanto na obra literária quanto na obra filmica, tem a inteção de representar como são belas e delicadas as relações em nossas vidas. A adaptação da obra foi bem sucedida, com uma diferença de cinco anos entre lançamento da obra escrita e da obra cinematografica, Julio é interpretado por Diego Noguera, e Emilia, interpretada por Nathalia Galgani. O diretor consegue nos transportar ao desajustado mundo do casal do livro, o qual acaba sendo tão parecido com a nossa realidade, onde o amor nem sempre vence o destino, mas deixa uma marca profunda em quem o viveu. Após o cotejo da obra literária e da obra fílmica, identifica-se que pesar de existir relação intrínseca entre as obras, cada uma delas se configura como uma obra única, considerando que cada uma das linguagens, literatura e cinema, possui regras, códigos e convenções próprios. Verifica-se assim que a trama do texto literário original passou por modificações que ressignificam a narrativa durante o processo de recriação da narrativa fílmica, principalmente pela diferença de cinco anos entre uma obra e outra. Evidenciam-se processos de equivalência, uma vez que determinados sistemas de signos na literatura, são traduzidos e reinterpretados com outros sistemas de signos relacionados ao cinema. Muitos são os acréscimos, reduções e deslocamento de situações que foram identificados na obra fílmica, como por exemplo o número de capítulos. Enquanto no hipotexto, são cinco os capítulos

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que narram a história de Julio e Emilia, no hipertexto, os capítulos são oito, que contam dois momentos da vida de Julio com uma diferença de oito anos entre eles. Enquanto no livro não há clareza das diferenças de anos, no filme este recurso visual é bastante marcante com as mudanças entre os capítulos. A obra filmica une-se a realidade e nos transporta entre o presente e o passado envolvendo o espectador ao protagonista, aproximando assim suas realidades e frustrações. Os poucos dialogos da obra literária, acabam sendo substituidos pela ternura existente nas diversas trocas de palavras entre Júlio e Emila e, também, pela humanidade de interpretação existente nestes dois personagens. Aos atores, cabe a representação uma paixão que precisa de cuidados especiais, além de muita paciência, amor e carinho, para assim crescer de forma bela e saudável. Sem os cuidados especiais, o bonsai morre ou começa a deteriorar-se, assim como a relação de paixão entre Julio e Emilia. Outro importante coponente da traduçao para a obra filmica, está a a música. Com destaque para a banda de rock de origem chilena “Panico”, a história traduz o caminho musical que o casal tomou, iniciando com um rock alternativo pesado, que com o decorrer dos anos, tornou-se em músicas mais calmas e melancólicas, refletindo a individualidade dos personagens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nós ainda podemos falar em adaptações bem feitas ou mal feitas, mas desta vez orientados não por noções rudimentares de “fidelidade” mas sim, pela atenção à “transferência de energia criativa”, ou às respostas dialógicas específicas, a “leitura” e “criticas” e “interpretações” e “re-elaborações” do romance original, em análises que sempre levam em consideração a lacuna entre meios e materiais de expressão bem diferentes (STAM, 2009, p. 51)

Desta forma, ao estudarmos as adaptações, concluímos que elas não podem ser reconhecidas como simples cópias com a função de ser fiel ao texto, mas sim como um novo texto transformado por uma série complexa de operações que foi produzido em contexto diferentes e transmitida em um meio também diferente. Existe a necessidade de se compreender que a adaptação tem muita relação com a autoria, e especificamente com as afinidades potenciais entre romancista e cineasta. A originalidade completa não é possível e, segundo Stam (2009), “nem desejável. E se a “originalidade”na literatura é desvalorizada, a “ofensa” de “trair” essa originalidade é muito menos grave”. O romance original pode ser visto como uma expressão situada, produzida em um meio e em um contexto histórico e social e, assim, transformada em outra expressão, igualmente situada. O tradutor, já definido como leitor antes de ser produtor, também tem sua experiência moldada. Ele tem em vista o espectador com todos os seus condicionadores sociais, mas, simultaneamente, como o criador do interpretante, sofre, também, a influência desses mesmos condicionantes. A tradução situa-se, pois, na interseção, no entrecruzar desse social partilhado pelo emissor e pelo receptor do novo signo constituído pela tradução (DINIZ, 1994, p. 1004)

Percebe-se então que, apesar de serem obras independentes, estão intimamente ligadas. O foco do livro está em contar o romance dos dois e como se deu continuidade a vida de cada um, com a presença de novos personagens como Maria, namorada de Julio nos anos atuais, ou o escritor Gazmurri, quem Julio tanto admira. Já na tradução para a obra fílmica o foco é apenas em Julio, desde o seu inicio, até o final, quando o mesmo descobre a infelicidade da morte de sua paixão jovem, Emilia. Desta forma, quando a mensagem é compreendida adequadamente, a abordagem adotada acaba por oferecer possibilidades implausiveis para o desenvolvimento do cinema, que, segundo Diniz (1998) “passa a propiciar um diálogo vital e estimulante entre o texto e o leitor”.

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Ontologicamente, descontrói valores tradicionais; mimeticamente, em vez de reflexo da realidade, transforma-se em um ensaio onde se trabalham modelos de uma estrutura social melhor. A relação política com o espectador estabelece-se pela chance que este tem de interagir e de participar diretamente da lógica do filme (DINIZ, 1998, P. 333)

As discussões aqui desenvolvidas exploraram algumas possibilidades de reflexão teórica situadas na interface entre teatro e cinema que potencialmente causam um impacto na nossa compreensão dos filmes e transformando nossa compreensão de que não devemos ficar lamentando o que foi “perdido” na transição do romanca para o filme, mas sim identificar e analisar o que foi “ganhado”.

REFERÊNCIAS DINIZ, Thaís Flores Nogueira. A tradução intersemiótica e o conceito de equivalência. In. Revista Brasileira de Literatura Comprada – ABRALIC, São Paulo, v. 2, p. 1001-1004, maio 1994. ______. Tradução intersemiótica: do texto para a tela. Cadernos de Tradução, Florianópolis, v. 1, n. 3, p. 313338, 1998. STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Revista Ilha do Desterro A Journal of English Language, Literatures in English and Cultural Studies, América do Sul, 0 12 03 2009. ZAMBRA, Alejandro. Bonsái. São Paulo: Cosac Naify, 2013. BONSÁI: uma história de amor, livro e blá, blá, blá. Direção: Cristián Jiménez. Jirafa. Santigo, Chile, 2011. 95 min. Color.

A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA NOS CONTOS “FELIZ ANO NOVO” E “PASSEIO NOTURNO”, DE RUBEM FONSECA Minéia Carine Huber* (URI) Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo** (URI) Luana Teixeira Porto*** (URI)

Há muito, ou desde sempre, a violência e a crueldade estão presentes nas narrativas literárias, expressas das mais diversas formas. A maneira como são integradas na literatura tem mudado no decorrer dos anos, junto com a mudança da forma de se fazer literatura e com as mudanças sociais decorrentes da modernidade, que atinge todos os aspectos da vida social e pessoal e o mundo em si. Antes, o tema da violência e da crueldade nos textos literários, de forma preponderante na narrativa, era abordado de modo mais tangencial, muitas vezes sendo um pano de fundo para histórias menos áridas ou de temáticas distantes da reflexão sobre temas sociais. No século XX e no início do XXI, observamos a violência como tema fundador de contos, novelas e romances. A narrativa curta tem explorado intensamente essa vertente temática, ora para simplesmente retratar situações de violência social, ora para problematizá-la, já que, às vezes, essa violência, como reflexo da realidade, é apropriada pela literatura, que a aborda como forma de denúncia ou mesmo para enfatizar o tema nas obras. Nos noticiários e jornais, esse tema tem lugar de destaque e, como é constantemente exibido, acaba tornando-se um assunto banal. Já a literatura consegue fazer o leitor refletir sobre a violência, pois a forma como ela é retratada causa um choque e exige uma atitude reflexiva. Considernado isso, neste trabalho, buscamos verificar como a violência é representada nos contos de Rubem Fonseca, “Passeio Noturno” e “Feliz Ano Novo”, publicados em 1975, tendo em vista que este tema tornou-se recorrente nas produções artísticas e literárias e representa a realidade social do povo. A partir da análise do enredo e dos personagens dos contos, podemos analisar a fragmentação das narrativas que revelam a fragmentação do sujeito, o trauma vivido pelos personagens e a superação ou não deste trauma, a melancolia, fruto de eventos traumáticos e, por fim, como a violência e a crueldade são representadas nas narrativas literárias em questão. Com a análise dos contos, percebemos que, independentemente do lugar, da época, ou mesmo da forma como é praticada, a violência e a crueldade põem o sujeito em um estado de trauma e o fazem viver, muitas vezes, em um mundo fragmentado, desconexo e com desejos muito particulares. São desejos que transgridem as barreiras do correto e ultrapassam a liberdade do outro, na medida em que o outro é violentado, humilhado e, em muitos casos, morto.

Mestranda em Letras – Literatura Comparada, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen, Brasil. E-mail: [email protected] ** Mestranda em Letras – Literatura Comparada, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen, Brasil. E-mail: [email protected] *** Doutora em Letras, orientadora deste trabalho e professora da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen, Brasil. E-mail: [email protected] *

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1. A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA LITERATURA A literatura é conhecida por seu valor artístico, como a arte da palavra, e estético, ao exprimir de forma conciliadora a forma e o conteúdo dos textos, de modo a torná-los complexos e valorizando a escrita. Dentre os benefícios que a literatura traz para quem se apropria dela está o prazer pela leitura, o gosto pelas tramas, o envolvimento nas histórias, o julgamento dos desfechos etc. Por outro viés, a literatura é uma fonte inesgotável de conhecimento, na medida em que aborda questões sociais, históricas, culturais etc. de forma visível ao leitor, o que a faz ser uma importante fonte de conhecimento. Mas, além disso, um aspecto indispensável a ser considerado a respeito da literatura é a sua forma de questionamento das problemáticas sociais e a inquietação que provoca no leitor quanto aos problemas enfrentados pela sociedade ao longo dos tempos. É sobre este último aspecto que este trabalho está ancorado. A literatura, enquanto objeto que pensa o social, tem mostrado o quanto a violência está arraigada na cultura brasileira. Nesse sentido, segundo Ginzburg “A presença da violência na produção ficcional brasileira contemporânea é constante” (2007, p. 42), e isso denota o quanto as produções literárias deste tempo acompanham a realidade social. Tendo o exposto acima como pano de fundo social, neste artigo é analisada a representação da violência em dois contos de Rubem Fonseca. Este autor, que iniciou sua publicação na década de 1970, traz para a literatura uma forma diferente de narrar as histórias. É a chamada literatura brutalista, que expõe a violência, a fragmentação, o erotismo, a pobreza, os oprimidos socialmente e dá voz para os marginalizados pela sociedade, pois em: [...] narrativas impactantes, viscerais, Rubem Fonseca percorre favelas, subúrbios, ruas e mansões, revelando e retratando cruamente a violência, o apelo comercial da cultura de massa, o embate entre as classes, o acirramento das diferenças econômicas, o preconceito e o erotismo oriundos das novas relações socias estabelecidas no Rio de Janeiro da segunda metade do século XX. (GUIZZO, 2011, p. 30).

Conforme Guizzo “esta prosa da era da aceleração, do dinamismo, da fulgurância, das diferenças, da pluralidade, nas mãos de Rubem Fonseca, não visará entreter, mas sim, perturbar, chocar, agredir deliberadamente o leitor” (2011, p. 31). Ou seja, as obras de Fonseca possuem a sua verossimilhança na aproximação com a realidade que historicamente não recebia muito destaque. Essa aproximação centra-se no acompanhamento da vida social, com a fragmentação de seus sujeitos e as crises de valores que os acometem. Sua obra é iniciada em um período conturbado do cenário político e social brasileiro, o Regime Militar, iniciado em 1964, e, por isso, suas primeiras obras sofrem censura, exatamente porque uma das críticas centrava-se na ação repressora do Estado da época. Além disso, a maestria de Rubem ancora-se em retratar a violência praticada e deixar um caminho de interpretação a respeito de onde está a sua causa e como ela é algo constitutivo do ser humano. Isso percebe-se em: A natureza humana já é, por si só, agressiva e violenta, foi isso que nos permitiu evoluir sobre a face da Terra: nossa capacidade de matar, domesticar, dominar nos deu a sobrevivência. Organizados em grupos, precisamos desenvolver instrumentos de controle sobre nossos próprios ímpetos. O caso é que, nos últimos dois séculos principalmente, desenvolvemos, também, instrumentos que aperfeiçoaram nossos instintos de dominação, tornando-os mais sutis, mas não menos ofensivos. (PINA, 2009, p. 27-28).

A afirmação de Pina (2009) remete a uma questão histórica, física e de instinto de sobrevivência. A evolução humana sempre esteve embasada em práticas de atos violentos e opressores contra seus semelhantes e demais seres habitantes da Terra. O que mais perturba nesse cenário é a prática dessa violência mesmo com tanta evolução da sociedade. O desenvolvimento social deveria servir

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para extinguir as formas de violência, mas é usado como pretexto para a sua prática e agora de forma mais aperfeiçoada, provando o quanto o homem provoca sua própria autodestruição e torna-se, cada vez mais, um sujeito isolado em seu próprio mundo.

2. A VIOLÊNCIA NOS CONTOS “FELIZ ANO NOVO” E “PASSEIO NOTURNO” Os contos analisados, “Feliz Ano Novo” e “Passeio Noturno” (parte I), são do livro Feliz Ano Novo, o qual foi publicado em 1975. O primeiro texto, “Feliz Ano Novo”, expõe a desigualdade social e a violência escancarada, na medida em que aborda a história de homens marginalizados socialmente reunidos e que veem na televisão as manifestações da virada de ano, com as lojas vendendo roupas e demais produtos para os ricos no réveillon. Esses homens sabem de suas condições sociais e resolvem assaltar a casa de algum rico. Durante o assalto, realizam, além do roubo, atos de estupro e assassinato de forma natural. Ao final, como se não houvessem realizado algo desumano, comemoram a virada do ano e brindam com um irônico “Feliz Ano Novo” e comem as comidas que roubaram da festa, como se segue: Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente. Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm. Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba. Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo. (FONSECA, 1994, p. 371).

Do excerto, percebemos o narrador personagem e a frieza que os indivíduos que praticaram o ato têm e sugere a ideia de continuidade de suas ações, visto que eles praticam um ato criminoso e comemoram isso com desejos de que o próximo ano seja melhor, ou seja, os atos que os indivíduos praticam irão continuar e cada vez com mais aperfeiçoamento, já que se espera que sejam melhores no ano que virá. Porém, apesar da violência executada pelos homens de classe social desprivilegiada, é necessário ressaltar que estes indivíduos são excluídos da sociedade, das decisões sociais, é como se não pertencessem a essa sociedade. Isso exterioriza uma realidade de exclusão que faz os indivíduos marginalizados buscarem seu espaço e tentarem sobreviver em meio a desigualdade. Isso traz o leitor para uma leitura crítica a respeito da sociedade, na proporção que: A violência, em suas várias manifestações, mas, principalmente, a violência de ordem física, é vista, em nossa sociedade, como se fosse uma manifestação de caráter exclusivamente negativo e destrutivo, o fim de jogo dentro de um processo, e não o início de um novo processo, a partir do qual as relações dentro de uma sociedade possam tomar novos rumos [...]. Mas, na verdade, essa violência vem-nos exigir que façamos alguma coisa para que ela acabe. (COSTA, 2007 apud PINA, 2009, p. 26).

Do exposto acima, notamos a urgência de refletir e não tratar as narrativas que abordam a violência apenas como textos pesados e de difícil aceitação, mas sim, que seja refletido sobre isso e se entenda a raiz do problema, uma vez que, no caso de “Feliz Ano Novo”, os sujeitos marginalizados demonstram que fazem parte da sociedade e que existem, como consta em “As bebidas, as comidas, as joias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro” (FONSECA, 1994, p. 370). O fragmento sinaliza que a discriminação incomoda aos desfavorecidos e ela não será superada oferecendo migalhas aos que necessitam. O segundo conto, “Passeio Noturno” (parte I), expõe o sujeito igualmente violento, mas este de classe média alta. Neste conto, a violência é utilizada como forma de aliviar as tensões diárias e fazer valer a superioridade de seu status social. O sujeito dessa obra, também narrador personagem, chega à casa de mais um dia de trabalho e com seu carro potente sai de casa para aliviar a tensão.

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O que na verdade o sujeito quer é encontrar uma vítima, e encontra. Ao encontrar, joga o carro contra ela, matando-a e sentindo-se aliviado que não ficaram marcas em seu carro. Isso demonstra a fragmentação a que o sujeito está exposto e a dificuldade de resolver seus problemas. Neste conto, a violência vai ao encontro da afirmação de Oliva: A violência, praticada e proferida pelas personagens fonsequianas, é uma forma de esse homem contemporâneo, representado, aliviar-se de suas estafas, tensões e excessivos compromissos. A prática da violência funciona como um esvaziamento, uma válvula de escape para as neuroses e insatisfações do homem “pós-moderno” representado na ficção. (2004, p. 45).

Depreendemos da afirmação de Oliva (2004) que o homem na chamada modernidade é um indivíduo que, no fundo, é frustrado consigo mesmo. Esse indivíduo é um sujeito atarefado, conforme consta em “Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos” (FONSECA, 1994, p. 396) e sente prazer por algo obscuro: matar. Notamos, assim, o quanto a modernidade desfigurou o caráter do indivíduo, como se percebe em “Peguei a mulher acima dos joelhos [...] Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.” (FONSECA, 1994, p. 397). Do trecho, depreende-se a frieza do homem e o prazer pela desgraça de seu semelhante. O ato violento praticado por um sujeito de classe social abastada expõe outro problema social que diz respeito ao consumismo. Isso porque o homem quer testar a sua máquina sobre rodas, um carro potente, pois era “Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos” (FONSECA, 1994, p. 397). Outro motivo de fragmentação social: o culto ao capital, aos bens, às aparências financeiras e de posses, já que “Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos para-lamas, os para-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.” (FONSECA, 1994, p. 397). Para esse indivíduo, mais vale o capital que o próprio ser humano, este último é tratado como um objeto para testar sua máquina e se sentir bem, trazendo um “bem-estar que, em casos extremos, provém do atropelamento letal de um pedestre indefeso, do latrocínio ou do estupro de um outro qualquer, reduzido à condição de objeto” (NOGUEIRA, 2009, p. 11). Ou seja, o ser humano é transformado em um objeto de destruição pelo seu semelhante por puro prazer. A violência é representada em ambos os contos com crueza e de forma natural. O que se diferencia é a abordagem em cada um deles, pois os sujeitos que praticam os atos violentos em cada contos são de classes sociais distintas e possuem diferentes interesses ao realizar tais atos. Como a violência é constitutiva da realidade brasileira e é um elemento fundante a partir do qual se organiza a própria ordem social, conforme Pellegrini (2004), as narrativas literárias seguem essa perspectiva e trazem o tema para o leitor. A autora afirma ainda: [...] a história brasileira, transposta em temas literários, comporta uma violência de múltiplos matizes, tons e semitons, que pode ser encontrada assim desde as origens, tanto em prosa quanto em poesia: a conquista, a ocupação, a colonização, o aniquilamento dos índios, a escravidão, as lutas pela independência, a formação das cidades e dos latifúndios, os processos de industrialização, o imperialismo, as ditaduras. (PELLEGRINI, 2004, p. 16).

A afirmação acima reitera a condição de violência há muito presente na realidade brasileira e por isso a faz surgir na literatura, provocando o leitor. Essa provocação no leitor pode até causar repulsa à narrativa, mas também aproxima o leitor de uma realidade da qual ele sabe que existe, conhece e convive, mas que, vista por um ângulo elaborado, como a narrativa literária, torna-se algo que o incomoda e com isso o chama para a reflexão a respeito da realidade. A afirmação de que “a violência parte de um ser meio abstrato, um tanto indefinível, mas que envolve todos nós, do qual fazemos parte - a sociedade” (PINA, 2009, p. 27), explica o porquê de as narrativas sobre a violência provocarem o leitor, pois isso está ligado a ele, faz parte de seu dia a dia e do ambiente em que vive.

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Em tempos de rapidez, egocentrismo e uma quase agonia social, pensar a condição do próximo é uma atividade que vai além do pensar sobre o próximo, mas também é um voltar-se sobre si mesmo e pensar nas próprias atitudes e no que é possível contribuir com uma sociedade menos decadente de boas intensões. Para tornar possível esse pensar sobre o próximo e sobre si mesmo, é necessário perceber o caos instaurado nas relações sociais, que é uma temática recorrente na obra de Fonseca, conforme consta na afirmação: As narrativas fonsequianas possuem esse primor: de brincar com a morte e solapar as certezas do sujeito, representando indivíduos em crise existencial, “vivendo” num mundo caótico e sem sentido, tendo como única saída a sexualidade ou a violência levadas ao extremo. (OLIVA, 2004, p. 40).

Os personagens das narrativas de Rubem são sujeitos em crise e nos dois contos analisados recorrem à violência para resolver seus problemas ou se satisfazerem. Isso denota-se no conto “Feliz Ano Novo” em “Inocêncio, amarra os barbados. Zequinha amarrou os caras usando cintos, fios de cortinas, fios de telefones, tudo que encontrou” (FONSECA, 1994, p. 369). Isso demonstra o quanto os sujeitos são frios e violentos. Também recorrem à sexualidade para se satisfazerem, e esta vem de forma violenta, o que demonstra a frieza com o próximo. Não vais comer uma bacana destas?, perguntou Pereba. Não estou a fim. Tenho nojo dessas mulheres. Tô cagando pra elas. Só como mulher que eu gosto. E você... Inocêncio? Acho que vou papar aquela moreninha. A garota tentou atrapalhar, mas Zequinha deu uns murros nos cornos dela, ela sossegou e ficou quieta, de olhos abertos, olhando para o teto, enquanto era executada no sofá. (FONSECA, 1994, p. 371).

Da passagem, além da frieza e crueldade com que trata a relação com as mulheres, há a demonstração de nojo das mulheres favorecidas socialmente, só por causa das posses e do prestígio social que possuem. E toda a frieza é descrita pelo narrador que participa dos atos, que é personagem, o que torna mais cruel a narrativa, pois é o próprio sujeito relatando os atos violentos por ele praticados. Segundo Oliva (2004), os narradores fonsequianos chocam o leitor e abrem perspectivas para repensar a sociedade sobre o fato de haver tanta violência, quem são os culpados e o porquê da impunidade. No texto “Feliz Ano Novo”, Pereba e o personagem narrador dialogam na noite de ano novo no apartamento deste. Outro personagem importante da trama é Zequinha que chega ao apartamento e diz que estava à espera de algumas armas que viriam de São Paulo. Eles buscam as armas no apartamento de uma velhinha, Dona Cândida. As armas seriam usadas em um assalto a banco na Penha, subúrbio do Rio de Janeiro.  Ainda, em “Feliz Ano Novo”, os personagens conversam e decidem tentar violentar também a classe mais abastada, utilizando a violência que, para eles, parece uma forma de cobrar o que não foi conquistado devido às diferenças sociais. Para isso, arquitetam um assalto em uma casa de ricos: Eu tava pensando a gente invadir uma casa bacana que tá dando festa. O mulherio tá cheio de joia e eu tenho um cara que compra tudo que eu levar. E os barbados tão cheios de grana na carteira. Você sabe que tem anel que vale cinco milhas e colar de quinze, nesse intruja que eu conheço? Ele paga na hora. (FONSECA, 1994, p. 368)

O autor concentra as narrativas nas ações das personagens, o que confere maiores detalhes sobre a trama e dá veracidade às ações do texto. O problema da violência faz parte de nossa história desde a formação de nosso país. Os eventos se sucedem desde a colonização e o poder imposto pelos portugueses, depois a escravidão e, mais tarde, pelas formas violentas que as autoridades, principalmente na Ditadura, tratavam o povo que se manifestava contra suas imposições. As narrativas literárias reforçam a ideia da sociedade melancólica devido a traumas vividos. Nos dois contos há menção aos meios de comunicação, mais especificamente à televisão. Em “Pas-

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seio Noturno”. lemos “A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?” (FONSECA, 1994, p. 397) e em “Feliz Ano Novo” percebemos “Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no reveillon” (FONSECA, 1994, p. 365). Essa menção aos meios de comunicação prova o quanto estes têm participação na formação de opiniões e do próprio cidadão. Segundo Nogueira (s/d), a influência dos meios de comunicação de massa estimula o consumo como forma de afirmação identitária do indivíduo na sociedade, influenciando a ação criminosa dos protagonistas de “Feliz Ano Novo” como forma de reagir à concentração dos bens de consumo nas mãos duma parcela minoritária da sociedade, da qual se encontram excluídos. A sucessão de fatos que cerca, liquida e fragmenta as relações modernas comprovam que não há mais espaço para a sensibilidade e a literatura passa a ter um caráter social. Assim, a estética fragmentada ganha lugar nas narrações e reforça a ideia de fragmentação e melancolia do sujeito. Além disso, demonstra a frieza com que os atos são praticados, como em “Feliz Ano Novo”, na passagem “Com nojo, molhei de saliva o dedo da velha, mas mesmo assim o anel não saía. Fiquei puto e dei uma dentada, arrancando o dedo dela. Enfiei tudo dentro de uma fronha” (FONSECA, 1994, p. 369). Isso demonstra o quanto o sujeito perdeu a sua humanidade e como passou a tratar o próximo, com extrema crueldade. Ao longo da lenta e gradativa transformação da estrutura política, socioeconômica e democrática do país, testemunha-se o surgimento de uma literatura que busca expressar-se de maneira adequada frente às complexas experiências que surgem tendo como pano de fundo a violência. E essas experiências transformam o sujeito de tal forma que este se torna capaz de cometer atos cruéis com seus semelhantes apenas para testar suas máquinas, no caso de “Passeio Noturno”, um carro de alta potência, conforme segue: Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. (FONSECA, 1994, p. 397).

Nos dois contos a violência nos faz refletir sobre questões sociais, entre elas a desigualdade social, muitos com pouco e poucos com muito, que nos mostra através da temática, da linguagem e da estrutura da narrativa as consequências que a violência deixou nos personagens. A violência, em Rubem Fonseca, segundo Guizzo: [...] não se encontra apenas na representação de uma sociedade contraditória e conflitante [...], ela ultrapassa os limites do enredo e incorpora-se na linguagem que, em si própria, reflete, sem preconceitos ou valorações, a desu­manização, o conformismo, a prevalência do impulso sobre a razão, a efemeridade e a banalização da violência (2011, p. 31).

Ou seja, os contos analisados de Rubem Fonseca não são caracterizados apenas pela temática da violência, mas na forma e na linguagem, que são cruas, fortes e sem escrúpulos. Segundo Oliva (2004), o homem representado por essa linguagem da violência é apresentado em sua vida quotidiana, com suas realidades físicas, no seu ambiente doméstico, usufruindo o gozo diário da vida, em sua decadência e exasperação, e, na maioria das vezes, desprezível e desumano, pois ataca o seu semelhante e torna-se um sujeito cada vez mais recluso e fragmentado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do trabalho realizado, é possível entender que a literatura assume um papel social de destaque devido a seu papel de representar a realidade. Além disso, a literatura tem conseguido apresentar, nas narrativas, aspectos relacionados à formação moral do ser e fazer refletir o campo social e, neste contexto, nos faz pensar em que as narrativas literárias podem contribuir para o entendimento dos traumas vividos. A partir disso, entende-se a função social de denúncia e reflexão da literatura. Após a análise dos dois contos, observamos que, independentemente da forma como a violência e a crueldade estão inseridas nas narrativas, elas expressam a realidade vivida por muitos. Em “Feliz Ano Novo”, a realidade vivida pelos sujeitos que praticam a violência é de discriminação social, o que os torna sujeitos marginalizados e que recorrem aos atos violentos para superar suas fragmentações. Já em “Passeio Noturno”, a realidade do sujeito violento é outra, de socialmente abastado, que pratica a violência por puro prazer e como forma de aliviar suas tensões diárias. O indivíduo submetido a tantos episódios violentos em sua história acaba não conseguindo superar tudo e passa a viver em um mundo fragmentado, fantasioso, isolado e com medos e desejos muito particulares. Neste mundo imaginário, ele se isola e se esconde do mundo real que ele deveria encarar. É neste mundo fragmentado que o sujeito encontra um ponto de fuga e aquilo que o feria não mais existe, mesmo que para isso ele precise violentar.

REFERÊNCIAS FONSECA, Rubem. Contos reunidos. Org. Boris Schnaiderman. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. GINZBURG, Jaime. A violência em um conto de Marcelino Freire. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 4248, dez. 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2016. GUIZZO, Antonio Rediver. Rubem Fonseca: a representação da violência e das relações de poder enquanto agressão ao leitor no conto “O cobrador”. Terra roxa e outras terras: Revista de Estudos Literários, FAESI/ UNIGUAÇU, vol. 21, p. 29-39, set. 2011. Disponívem em: < http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa/g_pdf/vol21/ TRvol21c.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2016. NOGUEIRA, Roberto Círio. Inocentes homicidas: descontinuidades e permanências da violência em Guimarães Rosa e Rubem Fonseca. Em Tese, Minas Gerais, v. 13, p. 1-15, 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2016. OLIVA, Osmar Pereira. Transgressão, violência e pornografia na ficção de Rubem Fonseca. Unimontes Científicas, Montes Claros, v.6, n.2, p. 39-50, jul./dez. 2004. Disponível em: < http://www.ruc.unimontes.br/index. php/unicientifica/article/view/174/166>. Acesso em: 20 jan. 2016. PELLEGRINI, Tânia. No fio da navalha: literatura e violência no Brasil de hoje. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 24, p. 15-34, jul./dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2015. PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura, violência e vida: refletindo sobre a obra lobatiana para crianças. Miscelânea: Revista de Pós-Graduação em Letras, Campus de Assis, vol.6, p. 25-39, jul./nov. 2009. Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2016.

ANÁLISE INTERSEMIÓTICA DAS OBRAS “NOT TO BE REPRODUCED”, DE RENE MAGRITTE E “THE NARRATIVE OF ARTHUR GORDON PYM”, DE EDGAR ALLAN POE Nanachara Carolina Sperb* (IFC-Concórdia)

Neste artigo refletiremos sobre as relações intersemióticas representadas na pintura e na literatura. Na pintura, através da obra “Not to be reproduced”, de Rene Magritte. Na literatura, pela obra “O Relato de Arthur Gordon Pym”, de Edgar Allan Poe. A escolha das obras justifica-se pelos relatos encontrados, em buscas por bibliografias, falando que Magritte era um admirador do trabalho de Poe, e que muito se inspirava nas obras destes. Nenhum trabalho específico tratando das relações entre ambos em suas obras foi encontrado. Assim, o objetivo principal é encontrar essas relações e menções de um artista a outro, bem como analisá-las do ponto de vista das relações intersemióticas. Inicialmente, será realizada uma breve descrição de ambas as obras, para posteriormente passar às percepções e relações entre ambas.

1. “NOT TO BE REPRODUCED” “Not to be reproduced” é uma pintura criada por Rene Magritte em 1937. Pode-se traduzir o título, livremente, do inglês para o português como “Reprodução proibida”. É um quadro de 81 cm X 65 cm para o qual foi utilizada a técnicas de óleo sobre tela. É considerada uma obra surrealista e está em exposição no museu Boymanvan Beuningen de Rotterdam, na Holanda. Imagem 1: Not to be reproduced, de Rene Magritte

Mestre em Comunicação e Linguagens – Universidade Tuiuti do Paraná - UTP. Instituto Federal Catarinense – Campus Concórdia. Brasil. [email protected]

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Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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O quadro foi pintado no apartamento de James Edward, em Londres, sob encomenda deste. Magritte baseou a pintura em uma fotografia que fez de James olhando a obra “On the threshold of freedom” (COLLECTION, 2015). O trabalho é considerado como um retrato de James, apesar de seu rosto não aparecer representado. “Not to be reproduced” é uma de três obras produzidas por Magritte para o salão de baile de James na capital inglesa. Edward James era um rico excêntrico inglês. Além de ser amigo de Magritte, James também foi benfeitor dele e de Salvador Dali na década de 1930 (RENE, 2015). A pintura mostra uma figura masculina em pé de frente para um espelho. Porém, enquanto o livro sobre o aparador aparece refletido corretamente no espelho, o homem pode ver somente a parte de trás de sua cabeça. Ou seja, suas costas é que aparecem no espelho, como se este se recusasse a mostrar o rosto do homem. O livro que aparece na pintura é um exemplar já gasto da obra “O Relato de Arthur Gordon Pym”, de Edgar Allan Poe, em sua versão francesa (Les aventures de d’Arthur Gordon Pym).

2. O RELATO DE ARTHUR GORDON PYM O livro que aparece na imagem é intitulado “O relato de Arthur Gordon Pym”, de Edgar Allan Poe (1809 – 1849), escrito em 1838. É um romance de fantasia que relata, do ponto de vista do narrador, uma série de aventuras extraordinárias vivenciadas. Pode-se dizer que é, simultaneamente, uma história de aventuras, de terror, relato de viagem. “Espelhos reflexos onde vamos nos ler”, diz a síntese na contracapa do livro Imagem 2: Reprodução da capa do livro

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A história tem momentos de terror típicos de Poe. Sem usar de sobrenaturalidade, ele usa a condição humana para proporcionar cenas de tensão realísticas. A história encerra-se abruptamente, deixando para a imaginação do leitor os possíveis desfechos. O romance não permite que o leitor compreenda totalmente o que está acontecendo na trama, já que em muitos pontos o narrador não tem conhecimento de todos os fatos.

3. NARRADOR Conforme Jean Pouillon (ZILBERMAN, 2012) existem três tipos de narrador, aquele com a visão “por detrás”, o da visão “com” e o “de fora”. Nesta obra percebe-se o “narrador com”, aquele que está inserido na história – não aquele que a acompanha de fora, para saber de tudo que está acontecendo e também não está por trás dos personagens, para ver tudo que se passa e o que pensam. Ainda conforme Pouillon, o narrador “com” trata de coincidir com aquilo que se quer compreender, tendo o centro do relato em um único personagem. O narrador está com o personagem, é o personagem, e por isso sabe do que se passa com ele e o que ele pensa, mas não tem conhecimento de todos os passos dos outros personagens, seus pensamentos e sentimentos, nem outros cenários além daquele em que se encontra. Exemplo disso são as passagens em que Arthur Gordon Pym encontra-se no porão do navio, sem contato com os demais navegadores e sem conhecimento da rebelião que toma conta do navio; e o episódio em que ele e outro marujo se afastam do restante do grupo ao percorrerem caminhos desconhecidos junto em uma ilha ainda não explorada, e assim não participam de alguns episódios que se passam com os demais marinheiros, porém vivenciam outras experiências. O mesmo tipo de narrador encontrado no livro de Poe pode ser percebido na obra de Magritte, se considerarmos que uma pintura pode ter um narrador. Apesar de parecer que pode-se tratar de um narrador “por trás”, pois vemos o homem olhando-se ao espelho e a partir desse ponto de vista podemos “ler” a imagem, podemos entender que o narrado é “com”, pois a imagem mostra a situação, o cenário, do ponto de vista do homem que conta a história, como se ele dissesse: Eu sou James, estou em frente ao espelho e consigo enxergar apenas as minhas costas e a parte de trás da minha cabeça, enquanto o livro que estou lendo e deixei sobre o aparador aparece normalmente; não sei porque isso está acontecendo, mas é onde estou e o que sei no momento.

4. ESTRANHAMENTO Estranhamento é um termo usado pelo formalista russo Vitor Chklóvski (KOTHE, 1981), conceituando-o a partir das discussões a respeito da função da arte na sociedade. Para ele o formalismo é um efeito que obra literária tem sobre os indivíduos, para os “estranhar“ em relação ao modo como se apreende o mundo e a própria arte, o que permitiria entrar em uma nova dimensão, somente visível através do olhar estético ou artístico. O termo estranhamento aproxima-se do conceito de desautomatização, e não se distancia muito de desalienação. É uma forma única de ver e apreender o mundo e aquilo que o constitui, visão alargada pela arte e literatura ao ser desafiada a transformar as ideias pré-concebidas sobre o mundo e sobre as próprias formas de arte. Chklóvski constata que há uma automatização das palavras na linguagem cotidiana e que isso não é realmente vivenciado, apenas reconhecido de forma distraída. Segundo a teoria dos formalistas, grupo ao qual Chklóvski participava, existe a necessidade de despertar a percepção para a arte, pois tudo que é muito repetido deixa de ser arte propriamente dita e passa a ser arte trivial, ou seja, passa a ser algo corriqueiro. O estranhamento se opõe a essa linguagem automatizada e se explica pela busca da visão consciente do objeto a ser alavancado na arte. O estranhamento en-

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cara a arte como conhecimento e meio de pesquisa. O estranhamento, assim como a transposição1, afasta o objeto do modo habitual a que ele se normalmente é visto, transformando-o em uma coisa nova. Esse novo objeto pode ser dito como um signo – que se articula à imagem do símbolo e que se apresenta claro, unívoco, ausente de motivação e comunicado diretamente (STRÔNGOLI, 1998). O estranhamento é para a literatura o que a deformação é para o sonho – uma possibilidade de existência significativa além do que está posto à primeira vista. A imagem desafia a percepção do observador e causa estranhamento, pois não está condicionada à realidade, deixando um mistério sobre a face do homem retratado de quem só se vê a parte de trás do corpo. Esse efeito permite ao observador entrar em uma nova dimensão, só visível através de um olhar estético. Magritte utilizava, em suas pinturas, objetos em contextos inesperadas, bem como jogos de duplicações e arranjos diversos. Assim também é na história de Arthur Gordon Pym, em que experiências, cenários e povos desconhecidos são apresentadas ao leitor, sem que este possa saber tratar-se de coisas reais ou imaginadas pelo narrador devido às situações extremas em que se encontrava. Mais uma vez nota-se uma forma única de ver e compreender o mundo e o que o constitui, desafiando o indivíduo a transformar suas ideias pré-concebidas sobre o mundo e as formas de arte. Nas obras analisadas nota-se a impossibilidade de representar fielmente a realidade através de uma imagem, apesar das inúmeras tentativas da representação e entendimentos que se tem a respeito do que é real, já que o mundo moderno altera as faculdades de percepção e cognição. Assim como na obra de Magritte, em que o observador não tem nada mais do que está posto ali, também é na obra de Poe, em que o leitor recebe apenas a visão de Pym do que seria a realidade vivenciada. Assim, a noção de mímese como uma cópia do real é apenas figurativa e não é adequada (KOTHE, 1981). No sistema teórico de Bakhtin, o conceito de dialogismo é dominante. No que se refere ao estranhamento, essa relação dialógica é contínua entre o sujeito e o cotidiano.

5. SURREALISMO As pinturas de Magritte refletem a realidade pelo viés do surrealismo - não são apenas misteriosas, mas enigmáticas em relação ao sentido que ele deseja que tenham. Vê-se também, na relação entre as obras de Magritte e a de Poe em estudo o mistério surrealista presente na realidade visível, do ponto de vista dos artistas (LYCÉE, 2015). Ambos se mostram interessados nas coisas invisíveis e do subconsciente, bem como nas imagens oníricas. Porém, mais do que isso, interessavam-se por objetos comuns aos quais davam seu toque pessoal, tornando-os surreais – da maneira como os viam, segundo a sua própria realidade.

6. RELAÇÕES INTERSEMIÓTICAS Algumas relações podem ser feitas entre os trabalhos de Magritte e Poe. Uma delas é em relação à atração de ambos por enigmas e mistérios por trás de uma aparente realidade convencional. Outra, a consciência que ambos tem de seu trabalho com a linguagem. Em Magritte, esse dado se torna-se bastante relevante, uma vez que a concepção de signo do pintor, adquirida por meio do estudo de Saussure e Wittgenstein, propiciou uma prática que o aproxima muito do trabalho linguístico desenvolvido por poetas e escritores. (RODRIGUES, 2012)

Deslocar/ deformar partes de objetos e realoca-los junto a outros, ou em outra ordem, criando novas composições. Exemplo: Rostos de pessoas que aparecem em corpos de outras durante o sonho

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A proximidade do trabalho de Magritte com a literatura também se mostra na admiração declarada dele por Poe e Mallarmé2 e também pelas citações de outros poetas e escritores em algumas de suas telas. Porém, é o trabalho de Poe que mais fascina e influencia o pintor. As evidências disso se manifestam no modo implícito que os efeitos de mistério aparecem, além do modo explícito pelo qual versões de telas que produziu levam, de forma emprestada, títulos de obras de Poe (RODRIGUES, 2012). Não só em “Not to be reproduced”, mas também em outras telas de Magritte, se apresentam justaposições de objetos incongruentes – fazendo referência à transposição presente no estranhamento, trazendo uma aura de mistério, e também são misteriosas e enigmáticas em relação ao sentido que as obras tem (MEURIS apud RODRIGUES, 2012).

7. CONSIDERAÇÕES O intuito, ao longo deste trabalho, foi realizar uma leitura das relações intersemióticas apresentadas nas obras descritas durante o texto. Com estas observações, pode-se observar características presentes em ambos os trabalhos, com base especialmente nos conhecimentos sobre literatura e sistemas intersemióticos apresentados por Kothe. Por meio das características gerais de ambas as obras, pode-se notar que ambas fazem menção ao surrealismo, ao estranhamento, ao mesmo tipo de narrador, aos signos e ao mistério.

REFERÊNCIAS COLLECTION Museum Boijmans. Disponível em Acesso em 13 set. 2015. KOTHE, Flavio. Literatura e sistemas intersemióticos. São Paulo: Cortez. 1981 LYCÉE-Collège Claude Bernard. Disponível em Acesso em 13 set. 2015 MAGRITTE, René. Not to be reproduced. Óleo sobre tela, 81 cm X 65 cm. 1937. POE, Edgar Allan. O relato de Arthur Gordon Pym. Porto Alegre: L&PM, 1996. 285p. RENE Magritte. Disponível em Acesso em 13 set. 2015 RODRIGUES, Ana Paula Dias. Lygia Fagundes Telles e René Magritte: diálogos entre textos e telas. São Paulo: Editora Unesp, 2012. STROÔNGOLI, Maria Thereza. Do signo à retórica do imaginário. In: OLIVEIRA, Ana Claudia Mei de, BRITO, Yvana Carla Fechine de Brito. Semiótica da Arte: teorizações, análises e ensino. São Paulo: Hacker Editores, 1998. p. 99-019. ZILBERMAN, Regina. Teoria da literatura I. Curitiba: IESDE, 2012.

Stéphane Mallarmé, poeta e crítico literário francês (1842 – 1898)

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HUMANIZAÇÃO E EROTIZAÇÃO DO VAMPIRO NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA Natane Emanuelle Rangel* (UPF) Francisco Fianco** (UPF)

Os vampiros são seres fascinantes que desde sua existência instigam a curiosidade e o fascínio das pessoas sobre sua figura enigmática. Dessa forma, o presente artigo foi desenvolvido a partir de questionamentos acerca do que faz as pessoas serem tão fascinadas pela figura do vampiro, essa figura que povoa a cultura de vários povos e as mentes dos supersticiosos, em pleno século XXI. Assim sendo, o seguinte trabalho procurou aprofundar o estudo nas raízes históricas, nos fatos, mitos e lendas sobre os vampiros, com o intuito de recriar a verdadeira imagem dessa criatura, para confrontá-la com a dos vampiros literários dos séculos XIX, Drácula, de Bram Stoker, e XX, Lestat, da obra O Vampiro Lestat, de Anne Rice, observando o processo de humanização e erotização durante a transição do mito para a literatura nas respectivas obras.

1. NA TRILHA DO VAMPIRO A epidemia de vampiros que assolou desde a Península Balcânica até a Europa Ocidental no século XVIII, dizimando povoados inteiros e provocando uma onda de terror na população, revelou que pelo mundo afora existiam relatos de seres que regressavam de seu túmulo à noite e se alimentavam da energia vital dos vivos, bebendo seu sangue e deixando um rastro de morte, como afirma Manuela Dunn-Mascetti, em seu capítulo introdutório na obra Vampiros além da Saga Crepúsculo (2010). Contudo, estudiosos descobriram que esses seres são muito mais antigos do que se imaginava e que existem relatos de tais criaturas chupadoras de sangue em tempos mais remotos e em diferentes culturas espalhadas pelo mundo, como Egito, China, Filipinas e Indonésia. Ao que parece, existiam vampiros em todo o mundo e em uma variedade de culturas. A palavra “vampiro” deriva do termo eslavo vampyr, e não há dúvidas de que essa criatura é bem conhecida pelos aldeões romenos. Nosferatu, necuratul e stregoica também são termos que eram bastante utilizados pelos camponeses para se referir a esses seres, esse último significando mulher vampira (DUNN-MASCETTI, 2010, p. 94). Na Grécia, por exemplo, vrykolakas era a palavra utilizada para se definir um vampiro. De acordo com Claude Lecouteux (2005, p. 158), historicamente, os vampiros floresceram no século XVIII, o chamado século das Luzes, em que a religião era posta em causa e a ciência deveria explicar tudo; para Dunn-Mascetti, “é fácil encontrar referências às origens dos vampiros nos primórdios da humanidade, quando o ser humano tentava compreender o sentido da vida e da morte, porque se algo podia ser definido, talvez pudesse ser controlado” (2010, p. 162-165). E foi justamente aí que os vampiros se espalharam como uma epidemia, dizimando povoados inteiros, infestando as aldeias rurais do leste da Europa, como nas províncias da Hungria, da Romênia e da Transilvânia e alimentando o imaginário dos supersticiosos (2010, p. 15). Além da epidemia de vampiros coincidir historicamente com as invectivas da Razão, outro fato histórico também desempenhou importante papel na construção do mito. Os eruditos Gábor *

Mestranda em Letras, UPF, Brasil. E-mail: [email protected] Doutor em Filosofia, UPF, Brasil. E-mail: [email protected]

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Klaniczay e Karin Lambrecht, em estudos, acabaram por descobrir que a emergência do vampirismo coincidiu exatamente com o fim da caça às bruxas na Europa e tomou o seu lugar, como se as pessoas daquele tempo tivessem necessidade de exorcizar seus temores, necessidade de uma explicação para os males que as atingiam, aquelas epidemias repetidas de peste e de cólera (LECOUTEUX, 2005, p.159). Para a Igreja, teoricamente, só o corpo dos excomungados não se decompõe. Segundo a Igreja Ortodoxa da Europa Oriental, os corpos presos por uma maldição não são recebidos pela terra, não se desfazem, mantendo-se incorruptos e inteiros. Esse morto-vivo perambula à noite e gasta o dia em sua tumba até que alcance a absolvição, ou seja, eliminado por algum processo. Para Berta Waldman (1982, p. 4), talvez isso explique porque a crença em vampiros seja tão difundida nos países ortodoxos, particularmente na Transilvânia.

1.1. SANGUE É VIDA A história dos vampiros se desenvolve em torno da ligação simbólica entre sangue e vida, onde o sangue possui um simbolismo muito forte. Segundo Idriceanu e Bartlett (2007, p. 81), “o sangue é o centro do vampirismo em que é incontrolável o desejo experimentado pelo vampiro de beber a força vital de outro”. Traços do vampirismo remontam ao passado mais remoto e aparecem aliados à identificação do sangue como fonte vital. Untar o corpo com sangue, ou bebê-lo, era uma prática inserida no ritual de renovação da vitalidade que, transferida do vivo para o morto, abre uma fenda por onde entra em cena o vampiro. (WALDMAN, 1982, p. 3) Para Lecouteux (2005, p.175), a grande inovação do mito moderno foi a de subordinar a vida do vampiro à sua alimentação sanguínea, a fazer crer que ele se nutre daquilo que durante muito tempo foi considerado a própria essência da vida. Em quase todas as culturas do mundo, o sangue foi a verdadeira base da superstição e magia, temos como exemplo a tribo dos caffres, uma tribo africana, que acredita que seus mortos podem voltar e rejuvenescer bebendo sangue humano (DUNN-MASCETTI, 2010, p. 166-167). Para Idriceanu e Bartlett (2007, p. 81), na tradição vampírica, o sangue não é simplesmente a maneira de conseguir a eterna juventude e força, mas também é o veneno que não traz a morte, mas a perdição. O sangue associa-se à violência e à sexualidade, em oposição ao amor e à vida, em um jogo de ilusões e dualidades, criando laços diretos e estreitos com o vampirismo.

2. GENEALOGIA DO VAMPIRO Os vampiros são um interessante construto mental, que reúne o mito, a lenda, a história e a literatura (IDRICEANU; BARTLETT, 2007, p. 9), são seres que habitam o imaginário dos seres humanos há muitos séculos, que não estão mortos, não estão vivos e coexistem em uma estranha existência paralela entre dois mundos, entre o céu e a terra, entre a vida e a morte. Não são anjos caídos, não são fantasmas, não são demônios. Sabe-se que desde muito tempo acontecem tentativas de se definir com exatidão a sua natureza. Sabe-se que fisiologicamente o vampiro está morto, porém, de alguma forma sobrenatural seu espírito retornou do mundo dos mortos para reanimar seu corpo sem funções vitais: mas os vampiros não entram em nenhuma ordem, em nenhuma classe, em nenhum cálculo da criação. Eles não são nem a vida nem a morte, eles são a morte que afeta a vida; ou antes, são a máscara assustadora de uma ou outra. Os mortos os repelem com pavor à noite, e os vivos não os temem menos (apud LECOUTEUX, 2005, p. 16).

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Segundo nos conta Dunn-Mascetti (2010, p. 52), o vampiro se encontra fora da ordem do tempo que rege as nossas ações, pensamentos e sentimentos humanos, tornando-se um ser capaz de sentir e ter percepções além das de um ser humano. Além disso, ele não envelhece e, por isso, está fadado a viver eternamente com a aparência que possuía no momento de sua morte. É como se o vampiro, ao transpor as cortinas da morte, passasse a ter uma percepção mais intensa das coisas. Isso faz sentido, uma vez que o vampiro é mais um “animal” do que um ser humano. Ele é um predador, precisa matar para sobreviver e, portanto, precisa ouvir e ver muito bem tudo à sua volta para capturar a sua presa. Ele se tornou, além disso, um ser sobrenatural e como tal possui poderes que vão muito além das capacidades humanas das quais depende a nossa sobrevivência (DUNN-MASCETTI, 2010, p. 52). As origens primitivas do folclore medieval sobre vampirismo, segundo Dunn-Mascetti (2010, p.148), basearam-se no horror do derramamento de sangue em sacrifícios e carnificinas verdadeiras, enquanto que a literatura gótica e romântica sobre os mortos-vivos, surgida durante os séculos XVIII e XIX, é uma versão do vampiro mais erótica e aceitável, onde vampiros vulgares transformam-se em sedutores de rosto pálido e bem barbeado, vestidos a rigor. De acordo com Dunn-Mascetti (2010, p. 56), precisamos perceber que o vampirismo, com todo seu charme e elegância superficiais, está vinculado a um único aspecto da vida, que é a morte. E é justamente a morte a origem do olhar hipnótico do vampiro, como ele a contém, a vítima é hipnotizada e atraída para o mundo dos vampiros (2010, p. 63). Os vampiros vivem no mundo das sombras, onde a matéria não tem substância nem importância, onde o tempo não existe, onde a vida é eterna e os poderes, desconhecidos e irreconhecíveis aos nossos olhos, governam e se movem de maneiras que vão além da nossa compreensão.

O medo de vampiros tem sido uma constante desde que os registros escritos passaram a existir e, assim, essas figuras ameaçadoras de mortos-vivos têm sido encontradas nos mitos mais remotos, por isso, ninguém poderá negar a importância do tema para o imaginário humano uma vez que, segundo Lecouteux (2005, p. 72), o vampiro faz parte da história da humanidade, desempenha um papel, tem uma função e se inscreve num conjunto complexo de representações.

3. OS VAMPIROS A literatura tem tido uma grande produção de livros com a temática vampiresca nos últimos tempos, além disso, a atração do público por esses livros faz com que sejam esses leitores sejam guiados até os clássicos que apresentam essa personagem, como é o caso de Drácula, de Bram Stoker, entre outros.

3.1. CONDE DRÁCULA Para caracterizar o Conde Drácula e confrontá-lo com o vampiro das lendas, partiremos da descrição de Jonathan Harker ao conhecê-lo. Harker faz anotações em seu diário sobre as impressões do Conde: “um homem alto, bem barbeado, com exceção de um longo bigode de fios brancos, e vestia-se de negro dos pés à cabeça, sem qualquer mancha de cor em todo o corpo” (STOKER, 1998, p. 28). Logo, ao observar o Conde com mais calma, ele desenvolve uma descrição mais completa, observa o rosto, o formato do nariz, da testa e do cabelo. Jonathan demora-se ao analisar detalhes como as orelhas pontiagudas, os dentes protuberantes e as mãos, que têm pelos na palma e unhas que mais parecem garras. Por toda sua descrição, principalmente as últimas características, parece-nos que ele está descrevendo uma criatura totalmente repugnante cuja sua imagem iguala-se à descrição de um monstro horrendo.

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3.1.1. LESTAT DE LIONCOURT

A caracterização de Lestat é feita logo na primeira página por ele mesmo (RICE, 1999, p. 9): “sou o vampiro Lestat. Sou imortal. Tenho um metro e oitenta de altura, cabelos louros e ondulados, meus olhos são cor de cinza. Tenho um nariz bem pequeno e estreito, uma boca bem desenhada, só que um pouco grande demais para meu rosto. Pode parecer muito cruel ou extremamente generosa a minha boca. Mas sempre parece sensual”. Pela descrição, percebe-se que Lestat é muito mais provido de beleza do que o Conde Drácula, sua descrição é de uma face harmônica e de uma beleza impressionantes. Ele é um vampiro sedutor, que nessa obra é um astro de rock provocante.

4. (DES) VAMPIRIZANDO-SE Ao analisarmos a palavra “vampiro” e sua etimologia, perceberemos que ela parte de uma raiz comum na maioria das línguas mediterrâneas e em territórios mais próximos da pátria de Drácula, possuindo o significado de “chupador de sangue”. A referência mais antiga a essa palavra surgiu na Eslovênia. Segundo explica Dunn-Mascetti (2010, p. 157), “a palavra é formada por vam, que significa “sangue”, e pyr, que significa monstro, e esse monstro sanguinário não era, em hipótese alguma, aristocrático, sexy, culto ou imortal, mas simplesmente muito, mas muito repugnante”. Para ela, a criação e constante difusão da crença humana nas lendas de vampiro têm sido alimentadas de maneira muito eficiente pela literatura (2010, p. 145). Nos contos folclóricos originais, vampiros, lobisomens e outras criaturas abomináveis saltam sobre suas vítimas, com a cara coberta de pelos e exalando um odor nauseabundo, e lhe abrem a garganta como um animal selvagem sobre a vítima convulsiva. Não há nenhum romantismo nem nada de agradável, intelectual ou minimamente humano nesse ataque, e provavelmente todo o processo durava apenas alguns segundos. Sem dúvida não tinham nada em comum com os romances de sucesso. (DUNN-MASCETTI, 2010, p. 148)

A partir da afirmação de Dunn-Mascetti, observa-se que, ao longo dos tempos, houve uma alteração da imagem do vampiro de um monstro chupador de sangue para uma figura extremamente sensual e sexual, aproximando-se mais da figura humana e abandonando sua monstruosidade. No romance gótico do século XIX, o vampiro se torna um homem alto, magro, bem vestido e com amplos conhecimentos de temas mundanos, acumulados ao longo de centenas de anos de viagens e em meio a pratos refinados (embora ele não coma nem beba), entretendo seus convidados com conversas intelectuais e seduzindo as suas vítimas do sexo feminino com olhares hipnóticos, gestos refinados e promessas de prazer sexual. O modo de matar passa da cavidade torácica para o pescoço, com implicações bastante explícitas, de penetração sexual e submissão eterna (DUNN-MASCETTI, 2010, p. 148).

Tal alteração de imagem deveu-se inicialmente pela visão romanceada do vampiro na literatura e, posteriormente, impondo mais apelo sexual, o cinema tem contribuído muito na construção e fixação desse estereótipo do vampiro ligado à erotização. Isso foi explorado ao máximo por Hollywood: o vampiro do sexo masculino foi estereotipado como possuidor de um poder hipnótico que deixa sem defesas qualquer garota (IDRICEANU; BARTLETT, 2007, p. 195). Dessa forma, cabe ressaltar que, a figura do vampiro ligada à sexualidade e erotismo tem ligação direta entre o conceito de vampiro aristocrático, inspirado na imagem e personalidade de Lord Byron.

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4.1. LUXÚRIA E SANGUE Como visto anteriormente, o vampiro é tido como um monstro que, à noite, chupa o sangue de suas vítimas em busca da substância vital, o sangue. Por sua condição de poder transitar entre dois mundos, desperta grande curiosidade em seu entorno, o que gerou durante muito tempo várias tentativas de se definir sua existência. Segundo Lecouteux (2005, p. 169), o mito do vampiro continua a exercer fascinação sobre os espíritos mais científicos que estão à procura desesperada de uma explicação. Observamos também que, essa imagem monstruosa, ao longo dos tempos, foi sendo modificada na literatura, caracterizando o vampiro como um ser de natureza sensual, que exala erotismo, fascina e seduz suas vítimas com o “poder hipnótico de seu olhar” (IDRICEANU; BARTLETT, 2007, p. 184). O vampiro, exótico e misterioso, foge a todas as explicações e, portanto, provoca um sombrio fascínio. Ele prende a atenção do leitor com a mesma força hipnótica usada para atrair suas vítimas fictícias mordidas no pescoço, e a nossa curiosidade lhes dá tanta vida e força quanto o sangue das pessoas inocentes e de boa aparência atraídas por ele. (IDRICEANU; BARTLETT, 2007, p. 176) Para Idriceanu e Bartlett (2007, p. 204), a sugestiva sensualidade do vampiro e os atos a que se entrega são um dos mais notáveis aspectos do mito. É difícil de resistir a um desses aspectos, a combinação de sexo e terror [...], em todas as acepções da palavra, o vampiro continua a exercer seu sinistro fascínio. Do mesmo modo, Dunn-Mascetti relaciona a atração sexual exercida pelo vampiro ao fato de ele ser tão repulsivo: ele influencia de maneira tão poderosa a nossa imaginação porque representa uma distorção da natureza humana, a inversão de tudo o que é considerado normal. Essa é uma das armas que o vampiro utiliza para convidar as suas vítimas a encontrar a morte e o processo de transformação que as fará ser como ele. Ele captura a nossa imaginação e nos atrai para um caminho de desesperança enganosamente atraente. Essa é a sua maior habilidade, a sua poderosa força de sedução (2010, p. 15).

Ao longo da história, encontramos o vampirismo relacionado a perversões, ao sexo implícito e à insinuação (IDRICEANU; BARTLETT, 2007, p. 200), existindo uma ampla ligação entre vampirismo e sensualidade. Segundo Idriceanu e Bartlett, a sexualidade sempre presente, permanece como parte importante do fatal fascínio do vampiro (2007, p. 61). Observa-se que sexualidade é um aspecto que se tornou mais manifesto ao longo dos anos, e, esse tema, em particular, surge em “O Vampiro” do Dr. Polidori.

4.2. VAMPIROS E SEXUALIDADE Para Idriceanu e Bartlett (2007, p. 202), em vista da natureza perversa do vampirismo, em que há penetração no corpo por meio da mordida em vez da relação sexual e o prazer máximo é a retirada de sangue, não surpreende que exemplos extremos de depravação sexual tenham sido vinculados a tendências vampirescas. De acordo com Jesus Antônio Durigan (1985, p. 80), teórico que estuda o erotismo na literatura: existem certas características que acompanham e configuram a personagem e a ajudam a compor as representações eróticas do texto, por exemplo, a transgressão às normas como forma de realizar seu desejo, o auxílio de outras personagens no sentido de criar-lhe condições para suprir suas vontades e o poder de sedução adquirido através da transformação mágica que, ao desobrigá-lo de atuar como sujeito da ação, transfere ao maravilhoso a responsabilidade de conseguir-lhe o objeto sexual desejado.

Percebe-se que tais afirmações acima citadas relacionam-se à figura do vampiro e sua representação erótica nos textos literários. Embora o vampiro seja um ser erótico, de acordo com Wald-

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man (1982, p. 11), seu erotismo não é genital, pois, dada sua impotência fisiológica, seu centro erógeno muda de lugar e passa para os dentes (incisivos) que se alongam e que, ao invés de transmitir vida, a subtrai. Aparecendo como instrumento erótico, embora impotente, a relação entre vampiros é geralmente heterossexual. Contudo, Anne Rice, em sua obra, contradiz Waldman ao apresentar relações homoeróticas entre vampiros. Na sua prática, o Vampiro situa-se no rol das criaturas cuja ação o nosso desejo rejeita. Se para nós ele caminha em pleno domínio negativo, é preciso considerar que essa negatividade se revela, na atuação vampiresca, como prazer. Instrumento erótico, embora de um erotismo não genital, o Vampiro reúne em si as pulsões sexuais que são autênticas pulsões de vida, e, ainda, as pulsões de destruição e morte. As categorias divergentes em Freud Eros e Tanatos – em que a segunda revela o sentido da primeira como aquilo que resiste à morte, enfeixando-se, portanto, as pulsões sexuais como autênticas pulsões de vida, atuantes contra o desígnio da outras pulsões que conduzem à morte -, são configuradas como convergentes na prática vampiresca, já que no próprio ato da conjugação sexual se instila a morte. É desse modo, como figura erótico-assassina, que o Vampiro marcará sua presença em toda uma tradição literária, a do romance gótico (WALDMAN, 10982, p. 11).

Idriceanu e Bartlett (2007, p. 202) relacionam o comportamento sexual extremo vinculado ao vampirismo como forma de cativar o público leitor, particularmente nos tempos vitorianos, quando a sexualidade, com muita frequência, era encoberta. Para Idriceanu e Bartlett, o sexo está na raiz do fenômeno vampírico, onde essa sexualidade, sem muita sutileza, pode ser encontrada no poema de Charles Baudelaire Metamorfoses do Vampiro, que mostra a imagem da vampira sedutora, figura que não é encontrada nos relatos das epidemias vampirescas do século XVIII, mas, segundo Idriceanu e Bartlett (2007, p. 197), possui antecedentes muito mais antigos: Observa-se que não somente o vampiro é desenvolvido em torno da figura tentadora e com irresistível charme magnético, mas também a vampira, como mulher voluptuosa, que ameaça explodir em vulcânica sexualidade (IDRICEANU; BARTLETT, 2007, p 194). Ela é ligada à sensualidade e grande apetite sexual, que as supostas vítimas são incapazes de resistir, isso pode dever-se ao fato de (IDRICEANU; BARTLETT, 2007, p 108) a lua ter uma associação às mulheres e à sexualidade.

4.3. EROTIZAÇÃO E LITERATURA Ao criar seu personagem vampiro inspirado nos costumes de Lord Byron, Dr. Polidori relacionou de vez o conceito de vampiro ao erotismo, que pratica muito mais do que só sucção de sangue. Porém, como citado anteriormente, o vampiro é um ser morto, tornando-se biologicamente impotente, mas a ficção literária faz alusões ao fato de o vampiro atacar jovens mulheres em busca de gratificação sexual, e não de sangue simplesmente (IDRICEANU; BARTLETT, p. 194), contudo, os atos sexuais são implícitos nas obras: “Polidori nos deu o protótipo do vampiro, ou seja, um nobre, arredio, brilhante, que provoca arrepios, fascina as mulheres e é friamente maligno (apud IDRICEANU; BARTLETT, p. 46)”. O domínio do vampiro inicia-se através do seu poder de fascinar as suas vítimas com o seu olhar hipnótico. Segundo Dunn-Mascetti (2010, p. 149), tal ligação entre o vampiro e a figura de Lord Byron, serviu para trazer à nossa vida atual a aristocrática e erótica criatura das trevas. Os vampiros decidiram viver entre nós justamente porque parecemos obcecados pelo que não podemos possuir, porque ansiamos obter o impossível, porque satisfazemos os nossos desejos, medos e expectativas e acabar com o vácuo na nossa vida com o que eles representam. Poderíamos até dizer que o vampiro é um espelho perfeitamente polido no qual projetamos todos os nossos sonhos e fantasias, sexuais e intelectuais, e a projeção dota essa estranha criatura de uma atração a que achamos impossível resistir (Dunn-Mascetti, 2010, p. 36).

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Segundo Idriceanu e Bartlett (2007, p. 61), somo fascinados pelos vampiros porque o “horror” sempre exerceu atração sobre os seres humanos. Pode-se dizer que esse seja seu maior poder sobre os simples mortais, que se sentem atraídos pela sua beleza fugidia, por algo que parece real, mas não é, pelo poder de uma criatura que é, na verdade, uma ilusão “humana”. Para Dunn-Mascetti (2010, p.36), os vampiros exercem um poder sutil sobre a psique, que faz com que projetemos sobre ele qualquer forma que se ajuste à nossa imaginação, pois preferimos acreditar mais nas nossas fantasias do que naquilo que percebemos com os nossos sentidos. Dessa forma, ao formar sua imagem, fantasia e realidade, o vampiro suga não só o sangue, mas também a energia psíquica que controla as funções físicas e mentais, tornando-se uma projeção perfeita dos nossos desejos.

CONCLUSÃO Observa-se que a humanização dos vampiros tem sido um processo evolutivo ao longo dos tempos, aonde o vampiro vem se descaracterizando em partes do seu aspecto monstruoso e aproximando-se da figura humana, fato que pode ser comprovado com as descrições de Drácula e de Lestat. Cabe destacar que, ao serem introduzidas nos vampiros características relacionadas a práticas sexuais, à sedução e ao desejo não só por sangue, mas sexual, ele torna-se menos monstruoso, pois tais práticas e sentimentos são propriamente da natureza humana, o que faz com que ele aproxime-se da humanidade outrora perdida. A atual propagação mundial de sagas e coleções de livros com a temática vampiresca, e também de obras cinematográficas e séries televisivas vem acrescentar à pesquisar e comprovar a inscrição da importância do vampiro no construção do imaginário dos povos. Dessa forma, o presente artigo pode confirmar que os processos evolutivos da descrição e apresentação do vampiro na literatura só pode torná-lo mais acessível como objeto de desejo afetivo e sexual por tê-lo concomitantemente tornado mais próximo do humano, mais distante do grotesco e mais tangível no imaginário leitor.

REFERÊNCIAS BOURRE, Jean-Paul. Os vampiros. São Paulo: Publicações Europa-América, 1986. DUNN-MASCETTI, Manuela. Vampiros além da saga Crepúsculo: tudo o que você precisa saber sobre vampiros e Stephenie Meyer não contou em seus romances. São Paulo: Pensamento, 2010. DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e literatura. São Paulo: Ática, 1985. IDRICEANU, Flavia; BARTLETT, Wayne. Lendas de sangue: o vampiro na história e no mito. São Paulo: Madras, 2007. LECOUTEUX, Claude. História dos vampiros: autópsia de um mito. São Paulo: Editora UNESP, 2005. RICE, Anne. Entrevista com o vampiro. Tradução de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. ____. O Vampiro Lestat: segundo volume de crônicas vampirescas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. STOKER, Bram. Drácula. Porto Alegre: LPM, 1998. WALDMAN, Berta. Do vampiro ao cafajeste: uma leitura da obra de Dalton Trevisan. São Paulo: Hucitec; Curitiba: Secretaria da Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paraná, 1982.

SEMÂNTICA GLOBAL E OS PLANOS CONSTITUTIVOS DO DISCURSO: A VOZ DO TORCEDOR DE FUTEBOL Neuzer Helena Munhoz Bavaresco* (IFRS- Sertão) Ernani Cesar de Freitas** (UPF)

INTRODUÇÃO Este estudo insere-se nos pressupostos da teoria discursiva enunciativa de Maingueneau (2004, 2008a, 2008b, 2010) e visa descrever e analisar o ethos discursivo depreendido da música “Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho”, criada pela torcida organizada do Grêmio Football Porto Alegrense. Sabemos que o torcedor de futebol possui características muito marcadas, e muitas delas advindas de um pré-concebido que a sociedade tem desse torcedor. Desse modo, estabelecemos a questão norteadora deste estudo: como é criado o ethos discursivo a partir de pistas linguísticas que denunciam o comportamento do torcedor de torcida organizada? A partir desse questionamento, o objetivo desta pesquisa é descrever e analisar o ethos discursivo do torcedor de futebol do Grêmio Football Porto Alegrense. A fundamentação teórica deste estudo está baseada em Dominique Maingueneau, (2004, 2008a, 2008b, 2010). Os procedimentos metodológicos adotados caracterizam esta pesquisa como descritivo-qualitativa. Analisamos uma canção muito popular entre os torcedores do Grêmio Football Porto Alegrense, que se intitula “Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho”, criada pela torcida organizada do time. A seleção desse material se deve principalmente por caracterizar outro estilo de torcedor, como também, por priorizar uma letra mais extensa com a possibilidade de um desprendimento linguístico melhor para o estudo. Para logramos o objetivo, este trabalho está estruturado da seguinte maneira: na primeira seção discorremos sobre a temática da semântica global. Na segunda, realizamos o estudo da cenografia e discorremos sobre a construção do ethos, para que possamos analisar o torcedor configurado na canção. Em seguida, os procedimentos metodológicos e análise. Por fim, as considerações finais destacam os resultados e possíveis estudos relacionados com a semântica global.

1. UMA SEMÂNTICA GLOBAL A semântica global foi proposta por Maingueneau (2008a), em seu livro Gênese dos Discursos de 1984, onde sete planos enunciativos, intertextualidade, vocabulário, temas, os estatutos de enunciador e coenunciador, a dêixis enunciativa, modo de enunciação e modo de coesão, se integram para formar uma semântica. Desse estudo se depreende também as questões sobre a cenografia, que juntas são capazes de determinar o ethos discursivo. Em Gênese dos discursos, Maingueneau (2008a) apresenta estes planos, como ilustradores de uma “variedade das dimensões abarcadas pela perspectiva de uma semântica global” (MAINGUE-

Mestra em Letras; Professora de português e literatura no Instituto Federal do Rio Grande do Sul- Campus Sertão. Email: neuzermunhoz@ gmail.com ** Doutor em Letras/Linguística Aplicada (PUCRS)com pós-doutorado em Linguistica Aplicada e Estudos da Linguagem (PUC-SP/LAEL); professor permanente do Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade de Passo Fundo (UPF); email: [email protected] *

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NEAU, 2008a, p.77), mas sem constituir um modelo genérico possibilitando ao analista isolar ou repartir as divisões propostas. O primeiro plano apresentado pelo autor é a intertextualidade, entendida “como o conjunto de fragmentos efetivamente citados por um discurso”. (SOUZA-E-SILVA; ROCHA, 2009, p.10). Este plano diferente da interdiscursividade pois deixa marcas na materialidade linguística. O segundo plano, diz respeito ao vocabulário, que Maingueneau (2008a) aponta não demandar muitas explicações visto que cada discurso não possui um léxico específico mas sim, “sentidos diferentes atribuídos a um mesmo item lexical por discursos diferentes, dependendo do posicionamento discursivo”. (SOUZA-E-SILVA; ROCHA, 2009, p.11) Desse modo, é no contraste do uso da palavra que depreendemos os diferentes sentidos que essa palavra adquire independente de pertencer a um determinado discurso. Como terceiro plano, Maingueneau (2008a), apresenta o tema. Tomado em um sentido amplo, podemos dizer que é aquilo de um discurso trata, sem interessarmos pelo estudo dos temas isoladamente, pois como afirma o autor “o importante não é o tema, mas seu tratamento semântico”. (MAINGUENEAU, 2008a, p.82) O enunciador e coenunciador, por sua vez é um plano que irá depender da competência discursiva que instaura o estatuto que o enunciador deve se conferir e o estatuto que ele confere a seu coenunciador, para legitimar o seu dizer. (MAINGUENEAU, 2008a, p.87) Todo discurso possui marcas de espaço e de tempo, não concretas como datas e locais, mas sim, marcas do estatuto discursivo dos enunciadores. A dêixis “define uma instância de enunciação legítima que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação” (MAINGUENEAU, 2008a, p.89), e de fato define a cena e a cronologia que o discurso constrói para legitimar a sua enunciação.O discurso também possui uma característica específica, que diz respeito à “maneira de dizer”, que é o plano chamado de o modo de enunciação. Neste plano podemos perceber que os discursos possuem um certo “tom”, uma “vocalidade” capaz de dar corporalidade ao enunciador e dessa forma o sentido, na semântica global, implica uma maneira de dizer e de ser. Por fim, o sétimo plano implica a interdiscursividade, e é o modo pelo qual um discurso constrói seus parágrafos ou mesmo pela forma como passa de um tema ao outro, a esse plano Maingueneau (2008a) denomina de modo de coesão. Podemos observar, pela explanação destes planos discursivos, que nenhum plano é privilegiado, visto que são imprescindíveis à cena de enunciação uma vez que especificam o funcionamento discursivo que legitima o dizer.

2. UM DISCURSO ENCENADO: A CENOGRAFIA E O ETHOS DISCURSIVO Para adentrarmos o território da cenografia é necessário expor alguns conceitos anteriores a este que de alguma forma o moldaram. Muitos pesquisadores assimilam as noções de “situação de enunciação”, “situação de comunicação” e “contexto” de maneira confusa, percebendo a situação de enunciação como contexto empírico em que o texto é produzido. Em Doze conceitos em análise do discurso, Maingueneau (2010), contribui para esclarecer esse conflito terminológico separando em dois planos sobre a atividade discursiva: o plano da enunciação elementar e o plano do texto. No plano de enunciação elementar, encontramos a noção de “situação de comunicação” entrelaçada com Benveniste, e tratando a situação como coordenadas abstratas, puramente linguísticas que irão possibilitar todo e qualquer enunciado. Esta noção esclarece bastante e afasta a possibilidade de interpretar a palavra situação como o entorno físico. Dentro desta perspectiva, a situação de enunciação comporta as posições de enunciador, coenunciador e a não pessoa. (MAINGUENEAU, 2010, p. 201). A primeira, a posição de enunciador, remete a um marco de

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referência e modalização enquanto que a posição de coenunciador cria a alteridade da enunciação, a não pessoa é apresentada como uma posição que não pode assumir um ato de enunciação. A situação de enunciação compreende posições e lugares, estes não coincidem necessariamente com lugares ocupados na troca real entre as pessoas. Maingueneau (2010) distingue três posições da situação de enunciação e três lugares que o autor chama de situação de locução, “o lugar do locutor, daquele que fala; o lugar do alocutário, daquele a quem se dirige a fala; o lugar do delocutado, daquele do qual falam os interlocutores.” (MAINGUENEAU, 2010, p. 202). Passamos agora para o segundo plano da atividade discursiva, o plano do texto. Até esse momento os enunciados elementares, ou mais simplesmente frases, era considerado. Mas percebemos que para o texto quatro termos estão em concorrência: o contexto, a situação de discurso, a situação de comunicação e a cena de enunciação. O contexto para Maingueneau (2010), “recobre de uma só vez o contexto linguístico [...], o meio físico da enunciação, e os saberes partilhados pelos participantes da interação verbal”. (MAINGUENEAU, 2010, p. 204). Para o autor, esse termo acaba se tornando abrangente demais, e em uma perspectiva do estudo de textos, se revelam mais cômodas a utilização dos termos situação de comunicação e de cena de enunciação. A situação de comunicação consiste em algo que é exterior, a uma situação de discurso indissociável do texto. Desse modo os enunciadores ao participar de uma atividade discursiva retiram seu repertório de um repertório de variedades e a cada gênero do discurso são associadas normas desses domínios. A cena de enunciação, por sua vez, compreende três cenas: a cena englobante, a cena genérica, a cenografia. A primeira corresponde ao tipo de discurso, religioso, político; a segunda trata de gêneros de discurso específicos, de normas; e a última, por sua vez, é constituída pelo próprio texto, não apenas como uma moldura, um quadro, pertencente ao espaço físico, mas sim um espaço legitimado pela própria enunciação. [...] a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele: é a enunciação que, ao se desenvolver, esforça-se para constituir o seu próprio dispositivo de fala. (MAINGUENEAU, 2004, p. 87)

Desse modo, uma cena genérica rotineira pode ser enunciada por meio de uma cenografia que se afaste dessa rotina. A cenografia se torna desse modo, “aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra: ela legitima um enunciado que, por sua vez deve legitimá-lo”. (MAINGUENEAU, 2008c, p.71). A cenografia e o ato de tomar a palavra implica um ethos. Uma voz que no discurso é revestida por um corpo. Esse termo, ethos, advém da concepção aristotélica, que conforme comenta Maingueneau (2008c, p. 56), “consiste em causar uma boa impressão mediante a forma com que se constrói o discurso, em dar uma imagem de si capaz de convencer o auditório, ganhando sua confiança”. Desse modo, ethos, diz respeito à construção de uma imagem de si por meio do discurso. Essa imagem criada pelo enunciador no discurso está revestida por uma corporalidade e um “tom”. Esse “tom” irá valer tanto para discursos escritos como orais, e será ele que conferirá a representação subjetiva do corpo do enunciador. Dessa maneira, o discurso, junto com a cenografia, é composto por uma imagem e essa imagem por um tom, uma voz e um corpo. Podemos observar a evolução dos planos enunciativos para a constituição do ethos, no seguinte gráfico:

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Gráfico sobre a evolução dos Planos Enunciativos

Fonte: Do autor

Explicitado este quadro síntese, a próxima seção é dedicada à topicalização dos dispositivos de análise que envolve a construção do ethos discursivo, em especial, a imagem de torcedor de futebol, da música do Grêmio Football Porto Alegrense.

3. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE Esta pesquisa possui caráter descritivo- qualitativo e apresenta como materialidade linguística uma canção feita pela torcida organizada do Grêmio Football Porto Alegrense, intitulada “Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho”. Com o propósito de aplicarmos os conceitos abordados na fundamentação teórica, tomamos os seguintes procedimentos metodológicos: em primeira instância partimos da leitura da canção para compreendermos como é feita a motivação dos jogadores através desta letra, o que ela representa para quem a canta e qual efeito ela provoca nos torcedores. Na sequência faremos análise do vocabulário empregado na canção, não por possuir um léxico próprio, mas sim para percebermos como a escolha das palavras está intrinsecamente ligada a história do clube. Após esta análise, descrevemos a posição do enunciador e coenunciador que permite verificar a relação entre torcedor e os jogadores em campo, imprescindível para perceber toda a situação de comunicação. Assim, a partir da análise e descrição dessas categorias, podemos descrever a cenografia e o ethos discursivo do torcedor de futebol que pertence a uma torcida organizada. Passamos à análise da canção Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho, do clube de futebol Grêmio Football Porto Alegrense.

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3.1. ANÁLISE DO CORPUS Na sequência ilustramos a música na íntegra para posterior análise. Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho – GFPA Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho E o Mundial é o meu caminho Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho E o Mundial é o meu caminho Eu vivo bebendo sempre borracho E o tele-entulho já foi chamado O descontrole já esta formado Grêmio te dou a vida por este campeonato Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho E o Mundial é o meu caminho Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho E o Mundial é o meu caminho Na rádio toca o velho rock ‘n’ roll Lembra o Renato, o homem-gol Nada mais apaga essa história Grêmio Imortal, macaco chora Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho E o Mundial é o meu caminho Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho E o Mundial é o meu caminho (GREMIO FOOTBALL PORTO ALEGRENSE) A música “Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho”, foi elaborada pela torcida organizada do Grêmio Football Porto Alegrense, chamada de “Geral” e faz parte de um repertório utilizado em todos os jogos do time. Essa música retrata, além da rivalidade com o Sport Club Internacional, alguns hábitos dos torcedores do Grêmio, como beber vinho. A canção traz como aspecto importante na composição a história do clube, vitórias, ídolos e taças. Quanto à composição da cena de enunciação, percebemos que o enunciador e o coenunciador, produzem uma relação cíclica, pois ao mesmo tempo em que a torcida que canta, enuncia, o faz para si, também produz o discurso para o seu time. Essa produção, porém só pode ser discurso, como afirma Maingueneau (2004, p.55) quando “remete a um sujeito, um Eu, que se coloca como fonte de referências pessoais, temporais, espaciais e, ao mesmo tempo, indica que atitude está tomando em relação àquilo que diz em relação a seu coenunciador”. De acordo com o autor, portanto, definimos como coenunciador para esse discurso pode ser o time que está em campo, uma vez que, o time cria as referências pessoais, temporais, como os títulos e vitórias, e também pode ser a torcida que possui a atitude de aplaudir, gesticular, tomando assim uma atitude frente àquilo que diz por sua vez o enunciador. Nessa perspectiva notamos que o que legitima o dizer do enunciador é seu conhecimento da história do clube, “lembra o Renato, o homem-gol” quanto dos hábitos dos torcedores, “eu vivo bebendo sempre borracho”, nessa passagem o enunciador cria uma relação de proximidade com o torcedor que ouve um possível destinatário. Os enunciadores se consideram integrados a um grupo, (são torcedores do time) membros de uma comunidade (um clube de futebol) da mesma maneira que os destinatários também estão inscritos nesse grupo.

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Sob a perspectiva dos planos enunciativos, passamos agora para o estatuto do vocabulário e como as escolhas léxicas criam um ethos de torcedor fanático por seu time. As escolhas que o autor faz como “te dou a vida por este campeonato” e “Grêmio imortal” demonstra que este torcedor é capaz de tudo pela vitória, mas ao mesmo tempo lembra que o clube já passou por muitas derrotas, competições e continua “imortal”. Nota-se também que apesar do uso da palavra “macaco” na quarta estrofe, a imagem do torcedor não está ligada somente ao preconceito ou ainda a agressividade recorrente a qual os torcedores são relacionados. Ao contrário, ao utilizar expressões como “nada mais apaga essa história” ou ainda as relações com conquistas do passado do clube, cria uma imagem de um torcedor saudosista que deseja ver novas vitórias tão importantes como àquelas. O vocabulário configura o que Maingueneau chama de cena englobante, na qual as marcas integram um mesmo plano semântico; é a cena englobante que “define a situação dos parceiros e um certo quadro espaço-temporal” (MAINGUENEAU, 2004, p. 86). A situação dos parceiros da enunciação no caso da música analisada é de união, concordância e de identificação. Quando o enunciador utiliza “bebendo vinho” e “sempre borracho”, nota-se uma identificação do enunciador com os torcedores e quando usa “vou torcer” denota o espírito de união e motivação para o time. Toda enunciação confere um corpo, um corpo que é constituído tanto pelo enunciador quanto pelo coenunciador e que “adere a um mesmo discurso” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 73). Falamos aqui de um torcedor que é constituído pela torcida que adere a um mesmo discurso. A corporalidade é uma maneira de habitar o corpo de enunciador e daí vem a noção de incorporação: os enunciadores ganham corpo através do discurso (“sou borracho”), o coenunciador é levado a incorporar, assimilar uma forma concreta de se inscrever no mundo (o campeonato) e essas duas incorporações levam à incorporação da comunidade imaginária dos que aderem a um mesmo discurso (no caso mencionado, fazer parte de uma torcida). O estatuto de enunciador e do destinatário supõe a instauração da dêixis enunciativa a qual situa o discurso no espaço e no tempo (MAINGUENEAU, 2008a). Quanto ao espaço que é constitutivo à situação de enunciação, percebemos que o ambiente retratado na música é uma marca a qual legitima a enunciação e delimita a cena. Não nos referimos, pois, a instâncias externas ao discurso. O que delimita o espaço discursivo são as marcas linguísticas que identificam enunciador e coenunciador em um lugar que lhes é próximo. O espaço na música da torcida é o estádio onde se relembra o “Renato, homem–gol” e através das vitórias nos campeonatos se vai ao “Mundial”. Com o espaço, o tempo caracteriza a atualidade do discurso. Quando mencionamos a categoria tempo, não nos referimos à data, ao período em que a música foi cantada ou feita pela torcida. Trata-se, pois, do tempo linguístico, do agora, da atualização pela fala. O que prevalece na música analisada é a conjugação no tempo presente. Isso garante a contemporaneidade enunciativa, que necessita se atualizar a cada jogo: é o meu caminho, chora. O tempo se atualiza na fala a cada enunciação quando a torcida recomeça a cantar. Conforme Freitas (2010, p. 180), “dizer que os participantes do discurso criam uma autoimagem através dele significa também afirmar que o discurso carrega as marcas do enunciador e do coenunciador, entendidos aqui como aquelas que interagem no processo discursivo”. Dessa forma, no corpus, o “eu” que enuncia que irá torcer cria a imagem do torcedor apaixonado por seu clube, mas também cria as imagens dos participantes do discurso. E é por meio da enunciação que o torcedor se constitui assim. Para a construção da cenografia é necessária compreensão de como se constrói o “tom” do enunciador. “O discurso é inseparável daquilo que poderíamos designar muito grosseiramente de uma voz‟” (MAINGUENEAU, 1997, p. 45), ou melhor, o tom. Este, por si só, não representa a ideia totalizante de ethos. Atribui-se ao tom a propriedade de caráter e a de corporalidade. “Esse caráter é inseparável de uma corporalidade”, isto é, de esquemas que definem uma maneira de habitar ‟ seu

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corpo de enunciador e, indiretamente, de enunciatário” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 92), ou seja, maneira de dizer que remete a maneira de ser. O discurso é dotado de um “tom”, uma “vocalidade” que nesse caso é um modo de dizer alto, que se impõe aos outros sons do estádio, uma elocução forte e ritmada pelos sons dos tambores. Esse “tom” se apoia na dupla figura do enunciador, a de um caráter e de uma corporalidade. O caráter é definido pelo conjunto de características psicológicas que nesse caso, os torcedores possuem um caráter competitivo, agressivo em que a adesão apaixonada leva ao fanatismo (macaco chora), (te dou a vida por esse campeonato) mas também um caráter saudosista (toca o velho rock n’roll) e (lembra o Renato, homem-gol). O torcedor representa, em uma visão popular, uma pessoa que é agressiva, preconceituosa, perigosa. No entanto, a imagem construída no discurso é a do fanático, um fanático apaixonado por seu clube que relembra com orgulho de glórias do passado e que continua apoiando seu time para voltar a sentir como é ganhar um mundial. Diante disso, podemos utilizar o seguinte quadro para exemplificar a progressão realizada através dos planos enunciativos até chegarmos à conclusão do ethos apaixonado pelo clube de futebol. Quadro de progressão dos Planos Enunciativos

Fonte: do Autor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo buscou realizar um estudo enunciativo-discursivo com base nas concepções de Dominique Maingueneau e visava descrever e analisar o ethos discursivo depreendido da música “Vou torcer pro Grêmio bebendo vinho”, criada pela torcida organizada do Grêmio Football Porto Alegrense.

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Sabemos que o torcedor de futebol possui características muito marcadas, e muitas delas advindas de um pré-concebido que a sociedade tem desse torcedor. Desse modo, estabelecemos a questão norteadora deste estudo: como é criado o ethos discursivo a partir de pistas linguísticas que denunciam o comportamento do torcedor de torcida organizada? A partir desse questionamento, o objetivo desta pesquisa é descrever e analisar o ethos discursivo do torcedor de futebol do Grêmio Football Porto Alegrense. A fundamentação teórica deste artigo correspondeu à semântica global, de Maingueneau (2004, 2008a, 2008b, 2010), e alguns de seus leitores, como Freitas (2010) e Souza-e-Silva (2008, 2009), mais especificamente quanto às categorias teóricas acerca do estatuto de enunciador e do coenunciador, dêixis enunciativa, modo de enunciação e vocabulário. Procedemos a um estudo enunciativo-discursivo linguístico a partir da identificação das pessoas do discurso para então descrevermos: a posição de enunciador, seu marco de referência e modalização; o estatuto de coenunciador. A situação de locução foi imprescindível porque permitiu verificar a posição do enunciador (torcedor de futebol) e do coenunciador (torcida). Com o estatuto de enunciador e coenunciador, reconhecemos os elementos dêiticos sob o prisma da enunciação. Ao trabalharmos a questão do vocabulário, podemos concluir que as escolhas léxicas presentes no discurso singularizam o torcedor fanático e revela uma cena própria de um torcedor não agressivo, preconceituoso ou perigoso, mas um torcedor apaixonado por seu clube. Por fim, pode-se perceber uma forma própria de torcer e de se constituir enquanto torcedor, utilizando lembranças do passado para dar um novo tom e uma nova voz ao torcedor de futebol.

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UM OLHAR SOBRE O GÊNERO DIÁRIO E SEUS EFEITOS DE SENTIDO NO DIÁRIO DA DILMA Rafael da Silva Moura* (UPF) Elisane Regina Cayser** (UPF) Luciana Maria Crestani*** (UPF)

Estudos acerca de gêneros textuais configuram-se reflexões relevantes na busca de compreender aspectos significativos da interação humana pela linguagem, uma vez que eles permitem observar a língua em funcionamento. Nas palavras de Bakhtin (2011), a interação entre os sujeitos está intrinsicamente associada aos gêneros textuais, dado que se fala e se escreve por meio deles. Observa-se, por conseguinte, que trabalhar com gêneros textuais1 potencializa o ensino de língua, visto que o educador poderá, a partir deles e da análise de suas funções comunicativas e estruturas prototípicas, tanto explorar a gramática como abordar os mais diversos assuntos em sala de aula, atribuindo, assim, significado ao processo de ensino-aprendizagem, pois aproximará o educando de situações comunicativas reais, construindo um espaço reflexivo não só quanto às possibilidades de usos da língua, mas também quanto a questões sociais. Há, entretanto, traços a serem observados quanto à especificidade dos gêneros textuais, considerando que, apesar de possuírem semelhanças, cada gênero possui também características e marcas específicas, configurando, assim, um estilo próprio, que produz determinados efeitos de sentido e conduz o leitor no processo de desvendar os sentidos pretendidos pelo enunciador. Este estudo visa a apontar as principais características do gênero diário, relacionando-as a efeitos de sentido produzidos no texto. São utilizados como fio condutor da pesquisa o arcabouço teórico oferecido pelos estudos de Bakhtin (2011) acerca de gêneros textuais, com releituras de Marcuschi (2008) e Fiorin (2008), e os estudos a respeito dos elementos enunciativos no discurso desenvolvidos por Barros (2011) e por Fiorin (2003). Com base em tais estudos, são feitas análises de alguns trechos da coluna mensal Diário da Dilma, inserida na revista eletrônica piauí2, que satiriza a agenda da Presidente Dilma Rousseff. Nas análises, serão observadas marcas enunciativas próprias do gênero “diário”, explicando como mecanismos que produzem efeitos de realidade e de subjetividade convergem para a construção do tom humorístico nos registros.

1. NOÇÕES DE GÊNERO TEXTUAL Desde os primórdios dos tempos, o homem utiliza diversos recursos tanto para marcar-se no tempo e no espaço como para interagir com os demais seres sociais. Observa-se, por conseguinte, que todos os diversos campos da atividade humana estão associados ao uso da linguagem, sendo que

Acadêmico do VIII nível do curso de Letras – Português/Inglês e respectivas Literaturas - Universidade de Passo Fundo; bolsista Pibic/ CNPq. E-mail: [email protected] ** Docente do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo  (UPF); coordenadora do Curso de Especialização em Língua Portuguesa UPF; coordenadora da Área de Língua Portuguesa UPF; Especialista em Linguística Aplicada à Alfabetização (PUCRS), 1991; Mestre em Linguística e Letras (PUCRS), 2001. E-mail: [email protected] *** Docente da Pós-graduação/Mestrado em Letras da Universidade de Passo Fundo; Doutora em Letras - área de concentração Linguística (UPM-SP), 2010; Mestre em Educação (UPF-RS), 2002. E-mail: [email protected] 1 Neste estudo, não são feitas distinções entre as terminologias “gêneros discursivos” e “gêneros textuais”. 2 A revista piauí (com letra minúscula) é uma revista mensal on-line, composta por colunas que tratam de assuntos contemporâneos diversos de maneira satírica, conferindo tom crítico-humorístico aos registros, disponível no endereço: . *

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“cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2011, p. 262, grifo do autor). Nessa perspectiva, a comunicação humana pela linguagem, obrigatoriamente, ancora-se aos gêneros textuais, em vista do caráter socio-discursivo destes, uma vez que os enunciados que dão materialidade à língua concretizam-se em situações comunicativas recorrentes, ou seja, inserem-se em gêneros textuais específicos. Assim sendo, de acordo com Marcuschi (2008, p. 151), “é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum gênero, assim como é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum texto”. Bakhtin (2011) observa, nesse sentido, que a interação humana ocorre nas mais diversas esferas de atividade, ou seja, em diversos ambientes interativos, podendo ser: a esfera escolar, a esfera do trabalho, a esfera familiar, etc. A cada situação comunicativa o falante mobiliza a língua de maneira específica, adequando-a à intenção de comunicação, por intermédio de escolhas que criam uma série de efeitos formais e funcionais que, consequentemente, refletem-se na produção de determinado gênero. Nas relações comunicativas diárias, um mesmo gênero pode assumir estrutura e linguagem diferenciadas, de acordo com a esfera de atividade em que é produzido. Ao enviar um e-mail para o gerente de um banco, a fim de marcar um encontro/reunião, por exemplo, os recursos utilizados (saudação, linguagem, estrutura do texto) serão diferentes daqueles empregados em um e-mail destinado a um amigo íntimo, mesmo que a intenção também seja marcar um encontro. Essa característica de flexibilidade dos gêneros constituiu a “heterogeneidade de gêneros” (BAKHTIN, 2011, p. 262), que é fruto das infinitas relações sociais que podem ser estabelecidas pelos seres humanos. Vale observar que, na mesma proporção que as atividades linguísticas se ampliam e se remodelam, ampliam-se e remodelam-se os gêneros textuais que as englobam. Fiorin ressalta que não só cada gênero está em incessante alteração, [mas], também está em contínua mudança seu repertório, pois, à medida que as esferas de atividade se desenvolvem e ficam mais complexas, gêneros desaparecem ou aparecem, gêneros se diferenciam, gêneros ganham um novo estilo. (2008, p. 65).

Os gêneros, apesar dessa característica paradoxal de plasticidade e de identidade, constituem enunciados reconhecíveis nas atividades interacionais pela linguagem. Tal reconhecimento é possível pela existência de elementos que, além de marcarem as condições específicas e as finalidades vinculadas aos gêneros, possibilitam uma distinção entre os gêneros textuais, pois constituem a totalidade dos enunciados. Esses elementos são o conteúdo temático, a estrutura composicional e o estilo da linguagem, os quais estão “indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação” (BAKHTIN, 2011, p. 262). O conteúdo temático refere-se aos diferentes temas que permeiam cada esfera de atividade, conferindo “o domínio de sentido de que se ocupa o gênero” (FIORIN, 2008, p. 62). Quanto à estrutura composicional, cada gênero apresenta uma determinada estrutura, que corresponde ao modo de organização e estruturação do enunciado. O estilo da linguagem, por sua vez, associa-se à possibilidade de individualização do enunciado, correspondendo à seleção de recursos linguísticos a serem empregados no discurso em função da esfera em que o gênero circulará, transitando entre formalidade ou informalidade, termos técnicos e vocabulário específicos, por exemplo. Entretanto, apesar dessa individualização do enunciado, em que o enunciador faz escolhas linguísticas subjetivas, não é possível se distanciar demasiadamente das coerções postas pelo estilo próprio de cada gênero, sob pena de o texto perder a identidade e/ou a credibilidade. Marcuschi (2008, p. 85) lembra que o “gênero serve como condicionador de atividades discursivas esquematizadas que resultam em escolhas dentro de uma prática que nos levaria a pensar em

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esquematizações resultantes”. Assim, muitas decisões de textualização, como ordenamento de parágrafo e linguagem, devem-se à escolha de determinado gênero, que estabelece formas e estruturas. Na interação diária, portanto, os gêneros seguem formas existentes e reconhecíveis em sociedade, ou seja, eles não resultam de uma produção individual; são fruto de uma produção histórica desenvolvida por meio de práticas comunicativas em comunidade. De acordo com Bakhtin, o principal papel dos gêneros textuais é organizar as relações comunicativas cotidianas, pois se os gêneros [...] não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível (BAKHTIN, 2011, p. 283).

A prática comunicativa, assim sendo, capacita os usuários da língua a internalizarem e assimilarem os gêneros textuais, os quais servirão como modelo para interações verbais futuras. De tal modo, o interlocutor poderá criar expectativas que o preparem para interagir adequadamente na situação comunicativa em que esteja inserido. Ao ler um diário, por exemplo, já se espera uma escrita que trate em alguma medida da intimidade do enunciador, como se ressalta na seção seguinte.

2. O GÊNERO DIÁRIO A partir do referido por Bakhtin (2011) quanto ao uso da linguagem estar diretamente relacionado à determinada esfera de atividade social, observa-se que o gênero diário está inserido na esfera privada. Nele, são feitos registos pessoais do narrador, que, ao mesmo tempo em que relata algum fato, é o protagonista da história contada, imprimindo uma visão subjetiva acerca dos acontecimentos que o cercam e/ou se relacionam a ele. Além disso, usualmente, um indivíduo escreve no diário tendo como enunciatário o próprio diário, fazendo relatos a fim de registar memórias, talvez, para uma consulta futura. Portanto, o conteúdo registrado não costuma ser lido por outros além do próprio indivíduo que escreve no diário. O diário é um gênero de caráter íntimo cuja escrita, usualmente, é cotidiana, adotada por indivíduos a fim de registrar acontecimentos e recordações, reflexões e emoções pessoais. Ou seja, nele escreve-se o que se está fazendo, sentindo e/ou pensando, exteriorizando um conteúdo geralmente inacessível aos demais. Esse caráter intimista oferece liberdade ao escritor, que faz seus registros de maneira informal, sem uma imposição estrutural e linguística, não havendo prescrição de forma e/ou conteúdo. Portanto, não há também nenhuma coerção quanto ao estilo de escrita, pois cada diário reflete o estilo próprio e particular de linguagem de quem nele escreve. A única imposição ao gênero diário é obedecer à ordem do calendário, ou seja, à linearidade cronológica. Ainda quanto à escrita íntima e subjetiva desse gênero, percebe-se que, ao instaurar uma personagem que narra a própria história, cria-se o efeito semântico denominado debreagem3 enunciativa. De acordo com Fiorin (2003, p. 178), esse efeito consiste na projeção do enunciador no enunciado, por meio da instauração das categorias da enunciação (pessoa, espaço e tempo) de forma enunciativa (eu/tu, aqui, agora). Isto é, os registros em diários, por serem feitos na primeira pessoa do discurso - “eu” -, recebem a projeção do enunciador, causando efeitos de proximidade entre enunciador e enunciatário e de subjetividade, dado que, como referido anteriormente, cria-se a impressão de se estar acessando o olhar do enunciador quanto ao mundo ao seu redor. Além disso, a data de cada registro é sempre um “hoje” – tempo da enunciação – e, assim, as marcas de tempo do enunciado (verbos e advérbios) se organizam no registro tomando como referência o momento da enunciação. Debreagem é o mecanismo através do qual se projetam as categorias da enunciação (pessoa, tempo, espaço) no enunciado. As debreagens são chamadas de enunciativas quando projetam o eu/tu, no espaço do aqui e no tempo do agora. São enuncivas quando projetam o ele, no espaço do lá e no tempo do então. (FIORIN, 2003).

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Também vale considerar que as mutações dos gêneros textuais já alcançaram o gênero diário. Com o advento da internet, é comum encontrar sites em que as pessoas relatam seu dia a dia, fazem reflexões, expõem seus sentimentos. A esse novo estilo de diário dá-se o nome de blog. Esse meio de registro, em alguns momentos e situações, tem ocupado o espaço que outrora era destinado ao diário. Apesar das semelhanças, esses dois suportes se diferem, principalmente quanto à esfera de atividade: o blog encontra-se na esfera pública, acessível a qualquer indivíduo que esteja conectado à rede mundial de internet, permitindo que haja interação entre sujeito-autor e sujeito leitor, por meio de comentários, questionamentos, etc.; já o diário tradicional (em suporte papel), como antes mencionado, não tem como objetivo a interação com outros sujeitos. Nesse sentido, também muda o teor dos conteúdos registrados. No blog, em geral, não se registram fatos/sentimentos/anseios que possam, de alguma forma, “macular” a imagem do enunciador diante dos leitores. No diário, sim, visto que não há outro leitor que não o próprio enunciador. Outro mecanismo enunciativo característico desse gênero textual é o de ancoragem. Barros (2011, p. 60.) explica que por meio dele o enunciador alcança o efeito de realidade ou referente, uma vez que esse mecanismo enunciativo consiste em projetar no enunciado atores, espaços, datas que o receptor reconhece como sendo “reais” ou “existentes”, dando concretude ao discurso. Tais elementos, portanto, atam os registros de diários à história, a pessoas, ao tempo e a espaços existentes e que podem ser observados/encontrados no mundo real, estabelecendo, assim, cenas que constroem um simulacro da realidade e instauram a ilusão de verossimilhança. Por fim, os fatos registrados nos diários assumem também um caráter de verdade, pois como o indivíduo escreve para si, não há o que esconder ou inventar. Esse efeito de verdade é reforçado por mecanismos enunciativos próprios do estilo do gênero diário, como a projeção do “eu” no enunciado e a ancoragem em elementos reconhecíveis e existentes na realidade. Na sequência, analisa-se como tais mecanismos funcionam nos enunciados do Diário da Dilma.

3. O DIÁRIO DA PRESIDENTE Nesta seção, com base nos preceitos teóricos supracitados, faz-se a análise de trechos da coluna Diário da Dilma. Os enunciados selecionados para análise referem-se aos “supostos” registros da Presidente Dilma Rousseff4, durante seu primeiro mandato como Presidente da República, cuja posse ocorreu no dia 3 de janeiro de 2011. 1º de fevereiro de 2011_ Balanço do primeiro mês: até agora só o Lobão e a Marta Suplicy me chamaram de “presidenta”. Como recompensa, vou encarregar a Marta de organizar o Dia Internacional da Mulher. O que é do Lobão está guardado. Preciso trocar esses sofás escuros do gabinete. Toda vez que olho para eles me lembro do FHC. Têm um carma muito ruim. Vou chamar um estofador e fazer uma reforma (TERRA, 2011(a)).

O primeiro elemento que se observa no registro é a data – “1º de fevereiro de 2011” -, ancorando, assim, o enunciado no tempo cronológico, sendo essa uma coerção característica de diários. Esse tempo marca o hoje/agora da enunciação, visto que remete ao momento em que o enunciador registra suas memórias no diário. Além disso, observa-se ainda que os verbos e os pronomes inscritos no trecho supracitado se relacionam à primeira pessoa do discurso – “me chamaram”; “vou encarregar”; “preciso trocar”. Isto é, o narrador, Dilma, projeta-se no enunciado por meio do eu, configurando-se, ao mesmo tempo, eu-narrador e eu-personagem. Tal mecanismo enunciativo cria o efeito de subjetividade, uma vez que a própria personagem toma a palavra e, assim, ouve-se/lê-se exatamente o que ela disse, tendo-se acesso à visão íntima quanto à realidade da qual ela participa. Esses Nas análises feitas neste trabalho, os termos “a Presidente” ou “Dilma” referem-se à personagem criada pelo autor Renato Terra, na coluna Diário da Dilma.

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mecanismos enunciativos, de ancoragem na data cronológica e de projeção do “eu” nos enunciados, ocorre de modo idêntico nos demais trechos analisados, visto que são marcas cristalizadas próprias do estilo do gênero diário. No registro, percebe-se também que são feitas referências a Fernando Henrique Cardoso (FHC), ex-presidente do Brasil por um partido contrário ao de Dilma, a Marta Suplicy e a Edison Lobão, respectivamente Ministra da Cultura e Ministro de Minas e Energia durante o primeiro mandato de Dilma, sujeitos políticos e públicos que se articulam no meio político brasileiro. Esses atores, uma vez projetados no enunciado, ancoram este à realidade, visto que são reconhecidos como reais e fazem parte das relações políticas da Presidente. Ainda, observando o enunciado “Preciso trocar esses sofás escuros do gabinete”, verifica-se que o pronome demonstrativo esses cria o efeito de proximidade entre o enunciador e o espaço referido, ou seja, a Presidente Dilma estaria fazendo seus registros no diário exatamente no espaço do gabinete, o qual é reconhecido como sendo o espaço legítimo de trabalho dos presidentes. Logo, observa-se que esses elementos enunciativos conferem caráter de verdade, de verossimilhança ao diário, uma vez projetam nele seres e ambientes reconhecíveis como reais e o próprio enunciador que se marca como “eu” nos registros. O registro também cria um simulacro de diálogo, pois, ao manifestar-se, o enunciador direciona-se a um enunciatário. Entretanto, neste caso, Dilma tem como enunciatário o próprio diário, que servirá de suporte para seus registros de cunho íntimo. Assim, o diário confere à Presidente um espaço de liberdade de expressão: nos registros, ela pode usar a linguagem de forma livre, sem se preocupar com a posição social que ocupa, e pode expressar sentimentos e opiniões velados referentes à sua vida íntima e/ou pública. Nessa perspectiva, o enunciado “Balanço do primeiro mês”, que introduz o registro, apesar de ser uma expressão própria do universo político, não versa a respeito de reflexões políticas da Presidente sobre seu primeiro mês no comando do país, reportando-se, por exemplo, à aceitação dos brasileiros em relação ao governo, ao andamento da economia, à produtividade dos investimentos federais nas áreas básicas (saúde, educação e moradia). O “balanço” remete a anseios íntimos de Dilma, como, por exemplo, ser tratada por “Presidenta” ao invés de “Presidente” e recompensar aqueles que a ela assim se dirigem, ou suas preocupações com esoterismo – “Preciso trocar esse sofás escuros do gabinete [...] Têm um carma muito ruim”. Ainda, Rousseff refere que a ministra Suplicy será “encarregada de organizar o Dia Internacional da Mulher”, o que tem relação com as atividades políticas. No entanto, em relação às atividades do ministro, aparece um desvio de foco, pois Dilma se utiliza de um ditado popular e diz – “O que é do Lobão está guardado” -, deixando subtendido que tem planos futuros para Edison Lobão. Esse trecho, aliado a trechos de outras crônicas anteriormente publicadas, dão a entender que Dilma nutre sentimentos romanescos por ele. Assim sendo, ao mesmo tempo em que elementos enunciativos ancoram o registro à realidade e projetam o enunciador no enunciado, conferindo credibilidade ao diário, os registros da Presidente revelam questões subjetivas - pensamentos e posturas - que destoam do que se espera de uma Chefe de Estado, visto que ela demonstra-se preocupada com assuntos de cunho íntimo e supérfluos, preterindo assuntos de cunho político-sociais, por exemplo. O mesmo estranhamento do leitor em relação aos comportamentos e aos pensamentos da Presidente é desencadeado nos demais excertos, como o que segue: 19 de março_ Assim que subiu a rampa, Obama roçou aquele beição no meu cangote e sussurrou, com voz grave: “Hello, presidenta.” Quase tive um piripaque. Arrepiada dos pés ao topete, só retomei a consciência quando reparei no sapato chinfrim da Michelle. Modéstia à parte, dei um banho na Michelle. Ela chegou com um vestidinho, meu Deus, que não dá para ir na feira! Depois inventou um brocado dourado. Coisa cafona, brilho de dia (TERRA, 2011(b)).

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Nesse registro, tem-se, novamente, a data – “19 de março” – ancorando o enunciado ao tempo cronológico e marcando o tempo da enunciação, e o enunciador enquanto narrador-personagem – “Quase tive”; “no meu”. O uso de linguagem informal também se marca no trecho, visto que a Presidente utiliza de gírias e expressões populares, tais como: “beição”, “cangote”, “piripaque”, “dei um banho” e “não dá para ir à feira”. Essas expressões marcam a subjetividade e a intimidade dos registros feitos no diário e também desencadeiam o tom humorístico no texto, pois não condizem com o linguajar esperado de uma Chefe de Nação. O trecho citado faz referência à visita feita pelo Presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, ao Brasil, em março de 2011. Os atores citados, Presidente Obama e primeira-dama Michelle Obama, ancoram o discurso na realidade. Além disso, também o enunciado “Assim que subiu a rampa” marca o espaço onde ocorreu o encontro entre os Presidentes, fazendo alusão ao Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidente da República, ao qual se tem acesso por uma rampa sobre um espelho d’água. Os atores e o espaço citados, portanto, sendo reconhecíveis como figuras do mundo real, produzem efeitos de sentido de realidade e verdade. Em vista de ser uma situação diplomática, espera-se que se mantenha certo nível de formalidade em relação aos cumprimentos entre os mandatários, uma vez que eles estão representando as nações que governam – EUA e Brasil. Os registros íntimos da Presidente, porém, revelam uma situação controversa. Dilma relata que Obama, ao cumprimentá-la, não só roça os lábios no pescoço dela, como também sussurra “Hello, Presidenta” em seu ouvido. Tais ações são relatadas, porém, na perspectiva dela – da Presidente -, o que não compromete a seriedade do Presidente dos EUA, mas sim a leitura dos fatos que ela – Dilma – faz deles. Essa perspectiva unilateral é reforçada por expressões populares brasileiras, como “beição” e “cangote” - que dão tom cômico ao registro, sendo que a primeira, inclusive, frequentemente é utilizada para ressaltar uma característica física de pessoas de origem negra – situação em que se encaixa o Presidente Obama. Surpreende, ainda, o fato de a Presidente relatar que quase teve um “piripaque” e que ficou arrepiada com a atitude de Obama, pois isso se confronta diretamente com a imagem de mulher séria e “durona” passada por ela nas situações públicas cotidianas. Além disso, velados pelo caráter “secreto” do diário, os registros revelam que a Presidente sente certo ciúme da primeira dama estadunidense, visto que ela tece críticas quanto às escolhas e combinações de roupas e acessórios feitas por Michelle Obama. Dilma, ainda, compara-se com Michelle, enfatizando estar mais bem vestida que ela – “Modéstia à parte, dei um banho na Michelle” –, e dizendo que da forma como a primeira dama estava vestida “não dá para ir à feira”. Pode-se também destacar, a esse respeito, a grande autoestima que a Presidente demonstra ter, uma vez que, ao se comparar com Michelle Obama, julga estar num patamar mais alto que ela, considerada, em verdade, uma das mulheres mais elegantes do mundo, em oposição à figura real da Dilma, que não tem nos atributos físicos seus principais pontos fortes. Apesar disso, essa preocupação com as questões estéticas é uma recorrente no Diário, como aparece no trecho que segue: 31 de janeiro_ Cristina estava chiquérrima, super cheirosa. Vou pedir para aquele general que é chefe dos arapongas descobrir o perfume que ela usa e como faz para esconder as pontas duplas. O saldo foi bom: acertamos acordos bilaterais, trocamos dicas de Botox e peguei uma receita de empanadas cordobesas (TERRA, 2011(c), grifo do autor).

Dilma, no dia 31, refere-se a um encontro político que teve com a Presidente da Argentina, Cristina Kirchner, ou seja, novamente o enunciado recebe ancoragem de um ser político (re)conhecido e que faz parte do mundo real. Além de Kirchner, o registro também faz referência ao general chefe dos arapongas, os quais são soldados da Agência Brasileira de Inteligência. A presença desses atores, juntamente com o enunciado “acordos bilaterais”, amarram o registro ao universo político,

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em que presidentes de nações distintas reúnem-se para discutir assuntos de ordem política, a fim de estreitar relações (comerciais, financeiras, políticas) entre os países por eles governados. Na intimidade de seu registro, no entanto, Dilma deixa transparecer que o encontro teve outro foco, totalmente diferente do político. Inicialmente, a Presidente enfatiza a aparência da Presidente da Argentina, dizendo que ela “estava chiquérrima, super cheirosa”, e relata que pedirá ao general chefe de um batalhão investigar qual o perfume usado por Cristina Kirchner e como ela faz para esconder as pontas duplas. Tais observações revelam que a narradora não estava preocupada com questões políticas e sim com fatores de ordem pessoal, relativos à estética e à vaidade feminina. Além disso, demonstra o uso da máquina pública – no caso, da “espionagem” – para ter acesso a dos nada relevantes politicamente. O enunciado “O saldo foi bom: acertamos acordos bilaterais” retomam as atividades próprias do cenário político, porém os que o sucedem – “trocamos dicas de botox” e “peguei uma receita de empanadas cordobesas” – destoam completamente deste, mostrando novamente questões de foro íntimo: vaidades e futilidades da narradora, além da predileção por questões de ordem culinária. Assim, sucessivamente, em todos os enunciados que se apresentam na coluna “Diário da Dilma”, mesclam-se atores, cenários e temas próprios do meio político com figuras e temas próprios do universo íntimo e pessoal da narradora-presidente. Os primeiros criam efeitos de verdade e de realidade, pois ancoram o discurso em elementos reconhecidos como reais pelos leitores. Os segundos criam efeitos de subjetividade e verdade, na medida em que relatam anseios, atitudes e pensamentos “secretos” da narradora. Estes últimos projetam uma imagem caricata da Presidente, como sendo, no âmago, uma mulher tosca, fútil, apegada a pequenas vaidades e totalmente alheia aos problemas e interesses da Nação. Da união de ambos – e do contraste entre eles – surge o efeito cômico do texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao escolher o gênero diário para efetivar seus enunciados, o ghostwriter5 do Diário da Dilma tem uma finalidade pré-determinada. Observar alguns aspectos característicos do gênero diário, portanto, possibilita inferir as intenções que ocasionam essa escolha por parte do enunciador e, consequentemente, aproximar-se dos sentidos subjacentes à materialidade textual. A partir das análises desenvolvidas, observa-se que na relação entre o gênero diário e o discurso nele inscrito cria-se uma teia de significações que, ancorada às marcas enunciativas de debreagem e de ancoragem próprias do estilo desse gênero, confere efeitos de realidade e de veracidade ao texto, instaurando, por conseguinte, o tom humorístico no corpus analisado, visto que os registros do Diário da Dilma constroem uma imagem caricata da Presidente que, confrontada com a imagem dela observada na realidade, desencadeia o riso.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In:____. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 261 – 306. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 5. ed. São Paulo: Ática, 2011. FIORIN, José Luiz. Pragmática. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003. p. 161 – 185. ______. Os gêneros do discurso. In:____. Introdução ao pensamento de Bakthin. São Paulo: Ática, 2008. p. 60 – 76. O Diário da Dilma é escrito pelo ghostwriter (escritor fantasma, em português) Renato Terra. Esse termo designa o profissional que presta serviços de redação de textos sem assinar a produção, deixando os direitos autorais desta ao contratante.

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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. TERRA, Renato. Diário da Dilma: a manicure e o sonho de valsa. Revista Piauí. 54. ed. 2011(a). Disponível em: . Acesso em: 5 jul. 2015. ______. Diário da Dilma: a musa fashion e o lacaio da burguesia. Revista Piauí. 55. ed. 2011(b). Disponível em: . Acesso em: 5 jul. 2015. ______. Diário da Dilma: notas, apontamentos e tergiversações. Revista Piauí. 53. ed. 2011(c). Disponível em: . Acesso em: 5 jul. 2015.

ENUNCIAÇÃO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA: UMA PRIMEIRA REFLEXÃO Rafael de Souza Timmermann* (UPF)

Este trabalho tem por objetivo abordar brevemente os conceitos de língua, sintagmatização e semantização, baseado nos textos de Benveniste, bem como as relações entre sujeitos no que tange ao uso da língua nas interações entre falantes de língua inglesa como língua estrangeira ou língua franca. A reflexão se dá numa discussão entre os conceitos teóricos mencionados e respostas dadas por instrutores/professores/estudantes de língua inglesa, em questionários, a respeito da fluência e do aprendizado de LE. Num primeiro momento, é realizado um comentário geral acerca das definições teóricas do termo fluência, para então, juntamente com as repostas dadas, seja feita uma relação com os preceitos de uma língua com foco na enunciação e na relação entre locutor e interlocutor. Os tópicos abordados nessa reflexão servem como base para o desenvolvimento do projeto de tese a ser realizado, visto que há um vasto campo de pesquisa na área que pode se valer de estudos nos quais há uma interface de conhecimentos linguísticos do texto e do discurso a favor da linguística focada em aquisição, aprendizagem e desenvolvimento de língua estrangeira.

1. SOBRE A FLUÊNCIA EM LÍNGUA ESTRANGEIRA No contexto atual de ensino de língua estrangeira, verifica-se que há algumas definições teóricas sobre o que é fluência. Em discursos e propagandas de professores e escolas, mesmo quando afirmam um ensino em uma abordagem comunicativa, é possível perceber que há dúvidas sobre a prática, no que diz respeito a como orientar de forma efetiva o aluno a alcançar a tão desejada fluência verbal na LE. Fluência é uma noção comumente usada no ensino de LE e, mesmo assim, é um conceito difícil de ser definido de forma precisa. Seu uso frequente é como um balizador de performance oral. As pessoas frequentemente dizem “Ele fala a língua fluentemente.” ou “Ela é fluente.” para descrever a produção falada de uma pessoa que pode usar a língua efetivamente, geralmente em referência a alguém falando uma língua estrangeira, pois se considera que todas as pessoas sejam fluentes em sua língua materna. Quando tomado em um sentido mais amplo, a fluência pode até ser entendida como o mais próximo de uma fala de um nativo. Velocidade e falta de esforço parecem ser duas das características principais de uma performance fluente. Enquanto velocidade pode ser medida, leveza, facilidade e falta de esforço são julgamentos qualitativos, baseados, geralmente em impressões (CHAMBERS, 1997). Nesse sentido, o Oxford Dictionary define fluência como “smooth, rapid, effortless use of language1”. Professores frequentemente acreditam que a prática dos estudantes ajuda nos mecanismos de produção, mas como precisamente isso acontece não é claro. Há uma crença implícita de que fluência não pode ser ensinada e que ela vai emergir naturalmente, por exemplo com uma estadia, para alguns curta (um mês), para outros de longos anos, no exterior.

Doutorando em Letras, no Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: rafaeltimmermann@ yahoo.com.br 1 Tradução livre: uso de linguagem leve, rápido e sem esforço. *

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A palavra fluência, na perspectiva comunicativa, está, na maior parte das vezes, em contraste ao termo precisão (accuracy). Entende-se, então, por fluência, uma proficiência geral ou um estado próximo ao de um falante nativo e está relacionada à efetividade do uso da língua, levando em consideração restrições de um limitado conhecimento linguístico (CHAMBERS, 1997). Em outras palavras, Brumfit (1984, p. 57) definiu fluência como “The maximally effective operation of the language system so far acquired by the students2”. É interessante notar que os termos sistema de língua e uso de língua estão em pauta nessas discussões, porém ainda distantes das reflexões realizadas por Benveniste e estudiosos de enunciação, como poderá ser percebido na próxima seção deste trabalho. Segundo Hedge (2000), o termo ‘fluência’ está relacionado à produção de língua e é normalmente reservado à fala. É a habilidade de ligar unidades da fala com facilidade, sem esforço ou lentidão inapropriada, ou hesitação indevida. Em consonância aos estudos da abordagem comunicativa, Almeida Filho (2008, p. 47), referência nessa área no Brasil, afirma que: O ensino comunicativo é aquele que organiza as experiências de aprender em termos de atividades/ tarefas de real interesse e/ou necessidade do aluno para que ele se capacite a usar a língua-alvo para realizar ações autênticas na interação com outros falantes-usuários dessa língua.

Na perspectiva comunicativa, a noção de fluência é usada para acessar o quão bem os aprendizes usam o conhecimento para alcançar seus objetivos linguísticos e comunicativos. Vale notar que nessa perspectiva a ênfase está na comunicação, geralmente abordada em uma relação sujeito falante e mensagem a ser comunicada, sem grandes referências à interação ou diálogo. Não é entendido como relevante discutir, nesse momento, a perspectiva psicolinguística no que diz respeito à linguagem e aquisição desta, mas nessa área a fluência depende principalmente do conhecimento gramatical, a competência de criar e a performance desse conhecimento expresso. Já a abordagem interacionista sugere que o conhecimento se dá através das relações sociais, isto é, em sala de aula, na relação professor-aluno, aluno-aluno e aluno-objeto. Além disso, a construção do conhecimento se dá a partir de uma problemática, com o objetivo de desenvolver uma postura mais crítica dos alunos. Nas palavras de Riggenbach (1991, p. 439), In order for there to be fluency, then, it appears that many different conditions have to be met— some proficiency in grammar, pronunciation, and vocabulary to mention a few. In the case of two-party speech other possible conditions may be related to sociolinguistic and even affective factors. Nonfluency, on the other hand, can arise from a deficiency in any one of these areas: the inability to produce a given grammatical structure may be the first link in a chain of dysfluencies that may as easily have begun with a comprehension lapse, a pronunciation problem, or a motivation for precision in word choice.3

A definição que mais se aproxima do que se pretende abordar neste trabalho é de Serrani-Infante (1998), a qual afirma que há uma relação entre sujeito e linguagem, e se trata de um processo de enunciação, uma busca do sujeito para se tornar enunciador em uma LE, ou seja, enunciar em LE diz respeito ao processo de produzir, compreender e atribuir sentidos na LE. É um processo mais complexo do que entender simples informações referenciais.

Tradução livre: A mais efetiva operação do sistema da língua adquirida pelos estudantes até o momento. Tradução livre: Para haver fluência, parece que muitas condições diferentes precisam ser realizadas – alguma proficiência em gramática, pronúncia e vocabulário, para mencionar alguns. No caso de diálogos, outras possibilidades podem estar relacionadas à sociolinguística e até fatores afetivos. A não-fluência, por outro lado, pode surgir da deficiência em uma dessas áreas: falta de habilidade para produzir uma determinada estrutura gramatical pode ser o primeiro indício para uma cadeia de “disfluências” que podem facilmente ter começado com um lapso de compreensão, um problema de pronúncia, ou uma motivação por precisão de uma escolha de palavra.

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2. SOBRE A ENUNCIAÇÃO Para refletir acerca do termo fluência, bem como de aquisição de língua estrangeira, serão mencionados alguns conceitos e formas de entender língua na relação entre sujeitos na perspectiva enunciativa de linguagem, com base nos textos de Émile Benveniste e estudiosos da área, de forma breve e resumida nos parágrafos que seguem. É necessário que se compreenda que forma e sentido são propriedades inseparáveis no uso da língua. A linguagem, em sua essência, antes de tudo, significa algo, ou ainda, produz sentido. Sem a linguagem não haveria possibilidade de sociedade, uma vez que os homens (sujeitos) entendem uns aos outros e a si mesmos através dessa linguagem que “faz sentido”. Nas palavras do autor: Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição de homem. (BENVENISTE, 2005a, p. 285).

Além disso, é impossível separar a forma e sentido, uma vez que a linguagem existe em virtude de uma relação entre esses dois: a língua, enquanto sistema, disponibiliza formas linguísticas aos locutores, mas é no momento da construção de um texto (oral e/ou escrito) que esse sistema se atualiza, tornando-se único, no momento em que o locutor se apropria da língua. Tal atitude é um movimento enunciativo do agenciamento das palavras, com vistas a expressar ideias ou representar a realidade. De acordo com (FLORES et al., 2009, p. 48), o aparelho formal da enunciação é um “dispositivo que permite ao locutor transformar a língua em discurso”. Sem profundidade no momento, porém de vital valor nessa teoria que se desenha nos textos do autor, a categoria linguística de pessoa, explicitada por Benveniste, abriga três pessoas: a que fala (primeira pessoa), a que com quem se fala (segunda pessoa) e aquela de quem se fala, ou seja, o ausente (terceira pessoa): “Eu e tu designam um novo ser a cada enunciação e são reversíveis: “o que ‘eu’ define como ‘tu’ se pensa e pode inverter-se em ‘eu’, e ‘eu’ se torna um ‘tu’” (BENVENISTE, 2005b, p. 253 [grifos do autor]). No momento em que o locutor se apropria da língua e se enuncia como eu no seu discurso, ele implanta, automaticamente, um tu diante de si, isto é, o funcionamento da língua se dá nessa relação entre sujeitos. Não é possível compreender o eu sem a presença de um tu, eles são constitutivos um do outro e reversíveis entre si. Em outras palavras, é essa intersubjetividade que possibilita a subjetividade: para que o locutor possa passar a sujeito no/pelo discurso, ele tem de estar necessariamente constituído pelo outro. Nessa relação, os sujeitos utilizam a frase, a qual é realizada palavras, as quais, no entanto, não são simplesmente segmentos dessa entidade chamada frase. “Uma frase constitui um todo, que não se reduz à soma das suas partes; o sentido inerente a esse todo é repartido entre o conjunto dos constituintes. A palavra é um constituinte da frase, efetua-lhe a significação; mas não aparece necessariamente na frase com o sentido que tem como unidade autônoma” (BENVENISTE, 2005c, p. 132). Nesse sentido, a palavra adquire seu valor semântico no exercício da língua (uso), através da interrelação com outras palavras dentro da frase (enunciado). Logo, é somente quando a língua é atualizada em discurso. Assim, a noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e em ação; vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando, constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos homens. (BENVENISTE, 2006b, p. 229 [grifo meu]).

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Por isso, é visto que, na dimensão do semântico, não há preocupação somente se determinado signo significa algo especificamente, como no dicionário, mas o foco está direcionado ao que o locutor quer dizer, ou seja, ao sentido que uma dada construção sintagmática ganha em uma situação enunciativa determinada e única. Nesse sentido, destaca-se que é a partir da frase que ocorre o movimento de passagem do nível semiótico (signo) para o nível semântico (discurso), porque “se deixa o domínio da língua como sistema de signos e se entra num outro universo, o da língua como instrumento de comunicação, cuja expressão é o discurso” (BENVENISTE, 2005c, p. 139). Sendo assim, “cada palavra não retém senão uma pequena parte do valor que tem enquanto signo” (BENVENISTE, 2006, p. 234). E é “a partir da ideia, a cada vez particular, que o locutor agencia palavras que neste emprego têm um ‘sentido’ particular” (BENVENISTE, 2006, p. 231). Dessa forma, na enunciação, os elementos da língua e o sujeito, no processo de semantização, estão implicados nesse exercício da língua, dizendo-se e dizendo a situação enunciativa” (FLORES et al., 2008, p. 73). Compreende-se, então, que o fenômeno linguístico (processo) da enunciação se dá, inicialmente, através da apropriação por parte do locutor do sistema da língua, que fornece ao locutor os instrumentos necessários para ele realizar o seu ato enunciativo. Dessa apropriação, nasce o aparelho formal da enunciação, sempre inaugurado em cada ato, ocorrendo, dessa forma, a semantização da língua, ou seja, a conversão dela em discurso.

3. QUESTIONÁRIOS A PROFESSORES/INSTRUTORES/ALUNOS DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Os questionários entregues consistiam em três perguntas: 1) O que é fluência? 2) Cite características de um falante/discurso fluente em LE. 3) De que forma o professor de LE pode auxiliar no desenvolvimento da fluência em seus alunos de LE? Não se pretende fazer aqui uma amostragem ou um estudo quantitativo a partir das respostas, mas o objetivo é refletir a partir dessas respostas para realizar a discussão sugerida nesse trabalho. Serão utilizadas, em virtude de tamanho físico do texto, apenas as respostas referentes à primeira questão: O que é fluência? [grifos meus] * A fluência em LE é muito relativa. Quem é fluente, aquele que se comunica eficientemente na língua ou aquele que mais se aproxima da pronúncia ideal? Para mim, fluência está relacionada à comunicação. Ser fluente em uma LE é compreender e ser compreendido em textos orais e escritos, além de comunicar-se efetivamente. (Graduada em Letras e instrutora de Língua Inglesa há 8 anos) * Penso que é conseguir pensar livremente em LE, o que implica, sem dúvidas, conhecimento das habilidades de leitura, escrita, fala e compreensão auditiva, as chamadas quatro habilidades. (Graduado em Letras, atuante na área de Língua Materna) * Fluência está relacionada com preceitos de alfabetização e letramento, pois eu acho que a fluência aparece mesmo quando o tema abordado em algum texto, propaganda, etc., não seja da

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área que eu domine, eu ainda consiga compreender. (Graduada em Pedagogia e instrutora de Língua Inglesa e Língua Espanhola há 5 anos) * Fluência é se fazer entender. Todos falamos português, só que isso não significa que todos nós nos comuniquemos de forma 100% correta todo o tempo, até porque o português formal é diferente do coloquial. Eu diria que fluência é a capacidade de se comunicar, entender e ser entendido. (Graduanda em Ciências Biológicas e instrutora de Língua Inglesa há 10 anos) * Fluência é saber falar. A meu ver, digo que fluência é a forma correta de falar as palavras, que outras pessoas entendam o que você diz. Quando a pessoa é fluente do idioma de algum lugar, ela consegue se comunicar e ter conexão com outra pessoa. Fluência é o sucesso na interação do seu diálogo com o outro. (Estudante de Psicologia e aluno de Língua Inglesa há 3 anos) Nas respostas explicitadas, é possível perceber que o sentido atribuído à fluência cerca os conceitos estudados e que os profissionais da área possuem conhecimento acerca dos preceitos da abordagem comunicativa e levam em consideração o processo de comunicação, pensando, mesmo que de maneira tímida, na relação entre sujeitos. No entanto, a ênfase dos relatos está na comunicação. Levando em conta os estudos de enunciação, entende-se que seria um tanto inocente acreditar que a simples transferência de informação com êxito em uma língua pode ser considerado fluência nesse idioma, pois, como afirma Benveniste, a língua serve para transmitir a informação, comunicar a experiência, além de impor a adesão, suscitar a resposta, implorar, constranger. Nesse sentido, a transferência de informação parte do locutor, que se apropria do sistema da língua e, sintagmatizando, utiliza a língua atribuindo-lhe aqueles sentidos já cristalizados nesta. No entanto, é quando o locutor prevê um interlocutor e instiga-o a responder, constrange-o, implora algo, argumenta, que se passa do nível do signo para o nível semântico, transformando, assim, a língua em discurso. Longe de ter a intenção de generalizar ou definir conceitos nessa primeira investigação, apenas é notado que os estudos sobre fluência e aquisição de língua estrangeira podem ser beneficiados com os estudos de linguagem em uma perspectiva enunciativa a respeito da língua. Para exemplificar, retomo a resposta dada pelo aluno de LE e comento: “Fluência é saber falar. A meu ver, digo que fluência é a forma correta de falar as palavras, que outras pessoas entendam o que você diz”. Na primeira parte da resposta, percebemos a visão mais corriqueira sobre fluência, ainda com base no princípio de precisão (accuracy) do idioma, aliada à comunicação. “Quando a pessoa é fluente do idioma de algum lugar, ela consegue se comunicar e ter conexão com outra pessoa. Fluência é o sucesso na interação do seu diálogo com o outro”. Na segunda parte da reposta, é possível perceber a visão que o indivíduo possui a respeito da necessidade da interação com um interlocutor, dando margem à visão enunciativa da língua, que, no momento em que um sujeito se enuncia como eu, automaticamente, instaura um tu, criando, assim, na cadeia enunciativa, a construção dos sentidos através do uso da língua, no caso, estrangeira. Por isso, penso que a língua e a fluência se fundem, uma vez que um sujeito pode ser considerado fluente no momento em que consegue utilizar o sistema da língua (LE, no caso) e consegue enunciar, colocando-se como locutor eu, prevendo um interlocutor tu, organizando, assim, a relação entre os sujeitos participantes do discurso no ato da enunciação.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com o presente estudo, pode-se perceber que há uma espécie de disparidade conceitual no que diz respeito à fluência, tanto por parte das correntes teóricas, como pelos professores de LE. Além disso, percebeu-se que a visão de língua utilizada nas definições de fluência está um tanto longe da-

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quela sugerida por Benveniste, em que o locutor (se) enuncia ao utilizar o sistema da língua, transformando a frase em discurso. A partir da discussão, criou-se o seguinte problema de pesquisa: de que maneira os conceitos de língua e fluência se fundem, no que diz respeito à utilização de uma LE, visto que sempre há um sujeito falante que considera seu interlocutor no momento da enunciação e isso nem sempre é levado em consideração quando o tópico discutido é aprendizagem de LE.

REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões comunicativas no ensino de línguas. 5. ed. Campinas: Pontes, 2008. BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: Problemas de linguística geral I. 5. ed. Campinas: Pontes, 2005a. _____. Estrutura das relações de pessoa no verbo. In: Problemas de linguística geral I. 5. ed. Campinas: Pontes, 2005b. _____. Os níveis da análise linguística. In: Problemas de linguística geral I. 5. ed. Campinas: Pontes, 2005c. _____. Forma e sentido na linguagem. In: Problemas de linguística geral II. 2. ed. Campinas: Pontes, 2006. BRUMFIT, C. Communicative Methodology in Language Teaching. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. CHAMBERS, Francine. What do you mean by fluency. Southampton/UK: Elsevier Science, 1997. FLORES, Valdir et al.. Dicionário de linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2009. HEDGE, T. Teaching and Learning in the Language Classroom. Oxford: Oxford University Press, 2000. RIGGENBACH, H. Toward an understanding of fluency: a microanalysis of nonnative speaker conversations. Discourse Processes, 1991. SERRANI-INFANTE, S. M. Abordagem transdisciplinar da enunciação em segunda língua: a proposta AREDA. In: SIGNORINI, I. & CAVALCANTI, M. (Org), Linguística Aplicada e Transdisciplinaridade. Campinas: Mercado de Letras, 1998, p.127-148.

CHATEAUBRIAND, LEITOR DE CAMÕES: O POETA PORTUGUÊS NAS MÉMOIRES D’OUTRE-TOMBE1 Rafael Souza Barbosa* (UFRGS)

Houve, na primeira metade do século XIX na França, um interesse crescente por Camões e Os Lusíadas graças não só ao prestígio do gênero épico nesse período, mas sobretudo à valoração romântica atribuída ao poeta com a apropriação de suas vida e obra. Como marco editorial, destaca-se a suntuosa edição do épico português organizada por Morgado de Mateus e publicada por Firmin Didot (1817), que teve um impacto significativo entre franceses e estrangeiros (GALLUT, 2015), tanto sua primeira edição (In-4), doada a intelectuais e instituições, quanto sua segunda edição (In-8), comercializada dois anos depois. Antecede-a o verbete do poeta na Biographie Universelle de Michaud (1814), escrito por Madame de Staël; e sucede-a a Ode à Camoëns (1819), de François Raynouard, membro da Académie Française. Estes dois trabalhos, em diálogo com aquela edição, colaboraram com um processo de reavaliação de Camões e de seu legado, em um embate direto com leituras anteriores predominantemente negativas, cujo principal representante era Voltaire. Também contribuíram as histórias literárias de Bouterwek (1805), de Sismondi (1813) e de Ferdinand Denis (1826), uma vez que, escritas nesse gênero que se tornaria predominante nos estudos de literatura ao longo do século, forneciam juízos críticos claros e consistentes para o tratamento do patrimônio literário. Com efeito, não só reimprimiu-se em 1813 e 1820 a tradução de Os Lusíadas de La Harpe (1776); mas também realizaram-se quatro novas traduções, em prosa (1825; 1841) e em verso (1842; 1844). François-René de Chateaubriand (1768-1848) integra esse processo de reavalição do legado camoniano sobretudo através de suas figurações em Le Génie du Christianisme (v. 2, 1802) e em Les Mémoires d’Outre-Tombe (v. 2, 3, 5, 7, 8 e 11, 1842-1850). O contraste de ambas assinala não só uma mudança relativa à apreciação do poeta e de seus poemas em duas obras de gêneros bastante distintos; mas também uma descoberta da extensão de seu corpus poético e das potencialidades de sua vida para a criação literária. A menção a Camões na primeira obra, escrita durante seu exílio na Inglaterra, recobre apenas Os Lusíadas enquanto poema épico cristão, no escopo da análise que pretendia empreender. Nessa medida, a leitura encontrava-se previamente limitada e não podia ser positiva, haja vista a mistura das mitologias pagã e cristã já apontada por Voltaire, apesar da benevolência que Chateaubriand manifesta a respeito de seu autor. Cétait encore un bien riche sujet d’épopée [de Ercilla] que celui de La Lusiade. On a peine à concevoir comment un homme du génie du Camoëns, n’en a pas su tirer un plus grand parti. Mais enfin, il faut se rappeler qu’il fut le premier épique moderne, qu’il vivait dans un siècle barbare, qu’il y a des choses touchantes, et quelquefois sublimes dans les détails de son poème, et qu’après tout, le chantre du Tage fut le plus infortuné des mortels. (...) Le mélange que Camoëns a fait de la fable et du christianisme nous dispense de parler du merveilleux de son poème.2 (CHATEAUBRIAND, 1802, p. 32-33)

Mestrando em letras, com bolsa do CNPq, da Universidade federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]. Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo, que se dedica ao estudo da recepção de Camões no século XIX, sobretudo na França, que conta com apoio do CNPq na forma de bolsas de iniciação científica (2010-2014) e de uma bolsa de mestrado. Todas as traduções em rodapé ou no corpo do texto foram feitas pelo autor. 2 Era, porém, um tema muito rico para uma epopeia [Araucana, de Ercilla], assim como o de Os Lusíadas. É difícil conceber como um homem do gênio de Camões não soube tirar um melhor proveito dele. De qualquer forma, é preciso lembrar que ele foi o primeiro épico moderno; que ele viveu em um século bárbaro; que há coisas tocantes e algumas vezes sublimes nos detalhes de seu poema ; e que, além de tudo, o aedo do Tejo foi o mais desafortunado dos mortais. (...) A mistura que Camões faz da fábula e do cristianismo dispensa-nos de falar do maravilhoso de seu poema. *

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O escritor avalia que o poeta não soube tirar proveito do tema bastante rico de sua epopeia, nem desenvolver integralmente alguns de seus episódios; e recusa-se a abordar as manifestações do maravilhoso, provenientes da mitologia pagã. Ainda que Os Lusíadas não seja bem sucedido enquanto epopeia cristã, Chateaubriand ressalta o gênio de Camões, de maneira indulgente; e atenua as falhas apontadas através da enumeração de condições adversas a sua composição. É interessante notar que as razões apresentadas abarcam elementos tanto históricos, o pioneirismo da obra em um século bárbaro, quanto biográficos, a produção poética de um gênio condicionado por seus infortúnios. Dessa maneira, Chateaubriand atribui tacitamente um valor ao poeta e a seu legado à revelia da tentativa de modernização de uma poética classicizante. Dito de outra maneira, ele indica que há algo interessante na vida e na obra do poeta para além das regras do épico cristão, de modo a sugerir uma outra valoração produtiva, que se manifesta em sua obra autobiográfica. As Memóires d’Outre-Tombe, escritas entre 1809 e 1841 e publicadas em livro em 1849-1850, apresentam inúmeras passagens em que as vida e obra de Camões são evocadas; e permitem constatar de que maneira seus nome e universo poético incorporam-se à autobiografia de Chateaubriand. Apenas sugerida em Le Génie du Christianisme, a valoração produtiva realiza-se através de um espelhamento biobibliográfico entre o poeta e o escritor, sobretudo em relação a seus destinos pessoais e ao futuro de suas obras. Este espelhamento, assim, concorre para a conformação da poética de seu projeto autobiográfico, que, tendo como ponto de partida as memórias aristocráticas, constitui um gênero moderno na França oitocentista (GIL, 2008). No segundo tomo de Mémoires d’Outre-Tombe, Chateaubriand, que partiu de Saint-Malo em direção à América, relata como se sentiu ao avistar a Ilha do Pico nos Açores. A imagem do vulcão, que dominara durante muito tempo mares nunca antes navegados, provoca um sentimento mágico no autor; e leva-o a pensar a respeito da viagem de Cristóvão Colombo, iniciando um longo devaneio. A emoção de ter descoberto um novo mundo, que deve ter sentido, assim como ele, o navegador genovês, aproxima-os por meio dessa experiência compartilhada. Além dele, Vasco de Gama ne dut pas être moins émerveillé, lorsqu’en 1498, il aborda la côte de Malabar. Alors, tout change sur le globe : une nature nouvelle apparaît ; le rideau qui depuis des milliers de siècles cachait une partie de la terre, se lève : on découvre la patrie du soleil, le lieu d’où il sort chaque matin « comme un époux, ou comme un géant, tanquam sponsus, ut gigas » ; on voit à nu ce sage et brillant Orient, dont l’histoire mystérieuse se mêlait aux voyages de Pythagore, aux conquêtes d’Alexandre, au souvenir des croisades, et dont les parfums nous arrivaient à travers les champs de l’Arabie et les mers de la Grèce. L’Europe lui envoya un poète pour le saluer : le cygne du Tage fit entendre sa triste et belle voix sur les rivages de l’Inde ; Camoëns leur emprunta leur éclat, leur renommée et leur malheur ; il ne leur laissa que leurs richesses3. (CHATEAUBRIAND, 1849, v. 2, p. 147-148.)

O valor da descoberta, assinalado pelo sentimento emotivo, provém da passagem de uma experiência indireta, mediada pelo narrar, a uma experiência direta, decorrente do viver. À semelhança de Cristóvão Colombo e de Vasco da Gama, Chateaubriand torna-se testemunha de uma realidade que só conhecia por intermédio de relatos de sujeitos e tempos diversos. Empodera-se, assim, do vivido e também torna-se capaz, a seu turno, de narrá-lo. Entretanto, o relato, enquanto materialização verbal da experiência, deve não só resultar do que se vê, mas também incorporá-lo de alguma maneira ao que diz, como Camões o fez. A menção ao poeta assinala uma redescoberta de seu legado poético por Chateaubriand, que passa a prezar suas temática e execução bastante criticadas em Le Génie du Christianisme. Nessa Vasco da Gama não devia estar menos maravilhado quando, em 1498, desembarcou na costa de Malabar. Então, tudo muda sobre o globo: uma natureza nova aparece; a cortina, que há milhares de séculos escondia uma parte da terra, é aberta; descobrimos a pátria do sol, o lugar de onde ele sai a cada manhã “como um esposo, ou um gigante, tanquam sponsus, ut gigas”. Víamos a olho nu o sábio e brilhante Oriente, cuja história misteriosa confundia-se com as viagens de Pitágoras, com as conquistas de Alexandre, com as lembrança das cruzadas; e cujas fragrâncias chegavam até nós através dos campos da Arábia e dos mares da Grécia. A Europa enviava-lhe um poeta para saudá-lo: o cisne do Tejo fez ouvir sua triste e bela voz no litoral da Índia; Camões tomou emprestado seus estrondo, fama e desdita; e deixou-lhes apenas suas riquezas.

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medida, a valorização decorre do reconhecimento de uma transformação criativa das Índias que, se não nega a visão, transfigura-a em poesia. É interessante notar que esse reconhecimento provém do valor de contemporaneidade que encontra em seus poemas, não discriminados nesse excerto; e indica que não só ampliou o corpus para além de Os Lusíadas, mas também, dentro dessa perspectiva de viagem, encontrou um sentido precioso para eles. Dessa maneira, a presença de Camões assinala uma incorporação a serviço das Mémoires d’Outre-Tombe, que buscam, a partir de uma visão histórica complexa, ressaltar o percurso espaço-temporal de um indivíduo notável, bem como com quem se relaciona; e valorizá-lo por meio de seus feitos, compreendendo sua produção literária. Ainda no segundo tomo das Mémoires d’Outre-Tombe, Chateaubriand, já na América, relata que, com a partida dos caçadores, permaneceu com as mulheres e as crianças. Entre essas mulheres, havia duas índias que lhe suscitam certa admiração, mesmo sem ser capaz de compreendê-las; e de quem descreve, em pormenores, corpo e indumentária, bem como ações cotidianas. Quando encerra a descrição, faz as seguintes considerações: Faible que j’étais, je cherchais des exemples de faiblesse, afin de m’encourager. Camoëns n’avait-il pas aimé dans les Indes une esclave noire de Barbarie, et moi, ne pouvais-je pas en Amérique offrir des hommages à deux jeunes sultanes jonquilles ? Camoëns n’avait-il pas adressé des Endechas, ou des stances, à Bárbara escrava ? Ne lui avait-il pas dit: A quella captiva, / Que me tem captivo, Porque nella vivo, / Já não quer que viva. / Eu nunqua vi rosa / Em suaves molhos, / Que para meus olhos / Fosse mais formosa. // (...) Pretidão de amor, / Tão doce a figura, / Que a nave lhe jura / Que trocara a cor. / Leda mansidão, / Que o siso acompanha: / Bem parece estranha, / Mas Barbara não. Cette captive qui me tient captif, parce que je vis en elle, n’épargne pas ma vie. Jamais rose, dans de suaves bouquets, ne fut à mes yeux plus charmante. / (...) Sa chevelure noire inspire l’amour ; sa figure est si douce que la neige a envie de changer de couleur avec elle ; sa gaîté est accompagnée de réserve : c’est une étrangère : une barbare, non4. (CHATEAUBRIAND, 1849, v. 2, p. 292-293.)

A fragilidade que sente decorre provavelmente de estar em um lugar não familiar, apesar de encantador; e de não ser capaz de se comunicar com as duas indígenas, que conversavam entre si. Para atenuar o sentimento, a solução encontrada foi entregar-se à escrita; e vislumbrar a possibilidade de homenagear as duas silvícolas que lhe faziam companhia. Esta ideia foi suscitada por um poema de Camões, de que depreende uma circunstância considerando-a também autobiográfica. Chateaubriand, assim, cruza as histórias de vida de ambos; e apropria-se desse episódio afetivo para a composição das Mémoires. Desse modo, transfigura a cena cotidiana em um elogio à graça selvagem, que não considera bárbara; e estende ao poeta essa percepção sensível do estrangeiro, que lhe é tão cara. Dito de outra forma, Chateaubriand atribui a Camões a capacidade de revelar a beleza indígena, que foge ao comum, de maneira análoga ao que faz nessa passagem de sua autobiografia. É importante ressaltar que a lírica de Camões só havia sido parcialmente traduzida para o francês como apêndice de Os Lusíadas e parte de biografias, de modo que Endechas a Bárbara Escrava é uma adição significativa no corpo das Mémoires. De fato, a tradução dos versos apresentada não é a mesma que consta, por exemplo, na versão corrigida de Les Lusiades (1841), originalmente traduzida por Millié (1825), o que permite formular a hipótese de que foi feita especialmente para a autobiografia. Dessa maneira, resulta, do encontro textual entre os dois gênios, uma irmandade poética que, por intermédio de sua associação, acaba por valorar tanto a obra de Camões quanto a de Chateaubriand. No terceiro tomo das Mémoires d’Outre-Tombe, o escritor aponta sua proximidade com a literatura inglesa, decorrente da preparação de Le Génie du Christianisme; e relata que, durante o exílio Frágil como estava, procurava exemplos de fragilidade, a fim de me acalentar. Não havia Camões amado nas Índias uma escrava negra bárbara; e eu, não podia eu, na América, prestar homenagem a duas jovens sultanas narcísicas? Não havia Camões endereçado endechas, ou estrofes, à Bárbara escrava? Por acaso não lhe disse: Aquela cativa / Que me tem cativo, / Porque nela vivo / Já não quer que viva. / Eu nunca vi rosa / Em suaves molhos, / Que pera meus olhos / Fosse mais fermosa. // (...) Pretidão de Amor, / Tão doce a figura, / Que a neve lhe jura / Que trocara a cor. / Leda mansidão, / Que o siso acompanha; / Bem parece estranha, / Mas bárbara não.

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na Inglaterra, encontrou opiniões bastante distintas das que lera ainda na França. Nessa medida, constatou o contraste entre dois cânones de uma mesma literatura, de que um autor pode, conforme o crítico, ser duramente repreendido ou abundantemente elogiado. Apesar de significativas diferenças, percebeu também que isso não ocorria com alguns escritores, como Milton e Shakespeare, cuja valoração era unívoca. Chateaubriand formula, assim, a hipótese de que, até o dia de seu desaparecimento, costuma-se ignorar grandes poetas; grandes poetas, porém, costumam reconhecer uns os outros. Isso não se restringe à literatura inglesa: Le Tasse célèbre Camoëns encore presque ignoré, et lui sert de renommée. Est-il rien de plus admirable que cette société d’illustres égaux se révélant les uns aux autres par des signes, se saluant et s’entretenant ensemble dans une langue d’eux seuls comprise ?5 (CHATEAUBRIAND, 2009, t. 3, p. 289.)

O reconhecimento sugere que autores relacionam-se de maneira colaborativa em função de suas criações poéticas, à revelia da emulação; e constituem redes de apoio com que se valorizam mutuamente, em detrimento da hierarquização entre mestres e aprendizes. A maneira como Chateaubriand aborda a relação entre Tasso e Camões revela um interesse em incorporar este dispositivo em sua autobiografia, de modo a estabelecer e integrar uma comunidade figurada de gênios. Dito de outra forma, a digressão elucida a natureza da valoração produtiva que faz do legado de escritores; e serve de justificativa para apropriações e comentários como os anteriormente analisados. É possível sustentar que Camões e Tasso são escolhas claramente deliberadas, pois refletem não só uma preferência de Chateaubriand, mas também as possibilidades e os limites de identificação e de espelhamento entre suas vidas e obras. No décimo primeiro tomo das Mémoires d’Outre-Tombe, Chateaubriand, durante uma estada na Itália, aborda mais detidamente a vida de Tasso e enfoca a produção de suas obras associada a seu percurso biográfico. Detém-se sobretudo nas virtude e beleza de poemas, provenientes de seus infortúnios, que indicam seu destino desditoso. Esta passagem elucida a escolha de Tasso e de Camões como horizontes para sua autobiografia, de modo a tornar clara sua função: Montaigne visita le Tasse réduit à cet excès d’adversité, et ne lui témoigna aucune compassion. À la même époque, Camoëns terminait sa vie dans un hospice à Lisbonne ; qui le consolait mourant sur un grabat ? Les vers du prisonnier de Ferrare. L’auteur captif de la Jérusalem, admirant l’auteur mendiant des Lusiades, disait à Vasco da Gama : « Réjouis-toi d’être chanter par le poète qui tant déploya son vol glorieux, que tes vaisseaux rapides n’allèrent pas aussi loin. » Tant’ oltre stende il glorioso volo / Che i tuoi spalmati legni andar men lungo. Ainsi retentissait la voix de l’Éridan au bord tu Tage ; ainsi, à travers les mers, se félicitaient d’un hôpital à l’autre, à la honte de l’espèce humaine, deux illustres patients de même génie et de même destinée. Que de rois, de grands et de sots, aujourd’hui noyés dans l’oubli, se croyant vers la fin du seizième siècle des personnages dignes de mémoires, ignoraient jusqu’aux noms du Tasse et de Camoëns !6 (CHATEAUBRIAND, 1850, p. 213-214.)

O fim da vida dos poetas italiano e português revela em definitivo a valoração proposta por Chateaubriand . Apesar do valor intrínseco que encontra em suas obras, o escritor relata que Tasso e Camões morreram em circunstâncias semelhantes, muito aquém do esperado para poetas de gênio. Dessa maneira, vislumbra uma cumplicidade nesses derradeiros instantes, já que contam com o apoio imaterial um do outro: o primeiro, ressaltando a importância de seu trabalho para Vasco da Tasso celebra Camões ainda pouco conhecido e contribui com a sua fama. Há algo mais admirável do que esta sociedade de iguais ilustres revelando-se uns aos outros por meio de sinais, saudando-se e conversando em uma língua conhecida apenas por eles? 6 Montaigne visitou Tasso diminuído ao excesso da adversidade e mostrou nenhuma compaixão. Na mesma época, Camões encerrava sua vida em um asilo em Lisboa; quem o consolava enquanto morria em seu catre? Os versos do prisioneiro de Ferrara. O autor cativo de Jerusalém, admirando o autor mendicante de Os Lusíadas, dizia a Vasco da Gama: “Alegra-te por cantar-te o poeta que tão bem alçou um voo glorioso, porque tuas rápidas embarcações não foram tão longe.” Tant' oltre stende il glorioso volo / Che i tuoi spalmati legni andar men lungo. Assim ecoava a voz de Eridano nas margens do Tejo; assim, através dos mares, elogiavam-se, de um asilo a outro, para a vergonha da espécie humana, dois ilustres pacientes com igual gênio e igual fortuna. Que reis, grandiosos e idiotas, hoje afogados no esquecimento, crendo-se, no final do século XVI, personagens dignos de memória, ignoravam até mesmo os nomes de Tasso e de Camões! 5

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Gama; o segundo, consolando-se com os versos do primeiro. De fato, a indiferença de Montaigne em relação a Tasso sugere que a cumplicidade não é fortuita e acaba por reforçá-la. A valoração produtiva realiza-se, assim, novamente por meio do espelhamento biobibliográfico entre os poetas e o escritor; mas distingue-se em relação a sua finalidade, haja vista que não se trata apenas de uma valorização mútua por associação. Ainda que estabeleça tacita e diretamente paralelos entre seus revezes políticos e sociais no corpo das Mémoires, Chateaubriand parece buscar um destino diferente dos de Tasso e Camões. O valor de contemporaneidade do paralelo provém da impossibilidade de se estabelecer uma identificação total de suas vidas e obras no horizonte de uma sociedade burguesa e não mais aristocrática. As Mémoires d’Outre-Tombe evocam, por intermédio de Camões e Tasso, não só o dúbio reconhecimento de obras de gênio, que considera frequentemente tardio; mas também a incerteza das condições materiais de vida do escritor enquanto não ocorre. É importante ressaltar que a morte de Camões também foi enfocada na biografia de Madame de Staël, tematizada na ode de Raynouard e apropriada como trama para a narrativa Camoëns et Jozé Índio (1824) de Ferdinand Denis, de modo que se tornou um topos entre diversos autores românticos, franceses e estrangeiros. Com efeito, este topos distancia-se dos topoi do gênio incompreendido e do poeta maldito; e tensiona-se com a conformação do campo literário e com a profissionalização do escritor. Chateaubriand reflete a respeito da memória e do esquecimento, em função das mortes de Camões e de Tasso, e indaga as possibilidades de reconhecimento de um poeta de gênio face à história. No caso dos dois poetas, demonstra indignação com o aparente descaso de seus contemporâneos; e atribui vergonha à espécie humana por tê-lo permitido. Além disso, mostra-se sensível às inúmeras transformações históricas do período, uma das motivações de sua autobiografia; e percebe mudanças substanciais no que concerne à criação literária e ao campo de ação do escritor. Les orateurs de la Grèce et de Rome furent mêlés à la chose publique et en partagèrent le sort ; dans l’Italie et l’Espagne de la fin du moyen âge et de la Renaissance, leurs premiers génies des lettres et des arts participèrent au mouvement social. Quelles orageuses et belles vies que celles de Dante, de Tasse, de Camoëns, d’Ercilla, de Cervantes ! En France, anciennement, nos cantiques et nos récits nous parvenaient de nos pèlerinages et de nos combats ; mais, à compter du règne de Louis XIV, nos écrivains ont trop souvent été des hommes isolés dont les talents pouvaient être l’expression de l’esprit, non des faits de leur époque.7 (CHATEAUBRIAND, 1850, p. 496-497.)

As Mémoires d’Outre-Tombe adotam uma perspectiva autobiográfica inscrita na história; e enfocam as transformações sociais de que seu autor fez parte ou testemunhou. Fomentam, assim, uma consciência reflexiva a respeito de si e da história. Nessa medida, Chateaubriand apropria-se das vida e obra de Camões como manifestação privilegiada para a poética de sua autobiografia: homem e obra em consonância com as transformações sociais de seu tempo. Com efeito, a capacidade de percepção e de ação na história parece ser uma característica do poeta de gênio para o escritor, sobretudo nessa passagem. Para além dos espelhamentos biobibliográficos, a valoração produtiva encontrada nas Mémoires d’Outre-Tombe efetiva uma atualização de sentido do legado camoniano no horizonte de uma sociedade burguesa; e revela a potencialidade das vida e obra de Camões para a concretização desse projeto.

Os oradores de Grécia e Roma foram confundidos com a coisa pública e partilharam de sua sorte ; na Itália e na Espanha do final da Idade Média e do início da Renascença, seus primeiros gênios das letras e das artes participaram das mudanças sociais. Que trovejantes e belas vidas as de Dante, de Tasso, de Camões, de Ercilla, de Cervantes! Na França, antigamente, nossos cânticos e nossas histórias provinham de nossas peregrinações e de nossos combates; mas, a partir do reino de Luís XIV, nossos escritores foram frequentemente homens isolados cujos talentos podiam ser a expressão do espírito, não os fatos de sua época.

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REFERÊNCIAS CHATEAUBRIAND, François-Auguste. Génie du Christianisme, ou Beautés de la Religion Chrétienne. T. 2. Paris: Migneret, 1802. ______. Mémoires d’Outre-Tombe. T. 2. Paris: Eugène et Victor Penaud Frères, 1849. ______. Mémoires d’Outre-Tombe. T. 3. Paris: Eugène et Victor Penaud Frères, 1849. ______. Mémoires d’Outre-Tombe. T. 11. Paris: Eugène et Victor Penaud Frères, 1850. DENIS, Ferdinand. Camões e José Índio. Organização, tradução e notas de Rafael Souza Barbosa. Rio de Janeiro: Makunaima, 2014. GALLUT, Anne. O Morgado de Mateus, Editor de Os Lusíadas. Tradução de Maria Carlos Loureiro. Lisboa: Alêtheia Editores, 2015. GIL, Beatriz Cerisara. Remémoration et histoire dans les Mémoires D’Outre-Tombe de F.-R. de Chateaubriand et leur traduction en portugais. Tese (Letras) – Instituto de Letras – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2008. RAYNOUARD, François. Camoens. Ode. Traduzido para o português por Francisco Manuel do Nascimento. Anais das Ciências, das Artes e das Letras,Paris, t. V, 1819, segunda parte, p. 1-15. SISMONDI, Jean Charles Léonard Sismonde de. De la Littérature du Midi de l’Europe. Paris; Strasbourg: Treuttel et Würtz, 1813. SOUZA-BOTELHO, José Maria de (org.). Os Lusíadas, Poema Épico de Luís de Camões [de acordo com a edição de 1817, In-4º]. Paris: Firmin Didot, 1819. STAËL, Germaine de. Camoens. In: Biographie Universelle, Ancienne et Moderne. T. 6. Paris: Michaud Frères, 1812, p. 618-621.

O CASO DO MENINO BERNARDO: ANÁLISE DE UM TEXTO À LUZ DA TEORIA DOS BLOCOS SEMÂNTICOS Rafaelly Andressa Schallemberger* (UPF) Luciana Maria Crestani** (UPF)

1. INTRODUÇÃO Na área de Letras, há várias correntes de estudo. A gramática tradicional nunca pretendeu dar conta dos sentidos presentes nos enunciados e foi, portanto, sempre de caráter normativo/descritivo. Dentre as teorias que se preocupam com os sentidos dos enunciados, figuram a Teoria da Argumentação na Língua, desenvolvida por Ducrot e Anscombre e, mais tarde, a Teoria dos Blocos Semânticos (TBS), de Carel e Ducrot, que propuseram reflexões sobre o sentido argumentativo presente nos enunciados. A Teoria da argumentação na Língua buscava, essencialmente, demonstrar que a língua não serve para descrever as coisas que existem no mundo, ou seja, não têm o caráter informativo, mas sim argumentativo. Dessa forma, as expressões argumentativas levam a diferentes conclusões, como por exemplo, o uso dos conectores “portanto” e “mesmo assim”, que orientam as conclusões que se podem depreender do enunciado. A argumentação está presente, portanto, na própria língua. Para este trabalho escolhemos como corpus o „texto resposta“ de Jader Marques, que está vinculado ao caso do menino Bernardo Boldrini1. O texto foi escrito pelo advogado de Leandro, pai do menino, que até o presente momento permanece preso preventivamente, como um dos suspeitos do crime. O texto de Jader surge em resposta ao texto “Esse menino era seu filho” de Carpinejar, em que o pai do garoto é acusado pela morte do filho. No momento em que o texto de Carpinejar foi escrito, havia suspeitas do envolvimento de Leandro como mentor do crime, contudo não confirmadas, e é por esse motivo que seu advogado responde a Carpinejar. Nosso trabalho busca mostrar a argumentação presente no texto de Jader, no intuito de defender seu cliente perante a sociedade. Em questões metodológicas nossa pesquisa é de natureza aplicada, de cunho bibliográfico e abordagem qualitativa. A base teórica se dá em Ducrot (1988), Carel e Ducrot (2005) e Carel (2005), a partir dos pressupostos da TBS. O trabalho se dividirá em três seções. Na primeira, abordamos as fases da Teoria da Argumentação na Língua, destacando a fase da TBS; na segunda, relembramos o contexto do caso do menino Bernardo; por fim, procedemos à análise do texto em questão.

2. TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA: CONTEXTO E EVOLUÇÃO A Teoria da Argumentação na Língua originou-se no início da década de 1980, criada por Oswald Ducrot e Jean-Claude Anscombre e buscava demonstrar que a língua não serve para descrever as coisas que existem no mundo, ou seja, não têm o caráter informativo, mas sim argumentativo. A Teoria da Argumentação na Língua compreende três fases: Standart, Standart Ampliada e Teoria dos Blocos Semânticos. As duas primeiras serão explicadas brevemente neste trabalho, e daremos ênfase a fase da TBS, já que a análise será com base nela.

Mestranda em Letras, UPF, Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em Linguística, Mackenzie, Brasil. E-mail: [email protected] 1 Na seção 3 retomaremos o caso do assassinato de Bernardo. *

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A fase Standart da Teoria tratou do potencial argumentativo dos enunciados, sendo que as diferentes expressões argumentativas deveriam conduzir a diferentes conclusões. Neste caso, para a teoria, simples constatações, como „Faz sol hoje“, não têm sentido nenhum, porque só se podem extrair conclusões a partir do momento em que se segue um encadeamento desta mesma frase. Por exemplo: „Faz sol, portanto vamos sair“, e „Faz sol, mesmo assim vamos ficar em casa“. Percebemos que não é o fato de fazer ou não sol que muda o sentido da frase. A ideia argumentativa está no que vem em seguida, depois do conector. Logo em seguida, surge a fase Standart ampliada, introduzindo-se o conceito de Topoi, que era baseado em como as comunidades concebiam determinadas realidades. Segundo Ducrot, um encadeamento como „Faz sol, portanto vamos sair“ só teria significação se fossemos à comunidade produtora do enunciado e verificássemos se realmente naquele lugar, quando faz sol, é um bom tempo para sair. No Maranhão, por exemplo, quando faz sol, é ruim sair, porque o sol é muito quente. Contudo, com a evolução da teoria, os estudiosos perceberam que, ao postular a necessidade de ser ir até a comunidade para extrair as conclusões, esta não era mais uma teoria argumentativa na língua. Perdia o cunho estruturalista porque estava buscando fora da língua os argumentos, assim como outras teorias o fizeram. Para ser estruturalista, era preciso que se repensasse o conceito de topoi, que acabou por ser extinto dos estudos linguísticos da Teoria da Argumentação na Língua. Também contempla a segunda fase a Teoria Polifônica da Enunciação, que nos mostra que um enunciado diz mais do que inicialmente possa parecer. Os primeiros linguistas acreditavam que existia apenas um sujeito no enunciado. Contudo, Ducrot muda essa visão quando diz „[...] tenho construído uma teoria polifônica da enunciação, segundo a qual em um mesmo enunciado tem presentes vários sujeitos com status linguísticos diferentes”. (DUCROT, 1988, p. 16, tradução nossa). Neste caso, o primeiro sujeito é o locutor, que é quem fala. No caso de uma obra literária, o locutor é o narrador. Seguindo a mesma linha de raciocínio, Ducrot (1998) afirma que quando procuramos convencer alguém de algo, não queremos que pareça que as palavras saem de nós, mas sim de uma entidade mais aquém. Então ele define os enunciadores. Chamo enunciadores as origens dos diferentes pontos de vista que se apresentam no enunciado. Não são pessoas, senão „pontos de vista“ abstratos. O locutor mesmo pode ser identificado com alguns destes enunciadores, mas na maioria dos casos os apresenta guardando certa distância frente a eles (DUCROT, 1988, p. 20, tradução nossa).

Observemos a indicação da posição do locutor em relação aos enunciadores. Por exemplo, na frase „Pedro parou de fumar“, temos o enunciador que diz que „Pedro fumava antes“, e outro que diz que „Pedro não fuma agora“. O primeiro é o pressuposto e o segundo é posto. O primeiro deles é o E1 (enunciador 1), o segundo é o E2. O locutor aceita o primeiro enunciador e se identifica com o segundo, porque para que Pedro pare de fumar, é necessário que já tenha fumado alguma vez (DUCROT, 1988). Ou seja, a polifonia pode ser definida como as outras “vozes” de um enunciado, os outros pontos de vista (que não o do locutor) sobre um mesmo fato. O mesmo é percebido na ironia, quando um enunciado A, deve ser lido como não-A. Por exemplo: na sala de aula o aluno pergunta à professora: „É pra copiar?“, ao passo que esta responde: „Não, é pra ficar olhando!“. Embora a professora diga que é para „ficar olhando“, o enunciado deve ser lido como não-A, então, „Copie, portanto não é para ficar olhando“. Na atualidade, a terceira fase da Teoria da Argumentação na Língua abrange a Teoria dos Blocos Semânticos, proposta por Carel (2005). Torna-se relevante pontuar que Carel foi aluna de Ducrot e percebeu que a Teoria dos “Topoi” fugia da proposta de argumentação na língua que os autores haviam feito, ou seja, com a teoria dos topoi, o sentido extrapolava o linguístico, sendo preciso verificar fora da língua (no mundo) as condições para se depreender os sentidos dos enunciados. Carel argumenta que é nos encadeamentos que acontece a argumentação: „ao meu ver, é somente ligados um

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ao outro que os dois segmentos de (N) fazem sentido. Eu qualifico de encadeamento argumentativo qualquer sequência de dois segmentos que são, de certo modo, dependentes“ (CAREL, 2005, p. 80). Para que haja a sequência argumentativa, Carel (2005) estabelece as palavras donc ou si (portanto, ou se então) como sendo normativas e as palavras pourtant ou même si (mesmo assim, ou apesar de) como transgressivas na argumentação. E explicita suas ideias com o exemplo: Em particular, segundo minha terminologia, o encadeamento Pedro é rico, portanto é infeliz (Pierre est riche donc il est malheureux) é normativo. Por certo, é contrário às crenças sociais. Mas isso não faz dele o que eu acho de „encadeamento transgressivo“, é, ao contrário normativo, porque, tanto quanto Pedro é rico, portanto é feliz (Pierre est riche donc il heureux), vê a regra (a riqueza traz infelicidade) como uma prescrição. O encadeamento Pedro é rico, portanto é infeliz deve, então, ser bem diferenciado de Pedro é rico, mesmo assim é infeliz: o primeiro contradiz a regra segundo a qual a riqueza traz felicidade; o segundo contenta-se em desobedecê-la (CAREL, 2005, p. 81, tradução nossa).

Seguindo a ideia de normativo e transgressivo, Carel e Ducrot (2005) demonstram o bloco semântico. Eles explicam a razão de organizar em blocos: Porque os aspectos: A DC B A PT NEG B NEG A PT B NEG A DC NEG DE B estão emparelhados uns com os outros dado que os segmentos A e B estão influídos da mesma maneira por sua presença em cada encadeamento. (CAREL, DUCROT, 2005, p. 22-23- tradução nossa).

Para exemplificar, os autores nos explicam que em um encadeamento onde trabalhamos com a palavra argumentativa „tarde“ e consideramos o tempo como algo que traz as coisas. Temos: A (tempo chegou), B (Pedro chegou). E assim, o bloco, conforme o quadro 1: Quadro 1: Quadrado argumentativo.

Fonte: as autoras.

Percebemos quais são os encadeamentos que são recíprocos, conversos, e transpostos. Em 1, temos um encadeamento normativo, Pedro chega tarde em casa, porque quanto mais tarde, mais Pedro deve ter chegado. O mesmo acontece em 2, porque se ainda não é tarde, Pedro evidentemente não terá chegado. Em 3 temos um encadeamento transgressivo, já que o tempo “ser tarde” ainda não se configurava, mas Pedro já havia chegado. O mesmo acontece em 4, já que o horário chega, mas Pedro não, ele transgride a regra e se atrasa ou não vem. Após essa retomada teórica, passamos à explanação do caso Bernardo e, na sequência, à análise do texto objeto de estudo.

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3. O CASO DO MENINO BERNANDO Bernardo Uglioni Boldrini era um menino de onze anos que morava com o pai (o médico Leandro Boldrini), a madrasta (a enfermeira Graciele Ugulini) e a meia irmã, em Três Passos. Seu pai e a madrasta tinham muitas posses e, aparentemente, ofereciam uma boa qualidade de vida ao menino. Contudo, no final de 2013, Bernardo teria ido até o Fórum da cidade pedir auxílio para não mais morar com seu pai, para ir morar com sua avó, em Santa Maria. Ele alegou que sentia muita falta de sua mãe, que teria se suicidado em 2010 (o caso foi reaberto recentemente) e que era maltratado pelo pai e pela madrasta. O Ministério Público, segundo as informações divulgadas no inquérito, teria dado uma segunda chance ao pai que prometeu dar mais atenção ao filho. No dia 4 de abril de 2014, foi o último dia em que Bernardo foi visto, quando teria ido dormir na casa de um amigo que morava há duas quadras de distância da residência da família. No domingo, dia 6 de abril de 2014, o pai disse que foi até a casa do amigo, contudo ficou sabendo que seu filho não estava lá, nem havia chegado até a casa desse. Neste mesmo dia, o pai registrou o fato na polícia e, na rádio, pediu ajuda das pessoas, para que encontrassem seu filho. O caso tomou outra dimensão, quando, no dia 14 de abril de 2014, segunda-feira, o corpo do garoto foi encontrado em um mato em Frederico Westphalen. Isto foi descoberto, porque, na segunda-feira, dia 4, a madrasta foi multada por excesso de velocidade, nas proximidades de Frederico. A partir do registro da multa e com o depoimento de Edelvânia Wirganovicz, que era amiga de Graciele, foi possível desvendar os fatos. De acordo com as investigações da polícia, o garoto foi morto por uma injeção letal que teria sido dada pela madrasta. Graciele e Edelvânia teriam levado o menino até Frederico, aplicado a injeção, e o irmão de Edelvânia teria feito a cova onde o menino foi deixado. Também colocaram soda cáustica sobre o corpo, para que se desfizesse mais rapidamente, sem deixar vestígios. Permanecem presos até o presente momento, o pai, a madrasta de Bernardo, Edelvânia e seu irmão. A justiça ainda está ouvindo os acusados e ainda não proferiu uma sentença. Até o presente momento, embora os acusados estejam presos, a justiça não deu seu parecer, nem a sentença e ainda busca esclarecer todos os fatos. Neste clima de espera pelo resultado final, surge nosso corpus de análise.

4. METODOLOGIA Em questões metodológicas o corpus do nosso trabalho é o “texto resposta de Jader Marques” e foi escolhido por ter recebido bastante repercussão da mídia impressa, e especialmente, nas redes sociais. Para tanto, escolhemos a TBS para analisar nosso corpus, visto que tratamos da argumentação presente no texto. Por isso, nossa pesquisa é de natureza aplicada, já que buscamos trazer contribuições a problemas específicos da área, em especial ao fazer de sala de aula e baseada no método dialético. Do ponto de vista dos procedimentos técnicos, nossa pesquisa é bibliográfica, uma vez que para a análise do corpus nos embasamos em referencial teórico da área da TBS. E assim, pretendemos contribuir com nossas conclusões a respeito do tema. Como trabalhamos com a dinamicidade dos dados, nossa pesquisa é de abordagem qualitativa. A base teórica se dá essencialmente em Ducrot e Anscombre (1998) e Carel (2005). A partir do corpus selecionado e dos teóricos que embasam nosso estudo, faremos a descrição do bloco semântico formado, dos enunciadores e da argumentação presente no texto, que possibilite a Jader Marques realizar a defesa de seu cliente.

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5. ANÁLISE DO TEXTO Mobilizado com tudo o que havia acontecido, Fabrício Carpinejar, jornalista e poeta escreve em sua coluna no Jornal Zero Hora (24 de abril de 2014) e, depois, em sua página do facebook, a crônica “Esse menino era seu filho”2. No texto, Carpinejar afirma que Leandro não pode ser chamado de pai porque não cuidou de seu filho, autorizando que a madrasta o deixasse em uma cova em Frederico Westphalen ao invés de na cama, coberto pelo edredom. Que o menino foi enganado porque achava que seu pai era eu herói, mas esse herói não o salvou, ao contrário, foi quem o matou. Para Carpinejar, Leandro não foi pai, nem homem, porque abortou uma criança grande demais. Aniquilou Bernardo para formar uma nova família, com a nova mulher. Em resposta a esse texto publicado por Carpinejar, o advogado de Leandro Boldrini escreve o texto abaixo3 e o veicula nas redes sociais, da mesma forma, esperando demonstrar o contrário, a defesa de Leandro. Fabrício é um excelente escritor. Possui uma habilidade incomum com as palavras. Joga com elas. Brinca com as palavras ao escolhê-las para dizer o que bem entende. Pessoas possuem dons. Fabrício possui o dom da palavra. Quem tem o dom da palavra sabe dizer a dor, sabe dizer o medo, sabe dizer a angústia, a alegria, a tristeza, sabe dizer o amor. Fabrício sabe dizer todas essas coisas e, com seu dom, sabe dizer o que as pessoas sentem diante das dificuldades da vida, geralmente, melhor do que elas. Fabrício sabe que precisa escrever para ajudar as pessoas a dizerem o que elas não conseguem dizer. Fabrício fica feliz quando isso acontece, quando ele consegue ser o intérprete, o tradutor, o facilitador, quando ele se torna a voz de quem não saberia dizer de um jeito tão próprio, tão bonito, tão sensível. Fabrício é sensível para captar a vontade geral de dizer algo e diz exatamente como a maioria das pessoas gostaria de poder dizer. Fabrício julgou e condenou Leandro, um pai que ele não conhece. Condenou um Leandro por uma omissão que ele não conhece. Sem ver uma folha do processo, Fabrício condenou um Leandro que ele viu na televisão, que ele leu nos jornais. Fabrício sujou de sangue as mãos de Leandro, antes de a própria Polícia fazer qualquer afirmação, num caso cheio de segredos, inclusive segredo de justiça. Fabrício sabe usar as palavras, mas Fabrício não pode contar segredos que ele não conhece. Para usar as palavras basta escolher palavras. Para contar uma história de verdade, primeiro é indispensável saber o segredo. Mas Fabrício não sabe o segredo. Fabrício conhece as palavras. Mas Fabrício não conhece Leandro. Por isso, um dia, quando Fabrício conhecer os fatos, conhecer Leandro, então, aí sim, Fabrício poderá, com sua inteligência e sensibilidade, contar-nos a verdadeira história de Leandro. Antes não! JM

Esse texto-resposta constitui nosso objeto de estudo. Na análise dele, procuramos mostrar o quadrado argumentativo – e as quatro posições polifônicas ­– evocado pelo advogado a partir de sua argumentação. Também procuramos mostrar as posições enunciativas com que o locutor Jader se identifica e qual ele rechaça. Para tecer o quadrado argumentativo, tomamos o texto como um enunciado global, cujas partes (enunciando menores que o constituem) estão a serviço da construção da unidade argumentativa deste. Como é possível depreender da leitura do texto em sua totalidade, o advogado do pai do menino toma posição em defesa deste, refutando as acusações a ele tecidas por Carpinejar. Jader inicia seu texto-resposta elogiando as qualidades de Carpinejar no que tange ao uso das palavras para sensibilizar e para traduzir a dor que as pessoas sentem. Isso fica evidente nos três primeiros parágrafos. Nesse sentido, se tomados isoladamente do restante do texto, estes três primeiros parágrafos não parecem tecer uma crítica a Carpinejar, e sim um elogio ao seu poder de usar as palavras para traduzir sentimentos e emoções de ordem geral. Nesse sentido, seria possível pensar que o que está O texto de Carpinejar pode ser visualizado em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/04/fabricio-carpinejar-esse-menino-era-seu-filho-4484200.html 3 O texto de Jader Marques pode ser acessado em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2014/04/advogado-do-pai-de-bernardo-responde-a-manifestacao-de-fabricio-carpinejar-4485542.html 2

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em jogo neste texto é a questão de se ter ou não o dom da palavra, de poder ou não, através delas, sensibilizar o leitor. Assim, se analisados apenas os 3 primeiros parágrafos, teríamos um sentido de base como “ter o dom da palavra, portanto sensibilizar”. No entanto, os enunciados dos parágrafos seguintes (4, 5 e 6) dão outra direção ao sentido do texto. Neles, Jader argumenta que Carpinejar usa do poder que tem com as palavras para incriminar e condenar alguém que ele não conhece, com base em informações/suspeitas não comprovadas. Jader diz que Carpinejar não conhece o pai do menino e não conhece a verdade dos fatos, portanto não deveria falar do que não sabe. Nesse cenário, o “dom da palavra” atribuído a Carpinejar nos três primeiros parágrafos passa a ter uma conotação negativa, uma vez que passa a ser tomado como uma estratégia de persuasão vazia do articulista que não sabe a verdade dos fatos, mas usa das palavras para sensibilizar a opinião pública. Assim, a direção argumentativa que se estabelece neste texto é a de que não se deve falar daquilo que não se sabe/conhece. Disso se depreende o sentido argumentativo “não saber a verdade, portanto não falar”. Tomando o sentido argumentativo do texto de Jader, podemos formar o seguinte quadrado argumentativo, conforme o quadro 2, onde A é “saber a verdade”, e B é “falar”. Quadro 2: Bloco Semântico (saber x falar)

Fonte: as autoras.

Temos como encadeamentos normativos 1 e 2, os quais expressam os sentidos de que quem sabe a verdade pode falar (1); quem não sabe, não pode (2). Em 3 e 4 temos os transgressivos, já que em três a pessoa não sabe, mesmo assim fala; e em quatro, sabe, mesmo assim não fala. Jader Marques, enquanto locutor do texto, identifica-se com as posições enunciativas propostas nos enunciados normativos 1 e 2, “Saber a verdade, portanto falar” e “Não saber a verdade, portanto não falar”, porque conforme argumenta em seu texto é necessário que primeiro se conheçam os fatos para poder falar, para acusar alguém de um crime tão grave, como o assassinato de Bernardo. Se não se sabe da verdade dos fatos, não se deve falar sobre eles. Ao mesmo tempo, o locutor Jader atribui a Carpinejar a posição transgressiva proposta no enunciado 3, “Não saber, mesmo assim falar”, já que argumenta que Fabrício não conhece Leandro, não sabe nada sobre ele, e mesmo assim fala e o acusa do assassinato do próprio filho, antes mesmo que a justiça julgue o caso e atribua a culpa. Se tomados numa perspectiva mais abstrata, nos enunciados 1 e 2 está implicado o sentido de “sensatez”, sendo sensato o sujeito que só fala do que sabe e não fala do que não sabe. No enunciado 3, “Não saber a verdade, mesmo assim falar”, constrói-se o sentido de falta de bom senso, de insensatez. O texto passa, portanto, a ideia de um Carpinejar insensato, e, por outro lado, de um advogado (Jader) sensato, ponderado quanto ao que pode/deve ser dito. O encadeamento argumentativo 4, “Saber a verdade, mesmo assim não falar”, pode ser associado à ideia de discrição ou, nesse contexto do crime do menino, à ideia de omissão, pois poderia ser considerado omisso um sujeito que, mesmo sabendo da verdade, não fala dela. Assim constroem-se as 4 possibilidades polifônicas evocadas pelo

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discurso de Jader. O locutor Jader, como apontamos, se identifica com os enunciadores (posições enunciativas) 1 e 2 e rechaça a posição enunciativa 3, atribuindo-a a Carpinejar.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho nos propomos a realizar a análise do “texto-resposta” de Jader Marques à crônica de Carpinejar, sob a ótica da Teoria dos Blocos Semânticos desenvolvida por Ducrot e Carel. Na primeira seção, exploramos as três fases da Teoria da Argumentação na Língua, detendo-nos mais nas explicações sobre a terceira fase, o desenvolvimento da Teoria dos Blocos Semânticos. Também retomamos, de forma breve, o caso do menino Bernardo que deu origem à crônica de Carpinejar e ao texto-resposta – objeto de análise neste trabalho – de Jader Marques, advogado do pai do menino. Na análise, vimos como se configura o bloco semântico do texto-reposta de Jader Marques, explicitando as 4 possibilidades polifônicas que o constituem. Também identificamos as posições enunciativas com que o locutor Jader se identifica e qual ele rechaça, atribuindo esta ao discurso de Carpinejar. Como explicamos na análise, o discurso de Jader em defesa de seu cliente (o pai do menino Bernardo) toma o sentido de que não se deve falar do que não se sabe, ou de que só se deve falar do que se sabe. Nesse contexto, desqualifica o discurso de Carpinejar, que “não sabe da verdade, mesmo assim fala”, atribuindo ao dizer deste um teor de insensatez, de imprudência. Ao mesmo tempo, pelas posições enunciativas com que se identifica, Jader constrói no texto a imagem de um advogado sensato e prudente, que também sabe usar as palavras, mas não as usa de forma leviana.

REFERÊNCIAS CAREL, Marion. O que é argumentar? Traduzido por Telisa F. Graeff. Desenredo. Passo Fundo: Editora da UPF, 2005, p. 77-84. CAREL, Marion; DUCROT Oswald. Una introduccción a la teoría de los bloques semánticos. Buenos Aires: Colihue, 2005. CARPINEJAR, Fabrício. Esse menino era seu filho. Disponível em: . Acesso em: 9 ago., 2014. DUCROT, Oswald. Polifonía y argumentación. Cali: Universidad del Valle, 1988. MARQUES, Jader. Resposta de Jader Marques a Carpinejar. Disponível em: . Acesso em: 9 de ago. de 2014.

O MITO DE PÃ NA PINTURA E NA LITERATURA: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA ARTÍSTICA E ARGUMENTATIVA Roberta Macedo Ciocari* (UPF)

Este trabalho tem como objetivo realizar uma leitura intersemiótica do mito de Pã na pintura e na literatura. Na pintura, foi selecionado o mito retratado por meio do quadro de Nicolas Poussin intitulado “Pã e Syrinx”, pintado em 1637. Na literatura, foi escolhido o eco do mito na poesia “Hymn of Pan”, de Percy Bysshe Shelley, de 1820. A leitura do quadro de Poussin tem como base as modalidades apresentadas por Armindo Trevisan (1999, p. 123), a saber: leitura biográfico-intencional, leitura cronológico-estilística, leitura formal, leitura iconográfica e leitura iconológica. A poesia de Shelley, por sua vez, tem sua análise fundamentada na Teoria da Argumentação na Língua (TAL) de Oswald Ducrot, juntamente com as anteriores leituras biográfico-intencional e a cronológico-estilística sobre o autor. Justifica-se a escolha deste mito com a afirmação da analista junguiana Clarissa Pinkola Estés (1994, p. 19), para quem os contos de fadas, os mitos e as histórias são de extrema importância, pois fornecem um tipo de entendimento que aguça o olhar do ser humano na direção de seu próprio conhecimento. Este estudo qualitativo e descritivo sobre as obras mencionadas conta com a apresentação do mito de Pã no episódio que envolve a ninfa Syrinx, para logo depois, apresentar a análise do mito no quadro de Poussin. A seguir, a poesia de Shelley é apresentada, juntamente com toda sua análise. Por fim, são apresentadas as considerações finais e são listadas as referências.

1. O MITO DE PÃ Pã era filho do deus Hermes com a filha de um homem mortal, que possuía ovelhas, as quais Hermes apascentava. Pã nasceu e sua mãe, assustada com sua aparência, chifres e pés de bode, fugiu. Vem daí uma das razões pelas quais se considera o pânico como originário desse deus. Hermes, contente com seu filho, o levou dali e o mostrou orgulhoso aos deuses imortais, os quais adoraram aquela criança barulhenta e risonha. Pã era considerado o deus da natureza, das florestas, dos campos e dos pastores. Era também o deus da luxúria, e sempre tentava conquistar as ninfas de uma forma um tanto quanto violenta. Foi assim sua história com a ninfa Syrinx, que, vendo-se encurralada por Pã, rogou a Zeus que a ajudasse a escapar de seu assédio. Zeus transformou-a em juncos no exato momento em que Pã colocou suas mãos sobre ela. Furioso, Pã quebrou os juncos em pedaços de vários tamanhos. Após a fúria passar, arrependido, juntou os juncos, e chorando, beijou-os. Quando fez isso, percebeu que sua respiração fazia sair um som agradável dos juncos quebrados, os quais uniu e transformou em um tipo de flauta – a flauta de Pã.

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Doutoranda, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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2. PINTURA: PÃ E SYRINX 2.1. LEITURAS BIOGRÁFICO-INTENCIONAL E CRONOLÓGICO-ESTILÍSTICA Iniciando o percurso deste estudo, temos a leitura biográfico-intencional de Nicolas Poussin. De acordo com Trevisan (1999, p. 123), “embora distintos, artista e obra reclamam-se”, pois “até certo ponto a biografia de um artista ajuda a compreender sua obra. (...) as ideias estéticas dos artistas, suas pretensões conscientes, também devem merecer atenção quando reveladas” (p. 136). Juntando-se a essa leitura, temos a cronológico-estilística, a qual defende a importância de saber quando e onde viveu determinado artista, pois “um artista não só aprende um ofício, uma técnica de produção, mas os hábitos visuais de sua época” (p. 137). Segundo Sprinson de Jesús (2003)4, Nicolas Poussin nasceu em Les Andelys, na Normandia, França, no ano de 1594. Estudou em Roma, como era tradição de muitos artistas de sua época. Apesar de se definir contra o prevalente gosto barroco de Roma, tornou-se uma figura central para a arte. Poussin seguiu rapidamente seu próprio caminho artístico, trazendo um novo rigor intelectual ao impulso clássico da arte. Sua sensibilidade com relação a nuances do gestual, do design, da cor e da manipulação criaram para cada narrativa, formas memoráveis e duradouras. Em Roma, Poussin foi influenciado pelo estudo das vidas e do pensamento dos gregos e romanos antigos. Trevisan afirma que há, sem dúvida, alguma relação entre o artista e sua circunstância (...). Mas o mais das vezes esse vínculo é muito mais complexo e, sobretudo, contraditório, já que o artista é, em geral, um ser insatisfeito e antagônico, e porque, em boa medida, é precisamente seu desagrado em relação à realidade que lhe tocou viver o que o leva a criar outra realidade em sua arte (...) (1999, p. 141).

Sendo assim, Poussin não se identificou com a abordagem da época, que consistia em representar santos em tamanho grande e em poses teatrais, em êxtase e em cenas de apoteose. Ao contrário, desenvolveu pinturas de tamanho modesto, ordenadas racionalmente, colocando em seus trabalhos uma certa intimidade e uma poesia elegante. Amava a ordem e a geometria, mas também permitia-se ser intuitivo. Suas obras frequentemente possuem uma mensagem moral ou filosófica, ou então, salientam a posição precária do homem no universo. Interpretou respeitosamente vários sistemas de crenças, aparentemente conflitantes – pagão, judeu, cristão, estoico e panteísta – representando cada um como um produto da cultura e da história humana e da necessidade essencial do ser humano de criar ordem a partir do caos. Seus materiais eram basicamente óleo sobre tela ou caneta e tinta marrom sobre giz negro. Em sua época, Roma alcançou seu ápice com relação a projetos de renovação urbana, desenvolvimento e expansão, patrocinados por poderosos pontífices para ser um símbolo da glória católica. Artistas de todos os lugares dirigiam-se a Roma por dois principais motivos: estudar as obras da antiguidade e da Renascença e para receber e executar encomendas para os papas e também para uma clientela secular, formando, assim, o estilo Barroco.

2.2. LEITURA FORMAL Para Trevisan (1999, p. 143) (...) o objeto artístico implica uma organização de diversos elementos, os quais, por si, constituem entidades complexas e organizadas – outras tantas formas: cor, linha, textura, planos, volumes, espaço, luz, sombra, tema, movimento, etc. Na medida em que tais elementos se subordinam ao conjunto, produzem uma única forma, a da obra. Não há número de página, pois se trata de um site na internet, cujo endereço completo encontra-se nas referências.

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Observando a obra no anexo 1, inicia-se a análise desses elementos pela cor: percebe-se o predomínio de tons terrosos sobre o valor branco (no corpo das ninfas) e o azul do céu, ocorrendo um alto contraste entre essas cores e o valor. As linhas em destaque são as linhas verticais das árvores. Observa-se a presença de várias texturas, dentre as quais se podem citar as texturas da terra (poeirenta), dos troncos das árvores (rugosos, com musgos), das copas das árvores (compostas de muitas folhas), do céu (com algumas nuvens), da pele lisa dos seres, a texturas das penas das asas do Cupido e a textura dos pelos nas patas de Pã. A obra apresenta profundidade por sobreposição, como por exemplo, as crianças retratadas à frente de toda a narrativa que ocorre por detrás delas; e por diferença de tamanho – uma criança e uma ninfa desenhadas em tamanho menor com relação às outras personagens da tela. Os efeitos de luz e sombras (sombra própria, meias sombras, sombras projetadas e reflexos) dão à imagem um aspecto tridimensional, criando um efeito de volume. O espaço é cheio, preenchido, dando uma ideia de poluição visual e exagero, característica do período Barroco. As personagens míticas do tema pagão estão retratadas em movimento, apresentando gestos retóricos da arte clássica, em movimentos de ataque (Pã), fuga (Syrinx), defesa (Zeus), medo (crianças) e observação (ninfa). É uma figura complexa em um fundo complexo, constituindo um todo proporcional e equilibrado. Por essas características, observa-se que Poussin, mesmo tentando fugir ao estilo Barroco, não conseguiu fazê-lo totalmente.

2.3. A LEITURA ICONOGRÁFICA A leitura iconográfica consiste em reconhecer o tema da imagem, “pressupõe familiaridade com temas específicos ou conceitos, tal como são transmitidos por meio de fontes literárias ou obtidos por leitura ou tradição oral” (TREVISAN, 1999, p. 159). É uma chave das mais importantes para a compreensão da obra e se subestimada, pode levar a muitos erros visuais. Sendo assim, na pintura “Pã e Syrinx”, pode-se distinguir oito personagens em uma narrativa que ocorre em meio à natureza, habitat de Pã. Este pode ser identificado por suas já mencionadas características: seu aspecto assustador e suas patas de bode. No entanto, não se consegue distinguir seus chifres na pintura. Sabendo-se que Syrinx é a ninfa a qual Pã ataca desta vez, identifica-se a mesma como sendo a figura central da pintura. O homem que está ao seu lado e tenta protegê-la é, provavelmente, Zeus. A outra mulher, pintada mais atrás, deve ser outra ninfa. O pequeno anjo, voando sobre todos e envergando uma flecha direcionada a Syrinx representa o Cupido. Estando Syrinx em posição de fuga, provavelmente a flecha usada pelo Cupido fora uma flecha de chumbo, que causa repulsa ao amor em sua vítima; uma flecha de ouro causaria atração. Por fim, as três crianças que aparecem na imagem, são, provavelmente, filhos de Zeus com ninfas, já que ele teve inúmeros filhos com várias parceiras. A leitura iconológica a seguir interpreta esta leitura iconográfica.

2.4. A LEITURA ICONOLÓGICA Segundo Trevisan (1999, p. 164 – 171), a leitura iconológica constitui-se em uma leitura interpretativa de símbolos, arquétipos ou mitos; é imaterial e subjetiva. É polifônica por natureza e impõe uma conclusão: a obra de arte é aberta. Assim, uma possível interpretação iconológica da pintura “Pã e Syrinx” tem em Pã a representação do amor como desejo, cobiça e luxúria, isto é, o sexo somente pelo prazer, sem criar vínculos afetivos. E para conseguir seus intentos, Pã frequentemente recorria à violência. Sua aparência desagradável e o uso de artimanhas ou violência para conseguir aplacar seu desejo sexual, comumente o afastavam das ninfas, seus objetos de desejo. Pode-se ver nesse mito uma espécie de castigo para com quem usa de violência contra a mulher: o ser desejante pode até possuí-la sexualmente, mas

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ela nunca estará inteira nesse intercurso, será um mero objeto, como a flauta de Pã, na qual Syrinx acabou sendo transformada. Fora do mito, isto é, dentro da realidade, cita-se novamente Estés (1994, p. 17 – 18), que expõe o tratamento objetificante dado às mulheres no pós-guerra, na qual sua própria geração cresceu numa época em que as mulheres eram infantilizadas e tratadas como propriedade. (...) Um traje ou o próprio corpo alegre aumentava o risco de ela ser agredida ou sofrer violência sexual. Não se podia dizer que lhe pertenciam as roupas que cobriam seus próprios ombros.

Infelizmente, não se pode dizer que a situação tenha mudado muito, pois todos os dias temos notícias de violência de gênero em nossa sociedade: de acordo com Garcia et al (2013, p. 3), “no período 2009-2011, no Brasil, estima-se que ocorreram, em média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada hora e meia”. Essas mortes ocorrem em “situações de abusos no domicílio, ameaças ou intimidação, violência sexual, ou situações nas quais a mulher tem menos poder ou menos recursos do que o homem” (p. 1), o que parece não diferir muito da realidade dos gregos antigos, dos barrocos, dos românticos, da geração pós-guerra e da geração atual, evidenciando assim a atualidade do mito de Pã.

3. POESIA: HINO DE PÃ 3.1. LEITURAS BIOGRÁFICO-INTENCIONAL E CRONOLÓGICO-ESTILÍSTICA Dando prosseguimento a este trabalho, passa-se à análise do mito de Pã representado na poesia de Percy B. Shelley, escritor que nasceu em 4 de agosto de 1792, na Inglaterra. De acordo com Scandolara (2010, p. 20), sua adolescência foi marcada pela revolta contra todas as leis, costumes e religiões existentes. Teve sorte em poder expressá-la, pois sua família era aristocrática e ele era financeiramente independente (BURGESS, 1991, p. 170). Em 1810, ainda conforme Scandolara (2010, p.20), é aceito em Oxford, mas em 1811 é expulso por causa de um pequeno tratado filosófico no qual afirma ser absurda a noção de um deus criador do mundo e do homem. Depois de sua expulsão, Shelley envolve-se com uma menina escocesa de 16 anos, Harriet Westbrook, com quem se casa e tem dois filhos (o segundo, enquanto já casado com sua segunda mulher). Em 1814, abandona Harriet e seu primeiro filho para juntar-se a Mary Godwin, com quem termina casando e vivendo até o fim de sua curta vida. Em 1816, sua esposa Mary assume oficialmente seu sobrenome, pelo qual se torna muito mais famosa do que ele, ao escrever “Frankenstein”. O poeta estava inserido em um segundo momento do romantismo inglês. Esse movimento, segundo Burgess (1991, p. 166) tinha como princípios ser contra o conteúdo racionalista, pregando um retorno à imaginação, à lenda e ao coração humano. A poesia era concebida como muito mais do que uma mera versificação correta de verdades filosóficas: o poeta era um profeta, não o transcritor das verdades de outros homens mas o iniciador da verdade mesma. Ser um poeta significava uma responsabilidade tremenda – o poeta possuía a chave para os mistérios do coração, da própria vida; o poeta não era um mero embelezador da vida diária, mas o homem que dava à vida seu significado (idem)5.

Shelley sabia ler em grego, latim, italiano e francês. Leu, por exemplo, em grego, as obras de Homero, Hesíodo, Teócrito e, ainda, textos históricos de Tucídides, Heródoto e Diógenes Laércio. Deixou um corpus de traduções muito vasto, incluindo versos em grego, latim, italiano, espanhol e alemão. Escreveu “os singulares Hinos de Apolo e Pã, que em vez de hinos em louvor aos deuses Todos os excertos em língua inglesa neste trabalho foram traduzidos por mim.

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clássicos, segundo a tradição, são hinos escritos na voz dos próprios deuses num ato de exaltação a si próprios” (SCANDOLARA, 2010, p. 24). Em 8 de julho de 1822, um pouco antes de completar 30 anos, Shelley e seu navio Ariel (construído por ele mesmo) naufragaram em uma tempestade. Encontra-se no anexo 2 a tradução para a língua portuguesa6. A seguir, o poema de Shelley no original, em inglês. Hymn of Pan I From the forests and highlands We come, we come; From the river-girt islands, Where loud waves are dumb Listening to my sweet pipings. The wind in the reeds and the rushes, The bees on the bells of thyme, The birds on the myrtle bushes, The cicale above the lime, And the lizards below in the grass, Were silent as ever old Tmolus was, Listening to my sweet pipings. II Liquid Peneus was flowing, And all dark Tempe lay In Pelion’s shadow, outgrowing, The light of the dying day, Speeded by my sweet pipings. The Sileni, and Sylvans, and Fauns, And the Nymphs of the woods and the waves, To the edge of the moist river-lawns, And the brink of the dewy caves, And all that did then attend and follow, Were silent with love, as you now, Apollo, With envy of my sweet pipings. III I sang of the dancing stars, I sang of the daedal Earth, And of Heaven – and the giant wars, And Love, and Death, and Birth, And then I changed my pipings, Singing how down the valley of Maenalus I pursued a maiden and clasped a reed. Gods and men, we are all deluded thus! It breaks our bosom and then we bleed: All wept, as I think both ye now would, If envy or age had not frozen your blood, At the sorrow of my sweet pipings. (SHELLEY, 1993, p. 64) Não foram levadas em conta as rimas e a metrificação, pois não é objetivo deste trabalho fornecer uma tradução profissional.

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3.2. O POEMA E SUA ARGUMENTAÇÃO Neste momento, faz-se necessária uma breve introdução à TAL, a qual defende o ponto de vista no qual a significação de uma frase é constituída pelo conjunto de encadeamentos possíveis (DUCROT, 1988, p. 49-64). Para a análise do poema, é central o conceito de blocos semânticos introduzido na TAL por Marion Carel. Resumidamente, um bloco semântico é um objeto semântico único, formado por argumento + conclusão, os quais não são separáveis, mas sim formam um conjunto semântico com característica inteiriça, sendo considerado esse conjunto semântico uma representação unitária de princípios. Um bloco semântico é expresso por encadeamentos ou em donc (PORTANTO) ou em pourtant (MESMO ASSIM). Esses encadeamentos, por sua vez, exprimem qualidades, que podem ser positivas ou negativas. Regras são o resultado da união do bloco semântico com as qualidades. Cada regra expressa dois aspectos: um normativo, e outro transgressivo, conforme Carel (1995). De acordo com essa teoria, pode-se extrair do poema 6 blocos semânticos: 1) tocar flauta e a natureza silenciar; 2) tocar flauta e acelerar a luz do dia; 3) tocar flauta e silenciar seres mitológicos; 4) contar sua história de desilusão e mudar o tom de sua flauta; 5) perseguir uma ninfa e agarrar uma ninfa; e 6) congelar o sangue por inveja ou idade avançada e não chorar. A seguir, a análise mais detalhada dos blocos semânticos número 1 e número 5, conforme suas regras e seus aspectos, para exemplificar sua argumentação. BLOCO 1) tocar flauta e a natureza silenciar Regra 1: quanto + toca flauta + a natureza silencia Aspecto normativo (AN): toca flauta PORTANTO a natureza silencia Aspecto transgressivo (AT): toca flauta MESMO ASSIM a natureza não silencia Regra 2: quanto – toca flauta – a natureza silencia AN: não toca flauta PORTANTO a natureza não silencia AT: não toca flauta MESMO ASSIM a natureza silencia BLOCO 5) Perseguir uma ninfa e agarrá-la Regra 1: quanto + persegue uma ninfa + agarra essa ninfa AN: persegue uma ninfa PORTANTO agarra-a AT: persegue uma ninfa MESMO ASSIM não a agarra Regra 2: quanto – persegue uma ninfa – agarra essa ninfa AN: não persegue uma ninfa PORTANTO não a agarra AT: não persegue uma ninfa MESMO ASSIM a agarra Na maioria dos blocos semânticos (1, 2, 3, 4 e 6) o poema utiliza o aspectos normativos de suas respectivas regras 1. A exceção é o bloco semântico número 5, o qual utiliza o aspecto transgressivo de sua regra 1. Com essa análise em mãos, pode ser feito o “raio X” do poema: Pã narra sua maestria ao tocar flauta, silenciando a todos, natureza e seres mitológicos. Também tem o poder de acelerar a luz do dia, pois o som que ele tira de sua flauta é tão bom que nenhum ser sente o tempo passar. Ele conta sua história de desilusão amorosa e muda o tom de sua flauta para o pesar. Essa desilusão ocorreu quando ele perseguiu uma ninfa, mas ao fim, agarrou apenas juncos – ela não o quis. Apo-

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lo, a quem se dirige no poema, e também o leitor, chorariam junto com ele, mas não o fazem ou por inveja de sua música ou por já serem velhos demais – fatos que fazem com que seu sangue congele e com que eles não sintam compaixão por ele.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O mito representado tanto no quadro de Poussin quanto na poesia de Shelley, foi, de certa forma, punido, pois decepcionou-se com a recusa da ninfa e com sua transformação em uma planta. No entanto, ela foi privada de sua vida, ao passo que Pã, por mais triste que estivesse, adquiriu um instrumento musical, do qual aprendeu a extrair grande prazer. Surge um questionamento: por que não foi Pã o transformado em juncos para que a ninfa Syrinx continuasse a viver sua vida em paz? Não há mesmo escapatória para a violência de gênero? Devido aos dados concernentes a esse tipo de violência, mencionados anteriormente, de que no Brasil, a cada noventa minutos uma mulher perde sua vida devido a fatores como abusos em seu próprio lar, ameaças, intimidações, violência sexual ou subjugação pelo homem, a problemática levantada pelo mito de Pã neste trabalho parece ser muito atual. Tendo-se em mente que mitos ajudam o ser humano a entender a si mesmo, defende-se uma educação mais humanista, com o estudo não só do mito de Pã, mas de todos os mitos, para que as futuras gerações comecem a vivenciar a diminuição da violência de gênero na sociedade, e de vários outros tipos de violência perpetrados pela humanidade contra si mesma através dos tempos. Assim, estudos futuros podem ter como objetivo a elaboração e a aplicação de materiais didáticos para serem usados por professores no ensino médio em aulas de disciplinas como filosofia, artes, história, literatura e sociologia, medindo-se seu impacto qualitativamente na prática docente e em seus resultados.

REFERÊNCIAS BURGESS, Anthony. English Literature. Essex: Longman, 1991. CAREL, Marion. Argumentation by exception. Journal of Pragmatics, vol. 24, 1995, p. 167–188. DUCROT, Oswald. Polifonía y argumentación. Cali: Universidad del Vale, 1988. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. GARCIA, Leila P. et al. Violência contra a mulher: feminicídio no Brasil. Disponível em: Acesso em: 13 ago. 2015. SCANDOLARA, Adriano. O nome atroz da eternidade: questões acerca da tradução brasileira de Percy Bysshe Shelley. 2010. Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. SHELLEY, Percy Bysshe. Ode to the West Wind and Other Poems. Mineola: Dover Publications, INC., 1993. SPRINSON DE JESÚS, Mary. Nicolas Poussin (1594–1665). In Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2000. Disponível em: Acesso em: 06 jun. 2015. TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte. Porto Alegre: Uniprom, 1999.

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ANEXOS ANEXO 1 - PÃ E SYRINX (NICOLAS POUSSIN, 1637)7

Disponível no site do museu Gemäldegalerie Alte Meister, Alemanha: Acesso em: 15 ago. 2015.

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ANEXO 2 – HINO DE PÃ

I Das florestas e montanhas Nós viemos, nós viemos; Das ilhas cercadas pelo rio, Onde ondas barulhentas estão emudecidas Escutando meu doce flautear. O vento nos juncos e caniços, As abelhas nos sinos dos tomilhos, Os pássaros nos arbustos de murta, A cigarra acima da lima, E os lagartos abaixo na grama, Estavam silenciosos como nunca o velho monte Tmolus esteve, Escutando meu doce flautear. II O líquido Peneus estava fluindo E todo o vale Tempe repousa À sombra do monte Pelion, crescendo, A luz do dia moribundo, Acelerada pelo meu doce flautear. Silenas, Silvanos e Faunos, E as Ninfas das florestas e as ondas, Até a beira dos gramados úmidos do rio, E o topo das cavernas orvalhadas, E todos aqueles que então assistiam e seguiam, Estavam silenciosos de amor, como você agora, Apolo, Com inveja do meu doce flautear. III Eu cantei as estrelas dançantes, Eu cantei a intricada Terra, E o Céu – e as guerras gigantes, E o Amor, e a Morte, e o Nascimento, E então eu mudei meu flautear, Contando como, descendo o vale de Maenalus, Eu persegui uma ninfa e agarrei juncos. Deuses e homens, estamos todos iludidos assim! Nosso peito quebra e então sangramos: Todos choraram, como eu acho que ambos vocês agora chorariam, Se a inveja ou a idade não tivessem congelado seu sangue, Ao pesar do meu doce flautear.

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UM DIZER SALVAJE? Roselaine de Lima Cordeiro* (UFFS)

A presente comunicação é fruto de leituras e do desejo de fazer pesquisa. Trata-se de um projeto ainda em construção que tem como objeto de estudo o livro de Douglas Diegues, Dá gusto andar desnudo por estas selvas – Sonetos Salvajes, publicado, em 2002, pela Travessa dos Editores. Este livro apresenta trinta sonetos com uma mesma estrutura: três estrofes de quatro versos seguidas de um dístico, modelo inglês/shakesperiano. Este conjunto de sonetos é um universo no qual vários elementos são colocados em jogo: escritos em “portunhol selvagem”, sem regras sintáticas e numa imprevisibilidade de uso de palavras, a voz do eu lírico desliza sem qualquer resistência pelo português, pelo espanhol, pelo guarani e pelo inglês, numa mistura de palavras em todos estes idiomas e em outras palavras que não conseguimos uma classificação exata, como, por exemplo: “bocê”, expressão presente em vários de seus sonetos. Dessa forma, transformando em língua poética uma não-língua ou também chamada língua da mercadoria. Encontramos nesta coletânea de sonetos, uma efusão de associações, enumerações, alusão ao que é e está na fronteira, bem como um jeito de lidar com uma vida que está em ruínas. Tudo dito de uma certa forma que materializa a noção de fronteira, a qual é o contexto de produção de Diegues, mas no qual não conseguimos estabelecer nem limites geográficos nem de outra natureza. O eu lírico desloca-se da “ciudade morena” – Campo Grande – Capital do Mato Grosso do Sul a Assunção – Capital do Paraguai.

1. SONETOS SALVAJES luta defiende ama discorda rima en el verano decadente de cremes e crimes los dias que passam parecem filmes la vida es real como um beso y después una chacina crianças florescem nuas y tragam porra sigilosamente aids negócios y oportunidades en la dulce realidad imunda de las ciudades sexos vuelvan por la noche caliente la felicidade abierta para todos lo que los espertos lucram às custas de los otários en el paraíso del crime organizado cruel flor carnívora de eletrodos basta de conformismo en el presente del futuro es muy fácil assistir a todo desde arriba del muro (DIEGUES, 2002, p. 15)

Estudante de graduação: Letras - Português e Espanhol Licenciatura, sob a orientação do Professor Doutor Valdir Prigol, Universidade Federal da Fronteira Sul, UFFS - Campus Chapecó, Brasil). E-mail: [email protected]

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Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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Neste, a força do “dizer” do eu lírico apresenta-se à medida que o soneto vai se construindo, composição na qual em uma mesma linha temos o deslizamento da voz do eu lírico do português para o espanhol e deste para o português novamente, em construções contrastivas como: verano decadente; cremes e crimes; vida como um beso y después una chacina; crianças florescem y tragam; dulce realidad imunda; paraíso del crime organizado e flor carnívora. Este deslizamento ocorre também em versos nos quais a mesma palavra ora está em português ora em espanhol, o que é o caso, por exemplo, do primeiro soneto do livro em que a frase “vas a aprender agora con cuanto esperma se hace un buen poema oscila para “vas a aprender ahora com quanto esperma se faz un bom poema”. Sintoma, este, que ocorre da mesma forma no segundo soneto: escribe com tu berga um bom poema” e “escribe con tu berga um buén poema”. (DIEGUES, 2002). O efeito da poesia de Diegues parece-nos que é produzido por este “dizer” do eu lírico que fala sobre tudo e joga com as palavras em seus vários idiomas compondo este portunhol selvagem. Às vezes, apelando ao leitor como se fosse seu interlocutor, chamando-o ora de “bocê” ora de “você”: “bocê es dono de su nariz y su destino”; “você precisa aprender a tener fé en lo imposible”; bocê se cree gran cosa mas no passa de un piolho”; “bocê é mais una cobaia sin importância”. (DIEGUES, 2002). Sobre isto, no primeiro soneto, encontramos a “cidade” como possível interlocutora, a qual é adjetivada pelo eu lírico em uma sequência de enumerações na primeira linha de cada estrofe: “burguesa patusca light ciudade morena / esnobe perua arrogante ciudade morena / postiza sonrisa barbie bo-ro-co-chô ciudade morena e falsa virgem loca ciudade morena”. (DIEGUES, 2002). São construções como estas que o “dizer” do eu lírico vai delineando também em forma de rimas e invenções: “mude para no permanecer cerrado”; “este-te es-es el pa-país del-del crímen-men orga-ga-niza-za-do”. (DIEGUES, 2002). Percebemos, ainda, nos sonetos, a referência à vida danificada ou em ruínas que é o contexto de produção do poeta Diegues e pelo qual o eu lírico transita, ou seja, uma vida que já não trata do belo e do natural. Quanto ao soneto apresentado há pouco, segundo o seu exegeta (ficcional), “Este é para os que falam falam falam falam e falam e não fazem porra nenhuma para melhorar o mundo, mesmo correndo o risco de tornar as coisas piores”. (DIEGUES, 2002, p. 40). Assim, “Esse papo de que o mundo não pode ser melhorado é invenção dos conformistas arrogantes que gostam de assistir a tudo de cima do muro”. (idem).

2. HISTORICIDADE Para Ávila (2012, p. 8), “Ao deixar nascer da superfície confusa do dia a dia urbano-selvático do segundo milênio seu discurso híbrido, Douglas faz convergir em si as linhas de força da ‘vida danificada’ [...]”, brincando com uma certa estabilidade em meio ao caos: “e venga a tomar un champanhe com a gente, antes que todo se convierta en una sopa de heridas e pus quente”. (DIEGUES, 2002, p. 5). O eu lírico do soneto fala de um mundo sem regras e contornos definidos como a língua que constroi para isso. O portunhol selvagem, sem normas e prescrições, é um efeito da poesia de Diegues. É livre para se ajustar ao discurso que se queira proferir, em meio a um “[...] grande circo de los horrores”. (DIEGUES, 2002, p. 9). O “dizer” dos sonetos salvajes vai da ousadia à excentricidade. Caminho, este, traçado pelo poeta fronteiriço que não é novo. Este “dizer” diferente, que, segundo Ávila (2012, p. 7), carrega um “[...] tom declamatório, conclamatório e até panfletário de muitos de seus poemas, em que o eu é sempre um eu para o mundo e diante do mundo”, é um modo de dizer que encontramos em pensadores teóricos e literários ao longo da história da poesia. Para Agamben um poema é “[...] senão aquela operação linguística que consiste em tornar a língua inoperativa, em desactivar as suas funções comunicativas e informativas, para a abrir a um novo possível uso”. (2007, p. 48). De modo que, a poesia é “[...] uma contemplação da língua que a

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traz de volta para o seu poder de dizer”. (idem). Assim, “[...] o sujeito poético é não o indivíduo que escreveu os poemas, mas o sujeito que se produz na altura em que a língua foi tornada inoperativa, e passou a ser, nele e para ele, puramente dizível”. (idem). Assim, sobre este “dizer”, como pensar o “portunhol selvagem”? Como pensá-lo enquanto dizer poético? Uma resposta possível é nos aproximarmos de alguns poetas e teóricos que também produziram “dizeres” na linguagem da poesia. Um deles é o poeta italiano Dante Aliguieri que em um período em que tudo era escrito em latim, passa a escrever na língua vernacular, que mais tarde se tornará o italiano como o conhecemos hoje. O dialeto florentino “– o idioma das ruas, mas também de alguns documentos da vida civil – não era estudado na escola, mas ninguém desconhecia sua relevância, especialmente devido ao então recente surgimento de uma poesia vernacular”. (STERZI, 2008, p. 37). De modo que o poeta Dante contribuiu para “[...] a fixação de uma cultura vernacular frente à hegemonia do latim”. (idem, p. 54). Outra possível aproximação é com o poeta Sousândrade, o qual inaugurou um “dizer” quando escrevia em meio ao português palavras em inglês, neologismos e palavras indígenas. Seu poema mais famoso é O Guesa, escrito entre 1858 e 1888. É composto por treze cantos, os quais tratam de um adolescente, o Guesa, que seria sacrificado aos deuses. Porém, o índio Guesa foge e vai morar em Wall Street, uma das ruas mais famosas de Nova Iorque. Os sacerdotes perseguidores transformam-se nos capitalistas. [...] Hi foram tribus; onde resupinos Estão hoje os senhores rodeiados Dos cabras parasitas, assassinos Da faca e o bacamarte apparelhados; [...] E onde estão os vilões civilizados Foram os selvagens, livres na investida À sombra de suas settas resguardados, No amor da glória e da luctada vida [...]. (SOUSÂNDRADE, 2009, p. 108) Como em O Guessa, em Diegues “Seu mundo é o das coisas transformadas pela ação dos processos industriais e sociais sob a batuta das relações econômicas”. (ÁVILA, 2012, p. 17). Assim, “[...] Douglas usa o lixo e o descartável para montar a arte povera que o selvagemente capitalista cenário urbano de hoje lhe exige”. (idem, p. 19). Da mesma forma que Sousândrade, o poeta Juó Bananére também coloca em jogo a linguagem quando inventa um novo modo de dizer na sua poesia. Trata-se do “dialeto macarrônico” inaugurado pelo poeta. No livro La Divina Increnca há uma coletânea de escritos em macarrônico: exemplo: “O gorvo” – P’ru Raule:

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A NOTTE stava sombria, I tenia a ventania, Chi assuprava no terrêro Come o folli du ferrêro. Io estava c‘un brutto medó Lá dentro du migno saló, Quano a gianella si abri I non s‘imagine o ch‘io ví! Un brutto gorvo chi entrô, [...] Abatê as aza, avuô, i disse: nunga maise! (BANANÉRE, 1924, p. 21-22) Lembremos também do escritor brasileiro Mario de Andrade que no poema Eu sou trezentos inventa um outro modo de “dizer” a sua língua: Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, As sensações renascem de si mesmas sem repouso, Ôh espelhos, ôh! Pirineus! ôh caiçaras! Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro! Abraço no meu leito as milhores palavras, E os suspiros que dou são violinos alheios [...] Eu piso a terra como quem descobre a furto Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos! […] Nessa perspectiva, da mesma forma, encontramos, também, a partir de 1956, o movimento feito pelos concretos chamado de Poesia Concreta ou Concretismo, no qual a poesia era “[...] produto de uma evolução crítica de formas. Dando por encerrado o ciclo histórico do verso [...]. Ainda, como uma poesia que “[...] visa o mínimo múltiplo comum da linguagem, daí a sua tendência à substantivação e à verbificação [...]”. (PLANO PILOTO PARA A POESIA CONCRETA, 1958, p. 1). De acordo com Sterzi (2004), desde os seus primeiros escritos, o poeta concreto Augusto de Campos promove um processo de esvaziamento do eu lírico, no qual o “eu” está anulado, em razão da voz que está fragmentada/estilhaçada. No manifesto sobre a poeia concreta, Augusto e seus companheiros definiam: “o poema concreto é um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas”. (STERZI, 2004, p. 109). Em relação a Augusto de Campos, “[...] o assunto subterrâneo de sua poesia, o tema latente por trás de seus motivos de superfície, é justamente um estado de coisas em que a poesia e o poeta não conhecem ou reconhecem mais seu lugar no mundo”. (idem, p. 103). Uma reação a este “dizer estilhaçado” da poesia concreta é o nascimento da poesia marginal que, segundo Hollanda, é uma poesia carregada pela linguagem coloquial, vista por muitos críticos como suja, ruim e sem qualidade. Para a autora, os poetas deste movimento aproximavam vida e arte. “[...] poesia marginal (ou magistral, como quer Chacal)”. (HOLLANDA e PEREIRA, 1982, p. 7). Para Hollanda, “Era uma poesia aparentemente light e bem-humorada, mas cujo tema principal era grave: o ethos de uma geração traumatizada pelos limites impostos a sua experiência social e pelo cerceamento de suas possibilidades de expressão”. (2007, p. 257). Além disso, “[...] era uma poesia “não-literária”, mas extremamente preocupada com a própria ideia canônica de poesia. Preo-

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cupação que se autodenunciava através de uma insistência sintomática em “brincar” com as noções vigentes de qualidade literária [...]”. (idem). Sobre o “eu” destes poemas marginais, segundo Süssekind (2004, p. 115-116), ele “[...] não é idêntico àquele dos depoimentos, biografias e memórias. Aliás, sequer presta reverência à memória [...]”. De forma que, [...] a dimensão temporal da poesia do período passa bem longe da memória e seus ciclos. E muito mais próxima do instante, do minuto [...]”. Nesta poesia, “Do ponto de vista literário, os textos trabalham coloquial e ludicamente a linguagem [...]”, assim “essa poesia prolifera ‘rasgando o verbo’ – como propõe Ulisses Tavares – e abrindo novas frentes que levam adiante as propostas do trato informal com a linguagem [...]”. (HOLLANDA e PEREIRA, 1982, p. 77). Acerca do portunhol selvagem, Diegues afirma: “Cada artista de la palabra que se aventure por las selvas de los portunholitos salbahes haberá de inbentar sua gramátika própria, personal, intransferíble [...]”. (DIEGUES apud ÁVILA, 2012, p. 55). Para ele, “Es la lengua de mia mãe y de la mãe de mis amigos de infância. Es la lengua de mis abuelos. Porque ellos sempre falaram em portunhol salbaje comigo”. (idem, p. 10).

3. DIZER SALVAJE? Parece-nos que este “dizer salvaje” é próximo do que Deleuze e Gattari chamaram de “literatura menor” em relação à obra de Franz Kakfa, considerando que “Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior”. (1975, p. 25). Para Kafka, segundo Deleuze e Gattari, havia, ligado ao elemento da desterritorialização, a “[...] impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outra maneira. Impossibilidade de não escrever, porque a consciência nacional, incerta ou oprimida passa necessariamente pela literatura [...]”. (idem). Especialmente em relação à parte final da citação acima, em Diegues, é a voz do eu lírico que “diz” sobre o outro e o mundo produzindo efeitos na linguagem. É a consciência de todo um coletivo orquestrada pelo portunhol selvagem, considerado o idioma de mercadoria, transformado por Diegues em língua poética. Esta literatura menor apresenta três características, a saber: a desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político e o agenciamento coletivo de enunciação. Quanto à primeira, encontramos nos sonetos de Diegues um não-lugar, uma desterritorialização na fronteira sem possibilidades de delimitações geográficas e tampouco de outra natureza. Em relação à segunda, Deleuze e Gattari afirmam que nas literaturas menores tudo é político. Assim, […] seu espaço exíguo faz com que cada caso individual seja imediatamente ligado à política. O caso individual se torna então mais necessário, indispensável, aumentado ao microscópio, na medida em que uma outra história se agita nele. É nesse sentido que o triângulo familiar se conecta com outros triângulos, comerciais, econômicos, burocráticos, jurídicos, os quais determinam os valores do primeiro. (1975, p. 26).

É um contingente de vozes, parece-nos, ligado às mais variadas questões, epecialmente política, que, da mesma forma, Diegues na fronteira está colocando em jogo a partir de um dizer, transformado nos sonetos do poeta em um dizer salvaje. Acerca da terceira característica,

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O campo político contaminou todo o enunciado. Mas sobretudo, ainda mais, porque a consciência coletiva ou nacional está ‘sempre inativa na vida exterior e sempre em vias de desagregação’, é a literatura que se encontra encarregada positivamente desse papel e dessa função de enunciação coletiva, e mesmo revolucionária: é a literatura que produz uma solidariedade ativa, apesar do ceticismo; e se o escritor está à margem ou afastado de sua frágil comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade. (DELEUZE; GATTARI, 1975, p. 27, grifos do autor).

Diante destas três características, parece-nos que o ponto de encontro entre a análise feita por Deleuze e Gattari da obra de Kafka e a produção de Diegues é a afirmação: “[…] a literatura tem a ver é com o povo”. (1975, p. 27). É a enunciação de um coletivo que para Diegues é traduzida como: “A febre da vida. A insônia do amor. A fronteira inteira sem praias aos domingos e feriados. A loucura humana de existir. Tudo pode caber num miserável soneto”. (2002, p. 41). Por meio deste dizer do portunhol selvagem é que a literatura de Diegues encontra espaço para falar das coisas do povo que estão desterritorializadas, que têm relação direta com a política e que são uma enunciação coletiva, portanto muito próximas às literaturas menores. São as questões do povo em forma de versos: “Vítimas. Cativeiros. Polícias. Bandidos. Leis. Bancos. Juros. Papeis. Moedas. Progresso. Sucesso. Qualidade. Miséria mental. Sossego. Desespero. Contradições do paraíso do crime organizado”. (DIEGUES, 2002, p. 40). Um dizer salvaje, parece-nos, para um mundo salvaje.

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio et al. Política Politics. Porto: FundaçãoSerralves, 2007. ANDRADE, Mario. Eu sou trezentos. Disponível em: . Acesso em: out. 2015. ÁVILA, Myriam. Ciranda de Poesia. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2012. BANANÉRE, J. La Divina Increnca. São Paulo: Livraria Do Globo, 1924. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1975. DIEGUES, Douglas. Dá gusto andar desnudo por estas selvas. Sonetos Salvajes. Curitiba: Travessa dos Editores, 2002. HOLLANDA, Heloisa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Poesia Jovem – Anos 70. São Paulo: Abril Educação, 1982. PLANO PILOTO PARA A POESIA CONCRETA. 1958. Disponível em: . Acesso em: Jul. 2015. SOUSÂNDRADE, Joaquim de. O Guesa. São Paulo: Annablume, 2009. STERZI, Eduardo. Todos os sons, sem som. In: SÜSSEKIND, F.; GUIMARÃES, J. C. (Orgs). Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004. ______. Por que ler Dante. São Paulo: Globo, 2008. SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária. Polêmicas, diários & retratos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

PICASSO E IOTTI: O SEMISSIMBOLISMO NA (RE)LEITURA DE GUERNICA Roseméri Lorenz* (UPF)

A leitura e a interpretação, geralmente, são encaradas como processos intuitivos e esse empirismo torna-se ainda mais evidente quando se trata de textos visuais ou sincréticos. Nessa perspectiva, a teoria semiótica, desenvolvida por Algirdas Julien Greimas, e um de seus desdobramentos, a semiótica plástica, mais amplamente estudada por Jean-Marie Floch, constituem importantes aliadas para tornar esses processos mais objetivos, uma vez que oferecem diretrizes para apreender, de forma mais ampla e sistemática, os sentidos dos textos. Considerando isso, o presente artigo busca, a partir do exame da obra Guernica, de Pablo Picasso e de uma charge, de Carlos Henrique Iotti, a qual promove uma releitura da emblemática tela do pintor espanhol, demonstrar a produtividade da aplicação de tais fundamentos teóricos na percepção do sentido global de textos visuais e sincréticos. Para isso, será examinado o plano do conteúdo- por meio do percurso gerativo do sentido- e o plano de expressão- que, no caso de textos pictóricos, abrange as dimensões relativas às categorias de espacialidade, forma, cor e luz- das referidas obras, identificando as articulações entre esses dois planos- o que se define como semissimbolismo. Também se procurará, a partir das reflexões de Mikhail Bakhtin, sobre intertextualidade, explicitar que aspectos do texto-base foram recuperados na releitura, bem como os efeitos de sentido produzidos pelas alterações realizadas pelo enunciador.

1. NOÇÕES TEÓRICAS BÁSICAS 1.1. O PLANO DE CONTEÚDO: O PERCURSO GERATIVO DO SENTIDO A semiótica greimasiana possui interesse por qualquer texto, manifestado por qualquer plano de expressão e defende que conteúdo e expressão podem ser separadamente analisados. Para proceder a esse exame do plano de conteúdo, propõe um modelo de produção do sentido chamado percurso gerativo de sentido, o qual apresenta três níveis: o fundamental, o narrativo e o discursivo. Cada um desses níveis apresenta uma sintaxe (combinação de mecanismos que ordena os conteúdos) e uma semântica (conteúdos investidos nos arranjos sintáticos) próprias. O primeiro patamar do percurso gerativo é o das estruturas fundamentais, onde surgem os significados mais simples e abstratos. A semântica desse nível organiza-se a partir da oposição de dois termos pertencentes à mesma categoria semântica como, por exemplo, “vida versus morte”, “comum versus incomum”, “naturalidade versus artificialidade”. Cada um desses termos recebe, ao longo do texto, um valor positivo, eufórico, ou negativo, disfórico. Por sua vez, a sintaxe do nível fundamental estabelece um percurso entre os termos da categoria semântica, os quais se organizam a partir de operações de negação e asserção. Assim, no dizer de Fiorin (1990, p.20), podem ocorrer as seguintes relações: afirmação de a, negação de a, afirmação de b; ou afirmação de b, negação de b, afirmação de a. Após o nível fundamental, encontra-se o nível narrativo, o qual não será aqui abordado, pois não se revela pertinente aos objetivos deste trabalho. Já a última etapa do percurso gerativo é o

Mestre, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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nível discursivo, que constitui o patamar mais superficial. Nele, as categorias semânticas do nível fundamental são revestidas por elementos que lhes dão concretude. A sintaxe do nível discursivo busca analisar as relações entre enunciador-enunciado e enunciador-enunciatário. Já a semântica desse nível, a qual apresenta especial importância neste estudo, dedica-se aos percursos temáticos que, por sua vez, são cobertos por figuras. Assim, no discurso, as figuras constituem a representação do mundo, real ou fictício. Já os temas são elementos que organizam, classificam, ordenam a realidade. Para se interpretar um texto que utilize figuras no nível discursivo, é necessário descobrir o tema que se encontra recoberto pelas figuras. No entanto, não se pode considerar uma figura ou um tema isolados, é necessário analisar os encadeamentos das figuras ou dos temas. Ao encadeamento de figuras dá-se o nome de percurso figurativo e ao de temas, percurso temático. Tanto um quanto o outro necessita manter uma coerência interna, sob pena de tornarem o discurso inverossímil ou contraditório. Por outro lado, a quebra proposital da coerência pode ser um recurso para criar determinados efeitos de sentido.

1.2. O PLANO DE EXPRESSÃO: RELAÇÕES SIMBÓLICAS E SEMISSIMBÓLICAS Considerando que o conteúdo, como afirma Fiorin (2003, p.77), “só pode manifestar-se por meio de um plano de expressão”, a semiótica busca, em um segundo momento, examinar o plano de expressão de textos com função estética (poemas, pinturas, etc.), ou seja, aqueles em que o referido plano não se limita a veicular o conteúdo (textos utilitários), mas contribui para seu sentido global. Para isso, Greimas (2004, p.85) sugere uma segmentação das imagens realizada “pela sua decomposição em partes menores e pela reintegração das partes nas totalidades que constituem”. A fim de operacionalizar tal processo, o autor propõe o isolamento de contrastes plásticos, de acordo com as dimensões presentes no plano de expressão de cada texto. Tais dimensões seriam: eidética (relativa à forma); fotológica (relacionada à luz); cromática (nível da cor); topológica (referente à espacialidade). Tais oposições do plano de expressão podem relacionar-se diretamente às presentes no plano do conteúdo. Surge, então, o conceito de semissimbolismo, apresentado, inicialmente, por Greimas e Courtés (2008, p.343) e, posteriormente, desenvolvido de forma mais ampla por Jean-Marie Floch, que o aplicou a textos de diferentes gêneros, como pintura, fotografia, anúncios publicitários, histórias em quadrinhos. O semissimbolismo constitui, pois, uma correlação entre categorias do plano de conteúdo e de expressão. É necessário, contudo, diferenciar as relações semissimbólicas das simbólicas. Estas ocorrem quando plano de conteúdo e de expressão estabelecem uma correspondência de elemento para elemento e não de categoria para categoria como naquelas. Isso fica mais claro, como demonstra Monteiro (2005, p.45), tomando-se como exemplo a bandeira nacional. Nela, cada elemento cromático do plano de expressão representa um elemento do plano de conteúdo: o verde é associado às matas; o azul, ao céu; o amarelo, à riqueza; o branco, à paz. Já quando se tratam de relações semissimbólicas, pode-se perceber que elementos concretos (figuras), “matas” e “céu”, são representados por cores mais escuras, enquanto os abstratos (temas), “riqueza” e “paz”, por cores mais claras. Tem-se, assim, um semissimbolismo entre a categoria “concretude versus abstração”, do plano de conteúdo, e a categoria “escuro versus claro”, do plano de expressão.

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2. DA PINTURA À CHARGE: UMA (RE)LEITURA SIMBÓLICA E SEMISSIMBÓLICA DE GUERNICA 2.1. GUERNICA DE PICASSO Pablo Picasso (1881-1973) nasceu na cidade de Málaga, na Espanha, e dedicou-se à pintura (com os mais diversos materiais), ao desenho, à colagem, à gravura, à escultura, à cerâmica. Sua versatilidade e criatividade tornaram-no um dos mestres das artes plásticas do século XX. No início de 1937, aceitou realizar, a pedido do governo republicano espanhol, uma grande tela para o pavilhão espanhol na Exposição Internacional de Paris. Para representar um país envolvido em um conflito bélico, a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o artista sentia que era necessário pintar algo forte, impactante, mas faltava-lhe a inspiração. Ela lhe chegou em 30 de abril. Chocado, ao ler uma reportagem no jornal Le Soir, sobre a destruição da cidade de Guernica1, Picasso decide que esse seria o tema da obra que, em breve, teria de entregar. Nascia, então, Guernica, um imenso painel, de 3,49m de altura por 7,76m de comprimento, pintado a óleo. Após a exposição na capital francesa, a obra foi deslocada para Nova York, onde permaneceu por alguns anos no Museu de Arte Moderna. Em 1992, foi conduzida ao Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madri, onde permanece até hoje, hipnotizando o olhar do público. Afinal, o efeito impactante que Picasso desejava produzir foi alcançado. Em Guernica, tudo choca, envolve, angustia o espectador. E desse “bombardeio” de emoções surge o desejo de compreender seus sentidos. Na busca por desvendá-los, a leitura da tela iniciará pela identificação e interpretação das figuras que compõem o nível discursivo do plano de conteúdo, uma vez que tais elementos são os que primeiro se evidenciam na observação.

Fonte: < http://e-cours-arts-plastiques.com/analyse-doeuvre-guernica-de-pablo-picasso>.Acesso em 13 set. 2015.

Primeiramente, no canto superior esquerdo, encontra-se, imóvel, um touro, que figurativiza a força e o orgulho. Considerando a importância das touradas na cultura espanhola, para muitos, ele constitui, nesta obra, uma metáfora do povo espanhol, imponente e, ao mesmo tempo, impotente em A pequena cidade de Guernica, anteriormente capital basca, foi bombardeada pela aviação alemã, comandada por Adolf Hitler, aliado do ditador Francisco Franco, em 26 de abril de 1937. O ataque deixou 1654 mortos e 889 feridos.

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consequência da destruição. Ao lado dele, vislumbra-se o contorno de uma pomba, de asa quebrada, figurativizando, assim, a paz, abalada pelo ataque. Abaixo do touro, uma mãe, com o filho morto ao colo, grita, num misto de dor e súplica. Representa-se, assim, o tema do sofrimento, o qual ressurge, no centro da tela, na figura do cavalo, normalmente associado à força e à rapidez, mas que, nessa circunstância, ferido, aparentemente por uma lança que lhe atravessa o dorso, fragiliza-se. Abaixo dele, caído ao chão, surge um homem morto (provavelmente, um guerreiro), esquartejado, de olhos abertos. Seu braço direito, cuja mão segura uma espada quebrada, encontra-se decepado. Levando em conta que o braço simboliza força e proteção e a espada, bravura e poder, acaba-se figurativizando, dessa forma, a destruição de tais atributos. Paradoxalmente, junto à espada quebrada, surge uma flor, o que sugere a presença, ainda que sutil, da esperança. Também se observa sofrimento no canto superior direito da tela, concretizado pela figura da mulher, consumida pelas chamas. Com os braços estendidos para o alto, ela luta e implora pela vida. Próximo a essa mulher, visualiza-se uma porta parcialmente aberta, figurativizando a impossibilidade de fuga, o que também é reforçado pela janela, pequena e fora de alcance. O sofrimento aparece ainda na figura de uma terceira mulher, à frente da anterior. Ajoelhada, parece arrastar-se em direção à luz, com o peito nu, também em postura de súplica. Mais acima surge, por uma janela, a imensa cabeça de uma quarta figura feminina, cuja mão conduz uma lamparina. Parece assustada com a cena revelada pela luz, buscando entender o que vê. Representa, desse modo, a clareza de espírito, a racionalidade. Ao lado da lamparina, surge uma segunda fonte de luz, proveniente de uma lâmpada elétrica, cuja forma lembra “o olho de Deus”, que tudo vê. Para depreender o sentido global do texto-tela, entretanto, torna-se necessário perceber o encadeamento das figuras, afinal elas se organizam em percursos figurativos, conduzindo a determinados temas. Esse é caso das três mulheres, representadas na periferia da tela, bem como do cavalo, em seu centro, que remetem ao sofrimento, à dor, à angústia. Considerando que tais figuras constituem vítimas indefesas, remetem também ao tema da fragilidade, sendo a força, por sua vez, concretizada pelo touro e pelo braço do guerreiro morto. O tema da morte, aliás, é realizado por meio das figuras desse homem e da criança nos braços da mãe. Também é relevante considerar a destruição e a desorganização que permeiam as cenas. Não há ordem na disposição dos elementos, sugerindo o tema do caos gerado pelo bombardeio. Tais efeitos da guerra também sugerem os temas da irracionalidade, da barbárie, que se opõem à racionalidade, à busca de entendimento, de civilização, figurativizadas pela lamparina e pela mulher que a carrega. Em tais imagens predomina o tema do desespero, que se opõe à esperança representada pela flor e pela mulher que se arrasta, lutando pela vida. Todas essas relações podem ser sintetizadas pelas categorias temáticas: “fragilidade versus força”, “ordem versus caos”, “racionalidade versus irracionalidade”, “civilização versus barbárie”, “desespero versus esperança”. A essas categorias do nível discursivo subjaz a categoria de base “vida versus morte”. Passando para o exame do plano de expressão, inicialmente se focalizará a dimensão topológica, a qual regula a disposição dos elementos no espaço. Nesse aspecto, chama a atenção o fato de haver uma maior ocupação espacial da tela à esquerda, o que desequilibra a composição. Assim, a categoria de expressão “equilíbrio versus desequilíbrio” relaciona-se diretamente à categoria de conteúdo “ordem versus caos” (temática) havendo, portanto, um semissimbolismo entre elas. Pode-se perceber que os termos “equilíbrio” e “ordem”, das categorias citadas não são realizados no texto. Isso sugere, justamente, a ausência de tais estados após o bombardeio e deixa pressuposta a ideia de que existiam anteriormente ao fato. É importante salientar aqui que, como afirma Fiorin (2003, p.83), em uma relação semissimbólica, muitas vezes, um dos termos da categoria não se manifesta explicitamente no texto, mas pode

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ser depreendido por pressuposição, pois “um termo pressupõe a presença do outro”. Especificamente na obra analisada, tal situação é recorrente, como se perceberá na sequência. No que tange à dimensão eidética, destaca-se a fragmentação e a ausência de volume, típicas do estilo cubista, que reproduzem, de certa forma, a destruição e a ausência de vida. Desse modo, a categoria de expressão “unicidade” versus fragmentação” articula-se às categorias de conteúdo “ordem versus caos” e “civilização versus barbárie” (temáticas) que, por sua vez, remetem à categoria “vida versus morte” (de base). Já “profundo versus plano” refere-se diretamente à categoria de base. Também na dimensão eidética, observa-se a predominância de traços retilíneos, principalmente em formato triangular (também influência do cubismo), que produzem um efeito de agressividade. A eles se opõem as linhas curvilíneas dos rostos e da flor, criando um efeito de tenuidade e até de ternura. A categoria de expressão “curvilíneo versus retilíneo” homologa-se, dessa maneira, às categorias de conteúdo “fragilidade versus força” e “ternura versus agressividade” (temáticas). Da dimensão eidética, aflora, ainda, mais uma relação semissimbólica, uma vez que a categoria de expressão “verticalidade versus horizontalidade” está ligada diretamente à categoria de conteúdo “vida versus morte” (de base). No que concerne às dimensões cromática e fotológica, torna-se necessário considerar que elas apresentam íntima relação, uma vez que, por meio da luz, percebem-se as cores. Dessa forma, aqui serão examinadas de forma associativa. O texto-tela apresenta-se como uma composição em preto e branco, com tons de cinza, sendo definida, assim, como monocromática. O emprego de preto como fundo revela-se coerente com o tema abordado: a guerra. Normalmente relacionado à morte, às trevas, ao mal, o preto define muito bem um cenário de tragédia, cuja real dimensão não se conhece devido à ausência de luz. Onde ela incide, revelam-se cenas de morte, de destruição, de dor, de tristeza. Os contrastes entre preto e branco, luz e sombra, portanto, aumentam a dramaticidade da tela, enfatizando os temas da barbárie e da irracionalidade. Isso se torna ainda mais evidente devido à falta de outras cores, o que remete à ausência de alegria, de vida. Tem-se, assim, uma articulação entre as categorias de expressão “policromatismo versus monocromatismo” e “baixo contraste versus alto contraste” e as categorias de conteúdo “alegria versus tristeza”, “civilização versus barbárie”, “racionalidade versus irracionalidade” (temáticas) e “vida versus morte” (de base).

2.2. GUERNICA DE IOTTI Carlos Henrique Iotti (1964) nasceu em Caxias do Sul-RS. Jornalista e chargista, tornou-se bastante conhecido por meio de um de seus personagens, Radicci, o qual representa uma sátira ao mito do italiano trabalhador, perseverante e culto. Iotti produz tiras humorísticas e charges diárias para os jornais Pioneiro e Zero Hora. Também publica no Diário Catarinense, O Jornal do Povo/ PR, O Estado do Paraná. No dia 02 de março de 2006, após um feriado de Carnaval com um aumento significativo no índice de acidentes de trânsito, o autor publica, em Zero Hora, a seguinte charge:

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Fonte: . Acesso em 13 set. 2015.

Não é necessário muito esforço para perceber que ela apresenta uma clara referência à Guernica, de Picasso. Para se compreender melhor essa relação, revela-se importante retomar brevemente algumas considerações de Mikhail Bakhtin sobre o caráter dialógico da linguagem. Segundo o autor, todo discurso é perpassado pelo discurso do outro. Há casos, no entanto, em que a voz do outro não se apresenta apenas inscrita no interior do discurso, ela se mostra (BAKHTIN, 1992, p.350). Assim, quando o dialogismo não se manifesta no texto, tem-se a interdiscursividade; quando um texto encontra-se materializado em outro texto, ocorre a intertextualidade. Dessa forma, considerando que a charge de Iotti materializa grande parte das figuras presentes no plano de conteúdo da tela de Picasso, bem como diversos aspectos de seu plano de expressão, pode-se dizer que há entre as obras uma relação intertextual ou, mais especificamente, que aquela faz alusão a esta. A fim de entender com maior clareza esse processo alusivo, inicialmente, é necessário perceber que, no plano de conteúdo da charge, algumas figuras foram substituídas ou alteradas, outras, acrescentadas, de modo a se adequarem ao novo contexto, já que a guerra é outra: a do trânsito. Tão, ou até mais trágica. Essas informações são facilmente depreendidas, pois, como agora se trata de um texto sincrético, encontram-se verbalmente apresentadas no enunciado: “O trânsito no feriadão é sempre um quadro dramático”. Nele se identifica o tema (trânsito no feriadão), bem como sua gravidade, o que se evidencia por meio da expressão polissêmica, “quadro dramático” (referindo-se, simultaneamente, ao quadro de Picasso e à situação provocada pelos acidentes) e da palavra “sempre” (que intensifica o drama, uma vez que remete a sua eterna reincidência). O novo tema também é figurativizado visualmente pela introdução de um elemento à composição: o carro semidestruído. O touro e o cavalo, agora, fazem referência aos animais soltos nas pistas, os quais, com frequência, são atropelados (o que provavelmente tenha ocorrido, já que a imagem do

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carro encontra-se sobreposta à do cavalo e uma das patas deste atravessa aquele). Levando-se em conta a tradição rio-grandense dos rodeios, bem como a estreita ligação do gaúcho com o cavalo, tais animais também podem ser associados ao povo gaúcho, forte, mas, ao mesmo tempo, fragilizado pelas frequentes tragédias nas rodovias. Abaixo do touro, recupera-se do texto-base a figura da mãe com o filho morto, novamente em uma referência ao sofrimento. A morte também é figurativizada pelo homem dilacerado ao chão. Entretanto, não mais um guerreiro de espada em punho, mas alguém que trocava o pneu, já que em sua mão encontra-se uma ferramenta quebrada, presa a uma roda. A flor, que na obra original aparece junto à espada, agora se encontra abaixo do pneu, figurativizando a esperança, ainda mais diminuta, de que a situação modifique-se. A mulher que se arrasta também é retomada na charge, mais uma vez associada ao sofrimento. Já a figura feminina presente no canto direito da tela de Picasso desapareceu (ou também teria sido atropelada?) na charge de Iotti. Restou apenas a pequena janela que ficava acima dela, referindo-se, provavelmente, à existência, mesmo que inatingível, de uma saída. Junto a ela, também se vislumbra a mulher condutora de luz, novamente assustada com o caos, buscando entendê-lo, racionalizá-lo. O feixe de luz, produzido pela lamparina, contudo, encontra-se quebrado, uma vez um carro o atravessou. Faz-se, assim, referência à alta velocidade (velocidade da luz) e, ao mesmo tempo, ao triângulo de sinalização (possivelmente, o usado pelo homem que trocava o pneu). Nessa perspectiva, o choque do carro com o triângulo acaba evocando o tema da imprudência dos condutores, que gera muita insegurança no trânsito. A lâmpada elétrica também é recuperada do texto-base, a qual pode remeter à presença da sinaleira, figurativizando, desse modo, a busca pela segurança. Como é possível perceber, apesar de o deslocamento de contexto ter produzido alterações no nível discursivo, no que tange à cobertura figurativa, os temas subjacentes a elas coincidem, em muito, com os do texto-base. Assim, a charge de Iottti também realiza as categorias temáticas “fragilidade versus força”, “ordem versus caos”, “racionalidade versus irracionalidade”, “desespero versus esperança”. Entretanto, acrescenta a elas categorias como “prudência versus imprudência” e “segurança versus insegurança”. Tais categorias do nível discursivo remetem à categoria “vida versus morte”, do nível fundamental. As analogias não se limitam ao plano de conteúdo, pois ao se homologar as categorias deste às do plano de expressão, observa-se que a maior parte das relações semissimbólicas se mantém. Assim, no intuito de não tornar o estudo exaustivo, tais relações serão apresentadas de forma sumarizada. Uma das poucas variações evidenciadas refere-se à dimensão topológica. Afinal, a tela de Picasso ocupa de modo mais denso o lado esquerdo. Já a charge, apesar de manter a postura e os olhares dos personagens para tal direção, preenche mais o lado direito da composição. Conserva-se, pois, o efeito de desequilíbrio, mas se evita prender o olhar, o que se ajusta mais ao gênero textual desenvolvido, já que a charge busca uma comunicação mais instantânea com o leitor. Dessa forma, a categoria de expressão “equilíbrio versus desequilíbrio” continua articulando-se à de conteúdo “ordem versus caos”. No que se refere à dimensão eidética, assim como na obra original, há o predomínio da sobreposição de imagens fragmentadas, em perspectiva plana. Assim, continua havendo semissimbolismo entre a categoria de expressão “unicidade” versus fragmentação” e as temáticas “ordem versus caos” e “civilização versus barbárie”, que realizam a categoria de base “vida versus morte”. Já “profundo versus plano” articula-se à categoria de base. Também na dimensão eidética, permanece a conexão entre a categoria de expressão “curvilíneo versus retilíneo” e as categorias de conteúdo “fragilidade versus força” e “ternura versus agressividade” (temáticas). Ainda na mesma dimensão, repete-se a articulação entre a categoria de expressão “verticalidade versus horizontalidade” e a de conteúdo

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“vida versus morte” (de base), incluindo-se o carro entre as figuras que realizam o termo “morte”, já que, nesse contexto, constitui o elemento que a produz. Por sua vez, nas dimensões cromática e fotológica, mantém-se a homologação entre as categorias de expressão “policromatismo versus monocromatismo” e “baixo contraste versus alto contraste” e as categorias de conteúdo “alegria versus tristeza”, “civilização versus barbárie”, “racionalidade versus irracionalidade” (temáticas) e “vida versus morte” (de base). É importante perceber, contudo, que, na charge, o contraste é ainda mais alto que o empregado no texto-base. Com esse recurso, sugere-se que a situação do trânsito no feriadão é ainda mais dramática que a retratada no texto-base, uma vez que, ao se repetir “sempre”, produz um número ainda maior de vítimas do que o bombardeio em Guernica. Essas considerações aqui desenvolvidas constituem apenas uma pequena amostra do quanto o semissimbolismo pode revelar-se produtivo na apreensão dos sentidos de textos visuais e sincréticos, auxiliando não só a perceber “o que o texto diz”, por meio de seu plano de conteúdo, mas “como ele faz para dizer o que diz”, através de seu plano de expressão. Além disso, auxilia a compreender melhor a constituição das relações intertextuais, pois explicita, de modo mais objetivo, que aspectos do texto-base foram efetivamente recuperados na releitura, bem como os efeitos de sentido produzidos nesta pelas alterações promovidas pelo enunciador.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1990. ____. Três questões sobre a relação entre expressão e conteúdo. Itinerários, n. especial, p. 77-89, 2003. FLOCH, Jean-Marie. De uma crítica ideológica da arte a uma mitologia da criação artística. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de (org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p. 243-62. GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica figurativa e semiótica plástica. Tradução de Assis Silva. In OLIVEIRA, Ana Cláudia de (org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p. 75-96. GREIMAS, Algirdas; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. IOTTI, Carlos Henrique. [Sem título]. 2006. 1 Charge. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2015. MONTEIRO, Ricardo de Castro. As muitas vozes da canção: uma análise de Yesterday. In: LOPES, Ivan Carlos; HERNANDES, Nilton (Org.). Semiótica: objetos e práticas. São Paulo: Contexto, 2005. PICASSO, Pablo. Guernica. 1937. 1 Óleo sobre tela, 3,49 x 7,76m. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2015.

A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO SOBRE VIOLÊNCIA ESCOLAR PELO OLHAR DOS GESTORES EDUCACIONAIS Rosimar Serena Siqueira Esquinsani* (UPF) Valdocir Antonio Esquinsani** (UPF)

O cotidiano escolar tem sido cenário para uma série de movimentos acadêmicos, políticas educacionais e ações de gestão. Aliás, a gestão de redes e sistemas de ensino tem se ocupado com o universo de significados e fatos que tomam lugar naquele espaço, da mesma forma que a academia se debruça, com alguma paixão, em esmiuçar fenômenos que são relatados como rotineiros na escola. Os sujeitos envolvidos e os espaços de focalização são muitos. As abordagens e pontos de vista também. A condição histórica de construção do espaço escolar permite uma moldura em constante mudança, com relações e práticas em permanente renovação. A pesquisa apresentada insere-se nesta perspectiva: problematizar o cotidiano escolar e agregar argumentos para o entendimento do mesmo com a seguinte delimitação: tomamos como ponto de partida a violência – progressiva e preocupantemente relatada na mídia -, que ganha espaço dentro da escola e nos significados da mesma à luz de indicadores que permitam entender a construção do discurso sobre a violência e do que este discurso nos revela, considerando que as “... manifestações linguísticas [são] produzidas por indivíduos concretos em situações concretas, sob determinadas condições de produção” (KOCH, 2001, p.11). Assim, este estudo parte de uma pesquisa empírica e documental, amparada em uma revisão bibliográfica temática, com o objetivo de problematizar os discursos pronunciados por gestores escolares diante de episódios de conflito e violência no cotidiano escolar, centrando a análise na construção dos argumentos e nas faces da prática escolar que o discurso revela, compreendendo que este discurso mobiliza, por um lado, determinado entendimento sobre a violência e sua (auto) legitimação no espaço escolar, por outro lado, autoriza enfoques alternativos de pesquisa sobre o cotidiano escolar e a prática pedagógica. Cabe destacar que a pesquisa em tela é parte integrante de um contexto amplo, com o objetivo de discutir elementos que emprestam relevância e significado à gestão escolar, produzindo interpretações sobre a ação da gestão, sendo que o texto apresentado pode ser descrito como parte desse esforço maior de pesquisa.

ACERCA DO DISCURSO E DA ESCOLA... ELEMENTOS EMPÍRICOS Se tomarmos o cotidiano da escola como objeto de análise, nos defrontaremos com um universo de sentidos e significados bastante particular oriundos, de um lado, do seu caráter institucional e vocação histórica, pois “temos definido a escola como uma instituição cujo papel central é a socialização do conhecimento historicamente elaborado e acumulado pela humanidade” (SALA, 2010, p. 84) e, de outro lado, do contexto no qual a escola está inserida e das conjunturas sociais que a demandam. Quando endereçamos um olhar mais particularizado ao contexto escolar, identificamos uma série de agendas ou pautas que são assumidas como os assuntos mais relevantes, urgentes ou preocupantes que o estabelecimento educacional precisa resolver. Dentre estes assuntos figura, há algum tempo, a violência. Doutora em Educação, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Mestre em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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Do ponto de vista epistemológico e/ou empírico, há bons estudos que enfrentam o tema e também procedem a revisões de literatura sobre o assunto (ASSIS; CONSTANTINO; AVANCI 2010; ABRAMOVAY, 2002; ABRAMOVAY, 2005; GALVAO, 2010; PIGATTO, 2010; PRIOTTO; BONETI, 2009; CHARLOT, 2002; SPOSITO, 2001; GONÇALVEZ, et.al, 2005, entre outros) mas há, seguramente, espaços e demandas para novos dados, debates e pontos de vista. Assim, o escopo da pesquisa desenvolvida indica a preocupação em analisar os discursos pronunciados por gestores escolares diante de episódios de conflito e violência no cotidiano da escola, centrando atenção na construção dos argumentos e nas faces da prática escolar que o discurso revela. Para dar corpo à problematização pretendida, foram examinadas 30 reportagens sobre episódios de violência na escola, veiculadas em jornais nacionais ao longo do ano de 2014. Cumpre informar que mesmo considerando que os textos midiáticos são documentos de domínio público - estando disponíveis na internet -, não será mencionada nenhuma reportagem em específico. Para evitar uma (nova) exposição das vítimas, desnecessária aos objetivos do texto, os dados brutos não serão publicizados. Apenas os dados tratados contribuirão para a problematização requerida na pesquisa. No que concerne ao material empírico examinado, as reportagens foram analisadas a partir das seguintes categorias: a) qualificação do caso e, b) discurso empreendido pelos sujeitos responsáveis por justificar ou interferir no episódio, no caso, os gestores escolares dos estabelecimentos de ensino onde ocorreram os episódios narrados. A estratégia de exame do corpus empírico documental consolidou-se na perspectiva da Análise do Discurso francesa – AD -, organizada por Michel Pêcheux e outros (França, a partir de 1960). Para a Análise do Discurso na perspectiva francesa, a língua não produz apenas o discurso, mas as significações de contexto deste discurso são igualmente importantes, uma vez que: o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento. Entretanto, não se pode concluir, a partir disso, que esses diversos personagens tenham o mesmo discurso (PÊCHEUX, 2009, p. 81)

No que se relaciona a primeira categoria, ou a qualificação do caso, cabe informar que 100% das reportagens versavam sobre episódios ocorridos em escolas públicas. Contudo, das escolas narradas nos produtos midiáticos em destaque, 60% eram escolas vinculadas a redes estaduais e 40% dos espaços constituíam-se em escolas pertencentes a redes municipais de ensino. A violência ainda é, sarcasticamente, bastante democrática. Há relatos endereçados em todas regiões brasileiras. Em uma aproximação mais circunstanciada, 65% dos episódios de violência narrados teriam ocorrido dentro da própria escola, e 35% dos eventos teve, de acordo com a narrativa dos produtos midiáticos, lugar em espaços públicos vizinhos da escola (em geral ruas nas cercanias do educandário). Dos episódios ocorridos fora da escola, em sua totalidade registraram-se no início ou término das aulas, com prevalência deste último. Já os episódios de violência registrados no interior da escola tiveram lugar, em 75% dos casos, dentro da sala de aula durante períodos de tempo destinados à aula. Apenas 25% dos casos ocorreram no intervalo das aulas. Quanto aos sujeitos envolvidos é possível indicar que, das reportagens examinadas, 20% relatavam agressões de professores para com alunos. Outros 30% dos produtos midiáticos mencionavam agressões de alunos em relação aos seus professores. Entretanto, 50% das reportagens narravam agressões entre alunos. Por fim, os motivos mencionados para as agressões são sempre de foro íntimo (portanto, de difícil julgamento ou comprovação de veracidade), como por exemplo: estava se defendendo de uma agressão anterior, foi provocado ou simplesmente reagiu. Entretanto, em 60% dos produtos midiáticos analisados não há o relato de uma motivação para a violência, ou a versão do agressor.

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No que diz respeito a segunda categoria, ou ao o discurso empreendido pelos sujeitos responsáveis por justificar ou interferir no episódio, no caso, os gestores escolares dos estabelecimentos de ensino onde ocorreram os episódios narrados, é necessário considerarmos dois desdobramentos: 1) o conteúdo do discurso e, 2) as possíveis alterações do discurso de acordo com a composição de sujeitos e cenários envolvidos no episódio narrado. O foco de análises recai sobre os gestores escolares na medida em que os mesmos são a presença da autoridade e da administração educacional no espaço escolar. Tais gestores são os sujeitos responsáveis por administrar os estabelecimentos de ensino e, portanto, justificar ou interferir no episódio, são os representantes legais das escolas onde ocorreram os episódios narrados, ou seja, não assumem uma condição periférica diante do fato. Ainda que não diretamente envolvidos, são os protagonistas e representantes da versão da escola como instituição. Na condição de protagonistas, os gestores escolares afirmam, através do discurso pronunciado, marcas históricas e identidades, ainda que eventualmente possam produzir outros discursos em / de outros lugares sociais ou em outros momentos históricos, pois os sujeitos usam a linguagem a partir de suas premissas sócio-históricas. No que concerne ao conteúdo dos discursos há, nos documentos, um palpável princípio de auto complacência e de autodefesa da gestão escolar. Nesta direção, é muito forte a ideia de que a violência não faz parte do cotidiano escolar, está ‘fora’ dos muros da escola, sendo tratada discursiva e fortemente como exceção ou fato isolado. Assim, o discurso caminha na direção de simplificar a violência e reduzi-la ao âmbito do contexto violento e da exceção pois supostamente – e na versão de alguns gestores -, não há violência na escola, ela seria simplesmente o reflexo da sociedade episodicamente materializado dentro da escola. Todavia, considerando que “tomar a palavra é um ato social com todas as suas implicações, conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidade etc” (ORLANDI, 1998:17), o fato de tentar reduzir ou minimizar a violência, pode significar um ato de negação ante ao fenômeno, ou de proteção e corporativismo. Tal discurso é, seguramente, o discurso mais empregado, legitimando possível falta de protagonismo da gestão ante ao episódio de suposta violência, uma vez que a escola nada fez e tampouco poderia tê-lo feito porque a violência não seria algo rotineiro e, assim, não mereceria a preocupação antecipada, ou mesmo uma atitude de prevenção, por parte dos gestores escolares. Grassa, nesta perspectiva, o caráter de exceção que, por efeito, não nos permite a compreensão de trata-se de uma estratégia discursiva de defesa ou negação, ou se realmente trata-se de um fato isolado e esporádico, uma vez que “[...] as palavras são tecidas por uma multiplicidade de fios ideológicos, contraditórias entre si, pois frequentaram e se constituíram em todos os campos das relações e dos conflitos sociais” (MIOTELLO, 2007, p. 172). Também parece rotineira uma certa tendência a normalidade do fato. Quando o discurso assume a presença da violência no cotidiano escolar, o faz com certo desdém em relação as consequências, em um apelo a ‘pseudo’ normalidade: ‘não é para tanto’; ‘era só uma brincadeira normal entre os alunos’ ou – em um processo reverso (e perverso) de culpabilização da vítima -, ‘a agressão foi uma resposta a provocações anteriores’. Os responsáveis pelos estabelecimentos escolares, quando chamados a compor sua versão sobre o episódio narrado nas reportagens, também costumam tecer justificativas que alocam eventuais culpas longe da instituição ou das práticas cotidianas ali desenvolvidas. Para este processo, tanto pode elaborar um discurso de desconhecimento: quando a criança/adolescente saiu da escola, não havia nenhum machucado, por exemplo; ou elaborar um discurso de negação do protagonismo da gestão escolar em relação ao cotidiano da própria escola, com a desculpa de que o episódio narrado foi fora do pátio do educandário; que é a primeira vez que há brigas na escola; a escola não tem histórico de agressões; que a escola participa de programas antiviolência, etc... Este seria um retrato

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da lei da utilidade, pois “não se fala somente por falar, mas porque há uma utilidade em fazê-lo” (ORLANDI, 1996, p. 18) e, assim sendo, “considera-se razoável indagar, para cada ato de fala, os motivos que poderiam tê-lo suscitado” (ORLANDI, 1996, p. 18). Por fim, outro argumento bastante utilizado é o apelo às reuniões. É muito comum que gestores falem sobre o episódio relatando uma futura reunião para discutir o caso. Eventuais soluções ficam sempre para um futuro, para uma conversa, para uma reunião, sendo que raros produtos midiáticos mencionam ações práticas, que permitam aos seus leitores ter uma dimensão do que ocorrerá a partir do episódio narrado. O segundo desdobramento é mais sutil: as possíveis alterações ou mudanças de rota do discurso, estipuladas de acordo com a composição de sujeitos e cenários envolvidos no episódio narrado. Vejamos: quando os episódios envolviam agressores diferentes, o discurso pronunciado também parecia ser diferente. Ao aluno agressor – em geral menor de idade –, um discurso de conciliação e da necessidade de várias reuniões – com pais, professores e autoridades -, para verificar ou constatar a situação. Ao professor no entanto, dois discursos paradoxais: ora o discurso da defesa intransigente, alegando toda a sorte de atenuantes, ora o discurso da dureza punitiva: sindicâncias, inquéritos administrativos, afastamentos ou suspensões e, eventualmente, demissões. Podemos ainda considerar que os gestores que se posicionaram em cada uma das reportagens analisadas estão dentro de um padrão de sujeito que, “ao dizer ‘eu’ desse lugar imaginário e identificado à formação discursiva que o domina, o sujeito materializa sua inserção na história, mostra um percurso de sentidos na língua e, ao mesmo tempo, se coloca à mercê do jogo dos significantes” (MARIANI, 2003, p.70), ou seja, ele encontra-se (auto) legitimado para assim agir. Subjaz dessa constatação, o protagonismo do gestor escolar como o administrador do espaço da escola, o responsável público pelo que ocorre no estabelecimento de ensino: ele explica o que aconteceu, ele justifica atitudes, ele mesmo chama para reuniões e, se for o caso, ele também encaminha a punição.

ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O TEMA A PARTIR DOS DADOS EMPÍRICOS A escolha pelo tratamento do tema a partir de reportagens publicadas ao longo do ano de 2014, busca dar semblante atualizado ao corpus documental que sustenta o texto pois, nas palavras de Orlandi, o corpus de análise deriva “de uma construção do próprio analista” (2003, p. 63). Além do que a mídia tem um papel de elaborar ou ratificar agendas e pautas sociais, mormente no campo da educação, uma vez que “no atual momento da história é a “mídia” que tem o potencial de construir socialmente uma agenda pública (agendasetting) de assuntos, temas, personalidades e fatos sociais além da abordagem (enquadramentos) sobre cada um destes assuntos” (CRUZ, 2011, p. 36). O olhar e as escolhas da mídia emprestam relevância a um tema em debate, garantindo aproximações com os objetos de estudo pois considera-se que a mídia tem acurado cada vez mais o ponto de vista das sociedades modernas. O discurso da mídia é ponto determinante na composição da pauta das discussões sociais, forjando opiniões e lançando temas aceitos e entendidos como relevantes e dignos de discussão pela sociedade, incluindo as pautas sociais vinculadas a educação, uma vez que... A escola atua através da convenção: o costume que, dentro de um grupo, se considera como válido e está garantido pela reprovação da conduta discordante. Atua através dos regulamentos, do sentimento de dever que preside ao discurso pedagógico e este veicula. Se define como ordem legítima porque se orienta por máximas e essas máximas aparecem como válidas para a ação, isto é, como modelos de conduta, logo, como obrigatórias. Aparece, pois, como algo que deve ser. Na medida em que a convenção, pela qual a escola atua, aparece como modelo, como obrigatória, tem o prestígio de legitimidade. (ORLANDI, 1996, p. 23).

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A partir do princípio de convenção, tradição e costume, a escola apresenta um quadro de sujeitos e situações cotidianas que são idealizados por quem não participa daquele universo. Episódios de violência dentro da escola, em geral, fazem emergir um conflito, um paradoxo entre a imagem que a escola gostaria de ter por certa ‘vocação histórica’ (imagem ideal) e o temor do julgamento externo, amparado nas denúncias sobre o cotidiano intramuros (imagem real)... A distância entre a imagem ideal e o real é preenchida por presunções, mediação essa que não é feita no vazio mas dentro de uma ordem social dada com seus respectivos valores. As mediações se sucedem em mediações provocando um deslocamento tal que se perdem de vista os elementos reais do processo de ensino aprendizagem (ORLANDI, 1996, p. 21).

No quadro de confronto entre a imagem ideal e a imagem real assenta-se, por exemplo, a justificativa para a primeira premissa discursiva dos gestores escolares: a auto complacência e a negação do conflito. Dentro da mesma lógica de ‘idealização’ vem a premissa de que a culpa está fora, longe da escola: ‘o outro aluno provocou’, ‘a escola faz o possível’, ‘foi fora dos muros da escola’. Tal lógica corrobora na constituição de formações discursivas características. Nas palavras de Pêcheux... Chamaremos, então, formações discursivas aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) (PÊCHEUX, 2009, p. 160).

Para aqueles que vivem o cotidiano escolar – inseridos na formação discursiva característica desta vivência, com os códigos e símbolos que a compõem -, é mais palatável que a culpa seja alocada fora da escola do que no interior da mesma, eventualmente em alguma atitude ou relação do seu cotidiano. Possivelmente as práticas escolares - para os gestores que construíram um discurso de culpabilização de aspectos estrangeiros ao cotidiano escolar -, merecem proteção e defesa, sob um certo manto de ‘pureza’ e redenção: a escola está para redenção e não para a culpa, a escola seria o local de redenção social e não de acirramento do fenômeno social externo, pois... [...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas) (PÊCHEUX, 2009, p. 146).

A premissa que separa tipos diferentes de discursos para cada um dos sujeitos responsáveis pela agressão/violência, também encontra guarida nas tradições institucionais e no pressuposto de que o professor está em um lugar diferenciado, seja do ponto de vista do gestor escolar que evoca um certo corporativismo para defender o professor do seu estabelecimento de ensino; seja do ponto de vista do gestor que quer encontrar e punir ‘culpados’ e, para tanto, pode desconsiderar o profissional professor que eventualmente esteja envolvido em um episódio de violência, bem como desconsiderar trajetórias e condições conjunturais de alunos envolvidos. Assim, a figura do professor encerra um paradoxo nos discursos examinados: ou deve ser protegido a qualquer custo, ou, por seu lugar de ‘modelo’, quando incorre em uma suposta falha, deve ser exemplarmente punido, pois que O fundamento da autoridade tradicional dos professores, em sala de aula, residiria em seu estatuto intelectual e competência profissional para ensinar, os quais poderiam lhe conferir distinção e uma posição hierárquica superior em relação aos alunos. Mais recentemente, o processo de legitimação da autoridade dos professores passa a destacar o modo como estes interagem com os alunos. Assim, para exercer uma autoridade legítima, os professores precisam demonstrar uma competência para ensinar, bem como competência interpessoal em sala de aula (GARCIA, 2009, pp. 515; 516)

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Quando o aluno assume o papel de cliente, quando a família assume o papel de condescendência e permissividade, bem como quando a equipe gestora da escola assume o papel de passividade, associamos estes papéis com contextos e papéis sociais legitimados e esperados, pois a “história da produção dos conhecimentos não está acima ou separada da história da luta de classes” (PÊCHEUX, 2009, p.190). Nesta relação de papéis pré-estipulados, há um forte componente ideológico pautando o discurso, considerando que: ... a ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. Partindo da afirmação de que a ideologia e o inconsciente são estruturas-funcionamentos, M. Pêcheux diz que sua característica comum é a de dissimular sua existência no interior de seu próprio funcionamento, produzindo um tecido de evidências “subjetivas”, entendendo-se “subjetivas” não como “que afetam o sujeito” mas, mais fortemente, como “nas quais se constitui o sujeito (ORLANDI, 2003, p. 46).

Nem sempre a fala encetada, quando colocada ante a critérios reflexivos, necessariamente sustenta-se. Nas palavras de Pêcheux (2012, p. 53) “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, deslocar-se discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”, ou o ‘famoso’ jargão ‘não foi bem isto que eu quis dizer’.

CONCLUSÃO Nas 30 reportagens examinadas há aspectos de palpável violência. Violência de aluno contra professor, de professor contra aluno e de aluno contra aluno. Em todos os casos, as equipes gestoras das escolas envolvidas tomaram parte das reportagens, através de pronunciamentos oficiais, considerados discursos, no escopo do texto. Estes discursos foram, na medida, eficientes em auxiliar na interpretação acerca da leitura interna que as gestões escolares fizeram sobre os episódios de violência e o espaço/relevância que os mesmos ocuparam na prática escolar. Neste ponto importa reiterar a razão do foco no discurso das gestões escolares: tais gestores são os sujeitos responsáveis por administrar os estabelecimentos de ensino. São os representantes legais das escolas onde ocorreram os episódios narrados, ou seja, não assumem uma condição periférica diante do fato. Ainda que não diretamente envolvidos, são os protagonistas e representantes da versão da institucional da escola. Os discursos mais projetados, de auto complacência e justificativa, permitiram a percepção de um significativo jogo discursivo que passa pelo questionamento (explícito ou implícito) da própria condição da escola como instituição de produção discursiva, uma vez que “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos-falantes (em sujeitos de seu discurso) pelas formações discursivas que representam ‘na linguagem’ as formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 2009, p. 161). Ou seja, eles não falam descolados do seu lugar de fala e este lugar expressa mais do que um ponto de vista, mas uma construção ideológica singular.

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A POESIA COMO LINGUAGEM DO AMOR HUMANO Rudião Rafael Wisniewski* (URI) “Pra ser feliz num lugar Pra sorrir e cantar Tanta coisa a gente inventa, Mas no dia que a poesia se arrebenta É que as pedras vão cantar” Dominguinhos “Cada qual sabe amar a seu modo; o modo, pouco importa; o essencial é que saiba amar.” Machado de Assis

Os textos literários tratam dos mais diversos temas do cotidiano, pois a arte imita a vida, ou vice-versa. No entanto, a morte e o amor estão presentes na grande maioria dos contos, romances e poesias. Eros e Afrodite são deuses conhecidos do grande público, os deuses gregos do amor. Parece serem os mais ocupados, pois o amor sempre está em voga, em qualquer das formas que possa acontecer, é inspiração e combustível para as ações humanas. Não há quem não tenha falado de amor, bem como não há quem não tenha amado, se não uma pessoa, um lugar, um animal, um objeto, uma divindade, um corpo celeste. Um sentimento, ao mesmo tempo, simples e complexo, estudado pelas mais diversas áreas. Este texto objetiva analisar a importância da literatura, principalmente a poesia para a compreensão da complexidade humana. A partir dos escritos de Edgar Morin e sua visão da literatura como meio para se desenvolver o conhecimento pertinente das relações socioambientais, a prosa e a poesia da vida, enaltecendo a poesia do amor humano. Quem quer que tenha amado, independente do seu fado, neste texto apresentado, seja ou não de seu agrado, terá seu amor lembrado.

1. LITERATURA: AMOR EM PROSA E POESIA A poesia não tem fim. A cada releitura podemos ter novas compreensões e sentimentos com suas metáforas. Cada pessoa pode ler e ter diferentes ideias sobre a mesma poesia. Parecem apenas palavras organizadas uma após a outra, mas a mágica acontece quando o poema é lido ou declamado. Há uma efusão de emoções despertas ou geradas a partir dela. Edgar Morin (2011, p. 117), tratando sobre sua forma de escrita, dá uma noção do poder das palavras: “não é somente o autor, mas também as palavras que brincam com elas mesmas. Como dizia o poeta, as palavras fazem amor”. A poesia e suas metáforas expandem e complexificam nossa visão das ações humanas, muito mais do que reações bio-físico-químicas, conforme explica a ciência sobre os sentimentos, a literatura, em especial a poesia, reflete (ou refrata) a reverberação de sentimentos. Tal qual a explicação do poeta português Luís Vaz de Camões para o amor:

Mestre em Letras- Literatura, pela URI- FW, Professor do IF Farroupilha- Campus Panambi, Brasil. E-mail: [email protected]

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POEMA I Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; É solitário andar por entre a gente; É um não contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder; É um estar-se preso por vontade; É servir a quem vence o vencedor; É ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade, Se tão contrário a si é o mesmo Amor? (AYALA, 1997, p. 86). Esse antagonismo sentimental é próprio do humano, que se reconhece e se constitui a partir dos afetos e da falta deles, interferindo em suas ações e reações. Por que amar, se podemos nos ferir? Porque a dor da ferida passa, se é que foi sentida. Por que amar se ficaremos presos a esse sentimento? Porque não há lugar melhor que sua prisão. Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”, mais importante poeta satírico em língua portuguesa, também vê o amor como uma antítese viva: Ardor em firme coração nascido; Pranto por belos olhos derramado; Incêndio em mares de água disfarçado; Rio de neve em fogo convertido: Tu, que em ímpeto abrasas escondido; Tu, que em um rosto corres desatado; Quando fogo, em cristais aprisionado; Quando cristal, em chamas derretido. Se és fogo, como passas brandamente, Se és neve, como queimas com porfia? Mas ai, que andou Amor em ti prudente! Pois para temperar a tirania, Como quis, que aqui fosse a neve ardente, Permitiu, parecesse a chama fria (AYALA, 1997, p. 38).

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Mesmo culturas que não falam sobre o amor, as quais não possuem um conceito elaborado sobre o tema, mesmo sem pronunciá-lo, o sentimento existe, talvez não de maneira romântica, mitológica, mas carnal, apaixonada, libidinal. No momento em que chega o desejo, os seres sexuados são submetidos a uma dupla posse que vem de muito mais longe que eles e que os ultrapassa. O ciclo de reprodução genética, que nos invade pelo sexo, é a ao mesmo tempo algo que nos possui frequentemente e que nós possuímos: o desejo. É a primeira posse. A outra posse é aquela que nasce do sagrado, do divino, do religioso. A posse física, que vem da vida sexual, encontra a posse psíquica, que vem da vida mitológica. Eis o problema do amor: estamos duplamente possuídos e possuímos o que nos possui, considerando-o física e miticamente como nosso próprio bem (MORIN, 1997, p. 24-5).

Uma poesia representativa do amor carnal, paixão transformada, foi escrita por Ivan Junqueira (1999, p. 32): E se eu disser que te amo - assim, de cara,  sem mais delonga ou tímidos rodeios,  sem nem saber se a confissão te enfara  ou se te apraz o emprego de tais meios?  E se eu disser que sonho com teus seios,  teu ventre, tuas coxas, tua clara  maneira de sorrir, os lábios cheios  da luz que escorre de uma estrela rara?  E se eu disser que à noite não consigo  sequer adormecer porque me agarro  à imagem que de ti em vão persigo?  Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro  em tua ausência - essa lâmina exata  que me penetra e fere e sangra e mata. Podemos pensar, com a razão simplificadora, analisando disciplinas separadamente, que o amor é apenas uma evolução da necessidade de procriação, ou –com a Psicanálise – uma projeção melhorada de nós mesmos, ou ainda, a Química o explicaria através de reações de elementos: na paixão, a norepinefrina e a feniletilamina exaltam-nos, a serotonina prende-nos e a dopamina diz-nos que devemos ficar felizes com isso. Finalmente, a festa acalma com a ocitocina e a vasopressina, mas nada disto tira a poesia ao amor nem rouba a alma e a liberdade aos seres humanos. Embora a química contribua para o funcionamento do amor, não o pode explicar completamente. O conhecimento das causas químicas e dos mecanismos bioquímicos não é suficiente para determinar as vontades nem controlar o acaso (RODRIGUES, 2014, p. 61-3).

Com a complexidade, em vez de pensarmos que o amor é isto OU aquilo, entendemos que pode ser isto E aquilo & mais outras coisas. Como o ser humano é complexo, seus sentimentos também o são, formados por partes que compõem um todo, que é também parte de algo maior, cujo todo é formado por partes/todo, como num holograma. As obras literárias tentam falar-nos sobre as sociedades e culturas, e seus componentes, suas análises psicológicas, além de prováveis doenças e distúrbios destes, as quais possam interferir na sua vida e da sociedade onde está inserido, modificando-a e, por conseguinte, o rumo que o enredo tomaria. “O romance refere-se à condição humana, que as ciências sociais nunca conseguem enxergar; fala de nossas vidas, paixões, emoções, sofrimentos, alegrias, das relações com o outro e com a História” (MORIN, 2013, p. 95). Portanto,

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A literatura desempenha papel fundamental, e é necessário não se satisfazer apenas com as ciências. Quanto à poesia, ela não é apenas uma iniciação a uma qualidade própria das obras poéticas, que nos põem em contato com fantásticos estados de maravilhamento. Ela é uma iniciação à qualidade poética da vida. Uma coisa ainda não foi dita: a vida é uma alternância e, por vezes, uma mistura de prosa e poesia. O que é prosa? São as coisas mecânicas, cronométricas que nos obrigamos a fazer para ganhar a vida. O que é a poesia? Momentos de intensidade, comunhão, amor, alegria e prazer que podemos experimentar também nas festas, nos jogos de futebol. [...] A prosa nos ajuda a sobreviver, mas a poesia é a própria vida (MORIN, 2013, p. 95-6).

A vida é feita de escolhas, mas também de acaso, tal qual o amor, podemos tentar construí-lo e termos uma vida amena, mas há uma porção de incerteza incontrolável, quando ele nos escolhe, nos pega de jeito, não há como escapar, temos que abraçá-lo. Como bem escreveu Adélia Prado: Corridinho O amor quer abraçar e não pode. A multidão em volta, com seus olhos cediços, põe caco de vidro no muro para o amor desistir. O amor usa o correio, o correio trapaceia, a carta não chega, o amor fica sem saber se é ou não é. O amor pega o cavalo, desembarca do trem, chega na porta cansado de tanto caminhar a pé. Fala a palavra açucena, pede água, bebe café, dorme na sua presença, chupa bala de hortelã. Tudo manha, truque, engenho: É descuidar, o amor te pega, te come, te molha todo. Mas água o amor não é. (AYALA, 1997, p. 7). Abraçar! Essa palavra de acalanto, de amor, que Morin tanto aprecia e emprega: abraçando a complexidade do real, “em latim, complexere significa também abraçar. Este saber que abraça deve ressuscitar uma cultura que não é pura e simplesmente cópia da antiga cultura, mas sim sua integração em conexão” (2013, p. 38). A constatação com relação à cultura das Humanidades e das Ciências, vale também ao ensino de literatura e poesia. Resgatar o amor, não significa em absoluto retornar ao Romantismo. Não devemos morrer por amor, mas viver com amor, menos individualistas. Johann Wolfgang von Goethe, escritor alemão, foi um dos principais românticos, levando o amor às últimas consequências em suas obras, tratando-o como algo, muitas vezes, inalcançável. A vida se resumia apenas em pensar na pessoa amada, como em seu poema Distante amor (tradução de Bastian Pinto):

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Eu penso em ti quando o fulgor do sol ardente reluz do mar; E penso em ti quando a tranquila fonte espelha o luar. A ti eu vejo da longínqua estrada entre a turba e pó; E, alta noite, por tenebrosa senda, peregrino e só. Tua voz me fala entre o fragor da vaga que vem tombando; Ou, quando em silêncio, lá na selva erma te estou escutando. Contigo estou, de ti tão longe embora. ‘Stás junto a mim! Já cai o dia... vêm luzindo os astros... Ver-­te-­ei, enfim? (AYALA, 1997, p. 80). O poeta gaúcho Mario Quintana exprimiu bem a diferença entre morrer por amor e morrer de amor, matar-se por algo inalcançável é tolice. Melhor é amar sem medida, as pessoas, animais, plantas, à nossa volta, nossas atividades, o ambiente onde estivermos, puro amor: Nunca ninguém sabe se estou louco para rir ou para chorar. Por isso o meu verso tem Esse quase imperceptível tremor... A vida é louca, o mundo é triste: Vale a pena matar-se por isso? Nem por ninguém! Só se deve morrer de puro amor... (AYALA, 1997, p. 57). O amor é contagioso, principalmente na escola, devemos trabalhar esse sentimento. Morin (2004, p. 101) lembrou que “Platão já havia acusado como condição indispensável a todo o ensino: o eros, que é, a um só tempo, desejo, prazer e amor”, pois, “onde não há amor, só há problemas de carreira e de dinheiro para o professor; e de tédio, para os alunos” (p. 102). A respeito de amor por animais, Morin (1997) cogita ser mais interessante dizermos que um animal, como um cão, é afetuoso do que cartesianamente afirmarmos ser uma máquina reagindo a estímulos. “E por que isso é justificado? Porque nós próprios somos mamíferos evoluídos e sabemos que a afectividade se desenvolveu nos mamíferos, entre os quais o cão” (p. 20). Em seu diário do ano de 1995, especificamente, no dia 14 de janeiro, um sábado, Edgar Morin e sua amada Edwige vão à Exposição Internacional de Gatos, onde compram uma bola mágica para sua gata Herminette. O amor é algo tão puro e natural, capaz de unir os seres em prol de um amor em comum, como conclui o pensador, a respeito de seu passeio: “Há muitos visitantes, bem diferentes, todos atraídos pelo amor aos gatos. E todos esses visitantes se amam, uns aos outros, pelos gatos e por amor a eles. Nós partimos radiantes, apaziguados, quase ronronantes” (2012, p. 42). Também podemos amar um instante, um momento, mas o essencial é o presente, como bem expressou a genialidade de Fernando Pessoa (1955, p. 31):

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Eu amo tudo o que foi Tudo o que já não é A dor que já me não dói A antiga e errônea fé O ontem que a dor deixou, O que deixou alegria Só porque foi, e voou E hoje é já outro dia. Talvez este seja o sentido do presente, o poder do agora, se há um tempo certo para amar, ele precisa ser já, hic et nunc, não há sentido para a vida, razão para o amor, ou qualquer outro conhecimento, se estiver alheio a nós. Ele emerge na nossa inter-relação com o mundo e os seres à nossa volta. O sentido do amor e o sentido da poesia é o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poesia, quando concebidos como fins e meios do viver, dão plenitude de sentido ao “viver para viver”. Portanto, podemos assumir, mas com plena consciência, o destino antropológico do homo sapiens-demens, isto é, jamais cessar em nós o diálogo entre sabedoria e loucura, ousadia e prudência, economia e despesa, temperança e “consumação”, desapego e apego. É aceitar a tensão dialógica, que mantém em permanência a complementariedade e o antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionalidade (MORIN, 1997, p. 12-3).

Ou seja, saber que precisamos da prosa, a forma sistemática de viver, quase metonímia, da parte pelo todo, continente pelo conteúdo, autor pela obra, etc., mas a poesia é que nos move adiante, além do imaginável e racionalizável, “a poesia, que faz parte da literatura e, ao mesmo tempo, é mais que a literatura, leva-nos à dimensão poética da existência humana” (MORIN, 2004, p. 45). Nossa interpretação de suas metáforas diz mais a nós e sobre nós do que qualquer ciência e arte é capaz de dizer. Nos fala ao pé do ouvido algo que poderia ser gritado ao universo, cochicha quem somos.

2. CONSIDERAÇÕES POÉTICO-AMOROSAS FINAIS Como afirmou Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa: “Não me venha com conclusões!/ A única conclusão é morrer” (BRASIL, 1989, p. 107). E por não estarmos, ainda, mortos, nem sabermos se realmente há amor após a vida, deixemos tais questões para Eros e Tânatos, ou Afrodite e Hades. O que podemos afirmar pelo já visto, vivido e analisado é que as obras amorosas – de vida ou de arte – superam seu criador, ultrapassam-no. Como costumamos recitar: o amor tem razões que a própria razão desconhece. A literatura contribui para o trabalho de análise das expressões humanas, principalmente nossos sentimentos complexos, os quais encontram na poesia sua expressão mais representativa. Cabe ao professor de literatura desenvolver a sede pela água de tão rica fonte.

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________. Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011. ________. Chorar, amar, rir, compreender. Tradução de Nurimar Falci. São Paulo: SESCSP, 2012. ________. Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. Tradução de Edgar de Assis Carvalho. 6. ed. São Paulo: Cortez, 2013. PESSOA, Fernando. Poesias Inéditas. Lisboa: Ática, 1955. RODRIGUES, Sérgio. Jardins de cristais: química e literatura. Lisboa: Gradiva, 2014.

O CONTO “PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE” NUMA MISTURA DE FICÇÃO E REALIDADE Valaci Euzebio* (UPF)

1. INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem como fio condutor investigar a relação existente entre linguagem e literatura, conciliando o funcionamento da língua e o gênero conto. Assim, pode-se identificar as possíveis marcas da subjetividade na linguagem, tendo em vista que o homem se mostra pela linguagem e é através dela que existe a ideia de sujeito. A linguagem pode ser compreendida como a condição para a comunicação humana, e a subjetividade pode ser entendida como a competência do locutor para se projetar como sujeito. Nessa perspectiva, busca-se analisar esse desdobramento no conto chamado “Para que ninguém a quisesse”, escritora por Marina Colasanti, em 1986, conteúdo que é parte integrante do livro Contos de Amor Rasgados, que aborda a temática feminina, conforme anexo A dessa pesquisa. Trata-se de um estudo linguístico, com ênfase na Teoria da Enunciação de Benveniste (2005), proporcionando fundamentos capazes de fomentar os vínculos que as pessoas estabelecem nos enunciados, seja em perspectiva dialógica ou de estranhamento. A justificativa desse estudo científico, fundamenta-se no fato de verificar essa relação que existe entre língua, homem e mundo, com a intenção de propiciar uma reflexão teórica, ressaltando que a linguagem é inseparável do homem, sendo percebida como um dos fundamentos da existência humana e também como a possibilidade da subjetividade. Além disso, ressaltam-se ainda as contribuições sociais, entre elas, estão o incentivo a percepção do mundo real e onírico, a obtenção de capital cultural, a aquisição de repertório vocabular e o senso crítico. Referindo-se a fundamentação teórica que norteará a discussão, inicialmente, apresenta-se um apanhado geral sobre conto, realizando a explanação das características intrínsecas desse gênero apontadas por Moisés (1973, 2004, 2007) e Reis (2001), embasando que é um gênero literário conciso e que desafia os teóricos. Em seguida, delimitam-se os conceitos de base referente à Teoria da Enunciação de Benveniste (2005), destacando a compreensão das possíveis marcas do sujeito na língua. O recorte teórico também pretende identificar as prováveis distinções de pessoa (eu/tu) e de não-pessoa (ele) na perspectiva do marco teórico benvenisteano, instigando a construção do sentido em um quadro enunciativo. Na sequência do estudo, apresenta-se a análise propriamente dita. Momento ímpar e singular para a construção crítica. Por fim, apontam-se as considerações oportunas para a compreensão dos resultados alcançados. Os procedimentos metodológicos adotados caracterizam o estudo como uma pesquisa descritiva, bibliográfica e com abordagem qualitativa. Esses alicerces estão inerentes na trajetória efetivada para averiguação do corpus.

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras, especialista em Gestão de Marketing em Serviços e Varejo, graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, pela Universidade de Passo Fundo, Brasil, [email protected].

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2. O GÊNERO CONTO NUMA PERSPECTIVA TEÓRICA Para ressaltar as principais características do gênero conto e fundamentar a análise do corpus, “Para que ninguém a quisesse”, recorre-se a estudiosos dessa temática. De acordo com Moisés (2007), o conto é uma obra de ficção que envolve a imaginação e a fantasia. São narrativas que apresentam riqueza de conteúdo e infinitas possibilidades de leitura. É um texto literário que desenvolve as relações e experiências do cotidiano, crindo situações conflituosas mesmo sendo conciso. Referindo-se aos recursos narrativos de uma obra de ficção, Moisés (2007) destaca quatro, são eles: diálogo, descrição, narração e dissertação. O primeiro é entendido como a fala dos personagens, que pode ser diálogo direto ou indireto, enquadram-se o monólogo e o solilóquio. A descrição, como o próprio nome já diz, descreve a situação. A narração envolve acontecimento, ação e movimento. A dissertação, para finalizar, é a explanação de ideias e conceitos. Esse gênero é da ordem do dramático e consiste em apenas um conflito no enredo, confirma Moisés (2004), a história desenrola-se em um ato, tornando-se a unidade da ação. O local também pode ser diversificado, contemplando a sala, a cozinha, o quarto ou realizando deslocamentos, sendo que onde a cena acontece torna-se a unidade de lugar. Nesse mesmo raciocínio, acentua-se também a unidade de tempo, em que passado e futuro tornam-se pouco relevantes, valendo predominantemente o presente. O teórico Moisés (2007), afirma que especificamente nesse gênero o tempo parece fluir, é como se as ações dos personagens fossem cronometradas por segundos e minutos, gerando um tempo linear e resultando na brevidade natural. Ele pondera que o contista observa o tempo pelo microscópio. O drama segue a sequência lógica do relógio mostrando-se linear e objetivo. As principais características desse gênero, no pensamento de Moisés (2004), são poucos personagens, dois ou três, e linguagem de concisão. No conto as circunstâncias contam pouco. A geografia está diretamente relacionada com o drama e a paisagem projeta os personagens para o local do conflito. Como diz Moisés (2007, p. 137), “se assim se arquiteta no conto a relação personagem e ambiente, com mais razão no romance introspectivo, onde a geografia pode confundir-se com o protagonista ou tornar-se-lhe mero prolongamento”. As personagens de ficção podem ser analisadas de dois modos, conforme Moisés (2007): estaticamente, considerando a descrição e sendo imóveis no tempo, espaço e ação, ou dinamicamente, quando ocorrem transformações. Ainda, Moisés (2007) destaca as personagens planas e redondas. A primeira da categoria, as planas, são caracterizadas pela repetição de um defeito ou qualidade, sendo assim, a análise não vai revelar surpresas. Sobre a ótica das personagens redondas, ressalta-se a identidade das figuras dramáticas nos desdobramentos da ação, há surpresas, gerando unidade pela diversidade. As figuras dramáticas são consideradas instrumentos de ação. Conforme Moisés (1973), as personagens desse gênero chamam atenção pelo apelo dramático e psicológico que suscitam. O drama mora nas pessoas e não nos objetos ou roupas. Moisés (1973, p. 124), explica que “o drama nasce quando se dá o choque de duas ou mais personagens, ou de uma personagem com suas ambições e desejos contraditórios”, fato que pode ser comprovado no corpus de análise. Em outras palavras, se houvesse a monotonia entre as percepções dos personagens da situação, não teria uma história atrativa, o interesse ocorre com a oposição de ideias e de visões do mundo, é isso que seduz o leitor. O ponto de vista ou foco narrativo, segundo Moisés (2007), é a posição que o escritor assume para contar a história. Se for realizado em primeira pessoa, há a presença de um personagem principal e de um secundário; se for desenvolvido em terceira pessoa, aparece o narrador onisciente ou o narrador observador. Adotando o raciocínio de Moisés (1973), o foco do conto pode aparecer em primeira pessoa do singular, como se fosse um juiz em causa própria, uma testemunha, um acompanhante dos personagens, ou ainda, um observador que realiza a narrativa de forma menos comple-

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xa. Entretanto, Moisés (1973) esclarece que o conto também pode ser narrado em terceira pessoa, utilizando somente as palavras necessárias, em que a realidade e a imaginação se misturam, oscilando com a verossimilhança da vida. Cabe ao contista escolher um dos focos, relevando também a onisciência, sabendo que ele possui conhecimento integral dos fatos. Conforme Reis (2001), o texto narrativo apresenta três aspectos essenciais. Primeiro manifesta um caráter de exteriorização quando o narrador conta a história. Depois sugere a representação com uma finalidade, causando estranhamento no leitor. Por fim, apresenta práticas que instauram uma dinâmica de sucessividade. A narrativa literária, segundo Reis (2001), apresenta narrador e narratário. O narrador conta a história, assumindo uma entidade fictícia, na maioria das vezes, sendo considerada uma invenção do autor. O narrador destina suas ações ao narratário. Considerado a matriz da novela e do romance, de acordo com Moisés (1973), o conto apresenta suas unidades, destacando a semelhança da ótica dramática. Então, as divagações são preteridas, há consistência em uma narrativa que apresenta início, meio e fim. Referindo-se a linguagem utilizada nesse gênero, Moisés (1973, p. 128), acentua que “as palavras como signos de sentimentos, ideias, pensamentos, emoções, podem construir ou destruir. Sem diálogo torna-se impossível qualquer forma completa de comunicação”. Segundo Moisés (2007), o final do conto envolve a presença de um mistério que precisa ser revelado. O desfecho surpreendente é sempre esperado com um enigma a ser desvendado, despertando encantamentos, sentimentos e emoções no leitor.

3. SUBJETIVIDADE E A RELAÇÃO LÍNGUA, HOMEM, MUNDO Antes de tudo o linguista da subjetividade, Benveniste (2005), afirma que a linguagem é a atividade significante por excelência, concebida como representação de alguma coisa, sendo da ordem do descontínuo e do dissemelhante. Nesse mesmo raciocínio, Benveniste (2005), ressalta que a linguagem concede ao homem a ideia de sujeito. Nessa perspectiva, a subjetividade é percebida como uma relação entre homem e mundo, a partir dessa compreensão pontua-se a linguagem e a subjetividade como um subsídio teórico nesse estudo. Como diz Benveniste (2005, p. 286), “ora, essa ‘subjetividade’, quer a apresentemos em fenomenologia ou em psicologia, como quisermos, não é mais que a emergência no ser de uma propriedade fundamental da linguagem. É ‘ego’ quem diz ego”, compreende-se que nesse cenário ego significa eu. Na apropriação da língua o que se apresenta é a subjetividade e não o sujeito. Benveniste (2005, p. 285), pondera que “a linguagem está na natureza do homem, que não a fabricou”. A linguagem é própria do homem, não é possível separar porque há uma ligação intrínseca entre as partes. “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ego”, explica Benveniste (2005, p.286). Com essa afirmação, entende-se que a subjetividade é determinada pela categoria de pessoa e pelo seu status linguístico. Benveniste (2005, p. 287), explica que “é tão profundamente marcada pela expressão da subjetividade que nós nos perguntamos se, construída de outro modo, poderia ainda funcionar e chamar-se linguagem”. Esse raciocínio denota que a linguagem pode ser compreendida como a possibilidade da subjetividade. Nesse sentido, a subjetividade enfatizada por Benveniste (2005), ressalta a existência do locutor (eu) e do alocutário (tu), ou seja, há uma relação entre eu/tu dialógica por natureza. A Teoria da Enunciação de Benveniste (2005), aponta a presença do sujeito na língua, marcado linguisticamente e construído na instância de discurso, sendo um ato único em que a língua é atualizada em palavra pelo locutor. São com os pronomes que a subjetividade obtém força, confirma Benveniste (2005), e essa classe tão longe comporta a noção de pessoalidade. Sobre isso:

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Devemos tomar cuidado; não há outro critério nem outra expressão para indicar ‘o tempo em que se está’ senão tomá-lo como ‘o tempo em que se fala’. Esse é o momento eternamente ‘presente’, embora não se refira jamais aos mesmos acontecimentos de uma cronologia ‘objetiva’ porque é determinado cada vez pelo locutor para cada uma das instâncias de discurso referidas. (BENVENISTE, 2005, p. 289).

O tempo é sempre ligado à instância da fala, ressalta Benveniste (2005), os acontecimentos não são o tempo, mas estão nele. Sendo assim, a língua ordena o tempo a partir da instância de discurso. De acordo com Benveniste (2005, p. 289), “a linguagem é, pois, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas linguísticas apropriadas à sua expressão; e o discurso provoca a emergência da subjetividade, pelo fato de consistir de instâncias discretas”. Referindo-se a categorização, Benveniste (2005) salienta três. A categoria de pessoa, de tempo e de espaço. A categoria de pessoa também chama a atenção para a categoria de espaço (aqui) e categoria de tempo (agora), limitando a instância de discurso. De acordo com Benveniste (2005), a categoria de pessoa é determinada pelos participantes ativos de uma enunciação, sendo o ato de produzir um enunciado. Nesse sentido, Benveniste (2005), ressalta que existe a pessoa (eu/tu) e a não-pessoa (ele). Com esse pensamento, pontua-se que a não-pessoa se dá em função da determinação de pessoa e somente existe e se caracteriza por oposição. Sendo assim, eu/tu são parceiros alternados e protagonistas. A categoria de pessoa é um indicador de subjetividade, tornando-se a propriedade fundamental da linguagem. Eu é considerada a pessoa subjetiva, tu é a pessoa não-subjetiva, ele é a não-pessoa, reforça Benveniste (2005). “É preciso ter no espírito que a ‘terceira pessoa’ é a forma do paradigma verbal (ou pronominal) que não remete a nenhuma pessoa, porque se refere a um objeto colocado fora da alocução”, concebe Benveniste (2005, p. 292). Então, a enunciação é um ato individual de utilização da língua e quem faz isso é denominado pessoa. Benveniste (2005) ressalta que existem os indicadores de subjetividade, definidos a partir da relação com a instância de discurso no qual são produzidos. Os verbos, os pronomes e os advérbios se organizam em indicadores de pessoa, de tempo e de espaço. Benveniste (2005) contempla que não só o eu/tu, como também o ele, estão na relação semântica, ou seja, produzem sentido. A não-pessoa (ele) é o elemento constitutivo da relação interpessoal.

4. ANÁLISE E INTERAÇÃO COM O CORPUS Primeiramente, aborda-se o corpus de análise dessa pesquisa, o conto “Para que ninguém a quisesse”, escrito por Colasanti (1986), e apresentado no livro Contos de Amor Rasgados, a terceira obra de minificção da autora. O corpus de análise trata-se de uma narração, ponto de vista que se confirma pelas características de linguagem e de vocabulário, assinalando ainda a sucessão de acontecimentos com os dois personagens do drama: o marido autoritário e a mulher submissa. Essa realidade aproxima a história do alocutário (tu), que neste caso é o leitor do conto, característica fundamental desse gênero que aborda temas ligados ao cotidiano. Com essa percepção, ressalta-se ainda que a linguagem está intimamente ligada ao homem, de maneira que não pode ser separada, por nenhum momento ou motivo. De acordo com Reis (2001), o texto narrativo apresenta três aspectos essenciais que são confirmados nessa pesquisa. No início, com a manifestação da exteriorização do ciúme do marido, sendo contado pelo narrador. Em seguida, ocasionando estranhamento pelo comportamento inadequado dele em relação à mulher. Por fim, a sucessão de atitudes condenativas e repreensivas do marido, em relação à sua companheira, desenrolando-se em fatos consecutivos e exagerados. Seguindo o pensamento de Moisés (2007), nesse corpus há uma personagem de ficção feminina e outra masculina. A mulher apresenta características de aspecto dinâmico, levando-se em consideração as mudanças que ocorrem com a sua postura, performance durante a história. Já o homem,

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tem saliente as características de ser um personagem estático, assumindo o mesmo papel desde o início, carregando a esposa de subordinação e realizando as suas vontades que são motivadas pelo ciúme. Ainda, conforme Moisés (2007), existem as personagens planas e redondas, ambas podem ser identificadas no conto em estudo. A personagem plana é observada na esfera masculina que persiste em repetir o erro, proibir e mandar na mulher. A personagem redonda é circunstância comprovada na figura feminina, que inicialmente se arrumava e depois passa a ceder aos caprichos do marido, mostrando-se completamente dominada por ele. O narrador é do tipo onisciente, aquele capaz de contar a história como se estivesse dentro da cabeça dos personagens, e o narratário é o leitor, que a partir de suas habilidades epistemológicas vai compreender os fatos. A análise do corpus mostra que persiste a unidade de ação, de espaço e de tempo, conforme assinala Moisés (2004). A unidade de ação aponta a objetividade existente, com uma intenção focada, sem deter-se a fatos de cunho secundário, somente destaca-se o ciúme do marido e a subordinação da mulher. A unidade de espaço, refere-se ao lugar físico que ocorre o ato, nesse caso, predominantemente na casa do casal. A unidade de tempo consiste no período em que transcorre, podem ser horas ou dias, mas com a característica fundamental de ser um tempo curto, aspecto que é indeterminado, mas que pela história parece desenrolar-se em poucos dias. As marcas da subjetividade acontecem em nível linguístico e textual, com a participação dos dois personagens, o casal protagonista da história. Mesmo sendo um texto curto é marcado por verbos que denotam a semântica abordada. A manifestação do eu é que prevalece e só acontece em razão do tu, conforme Benveniste (2005), o que confere o status de pessoa. Nesse sentido, é interessante como se define esse status no corpus de análise, numa relação de embate, obviamente, de oposição entre os personagens, marido e mulher. A partir das marcas da categoria de pessoa, pode-se constatar que o diálogo não tenha sido recíproco, ressaltando que ocorre a interação entre as partes e que só existe um em função do outro. Os enunciados de “Para que ninguém a quisesse”, demonstram a presença de um locutor (eu), um alocutário (tu) e uma não-pessoa (ele), que trata-se de alguém de quem se fala, mas que não corresponde a mesma instância de eu/tu. Nessa perspectiva, o homem autoritário pode ser interpretado como o eu, e o leitor como o tu. Entretanto, o ele é inferiorizado no sistema da língua, não sendo um pronome. Esse aspecto pode ser comprovado no corpus de análise, na presença da mulher que aparece hostilizada pela situação. A personagem feminina do conto é a não-pessoa, pelo motivo de ser submissa ao marido. A sua postura parece ser uma forma de resistência, o marido não aceita o seu estereótipo e escolhe outro destino para ela, tentando controlar suas atitudes. Sobre outra ótica, ao aceitar permanecer em casa, cedendo às vontades do marido, ela assume o lugar de obediência e de não-pessoa. Quando resolve não aceitar os presentes do marido, a mulher demonstra que não deseja passar pela situação de opressão novamente, prefere desprezar os mimos e não assumir o papel de altiva. Fato que pode ser observado nas passagens: “Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela”; “Mas do desejo inflamado que tivera  por ela”; “Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar”. A forte presença dos verbos revela o autoritarismo do marido e a submissão da mulher, as situações mostram que ele desencadeia o pensamento machista e opõe-se a reação silenciosa da mulher. Os verbos denotam a força semântica empregada nesse conto: mandou que descesse; parasse de se pintar; foi obrigado a exigir; eliminasse; jogasse fora; tirou; pegou; tosquiou-lhe; foi deixando de ocupar-se dela, permitindo e tivera. Conforme Benveniste (2005), esses verbos desempenham o papel de indicadores de subjetividade, acentuando que o verbo é a palavra em essência que nos dá o aspecto temporal.

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A partir das escolhas verbais é possível analisar a construção do sentido, tais verbos compreendem do autoritarismo de um lado, e a submissão do outro, abrangendo suas causas e consequências. Torna-se evidente que não são somente as falas, mas também as ações que demonstram a personalidade incisiva do marido. Ressaltam-se alguns operadores argumentativos que marcam a intenção da autora, assinalando a presença da subjetividade: por que; apesar disso; ainda assim; agora; porém; mas; então. A função do pronome é referir-se ao próprio discurso. Esses indícios mostram a força argumentativa do narrador. Referindo-se ao conto como material de análise, seguem algumas passagens que foram selecionadas. O título do conto já incita uma perspectiva teórica: “Para que ninguém a quisesse”, mostra que na realidade a mulher não podia desenvolver seu lado social e psicológico, nem manter relações com o mundo exterior para não chamar a atenção, principalmente, para que os homens não admirassem a sua beleza. O marido tenta impedir os sinais de feminilidade, sensualidade e personalidade da mulher, ressaltando a figura machista como um aspecto cultural: “Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar”. No conto a mulher assume o papel do subjugado. A submissão da mulher e a exigência do marido é nitidamente saliente nesse enredo: “Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos”. A obrigação refere-se ao poder que o marido sentia em relação à mulher, querendo dominá-la e evitar possíveis olhares, atitude motivada pelo ciúme desmedido, atrelado ao medo de perdê-la. É possível detectar que o marido não se deu conta de que as atitudes motivaram também o seu desinteresse: “Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera  por ela”, mostrando que nem ele sentia mais desejo, então, resolve presenteá-la tentando reverter à situação, mas já era tarde demais. “Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar”. Esse trecho mostra que a mulher não tinha vontade de se arrumar e ser vaidosa, nem mesmo sentia necessidade de ser bela, acomodando-se com a nova rotina de usar vestido de chita e ignorar as pinturas. Ainda, assinala que a personagem feminina chama a atenção pelo apelo dramático e psicológico que provoca no leitor. Evitar a exposição dos atributos da beleza física foi uma das tentativas do marido, isso pode ser comprovado na passagem: “Pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos”. A expressão tosquiou-lhe traz a ideia de animalização e denota um aspecto de inferiorização, ocasionando repúdio ao leitor. O marido destrói o belo, representando uma figura imperial. “Uma fina saudade”, traz à tona a intenção do marido em ter a sua mulher como antes, porque percebe que não sente mais atração pelo que ela se tornou. A mulher não busca mais a vaidade e despreza o cuidado com sua aparência, escolhe permanecer em casa com outra postura: “Enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda”. A rosa, vista como símbolo de feminilidade, apaga-se sobre o móvel como a personagem. A intenção da figura masculina era de desbotar, anular a beleza da mulher para que os outros homens não a apreciassem, tornando-se praticamente invisível e, mesmo assim, passiva. A sucessão de presentes demonstra a tentativa do marido, o batom para maquiar-se, o tecido para enaltecer seu corpo: “Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda”. A mulher não aceita os presentes, esses objetos não fazem mais parte do seu contexto, ela prefere usar o seu vestido comum. A situação fez esquecer sua vivacidade, ela assume o papel de um objeto da casa, de uso exclusivo do marido: “Mimetizada com os móveis e as sombras”. É possível perceber que ocorre o desinteresse da mulher, rompendo com a estereotipização, somente atendo-se as atividades de casa, domiciliares, não sendo tratada como um ser, mas como uma propriedade. O final surpreendente é inevitável para esse gênero, explica Moisés (2004), fato que vislumbra-se na história desse casal, tendo como auge a mudança de postura e de atitude da mulher, admitindo um papel de submissão frente ao marido que se incomoda com suas roupas e maquiagens, ressaltando que a pintura tem o poder de realçar a beleza e isso não lhe chama mais a atenção. Para

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encerrar, a mulher diz não ao marido do seu jeito, surpreende e assume uma postura ativa, mesmo que seja de forma silenciosa, ela rejeita e ignora o poder autoritário do marido.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Faz-se oportuno mencionar que as considerações finais são explanadas não com a intenção de esgotar essa temática, mas para concluir o presente trabalho. Assim, ressalta-se que de um lado, o conto pode ser percebido numa atmosfera de ficção ou de realidade, do outro lado, a linguagem é vista como a condição para a comunicação entre os seres humanos, sendo imprescindível para a vida. Neste sentido, é possível estabelecer uma relação entre literatura, linguagem, homem e mundo, circunstância que ocorre impreterivelmente, instantaneamente e que pode ser comprovada nesse estudo. Reiterando, o primeiro fundamento da subjetividade é a representatividade da categoria de pessoa. Então, o eu pode ser definido como o homem autoritário que foi apresentado no corpus, e o tu como o leitor dessa história. Ao abordar as marcas de pessoa (eu/tu) e de não-pessoa (ele), recortadas no corpus, denota-se um cenário de averiguação, tornando-se nítido perceber que a personagem feminina representa a não-pessoa, pelo fato de ser excluída da instância de discurso, linguisticamente, e por ser refém da submissão do marido. Por fim, evidencia-se que a comunicação humana ocorre sempre entre eu/tu, onde o tu pode estar em âmbito imaginário ou real. Os pronomes e os verbos também revelam a subjetividade na linguagem, não podendo ser pensados como uma classe unitária, ignorando a noção de pessoalidade. Esse recorte teórico oferece subsídios de avaliação singular, explicando que as marcas de subjetividade podem influenciar na maneira de interpretar especificamente um corpus, mas também podem ser aplicadas em relação ao mundo, a sociedade, enfim, as pessoas.

REFERÊNCIAS BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: Problemas de linguística geral I. São Paulo: Pontes Editores, 2005, p. 284-293. COLASANTI. Marina. Para que ninguém a quisesse. In: Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 111-112. FLORES, Valdir do Nascimento. Em Da subjetividade na linguagem. In: Introdução à teoria enunciativa de Benveniste. São Paulo: Parábola, 2013, p. 97-104. MOISÉS, Massaud. A criação literária: introdução à problemática da literatura. São Paulo: Melhoramentos, 1973. ______. Conto. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004, p. 86-90. ______. Análise de texto em prosa. In: A análise literária. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 112-174. REIS, Carlos. A narrativa literária. In: O conhecimento da literatura. Coimbra: Almedina, 2001, p. 343377.

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ANEXO A - PARA QUE NINGUÉM A QUISESSE Porque os homens olhavam demais para a sua mulher, mandou que descesse a bainha dos vestidos e parasse de se pintar. Apesar disso, sua beleza chamava a atenção, e ele foi obrigado a exigir que eliminasse os decotes, jogasse fora os sapatos de saltos altos. Dos armários tirou as roupas de seda, das gavetas tirou todas as jóias. E vendo que, ainda assim, um ou outro olhar viril se acendia à passagem dela, pegou a tesoura e tosquiou-lhe os longos cabelos. Agora podia viver descansado. Ninguém a olhava duas vezes, homem nenhum se interessava por ela. Esquiva como um gato, não mais atravessava praças. E evitava sair. Tão esquiva se fez, que ele foi deixando de ocupar-se dela, permitindo que fluísse pelos cantos, mimetizada com os móveis e as sombras. Uma fina saudade, porém, começou a alinhavar-se em seus dias. Não saudade da mulher. Mas do desejo inflamado que tivera  por ela. Então lhe trouxe um batom. No outro dia um corte de seda. À noite tirou do bolso uma rosa de cetim para enfeitar-lhe o que restava dos cabelos. Mas ela tinha desaprendido a gostar dessas coisas, nem pensava mais em lhe agradar. Largou o tecido numa gaveta, esqueceu o batom. E continuou andando pela casa de vestido de chita, enquanto a rosa desbotava sobre a cômoda.

O CONTO FANTÁSTICO NA FORMAÇÃO DO JOVEM LEITOR Vanda Aparecida Fávero Pino* (UPF) Gilmar de Assis Euzébio** (UPF) Luciana Maria Crestani*** (UPF)

A importância de desenvolver ações de fomento à leitura a partir da realidade e dos gostos do jovem1 aluno tornou-se pauta das principais discussões educacionais. As exigências desta formação do novo tipo de leitor emergem da nova realidade social, em que o aluno passa a ser entendido como ser fundamental no processo de construção da aprendizagem. São atitudes que partem do princípio de que o jovem não é uma pessoa totalmente desprovida de conhecimento e que o gosto literário pode ser “construído” junto a este ator do processo educacional. Sendo assim, para que aconteça a formação do leitor jovem, é fundamental que saibamos de suas motivações e desejos, fato relevante no processo de fomento à leitura. É nesse sentido que enfocamos o tema do conto fantástico na escola relacionado à formação do leitor. Por meio do trabalho com esse gênero, e outros, nos espaços educacionais, é possível instigar o jovem estudante a ser um leitor. Além disso, há um incremento do número de leitores de contos fantásticos relacionado às contribuições da internet: inúmeros jovens internautas acompanham e participam da construção de narrativas fantásticas específicas desde meio eletrônico. É possível, assim, “linkar” este universo virtual aos textos dos livros trabalhados na escola. Não se pode, também, deixar de considerar que dar cada vez mais atenção aos contos que tratam de temáticas fantásticas na escola, onde a fantasia é a “porta de entrada” para discussões pertinentes aos jovens, é oportunizar ao jovem uma leitura do mundo pela lente da imaginação. O objetivo deste trabalho é, então, refletir sobre como o conto fantástico, trabalhado no contexto educacional, pode contribuir para a formação do jovem leitor. Para tecer as reflexões, embasamos-nos nas concepções de Dominique Maingueneau (1996b, p. 34) obre os de tipos de leitor, principalmente sobre o leitor cooperativo; nos estudos de Teresa Colomer (2003 e 2007), sobre o perfil dos novos leitores e a abordagem das características da narrativa infantil e juvenil na escola; e nos estudos de Tzvetan Todorov (1975) sobre o gênero fantástico. No intuito de relacionar teoria e prática, procedemos à análise do conto Um destino para o fundador, do escritor Sérgio Faraco, observando no texto características do conto fantástico que instigam a leitura desse gênero. Também observamos como se dá a cooperação do leitor na construção dos sentidos do texto e o que pode ser explorado pelo professor como mediador nesse processo. Cabe salientar o conceito de conto empregado e defendido neste estudo. Massaud Moisés (2004) destaca que o conto prefere a concisão e a concentração de efeitos, e que o gênero possui um número reduzido de personagens em um espaço limitado de ação. Também enfatiza que o contista possui a capacidade de sintetizar em “escassas linhas” os acontecimentos, criando uma história densa e fechada. O conto Um destino para o fundador pode ser classificado como fantástico por causar no leitor um estranhamento, uma “hesitação” experimentado juntamente com a personagem diante de uma situação “inexplicável” (TODOROV, 1975).

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Licenciada em Letras/Espanhol e suas respectivas Literaturas pela UPF; [email protected]. ** Mestrando do programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo. Licenciado em Letras Português, Inglês e respectivas Literaturas pela UPF; [email protected]. *** Prof. Drª. do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo; [email protected]. 1 Os estudos de Teresa Colomer tratam da literatura para crianças e jovens. Este artigo empregará apenas o termo jovem, mas tem noção de que a autora amplia sua reflexão e abarca um público maior. *

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1. NOVAS NARRATIVAS PARA NOVOS LEITORES A preocupação com a formação de leitores literários é destaque nas escolas e meios acadêmicos. Dentre os principais nomes reconhecidos mundialmente, no diz respeito a esse assunto, está o da professora espanhola Teresa Colomer. A doutora em Ciência e Educação é especialista em literatura infantil e juvenil e desenvolve trabalhos de fomento à leitura pelo mundo todo, inclusive no Brasil. Evidentemente, muitos outros nomes de profissionais engajados neste trabalho riquíssimo de formação de leitores literários poderiam ser aqui destacados, mas Teresa Colomer (2007, p.9) nos abre as portas para discutir sobre o trânsito das novas gerações pelas inúmeras “possibilidades de compreensão do mundo”. Teresa Colomer, na obra Andar entre Livros: A leitura literária na escola (2007), deixa claro que seus escritos tratam de construir uma corrente, um unir-se em prol da consolidação da compreensão do “porquê” e do “como” fomentar a leitura, principalmente na escola. É a partir do planejamento dos trabalhos realizados na escola que se criam possibilidades de formação de um leitor que possa retirar dos livros algumas respostas para a sua vida e desfrutar dos prazeres proporcionados pela literatura. Mas para se chegar a esse leitor “ideal”, Colomer traça um caminho de organização escolar, de preparação por parte do professor e da visualização do aluno como um leitor em potencial. Cabem aqui, as indagações sobre a percepção do aluno por parte dos professores na escola hoje. Diante das inúmeras dificuldades que o professor enfrenta na sociedade atual, o aluno é muitas vezes visto como um grande responsável pelos problemas da escola e, também, como incapaz de aceitar novas propostas de trabalho dentro da sala de aula. Essas transformações no contexto escolar são tratadas por Colomer (2007, p. 21) a partir da realidade educacional espanhola, mas é evidente a similaridade com as problemáticas enfrentadas pelos educadores brasileiros, pois, assim como naquele país, também vivemos aqui a universalização da educação, o que representa à escola o trabalho com a diversidade. Receber alunos das classes sociais populares configura um planejamento da sociedade como um todo. Também deve-se destacar o acesso massivo às novas tecnologias e as diferentes formas de leitura que nesse processo vão surgindo. São essas novas tecnologias que despertam o interesse do público jovem, segundo análise de Colomer (2007). Apresentados alguns problemas contextuais, Colomer (2007, p.29) apresenta então a centralidade na “leitura das obras” como o ponto de partida do aprendizado, já que a “[...] educação literária serve para que as novas gerações incursionem no campo do debate permanente sobre cultura, na confrontação de como foram construídas e interpretadas as ideias e os valores que a configuram”. Ou seja, o texto literário é importante nesta construção educacional e social, e possui características que não devem ser deixadas apenas para estudos teóricos e separados do contexto, mas analisados e transpostos para os espaços educacionais. Essas características das narrativas infantis e juvenis são analisadas por Teresa Colomer (2003) em seu livro2 sobre a formação do leitor literário. A autora apresenta importantes pontos sobre as características da história e do discurso das narrativas juvenis atuais, tratando da modernização destas em função de um novo destinatário, fato que nos leva a também incursionar sobre os tipos de leitores para este “novo” texto e se o conto analisado neste artigo se enquadra nestas características. Colomer (2003), nessa obra, trata do processo de mudança da narrativa infantil e juvenil, destacando a variação das funções educativas e literárias. Também, fala do cenário narrativo; das personagens e a importância destas nas histórias; da estrutura da narrativa e das definições dos elementos do discurso3. Sobre isso Colomer (2003) explica que hoje os leitores Neste livro, Teresa Colomer realiza todo um estudo sobre a narrativa literária atual, recorrendo a teóricos da área e apresenta títulos de obras renomadas, que são analisadas pela autora. 3 Na análise do conto, retomam-se e explicitam-se alguns dos aspectos apontados por Colomer como característicos das narrativas modernas. 2

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estão integrados em uma sociedade alfabetizada e em contato constante com recursos audiovisuais, por isso as narrativas recebidas por esse público precisam descrever o seu mundo e os seus valores. Com essas mudanças, as narrativas dantes mais simples, agora aparecem com uma complexidade maior em seus elementos discursivos. As reflexões e análises feitas por Teresa Colomer servem para situar educadores e fomentadores do hábito da leitura no momento literário e educacional em que estão inseridos. Conhecer as características da narrativa atual permite-nos reconhecer nas obras suas potencialidades e confrontá-las entre si, prevendo o leitor deste texto.

2. O LEITOR COOPERATIVO No processo de transposição do fantástico para o real, a subjetividade do leitor é posta em destaque, já que dependem de sua interpretação os sentidos retirados do texto. Mesmo que, como escrito por Maingueneau (1996b, p.33), esse processo de “decifrar” os elementos constituintes do texto seja “instável”, o conhecimento e as estratégias de leitura de que o leitor dispõe possibilitam que ele percorra caminhos nem sempre imaginados pelo autor do texto, construindo seus próprios sentidos de leitura e apreensão do linguístico. Ainda assim, mesmo com esta capacidade interpretativa sendo intrínseca a todo o leitor, o desenvolvimento da capacidade de compreensão dos significados mais “profundos” do texto requer um trabalho de orientação pelos labirintos da escrita, pois esta construção de significados linguísticos e semânticos do texto requer a mediação, o fomento e o acesso à literatura. Estas reflexões sobre os diferentes tipos de leitores são oriundas das análises feitas por Dominique de Maingueneau na obra Pragmática para o discurso literário, no capítulo específico sobre A leitura como enunciação. Fundamental para o desenvolvimento deste artigo, a leitura vista sobre a óptica de uma enunciação requer necessariamente um coenunciador: o leitor. Maingueneau (1996b, p.34) entende o leitor como sendo “ora o público efetivo de um texto, ora o suporte de estratégias de decifração.” E para que um texto seja decifrado é necessária a cooperação do leitor, pois ele deve ser capaz de captar as informações deixadas pelo texto – um detetive à procura de pistas – para que construa uma significação, preencha e complete um discurso iniciado no processo de leitura. Na narrativa de Faraco, o processo de cooperação do leitor é necessário para a compreensão da riqueza de detalhes e significados que o texto possui. Quando o narrador causa a “estranheza” no leitor, ao situar a personagem em uma situação inesperada e aparentemente sem explicações “lógicas”, esse leitor é levado a restabelecer um significado a esse momento do texto. Esse acontecimento fantástico, característico desse gênero literário, presume que o leitor do texto não “se contente” – nas palavras de Maingueneau (1996, p. 41) – em descobrir apenas uma significação que estaria no texto, mas busque submergir no enredo intrigante criado pelo autor. Contudo, prever um leitor cooperativo em sala de aula implica também prever um educador “cooperativo”, que oriente o aluno leitor a dar as significações às estranhezas do texto, para que o educando não se “perca” ou desista no meio do caminho. Visualizar um leitor cooperativo para o conto Um destino para o fundador é perceber a situação de enunciação do texto e as necessidades interpretativas para construção de significados. São válidos os estudos de Micheletti (2002, p. 66) que, em suas reflexões no livro Leitura e construção do real, enfatiza que “o professor não é um narrador que relata diretamente os acontecimentos, mas um mediador desse relato.”

3. SOBRE O CONTO ESCOLHIDO E O AUTOR Um destino para o fundador destoa um pouco dos demais contos do escritor Sérgio Faraco na obra Contos completos (1995). Nesse conto, o autor trata de uma personagem sem nome, sem identidade própria; sabe-se apenas que é um homem, funcionário de uma empresa e que nela trabalha há

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muitos anos. Essa personagem vive na cidade grande, e pelas informações dadas pelo autor, cidade essa tipicamente vítima do progresso desregulado: suja, com cheiro de carvão, mofo, água parada, e outras características dadas ao lugar em que vive a personagem. Certo dia, a personagem, ao tomar o elevador, acaba em um lugar desconhecido por ele; se vê surpreso, pois por ser um funcionário antigo na grande empresa, tem a certeza de conhecer todos os espaços do edifício. Os acontecimentos vão ficando cada vez mais instigantes e surpreendentes no decorrer da narrativa, já que a personagem resiste em aceitar desconhecer o local e encontrar-se em um ambiente totalmente estranho. As horas se passam e o personagem não consegue mais encontrar a porta do elevador que o levara ao local. A angústia e o desespero apoderam-se sujeito. Sobre o escritor Sérgio Faraco, tomamos como base os comentários críticos de Ana Mariza Ribeiro Filipouski (2014). A ensaísta o aponta como um dos principais autores gaúchos do gênero. Ela apresenta três das principais temáticas dos escritos de Sergio Faraco: a vida rural; suas vivências na infância e adolescência; e a amargura dos homens e das mulheres do submundo urbano. O conto Um destino para o fundador melhor “enquadra-se” no terceiro eixo, pois retrata decepções das pessoas em relação as suas situações de vida. Não se trata de identificar o texto de Faraco – no caso deste estudo - como tendo específicas intenções de crítica social. A propósito, de acordo com Barthes (1999, p. 35), na literatura, tal intenção é até mesmo “irrisória”. A literatura não se enquadra como uma “arma” de combate à ideologia dominante, porque fogem ao domínio do escritor as muitas compreensões que dela emergem. Mas, ainda assim, é fonte de questionamento da sociedade. Assim, o conto Um Destino para o fundador não é apenas uma possibilidade de discussão de problemas do ser humano “moderno”, mas possibilita uma discussão dos sentidos possíveis que do conto emergem.

4. ANÁLISE DO CONTO É por meio da relação entre as características da narrativa atual e as considerações feitas sobre os tipos deste leitor que apresentar o conto Um destino para o fundador torna-se uma possibilidade de discutir a formação do jovem leitor por meio deste gênero na escola. Metodologicamente, o corpus proporciona uma análise qualitativa de elementos linguísticos e literários. A narrativa é pertencente ao gênero realismo fantástico, pois Faraco trata de uma situação da vida “real”, a relação entre o emprego e o homem e as consequências desta ligação, através da “lente” do fantástico. Todorov (1975) conceitua o fantástico justamente como sendo uma “hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, em face de um acontecimento aparentemente sobrenatural.” Nos estudos de Todorov (1975, p. 30), o fantástico é assim definido: “num mudo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides, nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar”. Assim como nos estudos de Todorov (1975), o fantástico em Um destino para o fundador realiza-se da mesma maneira: temos a personagem situada em um contexto real - uma cidade suja, em mais uma rotina de trabalho – mas o acontecimento é “incoerente”. O leitor surpreende-se com o acontecimento, pois, como na mesma passagem de Todorov, “o fantástico ocorre nesta incerteza [...]”. O teórico ainda prossegue afirmando que “O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural.”. No que às abordagens do conto, pode-se dizer que atualmente o jovem pode ser entendido, segundo os estudos de Maingueneau, como um público atestado para este gênero, e principalmente do conto fantástico. Curioso ao ler o mundo que o cerca, e tendo saído do período da infância (onde os temas da fantasia são mais fortemente direcionados e abordados) este jovem configura-se como presa aos labirintos do fantástico. E este texto literário, nesse sentido, é fundamental para persuadir o leitor. Pois, é linguisticamente que os efeitos e sentidos são construídos. Evidente, é fundamental o papel do mediador neste processo de apresentação do texto e seus elementos linguísticos ao jovem

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aluno, seja de responsabilidade do professor ou outra pessoa preparada e apaixonada pelas palavras. Mas é nesse conjunto, neste processo de mediação e apresentação das construções linguísticas do texto, de seus meandros e enlaces, que há a possibilidade de surgimento do leitor cooperativo na construção de sentidos perante a narrativa atual. Mesmo Um destino para o fundador abordando uma situação fantástica, fica a crítica ao cotidiano real, à rotina, ao desperdício da vida. Sérgio Faraco inicia sua história relatando a maneira como inúmeras pessoas iniciam seu dia-a-dia, os hábitos de cidadãos comuns e suas relações com a empresa. Logo no início do conto, a presença do místico já nos é apresentada. Ao utilizar-se da expressão “era um dia sombrio”, o narrador provoca o leitor e desperta para uma possível temática misteriosa, uma narrativa voltada ao suspense. Na sentença seguinte, somos reportados para o comum, o cotidiano, e até mesmo para certa tristeza do mundo “moderno”. Quando o narrador completa a explicação afirmando que “tão sombrio quanto o comum dos dias da grande cidade”, muda o tom da narrativa e segue descrevendo as características da cidade em que a personagem vive: “era um dia enfumaçado, com cheiro de carvão, mofo, água parada, uma tarde igual ao comum das tardes”. Em relação a esta denúncia social feita pela obra, Teresa Colomer (2003, p. 258) aponta como um estilo de crítica não muito presente na narrativa moderna, uma vez que os temas sociais são minimamente abordados na literatura atual. De relevância incontestável, às denúncias sobre “as formas de alienação e exploração geradas pela sociedade industrial moderna” são insignificantemente tratadas no texto literário, predominando a “ênfase em valores individuais”. Um destino para o fundador enquadra-se, então, no caráter temático de denúncia, pois critica a sociedade pós-industrial e suas mazelas escancaradas. Isso se dá não somente por meio das características do ambiente em que a personagem está inserida, mas pelos questionamentos do próprio “fundador” em relação a sua vida de empregado. A personagem é apenas mais um, alguém sem nome – “Velho empregado, integrante do grupo que a diretoria, carinhosamente, denominava Fundador” – e sem relevância: “Aquele passarão queria significar que a empresa estava sempre lá no alto, acima dos interesses rasteiros de cada um, até porque de lá, olharia pelos interesses de todos.”. E um fiel funcionário, convicto de seu papel: “Por trinta anos acreditara nessa ideia e não se arrependia” (FARACO, 1995 p. 177). Mas, apesar de sentir-se “parte” da empresa e reconhecido empregado, tratado como sendo “fundador”, o personagem sente-se imensamente surpreso com o fato de, ao tomar o elevador, acabar em um terraço totalmente desconhecido. Inicia-se neste ponto do texto a descrição do ambiente em que se encontra a personagem, e a causa de sua surpresa. Colomer (2003, p. 199) trata da importância da concepção do cenário na construção da narrativa moderna. A autora aponta que o cenário narrativo trata “das coordenadas de espaço e tempo nas quais transcorre a maior parte da ação” e conclui que na narrativa moderna o cenário espacial e temporal urbano é predominante. No conto de Sérgio Faraco, o cenário é o da vida urbana. No conto, o narrador faz um convite ao leitor a “esmiuçar” os detalhas do local, insere-o no ambiente do conto descrevendo não somente o terraço em que se encontra a personagem, mas o cenário urbanístico a sua volta. A paisagem contemplada pela personagem é cheia de objetos e “coisas” cinzas, sujas e perturbadoras. A descrição dos cenários configura-se no despertar nos leitores o sentimento vivido e presenciado pelos personagens, “conduzi-los para que experimentem um êxtase” (MAINGUENEAU, 1996b, p. 39). O conto Um destino para o fundador também tem esse “potencial” linguístico para atrair o leitor jovem, causar nele a estranheza e provocá-lo. Quando a personagem se encontra perdida, desorientada em um cenário grotesco, o leitor é convidado a imaginar-se em tal cena, de angústia e pavor. Ainda, o “problema” da personagem, em estar num local desconhecido e não conseguir sair dele acontece gradualmente, pois a personagem, que no início da história está em sua empresa, entra no elevador e acaba parando num terraço desconhecido por ela. Esse percurso da personagem provoca o leitor a “elaborar sua significação” e não em se contentar “em descobrir uma significação que estaria nele” (MAINGUENEAU, 1996b, p. 41). Esse processo de descoberta dos acontecimentos por parte da

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personagem também é o percurso feito pelo leitor. Entra em foco o papel do leitor cooperativo que, segundo Maingueneau (1996b, p. 39), precisa não só (re)construir, como atribuir sentidos ao texto. Isso remete, também, ao papel do professor colaborador, que pode auxiliar na percepção das “pistas” e “armadilhas” deixadas na narrativa. Em relação a esta abordagem fantástica do conto, Colomer (2003) demonstra que a fantasia é predominante já nos primeiros anos de vida. Colomer (2003, p. 221) salienta que “o predomínio da fantasia não se reduz, porém, a uma simples alternância na evolução literária, mas constitui um bom exemplo das tensões provocadas pela conexão entre as funções literárias e educativas das obras.”. E prossegue em favor do gênero, afirmando que este “reivindica a imaginação como um valor pessoal e coerente com as novas propostas educacionais.”. Ainda em relação aos gêneros literários, Colomer (2003) examina a evolução dos gêneros segundo a idade do destinatário. Ela percorre os gostos literários dos cinco aos quinze anos de idade, destacando as predominâncias de cada etapa. A partir desse exame de Colomer, a faixa de idade adequada para a leitura dos contos fantásticos, como o ora em foco, é dos doze aos quinze anos. Sobre as obras de fantasia moderna, Colomer (2003, p. 236) constata que: “forças sobrenaturais e ficção científica tendem a inter-relacionar suas características em um denominador comum, que consiste na criação de um clima de inquietude e ambiguidade entre a realidade e fantasia com o qual o protagonista deverá confrontar-se.” Isso leva a considerar elementos importantes do conto analisado: existe na história de Faraco esta ambiguidade entre realidade e fantasia; a personagem protagonista está em um prédio da empresa em que trabalha e depara-se com uma situação sobrenatural. O protagonista do conto, entra em um elevador e vai parar no terraço. Este local em que o Fundador, assim reconhecido pelos outros funcionários da empresa, encontra-se é totalmente desconhecido por ele. Mas não é nesse acontecimento apenas que causa na personagem um “desconforto” diante da “estranha” situação. O que mais a intriga é que, depois de observar o desconhecido local em que se encontra, tenta reencontrar a porta do elevador da empresa e não consegue achá-la, o que gera na personagem e no leitor uma “hesitação” em relação a este fato na narrativa. Todorov (1975, p. 37) considera a hesitação do leitor como a “primeira condição do fantástico”. Outro elemento da narrativa importante para a leitura da história diz respeito ao título do conto. O leitor tem a expectativa antecipada em descobrir o destino de uma personagem que é intitulada como sendo Fundador. Mas a provocação vai além de se descobrir como terminará esta personagem principal, qual será seu destino. O que o leitor imagina com o título é que a narrativa tratará de alguém que fundou alguma “coisa”, ou seja, um personagem importante na história em um contexto que deve considerá-lo importante. Maingueneau (1996b, p. 52) escreve que o título de um texto pode “[...] restringir consideravelmente o percurso de leitura.” Mas que pode ser “provocativo” e “brincar” com as expectativas do leitor. É o que acontece com Um destino para o fundador, pois o texto irá mostrar que o fundador não possui nem um nome na história, o que pode levar a uma interpretação de alguém sem reconhecimento na empresa em que trabalha, e que, na verdade, o destino não é dado como certo: o fundador chega ao fim de sua jornada narrativa inerte em relação aos acontecimentos e abalado psicologicamente pelos fatos e pelas constatações que ele faz sobre sua vida. Esta narrativa possibilita uma relação entre contexto narrativo e contexto social do leitor. O conto Um destino para o fundador também apresenta traços de uma história que configura perdas, angústias, desilusões, amor e realidade (de maneira concisa e provocante). O personagem principal representa muitos sujeitos da vida real: retrata a vida normal de inúmeras pessoas que passam anos dedicando boa parte de sua história a prestar serviços a uma empresa e, ao final, não são reconhecidas.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo propiciou uma breve discussão sobre como o trabalho com o conto fantástico pode contribuir no processo de formação dos jovens leitores. A partir da análise do conto Um destino para o fundador, apontamos algumas das características desse tipo de narrativa que atraem os leitores e podem ser trabalhadas/exploradas na escola. Também destacamos o papel do leitor cooperativo na tecitura dos sentidos e do professor como medidor desse processo. No entanto, as contribuições dos trabalhos desenvolvidos na escola e nos contextos educacionais a partir da leitura de contos não são a novidade defendida neste estudo. O que se salienta é o olhar dado ao texto narrativo fantástico e as possibilidades de se chegar, por meio dele, ao mundo real do aluno: angústias, frustrações, desilusões e outros sentimentos e percepções próprios da realidade e da fase de vida do jovem. Considerar o educando como principal ator envolvido neste processo é o que torna importante o olhar dado a este gênero tão envolvente e prestigiado entre a “garotada”. Sendo fonte de conhecimento acerca das pessoas e da sociedade em que vivem, a literatura propicia uma releitura e reconstrução de fatos. E não somente isso, a leitura literária é mecanismo de ação prazeroso que o educador possui: ler é mais do que uma necessidade, é uma grande fonte de prazer.

REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 1999. COLOMER, Teresa. A Formação do Leitor Literário: Narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003. _____. Andar entre Livros. São Paulo: Global, 2007. FARACO, Sérgio. Contos Completos. Porto Alegre: L&PM, 1995. FILIPOUSKI, Ana Mariza Ribeiro. Identidade e construção do imaginário regional em dançar tango em porto alegre. Porto Alegre, set. 2014. Disponível em: Acessado em: 24 set. 2014. MICHELETTI, Guaraciba. Leitura e Construção do Real: o lugar da poesia e da ficção. São Paulo: Cortez, 2002. MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996a. ______. Pragmática para o discurso literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996b. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004. TODOROV, Tzvetan. Introdução à à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975.

PARTE 3 MEDIAÇÃO DE LEITURA: PRÁTICAS SOCIAIS E CULTURAIS

A FORMAÇÃO DE LEITORES E OS GÊNEROS TEXTUAIS: PRÁTICAS DISCURSIVAS Adriane Ester Hoffmann* (URI/FW) Marinês Ulbriki Costa** (URI/FW)

REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS O presente texto tem a pretensão de discutir questões pertinentes acerca de gêneros textuais atrelados à análise global de textos. Sendo assim, inicialmente as reflexões estão centradas no viés teórico apontado por Mikhail Bakhtin (2003) e Luiz Antônio Marcuschi (2008). As contribuições sobre o estudo têm provocado o interesse de muitos profissionais da área de linguagem e pesquisadores que procuram inserir em seu fazer pedagógico essas práticas de linguagem, visando a aprimorar e redimensionar o processo de compreensão leitora e de produção textual. A proposta apresentada parte da perspectiva sócio-histórica e dialógica de Bakhtin (2003), dialogando com outros estudos da linguagem e do ensino de língua em que se privilegia o texto, sua constituição e materialidade. Ainda na perspectiva de Bakhtin (2003), o texto se define como objeto de significação, produto da criação ideológica do que estiver subentendido, ou seja, o texto não existe fora da sociedade, mas só existe nela e não pode ser reduzido à materialidade linguística ou dissolvido na subjetividade daquele que o produz ou interpreta, define-se pelo diálogo entre os interlocutores e pelo diálogo com outros textos e é objeto único, irreproduzível, não repetível. As situações de ensino e de aprendizagem da língua devem considerar o texto como unidade básica do ensino, privilegiando a diversidade de textos e gêneros que circulam socialmente, levando em conta suas características específicas. Conforme preconizam os PCNs (1998) produzir linguagem significa produzir discursos: dizer alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, em um determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução. Isso significa que algumas escolhas feitas ao produzir um discurso não são aleatórias – ainda que possam ser inconscientes -, mas decorrentes das condições em que o discurso é realizado. Isso tudo determina a escolha dos gêneros no qual o discurso se realiza, dos procedimentos de estruturação e da seleção dos recursos linguísticos. O discurso, quando produzido, manifesta-se linguisticamente por meio de textos. Para efetivar um ensino centrado nos gêneros textuais, focamos nosso olhar para a análise de textos em seu sentido global. Irandé Antunes (2010) destaca questões relativas ao universo de referência, à unidade semântica, à progressão do tema, ao propósito comunicativo, ao esquema de composição, à relevância informativa e às relações com outros textos. Assim, apresentamos uma sugestão de análise de uma charge e de um artigo de opinião, destacando esses aspectos. Pretendemos demonstrar uma possibilidade de subsídio que o professor pode ter para efetivar a formação de leitores em sua sala de aula.

Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus Frederico Westphalen. [email protected] Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus Frederico Westphalen. [email protected]

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1. GÊNEROS TEXTUAIS: CONCEITUAÇÃO E ESPECIFICIDADES Bakhtin (2003: 261) afirma que toda atividade humana está ligada ao uso da linguagem: “compreende-se perfeitamente que o caráter e as formas desse uso sejam tão multiformes quanto os campos da atividade humana”. Acrescenta, ainda, que o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados, que podem ser orais e escritos, concretos e únicos, ditos pelas pessoas. Para o autor (Bakhtin, 2003: 261) “esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, mas, acima de tudo, por sua construção composicional”. Tais elementos estão unidos no todo do enunciado e são determinados por um campo de comunicação específico. Assim, o autor conceitua gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados. E complementa: a riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um determinado campo (Bakhtin, 2003:262)

Para o autor (Bakhtin, 2003: 265), a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos, que a realizam. É igualmente através dos enunciados concretos que a vida entra na língua. Os gêneros do discurso refletem de modo mais imediato, preciso e flexível as mudanças que transcorrem na vida social. Dessa forma, “os enunciados e seus tipos, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem”. (Bakhtin, 2003: 268) Bakhtin (2003: 269) considera importantíssimo o estudo da natureza dos enunciados e dos gêneros do discurso para exceder as concepções simplificadas da vida do discurso. Confirma, ainda, que: “o estudo do enunciado como unidade real da comunicação discursiva permitirá compreender de modo mais correto também a natureza das unidades da língua (enquanto sistema) – as palavras e orações”. O estudioso sustenta a ideia de que o discurso só se efetiva na forma de enunciações concretas de determinados falantes, que são os sujeitos do discurso. Sobre isso, Bakhtin (2003: 274) afirma: “o discurso sempre está fundido em forma de enunciado pertencente a um determinado sujeito do discurso, e fora dessa forma não pode existir”. Destaca que as enunciações diferem-se por seu volume, conteúdo e construção composicional, mas que elas possuem aspectos comuns como as unidades da comunicação discursiva. Afirma que existem limites precisos entre enunciados e que esses limites são de natureza substancial e de princípio. Bakhtin (2003: 282) consolida sua teoria discorrendo sobre as formas estáveis de gênero do enunciado. As pessoas falam através de determinados gêneros do discurso, pois esses enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo. Segundo Bakhtin (2003: 283), “as formas de gênero, nas quais moldamos nosso discurso, diferem substancialmente, é claro, das formas da língua no sentido da sua estabilidade e da sua coerção (normatividade) para o falante”. Afirma, ainda, que essas formas são bem mais flexíveis, plásticas e livres. O estudioso sustenta que quanto mais o falante dominar os gêneros mais liberdade ele tem de empregá-lo. Assim (Bakhtin, 2003: 289): todo enunciado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. É a posição ativa do falante nesse ou naquele campo do objeto e do sentido. Por isso, cada enunciado se caracteriza, antes de tudo, por um determinado conteúdo semântico-objetual. A escolha dos meios linguísticos e dos gêneros de discurso é determinada, antes de tudo, pelas tarefas (pela idéia) do sujeito do discurso (ou autor) centradas no objeto e no sentido. É o primeiro momento do enunciado que determina as suas peculiaridades estilístico-composicional.

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Dessa forma, Bakhtin (2003: 296) conclui que o enunciado, seu estilo e sua composição são determinados pelo elemento semântico-objetual e por seu elemento expressivo, ou seja, pela relação valorativa com esse objeto. O autor Luiz Antônio Marcuschi (2002: 19) afirma que já está consolidada a ideia de que os gêneros textuais são fenômenos históricos e que eles contribuem para “ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. São entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa”. No entanto, declara que apesar dos gêneros textuais possuírem alto poder preditivo e interpretativo das ações dos homens, em contexto discursivo qualquer, eles não são estruturas estanques e enrijecedoras da ação criativa. O estudioso caracteriza os gêneros “como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados a necessidades e atividades sócio-culturais, bem como na relação com inovações tecnológicas”. (Marcuschi, 2002: 19) Dessa forma, os gêneros textuais surgem, situam-se e integram-se nas culturas em que se desenvolvem. Caracterizam-se, então, muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades lingüísticas e estruturais. São de difícil definição formal, devendo ser contemplados em seus usos e condicionamentos sócio-pragmáticos caracterizados como práticas sócio-discursivas. (Marcuschi, 2002: 20)

Assim, partindo do pressuposto de que é impossível se comunicar verbalmente a não ser por algum gênero, Marcuschi (2002: 22), retomando as concepções bakhtinianas, afirma que a língua é concebida em seus aspectos discursivos e enunciativos e não em seus aspectos formais. A partir dessa concepção, adotada por Bakhtin e seguida por Marcuschi, esse acredita em uma noção de língua como atividade social, histórica e cognitiva. Essa postura teórica insere-se “no quadro da hipótese sócio-interativa da língua. É neste contexto que os gêneros textuais se constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo”. (Marcuschi, 2002: 22) Nesse contexto, é importante que se diferenciem gêneros e tipos textuais para o trabalho de produção e de compreensão textuais seja efetivado. Marcuschi (2002: 22) define tipos textuais como “uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas)”. O autor afirma que os tipos textuais abrangem apenas algumas categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição e injunção. Já para a noção de gêneros textuais, o autor conceitua como “textos marterializados que apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica”. (Marcuschi, 2002: 23) Marcuschi (2008), ao mencionar o domínio discursivo, afirma que, no sentido bakhtiniano, constitui-se muito mais uma esfera da atividade humana do que um princípio de classificação de textos e indica instâncias discursivas (por exemplo: discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso). Não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários deles, já que os gêneros são institucionalmente marcados. Constituem práticas discursivas nas quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes, lhe são próprios ou específicos como rotinas comunicativas institucionalizadas e instauradoras de relações de poder. Ainda, nas palavras de Marcuschi (2008), as definições elencadas de gêneros, tipos e domínios discursivos são muito mais operacionais do que formais e seguem a posição bakhtiniana. Assim, para a noção de tipo, predomina a identificação de sequências linguísticas como norteadoras; para a noção de gênero textual, predominam os critérios de padrões comunicativos, ações, propósitos e

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inserção sócio-histórica. No caso dos domínios discursivos, não lidamos propriamente com textos e sim com formações históricas e sociais que originam os discursos. Eles ainda não se acham bem definidos e oferecem alguma resistência, mas seguramente, sua definição deveria ser a base de critérios etnográficos, antropológicos e sociológicos e históricos. Assim, inserir os gêneros textuais na sala de aula significa uma oportunidade ímpar de lidar com a língua em seus mais diversos usos contextuais. Também, utilizá-los nas mais diversas instâncias sociais, legitimando as intenções a que se propõe. A partir do momento em que o professor priorizar sua proposta dialética com os gêneros textuais, esta precisa levar em conta o contexto comunicativo que a legitima. Conforme Marcuschi (2002), um gênero textual não é só a sua forma, mas é, sobretudo, sua função. E o autor acrescenta que essa função ajuda a determinar os elementos escolhidos para compor o texto, a fim de que ele seja eficaz, atingindo o público certo e provocando nele a reação desejada. Não aprendemos a produzir textos memorizando as características dos gêneros e tipos a que eles pertencem, mas relacionando o texto ao contexto comunicativo, envolvendo as condições de produção e recepção do texto. De acordo com Marcuschi (2002), “um gênero não é só a sua forma, mas é, sobretudo, sua função”. É a função que irá auxiliar o escritor a produzir seu texto e a atingir os objetivos a que se propõe. Marcuschi (2002) é categórico ao afirmar que os alunos são capazes de reconhecer, classificar e produzir diferentes textos, no entanto, eles não conseguem compreender a natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais), sintáticos (tempos verbais) e relações lógicas. É preciso dominar bem o gênero para empregá-lo livremente. De acordo com Bakhtin (2003: 285): Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade, refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação. Em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso.

Em sua célebre afirmação, Bakhtin (2003: 282) diz que “falamos apenas através de determinados gêneros do discurso. Isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo”. Assim, acrescenta o autor que as formas do gênero são bem mais flexíveis, plásticas e livres dos que as formas da língua. É relevante que os alunos percebam a finalidade do texto, bem como os recursos linguísticos usados e os efeitos de sentido que visa provocar. É preciso considerar as condições de produção e leitura do texto, as escolhas do autor para marcar sua intenção comunicativa. E isso só será possível se o professor auxiliar o aluno a construir o sentido, a perceber o propósito do texto, a decifrar as marcas linguísticas deixadas pelo autor para que a compreensão se efetive. O conhecimento de um determinado gênero é importante para que se possa empregá-lo livremente. Isso implica conhecimento e familiaridade com os diversos gêneros textuais que circulam na sociedade. Sobre isso, Bakhtin (2003: 285) afirma que: quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade, refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado, o nosso livre projeto de discurso.

O trabalho com os gêneros na escola contribui para o professor desafiar-se e auxiliar seus alunos a conseguir ser leitores fluentes e escritores de bons textos. Para que uma proposta pedagógica se efetive, tendo como base os gêneros textuais, é importante não esquecer o propósito comunicativo que ela faz parte. Ainda, toda introdução de um gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa a objetivos precisos de aprendizagens. Por cconta disso, para a autora Ingedore Villaça Koch (2002)

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há dois tipos de objetivos. O primeiro, objetiva levar o aluno a dominar o gênero. Para isso, precisa conhecê-lo ou apreciá-lo para compreendê-lo e produzi-lo. O segundo, objetiva colocar os alunos em situações de comunicação reais, verdadeiras, para que possam entender o lugar social em que o gênero se origina.

2. ANÁLISE DE TEXTOS: FUNDAMENTOS E PRÁTICAS Tendo presente as concepções teóricas que preconizam que o ensino de Língua Portuguesa deverá ser pautado pelo texto, sugerimos a seguir a análise de aspectos globais inerentes à compreensão dos textos, conforme Irandé Antunes (2010). Segundo a autora, a análise dos aspectos globais prevê a compreensão do texto como um todo, daquilo que o perpassa por inteiro e que o confere sentido às suas partes e aos seus segmentos constitutivos. Vários aspectos são enfatizados por Antunes (2010), a saber: Universo de referência: um texto tem como enquadramento cognitivo entidades, relações, propriedades de um mundo real ou de um mundo fictício. Já no seu título, encontramos sinalizações do universo em que a seleção dos sentidos deve ser empreendida. Como subpropriedade desse universo de referência, podemos procurar identificar, mais especificamente, o campo social-discursivo em que ele se insere, conforme ele se destine aos campos científico, didático, religiosos, político, artístico, de divulgação, de entretenimento, entre outros. À medida que ativarmos o universo de referência, reconhecemos outros elementos que definem a totalidade dos sentidos expressos. Unidade semântica: um texto se desenvolve em torno de um tema ou de um tópico ou, ainda, daquilo que, convencionalmente, se costuma chamar de ideia central. Essa unidade funciona com um fio, um eixo, que faz cada parte, cada segmento convergir para um centro. Essa unidade é que permite a elaboração de uma síntese, um resumo, o entendimento dos títulos e subtítulos, a localização dos subtópicos, o discernimento entre as ideias principais e as secundárias. É essa unidade temática que deixa o texto como um conjunto demarcado, com um terreno delimitado. Para essa unidade concorrem os diferentes recursos de coesão, os quais vão costurando o texto, promovendo a articulação entre suas várias partes, de maneira que se pode reconhecer uma sequência de fatos, de informações, de ideias, de argumentos e de comentários. Progressão do tema: a concentração do texto em determinado tema lhe dá unidade. Em seu percurso, esse tema vai se desenvolvendo, vai progredindo, o que implica admitir que, acerca do mesmo, algo diferente vai sendo acrescentado. Faz parte de nossa competência discursiva alimentar a expectativa de que nosso parceiro de interlocução organize o texto de modo articulado, em convergência. Assim, a progressão do tema precisa estar em articulação: os segmentos entre si e todos com o tema central. O resultado dessa progressão articulada é a integração das várias partes em um todo. Propósito comunicativo: nenhum texto acontece sem uma finalidade qualquer, sem que se pretenda cumprir com ele determinado objetivo. Entender um texto supõe a habilidade de identificar seu propósito. Os teóricos da linguagem advogam que toda a ação de linguagem é, essencialmente, argumentativa, no sentido de que há sempre, clara ou velada, uma pretensão de se conseguir a adesão do interlocutor e ganhar sua concordância. Esquemas de composição: os gêneros obedecem a padrões regulares de organização, em decorrência do tipo e, sobretudo, do gênero que materializam. A propósito dos tipos textuais, eles são definidos por categorias pertinentes ao sistema da língua e não às situações sociais e às pretensões retóricas que ocorrem no domínio da enunciação. Os gêneros são definidos por propriedades sociodiscursivas. Cumprem funções comunicativas específicas, realizam-

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-se com propósitos comunicativos determinados e facilmente reconhecíveis pela comunidade em que circulam. A competência comunicativa que se almeja pela análise de textos deve incidir sobre o conhecimento das particularidades dos tipos e dos gêneros textuais. Relevância informativa: a propriedade que contempla a relevância informativa do texto tem a ver com sua maior ou menor novidade, seja ela expressa pela forma ou pelo conteúdo. Assim, quanto mais um texto apresenta novidades, quanto mais foge a obviedades, mais ele é relevante. Em cada situação sociodiscursiva é que se pode avaliar sua relevância informativa. Um texto é um evento em que convergem, além de elementos linguísticos, outros de ordem cognitiva e social. Relação com outros textos: a intertextualidade diz respeito à ideia de que tudo o que se expressa pelas diferentes linguagens remete a toda a experiência humana da interação verbal e, portanto, pertence a uma grande corrente de discursos construídos ao longo do tempo. Assim, nenhum texto é absolutamente original, nem pertence por inteiro à autoria de quem disse ou escreveu. Nossa voz carrega necessariamente as vozes de todos que nos antecederam, tenhamos consciência disso ou não. Fazer da intertextualidade objeto de análise é, pois, exercitar a exploração da linguagem naquilo que ela tem de mais constitutivo e relevante, como expressão da inexorável condição humana de seus agentes.

A autora Irandé Antunes (2010) é categórica ao afirmar que a compreensão de todos esses pontos que constituem a dimensão global do texto, representa uma condição fundamental para que se empreenda a atividade de analisar a linguagem, em todas as suas manifestações concretas. Tudo no texto vai dar ao global. Lá é que todos os sentidos se justificam.

3. ANÁLISE (DIMENSÃO GLOBAL) DO GÊNERO CHARGE O termo charge tem origem francesa, charger, que significa carregar, exagerar e até mesmo atacar violentamente (SILVA, 2004). Esse gênero surgiu como uma forma de protesto a não liberdade de impressa e, no princípio, foi usada para criticar os abusos sofridos pela sociedade. Algumas das características mais marcantes desse gênero são a caricatura, a sátira e a ironia, elementos usados pelos chargistas para criticar os erros e problemas existentes na sociedade. Oliveira (2001) explica que, como qualquer discurso fundado na linha do humor, os textos de charge ganham mais força expressiva quando a sociedade enfrenta momentos de crise, pois é a partir de fatos e acontecimentos reais que o artista tece sua crítica em um texto aparentemente despretensioso. (OLIVEIRA, 2001, p. 265)

Esse gênero possui um caráter temporal, pois retrata fatos do dia, de acontecimentos que são notícia em um determinado momento da história. Segundo Bakhtin (2003), a charge é um gênero discursivo da esfera jornalística, organizado por elementos verbais e não verbais, tem por função provocar o humor e o riso, recursos para atrair o leitor para algo mais sério, revelado pela crítica que o chargista pretende veicular. Para Pessoa (2011), a charge possibilita estudos interdisciplinares, uma vez que o uso da charge em atividades interdisciplinares propicia ao docente possibilidades pedagógicas em diversas áreas do conhecimento. No texto verbal e não verbal, o docente pode orientar projetos em redação, análise de discurso, elementos gramaticais do texto, coesão, coerência, aprendizagem de novas expressões, palavras e relação de temas pertinentes à comunidade da escola, com ênfase aos temas transversais. (PESSOA, 2011, p. 26).

A charge é uma opção para explorar o interesse dos alunos e melhorar as práticas pedagógicas em sala de aula. É um gênero textual cujas contribuições podem ser muito bem aproveitadas pelos

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professores e alunos, notadamente no que diz respeito ao trabalho interpretativo de textos. Elas se tornam um instrumento importante, porque em sua constituição reúnem-se elementos que despertam, nos alunos, o gosto pela leitura. Tendo em vista que geralmente as charges são compostas por assuntos que fazem parte da vida dos alunos, há sem dúvida, a necessidade de reflexão mais profunda e crítica, que leve o aluno à inquietude, despertando o interesse pela pesquisa e pela investigação. É importante destacar que a charge, além do seu caráter humorístico, e, embora pareça ser um texto ingênuo e despretensioso, constitui uma ferramenta de conscientização, pois ao mesmo tempo em que diverte, informa, denuncia e critica, constituindo-se em um recurso discursivo e ideológico. (MOUCO, 2007, p. 31). Nessa perspectiva, a charge não se limita apenas a causar riso, mas objetiva criticar e discutir uma dada situação da atualidade. Para tanto, o leitor deverá estar sempre atualizado em relação aos acontecimentos sociais. Para a análise da charge, retirada do Jornal Zero Hora, do chargista Iotti, (Texto 1) utilizamos a teoria de Irandé Antunes (2010), que fundamenta a análise dos textos em aspectos globais: a) Universo de referência: - mundo real, faz parte do cotidiano; - insere-se no domínio do jornalismo; - campo social – discursivo do jornalismo: formação crítica do leitor; - destinatários previstos: comunidade escolar gaúcha. b) Unidade semântica (temática): - síntese/resumo: opinião do chargista sobre o resultado divulgado pelo IN EP sobre o índice de repetência no Ensino Médio no RS; - pistas: recorte do jornal – Hino rio-grandense – estudante uniformizado – pódio; - reconhecer o ponto de vista: o chargista representa o jornal, a Empresa apoia o Governo e o Estado está reestruturando o EM. c) Progressão do tema: - linguagem não-verbal (imagens); - linguagem verbal (traçado das letras – escrita); - contexto (data, chargista, fonte, sinais de pontuação, expressões faciais, cores, balões); - esses aspectos juntos formam a progressão articulada. d) Propósito comunicativo: - apresenta uma situação com o propósito de despertar no leitor a criticidade; - estratégias para se identificar o propósito: resultado do INEP, opinião do chargista/jornal retratada na escrita do Hino. e) Esquema de composição (gênero e tipos): - gênero charge; - tipos: expositivo/descritivo; argumentativo (opinativo). f) Relevância informativa (grau de novidade): - escrita do Hino; - recorte do jornal; - imagem do estudante; - a interação entre esses aspectos é a relevância, a imprevisibilidade. g) Relação com outros textos (intertextualidade): - notícia publicada, mostrando o alto índice de reprovação no EM /RS; - alusões: Hino; - remissões: competições esportivas; - essas são estratégias para efeito discursivo.

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4. ANÁLISE (DIMENSÃO GLOBAL) DO GÊNERO ARTIGO DE OPINIÃO O gênero artigo de opinião tem como característica ser monofônico, ou seja, comenta algo já dito, é de enunciação subjetiva, privilegia a subjetividade, expondo o ponto de vista do escritor. Nesse gênero predomina o tipo textual argumentativo, em que os fatos mais importantes ficam para o final para dar sustentação à opinião do escritor, que utiliza dêiticos e expõe seu ponto de vista no tempo presente do indicativo. No gênero textual artigo de opinião o escritor utiliza o discurso direto, não apresenta falas de outrem, submetendo o texto à parcialidade, ou seja, o autor é responsável pelo que escreve. Segundo BALTAR (2004, p.131) artigo de opinião é um: gênero opinativo, sempre assinado. Geralmente é escrito por colaboradores do jornal, com notório saber sobre o tema que escreve. Predomina o discurso teórico da ordem do expor, com sequências explicativas e argumentativas ou esquematização.

De acordo com Bonini (2005), quem lê o artigo de opinião é o leitor das classes A, B ou C; nos jornais destinados exclusivamente às classes populares não há artigos de opinião. Isso prova que a ideologia e os índices sociais de valor não estão presentes apenas no conteúdo, mas também no gênero. O artigo de opinião está direcionado para acontecimentos da atualidade. Ele apresenta análise e ponto de vista do articulista sobre um assunto ou acontecimento social. Na análise do artigo podem ser encontrados dois movimentos dialógicos: um é a assimilação, em que o escritor incorpora outras vozes para construir, reforçar seu ponto de vista; o outro é o distanciamento, em que o autor desqualifica as vozes às quais ele se opõe. Nesse último, existe um enquadramento necessário e eficaz, com o uso de negações, ironias, aspas e operadores argumentativos. Para a análise da charge, retirada do Jornal Zero Hora, do articulista Fernando Seffner (Texto 2), utilizamos, também, a teoria de Irandé Antunes (2010), que fundamenta a análise dos textos em aspectos globais: a) Universo de referência: - mundo real, cotidiano concreto; - insere-se no domínio do jornalismo; - campo social – discursivo do jornalismo: formador de opinião; - objetiva deixar os leitores mais críticos e conscientes; - exigência discursiva e suporte em que está publicado (Zero Hora): utilização da linguagem em nível formal; - destinatários previstos: leitores do ZH, letrados, críticos; - a condição dos possíveis leitores justifica a opção do autor por um tipo mais elaborado de abordagem do problema e da seleção vocabular mais especializada, formal. b)Unidade semântica (temática): - síntese/resumo: constata a crise em que se encontra o EM no RS e aponta as causas dessa crise; - pistas: relação título e subtítulos; - reconhecer o ponto de vista: argumentos e relação com a teoria do drama (Aristóteles). c) Progressão do tema: - título sugestivo; - abertura: apresenta ao leitor o fato que desencadeou a temática do texto; - sequência: divide o texto em três atos; - epílogo: encerra, convidando o leitor para refletir, tomar partido, posicionar-se.

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d) Propósito comunicativo: - defender um ponto de vista: julgamento baseado em dados da realidade, argumentos convincentes e conhecimento de causa. e) Esquema de composição (gênero e tipos): - gênero artigo de opinião; - tipos: argumentativo (opinativo): opinião sustentada em argumentos consistentes; - publicado no ZH: comentário opinativo; - plano composicional do texto; - exposição/resultados de pesquisa; - três argumentos; - conclusão: resposta ao problema apresentado – o articulista dialoga com o discurso potencial do seu leitor. f) Relevância informativa (grau de novidade): - elementos tipográficos da escrita; - referência à teoria de Aristóteles; - contraponto do título com o primeiro argumento; - argumentos temporais (passado e presente); - encerra o texto com questionamentos e sugere debate sobre o tema. g) Relação com outros textos (intertextualidade): - literatura; - notícia do resultado do INEP; - provas e resultados do ENEM; - notícia da morte de um estudante; - estatísticas governamentais; - decreto-lei da “enturmação”.

CONCLUSÕES Neste artigo, explicitamos a conceituação dos gêneros textuais, sua importância para o ensino da língua portuguesa e estratégias para sua exploração. Discutimos os conceitos de gêneros textuais e de tipos textuais com base nos estudos de Bakhtin, uma vez que os gêneros, segundo o autor, surgem, situam-se e integram-se integralmente nas culturas em que se desenvolvem. As reflexões teóricas apresentadas estão embasadas nas diretrizes propostas pelos PCNs. Esse documento afirma que é papel da escola organizar atividades curriculares relativas ao processo ensino aprendizagem da língua e da linguagem. Na atualidade, a exigência por níveis de leitura e de escrita diferenciados é cada vez mais uma demanda social. Isso faz com que se revisem os métodos de ensino para que o aluno possa ampliar sua competência discursiva na interlocução. Apresentamos uma sugestão de leitura do texto pela análise de aspectos globais do texto, defendida por Irandé Antunes. Para a autora, analisar um texto é tentar descobrir seu esquema de composição, sua orientação temática, seu propósito comunicativo, suas partes constituintes. Ainda, é procurar descobrir o conjunto de suas regularidades, o que auxilia a levantar expectativas e construir modelos de como os textos são constituídos e funcionam. Nesse processo analítico, podemos perguntar como é dito o que é dito, com que recursos lexicais e gramaticais, com que estratégias discursivas, quando e por que é dito, para quem e para provocar que efeitos, implícita e explicitamente. Dessa forma, acreditamos que a leitura é um código entre sujeitos históricos e seu desenvolvimento é que permite a compreensão da leitura e visa a entender o autor e o seu ponto de vista.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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Cabe a nós, professores, promover o desenvolvimento de diferentes competências comunicativas, desenvolver a capacidade de perceber, enxergar, identificar fenômenos ou fatos que ocorrem nos textos. Precisamos estar atentos, enquanto profissionais, que as exigências atuais recaem sobre pessoas capazes de atuarem socialmente, com versatilidade, criatividade e fluência na análise de diferentes situações sociais.

REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. 2ª ed. São Paulo: Parábola, 2009. ______. Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. (Série Estratégias de Ensino 21) BALTAR, Marcos. Competência discursiva e gêneros textuais: uma experiência com o jornal de sala de aula.Caxias do Sul, RS: Educs, 2004. BAKTHIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes. 2003. BONINI, Adair; MOTTA-ROTH, Désirée; MEURER, J. L. (Org.) Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília: Ministério da Educação, 1998. COSTA, Nelson Barros da. As letras e a letra: o gênero canção na mídia literária. In: KOCH, IngedoreVillaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. Editora: Parábola, 2008. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros Textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Angela Paiva, MACHADO, Ana Rachel, BEZERRA Maria Auxiliadora (org). Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36. MOUCO, Maria Aparecida Tavares. Leitura, análise e interpretação de charges com fundamentos na teoria semiótica. São Paulo: Martins Fontes, 2007. OLIVEIRA, M.L.S. de. Charge: imagem e palavra numa leitura burlesca do mundo. In: AZEREDO, J.C. de. (Org.). Letras e comunicação: uma parceria no ensino de língua portuguesa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. PESSOA, Valda Inês Fontenele. O cuidado interdisciplinar na construção de um currículo de formação de educadores. São Paulo: PUCSP, 2011. SILVA, C. L. M. e. O trabalho com charges na sala de aula. Pelotas, RGS: UFRGS, 2004.

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ANEXOS TEXTO 1

TEXTO 2

INTER-RELAÇÃO ARTÍSTICA ENTRE CONTO TRADICIONAL E CONTEMPORÂNEO: UMA FORMA DE LEITURA E PRODUÇÃO TEXTUAL Alcione Salete Dal’Alba Pilger*(URI/FW)

INTRODUÇÃO Este artigo aborda uma prática docente acerca da contação de histórias e da produção textual nas aulas de Língua Portuguesa e/ou de Literatura Brasileira no Ensino Básico. Objetiva-se, neste relato de experiência, mostrar que, ao se oportunizarem locais de fala, desloca-se o olhar ao narrador à narrativa e ao ouvinte. Como corpus de análise foram selecionados os seguintes textos: Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault (1697); A Melhor Amiga do lobo, de Deonísio da Silva (1990); e O Gatinho Nicolau: Chapeuzinho Vermelho e o Lobo, de Aurélio de Oliveira (1995). A metodologia configura-se a partir de relato ou de contação de histórias e de reflexões acerca do sentimento envolvendo relações familiares e socioculturais, tendo em vista a motivação para a produção de histórias com novos personagens e enredos. Além disso, pode-se observar que a literatura está em consonância com as telas luminosas: TV, computador e Internet. Para o embasamento dessa proposta, buscou-se respaldo em autores como Mikhail Bakhtin (1999; 2010), Laurent Jenny (1979), Affonso Romano Sant’Anna (1995), Tânia Franco Carvalhal (2006); Regina Zilberman e Magalhães (1987) e Cleo Busatto (2006).

CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS E PRODUÇÃO TEXTUAL A verdadeira felicidade vem da alegria de atos bem feitos, do sabor de criar coisas renovadas. (Antoine de Saint-Exupéry, 2009)

A epígrafe justifica-se pela magia que a contação de histórias proporciona através da prática leitora na escola Santo Pazini – Braga/RS: “Era uma vez... revisitando os Contos de Fadas” foi pensada e desenvolvida para alunos do Ensino Fundamental, abordando o tema: leitura do conto clássico, de Perrault (ZILBERMAN; MAGALHÃES, 1987) e releituras contemporâneas, com o intuito de promover a interação com textos literários clássicos e contemporâneos, e com outras linguagens, possibilitando aos alunos uma experiência mais ampla de leitura de contos de fadas e na sequência das atividades a prática de produção textual. No século VII, que ao coletar contos e lendas da Idade Média, dentre eles Chapeuzinho Vermelho, adapta-os, constituindo os Contos de Fadas, paradigma do gênero infantil, da Literatura Infantil. Dos contos abordados através da contação de histórias, das reflexões acerca do sentimento envolvendo relações familiares e socioculturais, passou-se à motivação e foi lançado o desafio para a produção textual. A produção do texto “Chapeuzinho no Vermelho” (WESCHENFELDER, s.d)1 sem publicação, foi lida e comentada. Posteriormente passou-se à produção de textos escritos, análise linguística e exposição dos textos escritos, nos murais da escola.

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Mestranda do Curso de Letras – URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Frederico Westphalen/RS. Disponível em anexo.

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Este relato de experiência apresenta reflexões sobre o ensino de literatura na Educação Básica, apontando potencialidades e desafios dessa prática. Além disso, tece considerações acerca da leitura do texto literário através da Contação de Histórias e da Produção Textual. Objetiva-se, neste estudo, o cotejo entre literatura tradicional e contemporânea, oportunizando uma metodologia significativa, a qual possibilita professores e alunos reconhecerem elementos dos diversos textos literários em diferentes formas de expressão social e cultural. Os textos literários estão amparados teoricamente em proposições da Literatura Comparada de linha americana, nas teorias de Stainer (2003) e Sandra Nitrini (1997). Na análise comparatista, constata-se que a Contação de Histórias contribui de forma prazerosa para a formação do leitor. Na teoria de Busatto (2006), acerca da Contação de Histórias, temos a certeza de que podemos fazer a diferença no planejamento de uma aula de literatura, partindo-se da leitura do texto, da contação e produção textual. Para tanto, é imprescindível que tenhamos professores e pesquisadores comprometidos e dispostos a trabalhar um texto literário de diversas formas. Constatou-se que a história tradicional e as histórias contemporâneas dialogam de forma parodística. É a intertextualidade paródica que constitui o principal veículo entre o conto clássico e os contos contemporâneos. Leitura, apropriação, absorção e transformação. Uma das marcas fundamentais da Literatura é esse diálogo, ou conversa que um texto faz com outros que existiram antes. Cada novo texto é feito de restos de construções de seus antecessores. Identificar a presença de um texto num novo texto é uma maneira de tornar explícito que o texto contém na sua forma e estrutura um empreendimento coletivo, isto é, contém um processo de produtividade literária em que não é mais possível ler um texto como se fosse um discurso individual. Assim, há um grau de parentesco entre os textos e pode-se dizer que eles dialogam entre si. Nesse sentido, chega-se à noção de intertextualidade que, na acepção de Laurent Jenny, em Literatura comparada, Tânia Franco Carvalhal cita: “Designa não uma soma confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e assimilação de vários textos, operado por um texto centralizador, que detém o comando do sentido.” (1979, p.51). Ao retomar as propostas de Bakhtin, Julia Kristeva concebeu e nomeou a teoria da intertextualidade, segundo a autora, “todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos; ele é uma escritura-réplica (função e negação) de outro (dos outros) texto(s)”. (KRISTEVA apud PERRONE-MOISÉS, 2006, p. 94).

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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IMAGENS DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS - ENREDO – ESTRUTURA FÍSICA DOS CONTOS – PERSONAGENS Foto: Contação de Histórias na Escola Estadual de Ensino Médio Santo Pazini – Braga – RS (2015)

Fonte: A autora.

Conto tradicional de Charles Perrault (1697), a mãe recomenda a Chapeuzinho que tome muito cuidado ao levar docinhos à sua vovozinha que está doente e mora sozinha na floresta. Toda essa recomendação se configura pelos perigos na floresta, por residir aí um Lobo Mau. No entanto, ao atravessar a floresta, a menina fica encantada e atraída pela beleza das flores e borboletas. Apanha flores e corre atrás de borboletas, distrai-se e toma outro caminho, não o indicado pela sua mãe, quando é vista pelo lobo mau, ardiloso, malicioso diante da indefesa e inocente menina trava um diálogo amigável sugere um caminho mais longo. Assim ele chega à casa da vovó, fingindo ser sua netinha, consegue enganar a velhinha, devorando-a e ocupando seu lugar na cama. Ao chegar ao seu destino, Chapeuzinho encontra sua avó muito estranha. Então se inicia o famoso diálogo de Chapeuzinho Vermelho para com a vovó: “Por que esses olhos tão grandes? E ela responde: - Ó minha querida, são para te enxergar melhor. [...] E por que essa boca tão grande? - É para te comer!!!”. Entretanto, um caçador ao passar por ali abre a barriga do lobo e resgata a vida da menina e da avó. Ele coloca pedras na sua barriga e o lobo morre. A História com início, meio e fim; seus personagens são a mãe, a Chapeuzinho Vermelho; o Lobo Mau é mau; o caçador é bom. O gatinho Nicolau, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo, são três histórias apresentam-se na primeira, a gata Criste e o gatinho Nicolau, dialogam com a segunda história – história tradicional de Chapeuzinho Vermelho, na terceira, é o Gatinho Nicolau que cria sua própria versão. Na linguagem estão presentes palavras e expressões que conotam afetividade no relacionamento mãe, gata Criste e filho, gatinho Nicolau: “pudinzinho”, “arrozinho com couve”, “chacoalhou”. Nesta versão moderna

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o lobo continua sendo mau e o caçador é bom. A partir do Gatinho Nicolau, os alunos foram motivados a pensar na importância da palavra para expressar ideias, criar histórias e eles deram asas à imaginação e produziram textos ricos e criativos. Porque a palavra é capaz... É portanto claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo que daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem-formados. A palavra é capaz de registrar as frases transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais (BAKTHIN, 2010, p. 42).

Em A Melhor Amiga do Lobo, as personagens são: a Mãe de Chapeuzinho; filha; avó - paterna abandonada no fundo da floresta – mãe de João, pai de Chapeuzinho Vermelho = João e Maria – adotados. O nome de Chapeuzinho – Eva, irmão adotivo- Adão – Nova Humanidade – Adão e Eva (Chapeuzinho Vermelho), casaram-se. Tiveram dois filhos e cabe ao leitor escolher os nomes, por ideia do Lobo que visitava a família do menino _______________ da menina______________. O Lobo neste conto contemporâneo é amoroso, é bom, cuida da vovó na floresta, enquanto que o caçador é mau, abate os animais das espécies raras. Esse conto, além de dialogar com a história tradicional de Chapeuzinho Vermelho, dialoga também com o Conto de Joãozinho e Mariazinha e o texto Bíblico. A arte de contar histórias com um sujeito-contador ou com personagens que têm domínio de palco, dos recursos vocais e corporais, com detalhes que fazem a diferença, na maioria das vezes, muda a forma, o texto e o contexto. No entanto, permanece a condição de encantar, de dar significado ao mundo que nos acerca. Assim, materializamos e damos forma às nossas experiências e a arte de contar história no século XXI, torna-se possível de se instaurar, segundo: [...] vejo a contação de história como um instrumento capaz de servir de ponte para ligar as diferentes dimensões e conspirar para a recuperação dos significados que tornam as pessoas mais humanas, íntegras, solidárias, tolerantes, dotadas de compaixão e capazes de “estar com”. [...] Vejo o contar história como um ato social e coletivo, que se materializa por meio de uma escuta afetiva e efetiva (BUSATTO, 2006, p.12-13).

Acreditamos que ao adotarmos posturas que entusiasmam, que provocam encantamento, a magia das histórias deva se espalhar por todos os cantos, a partir do século XXI, como forma de recuperação dos significados que tornam as pessoas mais humanas, dando retorno às narrações orais, através de uma teatralidade que desempenha papéis emocionais, presente em locais como a escola”: na biblioteca, no pátio. Nesse contexto, o contador de histórias também passa a ser espectador, leitor, ator e personagem das histórias narradas significativas da experiência vivida, que se metamorfoseia para narrar o objeto da ação. Então, poderemos notar um acréscimo ao interesse pelos livros, pela leitura “É indubitável que esse comportamento compactua e facilita a construção de cidadania, estimulando o olhar crítico e poético do ser humano”. (BUSATTO, 2006, p. 127). Walter Benjamin (1983) lembra-nos que a forma de comunicação, através da imprensa que surge com a burguesia e o capitalismo, confere autoridade à notícia por já trazê-la verificada, interpretada. No entanto, ficam de lado o fantástico, a reticência, bem como o maravilhoso, características das narrações orais responsáveis por gerar encantamento ao ouvinte. Observamos isso na seguinte passagem: O mérito da informação reduz-se ao instante, precisa entregar-se inteiramente a ele, e, sem perda de tempo, comprometer-se com ele. Com a narração é diferente: ela não se exaure. Conserva coesa a sua força e é capaz de desdobramentos mesmo depois de passado muito tempo (BENJAMIN,1983, p. 62).

Novas formas de aprender e de ensinar devem fazer parte das instituições. A proposta é trazer exemplos de práticas criativas e transformadoras na rotina dos ambientes educacionais, tendo em

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vista que os modelos tradicionais de educação não respondem mais às demandas da sociedade contemporânea, nem ao perfil dos alunos do século XXI. Cleo Busatto (2006), no livro A Arte de Contar Histórias no Século XXI, aborda sobre as imagens corporais, aquilo que é maleável, desenhado pelo corpo do narrador, de um simples gesto à coreografia: No instante em que o contador de histórias movimenta-se no espaço criando cenários, personagens e ações, com gestos diminutos ou ampliados, ele não está apenas conduzindo o nosso olhar para o que ele está gerando, mas também provocando a ilusão de que aquilo de fato existe. Mas, para o imaginário, essa ilusão é real. O contador de histórias vê o que cria enquanto constrói, e essa condição é dada pelo olhar. Ao acompanhar com seus olhos o movimento que concebe, ele projeta energia para essas imagens, dá vida para elas, que vão, aos poucos, se corporificando diante do espectador, podendo ou não se tornar significativas e atuantes. Mas para que tudo isso ocorra, o contador de histórias precisa ter consciência de que ele tem um corpo falante e expressivo, e adequá-lo a esta função, com um treino rigoroso, criativo e sensível [...] “Corporizar” o pensamento simbólico também é uma tarefa para o contador de histórias da atualidade (BUSATTO, 2006, p. 65).

O que estamos chamando de Contação de Histórias, nessa arte, tudo dependerá de políticas educacionais e reflexões dos envolvidos em educação, certamente poderemos alimentar a perspectiva de que diminuirá o apagamento da literatura no ensino da literatura e a apatia dos alunos pela leitura e pelo texto literário. Além de um professor bem informado, leitor, para transformar o aluno num leitor. Ser leitor depende daquilo que a escola faz, se a escola vai se habilitar ou não depende de cada contexto. No entanto, não podemos nos esquecer que a Leitura na Escola é importante para a formação do leitor, de que o conhecimento passa pela leitura e pela literatura. Se temos fragilidade é por que a escola vai mal. Todos temos capacidades para ler, mas o fato de nos tornarmos leitores, depende da escola, da consolidação do público leitor, o livro é uma fonte de conhecimento, lendo nos alfabetizamos e teremos acesso ao saber. Então é importante valorizarmos e lutarmos por um espaço importante nas escolas, para a leitura expandir-se pelo caráter utilitário e emancipatório da leitura. Se o papel da escola é ensinar a LER, poderemos dar a oportunidade de explorar os diversos gêneros e dentre eles o teatro na escola, focar no verbal, estabelecer elos nas diversas formas de expressões artísticas, valorizar a interação que cada aluno faz com o texto, valorizando o poder da palavra, ver o texto em si, e a partir do ato individual da leitura construir outras percepções para o mesmo texto, a fim de que seja significativa. Mesmo com texto ruim é possível fazer um bom trabalho de linguagem, contextualizar e fazer relações, cotejo entre textos. O bom leitor compara, analisa, critica. Para Baktin, sobre a palavra e o diálogo entre as diversas escrituras: [...] a “palavra literária”, isto é, a unidade mínima da escritura literária não se congela num ponto, num sentido fixo; ao contrário, constitui um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo entre diversas escrituras: a do escritor, do destinatário (ou do personagem, do contexto atual ou anterior. O texto, portanto, situa-se na história e na sociedade [...] (NITRINI, 1997. P. 159).

Várias vozes, várias superfícies para contextualizar. O texto como resultado de um contexto social. Todo escritor é um leitor, práticas socioculturais, dentro de outras práticas socioculturais que envolvem produtores e receptores. George Steiner (2003, p.151) afirma que “todo ato de recepção é um ato comparativo”. A literatura é uma das linguagens possíveis. O ato de ler deve mobilizar as experiências prévias para tentar conhecer melhor o texto novo. Essa volta às experiências anteriores se consolida na identificação de traços, caminho e analogias do texto novo com leituras já realizadas. Concluímos a questão com a citação do último parágrafo do texto de Stainer: “Este projeto contém uma esperança modesta porém autêntica. E se existe uma enfermidade crônica da qual todos os professores devam sofrer, essa enfermidade é, sem dúvida alguma, a esperança”. Fazer o cotejo entre

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as mais diversas artes, gêneros, textos, intertextualidade, é alimentar a esperança na Literatura Comparada e na formação do leitor. Enfim, cabe à escola a tarefa de causar o estranhamento e fazer refletir sobre os modos de compreender o mundo construído pelas gerações anteriores, como esses valores se materializam no cotidiano e como podemos desnaturalizar o que mais notamos. Isto tudo pensado, refletido e materializado na interação através do trabalho coletivo de todos os participantes. E por fim... ... o que se tem a dizer é que o que estamos chamando de Contação de Histórias, ainda vai dar muito que falar. Seja onde for que as histórias soem, seja através de qualquer voz, de qualquer suporte, seja qual for a formação do contador, elas chegam pra ficar. As histórias, oriundas da tradição ou da contemporaneidade, sempre serão bem-vindas, como são bem-vindos os contadores, sejam aqueles que narram contos da tradição, sejam aqueles que narram autores contemporâneos. Há espaço para todos: os que entendem as histórias como alimento para o espírito; os que veem nas histórias uma forma de distração; aqueles que narram cantando e aqueles que narram dançando; velhos e moços; letrados e iletrados. Os contos estão aí, à espera de uma voz para torná-los matéria viva, significante e transformadora (BUSATTO, 2006. p.127-128).

Ressignificar nossas práticas em sala de aula é preciso, fica o reconhecimento do saudável hábito de contar histórias e que venham os contadores de histórias... E novas histórias novas. É indubitável que a magia das histórias deva se espalhar por todos os cantos. Esse comportamento compactua e facilita a construção de cidadania, estimula o olhar crítico e poético do ser humano. Observamos que houve, nas escolas, nas quais o professor seja contador ou pesquisador um acréscimo no interesse pelos livros e pela leitura, pelos contos, tanto da tradição, quanto contemporâneos, contribuindo de forma prazerosa para a formação do leitor. Este texto: Chapeuzinho no Vermelho do professor Eládio Vilmar Weschenfelder, apresentado em aula durante o Curso de Especialização em Literatura Brasileira, pela UNIJUÍ – Universidade de Ijuí – RS, foi o suporte de motivação para a produção textual dos alunos por dialogar com as telas luminosas da TV, ser intertextual e parodístico. Por isso, justifica-se neste relato de experiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Chapeuzinho Vermelho, vindo para o mundo moderno, sofre mudanças profundas no que diz respeito ao seu modo de pensar e agir, evidenciando enorme espaço conquistado nessa longa trajetória. Os autores contemporâneos transformam a Chapeuzinho, provocando um desvio total da personagem e imprimindo nela modificação da postura conformista à emancipacionista, o que evidencia a utilização da paródia dos autores modernos sobre os autores clássicos. Sendo assim, a Literatura Infantil Brasileira vem se utilizando dos diversos recursos intertextuais para expressar o lugar social dessa personagem nas suas épocas. Os autores contemporâneos, ao alterarem a matéria literária, evidenciam esforços por transformação da consciência crítica de seu leitor/receptor, além do prazer e da emoção estética. Além disso, observamos que a literatura, de certa forma está em concorrência com as telas luminosas: TV, computador e agora a Internet. Por isso mesmo, vem tentando novos rumos na sua luta pela formação do leitor. Pudemos depreender desse estudo que não existe um dono único, onipotente, de um texto. Qualquer pessoa, usando da sua inventividade criatividade pode lançar mão de textos para recriá-los, como fizeram Deonísio da Silva e Aurélio de Oliveira, dando às obras o sentido que quiseram dar, segundo as suas ideologias. Se por um lado, as obras clássicas tinham a intenção de moralizar, doutrinar, conformar; por outro lado, as versões contemporâneas tentam intervir sociologicamente, pois a sociedade de hoje não é a mesma da época de Perrault, por conseguinte, as intervenções são diferentes.

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O discurso na narrativa Perrault, é monológico. Não há diálogo entre narrador e leitor, isto é, não há espaço para questionamentos também nessa obra. A intenção do texto é advertir Chapeuzinho Vermelho do perigo que representa o lobo (homem). Ele, o astuto, o inteligente, poderá causar-lhe mal. Tudo isso, apresentado simbolicamente representa os valores daquela época, entendidos hoje como ideologia conformista, conforme análise de Regina Zilberman e Lígia c.Magalhães (1987). Percebemos, sobretudo, que a sociedade vive grandes transformações econômicas, políticas e sociais, então, é importante que se produza literatura para possibilitar que novas maneiras de ver e interpretar a realidade sejam apresentadas ao leitor. A relação dialógica conferida nas novas versões dos autores contemporâneos configura o protótipo da criança que se quer hoje: questionadora, crítica e criativa. É, pois, no processo de interação do receptor com os textos que se constituem os sentidos dos mesmos, sendo, por isso, fundamental que os textos permitam preencher vazios. Consequentemente, uma criança que se expressa de forma criativa e crítica através da escrita.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense, 1999. ______. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João, 2010. BENJAMIN, W. Textos Escolhidos – Walter Benjamin et al. Tradução de Modesto Carone et al. São Paulo: Abril Cultural, (coleção Os Pensadores), 1983. BUSATTO, C. A arte de contar histórias no século XXI: tradição e ciberespaço. Petrópolis, RJ : Vozes, 2006. CARVALHAL, T. F. Literatura Comparada. 4 ed. São Paulo: Ática, 2006. JENNY, L. A estratégia da forma. In: Intertextualidades. Tradução da revista Poétique n.27. Lisboa: Almedina, 1979, p.19-45. KRISTEVA, J. Ensaios de literatura. Rio de Janeiro: Eldorado, 1974. NITRINI, S. Literatura Comparada. São Paulo : Edusp, 1997. OLIVEIRA, A. de. O gatinho Nicolau, Chapeuzinho Vermelho e o Lobo. São Paulo : Moderna, 1995. PERRAULT, C. O chapeuzinho vermelho. Porto Alegre : Kuarup, PERRONE-MOISÉS, Leyla. Literatura Comparada, intertexto e antropofagia. In: ______. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. SAINT-EXUPÉRY, A. de. O pequeno príncipe. Rio de Janeiro, Editora Agir, 2009. Aquarelas do autor. 48ª edição / 49ª reimpressão. Tradução por Dom Marcos Barbosa. 93 páginas. SANT’ANNA, A. R. de. Paródia, paráfrase & Cia. 5 ed. São Paulo : Ática, 1995. SILVA, D. da. A melhor amigo do lobo. 5. ed. São Paulo : FTD, 1995. STEINER, G. O que é literatura comparada? In: Nenhuma paixão desperdiçada - Ensaios. Trad. M.A. Máximo. Lisboa: Relógio D’Água, 2003. WESCHENFELDER, E. V. (UPF). Chaupeuzinho no Vermelho. Passo Fundo/RS. Não publicado, s.d. ZILBERMAN, R.; MAGALHÃES, L. C. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. 3 ed. São Paulo : Ática, 1987.

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ANEXO CHAUPEUZINHO NO VERMELHO

Quando completou dezoito anos, sua mãe deu-lhe de presente a emancipação. Depois pediu que ela retirasse a aposentadoria da vovó, que morava num bairro longe do centro da cidade. Contentíssima, Chapeuzinho no Vermelho produziu-se toda. Antes de sair, teve que ouvir os conselhos da mãe: - Minha filha, não ligue prá conversa fácil. Segura o tchã. Amarra o tchã! Ao que ela prontamente retrucou: - Cala a boca, Magda! Xô Farroupilha! E saiu. Retirou a aposentadoria – um salário mínimo – decidida a comprar alguns presentes, um rancho para a vovó e o que sobrasse, investiria na poupança. Ainda no banco, ele se sentiu tocado pela beleza alegre e estonteante da moça e não se conteve, dizendo: - Taí a guria dos meus sonhos. Poderosa! Tomadora dos namorados das outras! Ao que ela só pôde dizer. - Eu, heim!? - Você, sim. Todos os olhos da cidade estão voltados a ti. Os meus em especial. E a conversa rolava fácil. Assim ele a convenceu a irem juntos ao shopping para as compras. Não aquele indicado pela mãe de Chapeuzinho no Vermelho. Havia outro mais moderno e menos explosivo. Depois de percorrer todas as lojas, ela cansada e inconformada com o seu baixo poder de compras, apontou o dedo para o moço dizendo: - O plano é diabólico. O lobo continua mau e a Chapeuzinho, outra vez foi enganada. Era uma vez uma Chapeuzinho no Vermelho. (Eládio Vilmar Weschenfelder – UPF – Passo Fundo – RS, s.d.)

MEDIAÇÃO DE LEITURA LITERÁRIA E MÍDIAS DIGITAIS Ana Paula Teixeira Porto* (URI)

“70% dos brasileiros não leram em 2014, diz pesquisa da Fecomércio-RJ”1. “Por que os brasileiros leem tão pouco?”2. “Resultado mostra fragilidade na leitura e na escrita, dizem professores”3. “O ENEM na prática tem se demonstrado um inimigo da literatura”4. Essas são frases-título ilustrativas de reportagens que temos nos habituado a a ler em jornais que informam sobre resultados de pesquisas relacionadas à leitura no contexto brasileiro, historicamente marcado pelo tardio acesso à alfabetização e à leitura e agravado pelos recorrentes comprovantes de insucesso em alfabetização e letramento, inclusive o letramento literário. Se por um lado assistimos ao declínio da leitura em geral e da leitura de literatura em particular, por outro observamos o crescente apego populacional a recursos tecnológicos diversos. Nessa perspectiva, vemos ainda a ascensão de dispositivos móveis, cada vez mais acessíveis à população, o contato cada vez mais efetivo do homem com as tecnologias de rede (TR) e mais diretamente um aumento singular da imersão dos sujeitos nas redes sociais: “O uso das redes sociais tem se intensificado, pois cresce a cada dia o número de usuários que querem estar conectados e gostam de compartilhar todo tipo de informações e materiais digitais.” (ALLEGRETTI et al, 2012, p. 59). Em um contexto brasileiro que deflagra o declínio da leitura e em especial da literatura, parece-nos que uma questão fundamental é repensar as possibilidades de ensino de literatura na formação básica e encontrar outras alternativas que acenem para a importância da literatura na formação do leitor, combinando a esse processo a exploração tecnológica que tem feito parte do cotidiano social. Partindo dessa premissa, este trabalho busca apresentar reflexões sobre possibilidades de mediação de leitura literária numa perspectiva metodológica que agrega o uso de  mídias digitais – especificamente o Facebook como objeto educacional digital – no processo de formação de leitores na Educação Básica. Para sustentação da proposta, é preciso reconhecer o contexto de ensino e aprendizagem da literatura no ambiente escolar.

LITERATURA NA ESCOLA É sabido também que a leitura da palavra é precedida da leitura de mundo, que independe do processo de alfabetização, mas que se qualifica com este. É sabido que a formação do leitor não começa na escola, pois a esta cabe dar continuidade a um processo formativo que se inicia nos primeiros dias de vida de uma criança.. É sabido ainda que, no campo da leitura da literatura, conforme salienta Zilberman (1988), é dever da escola despertar o gosto pela literatura. No entanto, quando

Pós-doutora em Letras. E-mail: [email protected] Título de reportagem de Lilia Teles para o jornal O Globo, publicada em 31 de março de 2015, na qual se destaca que a leitura é uma prática para apenas 30% dos entrevistados e que “O uso da internet, facilitado pelos smartphones é apontado na pesquisa como um dos responsáveis pela queda na leitura, principalmente entre os jovens.“ 2 A reportagem de Gustavo Foster publicada no jornal Zero Hora, fazendo referência a dos da pesquisa da Fecomércio do Rio de Janeiro, acrescenta que “O Brasil nunca foi um expoente da leitura, mas, de um ano para o outro, a taxa de leitores (isso se usarmos "leitor" para o sujeito que leu um livro durante o ano inteiro) caiu cinco pontos percentuais.“ 3 Em reportagem Mariana Tokarnia para Agência Brasil, referindo-se a dados do ENEM 2014, salienta-se que “Na última edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), apenas 250 pessoas tiraram a nota máxima 1000 - enquanto 529.374 zeraram a redação. Os números, segundo especialistas, revelam fragilidade no ensino e na formação de jovens que, cada vez menos, conseguem articular ideias próprias. Faltam leitura e prática de escrita.“ 4 Nessa reportagem Luís Augusto Fischer (2014) apresenta críticas ao exame e pontua que “o Enem afere a leitura funcional, deixando de lado a leitura cultural. Aquela maior profundidade, que a literatura e as artes proporcionam, dá lugar a uma perspectiva de leitura elementar, de simples decifração“, o que sinaliza para um pagamento da litetura enquanto instrumento formativo no EnsinoMédio. *

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pensamos na instância educacional formal de constituição de uma população de leitores, especialmente os de literatura, falhas diversas são facilmente perceptíveis. Em estudo sobre o ensino de literatura nas escolas brasileiras, Ginzburg (2012) identifica um processo fantasmagórico que não oportuniza a leitura integral de textos literários, privilegiando fragmentos como se estes fossem suficientes para a compressão global de uma obra. O pesquisador ainda alerta para o caráter utilitário dado ao ensino da literatura: a preparação do aluno para o vestibular. Lajolo (1993) também entende que a literatura na escola não pode ser usada como pretexto para outros fins que não a leitura, a formação do leitor, apesar de haver constantes exemplificações da exploração de textos para compreensão de questões gramaticais da língua portuguesa. Berenblum (2006) traz reflexões relacionadas a um agente central do processo de formação de leitores e do ensino de literatura: o professor. Para a pesquisadora, não basta apenas um professor que leia, mas um professor capacitado para fazer com que os alunos gostem de ler e sejam proficientes nessa competência. Nessa perspectiva a mediação docente é vista como um atrativo que pode suscitar o gosto ou não do leitor pela literatura. Se com professores que lêem, o ensino de literatura apresenta ainda fragilidades, ficamos a imaginar os resultados daquele ensino ministrado por professores não leitores. Ainda esse cenário do ensino de literatura certamente se relaciona a outras fragilidades, como ausência de biblioteca, deficiências na formação docente, falta de recursos pedagógicos que oportunizem outras práticas de ensino distintas daquelas que os manuais didáticos oferecem, falta de interesse do aluno pela leitura em geral e da literatura em particular. Soma-se a esse contexto, a presença de um novo perfil discente com o qual as escolas e suas práticas precisam se identificar. Estamos falando dos nativos digitais, que compõem uma clientela formada por estudantes conectados, que têm familiaridade com dispositivos tecnológicos e que apresentam novas possibilidades de aprendizagem. Além disso, acreditamos que a literatura na escola deve vir pautada em práticas que se integram a leitura à realidade, o que também sinaliza para importância de trazer textos de autores jovens e não de apenas de autores clássicos, consagrados pela crítica acadêmica. Ainda entendemos ser oportuno o foco na leitura literária, no texto em si, oportunizando o diálogo com outros textos. Por fim, salientamos que, nesse processo, a exploração de objetos educacionais digitais (OED), definidos por Tarouco (2003, p. 2) como qualquer recurso, suplementar ao processo de aprendizagem, que pode ser reusado para apoiar a aprendizagem. O termo objeto educacional (learning object) geralmente aplica-se a materiais educacionais projetados e construídos em pequenos conjuntos com vistas a maximizar as situações de aprendizagem onde o recurso pode ser utilizado.

No rol de OEDs, podemos incluir as redes sociais, que devem fazer parte do cotidiano formativo do aluno, pois a escola e o ensino que oferece não devem estar alicerçados em modelos educacionais antigos que não dão conta da realidade que se tem atualmente e que desconsideram a presença cada vez mais significativa de tecnologias diversas no cotidiano dos brasileiros. Reforçamos essa perspectiva ao pontuar que a exploração das possibilidades de interação entre literatura, mídias e artes, através de objetos de aprendizagem, pode se constituir como um interessante caminho na busca pelo desenvolvimento do hábito e da habilidade da leitura (MELO; BERTAGNOLLI, 2012, p. 4).

Se a formação de leitores requer outras possibilidades de exploração, apresentamos uma alternativa: a mediação de leitora através do Facebook.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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MEDIAÇÃO DE LEITURA ATRAVÉS DO FACEBOOK: UMA PROPOSIÇÃO Quando pensamos nesse universo que limita a presença da literatura nas escolas e, consequentemente, minimiza a formação do leitor, como destacado nas seções anteriores, logo remetemos à necessidade de pensar em outras opções de inserção da leitura de literatura no espaço escolar. Então surge a possibilidade de exploração das mídias sociais como ferramentas adequadas ao processo de formar leitores de literatura, o que possibilita uma aproximação do mundo real da maioria dos alunos ao mundo da escola e do processo formativo desses alunos. Entendemos, nessa perspectiva, que a leitura de literatura para alunos digitais pode ser melhor associada quando se promove uma maior interação com as tecnologias de rede, nas quais se incluem as mídias sociais. Isso se justifica porque Em nossa sociedade, cada vez mais os nativos digitais buscam construir seu conhecimento a partir das interações realizadas. Dente as possibilidade de interação aquelas que ocorrem em meios digitais crescem a cada dia em virtude da grande utilização das TR. Em relação a esse fato, ganham força as ideias sobre o processo de aprendizagem propostas por Siemens, visto que a aprendizagem se constrói por meio das trocas e da diversidade de opiniões, as quais são realizadas por meio das conexões com nós especializados ou com as mais variadas fontes de informação. (SOTILLE; TEIXEIRA, 2012, p. 2-3)

As trocas e a o uso de diferentes formas de informação viabilizadas pelas mídias sociais fazem parte da proposta de formação de leitor de literatura, a qual elege o Facebook como ferramenta tecnológica da rede para esse processo. Compartilhamos a ideia de que o Facebook traz algumas possibilidades, como: “facilidade de conversação, auxílio na diminuição das relações hierárquicas de poder entre professor e alunos, melhora do nível de relacionamento, suporte à interação entre alunos, rompendo com o discurso limitado tipo aluno-professor” (ALLEGRETTI et al, 2012, p. 54). Tais traços ajustam-se ao trabalho com a leitura de literatura, uma vez que possibilitam um ponto central: o contato direto com o aluno com o texto literário e a interação prazerosa com este, além de propiciar um diálogo conversacional sobre o texto lido. O Facebook então é visto como dispositivo tecnológico de fácil acesso que viabiliza a conexão do ensino escolar ao universo tecnológico do qual o aluno faz parte. É, nessa perspectiva, lembrado com uma possibilidade de promover a leitura e a discussão sobre ela a partir de provocações constantes expostas pelo professor em posts específicos e previamente planejados com o objetivo de despertar o interesse do aluno pela literatura, suscitando um debate crítico sobre um conto. Considerando esses pressupostos, que reflexões podemos construir acerca de do uso do Facebook para a formação de leitores de literatura brasileira, tomando-se como referência o Ensino Médio? A fim de elucidarmos essas discussões, apresentamos uma possibilidade do uso da rede social Facebook, levando em conta que: a) o aluno é o sujeito do processo de leitura literária, cabendo a ele a construção de conhecimentos sobre o objeto literário; nessa perspectiva, não se valoriza a explanação docente sobre o objeto de leitura nem a ideia de que apenas a leitura do professor é possível ou correta para o texto lido, aceitando-se possibilidades de leitura variadas desde que permitidas pelo texto literário; b) o professor atua como mediador de leitura, motivando o aluno à leitura integral do texto literário, à interação com o texto e ao estabelecimento de correlações com outros textos (literários ou não) e, assim, despertando o gosto pela leitura e a leitura crítica; essa perspectiva está baseada em Kleiman (2002, p. 25), que acentua que o professor deve procurar meios para interessar o aluno na leitura de livros e que nesse processo uma medida adequada é a de tornar “a atividade de leitura o mais atraente possível”. Ao professor cabe então motivar,

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a partir de provocações, questionamentos o interesse do aluno pelo objeto de leitura e pelo que esta pode proporcionar; c) o texto literário deve ser objeto central da discussão a partir do qual todas as discussões são promovidas e intensificadas à medida que o processo de leitura avança; então, a leitura integral torna-se necessária (sem privilegiar apenas fragmentos) e a literatura como referência central de leitura; d) o Facebook é a ferramenta usada para discussão do texto e, portanto, meio de interação do professor com os alunos e destes com o texto literário; além disso, é recurso que aproxima o cotidiano do aluno ao cotidiano de aprendizagem, trazendo outras possibilidades de aprendizagem e ensino. Em outras palavras, vemos o Facebook “como espaço coletivo e colaborativo para a comunicação, troca de informação, aprofundamento de um determinado tema, pesquisa” (ALLEGRETTI et al, 2012, p. 55). Nessa proposição de prática de mediação de leitura, professor e alunos devem ter conta no Facebook. O professor deve criar um grupo fechado no Facebook, no qual as pessoas veem o grupo e os participantes, mas só os membros do grupo veem as publicações. Como se trata da exploração dessa rede como ferramenta de aprendizagem, esse grupo deve integrar apenas o professor (administrador do grupo) e os alunos da turma que, mediados pelo professor, devem participar de forma colaborativa na leitura proposta, seguindo as proposições docentes. Nesse sentido, antes do inicio dessa mediação de leitura, os alunos dever estar cientes de que a proposta está baseada na leitura e, portanto, segue um roteiro, e que o Face é um recurso tecnológico usado para este fim. Sugerimos a abordagem do gênero conto da literatura brasileira do século XXI, especificamente o conto “O Brasil não é ruim”, de André Sant’Anna, o qual foi publicado na coletânea O Brasil é bom, de 2014. Em “O Brasil não é ruim”, temos a voz de um narrador solitário que profere uma série discursiva de orações negativas, já iniciadas com o próprio título do conto. Através dessa voz é construído um cenário de ações de políticos brasileiros: “Deputados, senadores, governadores, prefeitos, vereadores” (SANT’ANNA, 2014, p. 10) são caracterizados como não criminosos, não atuantes somente para sua própria causa, não corruptos, etc, o que deflagra a presença do discurso irônico e debochado que transparece também nos demais contos do livro. Essa prática mediadora de leitura segue quatro momentos específicos: Motivação para leitura; Leitura do conto por partes; Interação do aluno com o texto; Produção textual. No inicio da prática, depois de todos estarem cientes do uso da rede social, os alunos, via Facebook, devem ser motivados à leitura literária pelo professor. Este deve apresentar provocações que instiguem a curiosidade dos alunos, postando mensagem no grupo com perguntas como estas: considerando que o conto é intitulado “O Brasil não é ruim”, que história será narrada? Que expectativas vocês têm em relação ao conto? Feita a motivação inicial, o professor deve informar o nome do autor do conto, solicitando que, num jogo rápido sem repetição de informações, cada membro do grupo pesquise e apresente dados sobre o autor, apresentando uma frase de até três linhas. Deve esclarecer que as postagens não podem ser repetidas nem copiadas da internet, ou seja, deve estimular a pesquisa e a formulação de posts objetivos que contextualizem o autor do conto a ser lido. A partir das postagens do aluno, o professor de vê comentar, complementando dados e estimulando a leitura do conto, que é a segunda fase da prática. Esta se inicia com o professor postando um bloco do conto (um fragmento inicial) que suscitará as primeiras discussões sobre a narrativa. Sugerimos que seja colocada a primeira página do conto com a qual o professor deve solicitar a identificação da temática do conto e a caracterização do narrador. Em seguida, estimular a reflexão sobre o diálogo que o contexto estabelece com o contexto brasileiro atual. É importante que o professor incite todos a participarem das discussões.

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Nessa etapa de leitura inicial do conto, é pertinente dividir os alunos em pequenos grupos para que estes postem links de outros textos que tenha temática afim ao do conto. A partir disso, promover um diálogo entre semelhanças e diferenças na forma de construção entre o conto de André Sant’Anna e os textos indicados pelos alunos. Esse processo exige do aluno leitura atenta a primeira parte do conto e correlação do conto com outros objetos. Nesse processo, o professor pode sinalizar, a partir dos posts discentes, traços importantes para leitura do conto, como a questão da linguagem e do ponto de vista do texto literário, mas sem apresentar a leitura “pronta”. Em seguida, a interação do aluno com o texto se acentua. O professor deve postar a parte final do conto literário, a segunda página, para dar continuidade à leitura literária. Nessa fase, a discussão deve ser aprofundada, procurando compreender a estética do texto e os recursos de linguagem explorados, bem como o enfoque proposto pelo conto ao apresentar uma leitura da sociedade brasileira. Nesse processo, os alunos devem ser motivados a estabelecer conexões entre o texto lido e outros textos literários que tenham temática afim. Pode ser proposto um diálogo entre o conto com outros da literatura brasileira do século XXI. Na fase final, depois das discussões na rede social, os alunos, em grupos, devem ser desafiados a reescrever o enredo do conto de André Sant’Anna, alterando-se o ponto de vista. Este pode remeter ao ponto de vista dos políticos brasileiros, dos empresários ou de grupos sociais marginais, como favelados, homossexuais, negros. Essa produção contística deve ser objetiva, com duas páginas, em linguagem coloquial e expressar uma possibilitar a exploração de recursos estéticos, como a ironia. O conto do grupo deve conter um título que remete de forma intertextual ao título do conto de Sant’Anna. Cada grupo deve trabalhar de forma colaborativa ao construir o conto. Depois de construídos os contos, cada grupo deve postar o seu. A partir disso, uma discussão deve ser promovida, visando ao debate sobre diferentes perspectivas de leitura da sociedade brasileira apresentadas nos novos contos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nessa prática mediadora de leitura, entendemos que a interatividade do aluno com o texto é promovida, uma vez que o ponto central do onde surgem as reflexões é o conto de André Sant’Anna. Ainda quanto à interatividade, destaca-se a importância da rede social Facebook que traz outros formatos para discussão on line, assíncrona ou não, ampliando as possibilidades de uso do recurso e de aprendizagem. Além disso, essa rede social traz um importante recurso tecnológico associa-se a um fator importante: “a mobilidade, tanto no sentido de portabilidade, quanto de acesso à informação e principalmente a mobilidade de pessoas mudam a relação entre a informação e o mundo. (...) Agora a informação pode estar nos lugares e nosso corpo agir como browser” (SANTAELLA, 2010, p.35). Ainda nesse sentido a leitura integral do texto, sem privilegiar um ou outro fragmento, possibilita maior diálogo e interatividade. As opções diversificadas de acesso e a valorização de uma obra recente da literatura brasileira também aparecem como potencialidades dessa mediação. Não é comum encontrarmos possibilidades práticas de exploração de contos publicados recentemente em manuais didáticos, por exemplo, pois a maioria das abordagens de literatura encontradas nessas fontes restringe-se ao século XX. Ainda é possível apontar nessa proposta de mediação a fuga de perspectivas tradicionais: não se tem uma lista de exercícios objetivos como aqueles voltados para vestibular ou ENEM; não se busca a classificação do conto a uma escola literária; não se privilegia a leitura do conto para estudo da língua, por exemplo, ou seja, não se explora o uso utilitário da literatura. Há ainda nessa proposta um esforço de variar as atividades que fomentam a leitura do conto e a interação do aluno com a literatura a partir de um enfoque que visa à discussão dos significados do conto, da estrutura deste, do diálogo do conto com a sociedade brasileira atual. Mas é preciso observar

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que, para Kleiman (2002, p. 26) nem todas as atividades, mesmo que diversificadas e focadas na participação do aluno, são capazes de formar leitores e acarretar uma aprendizagem significativa, pois Somente quando se ensina o aluno a perceber esse objeto que é o texto em toda sua beleza e complexidade, isto é, como ele está estruturado, como ele produz sentidos, quantos significados podem se aí sucessivamente revelados, ou seja, somente quando são mostrados ao aluno modos de se envolver com esse objeto, mobilizando os seus saberes, memórias, sentimentos para assim, compreendê-lo, há ensino de leitura.

Entendemos que o envolvimento do aluno com o texto, conforme proposto, explora de fato o ensino de leitura, no caso a literária, oportunizando o prazer de ler. É preciso pontuar ainda que essa proposta prática de mediação de leitura literária será produtiva caso também sejam observadas algumas premissas, entre as quais: a) estímulo ao prazer da leitura do texto literário, com oportunidade de conhecer novos escritores, e não ênfase na leitura literária como atividade enfadonha e obrigatória; b) análise dos aspectos estruturais e estéticos do texto, assim como dos conteudísticos, numa associação entre forma e conteúdo; c) possibilidade de cotejo entre o texto literário e outros, de natureza literária ou não; d) associação entre o texto literário e vida social como forma de reconhecer os diálogos que a literatura empreende com os contextos nos quais está inserida; e) recusa ao método tradicional de leitura-exercícios e ao encaixe prioritário ou exclusivo de textos a escolas literárias, como se a periodização literária fosse a possibilidade mais adequada de formar leitores de literatura; f) a mediação de leitura realizada por professores que gostam de ler e que vejam o texto literário como um objeto rico para a formação dos alunos.

REFERÊNCIAS ALLEGRETTI, Sonia Maria Macedo et al. Aprendizagem nas redes sociais virtuais: o potencial da conectividade em dois cenários. Revista Cet, v. 01, n. 02, p. 53-60, abr. 2012. Disponível em: https://revistacontemporaneidadeeducacaoetecnologia02.files.wordpress. Acesso em: 21 set. 2015. BERENBLUM, Andréa. Por uma política de formação de leitores. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006. FISCHER, Luís Augusto. O ENEM na prática tem se demonstrado um inimigo da literatura. Zero Hora, 17 jun. 2014. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2014/06/luis-augusto-fischer-o-enem-na-pratica-tem-demonstrado-ser-um-inimigo-da-literatura-4528467.html. Acesso em 29 set. 2015. FOSTER, Gustavo. Por que os brasileiros leem tão pouco? Zero Hora, 7 abr. 2015. Disponível em: http:// zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2015/04/por-que-os-brasileiros-leem-tao-pouco-4735112.html. Acesso em: 2 out. 2015. GINZBURG, Jaime. O ensino de literatura como fantasmagoria. Revista Anpoll, v. 1, n. 33, 2012. Disponível em: http://www.anpoll.org.br/revista/index.php/revista/article/viewArticle/637. Acesso em: 12 set. 2015.  KLEIMAN, Angela. Contribuições teóricas para o desenvolvimento do leitor: teorias de leitura e ensino. In: ROSING, Tania Mariza Kuchenbecker; BECKER, Paulo Ricardo (Orgs.). Leitura e animação cultural: repensando a escola e a biblioteca. Passo Fundo: UPF, 2002. p. 25-45. LAJOLO, Marisa. O texto não é pretexto. In: ZILBERMAN, Regina (org.) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre. Mercado Aberto, 1993. p. 51-62. MELO, Cimara Valim de; BERTAGNOLLI, Silvia de Castro. Ensino de literatura e objetos de aprendizagem: uma proposta interacionista. Tear: Revista de Educação Ciência e Tecnologia, Canoas, v.1, n.1, 2012. Disponível em seer.canoas.ifrs.edu.br/seer/index.php/tear/article/download/32/15: Acesso em: 2 maio 2014. SANTAELLA, Lucia. A ecologia pluralista da comunicação: conectividade, mobilidade, ubiquidade. São Paulo: Ed. Paulus, 2010. SANT’ANNA, André. O Brasil é Bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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SOTILLE, Suellen Spinello; TEIXEIRA, Adriano Canabarro . Escola, aprendizagem e tecnologias de rede: relações, inconsistências e potencialidades. Anais do XII ANPED Sul. 2012. Disponível em: http://www.ucs.br/ etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/paper/view/572/895. Acesso em: 12 set. 2015. TAROUCO, Liane (Org.). Reusabilidade de objetos educacionais. 2003. Disponível em: http://www.cinted.ufrgs.br/renote/fev2003/artigos/marie_reusabilidade.pdf. Acesso em: 31 mar. 2014. TELES, Lilia. 70% dos brasileiros não leram em 2014, diz pesquisa da Fecomercio-RJ. O Globo, 31 mar. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2015/04/70-dos-brasileiros-nao-leram-em-2014-diz-pesquisa-da-fecomercio-rj.html. Acesso em: 2 out. 2015. TOKAMIA, Mariana. Resultado mostra fragilidades na leitura e na escrita, dizem professores. Agência Brasil, 17 jan. 2015. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2015-01/resultado-do-enem-mostra-fragilidade-na-leitura-e-na-escrita-dizem. Acesso em 3 out. 2015. ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Contexto, 1988.

O UNIVERSO ADOLESCENTE E AS MÍDIAS DIGITAIS Angela da Rocha Rolla* (ULBRA)

1. INTRODUÇÃO Investigações sobre leitura literária no Brasil têm sido feitas exaustivamente no meio acadêmico desde a segunda metade do século XX, resultando em publicações, teses, seminários, debates, programas de leitura, oficinas, introdução de novas disciplinas em currículos escolares, legislação específica, aquisição maciça de obras por instituições públicas, feiras literárias etc. No entanto, o assunto não se esgota e as considerações sobre livro, leitura e suas práticas são complexas e mutantes e escapam ao olhar de educadores, pesquisadores e críticos se não fixarem seu olhar para as gerações de leitores contemporâneos. Este artigo aborda o universo adolescente e as mídias digitais, fazendo um recorte da pesquisa em andamento na Universidade Luterana do Brasil, Práticas de leitura da literatura infantojuvenil contemporânea. A pesquisa investiga as formas de apropriação do texto literário infantojuvenil por autores, leitores e mediadores em diversos espaços e suportes. A abordagem teórica deste estudo apoia-se na concepção de práticas de leitura de Roger Chartier, investigando os textos em seus vestígios, aqueles a que o autor refere como “protocolos de leitura”, de dois tipos, ambos importantes para a reconstituição das práticas de ler. Na análise de Pécora (2011, p. 10-11), o primeiro remonta aos elementos que determinado autor dissemina pelo texto, de modo a assegurar, ou pelo menos indicar, a correta interpretação que o leitor deveria dar a ele, inscrevendo no texto a imagem de um “leitor ideal”, cuja competência adequada decodificaria o sentido preciso esperado pelo autor. Outro tipo de protocolo de leitura que interessa a Chartier é o que se produz na própria matéria tipográfica, em geral de responsabilidade do editor, de modo a favorecer certa extensão da leitura e a caracterizar o seu “leitor ideal”, que não precisa assemelhar-se àquele originariamente suposto pelo autor. O que os protocolos de edição ou impressão evidenciam é que a reflexão a propósito do suporte material do sentido é fundamental para a determinação de sua efetivação nas práticas. Segundo Chartier (2011, p. 78) “não há texto fora do suporte que o dá a ler” e não há compreensão de um texto “que não dependa das formas através das quais ele atinge o seu leitor”. Além da investigação dos textos, em seus “protocolos de leitura” esta pesquisa acompanhará o leitor em suas formas de “apropriação do texto”. Metodologicamente, texto e leitor vão ser investigados, na tentativa de delinear práticas de leitura da literatura infantojuvenil contemporânea. Embora os determinantes das práticas de leitura sejam muitos, motivados por diferentes agentes sociais, pretende-se nesta investigação pautar os principais elementos que interferem/aproximam/ distanciam a criança e o jovem do livro como objeto cultural. Muitos estudos mostram que as “apropriações” do texto pelo leitor escapam completamente ao controle ou previsões significativas do texto, submetendo-o a desvios semânticos e imprevistos pragmáticos notáveis. Para conhecer estas apropriações, o caminho mais imediato que se oferece é o da confidência dos leitores a respeito dos seus modos de ler, dos sentidos que descobrem nos textos, dos espaços em que circulam, dos meios virtuais em que confiam, dos seus mediadores etc.

Doutorado em Teoria Literária, Especialização em Literatura Infantojuvenil (PUCRS), Graduação em Letras (UFRGS), Docente e pesquisadora do Curso de Letras da ULBRA, Brasil, Coordenadora do Programa de Leitura Fome de Ler e do Curso de Especialização EAD Língua, Literatura e Novas Mídias. E-mail: [email protected] [email protected]

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2. NOVOS LEITORES, NOVAS PRÁTICAS DE LEITURA Sobre o percurso dos livros literários e sua apropriação pelos jovens no espaço escolar e/ou privado podem-se seguir caminhos de investigação a partir de depoimentos, nem sempre confiáveis. Pode-se citar Bourdieu, em diálogo com Chartier sobre as práticas de leitura e a busca de indicadores das maneiras de ler. De fato, evidentemente, a mais elementar interrogação da interrogação sociológica ensina que as declarações concernentes ao que as pessoas dizem ler são muito pouco seguras em razão daquilo que chamo de efeito de legitimidade: desde que se pergunta a alguém o que ele lê, ele entende o que é que eu leio que mereça ser declarado? Isto é: o que é que eu leio de fato de literatura legítima? (BOURDIEU, 2011, p. 236-7).)

De fato, a legitimação social da leitura erudita pode constituir um dos entraves para a veracidade de depoimentos. Via de regra, os questionamentos com leitores (em especial os leitores escolares) apenas repetem o discurso oficial sem revelar suas próprias concepções, inclusive omitindo gêneros não legitimados ou inconfessáveis. Seguindo as interrogações do autor sobre onde encontrar indicadores de leitura, a partir da existência do sistema escolar, o modelo é relativamente simples. A leitura obedece às mesmas leis que as outras práticas culturais, com a diferença de que ela é mais diretamente ensinada pelo sistema escolar, isto é, de que o nível de instrução vai ser mais poderoso no sistema dos fatores explicativos, sendo a origem social o segundo fator. No caso da leitura, hoje, o peso do nível de instrução é mais forte. Assim, quando se pergunta o seu nível de instrução, tem-se já uma previsão concernente ao que ele lê, ao número de livros que leu no ano, etc. Tem-se também uma previsão no que diz respeito à sua maneira de ler. Pode-se rapidamente passar da descrição das práticas às descrições das modalidades dessas práticas. (BOURDIEU, 2011, p. 237).

Situando-se em espaço e tempo contemporâneos, século XXI, centro urbano, escola pública brasileira, o universo adolescente vivencia a tecnologia digital de forma intensa e incorporada definitivamente aos seus hábitos cotidianos. A pesquisadora Lucia Santaella alerta para a importância do conhecimento do que denomina ”comunicação ubíqua“, em especial por parte de educadores e mediadores de leitura. A par de todas as implicações econômicas e políticas decorrentes das profundas transformações culturais que aciona, a ecologia midiática hipermóvel e ubíqua afeta, sobretudo, a cognição humana. Ao afetar a cognição, produz repercussões cruciais na educação. Novas maneiras de processar a cultura estão intimamente conectadas a novos hábitos mentais que, segundo o pragmatismo, desaguam em novos modos de agir. Os desafios apresentados por essas emergências deveriam colocar sistemas educacionais em estado de prontidão. (SANTAELLA, 2013, p. 18-9)

Esse estado de prontidão proposto pela autora implica a inserção dos educadores/ mediadores, em um universo que estão vivendo de forma parcial e indireta, pelo fato de serem, os adultos do século XX, filhos do mundo analógico. Vale lembrar que a televisão chegou ao Brasil nos anos 50. Há um convite para viver as tecnologias, estar nelas para poder sentir as transformações e então opinar, pensar, interagir, apoiar ou criticar. O letramento digital propõe muitos desafios e põe a nu as novas relações entre leitores e mediadores, mistura papeis pré-definidos e os vira literalmente de cabeça para baixo, retirando os educadores de posições confortáveis. Assim como a introdução da mídia televisiva em meados do século XX desafiou o mercado editorial (em especial o literário) a investir em novas linguagens, situação similar acontece no século XXI com a popularização da internet e das mídias que a envolvem. Os conteúdos de novas e antigas mídias se tornam híbridos, criando novas configurações: transformam-se os processos de criação, circulação e consumo do conhecimento onde se inclui o livro literário. Editoras, autores, livrarias, escolas, academias dispõem de meios para produzir autonomamente nos mais diversos formatos, técnicas, linguagens e suportes. Há um

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cruzamento entre mídias alternativas e de massa em múltiplos suportes, caracterizando a era da convergência midiática. A multiplicidade de gêneros que surgiram a partir das novas tecnologias e os ambientes e meios que geraram permite uma visão da complexa rede em que nos enredamos. Luis Antonio Marcuschi (2010, p. 31-32), ao abordar os gêneros emergentes no meio virtual, analisa os ambientes em que esses gêneros se situam, citando Patrícia Wallace. A autora identifica seis ambientes da internet1 que constituem entornos com características próprias, abrigando gêneros e os condicionando. Segundo Marcuschi (2010, p. 31), os ambientes não são domínios discursivos, mas domínios de produção e processamento textual em que surgem os gêneros. A homepage, por exemplo, não é considerada pelo autor um gênero, pois “não passa de um ambiente específico para localizar informações, operando como um suporte e caracterizando-se cada vez mais como um serviço eletrônico.” Idem em relação ao hipertexto: o autor entende que deve ser tratado como “um modo de produção textual que pode estender-se a todos os gêneros dando-lhes neste caso algumas propriedades específicas. Marcuschi enfatiza o fato de que esses novos ambientes se caracterizam como locais que permitem “culturas” variadas, mostrando a heterogeneidade de formatos, maneiras de operação e processos interativos que os constituem. Confronta esses ambientes com a posição do espectador/ouvinte diante da televisão ou do rádio em relação a suas possibilidades de interação e manipulação. Considera-se, para adentramento na investigação, conhecer levantamento de Marcuschi (2010, p. 33-4) para os gêneros emergentes dos ambientes virtuais, listados em doze categorias sem pretensões de designação exaustiva. São eles: e-mail; chat em aberto (bate-papo virtual em aberto – room-chat; chat reservado (bate-papo virtual reservado); chat agendado (bate-papo agendado – ICQ); chat privado (bate-papo virtual em salas privadas); entrevista com convidado; e-mail educacional (aula virtual); aula-chat (chat educacional); videoconferência interativa; lista de discussão; endereço eletrônico e weblog (blogs, diários virtuais). O contraponto dos gêneros emergentes aos gêneros preexistentes é, segundo o autor, a sua característica de “intenso uso da escrita, dando-se praticamente o contrário em suas contrapartes nas relações interpessoais não virtuais” (2010, p. 36) A esse respeito pode-se ilustrar com a educação a distância (EAD) e sua comunicação essencial através da comunicação escrita e da virtualidade.

PERFIL DE LEITOR No contexto analisado, é preciso também situar o perfil de leitor. Em investigação de 1996 (ROLLA, Professor, perfil de leitor) faz um estudo desse profissional criando categorias de leitor2 que, embora remetam hoje a profissionais de Letras e mediadores de leitura, não alcançam as transformações surgidas na relação livro/escrita/leitura com a introdução da literatura no mundo digital. Segundo a pesquisa (ROLLA, 1996, p. 188) “os perfis estabelecidos não isolam o leitor em uma classificação, visto tratar-se de traços relevantes que podem conviver no mesmo sujeito, mas permitem desnudar o modo de envolvimento do professor de Letras com o literário, estabelecendo um recorte na realidade – Porto Alegre, década de 90 – e ampliando espaço na busca de soluções para a situação da leitura no Brasil”. Embora os sujeitos focalizados neste artigo sejam os adolescentes, os professores têm o importante papel da mediação. Busca-se em Lucia Santaella reflexões que atualizam esse estudo. O perfil cognitivo do leitor é, segundo a pesquisadora (2013, p. 265) o “cerne da questão da aprendizagem”. Visualizando o novo tipo de leitor surgido com as redes de comunicação planetárias, Marcuschi (2011, p. 31-2) cita, a partir de Patrícia Wallace (The psychology of the Internet, 1999) seis ambientes virtuais: Ambiente Web (WWW ou WEB); Ambiente e-mail; Foros de discussão assíncronos; Ambiente chat síncrono; Ambiente mud; Ambientes de áudio e vídeo. 2 Na pesquisa Professor: perfil de leitor (PUCRS) a autora propõe em 1996, tipologia que “classifica os professores leitores em perfis que deverão servir de parâmetro para delinear novos rumos para a qualificação do profissional de Letras como leitor e como um mediador de leitura respeitado pela sociedade.” São eles: “não-leitor, leitor apressado, leitor superficial, leitor compulsivo, leitor técnico, leitor escolar, leitor diletante e leitor profissional.” 1

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Santaella sistematiza, a partir de multiplicidade de leitores, quatro tipos: leitor contemplativo, leitor movente, leitor imersivo e leitor ubíquo. O perfil do leitor contemplativo pressupõe a prática, que se tornou dominante a partir do século XVI, da leitura individual, solitária, silenciosa. (...) É uma leitura essencialmente contemplativa, concentrada, que pode ser suspensa imaginativamente para a meditação e que privilegia processos de pensamento caracterizados pela abstração e conceitualização. (SANTAELLA, 2013, p. 268) O segundo tipo de leitor é filho da Revolução Industrial e do aparecimento dos grandes centros urbanos: o homem na multidão (...) É, portanto, o leitor do mundo em movimento, dinâmico, das misturas de sinais e linguagens de que as metrópoles são feitas. Esse leitor nasceu também com a explosão do jornal e com o universo reprodutivo da fotografia e do cinema e manteve suas características básicas quando se deu o advento da revolução eletrônica, era do apogeu da televisão. (SANTAELLA, 2013, p. 267-8) Assim, enquanto a cultura do livro tende a desenvolver o pensamento analítico, lógico e sequencial, a exposição constante a conteúdos audiovisuais conduz ao pensamento associativo, intuitivo e sintético. Hoje se pode afirmar que esse segundo tipo de leitor – o movente – preparou a sensibilidade perceptiva humana para o surgimento do leitor imersivo, que navega entre os nós e conexões alineares dos espaços informacionais da internet. (...) esse leitor que busca, encontra, relaciona, associa e compara fragmentos de informação com uma velocidade inusitada, compondo e interpretando uma mensagem intersemiótica, composta de elementos sonoros, visuais e textuais. (SANTAELLA, 2013, p. 270) À mobilidade física do cidadão cosmopolita foi acrescida a mobilidade virtual das redes. A popularização gigantesca das redes sociais do ciberespaço não seria possível sem as facilidades que os equipamentos móveis trouxeram para se ter acesso a elas, em qualquer tempo e lugar. É justamente nesses espaços de hipermobilidade que emerge o leitor ubíquo, com um perfil cognitivo inédito que nasce do cruzamento e mistura das características do leitor movente com o leitor imersivo. (...) o que estou chamando de leitor ubíquo não é outra coisa a não ser uma expansão inclusiva dos perfis cognitivos dos leitores que os precederam e que ele tem por tarefa manter vivos e ativos. (SANTAELLA, 2013, p. 287,282)

A transformação dos processos de comunicação expandiu o conceito de leitura, dando lugar a múltiplos leitores e mudando radicalmente os modos de ler.

3. O UNIVERSO ADOLESCENTE E SUAS PRÁTICAS DE LEITURA As “pimentinhas”, como são apelidadas as leitoras da escritora Paula Pimenta3, e suas práticas de leitura podem mapear caminhos de aproximação do universo adolescente, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante do mundo adulto pouco conectado. Em uma escola pública brasileira de centro urbano, chama a atenção o modo como as adolescentes festejam a presença da autora: emoção, participação, aquisição particular das obras (incomum em programas de leitura que suprem as bibliotecas da escola com obras dos autores que irão visitá-los) e envolvimento em outras instâncias não escolares. Perfil da autora: supre as leitoras com histórias de seu universo adolescente e se realimenta com elas, atualizando-se e transformando-as em novas obras de agrado deste público (meninas de 12 a 20 anos); está em constante contato com as leitoras através de site, blog, YouTube, Twitter e Snapchat, compartilhando experiências do mundo real e ficcional, reforçadas pelo mundo virtual. Realidade, virtualidade e ficção se mesclam: Paula Pimenta promove anualmente um intercâmbio para a Califórnia nos espaços reais/ficcionais em que se movimentam seus personagens. Convive com suas leitoras nesses espaços reais revivendo os espaços ficcionais frequentados por Fani, Prisci http://www.paulapimenta.com.br/

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la, Leo, Rodrigo, ao mesmo tempo em que está presente virtualmente com outros leitores através do compartilhamento dessas experiências via Snapchat. O comportamento midiático da autora lembra os perfis apresentados: publicação de obra impressa (convite à leitura introspectiva, individual, em um tempo e espaço privados); domínio da tecnologia digital, usando-a a seu favor como peça de marketing pessoal (dirigida a leitores com perfil semelhante, imersos no mundo da hipermobilidade). Perfil de leitoras: Dienifer (15 anos) leu o volume 3 de Minha vida fora de série em uma noite: entre 20h e 7h devorou a obra de 400 páginas. Segundo a jovem, não conseguiu parar de ler até terminar, curiosa por saber as reações da personagem diante de cada acontecimento: “A Paula é tudo, ela nos emociona, nos faz chorar, as coisas que acontecem com a Fani ou com a Pri são iguais às que acontecem com a gente, não parece fantasia, são coisas que a gente vive.4 Com perfil típico de leitora contemplativa – coleciona livros, lê exaustivamente esquecendo a passagem do tempo, frequenta com assiduidade a biblioteca da escola, compartilha leituras com as amigas, gosta de ganhar livros de presente – a jovem também está conectada com o mundo virtual. A literatura está presente em seus contatos na web: compartilha suas leituras no Skoob, rede social de leitores; segue amigas pelo Facebook e acompanha blogueiras que debatem literatura. Raphaela (14 anos) é uma leitora voraz de livros impressos e fanfics5 Tem um modo peculiar de ler: faz leitura concomitante na obra impressa e nos fanfictions que relem a obra. É uma representante do leitor ubíquo: circula com desenvoltura entre o seu ambiente físico (lendo capítulos da obra e conversando com colegas) e o ambiente virtual através de um aplicativo no celular em que acessa a rede social Spirit onde acompanha a mesma obra em fanfics. A sua leitura é similar à descrita por Santaella: Ao leve toque do seu dedo no celular, em quaisquer circunstâncias, ele pode penetrar no ciberespaço informacional, assim como pode conversar silenciosamente com alguém ou com um grupo de pessoas a vinte centímetros ou a continentes de distância. O que o caracteriza é uma prontidão cognitiva ímpar para orientar-se entre nós e nexos multimídia, sem perder o controle da sua presença e do seu entorno no espaço físico em que está situado. (SANTAELLA, 2013, p.278)

Spirit6 é uma rede social de fãs de animes, mangás, doramas, músicas, livros, filmes, seriados e games. O site permite ao usuário fazer sua própria página, acompanhar, ler, escrever e compartilhar textos. Os gêneros7 praticados na rede têm uma distribuição diferente dos gêneros tradicionais, mostrando autonomia em relação ao conhecimento institucionalizado. O usuário segue o caminho que quer, seja como leitor, crítico ou produtor de textos. Optando por livro, Raphaela acessa categorias (títulos de obras que está lendo) e o gênero de preferência. Para cada gênero há fanfics criados por internautas e disponibilizados para leitura, permitindo à jovem fazer seu percurso particular – do capítulo do livro impresso para o fanfic das fãs que acompanha. Ela se permite também publicar, sendo sua preferência a poesia. Circula, então, da narrativa para a poesia, do físico para o virtual sem mediação de adultos, entre seus pares, estabelecendo com liberdade suas práticas de leitura e produção. O portal cria também espaços similares aos convencionais: as narrativas “publicadas” podem ter o olhar de um “revisor”. São os “Beta Readers8, usuários que participam do Spirit e se disponi Depoimento de leitora em encontro em escola municipal do Programa de Leitura Fome de Ler. Fanfiction, fanfic ou apenas fic é uma narrativa ficcional, escrita e divulgada por fãs em blogs, sites e em outras plataformas pertencentes ao ciberespaço, que parte da apropriação de personagens e enredos provenientes de produtos midiáticos como filmes, séries, quadrinhos, videogames, etc, sem que haja a intenção de ferir os direitos autorais e a obtenção de lucros. Portanto, tem como finalidade a construção de um universo paralelo ao original e também a ampliação do contato dos fãs com as obras que apreciam para limites mais extensos.  6 Rede social de fãs – www.socialspirit.com.br 7 Ação, Aventura, Colegial, Comédia, Drama (Tragédia), Escolar, Esporte, Famí­lia, Fantasia, Festa, Ficção, Ficção Científica, Hentai, Luta, Magia, Mistério, Misticismo, Musical (Songfic), Orange, Poesias, Romance e Novela, Saga, Shonen-Ai, Shoujo (Romântico), Shoujo-Ai, Sobrenatural, Super Power, Survival, Suspense, Terror e Horror, Universo Alternativo, Violência, Visual Novel, Yaoi, Yuri 8 https://socialspirit.com.br/fanfics/betas 4 5

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bilizam a ajudar outros usuários com seus trabalhos (fanfics) no canal, indicando o que pode ser melhorado gramaticalmente, dando opiniões críticas e construtivas através de comentários e os auxiliando com suas dúvidas”. Outro espaço de circulação dos leitores hiperconectados são os blogs9 e os vlogs10 literários, constituindo-se em canal livre de produção crítica sobre leitura da literatura, sem preocupações acadêmicas, criados e mantidos por jovens aficcionados pelo assunto. Assim como as redes sociais (Spirit e Skoob), esses canais de comunicação virtual são independentes da crítica oficial e apresentam produção invejável se levamos em conta seu caráter gratuito e voluntário. A audiência é também de jovens que estabelecem seu percurso de leitura de forma similar ao das redes sociais: o comentário positivo de uma obra leva invariavelmente a sua leitura, compartilhamentos, produções etc em escala infinita, porque tudo é postado na rede. Os blogs literários circulam ao largo da escola, que provavelmente os desconhece. A blogueira e vlogueira Victória (15 anos)11 é um exemplo concreto de adolescente leitora, crítica de literatura, geração multimídia. A jovem mantém em atividade o blog Chiclete Violeta12 com resenhas de obras e vídeos (semanais) onde fala sobre temas que causariam inveja a professores de literatura, pela sua desenvoltura e embasamento. Assuntos como Fanfiction interativa, Como ler mais?, Tag livros opostos, Tag doenças literárias, Depois dos quinze, Resoluções literárias para 2015, Novos na estante, Garoto encontra garoto, Livros pra morrer de rir são alguns exemplos de vídeos (com média de 8 minutos) onde conversa com desenvoltura com sua audiência. Seus vídeos têm uma média de 10000 visualizações, mostrando o seu poder de mediação de leitura. Impressiona a qualidade de seus argumentos e a sua independência crítica em relação a posicionamentos do marketing literário. A mediação acontece também a partir da possibilidade de fazer comentários sobre o vídeo. A interação virtual multiplica leituras e ideias que conduzem a outras leituras. Sobre um deles, A hipocrisia de jogos vorazes, que alcançou 31722 inscritos, a opinião de um internauta inscrito. Legal sua visão! Eu tenho uma visão diferente! Para mim, os distritos são os países, e quanto mais pobre o país, maior o seu número. A capital seria os países ricos. Pensamos que os países desenvolvidos roubam as riquezas dos países pobres para ser ricos! Como? As empresas como Microsoft, Apple, Nokia, Nissan, Santander, Fiat, etc.. Essas empresas detém as tecnologias, compra a preço de banana as matérias primas, dão a forma, e os produtos com tecnologia embutido são vendidos a preços enormes para o consumidor. Portanto, ao colocar como inimigo o presidente Snow, na minha visão é o mesmo que colocar todo o sistema econômico que vivemos, assim sendo o capitalismo. A questão é que o capitalismo mudou de forma nos últimos anos, ele não se concentra nas polaridades de países desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas ele é baseado nas classes sociais estruturadas dentro dos países. Dessa maneira, temos pessoas que vivem na capital ao lado de pessoas que vivem dentro do distrito 12. E o ataque que ela faz não é diretamente nas pessoas que vivem com luxo ou glamour, é no sistema! São nas grandes companhias que dominam o mundo, e faz parte dessa população cerca de 0,5% da população mundial. Com isso podemos pensar em um mundo bem parecido com o livro a Condição Pós-Moderna de David Harvey, ou com as teorias de Boaventura de Souza Santos. Você tem boas ideias, possivelmente deve estar no ensino médio, continue lendo! 13

Blogs de literatura com blogueiros jovens: http://eaibeleza.com/livros Blog Livros e coisas afins de Tauana Jeffman (RS) 20 anos; http:// tauanaecoisasafins.blogspot.com.br/2014/03/sick-lit-genero-literario.html; Blog Universo literário de Franciele Couto http://www.universoliterario.com.br/ ; Blog Relicário de Erika Rodrigues 22 anos http://numrelicario.blogspot.com.br/ ; Blog De frente com os livros, de Clóvis (Aracaju) 20 anos http://defrentecomoslivros.blogspot.com.br/ 10 Videoblogue (Videoblog, Videolog ou Vlog) é uma variante de weblog cujo conteúdo principal consiste de vídeos. Com estrutura geralmente similar à de weblogs e fotologs, possui atualização frequente e constitui-se como um site pessoal, mantido por uma ou mais pessoas. Os vídeos são exibidos diretamente em uma página, sem a necessidade de se fazer download do arquivo. 11 Apresentação de Victoria em seu Blog: “Nunca fui boa em falar de mim mesma. Meu nome é Victoria, mais conhecida como Vickie, tenho 15 anos, e três sonhos: Morar em Paris, ter uma festa de 15 anos perfeita e publicar um livro. Sou Marooner, Leviner, Lovatic, Brat, Potterhead e Tributo. Louca por filmes, livros e música. Quero ser médica (bem no estilo House de ser), escritora e Web Designer. Criei o Chiclete Violeta para ter um lugar onde posso me expressar e falar sobre as coisas que gosto. Um aviso: sou extremamente chata, irritante, extrovertida, criativa, romântica, organizada e um pouco devagar. 12 http://chicletevioleta.blogspot.com.br/ 13 André Messetti Christofoletti - https://www.youtube.com/watch?v=ZyACw95jCFA 9

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As novas mídias transformaram o restrito universo literário dos adolescentes (leituras escolares de literatura “inofensiva” ou “consagrada”), ampliando os seus canais de acesso, produção e modos de ler, o que permite hoje um afastamento de escolhas convencionais (de obras dos cânones literários) e o seu protagonismo como autores e leitores fora dos padrões pré-estabelecidos pelos adultos (pais, professores, mercado livreiro). A mediação mudou e os blogs, vlogs e fanfics produzidos por adolescentes e jovens têm critérios pessoais, sem preocupação com a crítica formal consagrada da escola e das mídias tradicionais. Os novos mediadores dominam a mídia digital: blog, vlog, Twitter, Facebook, Instagram, Snapchat; partilham contatos através da blogosfera literária (Skoob); são blogueiros e mantêm atividade em seus blogs com periodicidade; são visados pelas editoras, com potencial para promover seus livros; falam sobre literatura com desenvoltura, fazem resenhas, indicam leituras; postam vídeos e fazem leituras compartilhadas; apresentam-se em outras mídias (jornalismo, programas de entrevistas, televisão, encontros em livrarias, cursos, oficinas); aventuram-se como escritores e publicam livros e e-books; formam grupos de convivência/compartilhamento no mundo real. Os novos mediadores com suas novas práticas estão abrindo espaços (qualificados ou não) com vida própria de usuários e receptores. Retomando o posicionamento inicial, o assunto não se esgota e as considerações sobre livro, leitura e suas práticas são complexas e mutantes e escapam ao olhar de educadores, pesquisadores e críticos se não fixarem seu olhar para as gerações de leitores contemporâneos.

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. A leitura, uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger (Org). Práticas da leitura. 5 ed. São Paulo, Estação Liberdade, 2011. p.231-253 CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In:_______. Práticas da Leitura. 5 ed São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 77- 105. MARCUSCHI, Luis Antonio. Gêneros textuais emergentes no contexto da tecnologia digital. In: MARCUSCHI, Luis Antonio; XAVIER, Antonio Carlos (Orgs.). Hipertextos e gêneros digitais: novas formas de construção de sentido. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2010. p. 15-80 PECORA, Alcir. O campo das práticas da leitura, segundo Chartier. Introdução de Alcir Pécora a edição brasileira. In: CHARTIER, Roger (Org). Práticas da Leitura. 5 ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. p. 10-11 PIMENTA, Paula. Minha vida fora de série: 3 temporada. 10 ed. Belo Horizonte: Gutenberg, 2013. ROLLA, Angela da Rocha. Professor: perfil de leitor. Tese Doutorado em Letras, Instituto de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 1996. SANTAELLA, Lucia. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação. São Paulo: Paulus, 2013.

LETRAMENTO LITERÁRIO EM UM PROJETO DE EXTENSÃO: O CASO DA CONFRARIA LITERÁRIA DO CA-UFSC Arlyse Silva Ditter* (UFSC) “A prática do letramento literário é como a invenção da roda. Ela precisa ser inventada e reinventada em cada escola, em cada turma, em cada aula” (Cosson, 2014, p. 120).

A Literatura pode cumprir um papel estratégico no desenvolvimento de nossos alunos, “quer no sentido estrito de favorecer o trato com a escrita, quer no mais amplo, de educar os sentimentos e favorecer o entendimento das relações sociais”(PAULINO& COSSON, 2009, p. 63). Entretanto, o tradicional papel que a Literatura ocupa nas salas de aula não tem corroborado com esse desenvolvimento. No Ensino Médio, o quadro é mais grave, ainda prevalece o que os autores citados chamam de “elitismo cultural de almanaque”, o foco se reume às biografias de autores, descrição de períodos, resumos das obras consideradas importantes ao invés de priorizar a leitura integral e a abordagem estética, sobretudo. Enfim, acaba que “A soma de conhecimentos sobre Literatura é o que interessa, não a experiência literária”.(idem, p. 72) Para ilustrar, lembramos que o texto narrativo, por exemplo, vê-se recorrentemente na escola, mas a poesia ocupa um lugar marginal. Averbuck (1993) conclui em seus estudos que, apesar dos professores, alguns alunos até conseguem realizar, sozinhos, sua incursão pelo domínio da poesia. O que ocorre é que “(...) a sala de aula, antes de ser o território da inventividade, é na maioria das vezes, o lugar onde se anulam as possibilidades de criação e inovação”(1993,p.65). Ou seja, como o texto poético é o texto da experiência estética, por excelência, ele é preterido. A autora faz interessante reflexão de como o papel tímido que a poesia/arte recebe na escola está de acordo com a própria maneira com que a sociedade se organiza. Pouco espaço se tem, e pouco se dá ao que perfila uma abordagem individual. A poesia e arte em geral participam dessa área “não lucrativa” onde se inserem as atividades prazerosas e lúdicas, excluídas do programa de vida de uma sociedade voltada para o ganho[...]O preconceito, que atinge todas as esferas da vida social, estende-se à escola, motivando no professor uma atitude de desinteresse e até mesmo um certo mal-estar, ou culpa, quando ele ocupa suas aulas com o trabalho com textos poéticos. (Averbuck, 1993, p. 66)

Essa postura, ainda segundo a autora, revela um desconhecimento – dos educadores - das possibilidades e potencialidades que a Literatura e a Arte possuem na formação da personalidade, na humanização. Para viabilizar tais possibilidades e potencialidades tem-se o conceito de Letramento. O Letramento Literário, segundo a abordagem de Cosson e Paulino (2009), é apropriação da Literatura enquanto linguagem, inicia-se o primeiro contato, como por exemplo, com as cantigas de ninar. No entanto, é uma aprendizagem que permanece ao longo da vida do educando, ao mesmo tempo que se transforma a cada nova e significativa leitura realizada. Por isso, é um processo além do contexto e momento escolar, promove no leitor um movimento de apropriação e transformação daquilo que foi lido e pode ocorrer em outras esferas, além da curricular. Portanto, é criando mais espaços para leitura, que se pode formar um leitor. *

Licenciada em Letras, Mestre em Educação, UFSC, Brasil. E-mail:[email protected]

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O presente texto descreve a criação de uma ação de extensão realizada no Colégio de Aplicação da UFSC, cujo objetivo é oportunizar eventos de letramento, em que a Literatura seja a escrita escolhida para interação social, portanto, o Letramento Literário. Pretende-se experimentar e construir práticas de letramento diferentes daquelas que sacralizam a Literatura no universo escolar, mas, principalmente, busca-se formar leitores que não precisem da escola para continuar a prática social nesse universo artístico, que sejam capazes de perceber que a Literatura deve e pode fazer parte do cotidiano. O texto que segue, primeiramente, apresenta a gênese dessa ação de extensão: como ela surgiu e como foi se delineando desde então. A seguir, encontra-se exposto o planejamento de três desses eventos de Letramento Literário, com diferentes gêneros. Encerra-se o texto, revelando a riqueza desse trabalho, ao expor algumas das inúmeras questões de pesquisa que ele suscita.

1. A GÊNESE DA CONFRARIA LITERÁRIA Desde 2013, o Colégio de Aplicação (CA) da Universidade Federal de Santa Catarina conta com uma ação de extensão intitulada Confraria Literária do Colégio de Aplicação. Ela visa promover, ampliar os espaços de formação do leitor, tanto na linguagem literária, como nas linguagens de outros objetos culturais: filmes, músicas, etc.Um grupo de alunos do CA - do Ensino Fundamental II ao Médio - é o público alvo, e participam também: professores, técnicos, alunos da graduação, familiares, e pessoas externas à comunidade da UFSC. De início, dezessete alunos compareceram à primeira reunião, atendendo ao chamado feito a todas as séries dos segmentos já citados. Essa reunião versou sobre a pergunta: “O que é Literatura?, além de uma enquete sobre gostos e interesses do grupo para discutir e viver a leitura literária. Ficou decidido que a partir dos primeiros encontros, os participantes iriam, concomitantemente a discussões temáticas, avaliar as reuniões e delinear as próximas atividades do grupo, respondendo às perguntas: O que fariam? Como e onde? Quem participaria (um perfil dos integrantes), e que tipo de participação seria? Que objetivos teria? Com que frequência e quando o grupo se reuniria? Duas professoras de Língua Portuguesa fundaram esse trabalho, a que o coordena até hoje, que tinha uma intenção pessoal de vivenciar um grupo de leitores aos moldes do que viveu na sua adolescência. Enquanto a outra, pretendia investigar os perfis de leitores das inúmeras séries de livros que vem sendo fenômenos de vendas. O objetivo principal acordado, quando desse momento da fundação do grupo, seria o de promover o diálogo entre os leitores, para assim, compartilharem suas experiências literárias e ampliarem seus repertórios. Esses leitores – os confrades - deveriam ser de diferentes idades e fluências leitoras, ampliando de forma horizontal, portanto, seu repertório cultural. Os encontros ocorriam, primordialmente, no Laboratório de Linguagens: uma sala ambiente projetada para ser lúdica - com almofadas, tapetes e espaços para criação; longe da clássica organização, como fileiras de mesas diante de uma lousa. Mensalmente, em um dia da semana variável, escolhido por consenso, entre os participantes do grupo (os confrades) ocorriam as reuniões. Tentava-se (mas nem sempre se conseguia) não ultrapassar o horário das 18h às 20h. As professoras propuseram haver uma alternância a quem assumisse a coordenação das propostas e das dinâmicas dos encontros. Algumas vezes seriam os alunos; outras, elas. E assim o foi, nos dez encontros do ano fundador: 2013.Os alunos indicaram os títulos literários que figuram na lista dos Best Sellers às Long Sellers, e propuseram Percy Jackson, de Rick Riordan; Harry Potter, de J. K. Rowling e Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, por exemplo. As professoras, poemas de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), contos de Edgar Allan Poe (incluindo textos góticos, inspirados nesse autor, produzidos por alunos do Ensino Médio), entre outros. Os encontros foram nomeados de Café Lite-

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rário, sem ser uma cópia de outros eventos homônimos, pois havia a necessidade de se fazer uma refeição ao final do dia, junto à discussão literária. Ampliando-se entre 2013 e 2015, essa ação de extensão amadureceu. Reuniões convocadas como assembleia, no final e início de cada ano letivo, todos confrades avaliaram e projetaram a Confraria durante esse período. Uma lista, por exemplo, com mais de vinte filmes foi composta para futuros eventos, quase todos os títulos sendo adaptações de obras literárias, dos clássicos antigos aos blockbusters como, por exemplo: 2001, uma Odisseia no Espaço (adaptação dirigida por Stanley Kubrick, em 1968); Os Miseráveis (adaptação dirigida por Tim Hooper, em 2012), Alice no País das Maravilhas (adaptação dirigida por Tim Burton, em 2010), Jogos Vorazes (adaptação dirigida por Francis Lawrence, em 2012). Os encontros sobre filmes tinham a exibição do filme, seguida da fala inicial de um confrade convidado para isso, e um debate. Com a pauta cinematográfica, o horário do encontro passou a ser até às 22h.Essa noite deveria ser uma sexta-feira, pois no outro dia não há atividades letivas no CA. Criou-se assim, o Café Cinematográfico, derivação do Café Literário. Uma pauta de música, tão extensa quanto a cinematográfica, também foi sugerida, contemplando, basicamente, a MPB, junto ao gênero poesia, com sugestões de autores de várias épocas. Criava-se a Sobremesa Literária, encontros mais curtos, de 45 minutos, na hora do almoço, momento em que os alunos de ambos os turnos também poderiam se encontrar, como ocorre nos encontros noturnos. Assim, não se perdia a característica principal do grupo – heterogeneidade da fluência leitora. Outras três modalidades de eventos também foram projetadas: a Viagem Literária, (viagem de estudos literários). A primeira foi programada para os meses de abril e maio de 2015, mas foi suspensa devido ao arrocho do orçamento sofrido pelas instituições federais de ensino. Leríamos o Mito da Caverna, de Platão, nas cavernas de Botuverá, SC. A Poenata, que oferece poemas como em uma serenata, homenageando o ouvinte: pais, professores, amigos, entre outros.Manifestos Literários, evento que pretende utilizar a Literatura como instrumento de engajamento político por várias causas, incluindo uma luta por ela mesma. E sessões de Contação de Histórias, com o objetivo de tornar os confrades mais velhos, agentes mediadores de leitura. Esse delineamento, com diversas atividades, foi surgindo aos poucos, por experimentações, necessidades, sugestões ao longo desses três anos. Atualmente, a Ação de Extensão Confraria Literária do Colégio de Aplicação da UFSC tem como características: - ser aberta a todos os gêneros literários e cinematográficos, a todos os estilos musicais. Os encontros vão dos best sellers, das long series (geralmente propostos pelos confrades) aos clássicos (ambição maior das professoras e de outros convidados adultos); - priorizar a experiência estética. Tanto sob a condução docente, quanto pela discente. A dinâmica que orienta a proposta para cada encontro é a de provocar o contato com a obra escolhida por experimentações estéticas (uma pergunta, um desenho, uma dinâmica, etc). Quase sempre não é exigido que o aluno leia previamente a obra do encontro, ela é abordada na íntegra, a partir do ponto de vista provocativo – a experimentação estética proposta para a reunião; - ser aberta a todas as linguagens. São elas, muitas das vezes, que provocam a experiência estética, criam e recriam os sentidos sobre o que é lido na Confraria: teatro para montar trechos de um livro, concurso entre os participantes sobre a caracterização de personagens, leitura dramática de trechos emblemáticos, jogos para averiguar quem sabe mais sobre as narrativas escolhidas, entre outros; - viabilizar, a cada encontro, um momento, inicial ou final, programado para ser de interação social, por exemplo ao redor de uma mesa de café, ou de doces, ou de piquenique. O lanche comunitário, como já dito, surgiu por necessidade de fazer uma refeição ao fim do dia, e

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acabou se tornando o momento de interação social entre os membros. Enquanto se forma novos grupos de amigos, reforça-se os que já existem. Ressalta-se que as conversas nesse momento giram, quase sempre, em torno de objetos culturais. E essa característica – gastronômica - ajudou até a intitular os encontros: Café Literário, Sobremesa Literária, Café Cinematográfico; - “iniciar” o confrade com o ritual proposto desde a fundação da Confraria. Na primeira vez presente em reunião do grupo, o confrade é convocado a socializar uma leitura (filme, poema, dependendo do encontro) que tenha sido marcante em sua vida e que possa agradar os presentes. Ou seja, o participante apresenta-se por meio de uma resenha oral; - o grupo estende seus encontros às redes sociais. Para dinamizar a comunicação entre os integrantes na hora de fazer os combinados necessários a cada encontro – data, coordenadores, obra, entre outros - os alunos solicitaram que fosse criado um grupo fechado em uma rede social.E só é permitido, via de regra, estar nele quem é confrade. A partir da criação desse espaço, ele foi utilizado para compartilhar e comentar, também, outras leituras e eventos culturais: cinema, teatro, shows. Atualmente, a Confraria tem ainda uma página aberta (pública) em rede social1 e um blog2 que, respectivamente: divulga os eventos da Confraria para possíveis integrantes, ampliando o público; e arquiva, virtualmente, o trabalho, com registros mais sistematizados, mostrando cada evento, mais horizontalmente, devido a organização visual da interface de um blog. - já do ponto de vista metodológico, os encontros são planejados a partir de uma teoria de base e outras – que surgem conforme o objeto cultural ou o convidado. A base é proposta da sequência didática expandida, conceito defendido por Cosson (2006), a ser descrita a seguir.

2. UM CAMINHO METODOLÓGICO Rildo Cosson (2014), a partir do ato de leitura, sugere uma metodologia em que, na construção de seus pressupostos teóricos, trabalhe com teorias linguísticas sobre o processamento sociocognitivo da leitura, discutindo questões importantes como a decodificação, interpretação, construção de sentido de um texto. Em resumo, defende duas propostas para a realização desse trabalho: a sequência didática básica e a sequência didática expandida. A primeira sequência, intitulada básica, é constituída por quatro passos: motivação, introdução, leitura e interpretação. É indicada pelo autor para os alunos das séries iniciais. A motivação prevê preparar o aluno para o texto. Se bem elaborada ela facilitará o trabalho. A introdução é a apresentação do autor e da obra e, independentemente, da estratégia utilizada para introduzir a obra. Para o acompanhamento e direcionamento do trabalho, Cosson (2014) ressalta a importância dos intervalos. Espaços de tempo que dá ao professor a oportunidade de perceber o percurso de leitura dos alunos, em seus sucessos e percalços. Já a interpretação constitui-se das inferências para chegar à construção do sentido do texto, dentro de um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade. A importância dessa última etapa é que o aluno tenha a oportunidade de fazer uma reflexão sobre a obra lida e externalizá-la de forma explícita, permitindo o estabelecimento do diálogo entre os leitores da comunidade escolar. A sequência expandida possui cinco etapas de aprofundamento: primeira interpretação, contextualização (teórica, histórica, estilística, poética, crítica, presentificadora e temática), segunda Página aberta em rede social.Divulga os eventos, palestrantes e dicas de objetos culturais, diferencia-se da página fechada na mesma rede social, por não divulgar fotos, textos, posts de membros que frequentam as reuniões da Confraria. Pode ser acessado em: https://www. facebook.com/confrarialiterariadoca 2 Blog da Ação de Extensão do Colégio de Aplicação da UFSC, Confraria Literária. Nele estão publicados a programação das atividades do grupo, perfil dos convidados, depoimentos, fotografias, um vídeo sobre a Confraria, entre outros. Pode ser acessado em http://confrarialiteraria.wix.com/confraria-literaria 1

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interpretação, expansão e experiência reveladora, além, claro, das etapas da sequência básica que inciam o leitor no texto e que estão inseridas aqui. Por ter mais complexidade, a sequência exapandida vai ao encontro dos alunos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio, exatamento o púlico-alvo da confraria. As etapas acrescidas à sequência didática expandida – contextualiação e expansão/experiência reveladora - faz com que o leitor posicione-se diante da obra literária para além de identificá-la, questioná-la e expandir os sentidos. A abordagem histórica encontra-se aqui enriquecida pela experiência individual, ambas tem um papel relevante na leitura. O mundo exterior e interior são utilizados para compreender a obra. Tem-se um aprendizado crítico, que como coloca o autor, não se faz sem um encontro pessoal com o texto enquanto experiência estética; que é a base do Letramento Literário. ... na escola é preciso compartilhar a interpretação e ampliar os sentidos construídos individualmente. A razão disso é que, por meio do compartilhamento de suas interpretações, os leitores ganham consciência de que são membros de uma coletividade e de que essa coletividade fortalece e amplia seus horizontes de leitura. (COSSON,2009, p. 65)

Essa coletividade e ampliação de leitura é o que ocorre na Ação de Extensão Confraria Literária do CA que já esteve envolvida em vários gêneros de texto: poema, música, romance, conto como exposto a seguir.

3. TRÊS MOMENTOS Dos quase quarenta encontros já organizados pela Confraria, destaca-se neste trabalho três. Eles exemplificam essa ação de extensão como um espaço para formação do leitor em diferentes gêneros, sob a metodologia aqui descrita. No primeiro encontro descrito expõe-se o trabalho com um conto de Machado de Assis, intitulado “O enfermeiro”. Neste texto, o autor aborda vários temas, sendo um deles, a intolerância ao idoso.No segundo, foi proposto uma antologia de poemas sobre o tema amor, com autores de vários estilos literários (Fernando Pessoa, Arnaldo Antunes, Castro Alves, Mario Quintana, entre outros) o que amplia a visão do tema sob vários pontos de vista. No terceiro encontro descrito, está o debate em torno de um texto epistolar do filósofo da antiguidade clássica, Epicuro, é Carta a Felicidade, em que o autor indica o caminho da simplicidade a um de seus discípulos como o segredo para a auto realização. A tabela a seguir expõe de forma sintética esses três momentos, a partir de um da metodologia de Cosson (2009). Tem-se, portanto, as etapas: da motivação, da leitura, da interpretação interior,interpretação exterior, da expansão e da avaliação.

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Quadro 1: Descrição de Encontros da Confraria Literária do CA O enfermeiro

Poemas sobre Amor

Cartas a Felicidade

Machado de Assis

Antologia

Epicuro

Iniciou-se a reunião indagando aos presentes sobre a relação da sociedade com as pessoas mais idosas. Como são vistas e toleradas em suas limitações. Logo depois foi proposto um exercício dramático, em que todos deveriam circular pela sala encenando tais limitações. Como seria subir uma escada? E correr atrás de um ladrão?

O que é o amor? Quem já amou? Como foi a experiência? De que forma descreveria isso poeticamente? Foram as perguntas que abriram a reunião.

Neste encontro, foi solicitado aos participantes que desligassem o celular, guardassem o relógio, deixassem os pertences de fora da sala e entrassem descalços na sala. A sala estava iluminada à luz de velas e havia apenas um tapete para sentar.A mesa de lanche não disposta, nem podia-se levar algum alimento. A pergunta exposta no próprio convite teve várias respostas para dar início à reunião: O que é felicidade?

Leitura

A leitura inicial foi feita em voz alta, pela palestrante, uma professora de Língua Portuguesa. Foi disponibilizado aos alunos, dicionários no caso de encontrarem palavras que o contexto não deixasse claro o significado.

Após uma leitura silenciosa da antologia, os textos foram lidos em voz alta, por voluntários.

A leitura foi feita em voz alta por uma das professoras participantes.

Interpretação Interior

Durante a leitura também, foi disponibilizado aos alunos material de desenho: lápis e papel e eles podiam ao invés de ler, apenas ouvir e desenhar ou escrever os trechos que mais lhe marcaram. Após a leitura, resgatou-se o enredo do texto.

A interpretação interior e a exterior misturaram-se nesse encontro. Em debate, as interpretações foram surgindo e as professoras responsáveis pelo encontro ambas de Língua Portuguesa - forneciam o contexto histórico de produção e de abordagem do tema.

Os alunos expuseram o que entenderam. Identificaram como mensagem básica do texto, informações sobre uma vida mais simples, sem tantas preocupações materiais.

Interpretação Exterior

Um debate semi dirigido foi proposto para entender o contexto de produção do texto, bem como de abordagem do tema.

Essa etapa foi inserida na subsequente.

Os alunos analisaram o contexto, mais profundamente, conduzidos por um professor de Filosofia. Ele releu alguns trechos e os colocou em questão, frente a diferentes contextos da atualidade: consumismo, guerra, falência do planeta, entre outros.

Expansão

Espontaneamente, vários participantes trouxeram exemplos de objetos culturais que tratam dos temas e mensagem do conto. Em contraponto, os confrades trouxeram à discussão a evidente ausência de objetos culturais na grande mídia que aborde os temas que envolvem o idoso.

Aos participantes foram dados 30 minutos para montarem uma perfomance para a apresentar o texto escolhido. Poderiam usar todo material solicitado: vestuário, cenário, sonoplastia.

Vários objetos culturais foram mencionados, desde letras de rock que clamam por liberdade, até letras de funk, que muitas das vezes fazem apologia à riqueza. Houve também uma discussão em torno da imposição de consumo midiático como os smartphones, hoje item de consumo até de crianças bem pequenas. Será que ele geraria felicidade?

No encerramento, avaliou-se o encontro, a dinâmica de interação proposta para o tema. Ressalatou-se a importância das linguagens na abordagem literária. O jogo cênico foi identificado como o ponto alto do encontro pela maioria dos confrades.

Coletivamente, avaliou-se o trabalho, os elementos de intertextualidade propostos foram considerados grandes reveladores da criatividade de cada leitor. A paródia, presente na maioria das perfomances, pelas releituras, foi colocada pelos participantes como um elemento rico de leitura da realidade, da sociedade de forma anacrôncia e sincrônica.

Metodologia Motivação

Avaliação

Fonte: a autora.

Cerca de 15 poemas sobre amor de diferentes autores foram distribuídos para grupos de 2 a 4 integrantes. Eles deveriam, após leitura escolher um, o que mais o impactasse.

O poema Todas as Cartas de Amor são Ridículas de Alvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, por exemplo, teve uma apresentação entrecruzada com uma música do Roberto Carlos. Ainda teve seu final modificado, no qual havia um final trágico para o enamorado eu lírico do texto.

Para a maioria dos participantes, a escolha de um texto tão antigo que poderia ser rejeitado exatamente por esse motivo, tornou-se interessante pela abordagem inicial. Toda ambientação acrescida de ter somente pão e água para consumir, somente no final do encontro, foi decisivo para se pensar sobre a temática proposta.

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Nota-se uma diferença no uso da metodologia sugerida por Cosson (2009) para o Letramento Literário. Como já citado pelo autor, o professor deve ver a Literatura como uma experiência e, não como um conteúdo a ser avaliado, no entanto, inserimos na metodologia a etapa da avaliação. Como se pode observar, os encontros encerram-se com a apreciação de cada confrade sobre o encontro. Acreditamos que compreender essa experiência como um exercício de metacognição e expô-la coletivamente é catalizar o processo de formação do leitor crítico. Além disso, essa etapa nos fornece um feed back para prosseguirmos alinhados ao grupo.

4. A ESPERA DE NOVOS ENCONTROS Muitas questões surgem nesses três anos de trabalho, rapidamente pinceladas neste texto, e fornecem uma interessante demanda de pesquisa em relação à formação do leitor sob o Letramento Literário, material para outros artigos. Como, por exemplo: Quais são os percursos de leitura assumidos pelos confrades após o encontro da Confraria? Quando o confrade escolhe ler algumas das indicações, qual é o fator motivador: o gênero, o tema, o leitor que a indicou?; Quais as dinâmicas para vivência das experiências estéticas propostas pelos encontros da Confraria, sobre determinada obra ou autor, impactou mais o confrade leitor? Por quê? ;- Quais as obras ou autores lidos nos encontros que o leitor confrade releu em casa? Ainda há várias questões surgidas e que ambicionam outras áreas além do Letramento Literário para respostas. Seriam, por exemplo, aquelas que investigam mais de perto: a transformação do leitor de mundo em seu processo de humanização e interação com a sociedade. Afinal, muitos foram os temas tratados nos encontros: amor, consumismo, intolerância, multiculturalismo, guerra, política etc. Quais teriam sido os conceitos ou pré conceitos que foram revistos após a abordagem dessas temáticas nos encontros? Quais relacionamentos internos e externos à escola foram transformados e enriquecidos pelas reflexões ocorridas nos debates? A parte de todas as questões ainda não respondidas, e que certamente quando o forem podem nos trazer à luz abordagens mais contundentes dos objetos culturais escolhidos para cada encontro, temos uma certeza. A Literatura é um espelho da condição humana que traz luz à própria existência. Ver-se ajuda a ver o outro, a reconhecer-se como semelhante. Talvez esteja aí o sucesso dessa atividade de extensão: ser um momento de encontros, de reconhecimento, de humanização. Somente a Arte promove um processo de humanização que nos aproxima da nossa real natureza, como bem define Cândido: Entendo por humanização o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 2004. p.180)

Então, nessa perspectiva é que vemos claramente a riqueza dessa ação de extensão. Ela contribui de várias maneiras para a formação do leitor, estamos movimentando ou reinventando a roda, não só do Letramento Literário, mas da promoção da Literatura e do leitor ao patamar da Humanização.

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REFERÊNCIAS AVERBUCK, Ligia Morrone. A poesia e a escola. In: ZILBERMAN, Regina. Leitura em crise na escola. 11ª. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993. CÂNDIDO, Antônio. O direito à literatura. In: Vários Escritos.Rio de Janeiro: Duas cidades, 2004 COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2ª. ed. 4. reimpr. São Paulo: Contexto, 2014. COSSON, R & PAULINO, G. Letramento literário: para viver a literatura dentro e fora da escola. In: Escola e Leitura: velha crise, novas alternativas/organizadoras Regina Ziberman & Tania M.K.Rosing. São Paulo: Global, 2009.

A ABORDAGEM DOS TEXTOS LITERÁRIOS PARA ALÉM DAS PROPOSTAS DO PNLD Caticiane Belusso Serafini* (UPF) Tania Mariza Kuchenbecker Rösing** (UPF)

A formação de leitores pressupõe ações efetivas no que se refere ao trabalho com os textos literários e não-literários, disponíveis nos mais diferentes suportes. Nesse artigo, trata-se a relação entre o livro didático, a leitura literária e a mediação docente na formação de leitores competentes no contexto escolar. O objetivo principal é discutir a abordagem dos textos literários nos livros didáticos, bem como verificar de que modo o professor pode dinamizar esses textos, mediando práticas de leitura que promovam a competência leitora dos alunos e a apreciação estética das obras. Na primeira seção apresenta os conceitos de leitura enquanto apropriação e produção de sentidos de acordo com as concepções de Chartier (1998) e de Silva (1991, 1998, 2012), bem como relata acerca do papel do professor enquanto leitor nos processos de mediação de leitura e na formação do leitor, fundamentado também nos pressupostos de Chartier (2014) e de Rösing (2014). A segunda seção aborda a relação entre livro didático e formação do leitor literário, com base em Lajolo e Zilberman (2003), Zilberman (1991) e Lajolo (1982, 1999), a partir da uma breve análise tendo como exemplo os livros didáticos de alfabetização e letramento, PNLD 2013/2015, destinos às turmas que compõem o ciclo de alfabetização no ensino fundamental. Para concluir, evidencia-se a necessidade de conceber o livro didático como um material de apoio ao trabalho realizado pelo professor em sala de aula, principalmente em relação às práticas de leitura com textos literários, buscando estimular os alunos não apenas a ler, interpretar e produzir novos textos, mas também a desenvolver a sensibilidade estética, a imaginação e a criticidade.

1. LEITURA, LEITOR E MEDIAÇÃO DOCENTE A leitura é uma atividade constante e indispensável na vida de todos os sujeitos que, em seu meio social, se envolvem e interagem com uma multiplicidade de textos que circulam em diferentes suportes, para atender às mais diferentes finalidades. Da mesma forma, diversas são as concepções de leitura que se pode encontrar. Em Chartier (1998, p. 77), a leitura pode ser entendida como “apropriação, invenção, produção de significados”, na qual estão envolvidas as experiências subjetivas do leitor com o texto e os sentidos produzidos em virtude dessa interação, além de compartilhar dos sentidos construídos por quem o escreveu o texto. Ainda, segundo o autor, a leitura é “cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura”, pois, ao ler, cada leitor ativa internamente as informações resultantes de suas vivências, conforme as suas necessidades e objetivos. Para Silva (1998), ler é compreender o mundo como um processo dinâmico de produção de sentidos, que, como uma prática social, transpõe a mera decodificação dos signos linguísticos, porque aciona estruturas cognitivas muito mais individuais e complexas de assimilação e reflexão sobre os textos. Durante a leitura, o sujeito transforma o texto ao mesmo tempo em que é transformado por *

Licenciada em Pedagogia pela ULBRA, mestranda em Letras pela UPF e bolsista Fapergs. E-mail: [email protected] Doutora em Letras pela PUC/RS, professora do Programa de Pós-graduação em Letras da UPF e pesquisadora produtividade CNPq. E-mail: [email protected]

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ele e, por intermédio de suas experiências leitoras, (re) significa o seu discurso, amplia a sua capacidade simbólica e interativa frente à diversidade textual, conhece novas linguagens e desenvolve maiores aptidões para se comunicar de forma oral e escrita. No contexto escolar, a leitura é condição essencial no processo de compreensão do mundo por diferentes linguagens, utilizadas para estabelecer comunicação, por intermédio das quais se pode ler, interpretar e produzir textos e, ao mesmo tempo, estimular a curiosidade e o desejo da descoberta, ampliando o imaginário. Além disso, a escola pode ser considerada como a principal instituição formadora de novos leitores, mesmo que seu papel acerca da difusão da leitura pareça não estar bem definido. Isso porque, grande parte das práticas de leitura têm se tornado atividades mecânicas de decodificação de signos linguísticos e são tratadas muito mais como objeto de ensino do que como objeto de aprendizagem e produção de conhecimento. Verifica-se que as atividades que envolvem os diferentes gêneros textuais seguem sempre uma mesma rotina estabelecida: leitura, vocabulário, interpretação, estudo gramatical e ortográfico e produção escrita. Silva (2012, p. 117) relata que as atividades de leitura desenvolvidas em sala de aula não estão levando em conta “as múltiplas finalidades da leitura e nem as transformações que decorrem das transformações tecnológicas da atualidade”. Da mesma forma, a aplicação de práticas leitoras descontextualizadas, numa perspectiva limitada e empobrecida, deixa de favorecer a formação dos alunos como sujeitos leitores críticos e reflexivos e de contribuir para despertar, nos alunos, o gosto e o prazer pela leitura. O autor (1991, p. 48) acredita ainda que as ações de leitura no espaço escolar devem ter como objetivo principal, conduzir os alunos para uma formação na qual possam aprender a “ler para compreender os textos, participando criticamente da dinâmica do mundo da escrita e posicionando-se frente à essa realidade[...]”. Por isso, sinaliza para a importância da “organização de dinâmicas pedagógicas que permitem aos leitores trabalhar com três movimentos de consciência: constatar, cotejar (refletir) e transformar”. Da mesma forma, observa-se que uma participação mais efetiva do professor na formação de leitores competentes, na construção da identidade leitora dos alunos e, principalmente, em relação à disseminação da leitura é de fundamental importância. Segundo Rösing (2014, p. 213), a tarefa de formar leitores requer a ação de mediadores de leitura preparados, capazes de apresentar também uma identidade leitora, pois “são necessários professores leitores, profissionais leitores”. Chartier (2014, p. 20) ressalta a função da escola na formação do leitor, sinaliza a figura do professor como responsável pela inserção dos sujeitos ao universo da leitura, em especial a literária. Sendo assim, o posicionamento do professor enquanto sujeito leitor, ou seja, aquele que agencia e impulsiona a leitura é outro fator preponderante e que se configura como condição essencial para a promoção da leitura nas escolas. Como mediador de leitura, o professor precisa sentir-se como um leitor, gostar de ler, conhecer diferentes tipos de textos e dominar as múltiplas linguagens disponíveis nos mais diferentes suportes, além de planejar ações significativas de leitura e experiências hipermidiais colaborativas, contínuas e desfragmentadas. Atualmente, muitas são as políticas públicas de leitura no país, as quais disponibilizam às escolas a oportunidade de formar acervos literários de qualidade, tanto nas bibliotecas quanto no espaço da sala de aula. Entretanto, de nada adianta incentivar a leitura nas escolas, se não é oportunizado aos professores uma formação adequada para o uso desses materiais para o desenvolvimento e mediação de práticas leitoras significativas. Assim, constata-se a necessidade de discutir formas de potencializar as ações de leitura desenvolvidas na escola, principalmente em relação ao espaço dado à leitura literária na formação de leitores. Estas ações precisam estar ancoradas em propostas práticas, dinâmicas, originais, praze-

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rosas e contextualizadas de uso, aproveitando a capacidade e as potencialidades dos educandos em situações reais de leitura como alimento da imaginação e da criatividade.

2. O LIVRO DIDÁTICO E A FORMAÇÃO DO LEITOR LITERÁRIO O livro didático faz parte da história e cultura da educação ao longo dos tempos, tendo resistido às transformações sociais, políticas, econômicas e ideológicas vivenciadas no Brasil. Configura-se como um complexo recurso para o ensino e a aprendizagem, uma vez que, para ser aprovado e chegar até as escolas, precisa, passar por um amplo processo que envolve diversos profissionais na elaboração, na avaliação pedagógica e produção das resenhas, bem na seleção e na produção final. A dinâmica de produção do livro didático abrange os diferentes contextos sociais, econômicos e culturais em que estão inseridos todos os sujeitos que fazem parte do processo educativo: gestores e coordenadores, professores, alunos, pais e comunidade em geral. Considerando, pois, toda essa diversidade, são disponibilizadas diferentes coleções de livros didáticos, a fim de atender às mais variadas realidades educacionais e aos objetivos propostos no Projeto Político-pedagógico de cada instituição de ensino. Além disso, de acordo com Lajolo e Zilberman (2003, p. 121), o livro didático é “fonte de conhecimento da história de uma nação que, por intermédio de sua trajetória de publicações e leituras, dá a entender que rumos seus governantes escolheram para a educação, desenvolvimento e capacitação intelectual e profissional dos habitantes de um país”. Sendo assim, as esferas legais e institucionais decorrentes da política educacional vigente também exercem influência significativa na sua articulação e elaboração. No Brasil, o Programa Nacional do Livro Didático1 (PNLD) é a política pública do livro didático e desempenha um papel significativo para o ensino público no sentido de complementar a educação das crianças e jovens brasileiros, tendo grande relevância e aceitação por parte dos educadores e das instituições de ensino públicas. O PNLD atende, a cada ano, uma nova etapa de ensino das escolas de ensino fundamental e médio por meio da escolha e distribuição trienal, de forma integral, dos livros didáticos consumíveis e reutilizáveis nas mais diferentes áreas do conhecimento. Para as primeiras séries do ensino fundamental, o livro didático precisa contemplar os aspectos relacionados ao desenvolvimento da linguagem oral e escrita, bem como possibilitar o acesso ao mundo da escrita por meio das práticas de letramento vinculadas à participação social e ao exercício da cidadania. Nesse sentido, o foco do trabalho envolve a leitura, a produção textual, a oralidade e a análise e reflexão sobre a língua sempre em situações reais de uso, envolvendo questões relacionadas à prática do letramento, especialmente nas séries que compõem o ciclo de alfabetização. Com o passar dos anos, o livro didático foi modificando a sua estrutura, considerando as diferentes práticas sociais e a necessidade de possibilitar aos alunos o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita e o conhecimento de diversos textos por meio das práticas do letramento. Ao participar e vivenciar experiências de leitura e escrita diversificadas, a criança vai interagindo com as diferentes possibilidades de apresentação do texto escrito, atribuindo-lhe significado e dando-lhe sentido. Assim, o contato do leitor com os diversos tipos de textos revela a pluralidade de leituras possíveis que ampliam as suas condições de inserção num determinado contexto social, o seu envolvimento ativo nas práticas sociais letradas e a conquista da sua autonomia para atuar socialmente. Lajolo e Zilberman (2003, p. 130) afirmam que “o livro didático interessa igualmente a uma história da leitura porque ele, talvez mais ostensivamente que outras formas escritas, forma o lei O Programa Nacional do Livro Didático é um programa do Ministério da Educação (MEC) que contribui com a prática pedagógica dos educadores por meio da distribuição gratuita de coleções de livros didáticos e outros materiais aos alunos da Educação Básica e também da Educação Especial. Disponível em: . Acesso em: 06 ago. 2015.

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tor. [...] Sua influência é inevitável, sendo encontrado em todas as etapas da escolarização do indivíduo [...]”. Nessa mesma lógica, os resultados da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil2 em 2011 apresentam o livro didático ocupando o terceiro lugar entre os materiais mais lidos pelos sujeitos entrevistados, comprovando a sua importância para a formação de leitores e o seu papel na difusão do hábito e do gosto pela leitura. (PRÓ-LIVRO, 2015). Tal afirmação pode ser justificada pelo fato de que, considerando diferentes fatores que negligenciam a disseminação das políticas públicas de fomento à leitura no Brasil, verifica-se que o livro didático foi e ainda é, em muitas realidades das escolas públicas brasileiras, o único material a que inúmeros estudantes e professores tem acesso para a realização da leitura, especialmente nos lugares mais remotos. Assim, observa-se que a inserção dos sujeitos aos diferentes tipos, literários e não-literários, também transcorre por meio do livro didático. A necessidade da presença de textos literários no livro didático surge da concepção de que o contato do leitor com esse tipo de leitura favorece e amplia a sua relação com a linguagem, aprimorando a leitura, a escrita e a habilidade de compreender e produzir textos. Portanto, a leitura literária pode ser compreendida como um instrumento que favorece significativamente a formação de leitores competentes no âmbito escolar. Para Lajolo (1999, p. 106), a leitura literária é essencial na formação do leitor: É à literatura, como linguagem e como instituição, que se confiam os diferentes imaginários, as diferentes sensibilidades, valores e comportamentos através dos quais uma sociedade se expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias. Por isso a literatura é importante no currículo escolar. O cidadão, para exercer plenamente a sua cidadania, precisa apossar-se da linguagem literária, alfabetizar-se nela, tornar-se seu usuário competente, mesmo que nunca vá escrever um livro, mas por que precisa ler muitos.

Da mesma forma, a relação estabelecida entre o sujeito e seu universo histórico e cultural influencia diretamente na recepção do texto literário, já que ao leitor cabe acionar as suas competências prévias a fim de facilitar a identificação dos elementos estruturais da narrativa e analisar os valores sociais, morais e éticos presentes na composição de determinada obra. Outra questão importante refere-se ao processo de constituição do texto literário, no qual o autor, ao se expressar, introduz elementos pertencentes ao seu contexto social, histórico, cultural, político e ideológico, que deixam marcas nas produções, cabendo ao leitor, de acordo com esses mesmos contextos, atribuir significado ao que está lendo. Ao mesmo tempo em que compartilha dos sentidos construídos pelo autor, o leitor idealiza os seus próprios sentidos por intermédio de suas expectativas e vivências leitoras. Atenta-se então, para o fato de que a leitura do texto literário deve acontecer de forma contextualizada, não reducionista, permitindo ao leitor compreender e significar o texto de forma crítica e reflexiva.

2.1. PRIMEIRAS PERCEPÇÕES ACERCA DA RELAÇÃO ENTRE O LIVRO DIDÁTICO E A LEITURA LITERÁRIA A presença do texto literário nos livros didáticos dentro de um processo de formação de leitores, desencadeia uma análise reflexiva mais profundada acerca da receptividade da literatura no ambiente escolar, bem como da sua abordagem nesse tipo de suporte impresso. O intutito não deve ser apenas o de formar leitores, mas de formar leitores competentes, estimulá-los a compreender o

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil é realizada pelo Instituto Pró-livro, em âmbito nacional, e tem por objetivo avaliar o comportamento leitor do brasileiro, contribuindo com o desenvolvimento de políticas públicas do livro e da leitura no país. Trata-se de uma pesquisa quantitativa de opinião com aplicação de questionário e entrevistas presenciais. Na última edição em 2011, foi utilizada uma amostra de 5.012 entrevistas domiciliares, em 315 municípios de todos os estados e o Distrito Federal, envolvendo a população brasileira residente, com cinco anos ou mais, alfabetizadas ou não. Disponível em: . Acesso em 15 mar. 2015.

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que leem, a ampliar sua capacidade de estabelecer relações, a desenvolver o senso estético e o gosto pela leitura e a aprimorar o modo de ler e produzir textos. Tomando como exemplo os livros didáticos de alfabetização e letramento distribuídos pelo PNLD, no triênio 2013/2015, às turmas que compõem o ciclo de alfabetização em escolas públicas brasileiras, observa-se que há maior predominância de textos não-literários sob os textos literários. Certamente, os alunos nessa etapa da escolarização precisam ter contato com os diferentes tipologias e gêneros textuais, a fim de que possam estabelecer relações com o seu contexto familiar e social. Contudo, é importante também promover a interação, a leitura e a interpretação de textos literários, incentivar os alunos a desenvolver o senso estético e a apreciação crítica, ampliar a capacidade imaginativa, assim como conhecer os recursos linguísticos utilizados pelo autor na produção de sentidos. Verificou-se que os textos literários presentes nos livros didáticos exemplificados são produções de autores já consagrados na Literatura Brasileira, tais como: tais como: Ruth Rocha, Elias José, Maurício de Sousa, Ana Maria Machado e Ziraldo. Nesse contexto, não é deixado espaço para outros tipos de literatura, como é o caso da literatura marginal ou da literatura de cordel. Igualmente, os textos literários nos livros didáticos são resultados de fragmentos ou sofreram adaptações, muitas vezes sem que se tenha o cuidado com o contexto de inserção e sem preservar a unidade de sentido. Sendo assim, Lajolo (1982) aponta para a didatização do texto literário, mostrando que a forma como o texto literário é abordado nos livros didáticos acaba por dissolvê-lo de sua qualidade estética, ou seja, transformando-o em um simples texto didático. Zilberman (1991, p. 111) assinala ainda que “o livro didático concebe o ensino de literatura apoiado no tripé conceito de leitura-texto-exercício. [...] O conceito de leitura e de literatura que a escola adota é de natureza pragmática, aquele só se justifica quando explicita uma finalidade - a de ser aplicado, investido, num efeito qualquer”. Portanto, a abordagem trazida pelo livro didático e o objetivo previsto para ele são questões que definem se um texto terá caráter didático ou literário. Mesmo que as coleções dos livros didáticos se mostrem de boa qualidade, não estão conseguindo oferecer aos alunos em processo de alfabetização as experiências de leitura literária necessárias para a formação do leitor literário na infância.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo abordou a relação entre o livro didático, a leitura literária e a mediação docente na formação de leitores competentes no contexto escolar. O objetivo foi discutir sobre a abordagem dos textos literários presentes nos livros didáticos, bem como verificar de que modo o professor pode dinamizar esses textos, mediando práticas de leitura que promovam a competência leitora dos alunos e a apreciação estética das obras. O intuito nunca foi o de criticar negativamente o livro didático, mas sim de reconhecer a sua importância e o seu valor social, cultural e histórico para o processo de ensino-aprendizagem de professores e alunos ao longo dos anos. De fato, o desafio que permeia a relação entre o livro didático e o ensino da leitura na formação de leitores perpassa, necessariamente, o universo da leitura literária e indica uma consciência maior sobre a concepção da leitura e suas implicações no contexto escolar, a partir desse suporte. Nesse sentido, é possível afirmar que o livro didático deve constituir-se como um instrumento de apoio ao docente, não o único, pois o contato do aluno com o texto literário deve ocorrer de forma integral, contribuindo para a sua formação enquanto leitor dentro de um processo contínuo e permanente. O texto literário no livro didático deve ser fonte de conhecimento e dispositivo para despertar a imaginação e a criatividade do sujeito leitor. Por isso, a leitura literária no livro didático deve ser

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vista como expressão cultural e social, com múltiplos significados, sendo que as práticas leitoras precisam ocorrer de forma contextualizada, não reducionista, permitindo ao leitor compreender e significar o texto de forma crítica e reflexiva. Outro ponto é a diversidade temática dos livros de literatura infantis, os quais proporcionam aos pequenos leitores experiências significativas de leitura e a fruição estética. Assim, constata-se a necessidade de conceber a leitura literária a partir das vivências sociais, históricas e culturais dos sujeitos leitores, ampliando a sua relação com a linguagem, aprimorando as habilidades de compreensão, leitura, escrita e produção textual. Para tanto, a abordagem dos textos literários deve ultrapassar as concepções do livro didático, buscando desenvolver práticas de leitura mais contextualizadas e incentivando a leitura integral das obras literárias dos diferentes autores, cujos textos encontram-se nos livros didáticos, as quais podem contribuir significativamente na formação de um leitor mais competente, crítico e reflexivo. O professor é um dos responsáveis diretos pela escolha e uso do livro didático nas escolas, o que reforça o seu posicionamento e a sua ideologia na sua prática na sala de aula. É também o agente mediador do processo de formação do aluno como sujeito leitor, portanto, precisa constituir-se como leitor, como conhecedor de diferentes acervos literário com os quais poderá potencializar as ações de leitura, ancoradas em propostas práticas, dinâmicas, originais, prazerosas e contextualizadas, em situações reais de leitura como alimento da imaginação. O desenvolvimento de práticas de leitura adequadas permitirá ao leitor explorar as mais variadas estratégias cognitivas e, concomitantemente, construir uma identidade leitora também a partir do uso do livro didático nas escolas.

REFERÊNCIAS CHARTIER, Roger. O leitor: entre limitações e liberdade. In: ______. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversação com Jean Lebrun. Trad. Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. 1. reimpressão. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 75-95.  ______. A leitura e o leitor. Verbo, Revista da ABEU, São Paulo, n. 10, ago. 2014, p. 20-23. LAJOLO, Marisa. Usos e abusos da literatura na escola: Bilac e a literatura escolar na República Velha. Rio de Janeiro: Globo, 1982. ______. Tecendo a leitura. In: ______. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1999, p. 104-109. ______; ZILBERMAN, Regina. Livros didáticos, escola, leitura. In: ______. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1998, p. 119-233. PRÓ-LIVRO. Retratos da leitura no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 15 mar. 2015. RÖSING, Tania Mariza Kuchenbecker. Onde estão os leitores? In: BELMIRO, Celia; MACIEL, Francisca; BAPTISTA, Mônica; MARTINS, Aracy (Orgs.). Onde está a literatura? Seus espaços, seus leitores, seus textos, suas leituras. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 210-229. SILVA, Ezequiel Theodoro da. A leitura no contexto escolar. In: ______. De olhos abertos: reflexões sobre o desenvolvimento da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1991, p. 46-56. ______. A presença e o lugar da leitura na escola. In: ______. Elementos de pedagogia da leitura. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998, p. 1-12. ______. Entrevista com o professor Ezequiel Theodoro da Silva. Revista Profissão Docente, Uberaba, v. 12, n. 26, p. 115-119, jan/jun. 2012. ZILBERMAN, Regina. A leitura e o ensino da literatura. São Paulo: Ed. Contexto, 1991.

CINEMA E LITERATURA EM AÇÃO: UM DIÁLOGO POSSÍVEL NO ESPAÇO ESCOLAR Cinara Fontana Triches* (IFRS, campus Farroupilha) Karina Feltes Alves** (IFRS, campus Farroupilha)

Este trabalho relata as atividades desenvolvidas no projeto CineArte, desenvolvido no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, campus Farroupilha. O objetivo da ação é propiciar a leitura de contos literários e a sua releitura através da elaboração de um roteiro cinematográfico, além de proporcionar a reflexão sobre o cinema como expressão artística, estimular o trabalho em equipe e as habilidades referentes à produção de um curta-metragem. Após a escolha e interpretação dos contos, os grupos devem realizar a adaptação para o roteiro cinematográfico. Na sequência, criam o storyboard das cenas e realizam a gravação e edição das mesmas, formando o curta-metragem exibido no Sarau no Campus, evento cultural realizado ao final do ano letivo. Neste ano, em sua terceira edição, o CineArte possui como fio condutor para a seleção dos contos e elaboração do roteiro as diferentes manifestações e significados do amor nas relações humanas. O projeto cumpre o papel de estimular o trabalho em equipe, a dedicação e a expressão criativa, através do desenvolvimento do curta. O contato com a arte cinematográfica, mais atrativa para muitos discentes, acaba incentivando o interesse pela arte literária, já que a análise dos contos em questão é parte fundamental do processo de criação do roteiro para o curta. Palestras e oficinas auxiliam a melhor usufruir de ferramentas e métodos usados para produzir uma obra cinematográfica, aprimorando habilidades de edição, manuseio de câmera, fotografia, sonoplastia e outras.

1. A ARTE NO ESPAÇO ESCOLAR O projeto CineArte surgiu como parte integrante do Programa Cultura Viva, instituído no segundo semestre de 2012 no IFRS, campus Farroupilha, diante da constatação de docentes e técnicos administrativos do interesse dos alunos em participarem de atividades culturais no âmbito escolar. O programa visa desenvolver a criatividade e a criticidade dos alunos, proporcionando espaços para que possam expressar-se artisticamente, por meio de oficinas e projetos, além de incentivá-los a olhar o que os rodeia de uma forma mais analítica. Também busca fortalecer os laços entre os alunos por meio do trabalho em equipe, estimular o gosto pelas artes através de intervenções e oficinas, além de valorizar as habilidades dos mesmos. Na proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a arte tem uma função no processo de ensino e aprendizagem, estando relacionada com as demais áreas e conhecimentos, afinal a educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artístico, percepção estética, sensibilidade, percepção e imaginação. Ainda segundo os PCNs, as manifestações artísticas são exemplos da diversidade cultural dos povos, propiciando que as relações interpessoais perpassem o convívio social. A escola tem como uma de suas atribuições desenvolver a criticidade do discente, e o estudo das artes propicia uma compreensão profunda das questões sociais, pois solicita a percepção visual

Doutoranda em Letras, pela Universidade de Caxias do Sul, docente do IFRS, campus Farroupilha, Brasil E-mail: cinara.triches@ farroupilha.ifrs.edu.br ** Mestranda em Educação, pela Universidade de Caxias do Sul, docente do IFRS, campus Farroupilha, Brasil E-mail: karina.alves@ farroupilha.ifrs.edu.br *

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e auditiva, bem como os demais sentidos. Através dela, o aluno compreende a dimensão poética presente em seu meio. É importante salientar a necessidade da compreensão do cinema como uma arte específica, que possui uma linguagem peculiar (FABRIS, 2008). Isso porque a linguagem cinematográfica tem uma gama de linguagens, palavra, música, sons, teatro, etc, filmes são “experiências de significações” (FABRIS, 2008, p.119). Falando-se em linguagem, essa é uma das áreas que permite várias discussões no cinema. Pode-se estudar diferentes aspectos da linguagem como diálogos, técnicas narrativas e descritivas, leitura de entrelinhas, “criação poético-imagética” (NADALIM, 2007). Enquanto experiências de significações que contemplam variadas linguagens, nos filmes não se pode esquecer do plano tecnológico, já que o registro que o cinema realiza também contempla saberes de Tecnologia da Informação. Já a arte literária, denominador comum “da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam” (LLOSA, 2005) deve ser abordada na escola, cujo papel é desenvolver a percepção da literatura como inerente à vida, ao relacioná-la com outras formas de arte e com outras disciplinas. Os PCNs abordam a leitura de obras literárias no Ensino Médio, elencando as teorias de Michail Bakhtin, Roland Barthes e Umberto Eco para destacar sua múltipla possibilidade de significados, devido ao importante papel de significação do leitor frente ao texto. Através dos conceitos de Eco (1998 e 2003), o documento aborda dois tipos de leitores: o vítima, refém do enunciado; e o crítico, interessado em entender como se tornou vítima do enunciado, ou seja, em entender as formas de narrar. Este último é o leitor que a escola deve formar, razão pela qual a prática da metaleitura deve ser evitada, já que […] tais atividades não consistem em fazer com que os jovens leiam, mas em fazê-los refletir sobre os diversos aspectos da escrita: organização da língua, história literária dos textos, estrutura dos textos literários, etc. Todavia, quando os jovens não são ainda leitores (na nossa escola, é essa a situação da maior parte dos alunos), é difícil fazê-los se interessarem por atividades de metaleitura, além do que, se não leram os textos, o trabalho apresenta-se inteiramente inútil, resultando em desinteresse não só pelas atividades como pela própria leitura do texto, a qual lhes parecerá apenas um pretexto para realizar exercícios enfadonhos. (BRASIL, 2006, p.70)

A partir disso, os PCNs preconizam o papel do docente como mediador da leitura, na seleção das obras – não privilegiando apenas a literatura brasileira, mas utilizando seu conhecimento e fruição para proporcionar leituras do cânone que levem seus alunos a uma leitura significativa – e na criação de estratégias para fomentá-la. Visto tais aspectos e baseando-se em uma pesquisa realizada com os discentes, percebeu-se grande interesse dos mesmos pela arte cinematográfica, além de que o hábito e o gosto pela leitura literária não se destacava entre os jovens. Desse modo, inspirados por tais constatações, constituiu-se em 2013 o projeto CineArte, com a intenção de unir os dois aspectos citados anteriormente, através de uma abordagem lúdica. Além de propiciar a leitura de contos literários e a sua releitura através da elaboração de roteiro cinematográfico, a ação busca desenvolver a reflexão sobre o cinema como expressão artística, estimular o trabalho em equipe e as habilidades artísticas referentes à produção de um curta-metragem. O gênero literário escolhido para conduzir as atividades do projeto foram os contos, devido a sua extensão, que permite uma adaptação inteiriça do mesmo para o curta-metragem, além de conter elementos ricos em possibilidades de análises e interpretações. Ademais de contribuir para o desenvolvimento de capacidades expressivas e artísticas individuais, o cinema oferece o exercício das relações de cooperação, diálogo, respeito mútuo, reflexão sobre como agir com os colegas, flexibilidade de aceitação das diferenças e aquisição de sua autonomia como resultado do poder agir e pensar sem coerção.

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2. AS ETAPAS DO PROJETO Constituindo-se do cumprimento de etapas sequenciais desenvolvidas ao longo de todo o ano letivo, que juntas resultam em um curta-metragem, o projeto é desenvolvido com os alunos do Curso Técnico em Informática Integrado ao Ensino Médio como uma atividade interdisciplinar, nas disciplinas de Língua Portuguesa, Literatura e Filosofia, e extracurricular. Inicialmente, os docentes integrantes da ação e os bolsistas definem o fio condutor do projeto, que pode ser um elemento característico do gênero ou um autor específico. A escolha serve como parâmetro para a seleção dos contos que serão lidos pelos alunos. Após a leitura, nas aulas de Literatura é feita a análise dos contos, baseada na Tesis sobre el cuento, de Ricardo Piglia (1986), em forma de debate. Concomitantemente, nas aulas de Filosofia são realizadas leituras e reflexões sobre o tema trabalhado, bem como são exibidos filmes com o objetivo de propiciar uma abordagem crítica quanto à forma e conteúdo. Além disso, ocorrem oficinas sobre a produção audiovisual com profissionais da área, momento em que os discentes percebem a complexidade e inúmeras funções que envolvem a arte cinematográfica e começam a por em prática técnicas de filmagem e edição. Após a compreensão das funções de cada membro de uma equipe audiovisual, os alunos definem qual gostariam de desempenhar e os grupos são formados por: diretor, produtor de arte, roteirista, editor e atores. Em média, são cinco grupos a cada edição. Finalizadas tais etapas, cada grupo escolhe um dos contos previamente lidos e interpretados para adaptar, a partir de uma análise detalhada e cuidadosa do grupo, para roteiro cinematográfico, gênero trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa. Optou-se pela estruturação do roteiro master scenes, no qual cada página equivale a um minuto. Os roteiros passam por revisões e sugestões de alteração, feitas pelos membros da equipe do projeto, até chegarem a sua versão final, momento em que são criados os storyboards que ilustram o roteiro e servem de base para a construção e gravação das cenas. Junto a isso, os responsáveis pela produção de arte elaboram a pasta de produção, um arquivo com referências visuais de locações, objetos, personagens, figurinos, cores a serem utilizadas, além de trilha sonora. A pasta evolui do ideal para o possível, já que às referências iniciais somam-se fotos dos cenários que serão utilizados, dos figurinos que conseguiram e também trechos das músicas livres de direitos autorais que comporão a trilha sonora. Além disso, serve como forma de controle de todos os materiais necessários para a gravação de cada cena. São ofertadas oficinas de teatro para todos os alunos, buscando dar suporte aos que atuam. Ministradas por alunos com formação teatral e/ou por profissionais da área, oportunizam a desinibição e a construção de cada personagem. Com todas essas etapas constituídas, os alunos avançam então para a gravação e edição das cenas. O curta-metragem final é exibido para os visitantes do Sarau no Campus, evento da instituição que ocorre ao final do ano letivo junto à Feira Tecnológica, e em eventos culturais da região.

2.1. AS EDIÇÕES DO CINEARTE Na primeira edição do projeto CineArte, realizada em 2013 com os alunos do 3º e 4º ano do Ensino Médio, o fio condutor foi a interpretação do insólito presente nas obras, isto é, o aspecto que causa certo desconforto e dúvida no leitor. O estranhamento na obra pode ser percebido em fatos que fogem à realidade cotidiana, mas que, dentro da narrativa, são incorporados pelas personagens como algo natural. Por conta disso, o leitor é obrigado a interagir de forma mais direta com a história, analisando os fatos e relacionando-os com a realidade do conto de forma mais íntima e pessoal.

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Um dos contos trabalhados e que tem em sua trama o insólito, por exemplo, é “Bestiário”, de Julio Cortázar. Após cumprir todas as etapas do projeto, de escolha e análise do conto e do insólito, bem como a elaboração do roteiro e desenho das cenas, foram realizadas as gravações e edições dos curtas-metragens, que foram apresentados aos demais alunos e comunidade externa no 2º Sarau no Campus. A segunda edição do projeto, no ano de 2014, foi realizada com os alunos do 3º ano e teve como foco principal o autor mineiro Murilo Rubião, cujos contos também são permeados pelo insólito. Antes da escolha dos contos, foram realizadas conversas com os alunos sobre a arte cinematográfica, através de trecho de filmes, para que atentassem para diversos aspectos como: iluminação, escolha de cores, modos de narrar, cortes de cenas, entre outros. Colaborando com essa discussão, foi realizado um workshop sobre aspectos essenciais para a estruturação de uma equipe de produção de filmagem, com o publicitário e produtor Tiago Brugnara. Os alunos realizaram a leituras de diversos contos de Murilo Rubião e, em grupos, selecionaram as obras “O convidado”, “O Pirotécnico Zacarias”, “Bárbara” e “O ex-mágico da Taberna Minhota” para serem analisadas e adaptadas. Os curtas-metragens finalizados foram exibidos no 3º Sarau no Campus e na Feira do Livro de Farroupilha. A atual edição tem como fio condutor as diferentes manifestações e significados do amor nas relações humanas. Após a leitura de diversos contos, os alunos do 3º ano, divididos em cinco grupos, selecionaram: “A cartomante”, de Machado de Assis; “A galinha degolada”, de Horacio Quiroga; “Todos os fogos o fogo”, de Julio Cortázar; “Papai Noel dorme em casa”, de Samanta Schweblin; “Paradigma”, de Adolfo Bioy Casares. Tendo cumprido com todas as etapas prévias, os grupos estão iniciando as filmagens, para posterior edição e exibição no 4º Sarau no Campus.

3. RESULTADOS DO DIÁLOGO ENTRE CINEMA E LITERATURA Até o momento, a trajetória percorrida nas três edições apontou vários resultados, e o primeiro foi o próprio amadurecimento do projeto CineArte, já que todos os membros aprenderam e aprimoraram suas concepções com o fazer prático, com as oficinas e com a criatividade dos alunos. Também ficou evidente que o contato com a arte cinematográfica, mais atrativa para muitos discentes, acaba refletindo e incentivando o interesse pela leitura de textos literários, uma vez que a análise dos contos em questão é parte fundamental do processo de criação do roteiro para o curta. Através da realização do projeto, os alunos vivenciam um processo de redescoberta da literatura, já que entram em contato com obras antes desconhecidas e acabam por percebê-las interessantes, pois o trabalho de adaptação do conto trabalhado aproxima o aluno da atividade de leitura, aprimora sua capacidade crítica, compreensiva e interpretativa, além de incentivar a criatividade e a imaginação. O projeto abre ao aluno as portas de um mundo onde é permitido criar, recontar, encontrar diferentes interpretações, discuti-las e compreendê-las, exercitando também o debate entre os alunos e o desenvolvimento prático das ideias. Além de ser um instrumento de incentivo à leitura, o projeto cumpre seu papel ao estimular o trabalho em equipe, a dedicação e a responsabilidade individual e coletiva dos participantes. São trabalhadas também as habilidades técnicas necessárias para produzir uma obra cinematográfica. Palestras e oficinas são realizadas a fim de orientar os discentes para a utilização de ferramentas e métodos que auxiliam em aspectos como edição, manuseio de câmera, técnicas de filmagem, fotografia, sonoplastia e outros. O processo de transposição da obra literária para um roteiro cinematográfico é também um meio de refinar o olhar crítico do aluno, pois é um instrumento para a reflexão sobre a literatura e, como resposta, sobre o próprio mundo que o cerca, estimulando-o a desenvolver sua percepção ar-

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tística. E isso se evidencia nos curtas, que apresentam não uma mera reprodução da narrativa dos contos, mas vão além, pois são resultado de uma releitura, permeada por significações e criticidade.

REFERÊNCIAS BRASIL, SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa: Ensino Médio. Brasília: SEF, 2006. ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ______. Sobre algumas funções da literatura. In: _____. Sobre a literatura. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. FABRIS, Elí Henn. Cinema e educação: um caminho metodológico. Educação e realidade 33: 117-134, jan/jun 2008. LLOSA, Mário Vargas. A literatura e a vida. In: _____. A verdade das mentiras. São Paulo: Arx, 2005. NADALIM, Carlos Francisco de Paula. Filosofia, cinema e pedagogia: uma possibilidade poética de ensino. Revista Eletrônica de Educação. Ano I, nº 1, ago-dez 2007. PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Buenos Aires: Anagrama, 1986.

A CARÍCIA ESSENCIAL E O CUIDADO HUMANIZADO EM SAÚDE: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA ENTRE O VERBAL E O ICÔNICO Cristiane Barelli* (UPF) Graciela René Ormezzano** (UPF)

Os avanços no desenvolvimento tecnológico e científico na área da saúde, responsável por qualificar as abordagens diagnósticas e terapêuticas ao longo dos anos, podem, incoerentemente, comprometer o foco da relação entre a equipe de saúde e o sujeito da atenção, levando a que emoções, angústias, crenças e valores da pessoa cuidada fiquem em segundo plano. Também, podem induzir o profissional ao agir mecanizado, afastado do escopo do seu trabalho: a vida e/ou a dor da pessoa, por vezes fragilizada pela doença, o cuidado em si. Por consequência, podem prejudicar o componente humano das relações, uma vez que o ato de cuidar não se esgota no processo técnico, porque necessita de sensibilidade, de alteridade, de respeito, de empatia e de compaixão entre quem cuida e quem está sendo cuidado (BOFF, 2014; TAKAHAGUI et al., 2014). O objetivo deste ensaio foi realizar uma leitura intersemiótica entre um texto verbal de Leonardo Boff e um texto visual de André François. O texto verbal de Leonardo Boff (2014) consta no capítulo intitulado “A explicação da fábula-mito do cuidado”, do livro Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. O texto visual de André François (2006), sem título, integra a obra Cuidar: um documentário sobre a medicina humanizada no Brasil. Ambos os textos foram interpretados utilizando como metodologia a hermenêutica simbólica proposta por Gilbert Durand (1988, 1993, 2002). A hermenêutica expressa a interface da filosofia com outras áreas do saber quando busca compreender o sentido da realidade. Assim, a transdisciplinaridade permite interpretar o ser e o mundo, no ponto de encontro expresso pela linguagem, de modo dialógico, intersubjetivo e antidogmático. Entende-se que hermenêutica implica interpretar, mas à hermenêutica é preciso somar o sentido simbólico. Portanto, ao considerar que o ser humano é um animal simbólico, a linguagem hermenêutica é uma linguagem simbólica, e a interpretação da realidade implica a compreensão das coisas por parte do humano. O trajeto do artigo inicia pela mediação de leitura como estratégia de promoção de saúde, segue pela descrição do mito de Quirão envolvido na leitura intersemiótica, faz uma interpretação dos textos visual e icônico e encerra tecendo as considerações finais.

1. MEDIAÇÃO DE LEITURA COMO ESTRATÉGIA DE PROMOÇÃO DE SAÚDE Uma das estratégias para promover o cuidado integral, qualificado e humanizado pode ser a mediação da leitura nos espaços de saúde. Mediação de leitura é entendida aqui como a ponte estabelecida entre o texto e o leitor, de forma criativa, prazerosa e eficiente. Para ler, não basta decifrar um conjunto de códigos, embora seja esse o primeiro passo; também é preciso apropriar-se dos sistemas simbólicos e extrair significados por meio de formatos, gêneros e suportes variados. O sujeito precisa compreender o que leu para que o texto cumpra sua vocação. O escritor Ricardo Azevedo (2004) destaca que, para formar um leitor, é imprescindível

Mestra em Ciências Farmacêuticas, Doutoranda em Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras/Universidade de Passo Fundo, Brasil). E-mail: [email protected]. ** Doutora em Educação, Docente e pesquisadora do Curso de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Letras/Universidade de Passo Fundo, Brasil). E-mail: [email protected] *

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que, entre a pessoa que lê e o texto, se estabeleça uma espécie de comunhão baseada no prazer, na identificação, no interesse e na liberdade de interpretação. As situações que comprometem a saúde das pessoas, geralmente, requerem estratégias de enfrentamento, e o ato de ler pode representar uma válvula de escape na luta frente aos problemas cotidianos e, até mesmo, uma nova forma de ver o mundo. Nessa perspectiva, por meio da leitura, o sujeito pode sair do lugar e da condição em que se encontra, independentemente de outras pessoas, podendo se posicionar de forma diferente frente às situações, com outras possibilidades (PÈTIT, 2008). A leitura como lenitivo foi objeto de estudo de Caldin (2001), que aponta a biblioterapia clássica como a possibilidade de terapia por meio da leitura de textos literários, pois a leitura implica em uma interpretação, que é em si mesma uma terapia, e permite a atribuição de vários sentidos ao texto. Esse é um dos exemplos de como a mediação de leitura pode contribuir com a promoção da saúde e a humanização do cuidado. O termo “humanização” tem sido aplicado ao esgotamento na área da saúde e, geralmente, é compreendido pelos profissionais como um fenômeno complementar e indispensável, em que se valoriza o carinho do cuidado, o reconhecimento das singularidades e a emoção que se faz presente no tratamento dos sujeitos adoecidos. Na formação acadêmica e no ambiente de trabalho, torna-se imprescindível desenvolver estratégias e tecnologias capazes de promover saúde, qualidade de vida e cuidado humanizado apesar da doença, mesmo que essas práticas e habilidades ainda sejam realidades incipientes nos diversos níveis de escolaridade e formação em serviço (ZOBOLLI, 2007; BOFF, 2014; TAKAHAGUI et al., 2014). A perspectiva do cuidado humanizado na saúde exige que o foco não seja apenas a doença, mas a pessoa que dela padece. Ao traçar um paralelo entre o cuidar e o tratar, Zobolli (2007) afirma que o profissional de saúde não pode se preocupar apenas com tratar a doença ou aliviar os sinais e sintomas; ele necessita valorizar o cuidar, ou seja, considerar o outro como um fim em si mesmo. Isso exige sensibilidade para com as emoções do outro, manifestando interesse, respeito, compreensão, consideração e afeto, para ser capaz de responder às experiências de aflição e sofrimento trazidas pelas pessoas que buscam a atenção dos profissionais de saúde. Trata-se, então, de considerar o ser humano alvo do cuidado para além do aspecto biológico, isto é, reconhecê-lo como alguém dotado de identidade, singularidade, história e autonomia (LIMA et al., 2014; ZOBOLLI, 2007). Para Leonardo Boff, a carícia representa o auge do cuidado e é essencial quando se transforma em atitude, confere repouso e confiança: A carícia essencial é leve como um entreabrir suave da porta. [...]. A mão que agarra corporifica o modo-de-ser-trabalho. Agarrar é expressão do poder sobre, da manipulação, do enquadramento do outro ou das coisas ao meu modo de ser. A mão que acaricia representa o modo-de-ser-cuidado, pois a carícia é uma mão revestida de paciência que toca sem ferir e solta para permitir a mobilidade do ser com quem entramos em contato (2014, p. 140).

Logo, a mediação de leitura pode representar uma das estratégias possíveis de promover saúde e cuidado humanizado, independentemente do local e da pessoa cuidada, e precisa ser difundida nos espaços de formação profissional. Para além da leitura de textos escritos, a leitura de imagens fotográficas se alinha à proposta de Rösing (2009), que defende a formação de leitores e mediadores de leitores pela imersão na leitura, considerada, de forma ampla, como manifestação cultural que envolve diversas práticas leitoras, em diferentes suportes, enquanto exigência do mundo contemporâneo. Os textos escolhidos para este estudo apresentam determinados mitos que, segundo Boff (2014), comunicam-se mediante narrativas que simbolizam deuses e deusas, confrontos entre o céu e a terra que expressam situações ou histórias verdadeiras, repletas de dramaticidade e significados, vividas desde sempre pela humanidade.

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2. SOBRE O MITO DE QUIRÃO A palavra “mito” deriva do grego mythos e pode ser definida de muitas formas. De acordo com García Gual (2006), todo mito é um relato que refere fatos situados num passado remoto, trata-se de uma sequência narrativa que chega do passado como uma herança e é propriedade comunitária, pois pertence à memória das pessoas, sendo o terreno da mitologia o âmbito dessa memória popular. A leitura dos textos verbal e não verbal selecionados traz a memória de Quirão: “Quirão”, em grego Χείρων, significa “mão”, ou uma forma abreviada de “o que trabalha, o que age com as mãos”, o cirurgião. Na mitologia grega, era um centauro que foi um grande médico e que compreendia muito bem seus pacientes, por ser um médico ferido. Na sua origem familiar, há duas versões: Crono amava a oceânida Fílira, mas, temendo os ciúmes de sua esposa Réia, uniu-se àquela sob a forma de um cavalo. Outra versão é que a ninfa Fílira, sentindo-se envergonhada, metamorfoseou-se em égua e ainda assim foi possuída por Crono. Ambas as versões justificam a forma de Quirão, metade homem e metade cavalo, apesar de não haver qualquer relação de parentesco com os selvagens centauros (BRANDÃO, 2000). Grande curandeiro e respeitado oráculo, Quirão pertencia à família dos deuses olímpicos e era altamente reverenciado como professor e tutor. Vivia numa gruta no monte Pélion, onde transmitia a seus discípulos conhecimentos relacionados à música, à arte da guerra e da caça, à ética e à medicina. Quirão recebeu lições de Apolo e Diana que o tornaram famoso por suas habilidades na arte da profecia. Os heróis gregos receberam seus ensinamentos, dentre eles, Esculápio, que se tornou médico famoso e chegou até a ressuscitar um morto, fato que irritou Plutão de tal forma que este enviou Júpiter a fulminá-lo com um raio pelo seu atrevimento (BULFINCH, 2002). Quirão foi vítima de um equívoco: quando Héracles perseguia o centauro Élato, este se refugiou na caverna de Folo, no monte Pélion, na Tessália. A flecha envenenada que atravessou o coração do centauro Élato atingiu acidentalmente Quirão, mas não o matou, pois, sendo filho de um titã, era imortal. Porém, isso lhe provocou dores terríveis e incessantes. Brandão (2000) escreve que coube assim a Prometeu ceder-lhe seu direito à morte para que o médico ferido pudesse finalmente descansar do sofrimento.

3. LEITURA INTERSEMIÓTICA ENTRE O VERBAL E O ICÔNICO O mito de Quirão aparece como relato fundador, como metalinguagem presente no texto verbal de Leonardo Boff e no texto visual de André François. Ambos revelam a transposição de um sistema significante a outro, cada qual constituído de um sistema semiótico próprio, que corresponde a suas especificidades e, por conseguinte, a sua interpretação. Assim, verifica-se uma intersemioticidade que abarca o verbal e o visual nos personagens colocados em cena e nos objetos simbolicamente valorizados. Para Boff (2014), o órgão da carícia é a mão que toca, estabelece relação, acalenta e traz quietude. Essa carícia exige altruísmo, respeito pelo outro e renúncia a qualquer intenção que não seja o querer bem. O cuidado humanizado em saúde também se sustenta a partir desses pressupostos. A mão que acaricia, seja revelada pela imagem de François, ou pelas palavras de Boff, simboliza um modo de cuidar e de ser cuidado não só desejável para área da saúde, mas imprescindível para qualquer relação profissional que evoque o ato de sentir o outro. Assim, símbolos, arquétipos e mitos, em particular, o mito de Quirão (Cheiron/Kheiron, que significa mão), revela o sentido dos textos escolhidos para o estudo. O escritor Leonardo Boff, teólogo brasileiro nascido em Concórdia, Santa Catarina, em 1938, ingressou na Ordem dos Frades Menores em 1959. Doutorou-se em Teologia e Filosofia na Univer-

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sidade de Munique, na década de 1970, e é professor na área de Teologia e de Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior. Ao interpretar o ensaio de Leonardo Boff a partir da concepção durandiana, busca-se identificar os fatos simbólicos presentes no texto que enfatiza a carícia como uma das expressões máximas do cuidado. A teoria do imaginário, proposta por Gilbert Durand (2002), revela-se como um lugar de “entre saberes”, de espelho, do “museu” que designa o conjunto de todas as imagens possíveis produzidas pelo ser humano como animal simbólico. De acordo com Durand, o imaginário, essencialmente identificado com o mito, constitui o primeiro substrato da vida mental e contesta o antagonismo do imaginário e da racionalidade, mostrando como as imagens se inserem num trajeto antropológico, que começa no nível neurobiológico para se estender ao nível cultural. O trajeto antropológico é definido por Durand como “[...] a incessante troca que existe ao nível do imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas que emanam do meio cósmico e social” (DURAND, 2002, p. 41). Assim, o mito que se pode reconhecer tanto no ensaio de Boff como na fotografia de François é o de Quirão, justamente pela identificação da mão como símbolo primordial presente em ambos os textos. A mão que acalenta, que traz quietude representa para Boff a pessoa que, por meio desse órgão, revela um modo de ser carinhoso. Ou seja, o sentido do afago, da mãe que acaricia a criança, que protege, que gera confiança. De acordo com a classificação isotópica das imagens propostas por Durand (2002), identifica-se esse aspecto do texto com o regime noturno devido às estruturas místicas do realismo sensorial que a carícia realizada pela mão gera no ser cuidado. Nesse caso, a dominante digestiva é a mais apropriada, com seus adjuvantes cenestésicos e predominantemente táteis. Quanto aos arquétipos, a carícia essencial, que é distinguida por Boff da carícia como pura excitação psicológica, revela atributos de intimidade e sentimentos profundos que aquecem a pessoa e a humanidade. É contrária à violência. Desse modo, o trajeto antropológico do texto de Boff revela a presença dos arquétipos criança, mãe, mulher, centro e, como símbolo predominante do regime místico noturno, o ventre, todos percebidos no seguinte fragmento: A carícia que nasce do centro confere repouso, integração e confiança. Daí o sentido do afago. Ao acariciar a criança, a mãe lhe comunica a experiência mais orientadora que existe: a confiança fundamental na bondade da realidade e do universo; a confiança de que, no fundo, tudo tem sentido; a confiança de que a paz e não o conflito é a palavra derradeira; a confiança na acolhida e não na exclusão do grande Útero (BOFF, 2014, p.139).

Antes de abordar o texto icônico elegido neste trabalho, cabe destacar que André François é fotógrafo idealizador da organização não governamental ImageMágica, que criou em 1995, quando percebeu que havia espaço para abordar um cuidado mais humano. A ONG desenvolve iniciativas em promoção de saúde, cultura e educação por meio da fotografia. De início, o autor pensou que teria problemas para encontrar bons protagonistas para o seu projeto, no entanto, no hospital, todos conhecem o bom cuidador e indicam o mesmo profissional pelo trabalho diferenciado que faz. A Fotografia 1 retrata um médico do Instituto do Câncer do Ceará carregando uma criança nos braços, anestesiada, antes de ser submetida a uma cirurgia. Segundo François (2006), essa atitude, embora simples, diminui o trauma das crianças que são submetidas a procedimentos cirúrgicos (FRANÇOIS, 2006, p.12). Para ler essa fotografia, utilizou-se a Leitura Transtextual Singular de Imagens, proposta por Ormezzano (2009) com base na teoria durandiana. A fotografia remete a um campo simbólico no qual algo fica registrado pela incidência da luz. Ler fotografias implica beneficiar-se da luminosidade que permite revisitar e compreender instantes fugazes que documentam as emoções. Essa imagem, disposta horizontalmente, confere harmonia pela distribuição das figuras humanas que a compõem e evidencia o uso da regra dos terços, composição tradicional na qual se divide, imaginariamente, a imagem em três terços horizontais e três verticais. As linhas formadas

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são áreas de atenção para o observador, e os pontos de intersecção, marcos ainda mais eficientes (DUBOIS, 2012). Fotografia 1 – Sem título

Fonte: FRANÇOIS (2006, p. 12).

A intencionalidade do fotógrafo ao utilizar preto e branco evita a distração do observador pelas cores, além de enfatizar a dramaticidade da cena revelada. Destacam-se, pelo contraste entre a luz e a sombra, as mãos brancas enluvadas do médico que seguram carinhosamente a criança, ao colocá-la sobre a maca. A luz afeta com força também outros objetos da sala de cirurgia escurecida, dando toques de iluminação aos mais claros: a maca, as meias da criança, as máscaras, as tocas de cabelo, o soro. Segundo Arnheim, quando a luz vem de cima leva a mensagem animadora de um além, desconhecido e invisível em si, mas que pode ser percebido através de seu reflexo poderoso. Como a luz vem do alto, a vida da terra não está mais no centro do mundo, mas no seu fundo escuro. Os olhos são feitos para entender que o habitat humano nada mais é que um vale de sombras, dependendo humildemente da verdadeira existência das alturas (2005, p. 314).

O ponto central inferior na base da composição é o mais iluminado. Nele temos as mãos do Dr. Hélio e a maca, que acolhem o corpo adormecido da criança; de acordo com a simbologia espacial, esse ponto expressa o mundo das sensações e dos instintos, a matéria. Nesse sentido, é possível afirmar que, no mundo dual em que se vive, não há luz sem escuridão. Assim, as fronteiras entre a luz-símbolo e a luz-metáfora são difusas. Chevalier e Gheerbrant dão o seguinte exemplo, citando uma obra de André Virel (1965): “[...] pode-se perguntar se a luz, ‘aspecto final da matéria que se desloca com uma velocidade limitada, e a luz de que falam os místicos têm alguma coisa em comum, a não ser o fato de serem um limite ideal e um resultado’” (2002, p. 567, grifo dos autores). A luz

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relaciona-se com a escuridão para simbolizar valores que se complementam. Se por um lado as mãos do médico estão iluminadas e se o foco de luz vem de cima, supõe-se que esteja simbolizando uma manifestação divina, e, por outro, se a luz expressa conhecimento, quiçá esteja demonstrando uma dupla acepção de que todo ser humano pode receber uma iluminação iniciática e intuitiva em algum momento em que isso se faça necessário. Entretanto, a escuridão que envolve a sala pode estar indicando o decaimento da criança que se encontra com a saúde fragilizada e precisa submeter-se a um procedimento cirúrgico. A mão, para os autores citados, exprime a ideia de ação e poder, é um instrumento de maestria, indicando o conhecimento que precisa ter o médico cirurgião. Entregar-se nas mãos de alguém significa que se está à sua mercê, podendo ser salvo ou eliminado, e colocar-se nas mãos de outra pessoa é abandonar a própria força e entregar-se, confiar no que o outro fará com nossa vida, como se observa no corpo da criança abandonado nos braços do médico. Mas essa entrega exige uma obrigação recíproca de quem recebe. A mão que simboliza uma ação diferenciada se aproxima, em sua significação, de Quirão, cujo ideograma é uma flecha. Sobre esse aspecto mitológico, Brandão escreve: Conta-se que Quirão subiu ao céu sob a forma da constelação de sagitário, uma vez que flecha (e ele foi ferido por uma), em latim sagitta, a que se assimila o sagitário, estabelece a síntese dinâmica do homem, voando através do conhecimento para a transformação, de ser animal em ser espiritual (2000, p. 356).

A constelação de sagitário relaciona-se com a letra hebraica vau, que pode significar “luz”. O branco reflete os raios luminosos, o ser espiritual, e o preto expressa a ausência da luz, o ser animal. Se o branco emana da divindade e, para os profetas, significa a sabedoria divina, a ciência e a pureza, o negro, seu oposto, indica o mal, o erro, as trevas, a morte carnal. O cinza, mistura dos anteriores, designa a ressurreição dos mortos e é triple símbolo da elevação da alma segundo a fé cristã (PORTAL, 1996). Então, nessa relação luz-sombra e branco-cinza-preto, pode-se considerar o médico no papel arquetípico iluminado paternal diurno esquizomórfico, numa união com a criança adormecida e a enfermeira que auxilia no cuidado, como arquétipos noturnos místicos na penumbra de seus papéis filial e maternal. A expressão da ascensão e da elevação iluminada vincula-se ao esquema da verticalidade. Assim, observa-se, na fotografia, que o médico se encontra numa postura vertical, em primeiro plano, o que valoriza positivamente sua representação; já a criança, na posição horizontal, em segundo plano, demonstra uma miniaturização, pela posição de entrega e repouso que a apequena ainda mais perante a situação de fragilidade; e a enfermeira, no terceiro plano, não assume um papel protagônico, porque sua figura se esvanece nas sombras da sala escurecida. Essa hierarquização observada nos planos, pelo fato de a fotografia não ser posada, revela a captura do momento real, da humanização do cuidado em ato. Pelo significado que a linguagem fotográfica de François propõe, entende-se a prioridade que pode ser dada ao ser cuidado, fato que também é evidenciado na mão que afaga e acaricia a criança, que, por sua vez, conecta-se à carícia essencial relatada por Boff.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta leitura intersemiótica, percebeu-se que a imagem e a palavra articulam-se entre o material e o imaterial e que, no interagir da consciência, o símbolo existe e oportuniza o conhecimento. O sincretismo entre o texto imagético e o texto escrito ocorreu, principalmente, pela carícia essencial revelada no abraço e no afago do médico ao segurar uma criança em seus braços, quando estava sendo colocada na maca para realizar um procedimento cirúrgico.

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Atualmente vivemos em um mundo hipervisual, sincrético, no qual imagens verbais ou visuais produzem sentimentos, identificações, favorecem lembranças, disparam a imaginação, a introspecção, anunciam ou denunciam uma realidade, evocam visões de mundo. A comunicação por meio de imagens pode enriquecer o processo de acolhimento e cuidado não apenas para a área da saúde, mas para qualquer relação profissional que evoque o ato de sentir o outro. Assim, pensamos que este ensaio oferece uma contribuição na integralidade do cuidado em saúde, incitando a mediação de leitores ubíquos pela intersemioticidade entre imagens fotográficas e verbais, repercutindo em reflexões sobre a qualidade de vida e o cuidado humanizado para enfrentar a doença, além de ofertar outras possibilidades de promoção de saúde por meio da leitura.

REFERÊNCIAS ARNHEIM, R. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. Tradução de Ivonne Terezinha de Faria. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005. 503 p. AZEVEDO, R. Formação de leitores e razões para a literatura. In: SOUZA, R. J. (Org.). Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004. p. 38-47. BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. 20. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. 248p. BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000, v. II. 559p. BULFINCH, T. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Tradução de David Jardim Júnior. 26.ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. 412 p. CALDIN, C. F. A leitura como função terapêutica: biblioterapia. Encontros Bibli: Revista Eletrônica de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Florianópolis, Brasil, n. 12, p. 32-44, 2001. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2015. CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. Tradução de Vera da Costa e Silva et al. 17. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2002. 996 p. DUBOIS, P. O ato fotográfico e outros ensaios. 14. ed. Campinas: Papirus, 2012. 362p. DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix; Universidade de São Paulo, 1988. 114 p. ____. De la mitocrítica al mitoanálisis: figuras míticas y aspectos de la obra. Barcelona: Anthropos; México: Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa, 1993. 366 p. ____. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 551 p. FRANÇOIS, A. Cuidar: um documentário sobre a medicina humanizada no Brasil. São Paulo: Imagemagica, 2006. 248p. GARCÍA GUAL, C. Mito. In: ORTIZ-OSÉS, A.; LANCEROS, P. (Dir.). Diccionario interdisciplinar de hermenéutica. 5. ed. Bilbao: Universidad de Deusto, 2006. p. 373-375. LIMA, T. J. V. et al. Humanização na atenção básica de saúde na percepção de idosos. Saúde Soc., São Paulo, v. 23, n. 1, p. 265-276, mar. 2014. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015. ORMEZZANO, G. Educação estética, imaginário e arteterapia. Rio de Janeiro: Wak, 2009. 173 p. PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: 34, 2008. 192p. PORTAL, F. El simbolismo de los colores: en la Antigüedad, la Edad Media y los tiempos modernos. Tradução de Francesc Gutiérrez. Barcelona: Sophia Perennis, 1996. 159 p. RÖSING, T. M. K. Do currículo por disciplina à era da educação-cultura-tecnologia sintonizadas: processo de formação de mediadores de leitura. In: _____ (Org.). Mediação de leitura: discussões e alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009. p. 129-155.

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TAKAHAGUI, F. et al. MadAlegria - Estudantes de medicina atuando como doutores- palhaços: estratégia útil para humanização do ensino médico? Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 38, n. 1, p. 120-126, 2014. Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2015. ZOBOLLI, E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal. Saúde Coletiva, São Paulo, v. 4, n. 17, p. 158-162, 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2015.

OS DESAFIOS DO PROFESSOR NA PRÁTICA DOCENTE: ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo* (URI) Clei Cenira Giehl** (SENAC- SP) Deisi Daiane Gehrke*** (UFFS)

Depois de muitos anos à margem do currículo educacional brasileiro, a Língua Espanhola finalmente está conquistando espaço no sistema educacional e, em paralelo a isso, os cursos superiores estão tendo que preparar os alunos, futuros docentes, para o cenário que encontrarão nas escolas. Pensando nisso, visa-se retomar a discussão quanto ao processo de ensino-aprendizagem, as metodologias de ensino e a escolha de materiais didáticos. Apresento, inicialmente, reflexões sobre as interferências linguístico-culturais que contribuíram para a difusão do ensino de línguas estrangeiras. Juntamente ao estudo das interferências culturais, apresento uma explanação sobre as práticas de ensino das línguas estrangeiras. Proponho-me a detalhar um pouco sobre os métodos, sobretudo, o método gramática-tradução, o direto e o comunicativo, e os desafios dos professores neste trabalho. Também, apresento reflexões sobre a formação do professor para trabalhar com as línguas estrangeiras. Fundamentei este estudo em pesquisas de autores importantes, como Germain, Titone, Moirand, Reatto, Puren, Galisson, entre outros.

1. APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ESTRANGEIRA: O CONTEXTO HISTÓRICO E ECONÔMICO Seja por razões econômicas, diplomáticas, sociais, comerciais ou militares - é muito antiga a necessidade de entrarmos em contato com falantes de outras línguas. Pelo contato direto com estrangeiros aconteceram as primeiras aprendizagens de outro idioma. Juntamente com a aprendizagem de maneira natural, algumas sociedades se preocuparam em aprender e ensinar línguas estrangeiras de forma sistemática. Segundo Germain (1993), as primeiras provas da existência do ensino de uma segunda língua remontam à conquista gradativa dos sumérios pelos acadianos - do ano 3000 a. c, aproximadamente, até por volta do ano 2350 a. c. Os acadianos adotaram o sistema de escrita dos sumérios e aprenderam a língua dos povos conquistados. Para os acadianos o conhecimento que os sumérios possuíam era um instrumento de ascensão social. Acreditavam eles que essa mudança de classe possibilitava o acesso à religião e à cultura. Durante a Idade Média, o Latim possuía muito prestígio na Europa. Era a língua mais utilizada na igreja, nos negócios nacionais e internacionais. Também, a maior parte das publicações literárias, científicas e filosóficas era em Latim. A primeira vez em que foi exigido o bilinguismo nas escolas foi no século XVI. Nesse período, ocorreu uma grande revolução linguística. Exigia-se dos educadores o ensino do latim como língua culta e o vernáculo como língua popular.

Mestranda em Letras – Literatura Comparada, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen, Brasil, e orientadora deste trabalho. E-mail: [email protected] ** Pós-graduada em Análise do Discurso pela URI- Frederico Westphalen. *** Mestranda em Linguística pela UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul-Campus de Chapecó). *

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Assim, tornaram-se cada vez mais importantes, durante a Idade Média e começo da Renascença, as línguas vernáculas - o francês, o italiano, o inglês, o espanhol, o alemão e o holandês – e o Latim passou a ser cada vez menos usado na oralidade. Nesse momento, iniciou-se um processo de suplementação do Latim como língua de comunicação pelas diversas línguas nacionais. Estas se tornaram objeto de aprendizagem escolar, mesmo seguindo o modelo de ensino do latim.

2. UMA ANÁLISE DOS MÉTODOS PARA O ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA As transformações nos métodos de ensino das línguas estrangeiras durante os anos evidenciaram uma necessidade de mudanças na visão de como esse ensino é ministrado. Juntamente com isso, intensificou-se a necessidade de os alunos desenvolverem vários tipos de competências, entre elas, a competência oral, de interpretação e de escrita. Estima-se que em torno de 60% da população mundial é multilíngue. Por isso, parece justo dizermos que, através da história, a aprendizagem de uma língua estrangeira tem sido uma preocupação prática importante. Mesmo que hoje o inglês seja a língua estrangeira mais estudada no mundo, há quinhentos anos o latim era a língua dominante nas relações internacionais, como já exposto anteriormente. Já no século XVI, o francês, o inglês e o italiano ganharam cada vez mais importância devido aos negócios na Europa e, juntamente com isso, o latim foi gradualmente deixando de ser visto como a língua mais utilizada na comunicação oral e escrita. O declínio do latim trouxe novas justificativas para seu ensino. Alguns diziam que o latim desenvolvia capacidades intelectuais. O estudo da sua gramática, então, passou a ter um fim em si mesmo. Quando as línguas modernas começaram a ser incluídas nos currículos das escolas europeias, no século XVIII, eram ensinadas através da mesma maneira usada para o ensino do latim. Os livros consistiam em material de enunciados de regras abstratas de gramática, listas de vocabulários e orações para serem traduzidas. No século XIX, o enfoque baseado no estudo do latim se considerava o caminho normal para o ensino de línguas estrangeiras nas escolas. Os materiais típicos da metade do século XIX eram de atividades gramaticais. Os aspectos gramaticais eram apresentados, explicados e, após, eram apresentados exemplos ilustrados. Este método de ensino de língua estrangeira ficou conhecido como “Método Gramática-Traducción”.

3. MÉTODO DIRETO O professor francês François Gouin foi um dos primeiros reformadores do século XIX que tentaram desenvolver uma metodologia baseada na observação de como as crianças aprendem. Em vários momentos da história do ensino de línguas, afirmou-se que a aprendizagem de uma segunda língua se parece mais com a aprendizagem da língua materna. Entre os que tentaram aplicar os princípios naturais na interação oral, empregando perguntas como formas de apresentação e estimulando o uso da língua, temos L. Sauveur (1826-1907) e outros seguidores do Método Naturalista. Sauveur foi quem utilizou interação oral intensiva na língua objeto. Ampliava perguntas diversas com objetivo de estimular o uso da língua. Na década de 1860, abriu uma escola de ensino de línguas em Boston e seu método ficou conhecido como Método Natural. Sauver e seus seguidores defendiam que se podia ensinar uma língua estrangeira sem traduzi-la para a língua materna do aluno. O significado era compreendido através de demonstrações e

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da ação feita pelo professor no momento de interação. Esses princípios de aprendizagem é o que se conhece como Método Direto. Assim é como se denomina o método mais estendido entre os métodos naturais. Após a década de 1860, o método difundiu-se para outros países, como França, Alemanha, Estados Unidos, entre outros. Na prática, os princípios mais importantes que o método apresentava eram: • O ensino na sala de aula era exclusivamente na língua objeto. • Somente eram ensinados o vocabulário e as estruturas cotidianas. • A destreza na comunicação oral era desenvolvida por meio de perguntas e respostas entre professores e alunos, em turmas pequenas e em aulas intensivas. • Os novos elementos que deveriam ser ensinados eram introduzidos oralmente e a gramática era ensinada de maneira indutiva. • O vocabulário concreto era ensinado por meio de demonstrações, desenhos. Já o vocabulário abstrato era ensinado por meio de ações e ideias. • Era ensinada a expressão e compreensão oral. Este método teve êxito nas escolas privadas, em que os alunos tinham muita motivação e os professores eram falantes nativos. No entanto, nas escolas secundárias a aplicação deste método foi difícil, pois eram necessários professores falantes nativos para ensinar a língua estrangeira, já que o ensino de uma segunda língua exigia do professor conhecimentos aprofundados sobre a cultura e a língua a ser ensinada. Os docentes que não eram nativos tinham de realizar grandes esforços para não falar a língua materna, eis que uma simples explicação na língua materna dos alunos seria uma maneira mais eficaz de alcançar a compreensão desejada. A abordagem tradicional, aquela apresentada anteriormente, também chamada de gramática-tradução, foi a primeira e mais antiga metodologia. Era utilizada para o ensino do latim e do grego. E é esse modelo de ensino de língua estrangeira que vem para ser pensado e repensado a fim de modificar sempre para melhor o ensino de línguas. Por isso, podemos dizer que essa abordagem foi a mais importante de todos os tempos, pois iniciou um processo que era necessário para as relações internacionais. Para complementar as informações sobre essa abordagem, destacamos que a relação professor-aluno era vertical. Esse professor era a autoridade, o detentor do saber, enquanto o aluno era quem deveria tentar aprender tudo o que seu mestre ensinava, deveria memorizar o máximo de informações possíveis, pois não lhe era permitido errar. Nessa forma de ensino não havia interação entre professor aluno. Posteriormente, com as necessidades e os anseios sociais, surgiu a metodologia direta de ensino de línguas (PUREN, 1988). A aprendizagem no MD (Método Direto) deveria se dar mediante o estudo da língua em contato direto com a própria língua. Nesse contexto, a língua materna não deveria ser falada nas aulas de línguas estrangeiras. As atividades propostas eram variadas e compreendiam compreensão textual, exercícios de gramática, além da interação oral, que tinha grande ênfase no ensino. Neste método não havia praticamente nenhuma interação entre os aprendizes, mas eles podiam conversar em jogos de perguntas e respostas. A elaboração do MD foi com base a uma oposição sistemática ao MT (Método Tradutório), mas não deixou de cometer alguns excessos. Martins-Cestaro, quando fala dos excessos cometidos pela forma de ensino, diz: O caso da interdição absoluta da tradução para a língua materna nos primeiros anos de estudo, até mesmo como recurso de explicação, o que acabou por concentrar toda atenção do processo ensino aprendizagem na figura do professor, visto que era ele quem detinha o conhecimento lingüístico. (MARTINS-CESTARO,1997, p. 48)

Assim como Martins-Cestaro, outros autores manifestam suas opiniões quanto ao ensino no MD.

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Estudos demonstraram que a longo prazo, no que diz respeito à compreensão oral dos alunos, os resultados não eram significativamente superiores aos das metodologias anteriores (PUREN,1988; apud GERMAIN,1993). Após a Segunda Guerra Mundial, a língua inglesa se torna a língua das comunicações internacionais e com a situação da língua francesa, estando um tanto ameaçada, algumas medidas foram tomadas para que o francês fosse difundido. Na metade dos anos 50, Petar Guberina, do Instituto de Fonética da Universidade de Zagreb (ex-Iugoslávia), apresenta as primeiras formulações do Método Áudio Visual, doravante MAV. Guberina (apud GERMAIN, 1993) explica seus princípios, afirmando que a metodologia estava ligada ao conceito de fala em situação de comunicação. A MAV é considerada por muitos como um prolongamento do método direto e suas principais inovações são na tentativa de solucionar problemas com que os defensores da abordagem direta se defrontavam. Puren (1988) fez uma classificação dos cursos audiovisuais em três fases: primeira geração, nos anos 60; os de segunda geração, nos anos 70, marcados pela integração didática e por tendência behaviorista, e os de terceira, nos anos 80. Uma das características bem lineares dos cursos audiovisuais de primeira geração é a preocupação com o ensino gramatical, com seus exercícios mecânicos. Outra forte influência da primeira geração refere-se aos exercícios de memorização e dramatização dos textos da MAV, combinados com os exercícios estruturais que são inseridos nos cursos audiovisuais. Já a segunda geração é marcada por um esforço de correção e/ou adaptação aos contextos escolares. Podemos citar como exemplo de métodos do francês-língua estrangeira, classificados por Puren (1988), como de segunda geração. A terceira geração, nos anos 80, é caracterizada por tentativas de integração de novas tendências didáticas, “nocionais-funcionais” e “comunicativas”. Nas duas primeiras gerações da MAV, o aluno tinha apenas um papel essencialmente receptivo e submisso ao professor e ao manual e não tinha, ou não tinha momento para demonstrar, autonomia. O professor, neste período, era quem centralizava a comunicação, era manipulador e técnico. Em contrapartida, nos cursos audiovisuais de terceira geração foram integradas as noções de atos de fala. A noção de atos de fala corresponde à ação desempenhada pela fala e o seu funcionamento pragmático: exprimir um desejo, desculpar-se, pedir permissão, etc. As duas primeiras fases da MAV receberam críticas porque privilegiavam a função denotativa da linguagem em detrimento de outras funções. Por exemplo: a fática (que visa estabelecer e manter o contato entre os interlocutores), a emotiva (que permite ao locutor exprimir sua subjetividade) e a conativa (que visa a agir no destinatário da mensagem de forma a suscitar-lhe uma ação ou reação). Na terceira geração, a relação professor-aluno é mais interativa que nos dois períodos anteriores. Aqui, o professor evita corrigir os erros dos alunos durante a primeira repetição. Posteriormente, começa o trabalho de correção fonética até a fase de memorização. A correção é feita de maneira discreta, com ênfase para a entonação, o ritmo, o sotaque, etc. O objetivo das avaliações é medir o domínio da competência linguística e de comunicação, assim como a criatividade. Os princípios da metodologia audiovisual de terceira geração coincidem, em parte, com os da abordagem comunicativa, inclusive alguns autores incluem os manuais classificados por Puren (1988) de audiovisuais de terceira geração, como métodos comunicativos. Neste método, o ensino da língua estrangeira centra-se na comunicação. Sobretudo, o ensino objetiva desenvolver no aluno competências de comunicação e performance para elaborar discursos e ensinar o aluno a se comunicar em língua estrangeira, adquirir competência de comunicação. Este conceito foi desenvolvido por Hymes (1991) baseado em reflexões críticas sobre a noção de competência e performance de Chomsky. Hymes, cujo objeto de trabalho é a etnografia da comunicação, afirma que os membros de uma comunidade linguística possuem uma competência de dois tipos:

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um saber linguístico e um saber sociolinguístico, ou seja, um conhecimento conjugado de formas de gramática e de normas de uso. No caso da língua materna, a aquisição destes dois sistemas de regras acontece conjuntamente e de forma implícita. A partir dos trabalhos de Hymes, a noção de competência de comunicação foi rapidamente utilizada em didática. A abordagem comunicativa dá muita importância à produção dos alunos no sentido em que ela tenta favorecer estas produções, dando ao aluno a ocasião múltipla e variada de produzir na língua estrangeira, ajudando-o a vencer seus bloqueios, não o corrigindo sistematicamente. A aprendizagem é centrada no aluno, não só em termos de conteúdo como também de técnicas usadas em sala de aula (MARTINS-CESTARO,1997). As estratégias utilizadas visando a produção de enunciados comunicativos são variadas: o trabalho em grupo que permite a comunicação entre os alunos (com a preocupação maior nas estratégias de comunicação do que na forma dos enunciados); as técnicas de criatividade e as dramatizações, que permitem a expressão mais livre, a leitura silenciosa, global de textos autênticos (em oposição a textos fabricados para fins pedagógicos), o papel fundamental da afetividade nas interações, como também o trabalho individual autogerado, como meio de desenvolver sua capacidade de autoaprendizagem (MOIRAND, 1982, GALISSON, 1980). O erro é visto como um processo natural da aprendizagem; através do qual, o aprendiz mostra que ele testa continuamente as hipóteses que levanta sobre a língua (Germain,1993). Nesse contexto, o professor deixa de ocupar o papel principal no processo ensino-aprendizagem, de detentor do conhecimento, para assumir o papel de orientador, “facilitador”, “organizador” das atividades de classe. Um outro fator relevante e facilitador da aprendizagem é a atmosfera que reina na classe, e esta depende, em grande parte, do professor. Ele precisa ser caloroso, sensível, tolerante, paciente e flexível a fim de que possa inspirar confiança e respeito. Estes fatores contribuiriam para baixar o filtro afetivo, como diz Krashen (1982), favorecendo, portanto, a aprendizagem. As abordagens funcionais ou comunicativas, no entanto, são criticadas por serem ricas em discurso teórico e pobres em tecnologia, procedimentos e exercícios, ao contrário das metodologias mecanicistas que são ricas em tecnologia (gravador, projetor, laboratório de línguas...), em procedimentos e em exercícios (exercícios estruturais, micro- conversação...) e pobres em discursos teóricos (GALISSON, 1982). De acordo com as metodologias aqui apresentadas, observa-se que todas privilegiam o estudo da língua. Sendo ela, em algumas situações, vista como um conjunto de vocabulário, e em algumas como estruturas gramaticais, de noções ou funções. Além disso, algumas metodologias, além do estudo da língua, levam em conta a psicologia da aprendizagem: o processo e/ou as condições de aprendizagem. O professor é a autoridade e modelo a ser seguida, exceção feita à metodologia comunicativa, em que o professor assume múltiplos papéis, mas não é visto como autoridade. No que diz respeito ao aluno, verifica-se que nas metodologias analisadas ele passa de um papel passivo a um mais ativo, com tendência a desenvolver uma independência e certa autonomia face à aprendizagem. As atividades comunicativas possibilitam oportunidades para o desenvolvimento de relações pessoais positivas entre os alunos e o professor. Este deve buscar eliminar gradualmente a dependência dos estudantes de seu controle, mediante a criação de situações em que os mesmos estudantes sejam responsáveis por dirigir a interação na atividade. Sem dúvida, uma vez a atividade estando em desenvolvimento, o professor pode converter-se em observador. Em situações em que os estudantes se encontram com dificuldade e se veem incapazes de superar algumas exigências, o professor deve dar conselhos para facilitar-lhes os elementos linguísticos que sejam necessários. Enquanto os estudantes estão realizando as atividades, o professor pode usar os dados quanto a pontos fracos como indicadores das necessidades de aprendizagem que deverão cobrir mais adiante, por meio de atividades pré-comunicativas mais controladas.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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4. LEITURA E ENSINO A leitura é o elemento básico com o qual podemos trabalhar no processo de ensino de Língua Espanhola. É através do exercício da leitura que o leitor da Língua 2 desenvolve a sua capacidade de expressão, ou seja, transmissão de ideias, escrita e atitudes críticas em relação às situações comunicativas. Através dela podemos fomentar a escrita, é com as informações contidas nos textos que ampliamos nosso vocabulário e desenvolvemos nossa capacidade de expressão. Quanto à leitura, afirma Micotti: É um modo particular de aquisição de informações. Lançamos mão de estratégias de leituras diferenciadas para aprender as informações contidas nos diferentes textos, e o nosso interesse nas informações e o objeto desejado vai determinar o tipo de leitura a ser feito. Esta flexibilidade de atenção, as várias formas de ler para aprender os sentidos dos textos diversificados, é fundamental para o leitor e sua adaptação ao mundo moderno. (MICOTTI apud REATTO, 2008, p.9).

A afirmação de Micotti (apud: REATTO, 2008, p.9) evidencia a necessidade da leitura, e para realizá-la podemos nos valer de estratégias diferenciadas, a fim de apreendermos as informações contidas nos textos. Como exemplo disso, citamos a leitura de charges, que requer um olhar analisador de todas as informações contidas tanto no texto escrito, nas figuras, nos textos orais, entre outros. A necessidade de se trabalhar com materiais diferenciados e motivadores nas aulas de Língua Espanhola é evidente. Para que os alunos consigam aprender conteúdos em geral, é preciso que o professor se torne o mais dinâmico possível, utilizando técnicas de criação e recriação de atividades. A maioria dos professores utiliza a exposição oral como a principal metodologia, ou seja, somente apresentam os conteúdos gramaticais aos alunos, sem que, na maioria das vezes, aconteça uma interação comunicativa. Outros se utilizam da facilidade com a comunicação com atividades variadas, mas poucos aplicam atividades de pesquisa e leitura quanto à cultura hispânica ou sul-americana. Trabalhar apenas com a questão gramatical não é suficiente para o ensino de línguas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O ensino de Língua Estrangeira é o foco de anos de estudos. Diversas metodologias já foram pesquisadas e muitas conclusões foram tomadas. No entanto, percebe-se que o que realmente acontece é que as mudanças ocorrem com o decorrer do tempo dentro do espaço da sala de aula. O processo de ensino-aprendizagem para os alunos da graduação não é tão diferente do processo de aprendizagem dos alunos de outros níveis. A cada dia é uma busca, uma realização, o conhecimento é construído diariamente tanto para o aluno quanto para o professor. Sabemos que o motivo último do ensino de línguas é o desenvolvimento de competências, tanto orais como escritas. Cada método de ensino traz suas contribuições para o ensino de língua estrangeira. Cabe ao professor escolher os momentos adequados para empregar cada metodologia. Com base no que estudamos, podemos dizer que não existe um método completo em si mesmo, mas os métodos se complementam no dia a dia do ensino. Nesse sentido, compreende-se o professor como um protagonista da educação que ao mesmo que ensina também aprende. O papel do professor no processo é o de motivar o aluno a realizar as atividades, desenvolver o senso crítico e instiga-lo a pesquisa. Para expandir o conhecimento de seus discentes nas aulas de língua estrangeira, o professor deve trazer para discussão assuntos variados, tornando a aula a mais dinâmica possível. A aula não pode ser baseada só em discussão, tampouco só em gramática. Isso pode deixar a aula monótona e os alunos sem motivação pelo conteúdo.

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Defendo a utilização da leitura como ferramenta para iniciar os trabalhos de ensino de outro idioma. Também, é com o debate incessante sobre o ensino que as metodologias vão se aprimorando e sendo testadas. Vamos, então, a cada trabalho com línguas estrangeiras, inovar e buscar contribuir para o ensino, e produzir conhecimento a partir de nossas práticas.

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DA LEITURA DO MUNDO À LEITURA DO LIVRO: O PNBE NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO DE NOVOS LEITORES Delcio Antônio Agliardi* (UCS)

Este texto resulta de investigação desenvolvida no Programa de Doutorado em Letras da Associação Ampla UCS/UniRitter e está vinculado à temática mediação de leitura: práticas sociais e culturais do 13º Seminário Internacional de Pesquisa em Leitura e Patrimônio Cultural, realizado na Universidade de Passo Fundo nos dias 30/09/2015 e 01/10/2015. Tem como objetivo analisar a política de leitura prevista no Programa Nacional Biblioteca Escolar (PNBE), a partir do aporte teórico ciclo de políticas formulado por Ball, nos anos 1990, e da concepção de leitura como prática social e cultural. Os dados empíricos da pesquisa foram construídos junto a um grupo de alunos adultos, de idades entre 32 e 62 anos, de uma Totalidade Múltipla (TM) de conhecimento de uma escola pública municipal de Ensino Fundamental, que tem a modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nesta escola existe uma biblioteca instalada, com aproximadamente 22 mil volumes, e inclui dois acervos de livros literários, disponibilizados pelo PNBE ao público da EJA. A metodologia pesquisa-ação é adotada para a construção dos dados empíricos, no sentido de compreender como ocorre o processo da passagem da leitura do mundo à leitura do livro, na perspectiva da formação de novos leitores. O estudo tem base teórica na estética da recepção, na história da leitura (JAUSS, 1994; ZILBERMAN, 1989; LAJOLO & ZILBERMAN, 1996, MANGUEL, 1997) e nas práticas de leitura (CHARTIER, 2011).

1. O PNBE E O CICLO DE POLÍTICAS A política de leitura do PNBE prevê a seleção e distribuição de obras literárias para os sistemas públicos de ensino de todo o território nacional, os quais são encarregados pelo uso e circulação das obras por intermédio da biblioteca escolar. Para analisar essa ação educativa de leitura, recorremos à abordagem do ciclo de políticas, formulada por Stephen Ball na década de 1990. Em entrevista concedida a Mainardes e Marcondes (2009), Ball propõe o ciclo de políticas como um método. Não diz respeito à explicação das políticas e sim à maneira de pesquisar e teorizar as políticas. O ciclo de políticas não pretende ser uma descrição das políticas, mas uma maneira de pensar as políticas e saber como elas são produzidas, usando alguns conceitos, diferentes dos tradicionais. Ball (2009), na entrevista, defende que a política se movimenta em direção à prática, um processo complexo que passa pela modalidade primária (textual), ou seja, quando as políticas são escritas e pela modalidade secundária, quando são praticadas, pois a prática é ação, inclui o fazer. Ao pesquisar e teorizar sobre as políticas educativas de leitura literária nos reportamos a Ball (2009), para pensar com criticidade os contextos primários do ciclo de política (de influência, produção de texto, contexto da prática) e os contextos secundários (de resultado e de estratégia política). Segundo Ball (2009, p. 306), “os contextos podem ser pensados de outra maneira e podem ser aninhados uns dentro dos outros”. Podemos citar uma probabilidade dessa “articulação aninhada”, isto é, dentro do contexto de prática poderá ter um contexto de influência. Portanto, os contextos não podem ser tomados como indissociáveis entre si. *

Doutorando em Letras. Mestre em Educação. Licenciado em Filosofia. Professor do Centro de Ciências Humanas e da Educação (CCHE) da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: [email protected].

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1.1. POLÍTICA DE LEITURA: DO CONTEXTO DE INFLUÊNCIA À ESTRATÉGIA POLÍTICA A análise da política de leitura do PNBE começa pelo contexto de influência, ou seja, historicamente a população brasileira esteve longe de ser leitora. Até o começo do século XIX faltavam as condições mínimas para a promoção da leitura. De acordo com Lajolo e Zilberman (1996), a ausência de livrarias, bibliotecas, imprensa escrita, entre outras condicionantes, favoreceu para um Brasil sem livros e sem leitores. Na primeira metade do século XX não houve mudanças significativas no âmbito da leitura, pois os altos índices de analfabetismo e a baixa escolarização da população, a carência de bibliotecas escolares ou a precária infraestutura das existentes, são alguns dos fatores que influenciaram no resultado dos baixos indicadores de leitura. De acordo com dados do Censo Escolar (2013), 25% das escolas de ensino fundamental não têm bibliotecas ou salas de leitura. O Censo revela ainda que, de 2010 a 2013, o aumento de bibliotecas escolares instaladas ou de salas de leitura na educação básica não foi significativo diante das novas exigências da legislação federal, que obriga os gestores educacionais, até 2020, a providenciarem espaços de leitura no interior da escola. E também há grande disparidade regional. As regiões Sul e Sudeste têm a maior concentração de bibliotecas, enquanto Norte e Nordeste enfrentam dificuldades. Os estados do Rio Grande do Sul (63,41%), Minas Gerais (60,52%) e Paraná (58,05%) ocupam as três primeiras colocações. Acre (18,29%), Maranhão (13,88%) e Pará (15,83%), as últimas. O discurso recorrente da sociedade contemporânea quanto à leitura e à escrita, bem como os baixos indicadores de aproveitamento escolar, sobretudo de proficiência em língua portuguesa, a mobilização da sociedade civil em conselhos e conferências (de cultura e educação), são algumas das situações da realidade que influenciam a criação de política de leitura no final do século XX. Dito de outro modo, o que influenciou o surgimento do PNBE, como política de Estado no mundo contemporâneo, são fatores múltiplos, macrossociais e estão associados uns aos outros. O PNBE surge como uma resposta aos problemas da leitura, os usos das obras literárias, as diversas formas de distribuição entre os alunos e as práticas de leitura e de escrita existentes nas escolas. O segundo contexto (de produção do texto) mostra que o PNBE teve regulamentação na legislação educativa em 1997, com o objetivo de democratizar o acesso a obras de literatura, tendo como destinatários os alunos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio das escolas públicas. No ano de 2010 também foi incluída a modalidade Educação de Jovens e Adultos, com a destinação de dois acervos literários. A política de leitura exige a passagem da escrita para ação, tarefa difícil e desafiadora de se fazer. Segundo Ball (2009), um processo de atuação, ou seja, efetivação da política na prática e através da prática, que pode ser comparada com uma peça de teatro. As palavras do texto da peça toma vida quando alguém as representa, um processo de interpretação e criatividade. Assim é política pública de leitura. Segundo Ball (2009, p. 305), “a prática é composta de muito mais do que a soma de uma gama de políticas e é tipicamente investida de valores locais e pessoais”. A avaliação diagnóstica1 do PNBE, realizada em 2005/2006, visando alimentar as definições sobre os rumos de uma política de formação de leitores do governo federal, indicou enormes lacunas nas práticas de leitura nas escolas e constatou a existência de uma “montanha de livros estocados”, em grande parte decorrente do significativo investimento realizado no PNBE pelo governo federal, desde 1998, na aquisição e na distribuição de coleções de literatura e obras de referência para alunos e professores de escolas públicas. Segundo Paiva e Berenblum,

Realizada pelas professoras Jane Paiva e Andréa Berenblum (UFMG), em parceria com a UNESCO.

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o PNBE manteve-se apenas como um grande programa de distribuição de livros, como se a existência de acervos (de qualidade) fosse o caminho natural de formação de leitores nas escolas públicas brasileiras, sem prever apoio algum a projetos de formação continuada de professores com o foco na leitura literária. (PAIVA e BERENBLUM, 2009, p. 174).

A dificuldade dos professores para trabalhar com os livros distribuídos pelo PNBE, a ausência quase total de formação visando refletir sobre sua prática pedagógica e discutir diferentes concepções de linguagem, de leitura e de escrita, os limites no aproveitamento do material literário e a angústia pela falta de tempo para exercitar a própria leitura são alguns dos fatores que contribuem para uma prática muito aquém do desejável. Neste sentido, o PNBE, enquanto política de incentivo à leitura vinculada a políticas educativas, não pode subestimar as condições em que a educação escolar vem sendo realizada no país pelas redes públicas, o que resulta numa ação de baixo impacto nas políticas de formação do leitor e do gosto literário. A pesquisa colabora com a ideia de que os livros na caixa ou na estante não produzem os efeitos imaginados pela política de formação de leitores. Os livros do PNBE precisam estar na sala de aula e na vida dos alunos. Por isso, a formação de professores e de agentes encarregados pela biblioteca escolar são fundamentais para a produção de resultados significativos. Por último, o contexto de estratégia política. Selecionar obras e as distribuir para os sistemas públicos de ensino é uma estratégia relevante, porém incompleta, na medida em que a terceira tarefa, a da mediação de leitura, passa pela formação de profissionais da educação e pelas condições básicas de infraestrutura ou de concepção de biblioteca escolar. Segundo Paiva e Berenblum (2009), geralmente a concepção de biblioteca tem ênfase nas características da estrutura física e a separação entre esta e os projetos de incentivo à leitura. Nesta perspectiva, falta uma análise compreensiva sobre as finalidades sociais das bibliotecas escolares, para além do enfoque didático. A biblioteca pode ser uma potência geradora de conhecimento, fonte de desenvolvimento de pensamento e criatividade, se entendida como um equipamento cultural e educacional indispensável para a formação geral e do gosto literário. Segundo Castrillón (2011, p. 37), “bibliotecas que ofereçam um acesso real e universal à informação, sem a qual não possível sobreviver em mínimas condições de humanidade”. O Brasil precisa de bibliotecas escolares dotadas de um plano de trabalho na direção do uso das obras e que vincule suas práticas aos objetivos do PNBE. Uma biblioteca que ofereça ao público estudante debates, jornadas, festivais, rodas de conversa sobre os temas que dizem respeito aos problemas dos cidadãos, provoque e estimule reflexão, a crítica e o questionamento, como estratégia de formação humana, a qual mantém estreita relação com o direito à literatura, defendido por Cândido (2004). Esse pensador acredita que os direitos humanos são bens incompressíveis2. Com efeito, numa sociedade mundializada, as pessoas necessitam de acesso à informação e ao conhecimento para terem oportunidades de inserção e pertencimento à diferentes espaços socioculturais. Não basta ter acesso ao livro e à leitura, é preciso reflexão crítica sobre os destinos da Humanidade. Neste sentido, a mediação de leitura passa pelos profissionais da educação, ao assumirem um compromisso ético e político com a formação geral de uma sociedade em transição e que pretende ser democrática e inclusiva.

Os direitos humanos são bens incompressíveis, assim é a arte e a literatura, porque correspondem às necessidades profundas do ser humano. São bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual.

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2. CONCEPÇÃO DE LEITURA, PRÁTICA SOCIAL E CULTURAL A concepção de leitura tem sido repensada no mundo contemporâneo a partir de uma série de trabalhos acadêmicos e discussões que a defendem como uma questão ao mesmo tempo pedagógica, linguística e social (ORLANDI, 1988). Outros autores, como Lajolo, Zilberman, Manguel e Soares, partindo de aportes teóricos diferentes, desenvolveram trabalhos em que a leitura é compreendida como atividade humana que implica algo mais que a decodificação e a compreensão de um sentido que está dado no próprio texto. Segundo Paiva e Berenblum (2009), a leitura implica também produção e construção de sentidos, um processo no qual o sujeito se constrói como leitor em interação com o texto, com outros textos, a partir de sua própria história de leitor e de suas experiências de vida. Nesta concepção, o acesso aos bens culturais é uma condição fundamental no processo de constituição do leitor, ao mesmo tempo que é essencial, visando realizar um tipo de trabalho com a leitura que permita refletir sobre essas relações, os sentidos apreendidos a partir do texto e os sentidos produzidos e reconstruídos pelo leitor. Em Uma história da leitura, Manguel (1997, p. 33) sugere que “ler é cumulativo e avança em progressão geométrica: cada leitura nova baseia-se no que o leitor leu antes” e que a história da leitura é a história de cada um dos leitores. Neste sentido, a experiência da leitura passa pela prática social e cultural de cada pessoa. Precisamos aprender a ler, atribuir significado ao texto que lemos. Estudos de Anne-Marie Chartier (2011), mostram o distanciamento entre o discurso e as práticas de leitura no mundo ocidental. Para Chartier (2011), a partir dos anos 1980, na França, surge uma espécie de aliança simbólica entre bibliotecários, professores, jornalistas, documentalistas, defensores dos mesmos valores e com a convicção de que é preciso de uma abordagem no terreno social, e não simplesmente no território escolar, para estimular a leitura entre a juventude. A crise da leitura na escola trasbordou para a outra margem: a sociedade. Ao descobrir-se o analfabetismo funcional nas sociedades contemporâneas, em boa parte como processo desencadeado pelas novas exigências do mundo do trabalho, de aumento de desemprego e de precariedade social, todo o jovem “leitor fraco”, expressão utilizada por Chartier (2011, p. 142), se torna um desempregado em potencial. Neste contexto, “os bibliotecários foram pressionados a adotar procedimentos cada vez mais pedagógicos para ganhar novos leitores”. (CHARTIER, 2011, p. 142).

2.1. DA LEITURA DO MUNDO À LEITURA DO LIVRO A pesquisa-ação3 realizada junto aos alunos adultos de uma escola de Ensino Fundamental com EJA mostra que a passagem da leitura do mundo à leitura do livro exige mediação e incentivo dos professores e bibliotecários. “Ler um livro de capa a capa”, expressão nativa de um dos participantes da pesquisa4, com 62 anos de idade, sugere que o ato de ler uma obra completa está vinculado ao processo de prática e apropriação cultural no ambiente escolar e não-escolar. Assim, ler não é um processo automático de capturar um texto, mas um processo pessoal, de reconstrução, de tentativa disciplinada, de relações entre os saberes da experiência e os escolares, mesmo que de forma tardia. Para uma das alunas participantes da pesquisa, 32 anos de idade, a professora ao ler um fragmento literário em voz alta, na sala de aula, a estimula para ela ir em busca, na bilioteca da escola, do texto completo. Ou seja, a formação de novos leitores passa pelo incentivo do professor em sala de aula, que certamente também é um leitor. Nesta perspectiva, o gosto literário (JAUSS, 1994) é um Para a construção dos dados empíricos de campo escolhemos pesquisa-ação, que possibilita a observação compreensiva e analítica do fenômeno em estudo. 4 As vozes dos participantes da pesquisa estão registradas em Diário de Campo e registros de observação para a construção dos dados empíricos. Os nomes dos alunos estão preservados e, quando citados, são fictícios. 3

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pressuposto teórico indispensável, pois o o leitor é um fator ativo do processo literário, as mudanças de gosto e de preferências interferem na circulação e na produção dos textos. Segundo Jauss, A história da literatura é um processo de recepção e produção estética que se realiza na atualização dos textos literários por parte do leitor que os recebe, do escritor, que se faz novamente produtor, e do crítico, que sobre eles reflete. (JAUSS, 1994, p. 25).

E que cada leitor reage individualmente a um texto, porém a recepção é um acontecimento social. Cada leitor, esclarece Chartier (2011), a partir de suas próprias referências, individuais ou sociais, históricas ou existenciais, dá um sentido mais ou menos singular, mais ou menos partilhado, aos textos de que se apropria. Para outra aluna de EJA, 52 anos de idade, ler é como um esporte, distrai, passa o tempo, exercita a memória, deixando a cuca menos maluca. Ela gosta de ler em voz alta e também em silêncio. Ao ler entra na história como se fosse a personagem principal. E promete aos colegas participantes da pesquisa empréstimo de suas obras literárias. “Pela leitura criamos laços e nos aproximamos. Ler é somar-se ao outro, é confrontar-se com a experiência que o outro nos certifica”. (CASTRILLÓN, 2011, p.9) Os diálogos com esses três sujeitos adultos de EJA, em processo de escolarização tardia, remete para a reflexão sobre os atos de leitura como acontecimentos sociais e culturais que dão significados às relações estabelecidas no interior da escola e fora dela. Segundo Lajolo (2000), a literatura, como linguagem e instrução, permite criar diferentes imaginários, diferentes sensibilidades, valores e comportamentos que uma sociedade expressa e discute, simbolicamente, seus impasses, seus desejos, suas utopias. A observação que brota dessa pesquisa indica que biblioteca escolar pode ser um local de formação de leitores se oferecer aos seus usuários uma gama de atividades, significativas e variadas, em torno da leitura. Um espaço que se converta em instrumento contra a exclusão social. “Bibliotecas onde crianças, jovens e adultos de todas as condições, leitores e não leitores, escolares e não escolares, encontrem respostas a seus problemas e interesses e lhes sejam abertas novas perspectivas”. (CASTRILLÓN, 2011, p.36). Ou seja, uma política pública de leitura ligada aos processos sociais, que reconheça a coexistência de múltiplas práticas de leitura: diferentes maneiras de ler e diferentes propósitos para a leitura. Um projeto de política pública capaz de contemplar as diferentes representações, práticas e interesses da população. O interesse em pensar o processo da passagem da leitura ao mundo da palavra também se dá em razão de que a escola, para muitas pessoas das camadas sociais menos privilegiadas, é o único espaço de acesso à leitura. Segundo Castrillón (2011), é preciso transformar o problema da falta de leitura em ação política que atenda necessidades e promova o exercício da cidadania. Outras vozes emergem da pesquisa-ação e são significativas para pensar sobre a leitura da obra literária. Para Isaura, outra aluna de EJA, ler é uma terapia. Relata só pensar em si própria quando lê. Ler, para essa aluna, é como ir para a escola, é uma terapia. Acredita que ler é começar de novo. Recomenda a leitura de biografias. O efeito da literatura na vida da aluna é significativo. Na perspectiva de Jauss (1994), a interação do indivíduo com o texto faz com que o indivíduo reconheça o outro, promovendo a ampliação de seus horizontes em decorrência dos efeitos da obra literária. Cada leitor vai entrelaçando o significado de suas leituras com outras experiências de vida. Por outro lado, os estudos de Lajolo (2000) advertem que não podemos esquecer que há outras modalidades de leitura além da literatura, que desfrutam de maior trânsito social, formando o chamado capital cultural de uma sociedade. Mas a leitura da obra literária é uma modalidade privilegiada, nela a liberdade e o prazer são ilimitados.

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Chartier (2011), dialoga sobre os modelos de aprendizagem e métodos de ensino da leitura. Para essa autora, é necessário distinguir as teorias que criam modelos para o ato de ler e as teorias que criam modelos para a aquisição da leitura. Ou seja, uma proposta que reconhece a aquisição mais do que a aprendizagem. Por fim, é inegável que, nas últimas décadas, foram realizados esforços governamentais e não-governamentais para melhorar a formação de leitores e ampliar as possibilidades de acesso à cultura letrada, embora com poucos avanços ou que não respondem aos esforços investidos. Cabe ao PNBE enfrentar os problemas apontados no ciclo de políticas de leitura, de modo a romper com a lógica de aquisição e distribuição de obras literárias de qualidade para os sistemas públicos de ensino. É urgente a adoção de um processo de formação de professores e bibliotecários, além de criar infraestrutura às bibliotecas escolares existentes ou de instalação de bibliotecas nas redes de educação pública, de modo a superar o paradigma do “mercado do livro”, que vê um público de consumidores de um bem cultural, desprovido de todo poder pensante e de transformação social.

REFERÊNCIAS BRASIL. IBGE. Censo Escolar 2013. Disponível em: < http://portal.inep.gov.br/basica-censo >. Acesso em: 20 set. 2015. CANDIDO, Antônio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004. CASTRILLÓN, Sílvia. O direito de ler e escrever. São Paulo: Pulo do gato, 2011. CHARTIER, Anne-Marie. Práticas de leitura e escrita. Belo Horizonte: Ceale/Autêntica Editora, 2011. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2000. LAJOLO, Marisa. ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996. MAINARDES, Jefferson. MARCONDES, Maria Inês. Entrevista com Stephen J. Ball: um diálogo sobre justiça social, pesquisa e política educacional. Educação e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 106, p. 303-318, jan./abr. 2009. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 20 set. 2015. MANGUEL, Alberto. Uma história de leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ORLANDI, Eni. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988. PAIVA, Jane; BERENBLUM, Andréa. Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE): uma avaliação diagnóstica. Pro-Posições, Campinas, v. 20, n. 1 (58), p. 173-188, jan./abr. 2009. ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.

SERVIÇO DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO PARA DEFICIÊNCIA MENTAL – SAEDE/DM: UMA PROPOSTA DE LEITURA POSSÍVEL A PARTIR DE UMA TEMÁTICA MAIS INTERESSANTE Elis Gorett Lemos da Fonseca* (UNOCHAPECÓ) Claudia Daniele Spier Hoffelder** (UNOCHAPECÓ)

1. INTRODUÇÃO Este artigo tem como intenção relatar a experiência realizada no Estágio Supervisionado em Educação Especial III, do quinto período do Curso de Educação Especial. O objetivo do estágio na formação profissional é desenvolver, vivenciar e socializar uma proposta teórico-metodológica para pessoas com deficiência mental através do estágio curricular de docência. A intervenção foi realizada no Serviço de Atendimento Educacional Especializado na área da deficiência mental - SAEDE/DM da Escola de Educação Básica-E.E.B. Irene Stonoga, situada no município de Chapecó SC. A inclusão de crianças com deficiência mental no ensino regular tem sido um grande desafio para as escolas, há necessidade de repensar práticas e currículos. A criança com diagnóstico de deficiência mental tem uma maneira própria de lidar com o saber, nem sempre sendo beneficiada com os métodos utilizados na escola comum. Ainda há certo medo da diferença e do desconhecido por parte das instituições de ensino, sendo esta postura muitas vezes responsável pela resistência à inclusão das pessoas com deficiência na escola regular. No Estado de Santa Catarina o processo de inclusão das pessoas com deficiência iniciou a mais de vinte anos. Segundo o Documento da Política de Educação Especial de Santa Catarina (2009), o processo de inclusão de educandos com deficiência na rede regular de ensino foi oficializado em 1987, com a deflagração da matrícula compulsória, onde as escolas foram obrigadas a matricularem todas as crianças em idade escolar, independente de suas características ou das condições da escola. Com base no que foi exposto, é imprescindível que o educador esteja em constante formação, renovando seus conhecimentos e revendo suas práticas a respeito das diferenças que se encontram no espaço da escola, uma vez que a educação é garantida por lei a todos brasileiros, independente de possuírem alguma deficiência ou não. O Estágio Supervisionado em Educação Especial III tem a finalidade de proporcionar aos acadêmicos o exercício da docência em instituições de ensino que atendem pessoas com deficiência mental, mediado pelos referenciais teóricos e práticos constituídos no decorrer do curso. É neste laboratório permanente que o acadêmico tem a oportunidade de colocar em prática os conhecimentos adquiridos, mas, sobretudo refletir sobre sua prática, sobre a intencionalidade de cada atividade realizada, sempre buscando a qualificação das funções psicológicas superiores dos educandos. A fundamentação teórica está pautada no conceito de Deficiência Mental, no processo da elaboração conceitual e na legislação vigente que ampara as pessoas com deficiência e o seu direito a educação de qualidade no espaço escolar.

Mestranda em Letras- Literatura Comparada- URI, Graduada em Pedagogia pela ULBRA, Graduada em Educação Especial pela UNOCHAPECO, Especialista em LIBRAS e Tradução e Interpretação de Libras X Português pela UTP. ** Graduada em Ciências Biológicas pela UNOESC/Videira, Graduada em Educação Especial pela UNOCHAPECO, Especialista em Educação Especial pela FURB/Blumenau. Cursando Pós Graduação em Altas Habilidades/Superdotação pela CENSUPEG/Chapecó. *

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2. HISTÓRICO E CARACTERIZAÇÃO DA DEFICIÊNCIA MENTAL Pessoas com deficiência mental por muito tempo foram segregadas nas Instituições de Educação Especial e aos poucos foram conquistando seu espaço e sendo inseridas na rede regular de ensino. A busca pelos direitos das pessoas com deficiência já ocorre há décadas e como resultado dessas lutas surgiu importantes legislações que amparam o direito a educação de qualidade no espaço escolar, como: a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva de 2008, a Política Estadual de Educação Especial de Santa Catarina que é regulamentada pela Resolução Nº 112/2006, Decreto Nº 186/2008, a LDB e a Constituição Federal nos artigos que dizem respeito à Educação Especial, entre outras. Historicamente as pessoas com deficiência foram esquecidas pela sociedade por muitos anos, Carneiro aponta que: Os estudos sobre as deficiências iniciaram a partir do século XVI como uma preocupação da medicina em classificar os indivíduos que se desviavam do padrão de normalidade definido para a época. É só no século XIX que entraram em cena também os pedagogos, interessados no estudo da deficiência mental e nas possibilidades de educação dos indivíduos considerados deficientes (CARNEIRO, 2006, p.137).

Nessa época já se começava a questionar o meio em que as pessoas com deficiência viviam e os estímulos que recebiam, pois até então eram consideradas sem capacidades de aprender, portanto não tinham direito à educação. Carneiro em seus estudos aponta que: “a deficiência mental, que após a inquisição se tornara um problema médico e não mais teológico, passara de um enfoque supersticioso a um tratamento naturalista, [...], porém, não necessariamente científico” (PESSOTTI, 1984 apud CARNEIRO, 2006. p.138). Segundo Carneiro (2006) o conceito de deficiência mental surgiu a partir de uma necessidade de produção intelectual. Neste momento surgiu a necessidade de medir a capacidade intelectual dos indivíduos e classificá-los. A autora aponta que o termo deficiente mental surgiu em 1939, em um Congresso em Genebra, como tentativa de padronizar mundialmente a referência e substituir pelo utilizado na época, que era anormal. Havia uma preocupação em encontrar um termo que não tivesse uma carga negativa e estigmatizadora. Embora os termos tenham mudado no decorrer dos anos, e a escolarização das pessoas com deficiência tenha apresentado excelentes resultados, sabe-se que muitos profissionais ainda desconhecem e duvidam da capacidade de aprendizagem destes educandos. A aprendizagem independe do termo que o educador utiliza para designá-lo, mas depende das mediações que se estabelecem na escola e na sala de aula. Conceituar a deficiência tem sido objeto de estudo de muitos pesquisadores, mas a definição da deficiência mental não é tão fácil de ser compreendida. Segundo Padilha: Na classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento do CID 10, o termo ‘deficiência’ está substituído por ‘retardo’, quando se trata de comprometimento mental possível de diagnóstico. Tal retardo está definido como condição interrompida de desenvolvimento (2007, p.35).

Levando em conta a dificuldade em realizar um diagnóstico, Padilha (2007, p. 37) ainda refere-se ao CID 10: “vale lembrar que o mesmo adverte na classificação que assume descrever: retardo leve, moderado, grave, profundo e não especificado, são divisões arbitrárias de um continuo complexo e não podem ser definidas com precisão absoluta.” Independente do conceito socialmente aceito, a deficiência mental não se esgota na sua condição orgânica ou intelectual e nem pode ser definida por apenas um campo do saber, ela é um objeto de investigação de diversas áreas do conhecimento. Segundo Santa Catarina,

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A partir de 1994, foi adotado pelo Ministério da Educação (MEC/SEESP) o mesmo conceito de deficiência mental utilizado pela Associação Americana de Retardo Mental – AARM, que caracteriza o educando com Deficiência Mental como aquele que apresenta [...] incapacidade caracterizada por limitações significativas em ambos, funcionamento intelectual e comportamento adaptativo e está expresso nas habilidades sociais, conceituais e práticas. Se originada antes dos 18 anos (AAMR, 2002 apud SANTA CATARINA, 2009, p. 23).

O fato de ser diagnosticada a Deficiência Mental até os 18 anos justifica-se porque a maturação biológica do ser humano acorre até esta idade. A AAMR (2006. p. 21) propõe um modelo de avaliação diagnóstica na área da deficiência mental, e este modelo deve levar em consideração “o funcionamento individual, os apoios e as cinco dimensões que abrangem uma abordagem multidimensional do retardo mental.” Tomando como base este modelo teórico, a Deficiência Mental pode ser compreendida como uma condição envolvendo cinco dimensões: habilidades intelectuais; comportamento adaptativo; participação, interações e papeis sociais; saúde e contexto. Não se pode diagnosticar uma pessoa sem levar em consideração o ambiente em que ela vive, as relações estabelecidas, a saúde, o seu desenvolvimento, quais estímulos que possui, qual papel social que exerce, enfim, todo contexto deve ser observado. Como também, devem ser oferecidos apoios relacionados às cinco dimensões, resultam em um melhor funcionamento individual. Segundo Associação Americana de Retardo Mental (2006. p.26): “Os apoios são recursos e estratégias que visam a promover o desenvolvimento, a educação, os interesses e o bem-estar pessoal de uma pessoa e que melhoram o funcionamento do indivíduo”. O conhecimento sobre a pessoa com deficiência, sua funcionalidade e suas potencialidades é fundamental para o profissional da educação que prestará o apoio. A escola regular e o SAEDE, por exemplo, também são apoios para o indivíduo, uma vez que deverão ser trabalhadas questões específicas que aprimorem sua capacidade cognitiva e contribuam na formação de conceitos qualificando suas estruturas de pensamento. Ainda percebe-se que existem dificuldades e questionamentos a respeito da maneira de lidar com a deficiência e com quem a possui. O medo da diferença e a falta de conhecimento são responsáveis, em grande parte, pela discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência. A inclusão das mesmas no ensino regular causou muita resistência, pois é necessário recriar práticas pedagógicas, mudar concepções e rever o papel da escola, não apenas adaptar e individualizar/diferenciar o ensino para alguns. A partir do momento que a escola diferenciar as formas de ensinar, todos os alunos serão beneficiados pelas práticas pedagógicas atrativas e significativas. Esta problemática vivenciada pelas escolas é trazida por Gomes no que segue: A deficiência mental desafia a escola comum no seu objetivo de ensinar, de levar o aluno a aprender o conteúdo curricular, construindo conhecimento. O aluno com essa deficiência tem uma maneira própria de lidar com o saber, que não corresponde ao que a escola preconiza. Na verdade não corresponder ao esperado pela escola pode acontecer com todo e qualquer aluno, mas os alunos com deficiência mental denunciam a impossibilidade de a escola atingir esse objetivo, de forma tácita. Eles não permitem que a escola dissimule essa verdade. As outras deficiências não abalam tanto a escola comum, pois não tocam no cerne e no motivo de sua urgente transformação: considerar a aprendizagem e a construção do conhecimento acadêmico como uma conquista individual e intransferível do aprendiz, que não cabe em padrões e modelos idealizados (GOMES et al., 2007, p.16)

Levando em consideração o exposto, se faz necessário uma reorganização da escola, que vise a atender a toda diversidade de alunos, indistintamente, há muitos alunos que não conseguem aprender e não possuem deficiência, mas a diferença é que a pessoa com deficiência mostra essa impossibilidade da escola ensinar. Se não houver um novo olhar para uma educação para todos, a tendência é uma exclusão em massa, provocando cada vez mais queixas dos pais e alunos, e um distanciamento da escola e do seu propósito de ensinar com qualidade.

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Uma educação para todos não pode estar focada na promoção dos melhores alunos e exclusão dos que não se enquadram ao modelo proposto pela escola, isso apenas reforça o preconceito em relação aos que aprendem de maneira diferenciada. Gomes aponta sobre questões do aprender ser regulado pelo sujeito da aprendizagem: Aprender é uma ação humana criativa, individual, heterogênea e regulada pelo sujeito da aprendizagem, independente de sua condição intelectual ser mais ou menos privilegiada. São as diferentes idéias, opiniões, níveis de compreensão que enriquecem o processo escolar e clareiam o entendimento dos alunos e professores. Essa diversidade deriva das formas singulares de nos adaptarmos cognitivamente a um dado conteúdo e da possibilidade de nos expressarmos abertamente sobre ele (GOMES, 2007, p.17).

A diversidade de ideias e opiniões que se encontra na sala de aula proporcionam momentos significativos de troca de experiências e aprendizagens que, podem ser mediados pelo educador numa ação intencional, desenvolvendo suas estruturas de pensamento e elaboração de conceitos. Segundo Fontana, [...] as diferentes formas de generalização e abstração, estabilizados nos sistemas lingüísticos, não se desenvolvem naturalmente. Elas são apreendidas, incorporadas aos processos naturais (como mecanismos sensórios, por exemplo), nas condições reais de interação nas diferentes instituições humanas (FONTANA, 2005, p.14).

Quando o professor interage e media com a criança com intencionalidade, proporciona o desenvolvimento de suas funções mentais, pois depende fundamentalmente das possibilidades de interação e do meio em que se desenvolvem. Segundo Fontana (2005, p.15); “Vygotsky caracterizou as estruturas de generalização (sincretismo, complexos/conceitos – potenciais, e conceitos) [...] e que permitem explicar as transformações na forma de raciocinar que resultam na formação de conceitos.” Segundo esta autora, o pensamento sincrético caracteriza-se pela capacidade da criança realizar agrupamentos na maioria das vezes perceptivos e sensoriais; no pensamento por complexos o que predomina é a relação afetiva com recordação à vida real, o concreto; e no pensamento por conceitos há também a discriminação, abstração e isolamento de determinados elementos que não tem vínculo concreto e afetivo com a criança. Quando a criança começa a pensar por conceitos, o vínculo pessoal e o concreto passam a dar espaço à palavra como referência a categorias abstratas. Segundo Fontana (2005. p.17), “o sujeito utiliza menos suas impressões imediatas para classificar os objetos, passando a isolar certos atributos dos objetos e a colocá-los em categorias específicas por uma relação com um conceito abstrato”. A elaboração de conceitos pela criança acontece de forma mediada, quando ela frequenta a escola, levando consigo conceitos espontâneos e assim, começa a aprender de forma sistematizada, permitindo à criança tomar consciência dos seus processos mentais, conforme afirma Vygotsky (VYGOTSKY apud FONTANA, 2005. p.23): “o aprendizado escolar desempenha papel decisivo no desenvolvimento da elaboração conceitual e na tomada de consciência, pela criança, de seus próprios processos mentais”. Tendo em vista a importância da escolarização com qualidade e para todos, o Estado de Santa Catarina oferece para que haja inclusão com qualidade, vários serviços de apoio, complemento e suplementos aos alunos com deficiência. Para os alunos com deficiência mental, é oferecido o Serviço de Atendimento Educacional Especializado para Deficiência Mental- SAEDE/DM, no turno inverso do ensino regular.

2.1. O SERVIÇO DE ATENDIMENTO EDUCACIONAL SAEDE/DM, NA E.E.B. IRENE STONOGA A EEB Irene Stonoga foi fundada em 01 de abril de 1962, na cidade de Chapecó, SC. Neste ano de 2012, conta com aproximadamente 850 alunos, distribuídos no Ensino Fundamental e Ensino Médio, nos turnos matutino, vespertino e noturno. A escola segue as diretrizes da Proposta Curri-

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cular de Santa Catarina e fundamenta sua ação pedagógica, segundo o projeto político pedagógico, na perspectiva histórico-cultural, na qual o papel da escola, do professor e do conhecimento esteja a serviço da cidadania crítica (Projeto Político Pedagógico 2012 apud Proposta Curricular de Santa Catarina). O Serviço de Atendimento Educacional Especializado para Deficiência Mental – SAEDE/DM – foi implantado na escola em 2008. O serviço atualmente atende 13 alunos, sendo doze da própria escola e um de escola particular. Tem alunos que são atendidos no período da manhã uma vez por semana, período inteiro (dois alunos), os demais frequentam o serviço duas vezes na semana com atendimento de 1 hora e 30 min. Os atendimentos são organizados individualmente, quando necessário e no coletivo, com no máximo quatro alunos. A professora do serviço realiza assessorias para pais, alunos, professores e demais funcionários da escola. As assessorias são realizadas também nos momentos de planejamento, dias de estudo e conselhos de classe. Segundo o documento da Política de Educação Especial de Santa Catarina (2009, p.32) o SAEDE/DM tem como objetivo: “qualificar as funções psicológicas superiores do educando, para autorregulação de sua estrutura cognitiva, mediante investigação de estratégias pedagógicas que possibilitem avanços no seu processo de ensino aprendizagem.” A investigação de estratégias pedagógicas adequadas se dá num minucioso processo de observação e utilização de metodologias com a intencionalidade de percepção, para se identificar quais as dificuldades e quais as potencialidades que deverão ser trabalhadas nos educandos com deficiência mental, para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, qualificando suas estruturas de pensamento. No atendimento do SAEDE o professor também deverá trabalhar, segundo o documento da Política de Santa Catarina (2009, p. 33) “questões relacionadas à autonomia, às diferentes formas de linguagens, à concentração, atenção, memória, organização, análise e síntese, classificação, comparação, orientação espacial e temporal, resolução de problemas, textualidade.” O professor tem papel fundamental no desenvolvimento da pessoa com deficiência mental, pois a intencionalidade de ações mediadas levará o educando ao objeto de conhecimento e à formação de conceitos. Segundo Vigotsky (apud FONTANA, 2005, p. 11) “O caminho do objeto até a criança e desta até o objeto passa através de outra pessoa.” Com base no que foi descrito, se reforça a importância de ações que visem às potencialidades dos educandos e o conhecimento de como este indivíduo se desenvolve para qualificar o suas estruturas cognitivas.

3. ESTÁGIO SUPERVISIONADO E CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA O estágio foi realizado na segunda quinzena de outubro e na primeira quinzena de novembro de 2012, foram trabalhados conceitos de sexualidade, adolescência, corpo humano, namoro, relacionamento, relação sexual, entre outros. Nas intervenções foram utilizadas estratégias diferenciadas, dinâmicas de grupo, conversas, vídeos, cartazes, pesquisa na internet, ora utilizando o concreto ora o abstrato, com a intencionalidade da autonomia, análise, síntese e resolução de problemas. Segundo Documento Preliminar (SANTA CATARINA, 2011) o professor do SAEDE deve utilizar estratégias e procedimentos diferenciados daqueles utilizados pelos professores do ensino regular. O atendimento e intervenção realizada deverão ser específicos para a necessidade do aluno, justificando-se assim a organização do atendimento em até quatro alunos, a utilização de metodologias adequadas e específicas, possibilitando espaços de troca e interação, favorecendo o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. As alunas atendidas no estágio foram três jovens com diagnóstico de deficiência mental e outras deficiências associadas, ambas tiveram desde criança atendimento educacionais especializados e possuem bom desenvolvimento, duas delas fazem uso da leitura e escrita, enquanto que a outra esta em processo de alfabetização, dentre as alunas nenhuma possui dificuldades de locomoção, me-

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mória, relação tempo e espaço, realizam diálogo contextualizado, raciocínio, pensamento abstrato, classificam, categorizam, demonstrando que o fato de sempre receberem estímulos proporcionou ótimo desenvolvimento às educandas. O que se percebeu na observação, foram as necessidades de potencializar a questão de autonomia, autocuidado, empoderamento, análise e síntese e resolução de problemas no que diz respeito ao seu próprio corpo e em relação às mudanças que ocorrem no período da adolescência e às dúvidas que surgem nesta fase, assim como o desenvolvimento de interesse na leitura mesmo que imagética. No primeiro encontro, iniciamos o trabalho abordando as diferenças do corpo humano masculino e feminino, foi realizada uma conversa onde as alunas puderam expor suas opiniões e interrogações. Para esta atividade foi utilizado como dinâmica as alunas escreveram com e sem auxilio da professora do Saede, os questionamentos relacionados ao tema e depositando- os em uma caixa, o número de perguntas foi livre assim como seu grau de dificuldade. Na sequência, foi proposto que cada uma desenhasse em uma folha de cartolina um corpo humano masculino e a outra um corpo feminino, onde deveriam expor todas as características. O objetivo desta atividade era que percebessem as mudanças e transformações do corpo da fase da infância para a adolescência. A todo o momento as alunas foram questionadas como estas transformações ocorrem. Observou-se que perceberam as alterações visíveis, como crescimento de pelos no corpo e na região pubiana, crescimento dos seios, mudanças do cabelo, pele com espinhas, menstruação... Além das transformações físicas, expressaram que neste período começa a fase de namorar, ficar e beijar na boca. Feitas as intervenções, percebemos já possuíam alguns conhecimentos sobre o assunto tendo necessidade de alteração no plano de estágio. A estratégia utilizada foi o planejamento de várias atividades para uma mesma intervenção e a utilização daquelas que se fizesse necessário, visto interesse das alunas, nesse momento resolvemos introduzir o uso de um mapa interativo do corpo humano que favorecesse o aprendizado das alunas. No segundo encontro, trabalhamos com desenhos no quadro do corpo masculino e feminino enfatizando as diferenças e igualdades, questões sobre menstruação, hormônios e ato sexual, além do uso de cartazes de biologia para a comparação com os desenhos. Após esta etapa, as alunas assistiram vídeo com o tema menstruação e adolescência, e observou-se o interesse constante pelo assunto, primeiramente sentiam-se envergonhadas em abordar questões do sexo masculino, porém com a mediação e intervenção das estagiárias participaram ativamente na aula. Constatou-se também que já possuíam um determinado conhecimento sobre o tema, que conforme a apresentação de situações problemas encontrava uma maneira de resolver, muitas vezes relacionavam com assuntos já abordados no ensino regular. Assim os momentos de discussões se tornaram mais ricos e proveitosos. O objetivo desta atividade foi provocar nas alunas um interesse do tema e perceber como reagiam as situações problemas apresentadas. Na terceira atividade, as alunas estavam animadas para o inicio das atividades e conversamos por alguns minutos sobre o tema abordado nas duas últimas aulas, com participação ativa, lembrando-se do que foi trabalhado. Na sequência propomos abrir a caixa de perguntas que na primeira aula foram escritas por elas, cada uma retirava um bilhete que continha um pergunta, se possível fazia a leitura e respondiam com a resposta mais apropriada, todos contribuíam com suas opiniões, porém o tempo maior para esclarecimentos era deixado para que as alunas se expressassem. Como nos questionamentos foi apresentado dúvidas sobre menstruação e ato sexual, após esta etapa as estagiárias conduziram a conversa para sanar estas dúvidas. Primeiramente foram apresentados diversos tipos de absorventes explicando qual a sua diferença e utilidade e que cada mulher utiliza aquele que se sente melhor. Em seguida, abordamos o assunto sobre ato sexual e métodos contraceptivos. As explicações foram realizadas através de desenhos no quadro e de maneira clara sem complicações, para que se sentissem livres para participar e perguntar. Este momento da aula foi talvez o mais interessante, pois estávamos tratando de um assunto considerado tabu nas famílias,

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as dúvidas das alunas eram as mesmas de qualquer adolescente nesta faixa etária. Analisamos que nesta aula as alunas estavam mais apreensivas e que seus olhos brilhavam a cada explicação, quase que sem piscar para não perder nenhum detalhe, esta aula foi rica e proveitosa, pudemos perceber que as educandas compreenderam e entenderam o conceito, mesmo com dificuldades em expressar por escrito. Percebemos que não queriam terminar o assunto e este fato foi respeitado, deixamos as alunas livres para fazerem perguntas, e eram muitas, já que uma delas no dia anterior foi buscar na internet mais informações sobre o tema que estávamos estudando. Na sequência propomos a realização de uma pesquisa na internet sobre o tema métodos contraceptivos e absorventes, fizemos uso do mapa interativo como recurso para intensificar o aprendizado. No encontro seguinte, fomos fazer um passeio no Shopping da cidade, as alunas estavam ansiosas por este dia, pois, uma delas nunca tinha visitado este espaço. O objetivo desta atividade era fazer um programa de jovem, observando os diferentes estilos das pessoas, a maneira apropriada de como se vestir em diversas ocasiões. As alunas compraram, tomaram sorvetes, provaram peças e aprenderam sobre as pessoas e seus estilos, perceberam sobre seus próprios gostos e desgostos. No retorno para a escola o assunto era apenas o Shopping e o que tinham visto, as pessoas que frequentavam o lugar e o mais importante elas descobriram que faziam parte deste mundo. O último encontro foi fundamental para as nossas análises sobre o estágio, retomamos o assunto das aulas anteriores, conversamos sobre tudo que havíamos discutido e questionamos sobre sua compreensão e eventuais dúvidas que poderiam ter ficado. A professora do serviço no informou que as alunas tinham escrito um texto com seu auxilio, sobre a temática aprendida em nosso estágio, discutimos os textos e reorganizamo-os, juntamente com as autoras. Na sequência como forma de registro, filmamos as alunas ao lado de suas produções explicando o que haviam trabalhado durante este período em que nos encontramos. Falaram com propriedade do assunto e uma das falas que mais nos chamou atenção foi de que no Shopping havia pessoas com estilos bem diferentes, cabelo verde, cinza, tatuagem, com alargadores de orelha..., mas que cada um deve ser respeitado da forma como é, uma delas também enfatizou que apesar de não ter conhecimento na escrita, conseguiu realizar as leituras que propomos já que existe diferentes maneiras de ler o mundo e que o uso do mapa interativo com imagens e movimento proporcionou uma compreensão igualitária aquelas que suas colegas haviam desenvolvido. Em análise a este último dia de estágio, percebemos que as dúvidas, incertezas e questionamentos que as alunas do SAEDE da Escola Irene Stonoga possuem, são exatamente as mesmas de todos os adolescentes nessa faixa etária. Ao escolhermos este tema, fomos felizes em abordarmos de maneira natural, percebendo a compreensão e interesse das educandas, observados na resolução dos problemas que se apresentavam em cada situação. Desta forma há interesse pelas atividades desenvolvidas, o aluno consegue desenvolver suas estruturas de pensamento e a formação de conceitos, atingindo o objetivo do Serviço de Atendimento Educacional Especializado para Deficiência Mental. Diante do que foi exposto e de todas as intervenções realizadas, podemos perceber o quanto a trabalho foi significativo também para as alunas, que são diagnosticadas com Deficiência Mental Leve, e com as intervenções realizadas conseguiram sanar suas dúvidas e compreender os conceitos. Conseguimos dessa forma, entender que quando foram questionadas em diferentes momentos sobre a temática, conseguiam relatar sua compreensão, e registrar na escrita dos textos, as ideias essenciais dos conceitos trabalhados. Concluímos que, quando os alunos com diagnóstico de deficiência mental frequentam serviços de apoio, que atendam as suas necessidades, com a mediação dos professores titulares das disciplinas com um olhar diferenciado para as individualidades e a realização de adaptações curriculares quando for necessário apoiados em recursos digitais, o processo de inclusão ocorre e há aprendizado significativo dos conceitos científicos trabalhados no ensino regular.

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REFERÊNCIAS CARNEIRO, Maria S. C. A deficiência mental como produção social: de Itard... In: BAPTISTA, Claudio R. BEYER, Hugo O. et al. (org.). Inclusão e Escolarização: múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Mediação, 2006, p.137-142. FONTANA, Roseli A. Cação. Mediação pedagógica na sala de aula. 4ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. GOMES, Adriana Limaverde; et al. Atendimento Educacional Especializado: Deficiência Mental. São Paulo: MEC/SEESP, 2007. PADILHA, Ana Maria Lunardi. Práticas pedagógicas na educação especial: a capacidade de significar o mundo e a inserção do deficiente mental. 4ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. PROJETO Político Pedagógico. EEB Irene Stonoga. Chapecó, 2012. SANTA CATARINA. Documento Preliminar de Santa Catarina, com as Orientações Metodológicas na Educação Especial. Mimeo. 2011 ______. Política de Educação Especial do Estado de Santa Catarina. Coordenador: Sérgio Otávio Bassetti – São José: FCEE, 2009. ______. Resolução no 112 CEE/SC, de 12 de dezembro de 2006. Fixa normas para a Educação Especial no Sistema Estadual de Santa Catarina. Diário Oficial (de Santa Catarina), 12/12/2006.

ECOS DA POESIA NO LEITOR MIRIM Flávia Brocchetto Ramos* (UCS) Marli Cristina Tasca Marangoni** (UCS) [...] A poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens. (BARROS, 1990, p. 310)

Anterior à ciência e à norma linguística, a palavra poética devolve ao homem a infância do mundo, quando as convenções não estavam demarcadas. Com a missão de infantilizar a linguagem, a palavra poética assegura ao homem o usufruto livre e gratuito das potencialidades da linguagem, dando voz à perplexidade e à inquietação humana, como era no princípio, na infância da humanidade. Huizinga (2000) entende que o ludismo constitui uma categoria primária da vida, anterior até mesmo à cultura e, originalmente, presente com igual intensidade em todas as etapas da existência humana. Segundo o autor, o que torna nítida a associação entre o ludismo e a poesia é o fato de o texto poético empregar, na sua construção, mecanismos relacionados ao jogo. A atividade lúdica possibilita ao sujeito a satisfação de carências vitais e culturais, pois permite o desenvolvimento do ritmo, harmonia, mudança, alternância, contraste, clímax etc. Acreditando que a poesia é um espaço onde a infância pode ser vivida, o presente estudo1 investiga como estudantes de 4º ano do Ensino Fundamental configuram o poético a partir de leitura mediada de poemas veiculados em obras selecionadas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Este artigo focaliza a construção e aplicação de procedimentos mediadores para o poema “O eco”, de Cecília Meireles, problematizando a constituição do sujeito letrado em poesia e buscando apontar caminhos para a constituição e o desenvolvimento do poético no interior da escola. Nesse sentido, objetiva-se formular uma resposta possível à problemática da formação de leitores, que desafia o âmbito educacional e as políticas públicas voltadas à leitura.

1. PNBE 2010 E LEITURA DE POESIA palavras são como estrelas[...] para acordá-las basta um sopro em sua alma e como pássaros vão encontrar seu caminho (MURRAY,1999, p. 10)

Criado em 1997, o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) constitui uma política relevante no âmbito da leitura, a nível nacional, dada sua abrangência e continuidade. O PNBE integra o Plano Nacional do Livro e Leitura e tem passado por redirecionamentos, ora destinando livros de literatura para as bibliotecas escolares, ora diretamente para os alunos. Desde 2004, as bibliotecas escolares têm acolhido os livros, uma vez que se estabeleceu o propósito de valorizar esse espaço, como promotor da universalização do acesso a acervos e ao conhecimento que eles abrigam. No ano de 2010, o Programa selecionou e encaminhou às escolas públicas do País, do conjunto de 100 títulos, um total de 30 obras poéticas, distribuídas em quatro acervos direcionados aos anos Dr. Letras/PUCRS, Professora na Universidade de Caxias do Sul-RS, Brasil. E-mail: [email protected] Dr. Letras/UCS, Professora no Centro de Ensino Superior Cenecista de Farroupilha -RS, Brasil). E-mail: [email protected] 1 Este artigo foi construído a partir da tese “Brincadências com a poesia infantil: um quintal para o letramento poético”. (MARANGONI, 2015). *

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iniciais do Ensino Fundamental. Tais obras constituem um conjunto significativo e variado de produções, e se caracterizam pela mobilização intencional de recursos artísticos. Embora destinadas à circulação no âmbito da escola, não há engajamento com os currículos escolares, o que contribui para a superação das contradições inerentes à escolarização /didatização do texto literário. Para a consecução da investigação, pós estudo bibliográfico e analítico sobre conceitos chaves e estudo de obras, implementou-se pesquisa-ação, a qual pressupõe alcance na resolução de problemas educacionais, já que é considerada como pesquisa social com base empírica e estreitamente associada a uma ação ou à resolução de um problema entre o pesquisador e os sujeitos. Conforme Thiollent (2004, p. 15), neste tipo de pesquisa é necessário que o pesquisador desempenhe um papel ativo no equacionamento dos problemas encontrados, no acompanhamento e na avaliação das ações desencadeadas em função dos problemas. A investigação que tem o texto literário como fonte dialoga com metodologia de caráter formativo e emancipatório que atende a determinados princípios, denominados por Franco (2005) de ‘princípios fundantes’, indicando que a investigação sobre a prática educativa deve contemplar, dentre outros aspectos: a ação conjunta entre pesquisador-pesquisados; a realização da pesquisa em ambientes onde acontecem as próprias práticas; a organização de condições de autoformação e emancipação aos sujeitos da ação. Nessa perspectiva, o projeto Brincadências poéticas foi desenvolvido junto a uma turma dos anos iniciais do Ensino Fundamental de uma escola pública do Município de Bento Gonçalves. O intuito foi perceber, pela escuta atenta, discussão e análise, os recursos que cooperam para instaurar possibilidades de sentido poético para o leitor e de que maneira tais recursos são apropriados por aquele que lê. O objetivo foi, além disso, inventar sopros que acordem as palavras poéticas adormecidas no interior das caixas, para que elas encontrem, enfim, o seu caminho: os olhos, a cognição e o coração do pequeno leitor.

2. UMA PERGUNTA ECOA Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas. (SARAMAGO, 1982, p. 225)

Perguntas e respostas querem delimitar fronteiras entre o conhecido e o desconhecido. No processo de conhecer, contudo, perguntas desencontram as respostas, o papel de quem pergunta e de quem responde precisa inverter-se. Quando nos perguntamos sobre o letramento poético, precisamos escutar as respostas que emergem do cotidiano, as respostas que se perdem ante olhares costumeiramente distraídos. O projeto Brincadências poéticas dedicou-se a promover encontros de leitura de poesia junto a estudantes do 4º ano de uma escola pública, situada em Bento Gonçalves. Para tanto, dez poemas do acervo PNBE 2010 foram selecionados e analisados em sua proposta poética, bem como organizados segundo um percurso de apropriação. O itinerário partiu de textos que enfocaram a musicalidade, o nível mais concreto e familiar de captura do texto poético, passando por um nível intermediário para enfocar, após, a instância imagética, que envolveu relações mais complexas entre os dados textuais. Por fim, compreendeu a visualidade da página, pela disposição diferenciada do texto verbal, como outra dimensão possível para a constituição do poético. Os poemas eleitos procuraram atender ao percurso que caracteriza o ingresso no poético e qualificar a interação do leitor com a poesia, visando seu letramento literário. A meta foi propiciar rupturas e questionamentos que ampliassem progressivamente o horizonte de expectativas dos leitores, através da aplicação do método recepcional, formulado por Bordini e

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Aguiar (1988) como operacionalização à Estética da Recepção, que tem em Jauss seu principal expoente (1979). Cada sessão de leitura enfocou um dos poemas selecionados e organizou-se a partir de alguns momentos pedagógicos, que buscaram preparar a recepção do texto, garantir a compreensão da sua proposta poética e propiciar a criação a partir da leitura. A seguir, relatamos as vivências que tiveram lugar em uma das sessões de leitura poética, destacando as propostas desenvolvidas e alguns dos resultados construídos na direção do letramento poético. O momento volta-se para uma vivência em torno do poema “O eco” (MEIRELES, 2002, p. 93) e visou enfocar o diálogo entre a sonoridade e a construção imagética. Nas vivências iniciais de leitura propostas pelo projeto Brincadências poéticas, foram enfocados aspectos sonoros das composições. Nessa ocasião, buscou-se intermediar o enfoque a aspectos menos concretos da poesia, que costumam parecer mais obscuros ao leitor iniciante. Para resguardar a identidade dos alunos envolvidos, eles são identificados, no estudo, por meio do nome de pássaros, denotando a liberdade e a multiplicidade de vozes e cores que povoaram o quintal das leituras poéticas, no contexto do projeto Brincadências poéticas. No momento inicial, os pássaros leitores foram convidados a ouvir e cantar uma canção denominada “Eco” (Palavra Cantada, 2005), que tematiza o eco, assim como o poema cuja leitura centraliza a vivência. Depois da audição, o grupo foi convidado a sugerir possíveis respostas para alguns questionamentos: Quem fala na canção? Onde o eco se manifesta na canção? Como “a voz” do eco se denuncia? Qual é o elemento que se repete, no eco? Que imagens ou cenas engraçadas comparecem nessa canção? Sabiá comenta a parte em que o eco se faz ouvir na canção: “Parece que tem um monte de gente.”. E salienta: “Gostei da parte do pirulito.” Por sua vez, Uirapuru pede: “Bota de novo!”. Curió destaca que, na canção, ouvem-se “o aventureiro e o eco”, dado que será explorado na produção do seu grupo, no momento final da leitura. A mediadora questiona como se identifica a voz do eco, na música. Canário esclarece que se sabe que a manifestação é do eco “porque ele falou uma vez e deu muitas vezes”. Na sequência, a proposta sugeriu que se levantassem possíveis relações entre causas e consequências veiculadas pela música, tais como tomar muito sol e sentir-se um ovo frito; ver a mata verde e sentir-se um periquito; ver um doce gostoso e sentir-se um pirulito. A reflexão buscou estabelecer um elo possível entre as ideias apresentadas e a noção de eco, como uma resposta que emana da própria pergunta, como uma reação a determinado som, ação ou fenômeno, ao mesmo tempo resultado e repetição. Curió destaca que “o eco é um jeito de repetir.”. Foi apresentado, então, o poema “O Eco”, de Cecília Meireles, para ser ouvido pela voz da mediador, primeiramente e, após, lido voluntariamente. O excerto a seguir, extraído da transcrição da sessão de leitura, explicita que o leitor tende a receber o poético, tentando aplicar recursos da narrativa, gênero com o qual está mais familiarizado: Mediadora: Quem é que fala nesse poema? A gente ouve a voz de quem? Curió: O menino e o eco MEDIADORA: E mais quem? Ninguém? [...] Bentevi: E mais ninguém, só. Mediadora: Só? Gaivota: O “ranador”. A analogia feita entre o sujeito poético e o “narrador”, figura que, na prosa, conduz a narração, revela a atividade no leitor na busca de coincidências entre sua bagagem e o universo apresentado pelo texto. Ancorando elementos do poema em águas conhecidas, o leitor coopera com a proposta de sentido enunciada pelo poema6 e possibilita sua concretização. A seguir, procedeu-se à leitura do poema em três “vozes”, de modo que um grupo representou o sujeito que “conta” o episódio, outro veiculou a voz do menino diante do eco e o terceiro assumiu a

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“fala” do eco. Os leitores foram instigados a comentar o poema lido e a explicitar semelhanças em relação ao texto enfocado na Brincadência anterior (“Telefone sem fio”, CAMARGO, 2007, p. 8-9). Eles destacam que, assim como no “Telefone sem fio”, o som chega “passando um pelo outro” (Canário), “parecido, mas de um jeito diferente.” (Curió). Durante a conversa em torno do poema, o grupo foi instado a formular o que o menino representado sabe ou imagina sobre o eco, e a destacar quais palavras do poema têm como eco os fragmentos “onde” (responde; esconde) e “migo” (comigo, amigo, inimigo). Ainda refletindo sobre os sons que o eco repete, o grupo foi levado a explicitar o que a brincadeira do eco faz com as palavras que a gente diz, e a exemplificar combinações de palavras existentes no poema. Nesse momento, Cacatua assinala a proximidade sonora entre “menino” e “amigo”/ “inimigo”, indicando sua atenção ao parentesco menos evidente de sons. Para manifestar que imagem as palavras desse poema constroem, Andorinha explicita que imagina “o menino falando e... vindo um som...”; ou ainda, “e o eco respondendo”, como diz Gralha. Já Curió descreve uma cena: “O menino tá acampando, daí ele vai num alto de uma montanha e fala com o eco.”. Uma brincadeira de eco deu continuidade à discussão e à análise das relações entre sons e imagens. A brincadeira buscou destacar a manutenção de sons e o sentido divergente ou inexistente, resultante do eco. Para o momento de criar a partir do poema, cada leitor foi convidado a pensar em um “eco” (uma terminação de palavra) e registrá-lo em uma tira de papel. Os “ecos” foram trocados entre os colegas. Cada um colou a tira recebida em uma página e registrou em torno dela palavras que poderiam ter gerado o “eco” pensado pelo colega. Após o registro, o escrito foi cotejado com as palavras incialmente pensadas pelo propositor do “eco”, completando o esquema, em alguns casos. Por exemplo, Guará-pitanga registrou o eco “tina”, pensando na palavra “Argentina”. Ao recebê-lo, Canário registrou “Valentina” e, na socialização, Gralha sugeriu “cortina”, Garça propôs “cantina” e Sabiá acrescentou à lista “Clementina”. Em grupos, a partir dos registros, sugeriu-se uma composição em que as palavras fizessem eco entre si, podendo resultar uma imagem engraçada. As produções feitas foram socializadas e avaliadas pelos leitores. Elas mostraram a compreensão dos grupos acerca das potencialidades dos sons, apresentando, em sua maioria, ecos como rimas, a exemplo da produção de Cacatua, Pardal, Uirapuru e Canário: A ave encontrou a chave e viu a Simone com fome comendo panetone. O registro de Andorinha, Pintassilgo e Gralha explora o eco como um recurso para ressaltar a rima e alcançar o humor, sob o título de Um poema para ela: A Daniela, avistou uma cadela, ela, ela/ Ela era bela, ela, ela, ela/ A Daniela logo lhe deu um nome,/ de Arabela, bela, bela, bela/ E logo levou para a casa dela, ela, ela, ela/ E logo disse:/ - Eta, não faz careta, eta, eta, eta. Já no poema de Guará-pitanga, Rolinha e Bem-te-vi, o eco também serve à rima, mas, no verso final, é empregado para fins enfáticos, uso que não havia sido previsto na proposição do exercício: Quando vejo/ Quando vejo/ uma bolacha/ lembro da mulher/ do caixa que/ se chama Natacha/ lembro que ela se/ acha, acha, acha, acha. Ao exercício poético de Curió, Garça, Gaivota e Quero-quero, o eco empresta, além da graça, certa intensidade à ação, sugerindo a repetição das tentativas que o sujeito empreende diante das respostas do eco e gerando como efeito uma força capaz de dilatar ou subtrair. O texto organiza-se narrativamente, mas o recurso sonoro aproxima-o do poético, trazendo a figura do aventureiro diante do eco: Chico e o eco. O Chico, ico, ico, foi oi oi na montanha, anha, anha, anha falar lar, lar com o eco, eco, eco, eu te pego, ego, ego, ego, eu te amasso, asso, asso, asso, e te asso, asso, asso, asso na minha forma de aço, aço, aço, ceu (sic) palhaço, aço, aço, aço. Atenta-se que o eco do nome Chico infantiliza o nomeado e, de certo modo, o diminui, enquanto que o eco das suas ameaças e provocações aproxima-se de um aumentativo, ampliando-as. Resulta engraçado ver o sujeito fazer-se maior diante do eco, como Dom Quixote ante os moinhos de vento.

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Na brincadeira de ecoar palavras, a partir do poema “O eco” (MEIRELES, 2002, p. 93), joga-se menino! de um lado; do outro, Gralha responde com Vamos cantar o hino. Se Gralha diz: marreca, Sabiá emenda: Profe, eu ganhei uma cueca! Ao fim do trabalho com esse poema, questionou-se acerca do momento mais apreciado na Brincadência: Tudo, tudinho, opina Andorinha; Tudinho, inho, inho, ecoa Guará-pitanga, dando continuidade ao jogo. A brincadeira com a musicalidade da língua é pegadiça, contagia quem desejava calar, pois de repente um novo eco pede para ser dito e garante a propagação dos sons. Como é possível perceber, as associações pelo som são apreciadas pelos leitores infantis, que assim descobrem o curioso, o possível e o imprevisto da língua em seu nível mais concreto. Nas produções dos leitores, destaca-se o emprego das estratégias de reiteração sonora, que agregam intensidade à repetição em um movimento que ora simula o vai-vem, ora delineia movimento ascendente. A exploração da linguagem, a evidência da sonoridade e o gozo dos sons salientam-se nos ecos e repetecos linguísticos. Por fim, uma pergunta ecoa: como a poesia reverbera nos exercícios dos letrandos? As produções mostram-se emissárias de um poético da simplicidade, inventado no cotidiano e nas relações entre os sujeitos e os outros. A seleção e ordenação singular das palavras, a criação intencional de um efeito específico, de riso ou sensibilização, a instauração de silêncios propositais, tendo em vista o poético, a tentativa de ultrapassar lugares comuns são alguns dos procedimentos que dão visibilidade ao processo de letrar-se para a poesia.

3. ECOS DE POESIA Mas o eco só responde: “Onde? Onde?” (Cecília Meireles)

Quando nos propusemos a buscar caminhos para a experiência do poético, entendemos que as respostas são parciais e exigem que as completemos com nossas esperanças e ações. Por isso, seguimos perguntando pela poesia e suas concretizações, especialmente no tempo da infância e no espaço da escola. Ora, se a poesia está na infância e o acervo do PNBE é direcionado à infância, então, a poesia precisa comparecer nos títulos e depois sair desses títulos e respingar nos leitores concretos que habitam as escolas brasileiras. A experiência vivenciada no interior do projeto Brincadências poéticas revela que a poesia produz ressonâncias no leitor em formação, como mostra a sua acolhida ao texto poético e a disponibilidade com que o enfrenta. Contudo, apenas ler não é o bastante. Entre as rotinas, paredes fechadas e grades curriculares da escola, é preciso abrir intervalos que abriguem pousos e horizontes, para que esse leitor possa aprender o voo através das malhas do texto poético. Por isso, letrar para a poesia é processo que carece de intencionalidade e constância para se concretizar. Uma das possibilidades mais promissoras para a concretização da mediação pedagógica tendo em vista o poético é o recurso à experiência lúdica, que vai ao encontro da maneira como a criança se apropria do mundo. Como sugere o nome do projeto que ensejou a prática aqui relatada, as leituras poéticas têm mais chance de sucesso quando orientadas para o brincar, seja com a linguagem, seja com o corpo, com os sentidos e com o outro. Parece-nos, pois, fundamental que a escolarização da leitura não corrompa a natureza lúdica do poético, conservando a sua legitimidade, que é gratuita e provocativamente construída. O leitor que a escola acolhe já viveu a poesia do mundo. Importa que ele também tenha espaços e recursos para lidar com a poesia que as letras propõem. Um caminho para a apropriação do poético desenha-se a partir da ênfase à musicalidade do texto, alcançando o enfoque imagético, de modo a complexificar, progressivamente, a atuação do leitor. A nossa convicção é que, fazendo eco

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na subjetividade e na cognição dos leitores em formação, a leitura poética assume lugar decisivo no processo de emancipar o sujeito e permitir-lhe a autonomia, que tanto desafia a escola e a sociedade de modo geral. Realizando essas reflexões, a partir da pesquisa vivenciada, o presente artigo procura propor possibilidades de uso e significação dos acervos destinados às escolas pelo PNBE. Assim, evidencia-se a necessidade de se construir pontes entre o livro e os leitores em formação, já que a presença de bons textos nas escolas não tem garantido que os mesmos sejam lidos e apropriados. Busca-se, outrossim, contribuir para a construção de uma resposta possível às dificuldades que a instituição escolar tem enfrentado, no seu desafio de formar leitores e, sobretudo, leitores que leem com prazer: leitores que encontram no ato de ler um eco para o viver.

REFERÊNCIAS BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. BORDINI, Maria da Glória; AGUIAR, Vera T. Literatura: a formação do leitor. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988. BRASIL. FNDE. Programa Nacional Biblioteca da Escola: PNBE. Edital PNBE 2010. Brasília, 2009. Disponível em: . Acesso em: 23 jul. 2014 CAMARGO, Dilan. Brincriar. Ilustrações de Joãocaré. Porto Alegre: Projeto, 2007. FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pedagogia da Pesquisa-Ação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 483-502, set./dez. 2005. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a11v31n3.pdf HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. MARANGONI, Marli Cristina Tasca. Brincadências com a poesia infantil: um quintal para o letramento poético. Tese de doutorado: Universidade de Caxias do Sul, 2015. MEIRELES, Cecília. O eco. In: Ou isto ou aquilo. Ilustrações de Thais Linhares. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. PALAVRA CANTADA. Eco. In: Pé com pé. Produzido por Sandra Peres e Paulo Tatit. São Paulo: MCD, p2005. 2 discos sonoros. THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 2004.

DIÁRIOS LITERÁRIOS: EXPERIÊNCIAS COM LEITURAS E ESCRITAS DE ADOLESCENTES Jaqueline Thies da Cruz Koschier* (IFRS – Campus Pelotas) A história da leitura é a história de cada um dos leitores. A. Manguel

INTRODUÇÃO Faz parte do cotidiano dos professores a preocupação com a formação leitora dos seus alunos, os muitos porquês que se sobrepõem na relação com os discentes: por que alguns não leem? Por que não gostam de literatura? Por que acham a literatura brasileira desinteressante? Por que preferem autores contemporâneos? Por que gostam tanto de livros com continuações? Para longe de expressões desgastadas e negativas como “ninguém gosta mais de ler”, “os adolescente de hoje não pegam mais nos livros”, acreditamos que muitos adolescentes gostam e leem com frequência. Todavia, o quê eles leem e como eles o fazem revelam que houve mudanças no suporte e nos modos de ler dos adolescentes do século XXI. Nossas inquietações encontram eco nas palavras de ANDRUETTO (2013), Para que escrever, para que ler, para que contar, para que escolher um bom livro em meio à fome e às calamidades? Escrever para que o escrito seja abrigo, espera, escuta do outro. Porque a literatura, mesmo assim, é essa metáfora da vida que continua reunindo quem fala e quem escuta num espaço comum, para participar de um mistério, para fazer que nasça uma história que pelo menos por um momento nos cure de palavra, recolha nossos pedaços, junte nossas partes dispersas, transpasse nossas zonas mais inóspitas, para nos dizer que no escuro também está a luz, para mostrarmos que tudo no mundo, até o mais miserável, tem seu brilho. (ANDRUETTO, M.T. p.24, 2013).

Nesse sentido, percebemos que os registros escritos pelos adolescentes acerca de suas leituras demonstram que há uma busca por sentimentos que os permitam transitar entre o já vivido e aquilo que só foi vivido por outro, mas ao ler suas experiências ficcionais é como se cruzassem uma ponte entre o real e o não real, unindo sentimentos que já foram deles com outros novos que talvez um dia também venham a vivenciar. Para Yolanda Reyes (2012): Especialmente nos tempos difíceis, a literatura ajuda a processar aquilo que não se pode suportar na vida real e permite ir avançando lentamente na interpretação: aventurar-se mais longe, mais longe [...] Estou falando do poder da literatura para rebobinar a vida, como a rebobinamos nos sonhos, para contarmos algo sobre nós mesmos que não é fácil ver em horas de vigília, que tem que ser decantado por outros caminhos: no mundo simbólico. (REYES, 2012, p. 82-83).

Logo, acreditamos que a literatura pode empoderar os sujeitos leitores com emoções que ainda não vivenciaram na vida real, mas que por meio da literatura podem se tornar “vingidores” dessas emoções vividas por outrem.

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Doutoranda em Educação PPG-FAE/UFPel; professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFSul). E-mail: jaqueline. [email protected]

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REFERENCIAL TEÓRICO Para Antônio Cândido (1995), a literatura é uma força humanizadora que exerce três funções essenciais na expressão e formação do homem, são elas: psicológica, formativa e de conhecimento do mundo e do ser. A primeira remete à necessidade de ficção e fantasia do ser humano e à capacidade de se copiar o real por meio da ficção; a segunda se dá por meio de assimilações não maniqueístas. A última função reforça que a literatura é uma forma de representação da realidade social e humana. Em seu ensaio O Narrador, Walter Benjamin afirma que: Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem a lê partilha dessa companhia. Mas o leitor de um romance é solitário (...) nessa solidão, o leitor do romance apodera-se da matéria de sua leitura de uma maneira extremamente ciosa. Quer apropriar-se dela, devorá-la, de certo modo. Sim, ele destrói, devora a substância lida, como o fogo devora lenha na lareira. A tensão que atravessa o romance se assemelha muito à corrente de ar que alimenta e reanima a chama. (BENJAMIM, 2012, p.230-231).

Nessa relação de animação e reanimação da chama que aquece, alimenta e se autoconsome temos elementos que nos ajudam a identificar e compreender melhor as escolhas e como os adolescentes constroem suas próprias interpretações de suas leituras. O professor Rildo Cosson (2007), afirma em sua pesquisa acerca do letramento literário que a linguagem literária abrange três tipos de aprendizagens: a primeira é a aprendizagem da literatura (se dá por meio de experiências estéticas); a segunda é a aprendizagem sobre a literatura (envolve aspectos sócio-histórico-culturais); e a terceira que é a aprendizagem por meio da literatura (visando a ampliação do universo cultural dos sujeitos-leitores). Para Cosson, o letramento literário é um caminho viável para que possamos: (...) reformar, fortalecer e ampliar a educação literária que se oferece no ensino básico. Em outras palavras, ele busca formar uma comunidade de leitores que, como toda comunidade, saiba reconhecer os laços que unem seus membros no espaço e no tempo. Uma comunidade que se constrói na sala de aula, mas que vai além da escola, pois fornece a cada aluno e ao conjunto deles uma maneira própria de ver e viver o mundo. (COSSON, p.12, 2009).

Desse modo, procuramos aliar o prazer de ler à formação literária a fim de proporcionar leituras que extravasem o ambiente escolar, sendo levadas a outros grupos de convívio social. Considerando as práticas de leitura e suas relações de sentido, ressaltamos as palavras de Chartier (1994) quando diz que a leitura “não é somente uma operação abstrata de interlecção”, uma vez que envolve corpo e mente inscritos em um espaço de relação consigo e com o outro. A leitura é uma prática temporal, logo os modos de ler e os suportes dos textos se modificam de acordo com as práticas sócio-econômico-culturais de cada comunidade de leitores, uma vez que ler, interpretar e produzir textos são práticas resultantes de sujeitos leitores (e históricos) que se constituem na e pela linguagem. Pois, como nos alerta De Certeau: O leitor é o produtor de jardins que miniaturizam e congregam um mundo. Robinson de uma ilha a descobrir mas “possuído” também por seu próprio carnaval que introduz o múltiplo e a diferença no sistema escrito de uma sociedade e de um texto. (...) ele se desterritorializa, oscilando em um não lugar entre o que inventa e o que modifica. Ora efetivamente, como o caçador na floresta, ele tem o escrito à vista, descobre uma pista, ri, faz “golpes”, ou então, como jogador, deixa-se prender aí. Ora perde aí as seguranças fictícias da realidade: suas fugas o exilam das certezas que colocam o eu no tabuleiro social. Quem lê com efeito? Sou eu ou o quê de mim? (DE CERTEAU, p.269, 2007).

O ato de ler, portanto, evoca um sem número de situações que devem ser investigadas e preservadas a fim de que possamos contribuir com a leitura de cada sociedade e seus contextos.

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OBJETIVOS Com o propósito de ampliar a comunidade leitora em nossa escola, criei, em 2012, o projeto Diário de Leitura, o qual promove a formação leitora e a reflexão crítica acerca dos textos literários, sejam eles canônicos ou não. A partir de 2013, comecei a catalogar os diários e a organizar os dados fornecidos pelos alunos acerca de suas experiências literárias. Em 2014, este projeto tornou-se tema de estudo para meu doutoramento em Educação, sob orientação da Profª Drª Eliane Peres no PGGE- FAE - UFPEL, no qual buscaremos mapear as leituras realizadas pelos leitores adolescentes participantes do projeto Diários Literários, investigando os protocolos implícitos e explícitos de suas experiências com a leitura literária e a escrita do Diário. Considerando que a maioria das leituras se dá devido a exigências escolares, é importante pensarmos sobre o papel da escola e do professor na formação literária de seus alunos e da comunidade que os cerca, pois como afirma Cosson (2009) A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmos. (...) É por possuir essa função maior de tornar o mundo compreensível transformando sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas imensamente humanas que a literatura tem e precisa manter um lugar especial nas escolas. (COSSON, 2009, p.17)

Seguindo a concepção acerca do ensino de Literatura nas escolas, optamos por seguir a metodologia denominada de letramento literário2, pois acreditamos que são necessários métodos para se trabalhar com a literatura no âmbito escolar a fim de solidificar a aprendizagem da mesma. Para promover o letramento literário na escola é necessário ampliar conceitos acerca do ato de ler, uma vez que este ato é tão somente a faceta mais visível do letramento literário, a leitura por si mesma não promove o crescimento intelectual do leitor; é o questionamento acerca dos múltiplos conhecimentos que promovem as experiências vivenciadas na leitura e compartilhadas pela comunidade de leitores, pois como afirma Regina Zilberman A leitura do texto literário constitui uma atividade sintetizadora, na medida em que permite ao indivíduo penetrar o âmbito da alteridade, sem perder de vista sua subjetividade e história. O leitor não esquece suas próprias dimensões, mas expande as fronteiras do conhecido, que absorve através da imaginação mas decifra por meio do intelecto. Por isso, trata-se também de uma atividade bastante completa, raramente substituída por outra, mesmo as de ordem existencial. Essas têm seu sentido aumentado, quando contrapostas às vivências transmitidas pelo texto, de modo que o leitor tende a se enriquecer graças ao seu consumo. (ZILBERMAN, 1990, p.19)

Nesse sentido, entendemos que a leitura, sobretudo a literária, vai muito além da concepção estética ou psicolinguística, uma vez que permite aos leitores que se “vejam” nos textos lidos e possam tecer suas próprias (re)significações como sujeitos históricos do meio em que atuam. Nas palavras de Andruetto (2013): O arquetípico é uma revaloração do lugar-comum, convertido em marco, em ponto fixo. Remete a um mundo bipolar e necessita de um narrador com poder e saber absolutos, (...) porque o que busca não é tanto encantar ou assombrar o outro, mas convencê-lo. Se o narrador do conto maravilhoso pedia um você decidido a acreditar, o narrador do relato arquetípico pede um você decidido a aprender (...) que leva consigo, às vezes explícita, às vezes camuflada, a intenção moral. (ANDRUETTO, 2013, p.180)

Utilizo o conceito proposto por COSSON, R. disponível em: http://www.glossarioceale.com.br/verbetes/letramento-literario.

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Dessa forma, pretendo investigar os Diários de Leitura produzidos pelos alunos analisando a recepção estética que fazem das obras literárias, os protocolos de leitura utilizados pelos leitores e sua relação com a sociedade na qual estão inseridos.

METODOLOGIA E DESENVOLVIMENTO As pesquisas da área da Educação indicam que ler é essencial, é fundamental, é urgente e insubstituível. Contudo, há de se considerar os mais complexos modos de ler e seus suportes. Nos tempos atuais, vários pesquisadores têm-se dedicado ao estudo da Leitura e sua relação com a sociedade procurando analisar a intersecção entre educação e leitura procurando novos modos metodológicos para o ensino da Literatura e, por consequência, para a ampliação do número de leitores. Segundo Graça Paulino, E muitos perguntam: por que a leitura literária deveria ser tomada como uma competência socialmente relevante hoje? (...) lembremos que os textos informativos tendem a dominar uma situação social de premência e falta de tempo para acesso a dados que multiplicam com rapidez, tanto em contextos científicos quanto em contextos midiádicos. As motivações para a leitura literária teriam de ultrapassar esse contexto de urgência e ser encaradas em nível cultural mais amplo que o escolar, para que se relacionem à cidadania crítica e criativa, à vida social, ao cotidiano, tornando-se um letramento literário de fato, ao compor a vida cotidiana da maioria dos indivíduos. (PAULINO, 2008, p.65).

Ainda considerando a relevância da leitura e seus modos de ler, enquanto prática social, lemos em Chartier que: Com efeito, podemos definir como relevante à produção de textos as senhas explícitas e implícitas, que um autor inscreve em sua obra afim de produzir uma leitura correta dela, ou seja, aquela que estará de acordo com sua intenção. Essas instruções, dirigidas claramente ou impostas inconscientemente ao leitor, visam definir o que deve ser uma relação correta com o texto e impor seu sentido. Elas repousam em uma dupla estratégia de escrita: inscrever no texto as convenções, sociais ou literárias, que permitirão a sua sinalização, classificação e compreensão; empregar toda uma panóplia de técnicas, narrativas ou poéticas, que, como uma maquinaria, deverão produzir efeitos obrigatórios, garantindo a boa leitura. (CHARTIER, 1996, p.95-96).

Os protocolos de leitura impostos pelo autor e recebidos pelo leitor são mutáveis em detrimento dos contextos sócio-culturais vivenciados nas comunidades leitoras. Assim sendo, uma pedagogia com vistas à ampliação da leitura e, sobretudo, ao letramento literário pois uma vez que o leitor adquira novas experiências daquilo que ainda não viveu na vida real, mas participou via ficção, ele estará mais apto a refletir acerca de suas atividades concretas que formam sua práxis cotidiana. Nas palavras de Manguel: Dizem que nós, leitores de hoje, estamos ameaçados de extinção, mas ainda temos que aprender o que é a leitura. Nosso futuro - o futuro da história da nossa leitura - foi explorado por Santo Agostinho, que tentou distinguir entre o texto visto na mente e o texto falado em voz alta; por Dante, que questionou os limites do poder de interpretação do leitor; pela senhora Murasaki, que defendeu a especificidade de certas leituras; por Plínio, que analisou o desempenho da leitura e a relação entre o escritor que lê e o leitor que escreve; pelos escribas sumérios, que impregnaram o ato de ler com poder político; pelos primeiros fabricantes de livros, que acharam os métodos de leitura de rolos (como os métodos que usamos agora para ler em nossos computadores) limitadores e complicados demais, oferecendo-nos a possibilidade de folhear as páginas e escrevinhar nas margens. (MANGUEL, 1999, p.37).

É importante ressaltar que existe uma grande possibilidade de gêneros textuais que poderiam colaborar com os estudos acerca dos modos de ler, todavia, optamos por fazer a pesquisa a partir de

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dois gêneros: as narrativas ficcionais e o Diário. Os gêneros textuais compõe um amplo repertório de formas e enunciados que foram se modificando e (re)organizando-se ao longo das transformações sócio-culturais. Dessa forma, o trabalho com os Diários de Leitura revela não somente alguns percursos da recepção literária das narrativas ficcionais escolhidas pelos alunos, como também registra, enquanto gênero textual, o enriquecedor diálogo entre professor e aluno, pois como ressalta Machado: Assim, caracterizada a produção do diário de leituras como uma “conversa” com o autor do texto, ele se constitui como um texto de características dialógicas acentuadas, uma vez que não só institui um diálogo entre leitor e autor, mas também favorece o despertar do aluno para o dialogismo existente entre diferentes discursos verbais e não verbais que nos constituem, rompendo barreiras estanques entre diferentes domínios de conhecimento. Em síntese, ele leva os alunos a desenvolverem, por meio da escrita, diferentes operações de linguagem que leitores maduros naturalmente realizam, quando se encontram em situação de leitura. (MACHADO, 2005, p. 65).

A fim de melhor sistematizar o estudo acerca dos processos e dos protocolos de leitura realizados pelos sujeitos-leitores há a exigência de que todos os diários apresentem a mesma estrutura, seja nas leituras livres ou nas dirigidas (textos canônicos). Todos devem utilizar caderno escolar do tipo pequeno (para melhor manuseio), tendo a seguinte estrutura: 1ª folha do Diário: reprodução da Capa do Livro escolhido.

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2ª folha do Diário: Foto e breve comentários sobre o autor

3ª folha do Diário: Motivo da escolha do livro literário.

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A imagem a seguir mostra como funcionam os registros feitos pelos alunos em seus Diários de Leitura: A 4ª folha do Diário contém dados pessoais dos alunos e algumas curiosidades acerca de seus gostos cotidianos e seu convívio familiar.

CONCLUSÕES Apesar desse projeto existir na escola desde 2012, apenas a partir de 2013 que iniciou-se o arquivamento para futuro estudo dos mesmos. Sendo assim, temos, atualmente, 366 diários à disposição para a pesquisa. Destes, 246 são femininos e 120 são masculinos. Entre as primeiras análises podemos perceber que a linguagem presente nos Diários é atualizada e muito marcada por gírias e usos típicos da linguagem virtual utilizada pelos adolescentes em redes sociais, tais como #Partiuler, #Chateada #Feliz, ou mesmo o uso de desenhos do tipo emotions: tais como carinhas felizes, tristes ou corações. Cabe ressaltar que não são realizadas correções ortográficas ou morfo-sintáticas nos Diários dos alunos, uma vez que acreditamos que, por se tratar de um gênero mais íntimo, os discentes sentir-se-iam mais livres para registrar suas emoções se ficasse acordado entre as partes que não haveria censura quanto à linguagem utilizada por eles para registrarem seus protocolos de leitura. No que tange às escolhas temáticas e autorais, temos que as adolescentes têm uma preferência clara para os romancistas contemporâneos, tais como os estadunidenses John Green (41) e Nicholas Sparks (19). Tais reflexões apontam para os autores preferidos pela maioria das sujeitos-leitores (Green e Sparks), os quais têm como característica principal tratar de situações dramáticas que envolvem acidentes, doenças e até mesmo a morte dos protagonistas.

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Os leitores do sexo masculino demonstram preferência para as narrativas mitológicas de Rick Riordan (7) e George R.R. Martin (5). Tais escolhas por heróis mitológicos cujas narrativas baseiam-se em princípios maniqueístas. Já entre as leituras dirigidas, destacam-se os brasileiros Álvares de Azevedo (9), Joaquim Manuel de Macedo (6) e José de Alencar (5), demonstrando uma possível preocupação com o conteúdo curricular da prova do ENEM, uma vez que os autores citados são todos pertencentes ao cânone nacional. A pesquisa também revela o poder de influência dos adolescentes por seus pares, haja vista que entre os “motivos de escolha” dos alunos o mais recorrente é a indicação de amigos ou familiares, logo, podemos perceber que um círculo familiar e de amizades que também lê é muito importante para a manutenção de uma sociedade leitora e suas heranças culturais. Portanto, acreditamos que uma pesquisa utilizando os Diários de Leitura contribuirá para os estudos na área da Educação, da Leitura e do Letramento Literário na escola, uma vez que tal corpus traz registros dos protocolos de leitura tanto explícitos quanto os implícitos e oportuniza a análise dos modos de ler de um grupo de adolescentes representativos do jovem público leitor ainda em formação.

REFERÊNCIAS ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. Tradução Carmem Cacciacarro. São Paulo: Pulo do Gato, 2013. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 8ª edição. São Paulo: Brasiliense, 2012. CANDIDO, A. Vários Escritos. O Direito à Literatura. 3ª Edição. São Paulo: Duas Cidades, 1995. CASTRILLÓN. S. O direito de ler e de escrever. Tradução Marcos Bagno. São Paulo: Pulo do gato, 2011. CHARTIER, R.. A ordem dos livros. Tradução Mary Del Priori. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994. _____. (Org) Práticas da Leitura. 5ª Edição. São Paulo: Estação Liberdade, 2011. COSSON, R. Letramento Literário: teoria e prática. 1ª Edição. São Paulo: Contexto, 2007. De CERTEAU, Michel. A invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. JAUSS. Hans Robert. A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária. Tradução Sérgio Tellaroli. São Paulo, Ática, 1994. LAJOLO, Marisa. Do mundo da Leitura para a leitura do mundo. 3ª edição. São Paulo: Ática, 1997. MACHADO, Anna Raquel. Diários de Leituras: a construção de diferentes diálogos na sala de aula. Revista Eletrônica da USP, 2005. Disponível em acesso em outubro de 2014. MANGUEL. Alberto. Uma história da Leitura. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. REYES, Y. Ler e brincar, tecer e cantar. Tradução Rodrigo Petronio. São Paulo: Pulo do gato, 2012.

LITERATURA E TEATRO: PRÁTICAS CULTURAIS EM DIÁLOGO NO CONTEXTO ESCOLAR Karina Feltes Alves* (IFRS – campus Farroupilha) Cinara Fontana Triches** (IFRS – campus Farroupilha)

Este trabalho configura-se como o relato e a análise do Projeto Feira Literária, desenvolvido no Instituto Federal do Rio Grande do Sul, campus Farroupilha. O Projeto, em sua 4ª edição, proporciona um diálogo entre duas diferentes artes: a literatura e o teatro, as quais representam significativas fontes de informação, fruição, reflexão social, aprimoramento do imaginário e do senso crítico, contribuindo, assim, para a formação humana. O Feira Literária é desenvolvido com os alunos do 1º ano do Técnico em Informática Integrado ao Ensino Médio, nos componentes curriculares de Língua Portuguesa, Literatura e Filosofia. A método consitui-se de etapas bem definidas que correspondem à aplicação de um roteiro de leitura, com vistas ao aprofundamento da compreensão leitora, o estudo do gênero roteiro teatral, a transposição do texto narrativo em roteiro teatral, a criação de cenários e de figurinos, a participação dos alunos envolvidos em oficinas de teatro, e a apresentação da encenação no Sarau do campus, evento realizado ao final do ano letivo. É possível constatar que, a partir das atividades desenvolvidas, houve o aprofundamento da compreensão textual pelos alunos, o fortalecimento do processo de letramento literário, a percepção do texto literário como fonte de informação, fruição e humanização, bem como o desenvolvimento do senso crítico, da autonomia e do trabalho em equipe.

1. POR QUE DIALOGAR LITERATURA E TEATRO NA ESCOLA? Mais importante que trabalhar com literatura é estudar arte. Toda manifestação cultural possui o potencial para o desenvolvimento do pensamento artístico, da percepção estética, da sensibilidade, da imaginação e, principalmente, da capacidade de humanização do indivíduo, tonando-se, assim, elemento indispensável na escola básica. Conforme é destacado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), a Arte “é presença urgente na história da aprendizagem cultural dos jovens de nosso País, humanizando-se e ajudando a humanizar o mundo contemporâneo.” (BRASIL, 1997, p. 56). Além disso, de acordo com o mesmo documento, as manifestações artísticas são exemplos da diversidade cultural dos povos, possibilitando que as relações interpessoais perpassem o convívio social. Saber identificar, apreciar e analisar tais manifestações artísticas é o que se propõe o ensino de Arte nas escolas, conforme é possível verificar no excerto abaixo, transcrito dos PCNs: Apreciar produtos de arte, em suas várias linguagens, desenvolvendo tanto a fruição quanto a análise estética, conhecendo, analisando, refletindo e compreendendo critérios culturalmente construídos e embasados em conhecimentos afins, de caráter filosófico, histórico, sociológico, antropológico, psicológico, semiótico, científico e tecnológico, dentre outros. (BRASIL, 1997, p. 52)

Desse modo, o teatro, uma das mais antigas manifestações culturais, presente desde a Antiguidade Clássica, perpassando os períodos das descobertas e das catequeses, até os dias atuais, constitui-se de uma arte híbrida que envolve literartura e encenação e que não pode, de forma al Mestranda em Educação, pela Universidade de Caxias do Sul, docente do IFRS, campus Farroupilha, Brasil. E-mail: [email protected] ** Doutoranda em Letras, pela Universidade de Caxias do Sul, docente do IFRS, campus Farroupilha, Brasil. E-mail: [email protected] *

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guma, ser ignorada. O teatro representa a história do homem e da comunicação humana, e sua inserção no contexto escolar é fundamental para o aprofundamento do ser reflexivo e social, conforme destaca Olga Reverbel, importante estudiosa da arte teatral, no âmbito educacional: [...] o ensino de teatro é fundamental, pois, através dos jogos de imitação e criação, a criança é estimulada a descobrir gradualmente a si própria, ao outro e ao mundo que a rodeia. E ao longo do caminho das descobertas vai se desenvolvendo concomitantemente a aprendizagem da arte e das demais disciplinas. (REVERBEL, 1989, p. 25)

Com relação ao ensino da literatura na escola, é fundamental mencionar Candido (2004) cuja concepção constitui-se de inspiração para o desenvolvimento do projeto relatado neste trabalho. Para o estudioso, a Literatura faz parte do rol das necessidades básicas do ser humano. Ela, por meio de suas manifestações artísticas, é capaz de representar valores de uma sociedade, a complexidade da natureza humana, as contradições, oferecendo oportunidades de vivências que, sem ela, não seriam experienciadas. Tais experiências possibilitam a ampliação da percepção humana sobre si mesmo e sobre o outro, sobre o igual e o diferente, enriquecendo, assim, a visão sobre o mundo. Para Candido (2004, p.180), “negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.” Assim, o trabalho através do diálogo entre literatura clássica e teatro na escola tem um papel fundamental na formação humana. Afinal, ambos representam artes que contam histórias sobre a humanidade através das palavras e da sensibilidade artística. Artes que possibilitam colocar em prática os princípios da liberdade criadora, uma vez que o leitor, ao recriar o que lê, coloca sentidos os quais, talvez, não tenham sido pensados na escrita/encenação original. Nesse sentido, oportunizar a integração entre o teatro e a literatura permitindo que os alunos apreciem o texto literário como manifestação artística e desenvolvam sua imaginação e criatividade a partir da adaptação para uma diferente expressão de arte é o objetivo maior do Projeto Feira Literária, apresentado na próxima seção.

1.1. O PROJETO FEIRA LITERÁRIA: DE 2012 ATÉ A SUA 4ª EDIÇÃO O Feira Literária é um projeto constituído no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande Do Sul (IFRS) – Campus Farroupilha. Criado em 2012 e replicado anualmente, ele surge a partir da constatação de docentes e técnicos administrativos sobre o interesse dos alunos em participarem de atividades culturais no âmbito escolar. Seu objetivo é promover o incentivo à leitura, valorizando-a como fonte de informação e meio gerador de conhecimento, reflexão, questionamentos, desenvolvimento cognitivo e da formação humana. Além disso, busca fomentar o trabalho em equipe e desenvolver as habilidades orais e escritas dos participantes através da transposição do texto literário para roteiro teatral. O Projeto, em sua 4ª edição, é desenvolvido pelos alunos ingressantes do curso Técnico em Informática Integrado ao Ensino Médio, como uma atividade interdisciplinar, desenvolvida principalmente nas disciplinas de Literatura, Língua Portuguesa e Filosofia e conta com o auxílio de bolsistas, selecionados no início do ano letivo e que participam de forma ativa de todas as etapas do projeto. Também, ele promove maior contato e integração em relação à comunidade escolar, tanto entre os próprios alunos quanto entre estes e os demais servidores, famílias e comunidade externa. O projeto motiva o aluno ao contato com a literatura, que é abordada de diferentes formas ao longo de sua execução, buscando assim promover a descoberta ou o aprimoramento de expressões artísticas de cada discente. Dessa maneira, o Feira Literária procura atingir mesmo aos que relatam não terem afinidade com a leitura, uma vez que esta é trabalhada através da arte, desenvolvendo, além da criatividade, as potencialidades do leitor e sua atitude ativa em relação ao texto literário.

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Desde sua criação, as etapas e o desenvolvimento das atividades foram sendo aprimorados e tiveram a seguinte trajetória: em 2012, ano da estreia, os alunos foram convidados a escolher diferentes obras de seu interesse, que tivessem como fio condutor o tema mitos. No ano seguinte, a experiência foi aperfeiçoada, quando os alunos desenvolveram as atividades baseando-se na obra de George R. R. Martin, A Guerra dos Tronos, que trata de ética, corrupção, lealdade e busca incessante pelo poder. Em 2014, o projeto foi desenvolvido a partir do livro A canção de Tróia, de Colleen McCullough, uma releitura do clássico Ilíada, de Homero. Neste ano, a obra escolhida para análise e desenvolvimento do projeto é O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, a qual possibilita uma discussão a respeito de aspectos da moral e da degradação dos valores humanos, tais como a corrupção, a vaidade e os limites da busca pelo prazer em detrimento à dignidade. É importante destacar que, para aprofundar a compreensão leitora dos alunos acerca das obras lidas no decorrer do processo, há um protagonista que, apesar de atuar nos bastidores, possui um papel fundamental e imprescindível para a qualidade da performance de todos os envolvidos nessa peça, desde o primeiro até o último ato: o mediador em leitura! E é justamente sobre este personagem que será tratado a seguir.

2. PELOS BASTIDORES: O PAPEL DO MEDIADOR EM LEITURA Mais importante que ter contato com um produto cultural, como um texto literário, por exemplo, é ter acesso a ele, e este acesso é garantido através da intervenção de um mediador em leitura, o qual influencia e contribui no enriquecimento da experiência de leitura. No âmbito escolar, contexto que caracteriza o projeto destacado neste trabalho, quem assume (ou deve assumir) esse papel de mediador em leitura é o professor, o qual possui a importante tarefa de propiciar a seu aluno oportunidades para se constituir um leitor autônomo. Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio também atentam para a necessidade de motivar os alunos do Ensino Médio à leitura de obras literárias a partir de atividades que não se reduzam ao cumprimento de uma tarefa escolar, mas que os motivem a práticas de leitura para além da obrigação, conforme se percebe no trecho abaixo: levar o jovem à leitura de obras diferentes desse padrão [obras consagradas pela mídia e as que oferecem um padrão linguístico próximo da linguagem cotidiana] – sejam obras da tradição literária, sejam obras recentes, que tenham sido legitimadas como obras de conhecido valor estético -, capazes de propiciar uma fruição mais apurada, mediante a qual terá acesso a uma outra forma de conhecimento de si e do mundo. (BRASIL, 1997, p. 70)

Destaca-se aí, mais uma vez, o papel do professor, que deve ser o de mediador no processo de leitura do texto literário, instigando os alunos a realmente exercerem o papel de leitores ativos e participantes, desenvolvendo sua imaginação, criatividade, e, principalmente, seu senso crítico, preenchendo as lacunas encontradas no texto, criando e recriando seus próprios significados. De acordo com Alliende e Condemarín (2005), o prazer e o entusiasmo pela leitura são desenvolvidos quando os alunos participam de discussões sobre o texto lido (independente de gênero), por meio de círculos de leitura ou círculos de literatura. Tais discussões, segundo os autores: [...] não apenas facilitam a expressão oral dos alunos, como também desenvolvem seus níveis superiores de pensamento na medida em que os significados são construídos interativamente. Esses níveis são melhor alcançados quando o professor ou outra pessoa com maior domínio sobre o tema proporciona aos alunos um apoio que lhes permita obter um desempenho superior ao que teriam sem essa mediação. (ALLIENDE; CONDEMARÍN, 2005, p. 184)

De acordo com Cosson (2009), o verdadeiro leitor de literatura deve saber posicionar-se diante da obra lida, ou seja, precisa apresentar uma postura crítica e, além disso, demonstra necessidade

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de ler o texto literário. Dessa forma, o leitor transforma-se em um leitor letrado, assumindo a prática da leitura como atividade constitutiva de sua rotina, como uma atividade de prazer que será feita dentro ou fora do espaço e tempo escolar. O estudioso também confere ao mediador em leitura o papel de grande responsabilidade nesse processo de formação de leitores ativos, críticos, que sabem o que lêem e para que lêem. Para Cosson: é importante que o professor atue como um moderador e não catalisador da discussão, evitando dar a primeira e última palavra sobre a obra. Seu papel é coordenar a discussão e ajudar os alunos a sintetizar seus resultados. (COSSON, 2009, p. 115)

Nesse contexto, o processo de desenvolvimento da prática leitora no Projeto Feira Literária ocorre por meio de ações e etapas específicas, mencionada na próxima seção. Todas elas procuram propiciar situações de leitura em que o aluno entre em contato, não apenas com o texto literário, mas com suas peculiaridades estéticas, linguísticas, artísticas, aprendendo a dialogar com o texto e a valorizar os intertextos, produzindo sentidos e os ressignificando.

2.1. O DIÁLOGO ENTRE LITERATURA E TEATRO E SEUS REFLEXOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A primeira etapa do Projeto Feira Literária toma como base a fundamentação teória de Cosson (2009) no que diz respeito à leitura de romance literário. Ele propõe a aplicação de uma sequência, denominada por ele de sequência básica, consituída por quatro passos, a saber: motivação, introdução, leitura e interpretação. A motivação é o momento em que o professor busca entusiasmar seus alunos para a leitura da obra. A introdução objetiva apresentar informações sobre a obra que será lida pelos alunos, buscando identificar os conhecimentos prévios dos alunos. A leitura prevê algumas paradas, denominadas por Cosson de intervalos, nos quais o mediador apresenta outros textos que possuem uma relação temática com o texto original, procurando, a partir da intertextualidade, ampliar a compreensão leitora do aluno-leitor. A interpretação, por sua vez, parte do “entretecimento do sentido do texto, dentro de um diálogo que envolve o autor, leitor e comunidade.” (COSSON, 2009, p. 64). De acordo com o autor, esse é o momento em que o aluno se encontra com o livro e, por mais que esse encontro precise ser respeitado, precisa de liberdade e individualidade para que se efetive plenamente. É a compreensão da obra feita pelo aluno, e não o seu julgamento! Após essa primeira etapa de leitura e compreensão da obra, parte-se para a segunda etapa: o estudo do gênero roteiro teatral e a transposição do texto narrativo em roteiro teatral. Este é um momento que requer bastante atenção por parte do professor mediador uma vez que, geralmente, os alunos não tiveram uma experiencia anterior de produção escrita deste gênero de texto. Assim, é importante explicar suas características, identificar e caracterizar os elementos que o constituem, bem como apresentar e propor a leitura de diferentes roteiros teatrais. Para a produção escrita do roteiro, a turma define quais serão os temas a serem desenvolvidos em cada ato da peça e, em seguida, os alunos são divididos em grupos para a elaboração do texto escrito. Tem-se então a releitura da obra analisada, transformada de texto narrativo em texto teatral. Paralelamente, são definidos os personagens constitutivos do roteiro, a descrição dos cenários e dos figurinos para a posterior confecção dos mesmos. Além disso, são oferecidas oficinas teatrais com o apoio de professores de teatro e dos alunos bolsistas do Projeto, de forma a desenvolver algumas técnicas de atuação cênica, desinibição, respiração, vocalização e articulação da fala. Com o roteiro pronto e os personagens definidos, iniciam os ensaios e a confecção dos cenários e figurinos para a apresentação no Sarau do campus, evento que ocorre ao final do ano letivo. As experiências passadas e a em andamento refletem nos alunos e no espaço escolar (e além dele) algumas das consequências desse diálogo proposto através do Projeto Feira Literária, entre

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as artes Literatura e Teatro. Percebe-se que há um aprofundamento da compreensão textual pelos alunos; um fortalecimento do processo de letramento literário; a percepção do texto literário como fonte de informação, fruição, libertação e humanização; a socialização das diferentes percepções e posicionamento dos alunos; e o desenvolvimento do senso crítico, da autonomia e do trabalho em equipe. Além disso, nota-se uma maior integração não somente entre os discentes, mas também entre as turmas, servidores e comunidade em geral, que demonstram grande acolhimento do projeto desenvolvido e destacam a transformação do ambiente escolar, agregando-lhe mais vida e revelando um viés extremamente importante para a educação: a preocupação com a formação de cidadãos a partir de diferentes manifestações culturais. Certamente, os resultados percebidos não representam a plenitude do letramento literário pelos alunos envolvidos no Feira Literária, mas é possível que eles apontem para a prática relatada neste trabalho como uma possibilidade de fazer do letramento literário uma atividade significativa, fortalecendo e ampliando o estímulo à leitura, propondo um espaço para que os alunos identifiquem problemas, proponham soluções e atuem como verdadeiros protagonistas.

REFERÊNCIAS ALLIENDE, Felipe; CONDEMARÍN, Mabel. A leitura: teoria, avaliação e desenvolvimento. Trad. Ernani Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2005. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: arte. Secretaria de Educação. Brasília: MEC/SEF, 1997. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Secretaria de Educação. Brasília: MEC/SEF, 1997. CANDIDO, A. O direito à literatura. In: _____. Vários escritos. São Paulo: Duas cidades, 2004. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2009. REVERBEL, Olga. Um caminho do Teatro na Escola. Rio de Janeiro: Scipione, 1989.

GÊNEROS TEXTUAIS: IMPORTÂNCIA PARA O TRABALHO LINGUÍSTICO EFICAZ Laercio Fernandes dos Santos* (UPF) Cássio Borges** (UPF) Tamires Arend*** (UPF)

1. INTRODUÇÃO Este estudo resulta da aplicação de uma sequência pedagógica aplicada pelo grupo do PIBID/ CAPES/UPF na Escola Estadual de Educação Básica Nicolau de Araújo Vergueiro, em específico numa das turmas do primeiro ano do Ensino Médio Normal, localizada no centro de Passo Fundo – RS, uma turma pequena, composta de 35 alunos. Essa prática pedagógica vem trazer uma nova e elogiável perspectiva quando se fala em gêneros textuais, apresentando possibilidades reais confrontando com as tendências ainda apresentadas nos livros didáticos. Além do que traz um aspecto inovador acreditando que o professor de língua, não só deva trabalhar viés unicamente linguístico, mas pode aproveitar para um trabalho de abertura da criticidade, encarando os desafios sociais. Sabe-se que no país exige-se o domínio da forma gramatical, com interpretação de textos, em vestibulares, concursos e ficha de emprego. Sendo assim, torna-se um objetivo, na esfera escolar de tamanha importância, principalmente para os professores se preocuparem com isto, proporcionando vários tipos de exercícios e outras técnicas de compreensão textual, para que o aluno saia capacitado de seu ensino aprendizagem, e motivado, para que possa enfrentar qualquer desafio, diante de quaisquer circunstâncias, no futuro. Juntando a isso, vem a parte da reflexão crítica aproveitando diversos e diferentes gêneros textuais. Nesse sentido, o professor de língua tem um papel muito importante. Sabe-se, também, que a leitura e interpretação de diferentes textos é um dos principais pontos a serem desenvolvidos no processo de ensino-aprendizagem dos educandos, pois esse é que faz com que o educando faça com ele leia e compreenda o texto sobre o tema proposto e a partir de seus conhecimentos interaja com o texto construindo um significado de palavras. Para que seja satisfatória a aplicação de textos em sala de aula, é importante que o profissional da educação desencadeie atividades de variados textos, fazendo reflexões de como é importante a leitura nos ambientes escolares, interpretando de melhor maneira formando cidadãos capacitados. Portanto, nesse trabalho todo foi o que motivou e conduziu a prática através dos gêneros textuais. Assim, tem-se a certeza de que o educando que recebe tais abordagens numa prática linguística sairá com uma bagagem muito mais ampliada além da sala de aula.

SANTOS, Laércio Fernandes dos. Professor Supervisor PIBID/CAPES/UPF. Professor de Língua Portuguesa e Literatura da Escola EENAV, graduado em Letras/UPF, Especialização em Pedagogia Social (UPF), Especialização em EAD: Gestão e Tutoria (UNIASSELVI), Especialização em Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura (UNIASSELVI) e Especialização em Docência no Ensino Superior (UNIASSELVI). ** BORGES, Cássio. Bolsista PIBID/CAPES/UPF. Acadêmico de Letras UPF. *** AREND, Tamires. Bolsista PIBID/CAPES/UPF. Acadêmica de Letras UPF. *

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2. A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO COM OS GÊNEROS TEXTUAIS Embora se encontrem nas escolas métodos tradicionais de ensino da língua, quando se fala a respeito do trabalho com os gêneros textuais, elas se ofuscam ao analisar mais minuciosamente as práticas pedagógicas e perceber que muitas coisas já mudaram. Pois, muitos professores de língua já trazem para o ensino a reflexão de muitos gêneros que permeiam a sociedade. Assim, a língua torna-se viva, porque atividades que usam os gêneros tornam-se mais eficazes e com sentido por parte do educador e dos educandos. Com isso, o conhecimento dos gêneros textuais deve aparecer no lugar de destaque, desse modo, os estudantes ampliarão suas capacidades discursivas. Não apenas ficando no âmbito da metalíngua. Isso tudo, vale a pena quando se pensa que o trabalho da sala de aula amplia os horizontes para uma leitura mais crítica dos textos, tanto literários, como os que aparecem nas diversas modalidades comunicativas sociais. Dessa forma, um aspecto da unidade linguística, que vale ser ressaltado, é o processo da escrita. Existem grandes autores: romancistas, contistas, cronistas. Que não são formados no curso de Letras ou que se quer cursaram universidade. Os textos são criados a partir de uma caminhada de leitura e de consultas as gramáticas. É o que afirma Evanildo Bechara. A leitura de muitos escritores revela ... constante preocupação não só com a língua exemplar, mas ainda com certas incursões no domínio técnico da investigação linguística, qual seja, a preocupação com o uso do termo próprio, a exatidão semântica, a construção sintática ou a estrutura morfológica, sem esquecer o complexo domínio da origem da palavra, dos meandros da etimologia. (BECHARA, Evanildo 2010)

Observando o discurso do pensador linguístico, pode-se dizer que o professor de língua deve ser o mediador da leitura considerando-a como um processo que antecipa, e mantém relação intrínseca com a escrita. Por isso, o relevante trabalho em sala de aula com diversos gêneros textuais. Lembrando, que esses trazem uso real e efetivo da manifestação da língua. Ainda que se perceba que os livros didáticos tenham mudado no que tange o assunto em questão, eles ainda precisam abordar mais o exercício da língua de fato. Assim, tomando como base de análise de alguns livros didáticos para o Ensino Médio, faz-se algumas considerações a respeito do trabalho com os gêneros textuais. Primeiramente, analisando MAIA, 2001, observa-se que em nenhum momento aparece separadamente, ou em capítulo, o trabalho de classificação ou de identificação dos Gêneros Textuais, porém em cada página aparece um gênero textual. Dessa forma, permite ao educador e ao educando a identificação das características semelhantes ou discordantes dos textos. Percebe-se que Maia, (2001) deixa transparecer a importância de trazer ao educando a tipologia textual dentro do contexto gramatical. O que mais chama atenção é que há uma variação textual muito rica que não fica apenas no foco literário. Inclusive o conteúdo da literatura vem mesclado com a produção textual e o ensino da gramática. Realmente, esse autor preconiza o estabelecido nos PCNs. Em segundo, detendo-se à obra de SARMENTO, Leila Lauar; TUFANO, Douglas. Português: volume único – Ensino Médio. São Paulo: Moderna, 2004 percebe-se que os autores não conseguiram estabelecer uma coerência entre o que se prescreve nos PCNs, porque traz poucos textos para um trabalho integrado com o ensino da gramática e dos gêneros textuais. Nesse âmbito, há um afastamento entre gramática e gêneros textuais, e, ainda, a literatura parece não fazer parte do ensino da língua. Mas, o mais grave é observar que no ensino da gramática não houve ligação alguma com o texto e muito menos no ensino da literatura, que poderia fazer uma relação com os textos literários com gêneros atualizados. Já em ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernardete M.;PONTARA, Marcela. Português: contexto, interlocução e sentido – volume 1 e 2 – Ensino Médio, traz a literatura separada do estudo da língua, porém há uma grande diversidade de gêneros textuais que possibilita ao

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educando a observação das diversas características que compõe as estruturas do texto. O que vale ressaltar é quando as autoras trabalham o gênero literário, logo trazem um gênero da atualidade para facilitar a diferenciação, ou até mesmo possibilitar ao educando um cercamento ao ensino da língua. A respeito do estudo da linguagem Saussure (1969) apud Reiter, (2006), diz: “a linguagem é composta de duas partes: a língua, essencialmente social porque é convencionada por determinada comunidade linguística; e a Fala, que é secundária e individual, ou seja, é veículo de transmissão da Língua...”. Diante da exposição deste sábio estudioso, percebe-se que a língua só é realizável através da inter-relação social, caso contrário, é só um sistema de signos inútil. Por isso, a escola frente a essa relação não pode se furtar de oportunizar o contato com os diversos gêneros textuais, mesmo o livro didático utilizado não trazendo. A escola precisa trazer os diversos gêneros para que o educando não fique com língua presa, nem apenas veja uma linha de linguagem. Até porque, produzir linguagem significa produzir discursos, e quando construídos, provocam emoções, e estas aparecem linguisticamente por meio de textos sabiamente produzidos pelos próprios alunos, a partir de exemplos das diferenças características textuais. Para teorizar este trabalho se faz referência ao grande analista da linguagem humana: Chomsky; A Competência linguística é apropriação do conhecimento do sistema linguístico do falante que lhe permite produzir um conjunto de sentenças de sua língua; é um conjunto de regras que o falante construiu em sua mente pela aplicação de sua capacidade inata para aquisição da linguagem aos dados linguísticos que ouviu durante a infância. O desempenho corresponde ao comportamento linguístico, que resulta não somente da competência linguística do falante, mas também de fatores não linguísticos de ordem variada, como: convenções sociais, crenças, atitudes do interlocutor etc., de um lado; e, de outro, o funcionamento dos mecanismos psicológicos e fisiológicos envolvidos na produção dos enunciados. Competência é a capacidade de se comunicar por meio de sistemas de sinais vocais (línguas); desempenho é comportamento linguístico, os efetivos atos da fala, as utilizações circunstanciadas das virtualidades desses sistemas. (CHOMSKY, apud, REITER, 2007, p10).

Percebe-se, diante do exposto, que de fato, se efetiva a linguagem para a socialização ampla na escola, visto como treino primordial para a construção internalizada. Nesta amplitude libertária da linguagem, rompem-se paradigmas, demonstrando a possibilidade de um novo método que nos distancia da pura gramática e do pensamento restrito de que ensinar resume-se numa dimensão limitada. Portanto, no método renovador que surge com o passar das atividades desenvolvidas surge um ensino exemplar, eficaz que derruba teorias conservadoras, dando espaço para renascer de uma nova amostragem da beleza, da emoção, de interesse e valor. Isso tudo com o trabalho da língua no uso real e esse uso se efetiva na prática social linguística, ou seja, nos diversos e infinitos gêneros textuais.

3. TRABALHANDO COM OS GÊNEROS TEXTUAIS DE FORMA EFETIVA Quando se trabalha com a língua em movimento, analisando as possibilidades reais que o idioma acontece o educando sente-se atraído para cada vez mais estudar os efeitos da comunicação social e da linguagem. Isso se pode observar com a aplicação de uma sequência didática aplicada no grupo do PIBID/CAPES/UPF, em que os estudantes interagiram o tempo todo e interessaram-se para descobrir e refletir o quão é interessante o efeito da língua em movimento. Vale ressaltar, que os educandos conseguem entender que o gênero tem suas próprias características e que abarca os tipos de textos que temos de forma finita, ou seja, o narrativo, o dissertativo, o descritivo e injuntivo.

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Com isso, os gêneros textuais trazem grandes elementos culturais que permeiam a sociedade em diversos tempos por que representam a comunicação dos falantes nativos e não nativos. Assim, esses elementos culturais não apenas manifestam a língua como servem de subsídio da escrita. Porque, essa modalidade materializa a funcionalidade linguística, como bem salienta Marcuschi (2008) apud Tafner, (2011) p.120:Usamos a expressão gênero textual como uma noção propositalmente vaga para refletir os textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que apresentam características sociocomunicativas. Observa-se acima uma fala enfática do escritor denotando a eficácia de uma aula pautada nos gêneros textuais e outra fálica que prioriza apenas os tipos textuais. Além do que, com diversas manifestações da língua permite-se o trabalho considerado das capitais culturais que o próprio aluno já traz e vivencia, fazendo com que nas primeiras aulas, cada aluno consiga criar uma coerência significativa e mais completa possível das unidades linguísticas que foram objeto de estudo. Nesta mesma linha, observa-se o que dizem os (PARÂMETROS CURRICULARES DO RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 22). “Para que o conhecimento constitua competência e seja mobilizado na compreensão de uma situação ou solução de um problema, é preciso que sua aprendizagem esteja referida a fatos da vida.” Acredita-se que para o ser humano construir conhecimento, ele tem de se sentir parte do que se propõe, caso contrário, será isolado e o conhecimento não ocorrerá, apenas se cumprirá tarefa. Nesse sentido, através dos diversos gêneros textuais é possível despertar o gosto do ensino pela língua, ela tornar-se-á interessante. Com isso, percebe-se que já foi o tempo que a escola tinha de se fechar para um mundo mecânico, em que se trabalhava apenas com textos literários, não tirando o mérito desses, porém com o avanço frenético das tecnologias as possibilidades de comunicação e uso da língua se expandem e isso faz com que a escola aproveite isso como ferramenta de construção efetiva da reflexão do seu próprio idioma. Pois, o dia a dia está minado de novos textos. Nesse obstante, a proposta aqui é apresentar uma reflexão do quanto é possível trabalhar de forma efetiva com os gêneros textuais na sala de aula, ou seja, surte um efeito considerável, pois os educandos tornam-se mais reflexivos e conseguem entender muito melhor como a língua e a linguagem se dão. No trabalho escolar a variedade textual possibilita vieses ampliados, pode-se mencionar um caminho a partir do gênero crônica, claro sem dizer aos educandos que gênero aquele texto pertence. Deve-se questionar e indagar os educandos para que cheguem ao entendimento desejado. Assim, relacionar todos os elementos possíveis daquele gênero, como por exemplo, o título, a pontuação, a organização do textual e da linguagem utilizada, quem é o autor, qual é o seu perfil de escrita, para quem esse texto foi destinado, o que o autor defende e de que ponto de vista ele escreve. Todas essas perguntas devem ser analisadas para ter uma efetiva extrapolação do texto. Nesse âmbito, ampara-se em BRASIL, 1998a, p.49: A escola deverá organizar um conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da linguagem, levando em conta a situação de produção social e material do texto (lugar social do locutor em relação ao(s) destinatário(s); destinatários(s) em seu lugar social; finalidade ou intenção do autor; tempo e lugar material da produção e do suporte) e selecionar, a partir disso, os gêneros adequados para a produção do texto, operando sobre as dimensões pragmáticas, semântica e gramatical.

Além disso, é importante que se chegue na tessitura gramatical aportada pelo material de estudo. Dessa forma, foi o que se fez na aplicação desta sequência didática retirar algumas palavras e ajudar os educandos a ampliar seus horizontes gramaticais, pois o ensino da gramática normativa deve ceder espaço para o da gramática reflexiva. Exemplo: Entre “menina bonita” e “menina linda” há diferença no sentido. Essas expressões têm o mesmo significado? São semelhantes? São sinônimos? Questionar os estudantes a esse respeito e fazê-los perceber que uma palavra é o que a outra

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não é, as palavras podem ser parecidas, mas elas não são iguais, elas podem ser substituídas, mas não terão o mesmo efeito de sentido. Para exemplificar melhor o que foi dito acima, foi dado um exercício cuja tarefa era substituir palavras por outra, uma estudante refletiu sobre a explicação dos significados e considerou muito importante pesquisar o sentido de uma palavra antes de realizar o exercício de substituição. Ela errou a questão porque não entendeu o sentido da palavra “tendência” e usou como sinônimo a palavra “certeza”. E comentou com os colegas o que havia aprendido. Nessa sequência didática, analisa-se os aspectos morfológicos da língua, com palavras que foram retiradas da crônica: Um Questão de Tempo da escritora Martha Medeiros, e juntos os alunos separam morfologicamente as palavras, e a partir das explicações, criam os seus próprios conceitos. Também, faz uma reflexão sobre a palavra “gay” que se encontra dentro do texto, que é uma palavra estrangeira e que se colocar uma palavra portuguesa usar-se-ia “homossexual” ou “homo afetivo”. Mas, esse trabalho da gramática, do jeito que foi feito, só é possível quando se trabalha com a língua real e essa aparece nos gêneros textuais que são construções da língua em uso. Dessa forma, a escola não poderá permitir que seu educando saia da educação básica, sem que veja a diversidade textual que existe. O tempo de trazer apenas um estilo textual já passou. Ao se trabalhar com a gama de gêneros textuais a aula que poderia ser monótona e sem interesse torna-se viva e atrativa. Porque será que existe aula mais interessante que trabalhar com aquilo que o jovem vivencia diariamente?

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, o trabalho com os gêneros textuais demostra uma nova postura linguística por parte do professor de língua. Por ser nova, a construção dessa forma de trabalho ocorrerá gradativamente, modificando os conceitos e tendências do ensino da língua. Afirma-se que o livro didático serve como aporte ao trabalho pedagógico não pode ser o primeiro, nem o último, e muito menos, o mais essencial recurso do professor. Sendo assim, a criticidade que se aprende na escola serve para avaliar e saber como reagir diante de situações cotidianas. Com isso, esse cidadão consegue sair com mais facilidade de obstáculos que desafiam a sua inteligência e sua integridade. O aprimoramento linguístico não pauta-se apenas na compreensão e na leitura, mas extrapola para o processo de construção textual, ou seja, a escrita. Nesse contexto, a sequência já citada, prova que há possibilidade de trabalhar a gramática que emerge do texto e que faz o aluno refletir. Transforma as salas de aula em um lugar em que o estudante experencia, não a língua morta, mas a que aflora do resultado dos processos sociocumicativos da vida real. Isso faz com que o aprendente compreenda a coesão e a coerência existente nos diversos gêneros, incluindo os das outras disciplinas. Por isso, na escola é sempre importante priorizar por práticas significativas do uso da linguagem adequada a cada situação comunicativa. Para efetivação dos aspectos apontados até aqui, faz-se necessário que o educador nunca interrompa sua caminhada pesquisadora, de estudos teóricos e de ampliação dos conhecimentos metodológicos da construção da ressignificação da usa prática pedagógica.

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REFERÊNCIAS ABAURRE, Maria Luiza M.; ABAURRE, Maria Bernardete M.;PONTARA, Marcela. Português: contexto, interlocução e sentido – Ensino Médio. São Paulo: Moderna, 2008. BECHARA, Evanildo. Estudos da Língua Portuguesa: textos de apoio. Brasília: FUNAG, 2010. BRASIL. Secretária de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: MEC, 1998. MAIA, João Domingues. Português: Ensino Médio. São Paulo: Ática: 2001. RIO GRANDE DO SUL. Parâmetros Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul: Linguagens. Porto Alegre: SE/DP,2009. REITER, Aírton Júlio. Fundamentos de Linguística. Indaial:Ed. ASSELVI,2006. SARMENTO, Leila Lauar; TUFANO, Douglas. Português: Ensino Médio. São Paulo: Moderna, 2004. TAFNER, Elizabethe Penzlien. Caderno de Estudos: língua portuguesa. Indaial: Grupo Uniasselvi, 2011.

BIBLIOTECAS COMUNITÁRIAS: UM ESTUDO ETNOGRÁFICO SOBRE AS PRÁTICAS DE LEITURA, SEUS SIGNIFICADOS E EFEITOS NAS INTERAÇÕES CULTURAIS DE JOVENS EM COMUNIDADES URBANAS PERIFÉRICAS NO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE/RS Luis Paulo Arena Alves* (UniRitter) Rejane Pivetta de Oliveira** (UniRitter)

1. A PRÁTICA DA LEITURA COMO PROPOSTA DE INTERAÇÃO CULTURAL Como ponto de partida para esta reflexão torna-se importante situar e demarcar o contexto social que estamos vivenciando. Dentre as diversas questões sociais que continuam a desafiar as políticas de desenvolvimento no Brasil, seguramente a violência é uma das mais preocupantes na atualidade, pois abrange um número significativo de jovens1 que estão inseridos em realidades cada vez mais complexas e com problemas sociais estruturais. Neste sentido a questão central desta proposta de de estudo construiu-se a partir da necessidade de investigar as práticas culturais de leitura desenvolvidas pelas bibliotecas comunitárias em territórios urbanos periféricos no município de Porto Alegre/RS, com altos índices de violência entre jovens. Trata-se de compreender, por um lado, os propósitos e estratégias que orientam a implementação de projetos culturais relacionados à promoção da leitura nessas comunidades e, por outro, os modos como tais atividades interferem nas interações e construções identitárias do público jovem nesses espaços, sobretudo no que concerne às representações sobre a violência. Nesta linha de raciocínio é importante fazer aproximações da problemática da violência com a temática proposta, e, para isso, tomamos como base o Plano Nacional do Livro e da Leitura – PNLL (Edição atualizada e revisada de 2014), que coloca a leitura e a escrita como práticas essencialmente sociais e culturais de expressão da multiplicidade de visões de mundo com duas faces diferentes, mas inseparáveis, de um mesmo fenômeno. A leitura e a escrita constituem-se também como fatores de fortalecimento da cidadania, pois é fundamental para a construção de sociedades democráticas e como condição necessária para que cada indivíduo possa exercer seus direitos fundamentais, viver uma vida digna e contribuir na construção de um mundo mais igualitário. Caracterizam-se também pela sua diversidade cultural, pois são instrumentos decisivos para que as pessoas possam desen-

Possui graduação em Serviço Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, mestrado em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente é doutorando em Letras pelo Programa de Pós Graduação no Centro Universitário Ritter dos Reis UniRitter/Universidade de Caxias do Sul – UCS. Endereço Eletrônico: [email protected] (Orientando) ** Possui graduação em Letras pela Univale, Cachoeira do Sul (1986), mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-doutorado (CAPES) na Universidade de Santiago de Compostela. Atualmente é professora titular do Centro Universitário Ritter dos Reis, onde desempenha atividades de ensino, pesquisa e gestão. Exerce as funções de coordenadora da Editora UniRitter e coordenadora geral do Doutorado em Letras (UCS/UniRitter). Endereço Eletrônico: [email protected]. br. (Orientadora) 1 O Mapa da Violência (2015)“Mortes matadas por arma de fogo”, traz uma estimativa preocupante, referente à análise realizada no período compreendido entre 1980, (ano tomado como ponto de partida do estudo), até 2012 (último dado disponível), onde é possível identificar que no Brasil (segundo os registros do Ministério da Saúde – Sistema - SIM), morreram um total de 880.386 cidadãos vítimas de armas de fogo. A saber, que deste total 497.570 mil tinham entre 15 e 29 anos de idade, cuja morte representa 56,5% do total de mortes por armas de fogo nesse período de 32 anos. Ao fazer um comparativo entre os dados, a AIDS foi responsável em 2010 por 1.618 óbitos entre os jovens (o que não é um dado baixo, grifo nosso); já as armas de fogo mataram 22.882 jovens, representando 14 vezes mais (um dado alarmante, grifo nosso). Este dado de 22.882 (mortes de jovens por arma de fogo) representa que no Brasil, a cada dia do ano 59 jovens são mortos por arma de fogo. Maiores informações em http://www.mapadaviolencia.org.br/ . *

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volver de maneira plena seu potencial humano e favorecem todo tipo de intercâmbio cultural, como requisito indispensável para alcançar níveis educativos mais altos. Além destes fatores, a UNESCO2, ao estabelecer suas diretrizes para as políticas mundiais, dá um destaque especial à leitura, ao livro, à literatura e às bibliotecas, estando estas essencialmente relacionadas à questão geral da “competência em informação” que se encontra no cerne do aprendizado ao longo da vida, constituindo direito humano básico e necessário para promover o desenvolvimento, a prosperidade, a liberdade no âmbito individual e criar condições plenas de inclusão social (coletiva e integrada). A leitura insere-se neste contexto como uma das formas de interpretar um conjunto de informações, de estimular a imaginação, de proporcionar a descoberta de diferentes hábitos e culturas, como perspectiva para ampliar o conhecimento. Ela possibilita aos sujeitos o entendimento de assuntos distintos e em diferentes realidades, e, através dela, temos a possibilidade de ter contato com várias culturas diferentes, a fim de compreendemos melhor o outro. Sobre este assunto, Michèle Petit (2013) afirma que a leitura “(...) pode ajudar as pessoas a se construírem, a se descobrirem, a se tornar um pouco mais autoras de suas vidas, sujeitos de seus destinos, mesmo quando se encontram em contextos sociais desfavorecidos” (PETIT, 2013, p.31). Castrillón (2011) acrescenta que a leitura é um instrumento para democratização da cultura. Nesse movimento multidimensional de análise, pode-se dizer que ao longo dos últimos anos,diferentes ações vêm sendo desenvolvidas no Brasil pelo Governo Federal via Ministério da Cultura3, com o objetivo de apoiar um conjunto de ações que visam fortalecer o acesso universal à informação. Citamos aqui, dentre estas, os Pontos de Leitura e as Bibliotecas Comunitárias, iniciativas transversais da sociedade civil, que atuam para a efetivação do propósito de democratização do acesso à leitura no país, especialmente as atividades desenvolvidas em territórios periféricos pelas Organizações Não Governamentais – ONGs4, no âmbito da educação não formal. Cabe ressaltar que em nosso entendimento a concepção de educação não formal toma por referência as formulações de Gohn (2006) sobre as atividades desenvolvidas em espaços não formais, as quais, segundo a autora, designam um processo com várias dimensões, como, por exemplo, a aprendizagem política dos direitos dos indivíduos enquanto cidadãos; a capacitação dos indivíduos para o trabalho por meio da aprendizagem de habilidades e/ou desenvolvimento de potencialidades; a aprendizagem e exercício de práticas que capacitam os indivíduos a se organizarem com objetivos comunitários, voltadas para a solução de problemas coletivos cotidianos; o fortalecimento do espaço e do papel da cultura como processo sociopolítico e pedagógico de formação para a cidadania. Portanto, a educação não formal proporciona uma aprendizagem ampla de conteúdos diversos que possibilita aos indivíduos fazerem uma leitura do mundo por meio da compreensão daquilo que se passa ao seu redor e “Ela designa um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas, assim como uma multiplicidade de projetos e programas sociais” (GOHN, 2015, p.16). Assim, é possível compreender que a aprendizagem gerada nos processos de educação não formal busca potencializar o trabalho na área da literatura, da leitura e das bibliotecas, em especial as comunitárias, que se caracterizam como espaços de ação cultural. Diante destas reflexões e no esforço de contextualizá-las, torna-se importante a indicação sintética dos pressupostos teóricos adotados nesta investigação. Cabe dizer que fundamentalmente o problema de pesquisa se desdobra em duas dimensões analíticas assim compreendidas: Dimensão Política: trata-se de analisar e compreender quais são os princípios e diretrizes que orientam as políticas públicas através dos programas e projetos do governo na área cultural e Sobre esse assunto para maiores informações consultar em http://www.unesco.org . Sobre esse assunto para maiores informações consultar em http://www.cultura.gov.br/. 4 Sobre este assunto, para maiores informações consultar também o site da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais – ABONG em www.abong.org.br . 2 3

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de incentivo à leitura. Neste viés de análise, algumas questões são mobilizadoras da nossa reflexão: as ações e práticas culturais desenvolvidas nos territórios periféricos via bibliotecas comunitárias, contam com o engajamento da comunidade? Em que termos o trabalho realizado é percebido como recurso para promover o diálogo cultural e fazer avançar a concepção de direitos humanos, cidadania, democracia e emancipação social dos jovens? As atividades desenvolvidas promovem o estabelecimento de laços sociais que confluem para uma cultura política? Quais são os processos e metodologias utilizados? Acontece articulação destas atividades promovidas nas bibliotecas comunitárias com as ações desenvolvidas via escola como educação formal? Como isso ocorre? Que relações podem ser estabelecidas entre leitura, violência e juventude? No tocante à dimensão política da leitura, importa considerar os sentidos dados à própria prática de ler, evitando concepções universalistas, que partem do pressuposto da necessidade de leitura, sem levar em conta as condições sociais que produzem tal necessidade. Assim, é preciso questionar sobre a “necessidade” de instalação de bibliotecas em espaços periféricos, pois a reivindicação da leitura como um direito, geralmente em favor das populações que ocupam o lugar de menor prestígio social e cultural, assumida por intelectuais, não é desprovida de consequências sobre as políticas de leitura. Trazer à tona tais pressupostos, não raro invisíveis e inconscientes, como demonstram estudos de Bourdieu (1989) sobre o “poder simbólico”, serve ao menos como fator de vigilância contra a tendência à inculcação de padrões culturais dominantes, contrariando exatamente os propósitos pretensamente emancipatórios em nome dos quais, via de regra, se justificam as ações de promoção da leitura. Jacques Rancière (1996) lembra que o caráter político da escrita tanto mais se manifesta nos efeitos que, pela sua prática, faz incidir sobre o tecido das relações sociais. Ou seja, a leitura, se concebida numa dimensão estritamente intelectual, de aquisição de um código secreto, acessível apenas mediante o desenvolvimento de habilidades cognitivas, desconectadas das práticas, será sempre uma atividade vinculada ao cultivo do espírito, via de regra dissociada da experiência de trabalhadores braçais. Nessa medida, importa indagar em que termos as práticas de leitura contribuem para a separação entre o mundo do discurso (dos textos) e as condições da realidade, reforçando a divisão social entre o mundo do trabalho e a linguagem (RANCIÈRE, 1996). Sob o ponto de vista da análise política das propostas de promoção da leitura, cabe dar atenção aos usos da leitura e aos modos como os significados de sua prática são articulados no cotidiano das relações sociais de comunidades específicas de leitores. Dimensão Cultural: sob o ponto de vista prático de intervenção, é fundamental compreender a inserção da leitura e da literatura nos espaços sociais periféricos e o seu papel como ferramenta de transformação cultural. Nesse sentido, é importante investigar: Quais os significados e funções que a leitura e a literatura assumem nos espaços da periferia? Que interferências culturais se manifestam nas práticas de leitura? As ações de leitura e escrita nas comunidades periféricas criam novos significados, valores, práticas, sentidos e experiências? Que livros mobilizam a leitura dos leitores nesses territórios? Os jovens da periferia incorporam as práticas de leitura e escrita à própria experiência? De que maneira isso ocorre? Os métodos e abordagens da leitura e da escrita levam em conta consensos estabelecidos na práxis comunitária? Que relações são percebidas entre leitura, escrita e transformação social? Na busca destas respostas, nosso referencial teórico apoia-se em Castrillón (2011), ao destacar que as bibliotecas precisam ser espaços que, além da leitura, promovam o debate sobre temas que dizem respeito às minorias e às maiorias, onde crianças, jovens e adultos possam discutir sobre problemas de interesses da coletividade. Nesses termos, a biblioteca comuntária figuraria como um espaço de atuação política, para formar sujeitos autônomos, favorecendo aos cidadãos agir como tais, capazes de intervir de maneira eficaz no seu destino, de sua comunidade, cidade e país. Espaços reais de acesso à informação que, acima de tudo, fomente o gosto pela leitura e que “permitam a des-

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coberta do valor que ela tem como meio de busca de sentido, como referência de si mesmo no mundo e para o reconhecimento do outro”. (CASTRILLÓN, 2011, p.38), ou seja, que realmente cumpra com sua função democrática dentro de uma proposta cidadã. Nesse aspecto Zacchi (2006), argumentando sobre formulações de George Yúdice, que entende a cultura como um recurso também material, gerador de renda, registra que “(...) enxerga na arte e na cultura um potencial para estimular o crescimento econômico e melhorar as condições sociais de determinadas comunidades” (2006, p. 139). Complementa, ainda, explicando que “a cultura assim como a educação, a religião, o esporte e o lazer-assumem papel de poder público, com funções pedagógicas e disciplinares” (ZACCHI, 2006, p.140). Para Santos (2012), a discussão sobre cultura nos remete a pensar sobre a nossa própria realidade social, sendo uma estratégia importante para compreender a sociedade. Nessa mesma linha, complementa Santos (2011): “A cultura é por definição um processo social construído sobre a interpretação entre o universal e o particular” (...). “Poderíamos até afirmar que a cultura é, em sua definição mais simples, a luta contra a uniformidade” (SANTOS, 2011, p. 47). É importante ter presente a reflexão de que a ação profissional desenvolvida nestes espaços das bibliotecas comunitárias pode contribuir para que os jovens que dali participam tenham uma leitura crítica da realidade, seja pela definição de estratégias, partilhas de experiências, ou pelo desenvolvimento de ações transformadoras resultantes da sua participação. Por outro lado, pode ser um terreno controverso, de relação singular, onde estas ações fiquem apenas na prática pela prática, o que muitas vezes acaba por neutralizar o potencial político de transformação cultural e social destes espaços. Compreender a leitura na sua dimensão cultural, como ensina Chartier (1996), implica, primeiramente, reconhecer que as práticas de leitura são muito variadas ao longo da história e que os próprios textos contêm protocolos indicativos de modos de leitura e de públicos visados. A leitura, para o autor, é um bom exemplo de prática cultural, um terreno a partir do qual muitos outros problemas, concernentes a vários campos de interesse, são passíveis de análise. Para Chartier (1996), “as capacidades de leitura postas em funcionamento num dado momento pelos leitores frente a determinados textos, as situações de leitura são historicamente variáveis” (1996, p. 233), ponderação que se torna relevante ao escopo de análise deste trabalho, que visa justamente compreender os significados da leitura e as interações desencadeadas por sua prática em comunidades bastante específicas, marcadas pela presença da violência. Certamente, as condições do contexto em que as políticas de leitura são implementadas pelas bibliotecas comunitárias de regiões periféricas acrescentam elementos de ordem cultural que intervêm nas práticas de leitura. Assim, é preciso considerar, nas políticas de incentivo à leitura, as concepções sobre o ato de ler, os gêneros de textos e as funções dadas à sua leitura que se colocam em jogo. E, para além disso, atentar para as tensões que se estabelecem entre os sentidos historica e socialmente construídos e os usos próprios feitos pelos leitores em particular. Relacionando os conceitos até aqui trabalhados, equivale a dizer que, ao mesmo tempo em que a investigação é reflexiva, por outro lado, traz todo um referencial técnico, operativo e prático, a fim de compreender estes diferentes sentidos e significados nestes múltiplos aspectos e territórios.

2. O PROCESSO METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO Esta pesquisa baseia-se na realização do Estudo de Caso Etnográfico múltiplo, que possibilita ao pesquisador articular permanentemente a teoria sobre o que está sendo estudado, confrontando-a com uma determinada situação, conhecida ou não, a fim de verificar como ocorre (similaridades e diferenças) a ação interventiva. A partir deste entendimento, será possível colaborar para se gerar novas teorias, pois o pesquisador “(...) não tem controle sobre eventos e variáveis, buscando

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apreender a totalidade de uma situação e, criativamente, descrever, compreender e interpretar a complexidade de um caso concreto” (MARTINS, 2008, p. xi). Cabe dizer aqui que nesta proposta de investigação a plataforma teórica terá uma função importante no diálogo permanente com um fundamento lógico e um planejamento específico, objetivando a sustentação das estratégias de campo, da coleta das informações e, posteriormente, na sua análise e interpretação. Para a composição deste estudo etnográfico múltiplo, foi identificado um total nove Bibliotecas Comunitárias5 que desenvolvem ações no município de Porto Alegre/RS. Destas, cinco estão localizadas em regiões periféricas e, destas, foram selecionadas três que se localizam nos territórios periféricos mais violentos da capital6, assim estabelecidos: Biblioteca Comunitária Arquipélago – Comunidade das Ilhas; Biblioteca Comunitária Nova Chocolatão - Comunidade Nova Chocolatão; Biblioteca Comunitária Ilê Ará - Comunidade Morro da Cruz. Cada Biblioteca se caracteriza então como um “micro espaço individual” e o conjunto destas três bibliotecas irá compor um estudo de caso etnográfico múltiplo, o que representa 60% do universo de análise dos espaços a serem investigados. Quanto aos procedimentos e estratégias analíticas, tem-se a intencionalidade de identificar a multiplicidade e as dimensões que envolvem os casos. A coleta das informações será realizada por meio de processos técnicos tais como a observação participante, “(...) porque parte do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de interação com a situação estudada, afetando-a e sendo afetada por ela” (ANDRÉ, 2012, p.28); e a entrevista semi-estruturada, porque “(...) têm a finalidade de aprofundar as questões e esclarecer os problemas observados” (ANDRÉ, 2012, p.28); grupo de discussão, como uma ferramenta de pesquisa relevante no estudo de situações em que as subjetividades e intersubjetividades se cruzam; e a pesquisa bibliográfica que irá complementar as estratégias e proporcionar um entendimento amplo dos campos de análise. A dimensão desta investigação é ampla, no entanto, “o que este tipo de pesquisa visa é a descoberta de novos conceitos, novas relações, novas formas de entendimento da realidade” (ANDRÉ, 2012, p.30), o que a torna extremamente relevante neste momento para refletirmos sobre os impactos das intervenções de leitura propostas pelas bibliotecas comunitárias aqui identificadas.

3. A PESQUISA E SEUS DESDOBRAMENTOS FUTUROS A presente investigação está na etapa de ajustes, tendo em vista o refinamento do problema e das questões de pesquisa, bem como da identificação dos referenciais teóricos mais adequados para o tratamento das questões orientadoras da investigação. O objetivo deste texto é trazer esses tópicos para o debate, a fim de problematizar o tema das bibliotecas comunitárias como espaços de ação cultural democrática, considerando a formação para a cidadania e as transformação das realidades locais. Neste sentido, investigar os processos, os saberes e as práticas de leitura significa desvendar nesse contexto aqueles elementos de uma ação política, porque “Não podemos pensar o desenvolvimento como um processo abstrato, descontextualizado (...)” (ALBUQUERQUE, 2008: 20), desvinculado da trama social numa relação singular, ou seja, é necessário entendê-lo nas suas múltiplas dimensões para perceber o sentido da proposta de intervenção: se esta se volta à reprodução do siste Estas Bibliotecas Comunitárias foram identificadas: Biblioteca Comunitária Nova Chocolatão – Comunidade Nova Chocolatão; Biblioteca Comunitária Ilê Ará – Instituto Leonardo Murialdo – Comunidade Morro da Cruz; Biblioteca Comunitária Arvoredo – Comunidade Vila Mapa; Biblioteca Comunitária Arquipélago – Comunidade das Ilhas; Biblioteca Comunitária Visão Periférica – Comunidade das Laranjeiras; Bibliotecas Comunitárias localizadas em outros espaços que não periféricos: Biblioteca Comunitária Ceprimoteca – Comunidade Santa Maria Gorete; Biblioteca Comunitária do Cristal – Comunidade Cristal; Biblioteca Comunitária Jardim Ipiranga – Associação de Moradores do Jardim Ipiranga. Informações consultadas em http://cirandar.org.br. 6 Estes territórios mais violentos da capital foram identificados no relatório Leituras dos Territórios das Regiões de Assistência Social – 2013. Para maiores informações consultar em http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/fasc/usu_doc/revistacompleta_af[1]. pdf. 5

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ma ou é motivadora, protagonista e busca resgatar as possibilidades culturais e práticas de leituras criativas e emancipatórias dos jovens enquanto sujeitos sociais de direitos.

REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE, Paulo Peixoto de; STRAUCH, Manuel (Orgs). Resíduos: como lidar com recursos naturais. São Leopoldo: Oikos, 2008. ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. 18. ed. Campinas, SP: Papirus, 2012. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand, 1989. CASTRILLÓN, Silvia. O direito de ler e de escrever. São Paulo: Ed. Pulo do Gato, 2011. CHARTIER, Roger (org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1.ed, Rio de Janeiro: LTC, 2013. GOHN, Maria da Glória. Educação não-formal, participação da sociedade civil e estruturas colegiadas nas escolas. Ensaio: Aval. Pol. Públ. Educ., Rio de Janeiro, v.14, n.50, p. 27-38, jan./mar. 2006. _____ (Org). Educação não formal no campo das artes. São Paulo: Cortez, 2015. MAPA DA VIOLÊNCIA 2015. Mortes matadas por arma de fogo. Disponível em: http://www.mapadaviolencia. org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf, Acesso em: 09 ago. 2015. MARTINS, Gilberto de Andrade. Estudo de Caso: Uma estratégia de pesquisa. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2008. PETIT, Michèle. Leituras: do espaço intimo ao espaço público. 1.ed. São Paulo: Editora 34, 2013. PLANO NACIONAL DO LIVRO E DA LEITURA – PNLL. Disponível em: http://cultura.gov.br/documents/10883/1171222/cadernoPNLL_2014ab.pdf/df8f8f20-d613-49aa-94f5-edebf1a7a660 PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE. Leituras dos Territórios das Regiões de Assistência Social. Disponível em: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/fasc/usu_doc/revistacompleta_af[1].pdf Acesso em: 10 set. 2015. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. São Paulo: Editora 34, 1996. SANTOS, Boaventura de Souza (Org). Globalização e as ciências sociais. 04º.ed. São Paulo: Cortez, 2011. SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura? São Paulo: Brasiliense, 2012. ZACCHI, Vanderlei J. A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global. In. Todas as letras I, volume 8, nº1, 2006. Disponível em https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=3&ved= 0CDwQFjAC&url=http%3A%2F%2Feditorarevistas.mackenzie.br%2Findex.php%2Ftl%2Farticle%2Fdownlo ad%2F854%2F555&ei=CekVVPTqNJCRyATQkIHIBw&usg=AFQjCNF2oxv9hz1uY00j5bTYC1JSzpBzMA&c ad=rjt. Acesso em: 05 set. 2015.

QUANDO A LEITURA ENCONTRA A ESCRITA: UMA ANÁLISE DAS RELAÇÕES ESTABELECIDAS NA COMUNIDADE DE FICÇÃO CIENTÍFICA DA PLATAFORMA WATTPAD Luiza Carolina dos Santos* (PUCRS)

Este artigo tem por objetivo apresentar, de forma breve e resumida, a pesquisa empírica desenvolvida durante o mestrado acerca das relações entre leitores e autores de ficção científica na plataforma de autopublicação Wattpad. Originalmente realizamos também uma ampla contextualização da leitura e da escrita no tempo e das questões tecnológicas que envolvem o mundo contemporâneo e que permitem que o próprio Wattpad (e outras tantas plataformas de leitura ou escrita digitais) exista e uma problematização do aporte metodológico utilizado nesta pesquisa, a netnografia. Por questões referentes ao próprio espaço de um artigo, deixamos de lado grande parte do referencial teórico que norteou esta jornada, visando possibilitar que os dados de campo possam falar mais alto, ainda que bastante permeados pela teoria.

1. INTRODUÇÃO AO WATTPAD O Wattpad pode ser caracterizado como uma plataforma de leitura e autopublicação com viés social, ou seja, disponibiliza sem custo e sem curadoria um sistema no qual qualquer escritor pode tornar seu trabalho público dentro daquela comunidade de leitura e escrita, que permite a interação entre os participantes, pública e privada. O conteúdo está acessível para qualquer um que possua uma conta na plataforma, também sem nenhum custo, não sendo possível tornar as obras rentáveis dentro desse espaço. De acordo com dados apurados durante o ano de 2014, atualmente são 40 milhões de usuários, dos quais cerca de 90% são apenas leitores (WATTPAD, 2014). O serviço, já consolidado na América do Norte, vem crescendo em países como Itália, Turquia, Espanha e Inglaterra (CHAPMAN, 2014). Podendo ser acessado tanto pela web quanto por aplicativos desenvolvidos para dispositivos móveis, dados do último ano apontam que 85% do trafego do Wattpad em 2014 foi mobile. De acordo com o CEO da empresa, Allen Lau, o diferencial do Wattpad é a experiência diferenciada da escrita: “nós tornamos o ato de contar histórias algo muito diferente e único” (STREITFELD, 2014). Para utilizar a plataforma, que é bastante intuitiva de um modo geral – tanto no aplicativo quanto no site – é preciso apenas se cadastrar. Para tanto, basta criar um nome de usuário e uma senha e adicionar um e-mail ou ainda fazer um cadastro a partir de conta já existente do Facebook. O funcionamento do perfil e da página inicial é bastante similar ao Facebook, mas o Wattpad permite poucas opções de privacidade dentro da rede e funciona com seguidores e não com amigos, como o Twitter. É possível ocultar idade e localização, mas de todos os usuários de uma vez só, além disso, um escritor pode ocultar um capítulo de uma história do público em geral, deixando-a visível apenas para seus seguidores, mas não consegue fazê-lo com uma obra completa. De acordo com pesquisa realizada pela própria plataforma no final de 2014, o pico de uso do Wattpad ocorre entre 21h e 22h e um total de nove bilhões de minutos são gastos no Wattpad mensal-

Graduada em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela Universidade de Passo Fundo. Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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mente (WATTPAD, 2014). Em uma pesquisa de 2013, quando a plataforma tinha 30 milhões de usuários (atualmente são 40 milhões), 27 milhões deles eram ativos todos os meses (HA, 2014) e, de acordo com dados divulgados pela gerente de comunicação do Wattpad ao Internancional Financial Times, a proporção de usuários do sexo feminino para o sexo masculino é de 3:1 (HERMAN, 2014, on-line). Como leitor, é possível adicionar obras na biblioteca pessoal, que é privada e não fica visível para os outros usuários no perfil do usuário. As obras que estão na biblioteca do usuário também podem integrar uma lista de leitura criada pelo mesmo, que pode dar um título a essa lista que se torna pública. As histórias são distribuídas em 22 categorias no Wattpad; cada uma delas pertence a apenas uma categoria, a qual é definida pelo autor no momento da escrita. É possível navegar em cada uma das categorias para descobrir histórias. Existe um ranking das obras dentro dessas categorias, que culmina na seção “Mais Populares” do Wattpad. Além de navegar nas categorias existentes, também é possível fazer busca de obras por Tags de sucesso, lançamentos, mais lidos, recém-lançados e obras com textos completo, além de título, assunto e palavra-chave. Escrever uma história no Wattpad é quase tão simples quanto navegar e ler por lá. Primeiro o usuário deve clicar no botão “criar”, que fica na parte superior do site ou no menu de navegação do aplicativo e selecionar a opção criar uma história. Em ambos, as etapas são as mesmas, com poucas diferenças. Uma vez na seção “criar”, o escritor deve adicionar um título, uma capa (opcional) e uma descrição para sua história, com um máximo de mil caracteres para o aplicativo e de dois mil caracteres para o site. Além de fazer o upload de uma capa, o escritor pode optar por criar uma capa com o criador de capa do Wattpad, função disponível apenas no site. Dando início ao primeiro capítulo, também é necessário adicionar um título e um texto, diretamente no editor de texto da plataforma e não em forma de upload. Também é possível adicionar uma foto da câmera do dispositivo móvel ou de arquivo e um vídeo do Youtube em cada capítulo – Lau explica que no Wattpad “a escrita é o ator principal aqui, mas nós temos outros atores que dão suporte: vídeo e som” (CHAPMAN, 2014). Uma pesquisa realizada pelo próprio Wattpad em 2014 aponta que 14 milhões de histórias foram compartilhadas de forma serializada e que a leitura também é feita de forma fragmentada, já que cada usuário gasta, em média, trinta minutos em leitura por sessão (WATTPAD, 2014). A plataforma possui também clubes de discussões, que funcionam como fóruns tradicionais com temas específicos e um grupo de embaixadores - usuários voluntários que se dispõem a realizar ações em meio à comunidade e auxiliar os membros com dúvidas e integração, além de manter as relações entre os usuários em ordem e monitorar qualquer conduta inadequada. Esses membros possuem, em geral, um alto capital social na rede, passam muitas horas no Wattpad e são extremamente ativos por lá.

1.1. O PERFIL WATTPAD SCI-FI São seis os perfis gerenciados pela própria equipe do Wattpad, os chamados perfis oficiais: o Wattpad, The Wattys, Wattpad Ambassadors, Wattpad Romance, Wattpad Fanfic e Wattpad Scifi. O perfil Wattpad é o principal e contém informações gerais sobre a plataforma, dedicando-se a manter os usuários engajados na realização de competições e premiações. Mantém os usuários informados e elabora listas de leitura – além de centralizar as informações de uma forma geral. Criado há oito anos, tem vida quase tão longa quanto a da própria plataforma e conta atualmente com 191 mil seguidores. O Wattpad SciFi, nosso objeto de estudo empírico, possui 263 mil seguidores e é voltado para a comunidade de leitores e escritores de ficção científica. São quatro obras publicadas: SciFi Competitions, compilação das competições de contos do gênero criadas pelo perfil; Nano Bytes - A collection of Short SciFi Stories, uma coletânea de contos selecionados de ficção científica; How to Write Science

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Fiction, um ponto de referência para escritores iniciantes; e Greats of Science Fiction, histórias da vida de grandes escritores do gênero. Também é possível acompanhar o Wattpad SciFi pelo Twitter1. As listas de leitura são treze. Venus tem 14 histórias; Parallel Worlds - SciFi FanFic, 16 histórias; Into the Void, 9 histórias; Babel Fish - Multilingual SciFi, 19 histórias; Time and Eternity, 10 histórias; Steampunk, 13 histórias; Superheroes and Supervillains, 13 histórias; Dystopian, 29 histórias; Intergalactic Reads, 29 histórias; Ongoing Stories, 30 histórias; Science Fiction Shorts, 71 histórias; SciFi Authors on Wattpad, 17 histórias; e ScienceFiction’s Reading List, com 5 histórias. Os perfis oficiais da plataforma auxiliam no sentido de comunidade, aproximando leitores e autores que têm interesses em comum, além de promover uma série de atividades, desafios e concursos que tornam a comunidade ainda mais engajada.

2. METODOLOGIA Para a realização desta pesquisa optamos por uma abordagem de cunho etnográfico adaptado para a internet, com base em Mattos (2011), Geertz (1978) e Uriarte (2012) no que diz respeito à etnografia tradicional e fundamentação nos estudos de Hine (2000) e Kozinets (2010) para a utilização desse método de pesquisa em ambiente on-line. Durante os meses de agosto, setembro e outubro de 2014, fizemos um estudo cuidadoso do modo de funcionamento do Wattpad e exploração inicial das comunidades existentes. Optamos por delimitar o campo de pesquisa ao perfil Wattpad SciFi devido ao amplo número de relações que estabelecia, frequência de postagens e de discussões com membros da comunidade. O período de imersão na comunidade escolhida ocorreu durante os meses de novembro e dezembro de 2014 e janeiro de 2015. As observações foram realizadas diariamente, com períodos de permanência na comunidade variados, mas nunca menores do que uma hora e utilizamos o diário de campo e a realização de printscreen como forma de coleta de dados. O corpus da análise é composto pelas quatro obras publicadas pelo perfil pesquisado e mais três obras presentes na lista voltada para a narrativa serializada. Os quarto trabalhos publicados pelo perfil Wattpad SciFi são: Nano Bytes – A colection of Short SciFi Stories, Greats of Science Fiction, How to Write Science Fiction e SciFi Competitions. As três obras da lista de leitura selecionadas são: Timothy Eli and the Light Guard Trials, The Things We Bury e Flawed. As categorias de análise para este trabalho foram estabelecidas após o período de um mês de imersão nesta comunidade, considerando o tema de pesquisa deste trabalho e os dados que emergiriam do campo, sendo estas: instâncias de consagração, reprodução e preservação, a vida em comunidade (práticas de engajamento), a escrita em discussão, a crítica literária e leitura e significação. Passamos, ora, a expor resumidamente os dados resultantes do período de três meses de imersão netnográfica na comunidade.

3. ANÁLISE DOS DADOS 3.1. INSTÂNCIAS DE CONSAGRAÇÃO, DE PRESERVAÇÃO E DE REPRODUÇÃO O perfil Wattpad SciFi publicou, como mencionado anteriormente, quatro obras e nele há um total de treze listas de leitura. Além disso, mantém uma comunicação constante com seus seguidores, postando mensagens em seus perfis, e envolve os membros constantemente, com desafios de curta duração. O perfil se posiciona, conforme definição própria na categoria “sobre”, como um ponto https://twitter.com/Wattpad_SciFi

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de referência dos leitores do gênero no que diz respeito a notícias, novidades e histórias disponíveis no Wattpad. Ao posicionar-se como referencial no meio de ficção científica, o Wattpad SciFi propõe-se a dar indicações de leitura aos fãs ou iniciantes do gênero, elaborando listas de leitura, que são devidamente selecionadas. Como nos esclarece a descrição no próprio perfil, existe sim um processo de curadoria cuidadosamente realizado para cada uma das listas de leitura: não basta apenas se encaixar no gênero, é preciso que a história apresente qualidade literária para que receba o selo de indicação. Bourdieu (1974) aponta que o campo da indústria cultural e o campo da cultura erudita possuem suas próprias instâncias de consagração, distintas uma da outra. Se, na indústria cultura, a consagração é o mercado, na cultura erudita isso fica por conta do reconhecimento dos pares. No campo da cibercultura, no contexto específico da comunidade de ficção científica do Wattpad, podemos dizer que as listas de leitura do Wattpad SciFi adquirem um caráter das instância de consagração, uma vez que a história passa a ter um determinado valor por estar incluída dentro daquele grupo. Não é apenas através das listas de leitura que o Wattpad SciFi se engaja em um processo de curadoria dos bens simbólicos gerados pela comunidade, o mesmo pode ser observado através das obras publicadas e dos concursos elaborados. A obra composta de pequenos contos criados pelos usuários e intitulada Nano Bytes – A Collections of Short SciFi Stories é formada, em sua maioria, por contos premiados por edições de concurso do perfil. A partir dessa coletânea, por exemplo, não ocorre apenas a consagração do autor de determinada história, que teve seu valor reconhecido pela comunidade, mas também a criação e a preservação de uma memória literária, constituindo uma espécie de instância de preservação, no sentido proposto por Bourdieu (1974). O viés educativo, voltado à reprodução do gênero, pode ser percebido em duas obras publicadas pelo Wattpad SciFi: Greats of SciFi, compilação de pequenos perfis contando a história de vida de grandes autores, e How to Write Science Fiction, guia de auxílio para iniciantes. É possível perceber um campo de produção e consumo de literatura de ficção científica on-line que não se configura nem dentro do modo específico da indústria cultural nem da cultura erudita, como tais foram propostos por Bourdieu (1974). Evidencia-se uma composição nova, híbrida, com aspectos marcantes como instâncias de consagração, preservação e reprodução, as duas últimas bastante tradicionais de um campo de arte erudita. Entretanto, é um campo para não iniciados também, que busca discutir, delimitar, compreender e formar.

3.2. AS RELAÇÕES SOCIAIS O processo de leitura no Wattpad é distinto do processo de leitura de um livro no sentido tradicional, por dois motivos principais. Um deles é o caráter aberto que as histórias têm na plataforma, pois podem ser atualizadas e modificadas a qualquer momento, além da possibilidade da escrita em forma serializada, que nos remete, claro, aos antigos folhetins publicados nos jornais, que marcavam o período romântico na literatura. Outro fator que modifica a leitura como experiência nesse contexto é a retomada de um fator social, a leitura como um processo que pode ocorrer de forma coletiva. É a partir do voto, do compartilhamento e do comentário que os usuários pertencentes à comunidade de ficção científica se engajam nesse processo conjuntamente com seus seguidores, com aqueles que eles seguem e com os demais participantes. Essa possibilidade de unir o social ao ato de ler e escrever é considerada o principal diferencial do Wattpad por seus fundadores – e encontra, de fato, uma grande quantidade de usuários dispostos a compartilhar modos que, até recentemente, eram essencialmente privados.

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Riesman (1974) nos explica que a passagem do manuscrito para o livro impresso nos encaminha para uma tradição de leitura que é solitária e silenciosa, na qual não há espaço para o social. Ainda que não exista uma retomada da oralidade no Wattpad, como ocorria no período dos manuscritos, existe sim uma retomada da noção de grupo e da leitura como uma experiência compartilhada – assim como da escrita, que passa a ser passível de edição e de correção sugerida por leitores, como veremos posteriormente, se aproximando da forma que os escribas faziam. Na comunidade de ficção científica, percebemos que um fator importante é a noção de pertencer a uma comunidade e estabelecer laços com os outros membros. Isso se torna perceptível através dos comentários e das ações que buscam encorajar, auxiliar e tornar engajado o outro. Dentro da comunidade de ficção científica da plataforma Wattpad, não apenas o feedback positivo, que visa ao incentivo, é importante para os sujeitos, sua relevância também se revela na aquisição de um capital social que permita ao autor se destacar dentro da grande produção que existe naquele nicho. Fazer notar-se não é tarefa fácil em uma comunidade tão prolífera – e essa questão nos faz retornar novamente à importância das instâncias de consagração para que os autores possam se destacar.

3.3. A ESCRITA EM DISCUSSÃO Se o Wattpad é um lugar para a leitura e é um lugar para escrita, ele também é, potencialmente, um lugar para a discussão do próprio processo de escrita e de criação. Durante as observações na comunidade, foi possível perceber que a discussão sobre o processo de escrita era um fator recorrente, muito mais do que o esperado inicialmente pela pesquisadora. Isso se deve, em parte, pela publicação da obra How to Write Science Fiction pelo perfil oficial Wattpad SciFi, que despertou a comunidade para esse tópico. Com mais de 35 mil leituras, 1.500 votos e 650 comentários, o livro despertou alguns debates interessantes entre iniciantes e iniciados. Freud (1976) e Benjamin (2004) nos colocam a escrita como um processo de transformar elementos pessoais em algo que possa ser consumido, absorvido e significado pelos outros. O escritor usa sua criatividade e seu domínio do código de escrita para tornar palatável ao outro questões que, possivelmente, de outra maneira não seriam. É a habilidade de cozinhar e elaborar alimentos à qual Benjamin (2004) comparou. E dentro da comunidade de ficção científica é justamente esse código e o modo como dominá-lo que se discute. Dentro dessa questão proposta pelos autores, um dos pontos cruciais é que se necessita de uma ideia inicial que possa conter esses elementos. Ou seja, é necessário um ponto de partida para essa história. Um dos tópicos bastante discutido nessa comunidade, por ocasião da publicação da obra citada, foi a questão do processo criativo, do momento em que se tem uma ideia que pode vir a gerar uma história até a história em si. Percebemos também, na comunidade de ficção científica do Wattpad, a retomada de um antigo elemento na produção da obra: a interferência direta do leitor naquilo que ele lê. Na antiguidade, a transformação constante das obras transmitidas pela oralidade era frequente e inevitável: fazia parte daquele modo de transmissão de conhecimento (CAVALHEIRO, 2008). Posteriormente, na idade média, com a função dos escribas, o mesmo processo de retoque das obras a cada vez que eram copiadas ocorria e, assim, ajustes iam sendo feitos nos originais (CHARTIER, 1998), sem ser possível distinguir mais o que era escrito pelo autor e o que era alteração do escriba. Não muito diferente desses processos, no Wattpad, os leitores também vão sugerindo pequenos retoques e correções, que eles acreditam que tornaria a obra melhor, retomando um aspecto que havia se diluído com os livros impressos – entretanto, a alteração ou não do trecho depende do autor.

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3.4. UM MUNDO DE CRÍTICOS Muitas são as questões que a leitura em ambiente digitais nos coloca: por um lado, nos preocupamos com a ausência de curadoria, com o conteúdo livre, e, por outro, nos alegramos com a liberdade de acesso e com a promessa de relações mais próximas. Tememos o fim da leitura, dos livros e da cultura como conhecemos, sem que deixemos, com isso, de ansiar por um futuro onde cada leitor será um crítico, não apenas com possibilidade de falar sobre, mas com profundidade para tanto. Essas também são questões que o Wattpad nos coloca: o que farão os leitores com sua possibilidade de expressão? Se resgatarmos os números a que demos destaque anteriormente, no início deste capítulo, podemos perceber que existe um vão enorme entre o número de leituras e o número de comentários em uma obra. Na coletânea Nano Bytes, por exemplo, há apenas 290 comentários, mesmo com um total de 23.400 leituras, e a obra The Things We Bury, escrita de forma seriada, registra quase 90.000 leituras, mas não chega a dois mil comentários. A distância entre o número de leituras e de comentários varia em cada obra, mas a grande diferença entre um e outro se mantém, nos levando a considerar que a promessa de um mundo de críticos existe, mas que nem todos estão dispostos a tomar essa posição – alguns usuários querem apenas ler, nada mais. Outros, entretanto, aproveitam o espaço para detalhar suas inclinações críticas, tratando com respeito a obra do escritor: são raras as críticas que tomam um ar pejorativo ou de ofensa, ou até mesmo que indiquem que o leitor não apreciou, em nenhum nível, aquela obra. As opiniões dos leitores tomam diversos rumos, cada uma em uma escala que vai desde uma crítica elaborada até uma opinião sincera que não procura justificar-se. Durante muito tempo – em parte devido aos empecilhos físicos que um meio de escrita em papel proporcionava, mas também devido ao duradouro reino do autor no mundo das artes, tão central em nossa sociedade –, a separação entre o polo receptor e o polo criador foi extremamente demarcada. A separação ainda existe, claro, mesmo em ambientes onde observamos que a posição de quem lê e a posição de quem escreve são constantemente alternadas, como no Wattpad, entretanto, as possibilidades de troca se expandem nesse campo: a comunicação agora não ocorre apenas através do encontro de subjetividades, não ocorre apenas dentro do mundo do texto, ela pode ocorrer também no diálogo.

3.5. LEITURA E SIGNIFICAÇÃO Nos disse Ricouer (2011) que ler não é apenas produzir sentidos, é produzir um mundo até então inexistente, um mundo incapaz de se repetir novamente, pois é o encontro único do mundo de um escritor específico com um leitor específico em um tempo e contexto específicos. Ler é um encontro de universos. Ler é costurar sentidos – e os sentidos vêm em todos os formatos e cores. Por intermédio dos personagens que compõem os textos, somos capazes de encontrar outros sentidos, de ter insights sobre suas condições, modos de vida, experiências – essas noções passam a compor nosso arsenal de dados para compreender nós mesmos, outras pessoas e o mundo. E na comunidade de ficção científica do Wattpad, muitos leitores compartilham os sentidos e as sensações despertadas pelas histórias lidas através de comentários, abrindo espaço para discussões de temas que inicialmente não parecem explicitamente relacionados às obras. Talvez, para Keen (2007), um local como a comunidade de ficção científica do Wattpad represente de fato o fim da qualidade em nossa cultura: dominando os códigos necessários e tendo acesso a um computador ou smartphone e internet, qualquer um pode publicar, ler e comentar. O amadorismo tem sim lugar por aqui, mas o amador não tem, entretanto, necessariamente, desejo de ser mais que amador. Os leitores e escritores da comunidade que compartilham suas visões por

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meio de comentários se preocupam em poder significar e compartilhar esses sentidos, retomando a sociabilidade na leitura. A importância de um ambiente como esse está em possibilitar aos sujeitos novos espaços de produzir e de compartilhar a produção artística, conectando, assim, o maior número de subjetividades possível, despertando os sujeitos para outras realidades de mundo. Se ler é um ato comunicacional, um encontro entre os sentidos que o autor criou e os que o leitor atribuiu, não é possível julgá-la em termos de qualidade, mas elas podem, sim, ser mais profundas ou mais superficiais – e nós, como seres humanos, precisamos de ambas.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Imagens do Pensamento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. CAVALHEIRO, Juciane dos Santos. A concepção de autor em Bakhtin, Barthes e Foucault. SIGNUNM: Estud. Ling., Londrina, n.11/2, p.67-81, dez. 2008. CHAPMAN, Glen. Writers and readers go mobile and social at Wattpad. GMA News Online, 2014. Disponível em: http://www.gmanetwork.com/news/story/381220/lifestyle/literature/writers-and-readers-go-mobile-and-social-at-wattpad. Acesso em 03 de outubro de 2014. CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneios. (Obras Completas, 9) Rio de Janeiro: Imago, 1976. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: ZAHAR Editores, 1978. HA, Anthony. Wattpad CEO Says The Social Reading App Will Be Free Forever And Make Money From Native Ads. TECHCRUNCH, 2014. Disponível em: http://techcrunch.com/2014/06/18/wattpad-native-ads/. Acesso em 5 de outubro de 2014. HERMAN, Barbara. What Is Wattpad? The ‘YouTube For Stories’ Is Transforming Book Publishing. Internacional Bussines Times, 2014. Disponível em: http://www.ibtimes.com/what-wattpad-youtube-stories-transforming-book-publishing-1710151. Acesso em 19 de novembro de 2014. HINE, Christine. Virtual Ethnography. London: Sage, 2000. KEEN, Andrew. The cult of the amateur: how today’s internet is killing our culture. New York: Doubleday/ Currency, 2007. KOZINETS, Robert V. Netnography: Doing Ethnographic Research Online. London: Sage, 2010. MATTOS, CLG. A abordagem etnográfica na investigação científica. In MATTOS, CLG., and CASTRO, PA., orgs. Etnografia e educação: conceitos e usos [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2011. pp. 49-83. RICOUER, Paul. Tempo e narrativa : o tempo narrado. São Paulo : WMF, 2011. _____________. Do texto a acção. Porto : Rés editora, 1989. RIESMAN, David. As tradições oral e escrita. In: CARPENTER, Edmund; MCLUHAN, Marshall (Org.). Revolução na Comunicação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1974, p. 137 – 144. STREITFELD, David. Aplicativo Wattpad une autores e leitores com textos mais curtos on-line. São Paulo: Folha de São Paulo, 2014. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/tec/2014/04/1442134-aplicativo-wattpad-une-autores-e-leitores-com-textos-mais-curtos-on-line.shtml. Acesso em 05 de outubro de 2014. URIARTE, Urpi Montoya. O que é fazer etnografia para os antropólogos. Pontourbe 11, 2012. Disponível em: http://pontourbe.net/. Acesso em 9 de dezembro de 2014. WATTPAD. How we’re helping Wattpad writers. Blog do Wattpad, 2014. Disponível em: http://blog.wattpad. com/how-were-helping-wattpad-writers/. Acesso em 8 de dezembro de 2014.

A IMPORTÂNCIA DAS PRÁTICAS LEITORAS PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO Maria Augusta D’Arienzo* (UPF)

INTRODUÇÃO O desenvolvimento humano, na perspectiva sociocultural-histórica é considerado um processo cultural, onde os seres humanos aprendem uns com os outros e por meio das heranças cultural e biológica usam a linguagem e outras ferramentas culturais como forma de conhecer acontecimentos de forma coletiva, direta ou indiretamente por várias gerações. Este artigo tem como objetivo destacar os impactos da leitura sobre o desenvolvimento humano, considerando que a pessoa em desenvolvimento interage com seu ambiente, através das relações com outras pessoas, grupos sociais e culturais e a cultura escrita é uma das ferramentas utilizadas na mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento. Trata-se de um estudo de caráter bibliográfico, no qual se utilizará escritos de autores como Barbara Rogoff (2005), Jerome Bruner (2000), Roger Chartier (1999 e 2009) e Jenny Cook-Gumperz (2008). Na primeira parte, abordam-se as relações dos processos culturais e o desenvolvimento humano, com destaque para a pesquisa realizada pela psicóloga Barbara Rogoff. Na segunda, descrevem-se sobre de que forma e o porquê que as práticas culturais se constituem como práticas educacionais, os estudos produzidos na década de 90 por Jerome Bruner, psicólogo norte-americano. A terceira enfatiza como o sujeito ao aprender se constitui e se apropria da cultura escrita e o seu modo de agir nesta cultura, fundamentam este escrito as pesquisas desenvolvidas por Jenny Cook-Gumperz e colaboradores. As práticas de leitura que no decorrer da história constituíram a cultura escrita será o destaque na quarta parte, alicerçada nos escritos de Roger Chartier. Em suma, o presente artigo buscará destacar a importância das práticas leitoras para o desenvolvimento humano sob os olhares de Rogoff, Bruner, Cook-Gumperz e Chartier, na perspectiva sociocultural-histórica considerando os processos culturais, as práticas educacionais, a cultura escrita e as práticas leitoras, pois o sujeito se constitui, e se desenvolve quando cria e usa a linguagem.

O DESENVOLVIMENTO HUMANO E AS PRÁTICAS CULTURAIS Rogoff (2005, p. 15) afirma que “as pessoas se desenvolvem como participantes das comunidades culturais. Seu desenvolvimento só pode ser compreendido à luz das práticas e das circunstâncias culturais de suas comunidades.” Isso porque, o homem é um ser social, que quando nasce traz consigo aptidões e capacidades, e vai se desenvolvendo na interação com o seu meio social adquirindo habilidades necessárias para o seu tempo, assim conhece, aprende e utiliza da cultura para se constituir por meio das experiências e das conquistas acumuladas pelas gerações.

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Mestranda em Educação. Universidade de Passo Fundo. Programa de Pós-Graduação em Educação. E-mail: [email protected]

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A pessoa em desenvolvimento funciona em uma dinâmica contínua nas relações com outras pessoas, grupos sociais e culturais. A autora afirma que o comportamento dos sujeitos advém das situações que constituem sua rotina, como também, das práticas culturais que estão habituados, assegurando que o “que elas fazem depende, em aspectos importantes, do significado cultural atribuído aos eventos e dos apoios sociais e institucionais proporcionados em suas comunidades para aprender e cumprir determinados papéis nas atividades.” (2005, p. 18) A compreensão dos processos culturais para o desenvolvimento humano é fundamental para avançar na percepção da natureza do mesmo e no discernimento das “regularidades nos padrões diversificados do desenvolvimento humano nas diferentes comunidades.” (ROGOFF, 2005, p. 18) Uma regularidade cultural capaz de evidenciar as variações e as semelhanças entre uma comunidade e a espécie humana é a idade cronológica, e é apartir da idade que se dá as transições do desenvolvimento, sendo fundamental para entender a evolução de diferentes comunidades. Quanto à regularidade cultural que leva a classificação das crianças por idade, mas também sua segregação das realizações da comunidade ou da participação nas atividades adultas a autora afirma que, na atualidade, o meio pensado às crianças e as maneiras com que os pais se relacionam com seus filhos estão estreitamente relacionados com divisão etária e a discriminação das crianças. Os ambientes e costumes “de criação de filhos típicos da classe média também são predominantes na psicologia do desenvolvimento, conectando-se com ideias sobre as etapas da vida, processos de pensamento e aprendizagem, motivação, relações com pares e pais” (2005, p. 19), como também, normas disciplinares, competição e solidariedade. Um padrão alternativo é desenvolvido por Rogoff (2005) a esta regularidade cultural que é a inclusão de crianças nas ações do cotidiano da sua comunidade, levando a conceitos e práticas culturais diferenciadas no desenvolvimento humano, pois as crianças aprendem a partir de atividades presentes no contexto e não dissociadas dele, neste padrão há uma relação colaborativa por parte do grupo com as crianças. A organização hierárquica nas relações humanas é outra regularidade importante nas práticas culturais, nesse padrão há uma pessoa que controla as demais. Como padrão alternativo Rogof (2005) descreve que os indivíduos sejam corresponsáveis pelo grupo na tomada de decisões, a autonomia individual é respeitada, contanto que esteja em sintonia com o caminho do grupo. As formas de assistência à aprendizagem estão ligadas a este padrão de regularidade. Apontar padrões culturais possibilita refletir a cerca da função das práticas culturais no desenvolvimento humano. Alguns conceitos auxiliam na reflexão sobre as inter-relações dos processos individuais e culturais e a importância dos processos culturais no desenvolvimento humano. Na perspectiva sociocultural-histórica para se entender o desenvolvimento é preciso considerar a natureza cultural da vida cotidiana, ou seja, a utilização e transformação a partir dos instrumentos e tecnologias culturais, da participação nas tradições culturais e nas práticas culturais. Como conceito orientador geral Rogoff (2005, p. 21) define que “os seres humanos se desenvolvem por meio de sua participação variável nas atividades socioculturais de suas comunidades, as quais também se transformam”. Esse conceito serve como princípio para os demais no propósito de compreender os processos culturais e sua relação com o desenvolvimento humano. Sendo que, esses processos são observados a partir das ações e do desenvolvimento humano no cotidiano, e são relacionados ao uso das tecnologias, dos valores e tradições institucionais e de comunidade. Os processos culturais são constituídos pela história das comunidades e da relação com outras, pois as comunidades culturais estão em constante transformação, assim como as pessoas. Segundo a autora não há uma forma melhor de se compreender práticas culturais diferentes, é preciso estar aberto a possibilidades de que:

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aprender a considerar a cultura de outras comunidades não exige abrir mão dos próprios hábitos; requer, sim, suspender temporariamente os próprios pressupostos para que se levem em consideração os outros, e separar cuidadosamente as iniciativas para entender fenômenos culturais daquelas voltada a julgar o seu valor. (2005, p. 22)

A perspectiva sociocultural-histórica parte do princípio de que o desenvolvimento individual deve ser entendido no seu contexto social, cultural e histórico e não separado dele. As crianças se desenvolvem a partir da utilização de instrumentos culturais, da interação com outros mais habilidosos, assim transformando os instrumentos de acordo com suas necessidades e utilizando-os de forma independente. Portanto, o desenvolvimento humano é um processo cultural e de participação variável dos indivíduos nas ações socioculturais-históricas em suas comunidades, a autora conclui que: as pessoas se desenvolvem à medida que participam e contribuem para atividades culturais que se desenvolvem, elas próprias, a partir do envolvimento das pessoas em sucessivas gerações. As pessoas de cada geração, à medida que desenvolvem empreendimentos socioculturais com outras, fazem uso e ampliam instrumentos e práticas culturais herdados de gerações anteriores. Ao se desenvolverem mediante o uso compartilhado de instrumentos e práticas culturais, simultaneamente contribuem para a transformação dos instrumentos, das práticas e das instituições culturais. (ROGOFF, 2005, p. 51-52)

AS PRÁTICAS CULTURAIS E AS PRÁTICAS EDUCACIONAIS As estratégias para melhorar a mente humana por meio da educação dependem da concepção que se acredita sobre o seu funcionamento e como ele pode ser qualificado de maneira significativa. Na abordagem psicocultural da educação destaca-se o culturalismo, o qual coloca o papel da cultura como central na constituição e funcionamento da mente humana. Bruner afirma que a mente não pode existir distanciada da cultura, há uma ligação entre o desenvolvimento do modo de viver e a evolução da mente humana, sendo “que a “realidade” é representada por um simbolismo partilhado pelos membros de uma comunidade cultural, onde um determinado estilo técnico-social de vida simultaneamente se organiza e constrói nos termos desse simbolismo”. (2000, p. 19) Para orientar a abordagem psicocultural da educação Bruner estabelece alguns princípios, os quais tratam das definições sobre a natureza da mente e da cultura, pois na educação há uma interligação entre as duas questões. Bruner (2000) elenca nove princípios e suas consequências para a educação, são eles: perspectiva; construtivismo; interação; exteriorização; instrumentalismo; institucional; identidade e autoestima; e narrativa. a) Princípio da perspectiva: destaca as questões de interpretação e produção de significado do pensamento humano e, concomitantemente, reconhece os riscos pertinentes de dissonância que podem resultar do estímulo deste aspecto da vida mental. b) Princípio do constrangimento: os constrangimentos são vistos como herança da evolução humana. Uma das funções da educação é prover os indivíduos dos sistemas simbólicos e outra é aprimorar o discernimento linguístico, assim objetivando a melhora da capacidade humana de interpretar significados e de construir realidades. c) Princípio do construtivismo: a educação incentiva os seres humanos para serem os construtores da sua realidade, a qual é produto dos significados delineados pela tradição e pelas ferramentas da cultura do pensamento. Desta forma, a educação assessora a aprendizagem das pessoas para a utilização destas ferramentas de produção de significado e de cons-

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trução da realidade, com a finalidade de melhorar a apropriação do mundo em que vivem e auxiliar na transformação do mesmo. d) Princípio da interação: a aprendizagem é um processo de interação, onde os indivíduos aprendem de forma mútua. Para que haja aprendizagem de conhecimentos e de capacidades é preciso uma subcomunidade em interação, alunos orientados pelo professor, o qual partilha de sua autoridade. e) Princípio da exteriorização: a função fundamental da atividade cultural coletiva é a de produzir artes, ciências, leis, mercados e até mesmo a história de uma cultura, numa dimensão menor, mas tão importante quanto a anterior, conferir identidade, ufanismo e sentimento de continuidade aos participantes desta produção. Os benefícios da exteriorização dos produtos da participação são: a divisão de trabalho e a valorização do coletivo; o registro mental dos esforços reflexivos, hábitos de pensamento e de discernimento e que muito deles são utilizados pelas escolas. f) Princípio do instrumentalismo: a educação não é neutra, é política, pois tem consequências sociais e econômicas na vida dos indivíduos, da cultura e das instituições. Tais implicações levam a refletir a cerca do talento e da oportunidade. O talento é multifacetado, se refere às aptidões naturais, uso dos poderes da mente e seus registros de suporte, os quais diferem entre as pessoas e entre a importância que cada cultura dá para o ensino dos diferentes modos de pensamento e dos registros, o que interfere na forma como as pessoas desenvolvem suas aptidões e seu modo de pensar. g) Princípio da institucionalização: a educação, enquanto instituição, tem como papel central a preparação dos jovens para atuarem em outras instituições da cultura. As culturas são compostas por instituições que definem o seu papel para com as pessoas, suas regras e respeito que lhes serão atribuídos, bem como o modo de vida por meio delas. O indivíduo pertencer a mais de uma instituição é uma característica da cultura humana, e cada instituição possue direitos e responsabilidades distintas. O poder de uma cultura é destacado pela eficiência em integrar instituições, que se completam mútua e funcionalmente, a partir de uma dialética na solução dos conflitos. h) Princípio da identidade e da autoestima: a educação é fundamental na formação da identidade e da autoestima dos indivíduos. Para além da família, a escola é a mais antiga instituição onde o indivíduo se envolve e forma seu ego. A ação é uma característica da ipseidade humana, e é por meio dela que as pessoas se experimentam como agentes que dominam as próprias ações. Para Bruner “uma vez que a acção implica não só a capacidade de iniciar mas também de completar os nossos actos, ela implica igualmente habilidade e saber-fazer”. (2000, p.62) A avaliação é a característica ubíqua da ipseidade, pois além de agir o Si mesmo avalia a eficiência na ação e no que foi pedido para realizar. A eficiência na ação e a auto avaliação o autor chama de autoestima. A escola como entrada na cultura deve, de acordo com Bruner “reavaliar constantemente o que a escola faz à concepção dos jovens estudantes sobre os seus próprios poderes (o seu sentido de acção) e sobre as oportunidades sentidas de se mostrarem capazes de enfrentar o mundo, tanto na escola como fora dela (a sua autoestima)”. (2000, p. 64) i) Princípio da narrativa: a construção de uma história e a narrativa são responsáveis por fazer com que a criança crie uma visão de mundo onde encontre um lugar para si mesmo, ou seja, um mundo pessoal. Para saber como a criança em desenvolvimento cria significados, a partir da experiência escolar, os quais se relacionam com a vida numa dada cultura, o autor utilizou a narrativa como modo de pensamento e condutor da produção de significados. Os seres humanos organizam e gerem o seu conhecimento do mundo a partir do pensamento lógico-científico e do pensamento narrativo e as culturas os privilegiam distintivamente. As

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experiências humanas, do ontem e do hoje, são representadas de forma narrativa, por isso a importância da narrativa para a coesão da cultura e da estruturação da vida individual. A criação da sensibilidade narrativa pode surgir quando a criança conhece e sente mitos, histórias, contos populares da sua cultura, assim desenvolvendo uma identidade, e quando através da ficção encontra um lugar no mundo, pois o envolvimento com as diversas relações com os indivíduos e as instituições acontecem por meio de um ato de imaginação. A escola deve auxiliar os indivíduos que estão em crescimento numa cultura a encontrar uma identidade dentro dessa cultura. A reflexão dos princípios, na perspectiva psicológico-cultural da educação, leva ao questionamento de verificar até que ponto os princípios colocam em evidência os poderes da consciência, da reflexão, a riqueza do diálogo e da negociação. Para Bruner (2000, p.70) “a educação é uma complexa procura no sentido de ajustar uma cultura às necessidades dos seus membros e de ajustar os seus membros e seus modos de conhecer às necessidades da cultura”.

A APRENDIZAGEM E A CULTURA ESCRITA Atualmente, as instituições educacionais permanecem sendo centralidade nos debates a cerca das suas potencialidades para a realização de mudanças sociais, e quando há o fracasso nos resultados é observado que aparece um pensamento geral de que se a escola não é capaz de ensinar habilidades básicas de codificação e decodificação, portanto não terá condições de preparar as gerações futuras para se defrontarem com questões mais complexas e com as transformações tecnológicas. O acesso à cultura escrita se dá, também, por meio do processo de alfabetização, e essa não trabalha apenas habilidades práticas, e sim um conjunto de capacidades para o uso do conhecimento. Segundo Cook-Gumperz (2008, p.13) “a alfabetização é um fenômeno socialmente construído, e não a simples capacidade de ler e escrever”, dessa forma a alfabetização aperfeiçoa habilidades validadas socialmente. O processo de aprendizagem da alfabetização, como construção social, possui uma ideologia de base histórica e um conjunto de atividades comunicativas relacionadas ao contexto. No início da modernidade a visão sobre a alfabetização, e que ainda pode estar sendo utilizada, dizia que “uma pessoa letrada não apenas era uma pessoa boa, mas alguém capaz de exercer um julgamento bom ou razoável, pois o gosto e o julgamento de uma pessoa letrada dependiam do acesso a uma tradição escrita - um corpus de textos - refletindo séculos de experiência coletiva”. (COOK-GUMPERZ, 2008, p. 13) Em uma perspectiva global a leitura, a escrita e a fala no cotidiano e em situação de aprendizagem formal leva a indagação de que forma as pessoas fazem uso da alfabetização no dia-a-dia. Na perspectiva ideológica pode-se observar que a alfabetização é um conjunto de atividades utilizadas para a compreensão do mundo, no contexto em que a língua falada e escrita está em uso, é também, um coletivo de assertivas a cerca do valor e das necessidades da cultura escrita. Cook-Gumperz (2008, p.15) diz que “a perspectiva sócio-lingüística concentra-se nos processos pelos quais a alfabetização se constrói no dia-a-dia, por meio de interações conversacionais e da negociação de significados interativos em muitos contextos diferentes de escolarização”. Ainda, acredita-se que o processo de alfabetização é uma forma de revelar o conhecimento, para além da aprendizagem de habilidades cognitivas. Sobre esta consideração Cook-Gumperz (2008, p.16) afirma que “a alfabetização envolve um complexo de processos sócio cognitivos que fazem parte da produção e da compreensão de textos e dos discursos dentro de contextos interacionais que, por sua vez, influenciam como esses produtos serão valorizados”. A argumentação coerente, a habilidade narrativa e o estilo retórico são características da aprendizagem da língua escrita e falada, e o valor a elas conferido decorre da herança cultural oriunda da convivência com outras pessoas que prezam e atestam seus usos.

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No contexto escolar é preciso observar os contextos comunicativos e linguísticos em que se dá a alfabetização, do mesmo modo que devem ser considerados os valores que a sociedade confere às habilidades letradas, assim há uma interação entre o contexto de aquisição e as práticas letradas. Professores e alunos trazem para a escola pré-concepções, experiências dos seus lares e das suas comunidades, por isso não basta saber fazer, é imprescindível saber manifestar os saberes nos contextos apropriados. Na sala de aula, no processo ensino-aprendizagem a língua falada e escrita, entre outros fatores, é fundamental para a construção da aprendizagem, pois é por meio dela que ocorrem as relações e trocas educacionais, como também, influenciam o sucesso escolar. “A aprendizagem não é apenas questão de processamento cognitivo, no qual os indivíduos recebem, armazenam e usam certos tipos de mensagens instrucionais organizadas em um corpus de conhecimento escolar”. (COOK-GUMPERZ, 2008, p. 19-20) São complexas as considerações de que a escola tem como objetivo e como produto aprender a ler e escrever, e que a pessoa alfabetizada melhora sua qualidade de vida, assim como dos grupos sociais dos quais faz parte, bem como da sociedade como um todo. Com base nesta visão da cultura escrita é possível identificar sua importância na transformação da consciência humana, através da sua escolarização e de outras mudanças sociais. Cook-Gumperz afirma que “por meio dessas mudanças sociais, começava uma grande revolução, na qual o advento da alfabetização em massa significava, para a maioria dos indivíduos, que se poderia controlar e influenciar mais o próprio destino social comum”. (2008, p.29) A alfabetização além de trabalhar com as habilidades para a aprendizagem da leitura e da escrita deve preparar o indivíduo para sua participação social, cultural, política e econômica na sociedade em que convive. A aprendizagem da leitura e da escrita deve levar a melhora das condições de vida, auxiliando na construção de conhecimento, mas também na compreensão do mundo, nas mudanças sócio cognitivas, e nas consequências de se ter uma população alfabetizada.

AS PRÁTICAS DE LEITURA E A CULTURA ESCRITA Chartier define o leitor como “um caçador que percorre terras alheias” (2009, p. 77), pois o leitor tem liberdade de atribuir ao texto a sua interpretação e significação que pode não ser a que o autor lhe atribuiu. Porém, há limitações na liberdade leitora “derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura”. (CHARTIER, 2009, p. 77) Na evolução do livro, do rolo antigo ao códex medieval e do livro impresso ao texto eletrônico, ocorreram muitas interrupções, as quais influenciaram a história das maneiras de ler, o que compromete a relação corpo e livro, as diversas formas de uso da escrita e os níveis intelectuais que possibilitam a sua compreensão. O autor relata que a “história das práticas de leitura, a partir do século XVIII, é também uma história da liberdade da leitura. É no século XVIII que as imagens representam o leitor na natureza, o leitor que lê andando, que lê na cama” (2009, p. 78) em contraponto as ilustrações anteriores ao século XVIII que mostram os leitores em situações de leitura em ambientes isolados e imóveis. Por meio da imagem registrada pelo cinema e pela fotografia foi possível verificar que as práticas de leitura tornaram-se desarmônicas, menos monitoradas, portanto o leitor passou a ter práticas de leitura mais livres. O cinema e a fotografia aproximaram-se do homem comum, o que permitiu o acesso ao mundo social. Desta forma, “práticas não legítimas e mais espontâneas encontram-se representadas, enquanto, antes, elas não entravam nos códigos e temas da representação” (CHARTIER, 2009, p. 83-84) Entre os séculos XV e XVII, a leitura em voz alta era a forma como ocorria à apropriação das obras de qualquer gênero, do romance e do poema, às comédias humanistas e textos de história. A

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prática da leitura oralizada, descrita ou visada pelos textos, cria pelo menos na cidade, um vasto público de “ “ leitores” populares que inclui tanto os mal alfabetizados como os analfabetos e que, pela mediação da voz leitora, adquire familiaridade com as obras e com os gêneros da literatura culta” (CHARTIER, 1999, p. 124). Esta prática de leitura em voz alta era realizada para além dos meios letrados, porque bastava que uma pessoa soubesse ler e então muitos desfrutavam do texto. Em oposição à leitura em voz alta reconhece-se o progresso da leitura em silêncio, a qual significava um encantamento perigoso, pois o mundo do texto se aproxima do mundo do leitor e a imaginação do leitor é encantada pela leitura silenciosa. “As proibições multiplicadas pelas autoridades castelhanas contra a literatura de ficção devem, sem dúvida, ser compreendidas em relação ao temor que inspira uma prática de leitura que confunde, nos leitores, a fronteira entre o real e o imaginário”. (CHARTIER, 1999, p. 125) Por longo período, a leitura em voz alta não foi uma necessidade somente dos iletrados, pois também era de pessoas que pertenciam ao mundo da cultura letrada. “Do mesmo modo que a norma da leitura silenciosa e conduzida apenas pelos olhos, a segunda norma, aquela que separa a escrita da oralidade impõe o respeito das regras gramaticais e ortográficas, impôs-se tardiamente”. (CHARTIER, 2009, p. 100) A transformação do valor negativo ou positivo de comportamentos e de práticas se dá a partir da ampliação das exigências do processo de alfabetização. A escrita e a leitura se tornam mais complexas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta deste trabalho não se encerra com uma conclusão, o que se propõe é a reflexão sobre a cultura escrita e suas práticas de leituras, no contexto da escola e da cultura, com isso considerando as práticas educacionais e os processos culturais, pensar sobre a importância das práticas leitoras sobre o desenvolvimento humano, tendo como suporte a perspectiva sociocultural-histórica. O desenvolvimento humano é um processo cultural e de participação dos indivíduos nas ações socioculturais-históricas em suas comunidades. A manutenção da identidade cultural e o modo de vida de uma comunidade acontecem a partir da partilha, transmissão, conservação, elaboração do modo simbólico de geração para geração. A aprendizagem da leitura e da escrita deve preparar o indivíduo para sua participação social, cultural, política e econômica na sociedade em que convive, levando à melhoria da qualidade de vida, auxiliando na construção de conhecimento, mas também na compreensão do mundo, das mudanças sócio-cognitivas, e das consequências de se ter uma população alfabetizada. A cultura escrita, como um processo de signos culturalmente construídos, onde sua aprendizagem se caracteriza como um processo de desenvolvimento de funções intelectuais, mediado pelas influências socioculturais, pelos significados e pelas relações com os outros, salienta que o desenvolvimento do indivíduo não é a reprodução do desenvolvimento histórico da humanidade. Portanto, os estudos aqui apresentados demonstram que as práticas leitoras são importantes para o desenvolvimento humano, visto que a cultura escrita enquanto prática social contextualizada cumpre diferentes funções, entre elas: a comunicação, a transmissão de informações, a construção de conhecimentos, a interação entre indivíduos, sociedade, cultura e mundo.

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REFERÊNCIAS BRUNER, Jerome. Cultura da Educação. Portugal, Lisboa: Edições 70 LDA, 2000. CHARTIER, Roger. Leituras e leitores “populares” da renascença ao período clássico. In: CAVALLO, Guglielmo; CHARTIER, Roger (Org.). História da leitura no mundo ocidental. São Paulo: Editora Ática, 1999. _____. A aventura do livro: do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Editora UNESP, 2009. COOK-GUMPERZ, Jenny (et al.). A construção social da alfabetização. Porto Alegre: Artmed, 2008. ROGOFF, Barbara. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: Artmed, 2005.

“POR QUE AS PESSOAS NÃO LEEM?”: O PAPEL DAS MEDIAÇÕES “ESCOLA” E “FAMÍLIA” NO CONSUMO DO LIVRO POR ADOLESCENTES Marina Machiavelli* (UFSM) Filipe Bordinhão dos Santos** (UP)

A internet e as novas tecnologias de informação e comunicação (smartfones, e-books, e-readers, etc.) permitem inúmeras outras formas de uso e apropriação do livro, o que parece atrair, cada vez mais, a atenção dos jovens e reconfigurar os contextos de produção e circulação. Por conta disso, reconhecemos a importância de compreender a relação de adolescentes com esse produto midiático em meio ao contexto tecnológico. O livro é um “suporte midiático” (TRAVANCAS, 2013, p.2) visto como um objeto que carrega significados e que está presente nas práticas de consumo dos adolescentes. Petit (2008) reitera a ideia ao apresenta-lo como um objeto fundamental na construção dos sujeitos, principalmente na adolescência, fase em que as pessoas vivenciam certa instabilidade identitária e buscam referências de identificação e reconhecimento social. O termo adolescência é amplo e discutido em diversas áreas do conhecimento. Trata-se da fase que antecede à vida adulta e é caracterizada por mudanças hormonais, físicas e neurológicas nas pessoas. Nesse período, envolve também a formação dos sujeitos e de suas identidades, com o início podendo variar de acordo com o contexto social, cultural e econômico onde estão inseridos. Portanto, é entendida como um processo não apenas biológico, mas também social (OUTEIRAL, 2008, p.4), construído em diversos contextos de interação - amigos, família e escola. Na mídia, de modo geral, a adolescência é explorada historicamente. Os produtos midiáticos voltados ao público jovem abordam diferentes temáticas (sexo, saúde, beleza, etc.). O livro também tem destaque no cenário midiático e jovem. No Brasil, destacam-se escritores como Pedro Bandeira, Ana Maria Machado e Thalita Rebouças. Já os principais autores estrangeiros, que competem na cena brasileira, são: J. K. Rowling (“Harry Potter”), Nicholas Sparks (“Querido John”) e John Green (“A culpa é das estrelas”). Percebe-se o interesse por livros estrangeiros, principalmente os chamados best-sellers1. Dessa forma, para compreendermos a relação dos jovens com a mídia e seus produtos, precisamos identifica-los em seus cotidianos, onde estão “pautando tempos, espaços, relações e percepções” (JACKS et. al., 2014, p.5), sendo que essa aproximação permite que os processos e seus significados sejam descobertos. Com base nos Estudos Culturais, discutimos a comunicação não do ponto de vista exclusivo dos meios, mas dando espaço ao “circuito composto pela produção, circulação e consumo da cultura midiática” (ESCOSTEGUY. JACKS, 2015, p.38-39). Com isso, nossa intenção é propor aproximações com o cotidiano dos sujeitos para, assim, entender os processos comunicativos envolvidos no consumo do livro.

Bacharel em Comunicação Social – Produção Editorial pela Universidade Federal de Santa Maria, Brasil. E-mail: marinamachiavelli7@ hotmail.com ** Professor da Universidade Positivo, Doutorando em Comunicação pela UFSM, Brasil. Email: [email protected] 1 A temática de interesse teve uma mudança significativa com o chamado “sick-lit”, livros com enredos com personagens que sofrem com doenças terminais, personagens suicidas ou depressivos. O interesse por esse gênero é visto nas listas dos livros mais vendidos desde 2013. Disponível em: Acesso em: 27 jun. 2015. *

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Nesse contexto, ressaltamos a perspectiva latino-americana, que entende o processo de comunicação através da recepção. Salientamos que alguns autores tratam os termos recepção e consumo como sinônimos ou como partes indissociáveis do processo de apropriação e uso dos discursos e bens culturais. Ronsini (2011, p.77) ressalta que “os termos recepção e consumo são utilizados frequentemente como sinônimos para indicar o conjunto dos processos sociais de apropriação dos produtos da mídia”. Dessa forma, em nossa compreensão, recepção e consumo estão imbricados e podem ser tratados como etapas sequenciais do processo comunicativo, especialmente, se pensarmos no consumo cultural e simbólico dos produtos midiáticos. Então, tais perspectivas serão trabalhadas como complementares. A recepção para pensar a leitura/interpretação dos sujeitos sobre o produto/discurso midiático e o consumo para verificar os usos a partir da apropriação dessa mídia. Para isso, baseamo-nos em duas correntes latino-americanas de estudos: a do Uso social dos meios, de Jesús Martín-Barbero e a do Consumo Cultural, proposta por Nestor García-Canclini.

1. OS ESTUDOS DE RECEPÇÃO A PARTIR DA TEORIA DAS MEDIAÇÕES Para compreender as relações constitutivas entre comunicação, cultura e política, Martín-Barbero (2003) elaborou o (re)conhecido “mapa das mediações comunicativas da cultura”. O autor se refere às mediações como as experiências individuais tidas ao longo da vida e que são responsáveis por proporem negociações com o que é hegemonicamente apresentado pelo texto midiático. Nesse sentido, as mediações seriam “os lugares que estão entre a produção e a recepção” e que demonstram que “há um espaço em que a cultura cotidiana se concretiza.” (WOTTRICH; SILVA; RONSINI, 2009, p.3) A perspectiva das mediações considera que não podemos analisar a relação dos sujeitos com a mídia sem que haja aproximação e compreensão do contexto social. Afinal, elas “estruturam, organizam e reorganizam a percepção da realidade em que está inserido o receptor” (ESCOSTEGUY; JACKS, 2005, p.67), inclusive, quanto às experiências e práticas cotidianas de uso e apropriação dos meios. Como o mapa das mediações é bastante amplo e complexo do ponto de vista das diferentes dimensões acionadas na relação dos sujeitos com os conteúdos midiáticos (sociabilidade, ritualidade, tecnicidade e institucionalidade), delimitamos para esse trabalho a observação da mediação sociabilidade, tendo em vista a dificuldade de apreender todas elas de forma teórica e empírica. A socialidade, gerada na trama das relações cotidianas que tecem os homens ao juntarem-se, é por sua vez um lugar de ancoragem da práxis comunicativa e resulta dos modos e usos coletivos de comunicação, isto é, de interpelação/ constituição dos atores sociais e de suas relações (hegemonia/contra-hegemonia) com o poder (MARTÍN-BARBERO, 2003, p.17).

Para Wottrich, Silva e Ronsini (2009, p.8) essa mediação diz respeito aos modos pelos quais os indivíduos se constituem “através da família, da escola, da igreja, das comunidades, perpassadas pelas relações de gênero e de classe, além de questões étnicas”. Então, entendendo o contexto desses jovens, articulando as práticas cotidianas da família e da escola, que percebemos de que maneira o livro está associado a essas instituições. Pois, através dessas relações cotidianas, “se baseiam as diversas formas de interação dos sujeitos e a constituição de suas identidades.” (WOTTRICH; SILVA; RONSINI, 2009, p.4)

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2. PERSPECTIVA SOCIOCULTURAL DO CONSUMO As transformações no mundo contemporâneo fizeram dele um lugar onde o acesso aos meios, às informações e aos bens está mais rápido e fácil. Para Canclini (2010, p.67), “vivemos em um tempo de fraturas e heterogeneidade, de segmentações dentro de cada nação e de comunicações fluídas com as ordens transnacionais da informação, da moda e do saber.” O autor aponta ainda que mesmo entre uma diversidade de escolhas, encontramos “códigos que nos unificam”, permitindo uma relação que ultrapassa fronteiras e é capaz de promover trocas de experiências e interações sociais. Por isso, Canclini (2010) propõe “repensar o consumo”, considerando-o pertinente também para refletir e estimular a cidadania. Ou seja, pensar o consumo além da esfera econômica, e por vezes negativa, mas como algo que impulsiona as relações de convivência, compartilhamento de experiências e construção de identidades, pois “o consumo não é apenas reprodução de forças, mas também produção de sentidos” (MARTÍN-BARBERO, 2009, p.292.). Com base nisso, Canclini constitui uma teoria sociocultural do consumo, elaborando uma conceituação global, na qual incluiu os processos de comunicação e recepção de bens simbólicos. A partir disso, entende o consumo como o [...] conjunto de processos socioculturais que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Esta caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais consumimos como algo mais do que simples exercícios de gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais, tal como costumam ser explorados pelas pesquisas de mercado (CANCLINI, 2010, p.60).

Isto é, por meio do consumo é possível refletir sobre as ações e interpretações dos sujeitos, assim, superando a noção de que o “consumo é um ato individual, movido pelo desejo, no qual são exercitados apenas gostos pessoais” (JACKS, 1994, p.44). O consumo proporciona interações entre meios e sujeitos a partir da aproximação de gostos e desejos em comum, o que, consequentemente, produz e estimula o compartilhamento de significados.Com base nisso, Canclini (2010) desenvolve seis racionalidades2 de definição e análise do consumo. Para efeito de delimitação, aqui, optamos pela perspectiva relacionada ao “sistema de integração e comunicação” (item 4). Essa perspectiva não compreende o consumo como algo que divide e isola os sujeitos, mas relacionado a trocas de sentidos, pois através dele as classes se integram, em “un juego simultáneo de intercambios y distinciones [portanto] el consumo puede ser también un escenario de integración y comunicación”3 (CANCLINI, 1992, p.4)

3. PERCURSO METODOLÓGICO O presente trabalho caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa e de incursões empíricas através da investigação de uma escola pública, da cidade de Santa Maria/RS. O objetivo é compreender o consumo do livro por adolescentes, através da análise das mediações família e escola. Para isso, desenvolvemos um estudo de recepção, a partir do modelo teórico-metodológico das mediações (MARTÍN-BARBERO, 2003), especificamente da sociabilidade. Com a autorização da direção da Escola, a primeira etapa da pesquisa visou conhecer o cotidiano escolar e estabelecer os primeiros contatos com os pesquisados. As visitas foram realizadas durante seis semanas, entre julho e setembro de 2014, em dois turnos (manhã e tarde). Inicialmente, 1) lugar de reprodução da força de trabalho e da expansão do capital; 2) lugar onde as classes e os grupos competem pela apropriação do produto social; 3) lugar de diferenciação social e distinção simbólica entre os grupos; 4) sistema de integração e comunicação; 5) cenário de objetivação dos desejos; e, por último, 6) processo ritual. 3 ”um jogo simultâneo de intercâmbios e distinções [portanto] o consumo pode ser também um cenário de integração e comunicação." (CANCLINI, 1992, p.4) 2

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utilizamos a técnica de observação participante nos locais de circulação da Escola (pátio, corredores e biblioteca), aliada às conversas informais, com o objetivo de se aproximar e criar vínculos com os pesquisados. O registro preliminar foi feito através diário de campo. Num segundo momento, aplicamos questionários para o levantamento inicial de informações sobre os adolescentes (entre 14 e 18 anos)4 dos três anos do Ensino Médio da Escola. Foram aplicados cento e quinze (115) questionários, divididos em seis turmas, duas de cada série. O instrumento contou com dezoito questões, abertas e fechadas. As perguntas abertas tratavam do perfil dos jovens e as fechadas sobre o envolvimento dos alunos com o livro e a leitura. A aplicação foi feita durante o mês de agosto de 2014, em horário de aula, com autorização dos professores e da Direção. Os dados do questionário foram responsáveis pela construção da amostra do estudo, “um subconjunto representativo, com certo número de elementos, que são retirados do conjunto universal” (RICHARDSON, 1999, p. 160). A amostra foi definida de forma não-probabilística, baseada em critérios de conveniência, que considera a disponibilidade dos respondentes, e de intencionalidade, quando o pesquisador seleciona quem tem conhecimento do assunto estudado (DUARTE, 2009, p.69). Assim, os jovens (Tabela I) foram selecionados a partir do interesse e da disponibilidade demonstrada no questionário, assim como, pelo grau de envolvimento com o tema de nossa investigação. Tabela I - Perfil resumido dos entrevistados Nome

Idade

Série

Escolaridade do pai

Escolaridade da mãe

Profissão do pai

Profissão da mãe

Tanara

16

2º ano

Técnico em mecânica Ensino Médio

Funcionário Público da Corsan

Empregada Doméstica

Elisa

15

2º ano

Ensino Médio

Ensino Médio

Gerente Posto de Gasolina

Autônoma

João

17

3º ano

Ensino Fundamental Incompleto

Ensino Superior Completo (Pedagogia)

Agricultor

Professora Ensino Fundamental

Karina

14

1º ano

Ensino Médio Incompleto

Ensino Médio Incompleto

Motorista

Empregada Doméstica

O aprofundamento das questões sobre o consumo foi feito através da entrevista, semiestruturada e em profundidade. Segundo Duarte, a técnica da entrevista permite explorar “um assunto a partir da busca de informações, percepções e experiências de informantes” (2009, p.62), pois é uma abordagem dinâmica e flexível. Foram realizadas entrevistas semiabertas presenciais com questões semiestruturadas, através de um roteiro, aplicada aos quatro adolescentes. Buscamos identificar posicionamentos e ideias dos adolescentes acerca das práticas e dos usos do livro. O instrumento contou com setenta e quatro questões, subdivididas em quatro blocos (escola, família, acesso e consumo), que abarcaram o consumo do livro a partir das mediações escola e família. A seguir, apresentamos a análise das categorias (família, escola e consumo), as quais possibilitam entender e justificar as práticas de consumo adotadas pelos jovens a partir dos tensionamentos dos dados empíricos.

3.1. MEDIAÇÃO FAMÍLIA: O PAPEL DOS PAIS NA FORMAÇÃO DE LEITORES O papel da família é decisivo na motivação e no acesso aos livros para os adolescentes usufruam dos benefícios da leitura. Nesse sentido, Petit (2008, p.140) ressalta a “importância da familiaridade precoce com os livros, de sua presença física na casa, de sua manipulação” para que as crianças A participação foi condicionada à autorização dos responsáveis, via assinatura do termo de aceite e ciência, pois a maioria dos adolescentes era menor de idade.

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tenham contato, desde cedo, com o livro. Pois à medida que os pais têm experiências e práticas leitoras, estimulando essas atividades em família, torna-se significativo para o desenvolvimento do hábito da leitura e do gosto pelos livros. A participação familiar na vida dos quatro entrevistados é efetiva quanto à exigência pela dedicação aos estudos e a liberdade. É unânime entre eles a preocupação dos pais com o desempenho escolar e as atividades desenvolvidas pelos pesquisados, sendo que, geralmente, está associada ao desejo de mostrar ao filho que o estudo é importante para que tenham um futuro melhor. Os jovens afirmam que costumam conversar sobre literatura ou livros: tanto para pedir algum livro, como para contar sobre alguma leitura feita ou projeto que estão realizando na escola. Essa relação entre os membros da família parece ser de interesse recíproco, o que realmente demostra que os assuntos relacionados ao livro são comumente discutidos no ambiente familiar, fazendo parte da sociabilidade dos entrevistados. Em relação ao hábito de leitura em casa, todos afirmam que já viram seus pais lendo. Os pais de Elisa e de Karina costumam ler jornal, pois, segundo elas, preferem leituras rápidas pela falta de tempo, por isso não dedicam tempo ao livro. Destaca-se também o tempo dedicado a leituras religiosas (livros espíritas, revistas de Testemunhas de Jeová e Bíblia), como nas famílias de Elisa, João e Tanara. Os entrevistados tiveram contato muito cedo com o livro, tanto através da compra desses e gibis quanto, no caso de Karina e Elisa, das leituras de histórias feitas pelos pais quando crianças. Tanara destaca a figura do avô como alguém que lhe contava histórias. João, mesmo não lembrando se os pais lhe contavam histórias, recorda das idas à livraria: “no começo eles me levavam, mas depois eu já fiquei mais independente e ia sozinho na revistaria”. Visto isso, observamos que esses são pontos que podem ter sido decisivos no que se trata do gosto e incentivo pela leitura. Dessa forma, percebemos a participação dos pais dos pesquisados para o contato com os livros e o incentivo para a leitura. A situação fica evidente quando João reconhece que o interesse do jovem passa, necessariamente, pela referência familiar, incentivo o acesso ao livro (“Uma base familiar, uma base de incentivo, não familiar, de incentivo. Eu acho que talvez eles não [...] os pais deles ou os amigos também não leem e eles não se interessam, acham outras atividades”). Portanto, a família está relacionada a esse processo, pois é mediadora essencial para que o livro tenha relevância e importância na vida dos jovens. Mesmo não tendo condições de adquirir exemplares, os pais podem ser responsáveis por despertar a curiosidade e o interesse pelos livros.

3.2. MEDIAÇÃO ESCOLA: A RELAÇÃO DO AMBIENTE ESCOLAR COM O LIVRO E A LEITURA Na categoria escola identificamos a relação que a instituição tem com a leitura, ao focar em projetos na biblioteca, espaços de leituras e outras atividades relacionadas ao livro e ao incentivo à leitura. Tais ações são relevantes à formação dos jovens, pois, muitas vezes, eles não têm acesso ao livro em casa, não costumam ver os pais lendo e nem adquirindo livros, enquanto na escola há possibilidade de terem contato, discutirem sobre literatura e, em muitos casos, desenvolver o interesse pela leitura. Em geral, os alunos consideram a escola “boa”, sobretudo, pela direção “se empenhar”. Todos eles se referem à infraestrutura, quando questionados sobre a qualidade da escola, embora tenham opiniões distintas. Elisa defende que a escola está boa, pois a direção não deixa faltar professores. Para Karina, ainda que a estrutura seja precária, considera que a escola é capaz de preparar os alunos para o vestibular. Em relação aos projetos sobre leitura desenvolvidos pela Escola, Elisa afirma não lembrar de nenhum. No entanto, Elisa, Tanara e João participam do projeto de redação, destinados aos alunos de segundo e terceiro ano, que é realizado no turno inverso das aulas como forma de preparar os alu-

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nos para o vestibular e o ENEM. Karina que não participa desse projeto, por estar no primeiro ano, relata que participa de outros projetos, mas que nenhum está voltado ao livro. Além disso, Tanara considera que os projetos são “coisas muito superficiais e chatas” e que a escola deveria dar mais atenção aos projetos de leitura. Ainda assim, todos compreendem que os projetos existentes são uma maneira de interação proporcionada pela Escola e reconhecem a importância. Nesse sentido, os pesquisados entendem que a mediação escola é um espaço motivador, que deveria introduzir atividades que abarcassem a leitura, o debate, o diálogo entre os alunos, ou seja, que potencialize ainda mais a troca de experiências. A realidade da Escola apresentada pelos entrevistados merece destaque pelo fato de que pode ser um reflexo do sistema educacional brasileiro e da falta de investimentos em educação. As opiniões demostram uma postura crítica dos jovens, provavelmente, consequência das discussões cotidianas feitas em casa e do incentivo ao estudo que recebem dos pais, ou seja, da sociabilidade da mediação família, o que demonstra o quanto refletem sobre o ambiente escolar, no qual estão inseridos, e se preocupam com a realidade. A necessidade de haver mais projetos que envolvam o livro, conforme apontam os entrevistados, é reiterada quando comentam que os livros que marcaram sua trajetória na escola estão relacionados aos trabalhos realizados e as experiências compartilhadas com os colegas no espaço escolar. Esse é um aspecto relevante diante da situação atual dos jovens no Brasil, que imersos em um mundo de novas tecnologias e de relações via redes sociais digitais, encontram na escola, enquanto instituição educacional, um lugar capaz de promover atividades que fomentem a leitura e sirva de ambiente de socialização. Os alunos demonstram interesse em conhecer novos leitores, sentindo falta dessa oportunidade que pode ser conferida pela escola. Portanto, veem nos projetos grandes aliados, pois estes proporcionam a troca de ideias, estabelecendo novas práticas e relações com o livro. Por estarem na adolescência, os alunos tem um “grande desejo de serem ouvidos, reconhecidos; um grande desejo de troca e de encontros personalizados” (PETIT, 2008, p.58). Tal anseio fica evidente, quando ressaltam a importância dos projetos por serem “gratificantes” (Karina) e por se sentirem “orgulhosos” (João) por proporcionar aos colegas e amigos novas experiências. Assim, percebe-se que, é através da visibilidade adquirida e valorização que eles se reconhecem como sujeitos de responsabilidades no espaço escolar. Os quatro entrevistados, ainda que acreditem nessa relação, apontam que a escola não tem muito envolvimento com o livro, que não seja o do espaço da biblioteca e alguns projetos específicos, tornando superficial o estímulo à leitura. Os alunos observam que os professores, principalmente de literatura, são os que mais instigam a leitura. Ao mesmo tempo, sentem falta de atividades voltadas especificamente para o livro, salientando que não querem nada “forçado”, esperam algo que envolva os alunos.

3.3. CONSUMO: USOS E APROPRIAÇÕES DO LIVRO A categoria “consumo” trata do uso e da apropriação do livro pelos adolescentes. Para isso, nos embasamos nas mediações escola e família a fim de compreender de que modo a sociabilidade dos sujeitos medeia a maneira como esses jovens fazem uso e se apropriam do produto midiático, o livro. Os entrevistados concordam que a leitura é muito importante para o crescimento dos indivíduos, tanto para aumentar o vocabulário e melhorar a escrita quanto para conhecer novos lugares através das histórias contidas nos livros. Dessa forma, isso evidencia a apropriação do livro feita por eles ao incorporar o conteúdo do discurso midiático nas suas práticas cotidianas. Tanara acrescenta que por meio da leitura se pode mudar o ideal das pessoas, pois as histórias estão ligadas aos momentos do seu cotidiano, por exemplo, quando trata do assunto religião:

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Ela praticamente muda todo teu ideal, porque, pelo menos pra mim mudou. Sei lá, tipo, ela foi fundamental pra mim, eu não vejo um dia assim que eu não lembre de alguma coisa que aconteceu e eu lembre de algum autor [...] eu fico pensando “porque as pessoas não leem?” tipo, as vezes as pessoas tem um horror de livro em casa e não lê, eu fico pensando: “o que que elas tem na cabeça sabe” (TANARA, 16).

A importância dada ao livro é evidente quando os entrevistados afirmam, inclusive, guardar os seus livros no quarto, em um espaço separado dos demais da casa. O fato demonstra um forte apego e sentimento de posse, estabelecido a partir de um valor afetivo com o objeto. Portanto, isso revela o cuidado e o apreço que esse produto midiático tem em suas vidas. Os entrevistados dedicam todos os dias algumas horas à leitura. De modo geral, suas falas demonstram a inserção do livro no cotidiano, como um objeto que acompanha as rotinas, compondo uma série de ritualidades cotidianas. De forma quase que natural, o livro aparece como um companheiro quando as entrevistadas assumem leva-lo sempre na bolsa. Podemos verificar que os livros favoritos são, na sua maioria, Best Sellers, o que, mais uma vez, revela a grande participação da mídia na vida dos adolescentes, pautando muito do que eles consomem. A mídia se mostra presente tanto para a venda do produto quanto por ele em si ser um aliado, uma forma de apoio, através das temáticas abordadas. Por isso, não por acaso, inúmeras histórias de muitos livros tratam de temas juvenis, sendo um processo de interação recíproco, o livro busca na cotidianidade aspectos para construir os seus discursos e, ao mesmo tempo, os entrevistados utilizam isso, que é “redesenhado” pelo livro para formarem suas identidades. Esses aspectos ressaltam que a comunicação e a cultura/sociedade não podem ser pensadas de forma isolada. Por mais que existam as vantagens dos livros digitais e das ferramentas de leitura, os jovens preferem o impresso por acreditarem que algumas dessas ferramentas atrapalham a leitura, por exemplo, os comentários feitos anteriormente a algo que vai acontecer, o que pode comprometer o interesse ou gerar desmotivação para leitura. Percebemos que o digital ainda é recebido com receio entre os leitores da amostra, indicando que o livro impresso está longe do fim, sendo reforçado pelo interesse dos entrevistados em ir a livrarias, bibliotecas, carregar o livro, preferindo o contato com o livro e o seu manuseio.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base nas informações da pesquisa teórica e de campo, percebemos a importância do livro como produto midiático na vida dos adolescentes, interferindo na construção de suas identidades. Em todas as fases da pesquisa, detectamos que os pesquisados mostram-se envolvidos cotidianamente com o livro, seja nas práticas de leituras individuais ou nas atividades escolares, sendo um objeto ligado ao processo educacional e aos interesses pessoais. Na mediação família, observamos que ela ganhou proporção ao longo da pesquisa, o que revela uma participação decisiva para que os filhos desenvolvam o gosto pelo livro e pela leitura, sobretudo, quando isso faz parte da rotina familiar. Os pais são responsáveis, em primeira instância, por legitimar essas práticas visto que a família é primeiro espaço para formação da sociabilidade dos sujeitos. A escola, como agente de formação dos sujeitos, tem papel fundamental na motivação e incentivo à leitura sendo responsável por consolidar esse hábito. Nesse sentido, concluímos que escola ainda tem muito potencial para contribuir no que diz respeito ao consumo do livro. Entretanto, ressaltamos que o fomento à leitura não depende somente da escola e dos professores, mas também de maior atenção do Governo em questões estruturais e de formação desses mediadores, para que estejam preparados com didáticas que instiguem a participação do aluno e proporcione novas experiências.

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Nesse sentido, as informações coletadas junto aos entrevistados reiteram a perspectiva de Canclini (2010), norteadora da investigação, pois compreendemos que o consumo está relacionado a trocas de sentidos, através de experiências compartilhadas por meio do livro, que podem ser percebidas no cotidiano dos adolescentes, desde as rotinas de leitura no ambiente familiar até as conversas informais relacionadas ao livro e as leituras na escola. Assim, a posse do produto midiático é fundamental para a confirmação de significados e valores comuns (CANCLINI, 1992), pois serve como elemento de pertencimento e integração dos sujeitos a determinadas práticas. Por fim, consideramos o livro um produto midiático decisivo na construção social dos adolescentes e reconhecemos a importância das mediações no estímulo ao comportamento leitor. Dessa forma, salientamos que a pesquisa não encerra a questão e, dessa maneira, fica aberta para trabalhos futuros que contemplem o consumo de livros por adolescentes.

REFERÊNCIAS CANCLINI, N. G.Los Estudios sobre Comunicación y Consumo: El trabajo interdisciplinario en tiempos neoconservadores. Dialogos de la Comunicación, n.32. Lima: FELAFACS, 1992. ______. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010. DUARTE, J. Entrevista em profundidade. In.: DUARTE, J.; BARROS, A. (Org.). Métodos e técnicas de pesquisa em comunicação. São Paulo: Atlas: 2009. ESCOSTEGUY, A. C. JACKS, N. Comunicação e recepção. São Paulo: Hacker Editores, 2005. JACKS, Nilda. et al. Jovem e consumo midiático: dados preliminares do estudo piloto e da pesquisa exploratória. Anais. XXIII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal do Pará, Belém, maio de 2014. MARTIN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. 2. Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003. P. 372. OUTEIRAL, J. MOURA. L.; SANTOS, S. M. V. (orgs). Adultecer: A dor e o prazer de tornar-se adulto. Rio de Janeiro: Livraria e editora Revinter Ltda, 2008. PETIT, M. P. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Ed.34, 2008. 192 p. RICHARDSON, Roberto Jarry (et al). Pesquisa social: métodos e técnicas. São Paulo: Atlas, 1999. RONSINI, V. M. A perspectiva das mediações de Jesús Martín-Barbero (ou como sujar as mãos na cozinha da pesquisa empírica de recepção). In: GOMES, Itânia; JANOTTI JUNIOR, Jeder (orgs.). Comunicação e Estudos Culturais. Salvador: EDUFBA, 2011. TRAVANCAS, I. O livro como produto midiático e os estudos de recepção. Contratempo, Rio de Janeiro, n. 26, p.87-105, 2013. WOTTRICH, L.; SILVA, R. C.; RONSINI, V. M. A Perspectiva das Mediações de Jesús Martín- Barbero no Estudo de Recepção da Telenovela. Anais. XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba/ PR, 2009.

EXPERIÊNCIAS DIONÍSICAS NA ARTE/EDUCAÇÃO: FOTOPOESIA ENQUANTO CUIDADO DE SI Michele Pedroso do Amaral* (UCS)

1. PRIMEIRO PERÍODO: DA REPRESENTAÇÃO E a aula iniciou, “Só podia ser professora de Arte mesmo, olha que bonito! Eu até que queria saber fazer isso, mas sabe, tem que ter o dom...” E assim início estes breves escritos, de modo muito inconveniente, eu espero, citando uma das falas que tenho ouvido ao longo de minha carreira como professora de Arte. Mas ao ler isso, talvez já fosse possível de se desconfiar, quando no cenário educacional brasileiro, situando especificamente essa Disciplina, tem-se acompanhado certos discursos de verdade, que insistem por inaugurar os profissionais da área, como aqueles detentores dos dons divinos do saber fazer isso e aquilo, incumbindo-os nesses jogos, a assumirem as responsabilidade por criar a fachada dos eventos festivos do calendário escolar, que devem ir ao encontro do senso comum, dos estereótipos moralmente nacionalizados, como podemos ver nas comemorações envolvendo o dito dia das mães, do índio, páscoa. E, nesses impasses, diante das tantas incumbências e responsabilidades cristalizadas, percebe-se a crise diante de um sistema modernista de educação, que associados a ordem da forma, do belo, da representação da realidade, não dá conta da formação estética dos sujeitos, nem mesmo de sua dimensão ética, tendo em vista que a necessidade pela verdade de alguns indivíduos envolvidos com a Arte/educação, colabora para a criação de ambientes artisticamente coloridos, afogados em um aquário de sua própria saliva, “Em cada época, os contemporâneos encontram-se assim fechados em discursos como em aquários falsamente transparentes, ignoram quais são e até que existe um aquário”. (VEYNE, 2011, p.19) 1. E agora? Perguntaria então, resta dar continuidade (como se essa fosse possível) aos tantos desenhos livres pedagogizantes (sem esquecer de usar as cores tais quais os objetos correspondem) que ainda protagonizam nas aulas de Arte, e entregá-lo ao final do período? Obviamente, não. Mas, como pensar a Arte/educação como momento de cuidado de si, de experiência dionísica, para além da superficialidade de um ensino que se rende a necessidade de representar e figurar? São essas algumas das problematizações discutidas aqui, com o sútil cuidado de não se apresentarem enquanto outros discursos sobre outras verdades, mas respingar, resistir, destruir o que se diz verdade.

Brasileira, mestra em Educação pela Universidade de Caxias do Sul (2014). Graduada em Licenciatura em Artes Visuais (2008) pela mesma Universidade (UCS). Formada no curso Normal (Magistério – 2008). Possui experiência na área de Educação e Artes, nas quais atua enquanto artista visual e arte/educadora. Atualmente exerce a função de professora de Artes Visuais pela Rede Municipal de Caxias do Sul/RS. Pesquisa, sobretudo, aspectos relacionados à Educação; Arte/educação; Estudos foucaultianos em Educação; Experimentações com videoarte; Juventude e Estética. E-mail: [email protected] 1 Paul Veyne nesse texto, em referência aos estudos de Foucault, discute entre outros conceitos o de verdade e discurso, ressalta a importância de nos deslocarmos do aquário, que nos prende as verdades que valoramos. *

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2. SEGUNDO PERÍODO: DO VERDADEIRO FALSO “Então pede para a professora de Arte! Pois você viu a decoração junina, que ela fez no saguão com as bandeirinhas daquele artista famoso? Ficou maravilhoso!” No ensino aprendizagem de Arte, há certas verdades fixas, especialmente as que giram em torno do que se espera do perfil da profissão do docente de Arte, situados em uma sociedade que tem naturalizado que essa área de conhecimento, seria quase que descartável, pois a formação dita científica, teria mais importância, já que prepara para algo (tecnicista). Dessa forma, pode-se perceber, nesse tipo de lógica -associado à fazeção principalmente para o mercado de trabalho- a necessidade humana por querer encontrar na educação e especificamente no ensino das artes, a sua utilidade social, considerando tanto os profissionais da área como aquele(a) que a priori são os sabedores da fazeção, tanto como a Disciplina (seu currículo, grade de conteúdos, objetivos, regulamentações legislativas entre outras instâncias) para que haja uma função gregária, que se encaixe nas relações de poder. Considerando, por exemplo, a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que regulamenta a educação no País, que em sua última resolução, determina a obrigatoriedade do ensino da área ao longo da educação básica de modo que “[...] promova o desenvolvimento cultural dos alunos.” (LDB 9.394/96, p. 23), pode-se questionar de que ordem trata-se. Que cultura é essa? Que culturas se excluem ou se diz incluir? Poderia ser a dos indígenas, incluindo-os com a realização de colares de sementes e massas industrializadas? Do carnaval, e da apelação sexual perfeitizada sobre os corpos femininos, que dançam ao som de enredos que tratam, na maioria, de personagens rotulados mártires? Ou ainda, promove-se culturalmente os estudantes, ao pintar narizes e pendurar orelhas de coelhinhos, ao fazer o teatro da cena de presépio, ou ao grafitar paredes do prédio da escola, sob o argumento de representar a street art? Da utilitarização das artes, em especial das visuais, que não raras vezes são mencionadas em xerox, entregues para colorir, ou mutiladas em releituras, em prol do que se define desenvolvimento cultural? Outra situação, que ao meu ver parte de discursos como esses, é o do que se considera como momento de leitura de imagens de arte na escola2. Tenho acompanhado algumas práticas de leitura de imagens de artes, em algumas pesquisas que estão em andamento no Município de Caxias do Sul/ RS, sob minha iniciativa. Nessas, geralmente os alunos são direcionados a apreciar a imagem (ou obra) pelos professores, que formulam determinadas perguntas (sobre a técnica utilizada, dos elementos visuais presentes, etc.) com a expectativa de certas respostas, e, isso quando há espaço para tal. Em outros casos, não excluindo o primeiro, os alunos olham para imagem por alguns instantes, e na sequência o “detentor da verdade” (professora, professor), oraliza sobre aspectos essencialmente das intenções do artista, o que, apesar de ter uma finalidade mais crítica, também, ao meu ver, acaba direcionando os momentos de experiência estética (LARROSA, 2002) do sujeito que está interagindo com a imagem, ao o que ela representa, pois o desejo de saber por uma perspectiva nietzschiana, o que sua essência (entendida aqui como algo que está fora da própria imagem, e não como sua potência conceitual e metafórica) vai ao encontro da necessidade de figurar, de procurar por respostas cujo somente o artista (criador) poderia explicar. Assim, percebe-se que nesses jogos as crenças, com a ideia de resguardar e garantir o tal do desenvolvimento cultural, são discursos construídos: verdades temporárias, falsas. Contudo, não há verdades por serem descobertas pelos profissionais da área, para n(os) liberar finalmente das “artimanhas do destino, escrito por diabos travessos”, o que há, é exatamente o agora da prática docente, que deve ser entendida como acontecimento, enquanto espaços de resistências. Para aprofundamento de tal problematização, sugiro a leitura de minha dissertação de Mestrado: “Educação estética pela mediação de leitura de imagens de obra de arte”, disponível em:< https://repositorio.ucs.br/jspui/bitstream/11338/925/1/Dissertacao%20Michele%20 Pedroso%20do%20Amaral.pdf >.

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Assim, para esclarecer o que se entende sobre a relação entre cuidado de si e experiência dionísica, retoma-se o célebre filósofo Nietzsche, que alerta sobre a importância de relativizar o que se toma por verdades, já que essas são criações (lembra-se do aquário?), o que não é diferente na educação e em suas práticas, pois o que é valorado e definido como certeza sobre a profissão docente,3 por exemplo, não são verdades plenas. Na obra “A origem da tragédia”, Nietzsche cria algumas considerações filosóficas acerca da tragédia na Grécia antiga, contrapondo, a partir das divindades gregas Apolo e Dionísio, o apolíneo (enquanto representante do mundo da aparência e da medida) com o dionisíaco, ou seja, da dimensão do desmedido, do não fixo, da embriaguez, das possibilidades do vir-a-ser versus a logicidade do pensamento racionalista, o que se relaciona diretamente com o modelo de educação que temos no Brasil. Já a questão do cuidado de si, resgatado por Foucault, em referência aos gregos, em que, por um processo de distanciamento, o sujeito situa-se diante de si mesmo e assume para si suas próprias atitudes e decisões, de maneira atenta e duvidosa, seria um modo de respingos para constituir uma estética da existência. Por isso, o que se propõe aqui, de maneira muito célere, é uma provocação: Seria possível pensar e subverter a Arte/educação, através de respingos construídos no ensino e aprendizagem em Arte, por uma perspectiva de experienciação dionísica, enquanto cuidado de si?

3. TERCEIRO PERÍODO: DO INDIZÍVEL “E agora professora! Quem fará o coelhinho da páscoa? Ou, o que será da apresentação de natal? E a decoração da escola? Sabes que eu não tenho o dom para isso! Ora, você que é a professora de Arte!” Assim, de que modo pode-se pensar a Arte/educação, seus profissionais, sem enquadrá-los a certos padrões, que reduzem a dimensão da criação, diante da insistente vontade de verdade e transvalorar essa necessidade de representação da própria profissão, como um espaço de deslocamento dionisíaco, de subversão de si mesmo? As experiências estéticas com artes, sejam elas Visuais, da Dança, do Teatro, da Música, enquanto potências capazes de provocar e transformar nossas percepções e ações no mundo, podem se deslocar à vontade pelo saber das verdades, pois a obra de arte não anseia ser representativa, e tampouco o seu ensino deveria o ser. As artes contemporâneas, enquanto potência para o deslocamento sensível, nos alfineta a constituir uma existência da não fixitude e linearidade, dionísica, de relação de cuidado consigo mesmo, potente. Foi assim que, através do que se denominou de apreciação dionísica da arte, proposta a um grupo de alunos (cerca de sessenta jovens) pertencentes ao 6º e 7º anos do Ensino Fundamental, durante o segundo semestre de 2015, de uma escola pública de Caxias do Sul/RS, o convite para participarem de uma pesquisa (provocada por mim), a partir da mediação de leitura da obra de arte contemporânea (no caso do vídeo): Mangue I, de 2011 (que se encontra na íntegra no link ) com duração de 3 minutos e 28 segundos, do artista plástico performático brasileiro João Penoni. A pesquisa ocorreu durante algumas aulas da disciplina de Arte (por mim ministrada), em que os estudantes foram convidados a ler a produção citada anteriormente. Após, em tom de discussão aberta, foi proposto que os alunos dialogassem sobre as sensações, reflexões que o vídeo teria viabilizado, neste momento interagiu-se com os jovens, lançando questões, entre as quais se destaca: Sobre as possibilidades pelas quais pode-se cristalizar certas verdades sobre a profissão docente no cenário educacional, sugiro a leitura do artigo: “A criação de verdades sobre a profissão docente: a salvação e o paraíso na educação”, publicado nos Anais do evento XX SIeduca – Seminário Internacional de Educação – Saberes, Alegria e Convivência: a Reinvenção da Escola em 2015, disponível online, em que se discutem algumas dessas questões.

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– O que acharam sobre o vídeo? – A obra lhes causou alguma (s) sensação? Qual (is)? – Provocou lembranças? – É possível estabelecer algumas relações com sua vida? Quais? – De que modo podemos relacioná-la a nossa existência? Em outro encontro, após retomarmos e assistirmos novamente ao vídeo, alguns dos alunos foram convidados a criar uma poesia/fotografia: fotopoesia, que “conversasse” com essas experiências que o vídeo havia provocado, desafiados a voltarem-se para si mesmos e a pensarem sua própria existência, como acontecimento e não preparação para a vida adulta. Nesse norte, a fotopoesia foi considerada um espaço potencial de cuidado de si, subvertedora de certas verdades identitárias, presentes nas práticas socioculturais sobre a existência e juventude. A seguir apresentam-se algumas das fotopoesias criadas pelos jovens (Fonte: acervo pessoal da autora -2015-). A identificação dos autores das poesias corresponde ao primeiro nome, idade e ano escolar. Viver para mim





A vida é como uma estrada, onde há movimento e confusão e nem mesmo as pessoas sabem onde estão! Vivem, prejudicam e no quebra mola, a grande decisão, entre a vida e a morte da própria poluição... Diga parabéns a quem o criou por pelo menos ter dado seu sangue para seu coração... Poluição, guerra, violência... óh pátria, a nossa nação... Tire isso, ou irão morrer, fome, injustiça dor e angústia... alguns ainda passam por tudo isso, movimentam-se como uma folha, três para frente e um para trás. Escolhe a calçada e não a rua! Troque sua posição, de solidão para amizade, de fome para contribuição. Assim, o sofrimento e a dor, vamos trocar pelo amor? (YASMIN. 11. 6º).

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Vivo



Nessa vida não quero sentir nada, só viver num país mais justo, conviver com pessoas e amar... Quero cantar pelo mundo, saber viver as consequências que escolhi para mim.... Subir... só subir e amar... (LARISSA.12. 6º). Sem fronteiras





Viver para mim é voar sem fronteiras, correr sem ninguém me impedir como barreira! Viver minha vida como uma história que escrevo, sem depender de ninguém, sem ficar presa... Viver para mim é não acreditar em tudo o que se vê, ouve... É viver sua própria história, lembrando que amanhã teremos a vitória, por termos deixado de depender e começado a viver! (ANA. 13. 7º).

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Sensações



Essas sensações horríveis que me fazem sentir medo, vendo tudo isso, sendo destruído e tudo em volta de mim... Não quero ver nem ouvir, vamos deixar o tempo dizer o que vai acontecer... Dentro de mim às vezes pego fogo de raiva, ou às vezes, morro de rir. Só quero viver em “paz”. (ROSANE. 13. 6º). Vida



A vida é sempre alegria, depende de seu ponto de vista! Você tem que arriscar para ver no que vai dar, quem não arrisca, não petisca! As coisas nem sempre são boas, pois a vida é uma caixinha de surpresas, que trazem: alegrias ou tristezas! Siga sempre adiante, mas seja prudente, lembre-se: nunca desista! Mas vá sempre em frente! (MAICON. 11. 7º).

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Ser feliz

Viver é sentir que você não é um peso no mundo, viver é sentir que há uma razão... Viver é entender o certo do errado, saber a hora de parar. Viver é ser feliz, viver é amar! Viver é valorizar as pequenas coisas que há na vida... (AMANDA. 14.7º). Sentir



Viver é ser livre a cada momento, com felicidade e harmonia. Ter e ser amigo, se divertir, nunca desistir de seus sonhos! Viver com suas escolhas! Voar, Livre... (GUILHERME. 13.7º). Meu olhar. Minhas leituras... Assim,

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O brilho de seus olhos castanhos não eram suficiente para serem reconhecidos, nem o cheiro marcante do suor que lhe escorria pelas laterais da face. Não adiantava, nada lhe seria mais familiar, quanto a sensação de não se saber. O som da chuva agredia-se com o solo, mas ela não sabia o que era sentir. Ao abrir os olhos, mal pudera engolir a saliva, que os olhares de surpresa ao seu redor a aprisionavam. Como gritar em um corpo que não grita, como dizer chega, quando a própria vontade lhe cala? As palavras, apesar de não saber a razão, ainda lhe eram conhecidas. Os sons a sua volta lhe falavam de um tempo que não sabia onde foi parar. Chega! Queria suplicar a si mesma, chega de razões que não lhe cabem. Foram os instantes mais intensos de sua lembrança de existir, agora restava-lhe a memória, tão vazia quanto os poemas em campos de esquecimento. Pois não se trata de mais uma história de vida, daquelas marcadas de moral e sentidos maiores, trata-se antes do não assunto, do espaço entre o querer e o não querer... existência? Angústia? Vida? Não se saberá jamais... Quisera ela poder voltar ao tempo em que seus olhares ainda procuravam pelas fadas e os duendes das folhagens. Queria, no fundo mesmo, voltar a uma instância de si mesma, enquanto alguém que se via em potencial indeterminado, uma criatura sem cabo nem rabo, poeira a pairar no céu. Seu corpo mal sentia a cama onde estava, sorte, eu aqui lhes diria. Cama suada, mal trocada, que até a ferrugem despedia-se. Algumas coisas esvaem-se como nunca houvessem existido. Outras intentam o permanecer, como se fossem guardadoras de um grande segredo. As últimas por sua vez, apresentam-se robustas, de faces lisas e geometrizadas, conquistando de fato, o sagrado espaço entre as possibilidades lógicas e o permanecer saberio. Mas, se olhares, com olhos de quem nunca escutou ou viu, perceberás o artificie da forma. Líquida, sem encontro ou paredes, tão molhada quanto o mais seco dos ventos; indefinida tanto quanto aquilo que não encontra representação. Existências de formas, que circulam entre caminhos desencontrados, que se encontram, cruzam, ultrapassam, rompem, corrompem, desnudam e vestem-se daquilo que chama-se vida. Preso a forma do reflexo, ao inverso daquilo que se vê, os ligamentos identificam-se com as aparências, tornando-as o permanecer de si mesmo, orgizando num crescente desespero ao som dos nem timbres, da virtude suposta pela própria vontade. Ora aqui, ora ali. Lá. Em si. Em mim, nem aqui ou acolá... despedaça-se cada conceito de epiderme, da sede babilônica pelo gerar; do útero infértil, preso na face das relvas amanhecidas de pastos, sedentas por bocas desdentadas de bezerros irmãos. Pois, ei! Corra, corra, eles nos veem! Essa era a sensação, fuga com adrenalina e prazer! Nada mais corrompedor do que apertar a campainha e chamar por aquele que não quer nos ver. O susto e surpresa, ele esperava, mas não queria ver, já que o que queria não era suficiente para os olhos de quem quer morrer... Você espera lá. Súbito amanhecer, curioso sobre a vida daquele que vai do visto e seu querer. Sabia que estava por todas as raízes, e as aves de pescoço torto. Sim, a forma ainda está aqui, delimitando para a pequenez que me murmuram. Uivo então! Sugo de volta o não espaço... (Escritos -provocados pela leitura do vídeo- de quem se desafia a pesquisar cuidando-se! Michele Pedroso do Amaral).

REFERÊNCIAS AMARAL, Michele Pedroso do. Educação estética pela mediação de leitura de imagens de obra de arte. 2014. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2014. LARROSA, Jorge Bondia. Notas sobre o saber da experiência. Revista Brasileira de Educação. Trad. de Joao Wanderley Geraldi, n. 19, p. 20-28, 22 jan./fev./mar./abr. 2002. VEYNE, Paul. Tudo é singular na história universal: o “discurso”; Só há a priori histórico; O ceticismo de Foucault. In: _________. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. PENONI, João, Mangue I, 2011. Disponível em:< http://www.penoni.com/index.php?/video/mangue-i/>. Acesso em: 12.junh.2015. PORTAL do MEC: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96. Disponível em: . Acesso em: 31.jul. 2015.

O DIREITO DEMOCRÁTICO À IGNORÂNCIA: SÃO OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS EM LÍNGUA PORTUGUESA SUFICIENTEMENTE PROMOTORES DO LETRAMENTO? Micheline Moraes* (UniRitter) Márcia C. Zimmer** (UniRitter)

1. O TRATAMENTO DADO AO ENSINO DA LÍNGUA: UMA PROVOCAÇÃO Sem desejar trazer exemplos generalizantes, infundados ou inverossímeis e muito menos fazer ponderações definitivas sobre o assunto, acredito poder fazer aqui algumas singelas considerações sobre a realidade escolar no que tange ao ensino da língua materna. Apesar dos muitos avanços, o ensino da Língua Portuguesa, como se sabe, ainda é visto por alguns (comunidade escolar, sociedade, autoridades...) de uma maneira bastante equivocada. Há até mesmo professores que demonstram, na ânsia de fazer o melhor, pouco saber sobre tudo o que envolve, de fato, ensinar Língua Portuguesa. Letramento é ainda um conceito desconhecido por muitos membros da comunidade escolar e por profissionais da área de educação em geral. Infelizmente. Basta pedir que usem o termo em uma frase que aborde algo no seu fazer profissional. Isso ainda ocorre por mais que tantos livros e textos sobre o assunto tenham sido lançados, por mais que tanto esforço tenha sido dispendido pelos especialistas no assunto. Ainda se ouve muitos profissionais da área da educação, os próprios alunos, sem contar os pais e responsáveis, queixarem-se das letras dos alunos, da ortografia, dos problemas gramaticais como se isso fosse uma questão fundamental no ensino da língua. Ao ouvir isso, nos lembramos de nossas redações escolares, produzidas na década de 80, em que o único comentário escrito era... Não havia comentários! Apenas a nota e alguma correção do ponto de vista das regras convencionadas para a expressão escrita, com muito raras exceções. Reforçando esse quadro, infelizmente também há sempre alguém disposto a comentar, como se especialista fosse, sobre a necessidade de se apresentar uma reforma ortográfica para “facilitar” a escrita do português ou que a mais recente teve por objetivo unificar o português, como se a mesma ortografia de vocábulos de um idioma fornecesse essa garantia de unificação. Todos os que falam o idioma se colocam a tecer comentários levando em conta que, como falantes, por dominarem algumas regras da língua (às vezes mal e parcamente), podem se considerar conhecedores do idioma, das suas ferramentas, das questões cognitivas que envolvem o aprendizado da fala e da escrita de qualquer língua. Não raro, também os veículos de comunicação se colocam a fazer considerações sobre a língua. Por vezes, chamam os especialistas para lhes dar crédito. Tudo isso como se também não houvesse vertentes e, de certa forma, questões de política linguística envolvidas nas colocações dos profissionais ouvidas passivamente pela massa... A estrutura, o conteúdo e a clareza, por exemplo, seguem não sendo alvo da conversa dos profissionais e autointitulados “conhecedores” do idioma. Como resultado, temos alunos chegando às universidades sem saber escrever com um mínimo de encadeamento lógico, exibindo em suas produções uma nefasta falta de clareza. Os professores, por sua vez, compreendem essa realidade como fruto de um sistema incapaz de fazer diferente enquanto

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Mestranda em Letras/UniRitter. Mestre e Doutora em Lingüística Aplicada pela PUCRS; professora do Programa de Pós-Graduação da UniRitter.

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rogam para que a falta de encadeamento e concatenação das ideias no papel não espelhe, na verdade, a falta de organização de raciocínio. Esses podem parecer comentários sem importância, mas Gomes (2005) aponta A aprendizagem é vista como um processo constituído através da linguagem nas interações e ações entre professores e alunos, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. Por meio da linguagem, os conceitos cotidianos vão dando lugar à elaboração de conceitos científicos: novas palavras são aprendidas e os significados das palavras corriqueiras vão sendo ampliados com novas acepções. Por isso, pode-se considerar a aprendizagem como um processo discursivo (...) (GOMES, 2005, p.23, grifo nosso).

Ao esclarecer ainda mais a importância da linguagem e dos discursos como mediadores da aprendizagem, ela lembra as ideias de Vygostsky (1982 e 1989): “O processo discursivo a que nos referimos diz respeito àquilo que as pessoas falam e fazem dentro da sala de aula”. Facilmente uma pessoa familiarizada com as discussões que permeiam a situação catastrófica apontada pelos resultados dos exames a que os estudantes têm sido submetidos nos últimos anos (conforme aponta Zimmer, 2006) poderia listar uma série de causas para o problema. Muitas delas provavelmente seriam centradas no professor e nos demais profissionais da educação. Não sem motivo. O que não se pode é reduzir os problemas da formação profissional e da sua situação de trabalho à figura do professor, como se não fossem todas as políticas públicas ou a inexistência delas a mãe de todas as causas. Por conta disso, não é de causar estranheza, nem poderia, o fato de a sociedade em geral seguir desprestigiando o professor e a instituição da escola ao passo que segue acreditando na necessidade de o profissional ser competente e competitivo e de os cidadãos serem informados, lúcidos e críticos, quiçá, atuantes. Ou seja, temos aí um paradoxo sem a menor chance de findar. Não é de se estranhar que os profissionais da educação, tão desvalorizados em suas individualidades, em algumas realidades mais carentes que os alunos, tenham suas concepções relegadas a um segundo plano. Por vezes, afastados também eles da sala de aula, não conseguem definir muito bem o que é língua e muito menos o objetivo do estudo da nossa língua na escola. De outro lado, as famílias dos alunos têm crenças tanto ou mais preocupantes sobre o que seja o ensino de nosso idioma, e suas concepções – além de, é claro, auxiliar a conduzir a percepção de seus filhos – podem se tornar, nas escolas da rede privada, o centro das atenções de professores, levando em conta a inegável necessidade de conquistar e manter alunos e o fato de nem sempre haver argumento ou uma linha, uma filosofia, por parte dos docentes para discutir com essas famílias. No entanto, as professoras e os professores dizem estar ensinando aos alunos, mas, na verdade, é bem possível que estejam reproduzindo versões tortas do que um dia aprenderam ser a língua e os conceitos do que compõe seu estudo. Então, ao que parece, os mais formosos e bem intencionados objetivos não condizem com a prática em sala de aula e, principalmente, não conferem com as verdadeiras necessidades dos educandos. É o que nos dizem os exames e as provas. É tomando como ponto de partida essa realidade, essas barreiras todas, que este trabalho busca ser uma breve reflexão sobre o que tem feito a escola norteada pelos PCNLP, em especial, no Ensino Fundamental, para que os alunos sejam eficientes leitores e produtores de textos. Portanto, não se trata aqui nem de desprestigiar nem de privilegiar o ensino gramatical. Por meio delas se pretende verificar qual concepção de ensino de língua subjaz os Parâmetros Curriculares Nacionais em Língua Portuguesa (PCNLP). Também se deseja observar se esse documento, nos parâmetros que postula em termos de desenvolvimento das competências leitora e de produção textual, é de fato capaz de deixar claro, realmente explicitar um viés ou uma linha de trabalho para o professor, se de fato conduz como deve ser o trabalho do profissional em busca do letramento. A razão de ter em alta conta os PCNs advém de serem eles os guias oficiais, os referenciais para o trabalho do professor, devendo se constituir nas diretrizes principais que norteiam a

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prática dos docentes no nosso país. Supõe-se, assim, que o profissional da educação deveria recorrer, assim, aos parâmetros como um critério para avaliar seu trabalho e para buscar novas metodologias de trabalho. Ao menos é isso que dispõe o site do INEP sobre o texto. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) são a referência básica para a elaboração das matrizes de referência. Os PCNs foram elaborados para difundir os princípios da reforma curricular e orientar os professores na busca de novas abordagens e metodologias (BRASIL, 1998, grifo nosso).

2. O QUE DIZEM OS QUE ESCREVEM SOBRE ENSINO DE LÍNGUA E SOBRE LETRAMENTO Rojo (2009) resume a visão de Magda Soares do que seja uma visão fraca e forte de letramento. A primeira, ligada ao enfoque autônomo, às necessidades de a população de adaptar às exigências sociais, é meramente adaptativa. Essa visão estaria situação na raiz de muitas reclamações a respeito dos resultados dos exames e outras formas de medir competências e habilidades. “O que faz a escola que não as desenvolve?” A visão forte seria a revolucionária, que busca o resgate da autoestima, que forma para o empoderamento, para a função de agente social, e não apenas para uma adaptação às necessidades e exigências sociais. A tira a seguir, da personagem Mafalda, popular quadrinho de Quino, parece especialmente esclarecedora dessa necessidade.

Para Foucambert (1994), a escrita não deve ser vista como mera ferramenta. A escrita não é um processo mais elaborado de expressão que a fala. A linguagem, de uma forma geral, tem suas diferenças em relação à escrita. Daí, a leitura ser um processo de erudição: de transformação das leituras e experiências anteriores de leitura num novo degrau. Escrever é uma nova elaboração, diferente de pensar ou de falar. Por isso, toda a leitura é erudição: o leitor tem que informar ao texto todas as suas experiências anteriores de leitura, mas também é um novo jeito de fazer elaborações mentais. O texto faz imposições que implicam num novo modo de pensar o mundo. O mundo é visto na escrita sob um novo prisma. Há um novo processo de elaboração do mundo a partir do pensamento e da escrita. E esse novo olhar, a partir da linguagem, constitui um novo mundo. Daí ler e escrever serem atividades sem fim. Sobre essa característica das atividades de leitura e produção de textos, na apresentação do texto Língua materna: letramento, variação & ensino (2002, p. 9), os editores comentam sobre o papel da escola ser justamente um “ininterrupto e constante letramento”. Nesse mesmo volume, Marcos Bagno, em “A inevitável travessia: da prescrição gramatical à educação linguística” (2002), detalha sobre esse papel que deverá se centrar na educação linguística escolar. Para o autor, “o desenvolvimento ininterrupto das habilidades de ler, escrever, falar e escutar” é um dos principais elementos dessa educação, entre outros. Fica bem claro, porém, que essa educação, porém, precisa

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ser se valer de práticas pedagógicas definidas, apoiada em metodologia consistente. Justamente é isso que ainda falta à prática dos professores. Stuubs (2002, P. 103), na mesma obra, em seu texto “A língua na educação” destaca: “O problema não é somente o que sabemos, mas se esse saber pode ser coerentemente organizado em modos educacionalmente úteis”. Ferreira (2001), em seu artigo “Ainda uma leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa”, esclarece a função dos PCNs: ser uma síntese dos avanços conquistados na reflexão do ensino de língua. Ela resume a discussão do texto em dois eixos: há uma discussão que envolve fatores externos à própria disciplina e uma que envolve fatores internos a ela. Em sua análise, ela propõe haver no documento uma crítica ao ensino tradicional: aquele autoritário e preconceituoso em relação aos conhecimentos prévios do grupo de alunos, aquele que propõe trabalhos artificiais, exercícios extremamente escolarizados, com fim em si mesmo, e aquele que, por fim, vê a língua como um sistema imutável de regras, valorizando apenas o que postula a gramática normativa. Vale lembrar que a explanação da autora tem por objetivo principal discutir as habilidades discursivas necessárias aos alunos como a grande novidade que o documento traz. Interessa-nos ainda para esta discussão, sobremaneira, dois trechos desse artigo: Entende-se, assim, que o professor deva propor situações em que o aluno possa exercitar as práticas sociais de compreensão e produção de textos (oral e escrito) e de análise/reflexão da língua (oral e escrita) em situações linguisticamente significativas, em situações de uso de fato (FERREIRA, 2001, p. 5, grifo nosso).

E mais adiante: Embora tenha separado as práticas de leitura, de escrita e da oralidade no interior deste texto, vimos que são práticas complementares [...], levando-se em conta o contexto da produção dos sentidos [...] e ainda as características dos gêneros e suportes, operando com a dimensão semântica e gramatical da língua (FERREIRA, 2001, p. 5, grifo nosso).

Os dois pequenos trechos ilustram um pouco o que se quer refletir aqui com os Parâmetros. Quando anteriormente expliquei que este trabalho busca averiguar se o documento em questão influencia suficientemente o trabalho dos professores em busca de um verdadeiro letramento, tinha em mente justamente isto: observar se há marcas de uma metodologia esclarecedora, norteadora, se o documento privilegia esse trabalho. Soares (2011) esclarece que ainda há uma faceta do letramento que depende de um ensino “incidental e indireto, porque depende das possibilidades e motivações das crianças, bem como das circunstâncias e contexto em que se realize a aprendizagem (...) A tendência tem sido privilegiar (...) apenas uma metodologia”. Mais adiante, ela assevera: “privilegiar uma ou algumas facetas, subestimando ou ignorando outras, é um equívoco, um descaminho no ensino e aprendizagem da língua escrita (...) o caminho para esse ensino e aprendizagem é a articulação de conhecimentos e metodologias fundamentados em diferentes ciências”. Ou seja, também o texto de Magda Soares assume estar sendo trilhado um caminho torto, e a necessidade de uma metodologia que, aio que tudo indica, não está ao alcance dos professores, muito menos esclarecida nos PCNLP. Mollica (2007), em “Da escola para a vida: a importância do letramento escolar”, conclui reafirmando serem as mais relevantes questões a serem ainda respondidas se “o conhecimento adquirido fora da escola, de forma assistemática, é suficiente para a inserção dos cidadãos na cultura letrada?”. Ela corrobora com a ideia de ineficiência do trabalho que tem sido desenvolvido. Marscuschi (2000), em conferência destinada ao debate sobre o “Papel da linguística no ensino da língua”, se dedica a fazer uma reflexão “sobre alguns aspectos atuais da Linguística e seu potencial, sobretudo na aplicação que dela vem sendo feita e analiso uma questão pontualizada, ou seja, os Parâmetros Curriculares Nacionais em Língua Portuguesa (PCNLP), observando como eles se situam no contexto dos estudos linguísticos atuais”. O texto revela um profundo e, quiçá, estranho

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otimismo. De fato, documentos, como os PCNs, estão mudando, também alguns manuais e os livros didáticos estão mudando, mas a prática e o discurso nem tanto. No mesmo texto, ele confessa Uma análise acurada dos manuais de ensino de língua em todas as suas modalidades mostrará que de algum modo a Linguística esteve sempre presente, algumas vezes mais e outras vezes menos; algumas vezes bem outras vezes mal assimilada. No geral, houve e continua havendo uma certa defasagem na aplicação dos princípios linguísticos ao ensino. Mas tudo leva a crer que nunca o papel da Linguística no ensino de línguas se fez notar tanto como hoje em dia (MARCUSCHI, 2001, p. 10, grifo nosso).

A seguir, mais adiante no mesmo texto, Marscuschi, na seção destinada a discutir a presença das teorias linguísticas no documento, esclarece Hoje, no Brasil, podemos ver o reflexo direto das teorias linguísticas no ensino de língua portuguesa ao analisarmos os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP.) (...) O documento atual produzido por encomenda do Ministério da Educação (MEC) propõe um conjunto de orientações para o ensino de língua, particularmente no Ensino Fundamental (de 1ª a 8ª Séries) e oferece uma possibilidade de definir linhas gerais de ação. Tudo dependerá, no entanto, de como serão tais orientações tratadas pelos usuários em suas salas de aula; seria nefasto se as indicações ali feitas fossem tomadas como normas ou pílulas de uso e efeito indiscutíveis (MARCUSCHI, 2001, p.10, grifo nosso).

Bem, talvez justamente aí resida o ponto principal do problema: o tratamento que dão os usuários do documento em sala de aula. Depois de um interessante arrazoado sobre as questões tratadas pelo documento, em especial aquelas concernentes à leitura e produção de textos, ele admite novamente no sentido que aqui defendo. (...) Mesmo que não concordemos com algumas linhas teóricas ali explicitadas, trata-se de um avanço e pode-se dizer que os PCNLP são uma evidência interessante de como a teoria linguística pode influenciar de maneira decisiva o ensino de língua materna, uma área particularmente resistente a inovações. No caso brasileiro, trata-se de uma drástica inovação e em certos pontos com teorias que sequer foram ainda suficientemente desenvolvidas e quase não tiveram oportunidade de serem testadas (MARCUSCHI, 2001, p.10, grifo nosso).

Sim, pode-se afirmar que o teor do documento constitua uma evidência de que temos recebido importantes influências das teorias linguísticas, mas que elas ainda não têm ecoado suficientemente nos ouvidos dos alunos, e há, sem dúvida, um longo percurso a caminhar. Koch (2010), em seu Ler e escrever: estratégias de produção textual, esclarece, já na introdução, justamente para ressaltar a importância do texto: Espera-se, assim, preencher uma lacuna do mercado editorial, no qual tem predominado as obras teóricas sobre a questão, ou, então, os livros didáticos. Nossa preocupação é estabelecer uma ponte entre teorias sobre texto e escrita e práticas de ensino. Por esse motivo, são nossos interlocutores privilegiados os professores de vários níveis de ensino, especialmente os de línguas (...). (grifo meu) (KOCH, 2010, p.9)

Adiante, Bagno (2002, p. 14) esclarece sua visão bem menos otimista, pois, segundo ele, quando “se entra na sala de aula (...), o que ainda se encontra é uma prática pedagógica de ensino de língua que revela pouca ou nenhuma influência de todas essas novas perspectivas (...) apesar de estarem presentes há algum tempo [nos] PCNs”. Em uma longa nota, que, por ser nota, julgamos não ser a questão central em debate, o quão difícil pode ser a leitura dos PCNs para a grande maioria dos professores brasileiros, pois eles não teriam sido preparados em seus cursos para a leitura de um documento como esse, que implica conhecimento prévio de teorias linguísticas. Eles apontam para uma guinada metodológica, para a qual o profissional não está preparado. Isso, na minha prática, pude verificar. Nem sempre um livro

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didático profundamente atualizado pode ser usado por qualquer professor. É como se ele estivesse cultuando uma religião que não é a sua, pois definitivamente não acredita naquilo que lê, se é que compreende em seu todo. Simões (2006) verifica, por meio de evidências empíricas, em um de seus estudos, que “a fala da criança, desde cedo, é sensível a regras gramaticais extremamente sutis, respeitando de maneira cada vez mais próxima a característica da fala dos adultos”. Para a autora, essa constatação, ao longo do artigo sempre ratificada por ela, é muito importante, pois, quando iniciado o processo de letramento, ocorrerá um contato com novas regras gramaticais. E ela aponta um caminho: será da convivência e exposição da criança à escrita que dependerá a aquisição daquilo que rege esse mundo letrado, assim como a aquisição da fala depende de uma convivência socialmente tão relevante. Muito bem. A teoria de Noam Chomsky prevê uma capacidade excepcional nas crianças. (Quem dera todos os pais e professores tivessem ciência disso e não se deixassem desqualificar como indivíduos, diante mão, por suas capacidades linguísticas nem o fizessem em relação aos seus filhos ou alunos!) Sabemos também que ela desconsidera o fato de as comunidades linguísticas serem heterogêneas, como explica Tarallo (1997) sobre a teoria de William Labov. Este, por sua vez, prevê, na fala de comunidades, variações linguísticas em uso que, apesar de aparentemente caóticas, não impossibilitam os membros de tal comunidade de se comunicarem e de se entenderem. A escola não pode se esquecer disso, muito menos se valer disso para postular uma incapacidade de aprender ou mesmo destinar seus alunos a um eterno direito democrático à ignorância.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A minha crítica, exposta incialmente, no que tange as concepções que permeiam a conversa de professores em geral, profissionais da educação, supostos interessados em promover debates em torno do tema “ensino da língua portuguesa”, considerando o que tenho ouvido em alguns anos de prática docente se resume à falta de espaço para leitura na escola. Todos estão sempre muito ocupados em vencer conteúdos como se a leitura não tivesse de ser objeto de ensino. E dos mais fundamentais. Claro que a escola tem conhecimentos a discutir, a abordar. Claro que os profissionais precisam dar conta deles tendo por base uma relação estipulada para cada ano como uma forma de garantir conhecimentos mínimos. Entretanto, este ensino ser sempre centrado no conhecimento do professor ou em um livro didático é um pouco absurdo. Ora, se nas universidades, se almeja ler o autor, e não aqueles que o explicaram, por que na escola deveria ser diferente? Por que se contentar apenas com a leitura que o professor faz? O aluno precisa do texto. Urgentemente! Então, sabemos que a escola deve trazer à tona os conhecimentos prévios de língua que tem a criança e ser consciente de que eles, por outro lado, não são homogêneos em todas as comunidades linguísticas. É justamente aqui que queremos chegar: será que apenas trazer os conhecimentos prévios do aluno, trazer as diferenças linguísticas para a sala de aula, trabalhar as formas gramaticais sob a ótica dos últimos conhecimentos linguísticos, ou seja, a partir de textos e do sentido que elas produzem, e não lhes oferecer uma vasta gama de leituras tem sido suficiente? Parece que não! Na verdade, vale aos alunos aperfeiçoar suas habilidades de leitura e escrita a partir de seu conhecimento prévio de língua. Sabe-se, entretanto, que o ensino puro e simples de regras e conceitos pouco – e, por vezes, nada – lhes acrescenta. Pior: muitas vezes, os manuais de gramática utilizam-se de exemplos bastante distintos daquilo que se considera uma situação de enunciação natural. Até porque não é tarefa da escola transformar a forma coloquial de expressão dos alunos em uma forma mais erudita. O que se quer é que o aluno possa julgar quando um ou outro uso parece mais adequado. É a tão discutida adequação linguística ou a transformação do aluno “em um poliglota na sua língua” (Ibidem, p. 40). E isso este estudo tinha por objetivo observar: se isso, de fato, os PCNs incentivam esse trabalho.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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REFERÊNCIAS BAGNO, Marcos. A inevitável travessia: da prescrição gramatical à educação linguística. In: BAGNO; GAGNÉ; STUBBS. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002. BAGNO, Marcos; GAGNÉ, Gilles; STUBBS, Michael (Eds). Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1997. 144p. ______. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, 1998. 106p. FERREIRA, Norma Sandra A. Ainda uma leitura dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. In: Revista IBEP: O ensino de Língua Portuguesa, julho/2001. GOMES, Maria de Fátima Cardoso; MONTEIRO, Sara Mourão. A aprendizagem e o ensino da linguagem escrita: caderno do professor. Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005. FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. KOCH, Ingedore Villaça. Ler e escrever: estratégias de produção textual. 2.ed. São Paulo: Editora Contexto, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antônio. O papel da linguística no ensino de línguas. Conferência pronunciada no 1o Encontro de Estudos Linguístico-Culturais da Universidade Federal de Pernambuco/UFPE, Recife, 12 de dezembro de 2000. In: Investigações: Lingüística e Teoria Literária Vol. 13/14 (2001):187-217 (Recife, PG em Lingüística-UFPE). MOLLICA, Maria Cecília M. ; LEAL, Marisa. Da escola para a vida: a importância do letramento escolar. In: Acolhendo a Alfabetização nos Países de Língua Portuguesa (USP), v. 2, p. 19-30, 2007. ROJO, Roxane H. R. Letramentos múltiplos: escola e inclusão social. São Paulo, Parábola Editorial, 2009. SOARES, Magda. Alfabetização e letramento: caminhos e descaminhos. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Prograd. Caderno de formação: Formação de professores didática dos conteúdos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Cap. 7, p. 97-100. v. 10. SIMÕES, Luciene J. Aprendizagem da gramática do português escrito: algumas reflexões a partir da aquisição da língua falada. In: Calidoscópio, vol. 4, n. 1, jan./abr. 2006, p. 51-59. STUUBS, Michael. A língua na educação. In: BAGNO; GAGNÉ; STUBBS. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo, Ática, 1997 VYGOTSKY, Lev S. Obras escogidas. v. II, Madrid: Aprendizage Visor, 1982. VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1989. ZIMMER, Márcia Cristina; SIQUEIRA, Maity. Aspectos linguísticos e cognitivos da leitura. In: Revista de Letras (Fortaleza), n. 28, vol. 1/2, jan.-dez./2006, p.33-39.

AS CONTRIBUIÇÕES DOS BOLSISTAS DO PIBID NA MEDIAÇÃO DA LEITURA: UM OLHAR SOBRE A LITERATURA AFRICANA Rosangela Aparecida Marquezi* (UTFPR-PB) Midiã Valério Maia** (UTFPR-PB)

1. INTRODUÇÃO Em tempos de tantas tecnologias, especialmente as ligadas ao mundo do computador e que tanto atraem crianças e jovens, cada vez mais o ato de ler necessita do ato de ensinar a ler. Por isso, a importância do mediador da leitura, que é, segundo Barbosa e Barbosa (2013, p. 11): [...] alguém que toma o texto como um monumento que precisa ser explorado, olhado, analisado, desconstruído se necessário, para que possa emergir a voz, a compreensão singular daquele que lê. “Alguém que manifesta à criança, ao adolescente e também ao adulto uma disponibilidade”, um acolhimento, uma presença dialógica e que, principalmente, considera o outro – que precisa ser levado ao texto – como um sujeito histórico, cultural, portanto, “construído por” e “construtor de palavras” carregadas de sentidos.

O papel de mediador não se restringe apenas ao professor. Ele pode e deve ser feito por diferentes sujeitos, tais quais os bolsistas do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), objeto de análise deste artigo. O PIBID, programa do governo federal, que teve sua primeira chamada pública realizada pelo Edital MEC/CAPES/FNDE em 2007, tem se tornado uma importante política pública no que concerne à valorização da docência, pois permite que os acadêmicos de licenciatura tenham contato, ainda na sua formação, com o mundo do trabalho em que estarão inseridos após a graduação. Segundo Braibante e Wollmann (2012, p. 167), o PIBID é uma “[...] nova proposta de incentivo e valorização do magistério e possibilitando aos acadêmicos dos cursos de licenciatura a atuação em experiências metodológicas inovadoras ao longo de sua graduação”. Segundo informações do sítio da CAPES (2015), os principais objetivos do Programa são: - Incentivar a formação de docentes em nível superior para a educação básica; - contribuir para a valorização do magistério; - elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de licenciatura, promovendo a integração entre educação superior e educação básica; - inserir os acadêmicos de licenciatura no cotidiano de escolas da rede pública de educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas docentes de caráter inovador e interdisciplinar que busquem a superação de problemas identificados no processo de ensino-aprendizagem; - incentivar escolas públicas de educação básica, mobilizando seus professores como coformadores dos futuros docentes e tornando-as protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério; e - contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura.

Mestre em Educação, é docente no Curso de Letras Português/Inglês da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Câmpus Pato Branco, Brasil. E-mail: [email protected]. ** Acadêmica do curso de Licenciatura em Letras – Português/Inglês, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus Pato Branco, Brasil. E-mail: [email protected]. *

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A partir desses objetivos e da análise dos projetos que vêm sendo desenvolvidos pelos bolsistas do Programa, podemos afirmar que o PIBID é um momento importante no amadurecimento acadêmico, pois permite que o aluno possa realmente experienciar a licenciatura. No Câmpus Pato Branco, da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), o PIBID de Língua Portuguesa iniciou suas atividades no ano de 2009, atendendo, de forma mais geral, a área da Linguística. A partir do último Edital, em 2014, e com a possibilidade do aumento do número de coordenadores de área – que são os professores responsáveis, na instituição, pelo Programa, passou-se a subdividir o PIBID: Linguística e Literatura, o que possibilitou uma atenção maior para essa última área, visto que sempre é a que menos valor recebe nas escolas. Assim, atualmente, o PIBID Língua Portuguesa: Linguística e Literatura atende a quatro escolas da rede pública do Estado do Paraná, do 6.º ano do Fundamental ao 3.º do Ensino Médio, na cidade de Pato Branco – PR. O projeto que ora se discute neste artigo foi realizado no Colégio Estadual São João Bosco, nas turmas de 8º ano.

2. LITERATURA AFRICANA EM LÍNGUA PORTUGUESA A Literatura Africana ainda é pouco difundida na sala de aula no Brasil. Para Faraco (2003, p. 546), “[...] sua divulgação entre nós pode vir a ser um dos caminhos importantes para o Brasil recuperar seus laços com as culturas africanas e compreender mais profundamente suas próprias raízes.” Por outro lado, conhecê-la é também abrir-se para uma literatura que revela outras faces da imensa riqueza expressiva da língua portuguesa. O interesse por essa literatura se dá, inicialmente, pois utilizamos, mesmo que com diferenças acentuadas, a mesma língua. Mesmo sendo em outros contextos socioculturais, há sim um vínculo linguístico entre Brasil e África. Outro fator importante no interesse por essa literatura, é que ela recebeu grande influência dos principais escritores brasileiros do século XX, o que gera, também, vínculos simbólicos. Apesar da importância desses dois motivos, o mais importante vínculo entre Brasil e África é o fato de que a cultura brasileira tem profundas raízes africanas. Segundo o Censo Demográfico 2010, coletado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,7% se declarou negra, ou seja, em relação a sua composição étnico-racial, a maior parte da população brasileira se auto declara negra. Há, portanto, vínculos inegáveis entre Brasil e África. Uma das contribuições para a disseminação da Literatura Africana foi que os primeiros escritores denunciaram em suas obras ficcionais e poéticas a opressão colonial e assim contribuíram para o processo de resistência ao colonialismo e de independência. Nesse sentido: A aproximação entre os países africanos, mais do que por motivos de ordem estrutural, é possibilitada pelos efeitos do colonialismo, com o agravamento da crise econômica e o endividamento externo, além das sérias consequências da repressão. A união se impõe, a despeito da diversidade de matizes ideológicos e políticos dos movimentos nacionalistas dos diferentes países africanos. (HERNANDEZ, 2005, p. 162).

É visto que a literatura africana de língua portuguesa tende a crescer nos próximos anos e continuar ganhando projeção internacional. Alguns de seus escritores já têm suas obras traduzidas para várias outras línguas. No entanto, paira ainda sobre toda essa produção uma grande limitação: o número de leitores em cada um daqueles países é muito pequeno, seja pela grande massa de analfabetos, seja pelo fato de parcela significativa da população ainda não falar o português. Portanto a literatura africana contemporânea, ao diversificar seus projetos estéticos, contribui para a discussão e para o entendimento da sociedade atual dos países que compreendem a África. Sendo ocorrendo nesta literatura os temas que ampliam as relações com as tradições locais, ao

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mesmo tempo em que se voltam para temas universais, bem como os que se ocupam dos dramas humanos que ocorrem nessas sociedades profundamente marcadas ainda pela miséria, por conflitos culturais e, em alguns casos, pela violência endêmica, resquício de décadas de luta armada, lembrando que, primeiro contra o colonizador e, depois, em sangrentas guerras civis, sendo que “[...]a consciência nacional, no discurso literário, atravessou, assim, diversos estádios de evolução, desde meados do século XIX até à actualidade.” (LARANJEIRA, 2001, p.195).

2.1. A OBRIGATORIEDADE DA LITERATURA AFRICANA EM SALA DE AULA NO BRASIL Em 2003, no Brasil, foi instituída a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na educação básica (BRASIL, 2003) e foi regulamentada por meio da Resolução n. 1, de 17 de junho de 2004, do Conselho Nacional de Educação, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2004). De acordo com o que estabelece a Lei 10.639/2003, a temática deve ser trabalhada no âmbito de todo o currículo escolar, preferencialmente, entretanto, nas disciplinas de História, Literatura e Educação Artística. Além dessa obrigatoriedade do ensino, a Lei também instituiu a data de 20 de novembro, como “Dia Nacional da Consciência Negra”. Integrada no círculo das escolas, o ensino da história e das culturas africana e afro-brasileira, tem se tentado mais efetivamente cumprir um tardio papel de resgatar a memória, quebrar os silêncios e denunciar as distorções enraizadas sobre a participação do afrodescendente na constituição da vida e da alma brasileira. Há que se salientar, no entanto, que, apesar da obrigatoriedade, há muitas barreiras a serem vencidas para que isso se cumpra na sua integralidade, mesmo se configurando como uma resposta à luta dos afro-brasileiros.

3. RELATO DE EXPERIÊNCIA DA LITERATURA AFRICANA EM SALA DE AULA O presente projeto teve como objetivo atender os propósitos que determinam sobre o ensino da cultura e história afro-brasileira e africana na Educação Básica, provocando o encantamento pela leitura de textos literários, por meio dos autores lusófonos: Artur Carlos Pestana dos Santos, conhecido como Pepetela, com o romance As Aventuras de Ngunga; Mia Couto, com o conto O menino que escrevia versos. Além disso, foram utilizados nas atividades do projeto o filme Sarafina - O som da liberdade e o poema Genocíndio, do poeta mato-grossense Emmanuel Marinho. Ele foi realizado com a turma de 8.º ano do Ensino Fundamental no Colégio Estadual São João Bosco, no município de Pato Branco. As Aventuras de Ngunga, escrito em 1972, quando o autor ainda lutava no movimento popular para a libertação da Angola (MPLA), cujo país encontrava-se então, sob o domínio de Portugal, retrata as peripécias de um menino angolano, em seu caminho rumo à consciência de si mesmo e do papel do angolano, no conflito que se tratava com a metrópole angolana. A partir das discussões desse romance, o trabalho desenvolvido permitiu o estudo e a interpretação da obra, resultando numa discussão a respeito da condição que vive um povo sob o domínio do outro, todas as mazelas provocadas pelo jugo colonial, e das formas de violação dos direitos humanos. Ngunga é a voz que se quer ser ouvida e que representa a de muitos outros “meninos”, quer sejam africanos ou brasileiros. Ainda, a leitura possibilitou a compreensão de que o romance metaforiza a condição de muitos jovens angolanos que vivenciaram a experiência da guerra, na figura de Ngunga, que sofrem e sentem falta da família e da pátria, simbolizando o individual e o coletivo diante de um sonho de liberdade.

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O segundo momento do projeto foi a leitura e análise do conto O menino que escrevia versos, de Mia Couto, em que o protagonista é um “miúdo”, cuja voz também estava silenciada. A história do conto é sobre um garoto que era considerado “doente” pelo simples fato de representar suas emoções através da escrita. Precocemente imerso nas dores da vida, vê no sonho, na poesia, uma tentativa de fuga dessa realidade, e, ao mesmo tempo, uma espécie de tradução dela, já que escreve o que sente e o que vive. Esse conto tem como tema a incompreensão, devido aos pais não entenderem a necessidade do menino de sonhar, confundindo o talento para a poesia com uma doença. Para complementar as atividades, discutiu-se, ainda, o filme Sarafina - O Som da Liberdade, cujo enredo retrata a história de uma jovem estudante negra chamada Sarafina que está mais interessada em garotos do que em direitos civis. Quando sua brilhante professora, Mary Masembuko, ensina aos alunos sobre a opressão sofrida pelos africanos negros, ela adquire uma consciência política sobre a sua realidade. Ao lado de seus colegas, organiza um levante, com direito a números musicais, para abrir os olhos dos demais em relação às restrições impostas pelo governo. Por fim, o trabalho seguiu com a leitura e interpretação do poema Genocíndio, de Emmanuel Marinho, que permite também revelar que outras vozes estão sendo silenciadas, como a dos povos indígenas do Brasil contemporâneo, visto que é um é um poema-apólogo do quase extermínio da população indígena. Quando o eu-lírico, no verso “Tem pão velho?”, clama, não é apenas se referindo ao pão como alimento físico, mas também ao pão como alimento cultural, que vem sendo cada vez mais negligenciado pelo elemento não indígena. Após as leituras e discussões, para o encerramento realizou-se uma “Roda de Diálogos” sobre a Literatura Africana, nas dependências da escola, promovendo um ambiente tematizado, com a apresentação das produções realizadas pelos alunos durante a aplicação do projeto. Além disso, também ocorreu uma conversa-entrevista com um jovem angolano, estudante de um curso superior de engenharia da UTFPR Câmpus Pato Branco, participante de um programa de intercâmbio estudantil, da CAPES.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Observou-se ao final do projeto, que os alunos demonstraram um interesse maior pela leitura, em especial a africana, a partir da intervenção dos bolsistas do PIBID. Em um questionário realizado com a turma que foi contemplada pelo projeto, os alunos foram pontuais em afirmar que o projeto de leitura promovido pelos bolsistas foi primordial para o interesse ou reaproximação deles com a leitura. Outro apontamento dos alunos, é para os diferentes meios em que as obras foram lidas ou apresentadas: seja com sons, teatro, poesia, etc. Levando-se em consideração que o Colégio está localizado em um bairro periférico do município de Pato Branco, e que não há muito acesso a esse tipo de literatura, os alunos apontaram que o projeto desenvolvido propiciou a eles essa oportunidade. Importante salientar que, como esse não é um problema somente do Colégio em questão, há necessidade de um investimento maior em materiais didáticos e de apoio pedagógico para que o trabalho seja feito pelo professor e que a busca do aluno seja saciada, e não somente a proposta e obrigatoriedade do trabalho com Literatura afro-brasileira e africana, como propõe a Lei 10.639/03. Interessante observar que, em relação à Literatura Africana, é apenas no 8.º ano do Ensino Fundamental que é proposto este trabalho de conhecimento dessa literatura, o que são aproximadamente 8 anos após a criança/adolescente ter iniciado a sua vivência escolar. Um fato muito observado é que muitos adolescentes perdem o gosto pela leitura na passagem do estágio da Educação Básica para o Ensino Fundamental. Por isso, o desafio de mediações de leitura e o PIBID como suporte para os professores de literatura e para a escola.

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Em suma, percebeu-se claramente o resultado do envolvimento dos alunos com as atividades propostas, bem como o desejo em ler o romance, o conto e o poema, de forma integral, em um cenário literário de vozes veladas, esperança, conquistas, desilusões e sonhos. Pode-se afirmar que os objetivos foram atingidos e que não se esgotaram as possibilidades de se abordar temas que evidenciam as condições humanas que ainda permanecem em patamares menos favorecidos, na tentativa de superá-los.

REFERÊNCIAS BARBOSA, J. B.; BARBOSA, M. V. (Orgs.) Introdução. In: _______ Leitura e mediação: reflexões sobre a formação do professor. 1. ed. Campinas, SP : Mercado de Letras, 2013. BRAIBANTE, M. E. F.; WOLMANN, E. M. A influência do PIBID na formação dos acadêmicos de Química Licenciatura da UFSM. Química Nova na Escola. Vol. 34, N° 4, p. 167-172, 2012. BRASIL. Presidência da República. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília, 2003. Disponível em:. Acesso em: 03 out. 2015. BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília: MEC- SECAD/SEPPIR /INEP, 2004. CAPES. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2015. COUTO, M. O menino que escrevia versos. In: ______. O fio das missangas. São Paulo: Cia. das Letras, 2004. FARACO, C. A. Português: Língua e Cultura, Ensino Médio. Curitiba: Base Editora, 2003. (Livro do professor). HERNANDEZ, L. L. A África na sala de aula. São Paulo: Selo Negro, 2005. IBGE. Censo Demográfico 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: . Acesso em 03 out. 2015. LARANJEIRA, P. Mia Couto e as literaturas africanas de língua portuguesa. Revista de Filologia Românica. Anejos, 185-205, 2001. MARINHO, E. Genocíndio. In: ______. Margem de papel. Dourados: Manuscrito Edições, 1994. SANTOS, A. C. P. As aventuras de Ngunga. Belo Horizonte: Nandyala, 2013. SARAFINA: o som da liberdade. Diretor Darell Roodt. Distribuído por Warner Bros e Time Warner Entretainment Company, E.U.A, 1993.

INCENTIVO À LEITURA NA COMUNIDADE DO IFC - MEDIAÇÃO E PRÁTICA SOCIAL DA LEITURA Silvia Fernanda Souza Dalla Costa* (IFC) Maribel Barbosa da Cunha** (IFC) Nauria Inês Fontana*** (IFC) Shyrlei Benkendorf**** (IFC) Solange Aparecida Zotti**** (IFC)

INTRODUÇÃO Desenvolver a habilidade de leitura é uma tarefa de todas as pessoas envolvidas com estudantes, seja no ensino médio ou superior. Costumeiramente, sociedade escolar e extraescolar costumam atribuir essa tarefa aos bibliotecários ou ao professor de Língua Portuguesa, mas sabe-se que não é algo exclusivamente reservado a eles. O exercício da leitura em espaços a ela destinados exerce importante papel na formação de um aluno leitor, tarefa tão discutida e objetivada na escola. Urge a necessidade de “criação de espaços coletivos para a ação pedagógica comum, a multiplicidade de linguagens e de novos códigos” (NEVES, 2003, p.11) que demonstrem a importância do ler e do escrever nos dias atuais. Ensinar a ler e a escrever são tarefas de todos os segmentos da escola, uma vez que são ações básicas para o desenvolvimento da capacidade de aprender, responsabilidade maior da escola, cujo projeto pedagógico precisa contemplar uma biblioteca que seja formadora de leitores. Com o objetivo de despertar, incentivar e promover o hábito de leitura na comunidade do Instituto Federal Catarinense – Campus Concórdia, envolvendo alunos de escolas públicas da região e Recanto dos Idosos surgiu o programa de mediação de leitura “Incentivo à leitura na comunidade do IFC”. Dentre os objetivos específicos do programa está acrescentar ao cotidiano escolar a prática da leitura do livro como uma das prioridades no processo de aprendizagem, buscando despertar nos alunos o gosto e prazer pela leitura, contribuindo para a formação de leitores autônomos e competentes. Ainda, busca-se despertar/resgatar nos alunos o gosto e prazer pela leitura, contribuindo para a formação de leitores autônomos e competentes. Pretende-se também fortalecer a criação de um local destinado exclusivamente a leitura no prédio novo da biblioteca, recentemente inaugurado. O espaço terá livros atraentes, revistas, materiais que demandem interesse para permanecer no mesmo, fazendo com que a leitura seja vista pelos alunos da instituição como algo prazeroso e atrativo, naturalmente.

Doutora em Letras, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM, Professora de Língua Portuguesa e de Leitura e Produção de textos, do Instituto Federal Catarinense – IFC Campus Concórdia, Brasil. E-mail: [email protected]. ** Mestre em Estudos da Linguagem pela UNISUL, Professora de Língua Portuguesa e de Português Instrumental, do Instituto Federal Catarinense – IFC Campus Concórdia, Brasil. E-mail: [email protected] *** Mestre em Linguística pela UFSC, Bibliotecária do Instituto Federal Catarinense – IFC Campus Concórdia, Brasil. E-mail: nauria. [email protected] **** Bibliotecária do Instituto Federal Catarinense – IFC Campus Concórdia, Brasil. E-mail: [email protected] ***** Doutora em Educação pela UNICAMP, Professora de disciplinas pedagógica nos cursos de licenciaturas e atuante no atendimento educacional especializado – AEE, do Instituto Federal Catarinense – IFC Campus Concórdia, Brasil. E-mail: solange.zotti@ifc-concordia. edu.br *



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1. A LEITURA EM SUAS DIFERENTES DIMENSÕES1 1.1. A LEITURA EM BUSCA DE UMA INFORMAÇÃO PRECISA A busca de informação é uma necessidade. O fator que difere de algumas décadas atrás é que não é somente nos livros que encontramos estas informações. Por isso, explorar as diferentes formas de ler para obter informações é uma das ações que podem ser promovidas na biblioteca escolar e na sala de aula. Por isso, ações como explorar notícias que foram publicadas nos jornais é uma forma de fazer com que os alunos troquem ideias e discutam o que está acontecendo no país e no mundo.  Práticas como essa, além de aproximar os alunos do mundo cotidiano, os ajudam a se tornarem leitores assíduos, uma vez que a atualização das informações precisa ser feita diariamente. A necessidade de se informar, historicamente, foi o que fez as pessoas lerem e, hoje, além de receber a informação, é preciso contextualiza-la e desenvolver o senso crítico sobre ela.    

1.2. A LEITURA COMO FORMA DE ESTUDO À escola sempre foi atribuído o papel de fomentar nos alunos o hábito da leitura e da escrita, o que por muitas vezes, fez com que se entendesse o ato de ler como sinônimo de estudar. Mas sabemos que, muito além de memorizar, o ato de ler tem a finalidade de fazer o aluno refletir sobre a própria língua de forma geral, de modo que, lendo, o aluno observa estruturas, tem contato com a língua padrão, interage com ideias que não são suas, ou seja, constrói parâmetros para aprendizagem da língua. No entanto, há leituras que são específicas para o estudo (e que são necessárias também), as quais muitas vezes precisam ser orientadas pelos professores. Segundo Bencini (2006, p.34), De todos os comportamentos leitores, o de ler para estudar é certamente o mais cobrado pelos professores desde os primeiros anos do Ensino Fundamental ainda que muitos não saibam como ensiná-lo a seus alunos. Sem dúvida, aprender a ler textos informativos, artigos científicos, ensaios e livros didáticos (e paradidáticos) é uma habilidade fundamental para toda a vida, dentro e fora da escola.

Deste modo, orientar a leitura desses textos é mais difícil, entre outras coisas, porque o próprio material de estudo (didático), em geral, é menos atraente do que um livro de literatura infantil, por exemplo: muitas letras, poucas ilustrações, um conjunto de ideias que precisam fazer sentido (sendo que elas quase sempre são novas para o leitor). É importante, nesses casos, observar e orientar como o aluno está realizando a leitura, que muitas vezes exige uma pesquisa de metalinguagem (dicionário) para ser compreendida. Na escola não se lê apenas por prazer, porque a maioria das ações didáticas é voltada para o estudo e, nesse sentido, o ato de ler se faz necessário e precisa ter um acompanhamento sistematizado, pois o aluno precisa ver esta leitura como necessária e ao mesmo tempo, conseguir se interessar por ela. Em atividades em que se lê para estudar, faz todo sentido solicitar resumos, esquemas e sínteses que visam o entendimento, bem como estimular o registro pois, “ao escrever e esquematizar, a gente precisa reelaborar o que foi lido” (BENCINI, 2006, p.34). Em ações como essa, evidencia-se o papel do professor: “ler e escrever são tarefas da escola, questões para todas as áreas, uma vez que são habilidades indispensáveis para a formação de um estudante que é de responsabilidade da escola” (GUEDES; SOUZA, 2003, p.15). Ou seja, ler para estudar não são tarefas apenas do professor de português ou do auxiliar de biblioteca, são sim respon A seção 1, que se refere às formas de leitura, foram baseadas em pesquisa anterior da primeira autora, realizada juntos às Bibliotecas escolares da Rede Municipal de ensino de Concórdia - SC, apresentada no 6º Seminário de Leitura e Patrimônio Cultural: Leitura de espaços e espaços de leitura.

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sabilidade de cada professor e de cada disciplina, uma vez que é ele o detentor das especificidades e peculiaridades dos termos da leitura de sua área.

1.3. A LEITURA, O DELEITE: O PRAZER EM LER. Quando falamos em formação do leitor sempre vem à tona o ato de que para formarmos leitores, as crianças precisam aprender a gostar de ler. E se, já há alguns anos a escola é ciente disso, por que forma tão poucos leitores e o gosto pelos livros ainda é raro? Muito são os estudos que discutem a leitura e a formação do leitor e a maioria deles aponta para o fato de que misturar literatura com atividades didáticas, em geral, torna a leitura, que deveria ser por prazer, uma atividade escolarizante e vista como obrigação pelos alunos. Na biblioteca escolar, atividades como a hora do conto ou leituras compartilhadas, saraus, etc.., podem ter esse caráter: contar histórias com o simples objetivo de despertar-lhes a criatividade e a imaginação, utilizando-se de recursos para que o aluno sinta-se atraído por ler a história novamente. Ou mesmo, desperte para que ele venha a procurar tal obra. Ou seja, se o principal objetivo da atividade de leitura é dar prazer aos aluno, é preciso buscar um comportamento leitor no aluno, fazendo com que os estudantes se tornem leitores autônomos e busquem novos livros, pelos simples fato de buscar curiosidades ou aventuras nas histórias nele contidas. 

1.4. LER DE TUDO, TODO OS DIAS A leitura não deve ser isolada das ações cotidianas. Deve ser ser vista como algo que se relacione às atividades de qualquer estudante, de qualquer cidadão. Assim, quando se fala em ler para se informar, ler para estudar e ler por prazer, em outras palavras se está dizendo que todas as ações desenvolvidas na biblioteca (seja em espaços escolares, institucionais ou mais informais possíveis) que visam cativar um leitor são válidas, desde que suscite nele a necessidade e o desejo de ler. E nesta função, a escola e a biblioteca escolar desempenham uma importante função, devido ao fato de que, Para a grande maioria de nossas crianças a escola é o único lugar onde há livro - e não só as de classe popular, onde não sobra dinheiro para comprar livro, mas também na classe média, onde o dinheiro que sobra não costuma comprar livro. Ler tudo, desde as banalidades que possam parecer divertidas até as coisas que o professor julga que devem ser lidas para o desenvolvimento do cidadão, para o estabelecimento de seu senso estético, de sua solidariedade humana, do seu conhecimento (GUEDES; SOUZA, 2003, p.17).

As atividades realizadas pela biblioteca e na biblioteca devem estar voltadas não só para a leitura de obras, do livro em si, mas para a realização de uma leitura de mundo (FREIRE, 1994). Temos nos convencido a cada momento que através das atividades de leitura podemos propiciar ao cidadão uma visão abrangente da sua realidade, que a criatividade e cidadania cultural estão sempre presentes.

2. O PROGRAMA INENTIVO À LEITURA NA COMUNIDADE IFC: PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS A leitura é um trabalho criativo de produção linguística e de transformação de si próprio, feita por um sujeito discursivo que põe em cena certa forma de compreender a realidade dando continuidade ao eterno diálogo travado entre os homens (GERALDI, 2009). Acredita-se que a habilidade de leitura e interpretação auxilie na mudança de perspectiva das pessoas.

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Incentivar os alunos do IFC e das escolas públicas da região a compreender o mundo que os cerca através da compreensão dos textos que estão disponíveis no seu cotidiano é primordial para encaminhá-los à expressão dos seus pensamentos e, a partir disso, a tecer bons textos, organizados e repletos de sentido. No Brasil, estima-se que o hábito de leitura esteja presente em apenas uma pequena parte da população, enquanto em países desenvolvidos este é bem diferente. Desenvolver este programa seria uma forma de colaborar no papel da instituição em auxiliar o aluno a compreender melhor a sua realidade. O programa relatado neste artigo se subdivide em três linhas de trabalho: no projeto “Descubra um escritor”, objetiva-se que o aluno perceba que o autor é alguém real e que a escrita, portanto, é algo real, ao alcance de todos; no projeto “Literatura, cinema e cultura” apresenta-se para o aluno uma maneira de conhecer os textos, comparando-os com o olhar de um produtor de um filme, percebendo as diversas maneiras de interpretar uma mesma situação; o trabalho mais intenso acontece no projeto “Oficinas de leitura, interpretação e produção textual” em que diversas atividades são desenvolvidas visando à melhoria na capacidade interpretativa e na produção textual, baseada no incentivo a leitura pelos professores, bolsistas e biblioteca da instituição. Nesta atividade é envolvida a comunidade através de escolas conveniadas e no atendimento de uma ação social, com a parceria com o Recanto do Idoso, que geograficamente é muito próximo da instituição, mas distante, hoje, das ações de extensão desenvolvidas pelo campus. Dentre as ações já desenvolvidas e os resultados que se apresentam, estão as oficinas de leitura e interpretação, que atendem alunos de Ensino Médio Integrado do IFC, com ações de leitura e interpretação que reforçam as competências de leitura necessárias para o estudo em todas as disciplinas. Também, a contação de histórias no Recanto do Idoso, local em que a conversa sobre os “causos” contados, relatos dos idosos sobre os tempos idos, misturados à música e declamações criam um ambiente especial de mediação de leitura, associada à prática social, demonstrando como a leitura pode oferecer um momento aprazível para os moradores idosos do local. Para o projeto “Descubra um escritor”, elaborou-se roteiros de leitura que professores das escolas públicas da região receberam junto a textos e informações bibliográficas dos autores em questão, com intuito de fomentar a leitura, o interesse pela escrita e mediações sobre os textos em ambientes escolares externos aos IFC. Esta atividade teve boa receptividade nas escolas, as quais podem participar dos encontros com o escritor, quando de sua visita ao IFC. No ano de 2015 esse projeto enfatizou atores catarinenses, com a vinda de Carlos Henrique Schroeder e Maicon Tenfen. O programa ainda está em desenvolvimento, mas os reflexos das ações e mediações de leitura na comunidade já são perceptíveis, em especial no que se trata a prática social que a leitura possibilita aos que dela compartilham.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Oportunizar que os alunos tenham contato com os autores dos livros é uma forma de desmistificação e aproximação humana à realidade. Quanto mais as pessoas se conhecem, mais pessoal e comprometido passa ser o processo de ensino-aprendizagem. A leitura é uma atividade que se realiza individualmente, entretanto, é uma prática que se insere num contexto social “envolvendo disposições atitudinais e capacidades que vão desde a decodificação do sistema de escrita até a compreensão e a produção de sentido para o texto lido” (VAL, 2006, p. 21). E é também um ato que necessita de estímulo e motivação. A leitura contribui também para o prazer pessoal e amplia os interesses do indivíduo. As vantagens do hábito da leitura se estendem tanto pela vida pessoal quanto profissional. A preocupação

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em incentivar o gosto pela leitura dos alunos não deve ser exclusiva do professor de Língua Portuguesa, mas de todos que trabalham direta ou indiretamente com a educação. Pois problemas de interpretação, por exemplo, ocorrem em qualquer disciplina ou situação do cotidiano. É importante destacar que qualquer tipo de leitura é importante nesse processo. Sem a preocupação com construções literárias referenciais, estilos adequados, etc. Nesse sentido, se gibis, revistas e demais materiais que fogem do canônico “livro de literatura” tiverem a capacidade de atrair o leitor, será muito válido e poderá ser o início de uma relação duradoura com a leitura.

REFERÊNCIAS GERALDI, J. W. Labuta de fala, labuta de leitura, labuta de escrita. In: COELHO, L. M. (Org.). Língua Materna nas séries iniciais do Ensino Fundamental: de concepções e de suas práticas Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 213-228. VAL, Maria da Graça Costa. O que é ser alfabetizado e letrado? In: CARVALHO, Maria Angélica Freire de; MENDONÇA, Rosa Helena (orgs.). Práticas de leitura e escrita. Brasília: Ministério da Educação, 2006. BENCINI, R. Todas as leituras. Revista Nova Escola, n. 194, ago. 2006. P. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 29.ed. São Paulo: Cortez, 1994. GUEDES, P.C.; SOUZA, J.M. Leitura e escrita são tarefas da escola e não só do professor de português. In: NEVES, I.C.B. (Org.) Ler e escrever compromisso de todas as áreas. 5.ed. Porto Alegre: Editora da Universidade/ URGS, 2003. NEVES, I.C.B. (Org) Ler e escrever compromisso de todas as áreas. 5.ed. Porto Alegre: Editora da Universidade/URGS, 2003.

LIVROS QUE CIRCULAM, LEITORES QUE SE APROXIMAM: O EMPRÉSTIMO INTERPESSOAL NA COMUNIDADE VIRTUAL LIVRO VIAJANTE Thaísa Antunes Gonçalves* (FEEVALE/UCS)

Devido a um maior acesso às tecnologias digitais, práticas presenciais adaptam-se e transformam-se no ambiente online. Movidas por diversos fatores como velocidade e praticidade, muitas atividades cotidianas são atualmente mediadas pelo computador, tais como compras, acesso a serviços do governo e agendamento de consultas médicas. As diversas práticas de leitura também transformaram-se com a emergência do virtual, culminando em novos suportes, novos gestos e novas formas de sociabilidade em torno do ato de ler. A troca e o empréstimo de livros são parte desse conjunto de práticas e podem ser conferidas em sites como Livralivro, Skoob, Tempresto, Bookcrossing, entre outros. Esses ambientes facilitam trocas “livro por livro” e empréstimos entre usuários cadastrados, auxiliando ainda quanto a disponibilização e rastreio de livros deixados em locais públicos ao redor do mundo (prática chamada de “bookcrossing” ou “libertação de livros”). A partir das considerações acima, propõe-se o tema empréstimos interpessoais de livros mediado por comunidades virtuais. Enfatiza-se que esse estudo não procura tratar do empréstimo de livros digitais, tal como em um primeiro momento a associação de livros a uma comunidade virtual possa indicar. É explorarada a apropriação da web como auxílio à circulação de livros físicos, prática organizada e exercida pelos próprios leitores, sem o intermédio de instituições informacionais e formais como as bibliotecas. Atualmente com cerca de 1.500 participantes1, a comunidade denominada “Livro Viajante” iniciou seu desenvolvimento como um grupo do site de rede social Skoob, em 2010. Seu principal objetivo é realizar empréstimos entre os próprios participantes, criando assim uma rede de relações sociais baseada na confiança e interesse pela leitura. Para concretizar os empréstimos, determinadas regras e normas de conduta são expressas como guia geral de orientação para aqueles que desejam disponibilizar seus livros ou pedir emprestado os de outros participantes. Além do conjunto normativo básico existente no grupo, também está presente a valorização da liberdade individual de cada proprietário de livro, o que permite que cada indivíduo possa desenvolver regras próprias para seus “viajantes”, expressão utilizada para designação dos materiais em empréstimo.  Em face a essa forma autônoma e personalizada de circulação de livros, pretende-se apresentar alguns dos aspectos2 relacionados a compreensão de uma prática de empréstimos interpessoais mediados por um ambiente online, inserindo o fenômeno dentro dos estudos biblioteconômicos. Para isso, utilizou-se uma abordagem etnográfica composta das técnicas de observação participante e entrevistas com os sujeitos. A imersão na comunidade foi realizada durante sete meses, a qual exigiu a participação da pesquisadora não somente no grupo principal, mas também nas extensões desen-

Mestranda em Processos e Manifestações Culturais, especializanda em Tecnologias na Educação, Bacharel em Biblioteconomia (Universidade Feevale / Univesidade de Caxias do Sul / Universidade Federal do Rio Grande, Brasil). E-mail: [email protected] 1 Até o início de setembro de 2015 o grupo contava com 6.700 participantes, mas por decisão da moderação foi realizada uma pesquisa intensa a fim de excluir membros que nunca comentaram no grupo ou que possuíssem perfis inativos na rede social, objetivando assim a permanência de apenas membros ativos. No momento de escrita deste trabalho e após a primeira verificação pelos moderadores, o Livro Viajante contava com cerca de 1.500 membros. 2 O presente trabalho apresenta alguns dos resultados obtidos no trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Bacharelado em Biblioteconomia na Universidade Federal do Rio Grande em 2014. *

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volvidas pela comunidade: grupo de denúncias de má conduta nos empréstimos (no Skoob) e grupo de discussões (no Facebook). 

1. BIBLIOTECAS, LEITURA E LEITORES Estudos de história da leitura apontam o ato de ler em suas mais diversas nuances: finalidades (para distração, para erudição ou memorização), formas de ler (em silêncio, em voz alta, em grupos ou de forma solitária), suportes e formatos (argila, pergaminho, códice; livro de bolso, livretos, livros de orações e de imagens, hipertextos), símbolos (intelectualidade, poder, rebeldia, distinção financeira, social e espiritual), posturas e locais de leitura, máquinas e mobiliários auxiliares, entre outras. Procura-se aqui distinguir as formas de circulação da leitura e o grau de sociabilidade decorrente delas. De forma a iniciar a discussão sobre esse tema, ressalta-se a abrangência de possibilidades e a complexidade que os estudos sobre leitura proporcionam:  projetar explicações para as práticas de leitura exige compreendê-las como construtos sócio-culturais que só adquirem sentidos a partir da urdidura de inúmeras variáveis que, em nenhum momento, se isolam, encerrando em si, modos, ritmos, intensidades e desejos que variam de texto para texto e de leitor para leitor, da mesma forma que devemos tentar apreender as maneiras como estas se efetivam, nos vários lugares onde se desenvolvem. (SILVEIRA, 2012, p. 149) 

Frente a gama de aspectos relacionados à leitura, é interessante observar de que forma o tema é discutido no âmbito biblioteconômico, área também responsável por esse debate. Inicialmente, é oportuno refletir sobre o imaginário relacionado ao livro, tradicional emblema da leitura.  É visível que os bibliotecários são alguns dos profissionais mais interessados pela discussão sobre seu fazer e seu ambiente de trabalho, conforme a profusão de trabalhos que discutem sua profissão. Apesar de ocuparem-se do tratamento da informação em seus mais diversos suportes, permanece o códex como seu maior símbolo. Não por menos, livros e bibliotecas agem no imaginário popular como palácios do saber, locais com aura sagrada onde todo o conhecimento do universo reside. Silveira (2012) também procura defender a biblioteca como intimamente vinculada aos livros, no imaginário coletivo. Todavia, deve-se ponderar sobre a relação entre o objeto físico livro (ou seu conjunto, a biblioteca) e o ato de ler (e quanto a este, ainda deve ser pensado qual o tipo de leitura que está presente na associação). Livros e bibliotecas não necessariamente estão sempre relacionados à leituras prazerosas, como muitas vezes são consideradas as leituras literárias.  Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro em 2011, a biblioteca representa, para a população brasileira, um local de estudo, pesquisa e voltado para estudantes (INSTITUTO, 2011, p. 119). A associação da biblioteca à leitura literária figurou muito abaixo dessas respostas. Considerando a importância do imaginário social como apontada por Silveira (2012), devemos rever a situação atual brasileira, a qual concede às bibliotecas uma aura mágica, mas superficial e na esfera do senso comum. Outros dados obtidos pelo Instituto Pró-Livro, apontam que cerca de 70% da população não frequenta bibliotecas, apesar de afirmarem que estas são de fácil acesso. A esses não-frequentadores, foi lhes perguntado o que os faria frequentarem uma biblioteca, no que a maioria respondeu que nada os faria frequentá-la (INSTITUTO, 2011, p. 120; 125).  Entretanto, não se acredita que esses dados confirmem uma falta de interesse pela leitura, uma vez que a biblioteca e os centros informacionais não são os únicos locais onde a informação pode ser encontrada, apesar de direcionados a esse sentido. É necessário perceber que a população possa estar buscando preencher suas necessidades informacionais, especialmente literárias, em outros locais. Cabe, então, ao bibliotecário conhecer essas diferentes formas e processos de acesso a leitura. 

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A biblioteconomia, ao tratar do incentivo a leitura, vale-se de estratégias bastante variadas. Entretanto, ainda assim não são muito comuns ideias que estimulem sistemas de auto-organização dos leitores, ou seja, a promoção da circulação da informação principalmente entre os próprios interessados, sem a necessidade de uma instituição biblioteconômica ou um mediador de leitura envolvidos.  É oportuno enfatizar que não se aponta aqui o desprestígio ou mesmo a erradicação das bibliotecas, mas sim uma nova perspectiva que a signifique muito além de sua tradicional imagem institucional. Um exemplo são os acervos pessoais, pouco abordadas na bibliografia brasileira de biblioteconomia. Longe de ser visto como um ato de egoísmo, deve-se observar esse tipo de acervo como mais um dos tantos recursos ativos na construção de identidade. Enfatiza-se que o “pessoal” do termo pode não estar relacionado ao privado no sentido de recluso, longe dos olhos de outros; mas pelo contrário, para ser visto por outros indivíduos. Esse elemento simbólico de afirmação do “eu” não se restringe apenas aos acervos físicos, pois também pode ser observado nas estantes virtuais presentes em sites de redes sociais focados em leitura, mostrando o deslocamento da prática de demonstração de erudição (CARRERA; PAZ, 2012). Em uma situação intermediária entre as bibliotecas públicas e pessoais, pode-se ainda pensar em uma nova tipologia, a qual será denominada aqui de bibliotecas invisíveis, uma vez que não foram encontradas conceituações sobre o fenômeno. Essa noção corresponderia aos diversos exemplares em constantes viagens, passando de mão em mão por vários indivíduos ao redor de uma comunidade, seja ela constituída presencialmente ou virtualmente. Com o lema “Ler, Registrar e Libertar”, o projeto Bookcrossing é o pioneiro nesse sentido. Criado em 2001, objetiva “transformar o mundo em uma biblioteca” promovendo a distribuição de livros em locais públicos, para serem encontrados, lidos e repassados adiante. Esse processo é também reconhecido por outras expressões, tais como “libertação de livros” ou “viagem”, entre outros. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a circulação de livros não é desprovida de ordem e cuidados. O site do projeto funciona como rastreador dos materiais, oferecendo um código para cada exemplar libertado, denominado BCID (BookCrossing Identification Number). Registrado em uma etiqueta afixada ao livro, juntamente com outras informações sobre a prática de Bookcrossing, o novo leitor que encontrar o exemplar pode inserir o código no site e registrar o local em que o encontrou. Comentários sobre a leitura são incentivados pela iniciativa, que oferece um espaço especial na ficha virtual dos exemplares, traçando assim a trajetória do livro. O Bookcrossing expandiu-se e tornou-se uma prática, indo muito além do site original, sendo a inclusão do termo no Dicionário Concise Oxford de língua inglesa a confirmação da consolidação dessa ideia. Decorrente dessa, outras concepções surgiram com propostas similares, também auxiliadas por ferramentas digitais. Os sites LivraLivro, Tempresto e o projeto BigLib também objetivam auxiliar na circulação de livros pessoais, acrescentando a vantagem de escolha dos títulos e participantes com que realiza-se a troca. Sendo assim, determina-se as seguintes características para esse tipo de iniciativa: a) circulação livre de livros, sem instituições como intermediárias; b) mecanismos normativos mais flexíveis, negociados com os leitores; c) conteúdo com potencial ilimitado devido a inexistência de limites físicos; d) formação de laços sociais.

2. SOCIABILIZAÇÃO NA CIBERCULTURA Para Pierre Lévy (2010), o ciberespaço é regido por três princípios norteadores: a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva. Ainda que o primeiro elemento possua forte ligação à aspectos técnicos, os outros dois agem como o aspecto humano, os quais possuem importante papel na unificação e modelagem da rede. Nesse sentido, verifica-se que apenas recursos

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técnicos não determinam o desenvolvimento de uma tecnologia, sendo necessária uma articulação com a apropriação daqueles que a utilizam. Essa compreensão, desenvolvida por muitos autores no início da década de 2000, impulsionou os estudos sobre internet. Iniciou-se assim uma perspectiva mais madura sobre o tema, focada principalmente na sociabilidade e cultura decorrentes do uso e apropriação da rede. Um dos temas que passaram a desenvolver-se é a cultura de nicho, com cada vez mais seguidores na web. As subculturas, denominadas assim em oposição à cultura dominante, referem-se a subgrupos com interesses mais definidos e particulares. Para explicar a crescente adesão aos nichos, Anderson (2006) propõe a teoria da Cauda Longa, nos mostrando que o consumo de produtos voltados a interesses específicos é cada vez maior e em sua soma pode superar o consumo dos produtos de massa, os chamados hits. A proposta de Anderson atua no âmbito das redes sociais ao auxiliar a compreensão sobre a emergência das redes sociais de nicho (também denominadas redes sociais segmentadas ou temáticas). Essa denominação é adotada com o objetivo de destacar a oposição em relação aos sites de redes sociais (SRS) genéricos ou de propósito geral. Em SRS de nicho, é comum a existência de recursos que possibilitem a construção e compartilhamento de referenciais simbólicos vinculados ao principal tema de interesse da rede, como aponta Carrera e Paz (2012). Em um SRS de moda como o Lookbook.nu, observa-se a importância de elementos como o hype, tipo de voto dado às fotos postadas por outros participantes. Uma foto de look com alto número de hypes corresponderia a uma alta chance de visibilidade e, decorrente disso, popularidade. Outra característica marcante de agregações mais focadas como os SRS de nicho, é a tendência à formação de laços fortes, uma vez que a afinidade entre os participantes tende a ser maior, possibilitando uma maior aproximação (RECUERO, 2009). Salienta-se que esses tipos de redes sociais, apesar de agregarem indivíduos em torno de um interesse específico, não devem ser confundidos com comunidades virtuais. Estas possuem suas peculiaridades, sendo definidas principalmente pelas interações constantes e em longo prazo. Assim como as redes sociais, o surgimento das comunidades virtuais também possui raízes anteriores à internet. Outros tipos de comunidades estabelecidas a distância, como os colégios invisíveis3 e a prática de pen pal4, existem desde a popularização dos serviços postais. Contudo, o conceito de comunidade virtual desenvolvido no contexto da rede mundial de computadores, tornou-se alvo de muitas discussões devido a falta de compartilhamento de uma área geográfica entre seus participantes, importante elemento na noção tradicional de comunidade (PRIMO, 1997). Em resposta à essa discussão, Lemos (2002 apud RECUERO, 2009), afirma que o que importa em uma comunidade virtual não é seu território físico, mas simbólico. Como já visto em considerações anteriores sobre a teoria da Cauda Longa, cada vez mais o mercado de massa fragmenta-se em nichos, facilitado pela popularização das mídias digitais. No âmbito das redes de relacionamento online, atualmente estão disponíveis na internet desde redes sobre pesquisa acadêmica à redes para interessados em golfe. Sobre o tema leitura, podem ser citados os mundialmente conhecidos Goodreads, Shelfari e LibraryThing, sites que oferecem o serviço de organização da biblioteca pessoal dos usuários, adquirindo assim também a denominação de sites de catalogação social. Crippa e Carvalho (2012) analisam o SRS Anobii, também focado em leitura, verificando alguns diferenciais em relação à outras plataformas similares. Os aspectos destacados pelas autoras foram o medidor de compatibilidade de leituras entre os participantes, registro de novos livros e a possibilidade de comentá-los e avaliá-los. Para Crippa e Carvalho (2012, p. 100), os SRS de leitura Colégios invisíveis são grupos de pesquisadores que produzem sobre uma mesma área, mas que não estão fisicamente próximos. Através das interações entre os indivíduos, sejam mediadas por cartas ou pelo computador, são estabelecidas comunicações informais sobre seus interesses de pesquisa. 4 Prática de trocas de cartas por pessoas de diferentes lugares do mundo. 3

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agem como mediadores de informação “entre indivíduos que procuram compartilhar as suas leituras, conhecer novos livros e dividir as suas impressões a respeito deles.”. O papel de mediador, antes personificado em um indivíduo que facilitaria o acesso e processo de significação da informação, atualmente está contido nas tecnologias digitais. Os SRS abririam novas possibilidades, estimulando os próprios participantes a serem mediadores. Nas palavras de Almeida e Crippa (2009, p.13 apud CRIPPA; CARVALHO, 2012, p.103), o leitor “[...] pode acumular agora os papéis de autor, crítico e bibliotecário de referência.”. Os SRS de leitura não somente auxiliam no incentivo à leitura, como na interferência nas escolhas dos leitores. Percebe-se isso na confiança que os participantes depositam nas avaliações e comentários de outros membros do site, especialmente quando são amigos na rede (CRIPPA; CARVALHO, 2012).

3. SKOOB E A COMUNIDADE LIVRO VIAJANTE Em janeiro de 2009, foi lançado a primeira rede brasileira de relacionamentos voltada à leitura, desenvolvida por Lindenberg Moreira. Com o slogan “O que você anda lendo?”, o Skoob trouxe aos brasileiros a estrutura popularizada pelos internacionais Goodreads e Shelfari, que permitem a construção de uma estante virtual e interação com outros leitores. O Skoob não possui nenhum elemento novo em relação aos internacionais SRS já citados, mas por ser o primeiro do gênero no Brasil, percebe-se que o fator idioma português influenciou bastante em sua popularidade. Relacionado à funcionalidade de catalogação social, o site permite a organização da estante virtual por livros lidos, em processo de leitura, a ler no futuro, sendo relido e abandonado, além de permitir o estabelecimento de tags livres. Quanto a posse do material, a classificação permite indicar os livros possuídos pelo usuário, desejados, emprestados e para troca. Outros recursos proporcionados pelo Skoob são a criação de grupos, a realização de trocas, integração com outros SRS e a produção de resenhas e comentários. Viana Neto (2010) sugere um destaque maior para este último recurso e o indica como espaço potencial de aprendizagem, uma vez que atua como um ambiente de escrita e discussão. É necessário esclarecer que os usuários do Skoob, denominados “leitores” pelo próprio site, podem nem sempre ser, necessariamente, leitores reais. Como visto anteriormente, uma rede social também é um local de construção identitária que possibilita uma série de recursos para que os indivíduos possam descrever a si mesmos. Dessa forma, o número de livros lidos, bem como seus gêneros e títulos, podem nem sempre ser garantia de sinceridade, como exposto por Carrera e Paz (2012). Assim como outros grupos do Skoob, o “Livro Viajante” é estruturado segundo o modelo de fórum, no qual há a possibilidade de criação de tópicos e respostas aos mesmos. Entretanto, a interface proporcionada pelo Skoob é bastante simples, não permitindo links ativos, imagens ou vídeos nas mensagens, apenas texto. No que se refere às limitações citadas, a comunidade procurou soluções alternativas em recursos externos que complementassem o grupo principal, como a criação de um grupo fechado no Facebook. Quanto à denominação da comunidade, percebe-se claramente a relação com o conceito de Bookcrossing ao referir-se à livros que “viajam”, ou seja, que circulam livremente entre leitores. Entretanto, apesar da aparente relação com o movimento de livros livres, o “Livro Viajante” diferencia-se por restringir a circulação dos exemplares dentro dos limites da comunidade, bem como por proporcionar a possibilidade de escolha de títulos, o que não ocorre no ideal Bookcrossing onde os livros são encontrados ao acaso. A decisão por manter a circulação dos livros dentro do grupo revela-se importante no sentido de preservar os materiais trocados, uma vez que os empréstimos ocorrerão entre interagentes que já possuem certa confiança entre si. Como exposto por Bertolini e Bravo (2001 apud RECUERO, 2009), essa é uma das formas de capital social encontradas em comunida-

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des virtuais e refere-se à confiança no ambiente como fator de união e movimentação das relações sociais. O elemento confiança, presente em toda comunidade, pode ser considerado intensificado no “Livro Viajante”, uma vez que o objetivo de sua necessidade é mais do que simplesmente manter as relações entre os interagentes, mas ser elemento essencial para o sucesso dos empréstimos. Como segundo aspecto diferencial, há a presença do caráter personalizado da leitura, fator inexistente em projetos de livros livres encontrados ao acaso. Ainda que no “Livro Viajante” exista uma variedade limitada de títulos, a possibilidade de escolha estimula os participantes a permanecerem na comunidade. Ainda, a oportunidade de seleção de um título permite que os leitores possam encontrar os condizentes com seus interesses, além de intensificar a formação de laços entre os leitores de uma mesma obra. A comunidade também interage em discussões sobre outras estratégias de circulação de livros, sorteios, gincanas e amigos secretos, divulgação de lançamentos, encontros presenciais e, ainda, em um tópico destinado especialmente à discussão geral (tópico intitulado “Dois dedinhos de prosa”). Constatou-se como principal motivo de participação na comunidade a possibilidade de interação com outros leitores de uma mesma obra e, mais do que isso, de um mesmo exemplar. Nesse sentido, foi percebido um alto apreço pelos livros emprestados desse modo, devido especialmente ao sentimento de familiaridade e cumplicidade que estes proporcionam aos leitores.  As mesmas obras, se pertencentes a bibliotecas, geram uma percepção diferente nos participantes, praticamente oposta à dos livros do grupo, como foi verificado através de afirmações dos membros da comunidade. De acordo com os sujeitos, os materiais de bibliotecas possuem uma aura de impessoalidade, o que gera alguma resistência ao seu empréstimo. Tal impressão negativa referente a bibliotecas, somada a outras como a existência de normas muito rigídas e impossibilidade de contato com outros leitores, constituem os principais motivos pelos quais os indivíduos afirmaram a preferência pelo Livro Viajante ao invés de instituições formais e tradicionais como as bibliotecas.  Verificou-se que o compartilhamento de livros gera laços fracos entre os membros, mas que transformam-se em laços mais sólidos em alguns momentos-chave, realizados periodicamente na comunidade: gincanas, amigos secretos, sorteios e encontros presenciais. As interações e possibilidade de afetividade em torno do ato de empréstimo e compartilhamento de impressões de leitura foram citados como os principais diferenciais entre o “Livro Viajante” e bibliotecas, motivo pelo qual os participantes preferem utilizar a comunidade para empréstimos, mesmo com acesso à outras formas de obtenção de informação.  Foi averiguado que, apesar da dinâmica do Livro Viajante ser uma forma de circulação da informação e estar bastante relacionada à ampla noção de biblioteca, ela não é reconhecida como uma biblioteca por seus participantes, assim como os livros que circulam não são considerados “empréstimos”, mas “viajantes”. Mais uma vez, essa percepção pode decorrer do imaginário negativo sobre bibliotecas, assim como também do orgulho de pertencer a uma comunidade estruturada pelos próprios leitores, necessitando portanto de todo um vocabulário exclusivo. Por fim, aponta-se que essa percepção dos participantes que afasta o grupo das noções relacionadas a bibliotecas, não exclui o estudo de manifestações como essa por bibliotecários, pelo contrário, a estimula, justamente por ser uma forma distinta de expressão de leitores.

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A MEDIAÇÃO DE LEITURA NO ESPAÇO DA BIBLIOTECA ESCOLAR Thiane de Vargas* (UPF) Tania Mariza Kuchenbecker Rosing** (UPF)

A escola é um ambiente rico em potencialidades educativas e culturais. Todos os seus atores, sejam os docentes, as ações e os espaços, podem ser produtores de conhecimento e disseminadores de cultura. Nesse estudo, intitulado como “A mediação de leitura no espaço da biblioteca escolar”, dar-se-á atenção especial para a leitura na escola e a mediação do docente1 responsável pela biblioteca escolar, pois, entende-se que essa articulação pode contribuir para o fortalecimento da relação dos estudantes com a leitura. No contexto da escola, a biblioteca escolar e seus atores constituem-se como importantes protagonistas na formação social dos sujeitos, pelas possibilidades educativas e culturais que podem permitir mediante a dinamização de seus acervos e da ação docente. É nesse ambiente, que inúmeras possibilidades educativas se desenvolvem e, nesse sentido, contribuem de forma significativa para a formação cultural dos estudantes. A leitura é, de acordo com Chartier (2014, p. 21), “uma prática essencial para compreender com mais lucidez o mundo social, o passado, o ser humano e, finalmente, a si mesmo.” Percebe-se, nesse sentido, que o ato de ler promove o exercício da cidadania, desperta a necessidae da emancipação do sujeito, aprimora seu pensamento crítico, para uma maior abertura ao conhecimento e à diversidade do mundo. Ao mesmo tempo, a biblioteca constitui-se em um ambiente de valorização, dedicado à apropriação das heranças culturais e a inclusão do leitor nas práticas letradas, entendidas em seu sentido amplo, devendo ser pensado coletivamente pela instituição escolar, de forma que propicie o alargamento do conhecimento e da cultura. Nesse sentido, considera-se a biblioteca escolar um ambiente rico em potencialidades educativas e o profissional responsável por esse espaço é considerado um importante mediador de leitura, disseminando a cultura e promovendo o interesse e o gosto pela leitura literária. Nesse sentido, o presente artigo, pretende discorrer sobre propostas e vivências leitoras no espaço da biblioteca escolar com o objetivo de refletir sobre o papel dodocente responsável pela biblioteca escolar e sua contribuição no desenvolvimento de práticas de mediação de leitura para a formação do leitor. Para tanto, o estudo será de caráter bibliográfico e será dividido em duas seçoes. A primeira seção tecerá considerações em relação à leitura literária na escola e sua importância para a formaçao integral do sujeito, de acordo com o aporte teórico de Chartier (2007, 2014), Silva (1986), Lajolo (2009) e Zilberman (2009). A segunda seção busca aporte em Rösing (2001) e Silva (1996, 2009a, 2009b) nas questões referentes à mediação de leitura e ao perfil necessário do docente ou mesmo da equipe de atuação na biblioteca. Por fim, a seção das considerações finais fará uma reflexão em relaçao ao tema proposto e as possíveis contribuições que este estudo trará para a mediação de leitura no contexto escolar.

Mestranda em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutora em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] 1 Nesse capítulo, o docente responsável pela biblioteca escolar poderá ser chamado de agente de leitura ou, mediador de leitura. Ambos os temos serão tratados como sinônimos. *

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1. A LEITURA LITERÁRIA NA ESCOLA É pela leitura que o ser humano compreende o mundo no qual está inserido e é desenvolvendo experiências de leitura que o leitor concebe a realidade que o rodeia e atribui significados ao discurso. Ler promove o exercício da cidadania, a emancipação do sujeito, o pensamento crítico, a abertura ao conhecimento e à diversidade do mundo. Chartier (2014, p. 21), refere que “não saber ler é uma forma de exclusão social que deixa o indivíduo totalmente desprovido frente às exigências burocráticas ou às necessidades de comunicação.” Assim, o sujeito que não tem o hábito da leitura, tende a ter menos oportunidades de melhor se relacionar com a sociedade, com as pessoas, com a escola e consigo. Chartier (2010, p. 34), ao debater a questão da cultura, refere-a como integrante das “práticas comuns através das quais uma sociedade ou um indivíduo vivem e refletem sobre sua relação com o mundo, com os outros ou com eles mesmos.” Nessa perspectiva, cultura e linguagem estão intimamente ligadas, de modo que a linguagem é um produto social, fruto das experiências individuais e coletivas dos homens em sociedade, representando, assim, suas experiências sociais e culturais. Na maioria das comunidade brasileiras, as famílias têm pouco acesso aos livros e quase nenhuma orientação sobre a importância do estímulo à leitura precoce. Esse fato atribui à escola a responsabilidade de desenvolver nas crianças e adolescentes o gosto pela leitura, por meio de práticas leitoras e acesso a livros de qualidade, levando em conta as diversidades culturais e as novas tecnologias. De acordo com Chartier, É papel da escola incentivar a relação dos alunos com um patrimônio cultural cujos textos servem de base para pensar a relação consigo mesmo, com os outros e o mundo. É preciso tirar proveito das novas possibilidades do mundo eletrônico e ao mesmo tempo entender a lógica de outro tipo de produção escrita que traz ao leitor instrumentos para pensar e viver melhor. (CHARTIER, 2007, p. 24).

A escola é, portanto, o ambiente em que grande parte dos educandos tem acesso, pela primeira vez, ao mundo letrado das movimentações culturais, no qual há troca de experiências, em que o aluno pode exercitar sua visão crítica, mantendo contato com a leitura literária, com o teatro, com o cinema, com as artes plásticas e com as demais produções culturais, bem como pode ter acesso aos ambientes virtuais de leitura e interação. As experiências vividas pelos alunos no ambiente escolar têm o objetivo de prepará-lo para o convívio em sociedade. Lajolo (2009, p. 104) colabora com a questão ao referir que o espaço escolar é um espaço no qual textos têm uma circulação programada, experimental. Acredito que as experiências de leitura que a escola deve patrocinar precisam ter como objetivo capacitar os alunos para que, fora da escola, lidem competentemente com a imprevisibilidade das situações de leitura (no sentido amplo e no restrito da expressão) exigidas pela vida social.

Com esses propósitos, observa-se a importância de buscar soluções e estratégias para desenvolver o hábito, transformá-lo em comportamento de leitura ao lado do prazer que essa atividade propicia aos alunos. A busca por formar leitores na escola é um esforço de caráter interdisciplinar, que envolve toda a estrutura da escola. Para Zilbermann (2009), escola e leitura se relacionam, pois a escola é um elemento de transformação que não pode ser negligenciado. E este fator relaciona-se especialmente com a leitura, o que é sugerido, em uma primeira instância, pelas políticas educacionais das nações emergentes: ao conquistarem sua emancipação, desencadeiam programas de alfabetização em massa, por meio de campanhas patrocinadas pelo Estado, sobretudo quando este se proclama de extração popular.(ZILBERMANN, 2009, p. 26).

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Entende-se, dessa forma, que a escola interfere de forma fundamental no processo de desenvolvimento intelectual e crítico do ser humano. Conforme refere Silva (1986), a leitura crítica é a condição para a educação libertadora, a verdadeira ação cultural que deve ser implementada nas escolas.

2. A MEDIAÇÃO DE LEITURA NA BIBLIOTECA ESCOLAR O uso efetivo da biblioteca escolar exige da instituição ações programadas para dinamizar o acervo e o espaço disponível. De acordo com Silva (2009a) A biblioteca escolar é um espaço democrático, conquistado e construído a partir do ‘fazer’ coletivo (alunos, professores e demais grupos sociais) – sua função básica é a transmissão da herança cultural às novas gerações, de modo que elas tenham condições de reapropriar-se do passado, enfrentar os desafios do presente e projetar-se no futuro. (SILVA, 2009a, p.197).

A biblioteca constitui-se em um ambiente de valorização, que deve ser pensado coletivamente pela instituição escolar, de forma que seja estruturado e seu funcionamento planejado. É importante que o usuário desse espaço possa ter acesso a variados materiais de leitura, desde o impresso ao eletrônico, às artes, ao cinema, à fotografia, às memórias. Entretanto, apenas circular em meio à diversidade de materiais não desenvolve o gosto pela leitura. É preciso mais do que isso, é “imprescindível conviver com uma ou mais pessoas que se envolvam eventual ou permanentemente com esses materiais, significando-os.” (SANTOS, MARQUES NETO e ROSING, 2009, p. 13). Nesse contexto, observa-se a participação do docente responsável pela biblioteca escolar na dinamização dos acervos existentes na escola, a fim de proporcionar aos estudantes atividades que desenvolvam a leitura literária e o conhecimento da cultura. Ainda, conforme Santos, Marques Neto e Rosing (2009), a existência de materiais de leitura disponibilizados por todos os recantos de uma casa, de uma escola, inclusive de uma biblioteca aliada à presença de pessoas que se envolvam permanentemente com diferentes gêneros textuais, por intermédio da leitura prazerosa, passa a constituir um exemplo de leitor a ser seguido, podendo transformar outros indivíduos em sujeitos leitores. (SANTOS, MARQUES NETO e ROSING, 2009, p. 13).

Nesse sentido, salienta-se a importância da mediação de leitura e a formação do docente responsável por esse ambiente, o qual desempenha um papel essencial no processo: o de protagonista na tarefa de promover a transformação do hábito em comportamento leitor, desenvolvendo o gosto pela leitura nos estudantes pela dinamização do acervo existente. A mediação de leitura, bem como a formação do profissional responsável pelo espaço, tem caráter determinante no processo de construir, incentivar e promover ações de leitura na biblioteca escolar. É o mediador de leitura da biblioteca que irá conduzir os estudantes pelos caminhos letrados, indicando leituras adequadas aos seus interesses e incentivando o uso dos diversos suportes. Contudo, isso somente será possível se esse profissional for um leitor, podendo interagir com os leitores em formação e contagiá-los a transformarem-se em verdadeiros leitores. Em relação à mediação de leitura, Rosing (2001) nos traz uma definição ao referir que a mediação de leitura se constitui numa situação comunicativa, variável, que observa referências psíquicas, politicas, culturais e históricas, comprometida com o processo de construção da criticidade dos leitores e da viabilização de sua cidadania. (ROSING, 2001, p. 29).

Nesse sentido, a mediação de leitura passa pelo processo de formação de agentes culturais, os quais têm o “grande objetivo de estimular o leitor a se envolver com a leitura, cujo prazer vem da

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ampliação do conhecimento e do desenvolvimento de um olhar crítico para a sociedade em toda a sua complexidade”. (ROSING, 2001, p. 29). A configuração da biblioteca escolar, como hoje é encontrada nas escolas públicas, não colabora para a promoção da leitura na ambiente escolar, sendo considerada apenas como mais um setor qualquer na estrutura física da instituição. Embora, haja projetos governamentais que incentivem a biblioteca como parte do processo de ensino-aprendizagem pelos estudantes, como exemplo têm-se o Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), observa-se que ações mais efetivas tem de ser aplicadas, pois na maioria das escolas, conforme refere Nuñez (2002, p. 229), “a biblioteca escolar se concebe mais como um serviço auxiliar ou uma sala de leitura do que como uma parte ativa do currículo ou um laboratório de aprendizagem”. As novas concepções de leitura determinam um novo perfil de leitor e de mediador de leitura, em virtude dos novos suportes de leitura e comunicação, sendo que os jovens alteraram seus hábitos a partir do uso dos equipamentos tecnológicos disponíveis, como smartphones e tablets. Dessa forma, os hábitos de leitura também se alteraram, o que não pode ser desconsiderado pelos agentes de leitura, pois esses equipamentos também são suportes para a leitura literária. De acordo com Rosing (2001), esses equipamentos provocam a sua curiosidade e, em especial, o seu desejo de interagir com os recursos deles emergentes. Somam-se a esses aspectos estímulos à produção de textos diferenciados em seu formato, de desenhos, de imagens muito instigantes e materiais diversos. (ROSING, 2001, p. 26).

A escola não pode, assim, desconsiderar o uso das inovações tecnológicas e dos recursos multimidiais em suas atividades de promoção à leitura e à cultura. É necessário pensar a formação do leitor nessa perspectiva, o qual demonstra curiosidade e entusiasmo pelos suportes com tela, contudo, ao mesmo tempo que sente prazer ao ler um livro. Nessa perspectiva, os mediadores de leitura, além de leitores, precisam ter conhecimento do uso dos equipamentos tecnológicos, seus recursos e a sua implicação na leitura do hipertexto, sendo alfabetizados culturais e tecnológicos. Observa-se um descompasso entre o que é promovido e transmitido na escola e as reais necessidades, preferências e desejos dos estudantes. “As formas de circulação do saber recebem um tratamento em sua transmissão pelos docentes das diferentes disciplinas bastante diferenciado dos padrões que vão se estabelecendo entre os alunos”. (ROSING, 2001, p. 26). Conhecer as preferências e os desejos dos leitores em formação contribui para a promoção de ações voltadas para essas necessidades e propicia aos estudantes experiências de leitura contextualizadas com a sua realidade. Percebe-se dessa forma, a necessidade de criação de vivências de leitura multimidiais, estabelecendo-se, assim, uma cultura de leitura em diversos suportes. De acordo com o que postula Nuñez (2002, p. 242) “a biblioteca é para todos e, por isso, deve dar respostas às necessidades informativas, de entretenimento, etc. que solicitem”. Atualmente, na rede pública de ensino, a função do bibliotecário na biblioteca da escola, embora seja recomendada pela lei 12244, que regulamenta a universalização das bibliotecas das instituições de ensino, é, geralmente, atribuída a um professor do corpo docente da escola. Essa designação é feita, comumente, pela falta do profissional da biblioteconomia nos quadros funcionais das autarquias municipais e estaduais. Dessa forma, como a prioridade de lotação dos docentes é a sala de aula, em muitos casos, o profissional designado para exercer a função de responsável pela biblioteca escolar na escola pública, quando existe, é o docente que está em fase de readaptação funcional2, afastado das salas de aula, em grande parte devido a problemas de saúde física ou mental. Segundo o Artigo 24 da Lei 8112/90, “readaptação é a investidura do servidor público em cargo de atribuições e responsabilidades compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental, verificada por inspeção médica”.

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O cotidiano dos profissionais responsáveis pela biblioteca escolar é marcado, principalmente, pelos tradicionais empréstimos de livros e organização de estantes, relegando as atividades de incentivo à leitura e atividades culturais à segundo plano. Outra constatação é a de que a maioria dos docentes e profissionais responsáveis pela biblioteca escolar não são leitores, o que segundo Rosing (2001, p. 25) “afronta a educação e a cultura”. Essa realidade, somada ao descaso com a formação dos docentes resulta em um distanciamento entre a escola e os estudantes. O fator fundamental da formação dos docentes é a leitura. É pela, e na, leitura que o docente forja sua identidade e reconhece os instrumentos para a reprodução de conhecimentos e preparação educacional dos estudantes. Silva (2009b, p. 23) traduz essa necessidade afirmando que “professor, sujeito que lê, e leitura, conduta profissional, são termos indicotimizáveis – um nó que não se pode nem se deve desatar”. A gênese do ato de ler é social e essa abordagem imprimi abrangência e profundidade à ação docente na mediação de experiências e conhecimentos. Nesse sentido, não se pode conceber que o docente mediador de leitura, enquanto sujeito social e orientador do processo ensino-aprendizagem, não seja leitor. A função do profissional responsável pela biblioteca escolar, enquanto agente de leitura, extrapola a mera organização e a difusão da informação e insere-se em um patamar de promoção à leitura e ampliação dos horizontes culturais dos estudantes. Assim, como defende Silva (1986), Não basta que a biblioteca execute somente as tarefas técnicas de difusão da informação; é necessário que ela exerça influência ativa e dinâmica no contexto envolvente, preocupando-se com a qualidade do seu acervo e dos seus serviços, com a origem e necessidades dos usuários, com a democratização do seu espaço, e com o planejamento de programas sócio-culturais. Tal movimento impõe aos bibliotecários uma reflexão profunda sobre a razão de ser do seu trabalho, abrindo-lhes a consciência para determinadas necessidades de atualização e de expansão do conhecimento – essa necessidade em muito extrapolavam as tarefas rotineiras de tombar, classificar, catalogar, em prestar e recolher as obras contidas no acervo. (SILVA, 1986, p. 73).

Para tanto, o docente responsável pela biblioteca escolar, com o apoio da equipe gestora, poderá transformar a biblioteca em escolar em um ambiente no qual os estudantes tenham acesso e contato aos diversos materiais de leitura e culturais, dinamizando seu acerco e promovendo atividades educativas e culturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou refletir sobre “A mediação de leitura no espaço da biblioteca escolar”, atentando para a mediação do docente responsável pela biblioteca escolar, pois, entende-se que essa articulação pode contribuir para o fortalecimento da relação dos estudantes com a leitura. Nesse sentido, os docentes, enquanto agentes culturais, são intermediários que provocam a comunicação entre mundos diferentes, sendo tradutores, ao mesmo tempo que compreendem, fazem compreender a diversidade cultural e a diversidade humana. O mediador de leitura tende a incentivar o leitor em formação a buscar as pistas textuais e a identificação da intencionalidade do autor e, assim, significá-lo. Essa ação possibilita o estabelecimento de inúmeras relações, por meio do conhecimento, conduzindo o ato de ler a resultados não previsíveis. A mediação de leitura, ou mediação cultural, de acordo com Santos (2009), trata-se de reconhecer a dimensão cultural da sociabilidade e a importância crescente da linguagem na construção social da realidade. Assim, o mediador de leitura, pode contagiar os leitores em formação a se

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transformarem em leitores verdadeiros, entendendo os textos nos diversos suportes e nas múltiplas linguagens, do impresso ao virtual, em sua complexidade, criatividade e interação. Dessa forma, a formação dos mediadores de leitura precisa conferir-lhes competências capazes de selecionar as formas eficazes e criativas de dinamização dos acervos existentes e disponíveis na escola, estimulando o leitor a envolver-se com a leitura, buscando prazer no ato de ler, o que acontece quando há ampliação do conhecimento e o desenvolvimento à criticidade do sujeito, enquanto ser histórico e social. Igualmente, considerando-se a universalização do recebimento de acervos literários na escola em todos os segmentos, a aproximação e o vínculo dos estudantes com leitura literária vêm sendo fortalecidos. Apesar disso, somente a presença de acervos na biblioteca não garante ações efetivas para a formação de leitores. Paiva (2012, p. 16) afirma que “a discussão sobre uma política efetiva de formação de leitores continua a merecer, entre nós, uma reflexão profunda e que, certamente, esteve na base, em maior ou menor grau, de todas as políticas de promoção de leitura desenvolvidas até o momento.” Essa discussão deve englobar não somente a constituição de acervos, mas a formação de mediadores de leitura e a dinamização dos acervos na biblioteca escolar. Assim, a formação de leitores no contexto da biblioteca escolar, requer investimentos na formaçao dos docentes responsáveis, na organização do espaço e, principalmente, na dinamização dos acervos, pela mediaçao docente, visando a formação de um leitor cultural, crítico e reflexivo. Igualmente, o mediador de leitura precisa levar em conta, nas vivências leitoras que oportunizar aos estudantes, os novos perfis de leitores, os diversos suportes disponíveis e as novas possibilidades de leitura na rede. Contudo, as prática de leitura serão exitosas se o docente responsável pela biblioteca escolar ser um sujeito leitor. Somente forma leitores o mediador que for leitor experiente e saiba conduzir o leitor em formaçao a experimentar o prazer que a leitura proporciona.

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_____. Biblioteca escolar: da gênese à gestão. In.: ZILBERMANN, R.; RÖSING T. M. K. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global editora, 2009a. _____. O professor leitor. In.: SANTOS, F. dos; NETO, J. C. M.; RÖSING, T. M. K. (Orgs.). Mediação de leitura: discussões e alternativas para a formação de leitores. São Paulo: Global, 2009b ZILBERMANN, Regina. A escola e a leitura da Literatura. In: ZILBERMANN, Regina; ROSING, Tania Marisa Kuchenbecker. Escola e leitura: velha crise, novas alternativas. São Paulo: Global, 2009. P. 17-39.

PARTE 4 PATRIMÔNIO CULTURAL: LEITURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE

JANELAS: O DILEMA DE OLHAR E SER OLHADO Aline do Carmo* (UPF)

Questões pontuais que alimentaram as reflexões ligadas a um conhecimento transdisciplinar que envolve arte, representação e historicidade, foram utilizados para a análise da produção artística da pintora Ruth Schneider. Durante o processo de transcrição dos manuscritos de Ruth constatou-se muito mais do que a representação de suas memórias infantis, verificou-se, também, um emaranhado de informações pessoais, históricas e sociais que se incorporaram nas pinturas. Essas relações auxiliam na investigação da história representada nesse quadro. Ruth Schneider, artista plástica passo-fundense, criou uma série de quadros intitulada: O Cassino da Maroca. Representou nessas pinturas as histórias contadas por seus familiares sobre um famoso bordel da cidade. A obra Da Janela nº 13 foi escolhida pelo valor artístico, histórico e social, a partir de visitas e registros fotográficos do acervo da pintora, que se encontra disponível no Museu de Artes Visuais Ruth Schneider, em Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Outro critério utilizado justifica-se pelo material autobiográfico, ao qual se teve acesso, que mostra as histórias desses personagens. Ruth Schneider é uma artista, cujas obras são mais citadas do que realmente vistas e menos ainda estudadas. Artista autodidata que bebeu da técnica expressionista figurativa para conceber esses personagens, um estilo pessoal, passional e intuitivo. Seu desenho exibe um traço espesso e curto que revelam figuras humanas do mundo boêmio, tendo como tema central o Cassino da Maroca.

1. OLHAR E SER OLHADO No centro da cidade, o prédio do famoso cabaré, Cassino da Maroca provocava curiosidade nos moradores de Passo Fundo das décadas de 40 e 50. Nos arredores do Cassino havia casas de famílias que se mesclavam as outras tantas casas conhecidas como rendez-vous. Enquanto nas dependências do Cassino indivíduos divertiam-se ao “bel prazer”, longe dos olhares críticos da sociedade, no lado de fora, permanecia o interesse sobre o panorama interno desse local. Ruth Schneider pintou na obra Da Janela nº 13 (Figura 1), justamente essa curiosidade aflorada, o interesse de quem está de fora, de quem não presenciou o que ocorria dentro do reconhecido bordel. Ruth Schneider nunca abandonou o interesse pelo ser humano, nessa série nota-se várias figuras humanas, representações que formam uma galeria penetrante para desvelar a alma alheia. Ruth revela com carinho os desvãos da alma, por onde tantos se deixam levar. Tal constatação reforça a ideia de que a arte, além de um modo de conhecimento e de expressão é também um modo de construção simbólica histórica e social. A história deste quadro simboliza um sentimento habitual na sociedade: o voyeurismo. Apresenta o lado externo do prédio do cabaré, suas janelas, suas “aberturas” para o mundo e o que isso representa para a sociedade da época. Por essas brechas, os personagens que estavam no lado de dentro, igualmente, podiam espiar os passantes, e vice-versa. Isso expõe o entorno desse local, os arredores e suas histórias dentro da cidade. Traços fortes e pesados, as cores contrastantes que a pintora usava contam a história desse local, sem o intuito de que fossem consideradas somente “belas”, mas que, também, funcionassem

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Graduada em Publicidade e Propaganda pela Universidade de Passo Fundo. Especialista em Arte na Comunicação pela Universidade do Rio dos Sinos. Mestre em História pelo programa PPGH/UPF. E - mail: [email protected]

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como uma crítica à sociedade da época. Seguramente, esse fazer característico da arte não se reduz a uma operação genérica, uma vez que está intimamente associado à criação, ou seja, a um fazer que, inventa igualmente o modo de fazer, de maneira que “a atividade artística consiste propriamente no , isto é, exatamente num executar, produzir e realizar que é, ao mesmo tempo, inventar, figurar, descobrir” (PAREYSON, 1989, p. 32). Para Ruth Schneider, a expressão do quadro tem que ser verdadeira, autêntica. A obra de arte, para ser interessante, tem que “conversar” com o espectador, relata que “o ‘belo’ teria que ser sentido e vivido pelo artista. Como modo essencial de compreender a própria vida, reinterpretado e revivido pelo expectador da obra” (Arquivos do MAVRS). Ruth intensificou a marca do pincel como recurso expressivo, gesto criador valorizado principalmente pelos expressionistas, os quais evitavam o acabamento polido das superfícies das suas pinturas. Em seus últimos anos chegou a empregar a tinta diretamente do tubo sobre a superfície da tela, o que ocasionava o empastado de cor. A figura masculina em destaque nas pinturas, gravuras e instalações de Ruth são representadas com os tons de azuis e violetas. A pintora usa da força dessas cores para preencher essas formas humanas, uma vez que simbolizam os sentimentos ambivalentes presentes na imagem. Segundo Heller (2012), a cor violeta é mais rejeitada do que apreciada. Essa obra ilustra um personagem específico que pode transitar entre esses dois mundos, figura masculina situada no canto direito superior da pintura. A mão desse homem, que é formado por traços mais angulosos notados no contorno do nariz da figura, está localizada entre o “dentro e o fora”, entre o meretrício e a sociedade, o bendito e o maldito, expondo de certa forma, como esses clientes do Cassino podiam circular livremente, entre o “pecaminoso” e a sociedade legal. Na obra interpreta-se que esses homens, frequentadores do local, não fossem apreciados pelas meninas da Maroca, então esse sentimento de rejeição percebido nos tons violetas torna-se referencial para as análises. Outra característica importante é que em nenhuma outra cor se unem lados tão opostos como no violeta, pois é a união do vermelho e do azul, do masculino e do feminino. O violeta também é a cor do poder, na Antiguidade, era a cor dos governantes, a cor de alto preço, segundo Heller (2012), sugere uma significação eclesiástica que entra em contradição com o efeito do violeta profano. “As pessoas chegam a dizer: o violeta é a cor de todos os pecados bonitos” (HELLER, 2012, p. 200). Nas dependências do Cassino imperava a alegria, o prazer e a disciplina impostos por sua proprietária, os homens que ansiavam por um envolvimento mais íntimo com as prostitutas, desejando “transar” com elas, levavam-nas para as “pensões” que se localizavam no seu entorno. Leopoldo Gomes Bilhar, morador de Passo Fundo na década de 50, comenta que Ficar espionando na rua a movimentação das mulheres da vida, contratadas ou não pelo Cassino da Maroca na Rua XV, era um grande prazer, uma satisfação sem limites. Elas eram lindas, elegantes, andavam de carro de praça, usavam joias raras. Estimulavam a nossa imaginação, satisfaziam nossos desejos (SCHNEIDER, 1993).

“Estimulavam a nossa imaginação...” essa frase pode ser observada na obra Da Janela nº 13 (Figura 1), o espiar pela janela, a curiosidade, o anseio de espreitar o pecado, o deslize, o vício, desejos intrínsecos na vida social de uma comunidade.

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Figura 1: Linguagem/técnica: pintura técnica mista – Título: “DA JANELA Nº 13”. Dimensões: 77 X 40cm - Ano: 1995.

As formas geométricas da obra, a moldura das janelas, representam a sensação de pertencimento a um dos lados, o dentro e o fora. Este recinto de malícia, talvez pelo requinte visto nas vestimentas de seus frequentadores e trabalhadores, é capaz de trazer esse aspecto de “pecado bonito” para quem está do lado de fora. Os caminhantes curiosos podiam pensar que não poderia acontecer nada de tão imoral no interior deste local, já que o mesmo imanava luxo e ostentação. Essa curiosidade, sobre o que acontece dentro de um cabaré, permanece presente na sociedade atual. Em conversa informal com um proprietário do segmento (maio de 2012), concedida a esta pesquisadora, que preferiu ter sua identidade não revelada nesta pesquisa, disse que isso acontece até hoje. Segundo ele, várias são as moças que insistem para entrar na boate apenas para conhecer, ver o que se passa lá dentro, ou ver quem está frequentado esse lugar. O que, no relato dele, já ocasionou alguns constrangimentos, pois algumas mulheres encontraram seus cônjuges e/ou namorados no recinto considerado, ainda, impuro, indecente e obsceno. Portanto, a curiosidade, o desejo de descobrir o que acontece nos cabarés insiste e talvez sempre permanecerá no imaginário coletivo. Compreende-se que obras de arte são expressões simbólicas, no sentido onde elas encarnam significação. Danto (1996) acrescenta que o processo de significar formas em artes plásticas, consiste em identificar estas significações e explicar o modo de sua encarnação. Assim concebida, não é outra coisa que o discurso de fundamentos, fato que toma parte definidora do mundo da arte, segundo a teoria institucional: ver uma coisa como arte, é estar pronto a interpretá-la quanto à sua significação e quanto à sua maneira de significar (DANTO, 1996, p. 63).

O autor refere que, ao interpretar uma obra de arte, sempre se volta à exigência de uma explicação histórica, que é o objetivo desta pesquisa. A teoria dos mundos da arte às quais Danto (1996)

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define como uma afiliação informal de indivíduos que dispõem de suficientes conhecimentos teóricos e históricos para serem capazes de praticar a busca de sentido, de significado, e que, segundo o autor, não é outra coisa senão uma explicação histórica das obras de arte. Esta pintura Da Janela nº 13 (Figura 1), representa esse panorama histórico/social, da curiosidade humana, do desejo em saber o que acontece no interior do cabaré, um voyeurismo, uma face, um “espelho” da sociedade. As duas figuras humanas situadas na parte superior do quadro, representam parte da influência do bordel frente à sociedade, corrobora para esta interpretação a questão da luz inferior projetada que ilumina e dá imponência para o lado superior do diagrama, imprimindo uma sensação de que o lado de dentro era majestoso. Considerando o ar de mistério e poder que paira sobre a história do Cassino da Maroca, Ruth resolveu traçar linhas verticais e de cores vivas, em cima de todos os seus tons escuros, para, talvez, indicar esse lado iluminado por quem não frequentava o recinto. Nas artes visuais, a linha tem, por sua própria natureza, segundo Dondis (1991), uma enorme energia. Nunca é estática, imóvel; é o elemento visual inquieto e inquiridor do esboço. Onde quer que seja utilizada, é o instrumento fundamental da pré-visualização, o meio de apresentar, em forma palpável, aquilo que ainda não existe, a não ser na imaginação. Percebe-se isso nas pinceladas em amarelo no nariz e azul claro, no queixo e pálpebras, ainda, as linhas curvas em vermelho, na boca. A cor vermelha nessa obra pode ser percebida como o “colorido” da vida do meretrício. Em muitas línguas, a palavra para “colorido” é a mesma para a cor vermelha. O azul e o vermelho, boca, queixo e pálpebras dos personagens, formam uma espécie de acorde cromático no rosto dessas figuras. Segundo Heller (2012), o vermelho, azul e ouro é o acorde do charme, do poder, da atração, da coragem, da conquista, todas elas qualidades ideais resultantes da supremacia física e mental. Da “vida” colorida dentro do Cassino. O azul usado dessa forma, segundo a autora, tem um efeito distante. A boca em vermelho contrasta e é uma cor considerada quente, o uso dessas duas cores, vermelho e azul, faz lembrar da regra na Teoria das Cores, que conforme a autora, uma cor parecerá tanto mais próxima quanto mais quente ela for e tanto mais distante, quanto mais fria ela for. A cor transmite muitas sensações, como cita Lilian Barros, “A cor representa uma ferramenta poderosa para transmissão de ideias, atmosferas e emoções e pode captar a atenção do público de forma forte e direta, sutil ou progressiva” (BARROS, 2006, p. 15). O uso que a artista faz dessa ferramenta poderosa impressiona seu leitor. Esta obra, com todo o seu contexto histórico e artístico, parece representar a vida real. Os indivíduos que não podiam frequentar o Cassino da Maroca são, igualmente, os que hoje ficam na espreita das portas das zonas do meretrício da cidade, para saber quem frequenta tal “estilo” de recinto. Cada obra de arte autêntica parece operar como uma verdadeira origem, uma vez que produz um salto para uma realidade que existe como fruto da confluência de diversas realidades e acontecimentos. Seja na História, na Sociologia ou na Psicologia, uma recorrência crescente em relação à imagem tem surgido de estudos atentos às problemáticas do ver e ser visto. No livro O que vemos, o que nos olha, a experiência visual vai sendo construída a partir de duas constatações, segundo seu autor Didi-Huberman (1998), a primeira ideia é que as imagens são ambivalentes, isso causa inquietação no observador. A segunda constatação é que o ato de ver sempre abrirá um vazio invencível. O que fazer diante desse ‘vazio’ que inquieta? Didi-Huberman (1998) detecta duas atitudes: a do homem da crença (que quer ver sempre alguma coisa além do que se vê; e a do homem da tautologia (que pretende não ver nada além da imagem, nada além do que é visto). O autor sugere uma “antropologia da forma” na qual as virtualidade da “forma com presença” impõem suspeitas à segurança tautológica. Com isso, a obra Da Janela nº 13 (Figura 1), parece dar-se ao olhar não apenas como um objeto específico, cuja forma com janelas abertas deveria, portanto, ser autorreferencial. Ao ficar em frente ao quadro, parece surgir ao olho quem bisbilhota as dependências internas do Cassino, uma sugestão de que alguma outra coisa poderia de fato nele estar guardada, essa “suspeita de que algo

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falta ser visto se impõe doravante no exercício de nosso olhar, agora atento à dimensão literalmente privada, portanto obscura, esvaziada, do objeto” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 119). É sobretudo ao explorar esse aspecto da forma dos objetos, que Didi-Huberman (1998) dá visibilidade a uma dialética do olhar que enuncia já pelo título de seu estudo: O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do ‘dom visual’ para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Entre aquele que olha e aquilo que é olhado (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 77).

Porém, essa constatação deixa o leitor desejoso por respostas e ainda mais inquieto: se a obra de arte é uma mensagem ambígua, múltipla e se tal ambiguidade se torna uma das finalidades específicas da obra, como produzir conhecimento histórico sobre objetos artísticos? Parece que essa questão encontra-se de alguma maneira nas reflexões de Didi-Huberman (1998), nas quais esboça um modelo de investigação e escritura que se afasta do modelo iconológico e formalista. Diz que “não há que escolher entre o que vemos e o que nos olha. Há apenas que se inquietar com o entre. Há apenas que tentar dialetizar” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 71). Em sua leitura, o objeto de arte é afastado em relação à “crença” é encarada como “dupla distância”, “um espaçamento tramado do olhante e do olhado, do olhante pelo olhado” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 147). Nesta obra, Da Janela nº 13 (Figura 1), as figuras humanas que olham para os passantes, revelam uma presença invasora que domina, que mantém à distância esses indivíduos de “fora”, em respeito a esse local. Se essa ambiguidade é a imagem visível da dialética, a prática historiográfica, objetivo dessa pesquisa, visa decifrar a imagem, perseguir seus significados engendrando simbolismos e funções formais num fechamento que resolvesse toda sua ambiguidade na explicação sobre essa pintura. Nesses meandros, a dialética do visível, apresentada por Didi-Huberman (1998), parece como um deleite vigoroso que conduz à interrogação da obra, da forma, num campo interdisciplinar que foge dos limites estabelecidos por uma análise fechada, teleológica. Essa capacidade integradora da arte parece retomar a própria condição existencial de um ser situado, que não conhece o mundo como uma coleção de objetos diante de si, mas como horizonte originário do sentido que se materializa em cada experiência vivida ou imaginada. “Uma obra que é produto de um ato instaurador humano apresenta as características do real: unidade interna, efetividade, expressividade, comunicabilidade, interferibilidade, luminosidade” (QUINTÁS, 1992, p. 148). Tal modo de existência, ainda segundo o autor, não é considerada meramente opaca, mas aclarada de um mundo de sentido e de sentimento e é o que a ação instauradora do artista persegue. Ruth Schneider soube ser ferina em sua obra fantasiosa, a série O Cassino da Maroca, sem deixar de exibir, no âmago deste festival burlesco, um tom de ternura que valoriza a sua obra vivaz. A obscuridade exposta neste quadro apresenta aspectos inexatos do mundo real, indivíduos que olham e são olhados, no escuro da noite admiram as janelas altas, barulhentas e luminosas do Palácio Cassino, e, fantasiam sobre esse local bem como sobre seus personagens. O “quadro” não apenas “é olhado” como também “olha”, está é a questão básica que está presente na metáfora das janelas de Ruth Schneider. Por elas o Cassino é olhado, mas também olha e, de alguma forma, “zomba” da sociedade e de suas regras morais. Este quadro, igualmente é uma janela, que deixa ver, mas também é “ativo”, é um “olhador” do mundo. Costuma-se pensar que as obras de arte devem mostrar algo reconhecível, mas elas são mais do que isso. São gestos, atos de fala. As sombras e as formas talhadas, angulosas da pintura de Ruth mostram a tensão com que foram feitas. Analisar uma obra de arte que representa um momento decorrido é como andar por cima de uma ruína. Quase tudo está destruído, mas resta algo. O impor-

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tante é como nosso olhar põe esse algo em movimento. Quem não sabe olhar atravessa a ruína sem entender.

1.1. O ESPAÇO ENTRE O IMAGINÁRIO E O CONCRETO A dramatização em uma obra de arte é vista como sendo a “imitação de uma ação”, segundo Aristóteles (1996) em sua obra clássica Poética. Como questiona o mundo das ideias, ele valoriza a arte como representação do mundo. Sabe-se que a mimeses, a imitação da realidade, que pode ser obtida através do mero artificio de mostrar um espelho ao mundo. Qual pode ser a importância de produzir duplicatas de uma realidade que já existia antes, copiando-se aparências do mundo e representando-as numa superfície plana, refletora? Danto (1981) assinala que os espelhos têm propriedades cognitivas. Há coisas que nós podemos ver neles, mas não podemos ver sem eles: como nós mesmos. Conforme o autor, fixando essa assimetria das imagens espelhadas, Hamlet fez uso mais profundo da metáfora: espelhos, e, então, por generalização, obras de arte, mais do que nos devolver o que nós podemos saber, podem servir como instrumentos de autorrevelação. Danto (1981) recupera o mito de Narciso: se é verdade que Narciso apaixonou-se por si próprio, também é certo que ele não sabia que era o objeto de seu amor. Em primeiro lugar, segundo o autor, Narciso apaixonou-se por sua imagem refletida num espelho natural, acreditando ser a de um belo e atraente rapaz que emergia das profundezas para olhá-lo. Narciso, através do espelho, pela primeira vez vê o que os outros sempre viram: seu próprio rosto. Sendo o olhar que o atraiu o seu próprio olhar, devolvido a ele por intermédio de uma superfície refletida, ele tornou-se servo de si próprio. Também, conforme Danto (1981), Narciso morreu do que Sartre chamou de uma “paixão fútil”, autoconsciente, cujo interior e exterior eram um só. Nesse contexto, podemos trazer a artista plástica Ruth Schneider, que de tão imersa em seu fazer artístico, muitas vezes confundiu o que estava interiorizado com aquilo que expressou em suas pinturas, como a memória e a obra, a vida e a arte, indissociadas. As teorias de Sartre sobre autoconhecimento são ilustradas vividamente com o personagem que é surpreendido no ato de espiar pela fechadura e percebe, imediatamente, que tem a identidade de voyeur, aos olhos de um Outro. Se ainda há um espaço entre o imaginário e o concreto, e outro espaço entre obras de arte e as coisas reais, parece que o espaço entre pode ser mais interessante do que acontece ao ligar um lado ao outro. O espaço entre a rua e o interior do Cassino torna-se mais atraente, até mesmo, do que o estar dentro do ambiente, pois envolve o lado fantasioso desses indivíduos. A pintura Da Janela nº 13 (Figura 1) representa essa separação entre o fora e o dentro, entre o real e o imaginado. Ruth Schneider ilustra esse espaço com molduras de janelas, que ela encontrava em lixos e terrenos vagos. O lixo em suas obras revela uma carga de significação, suficiente para desafiar as convenções sociais; a artista extrapolou tais convenções até o limite e as violou, sua intenção era causar ilusões ou criar um senso de continuidade entre a arte e a vida. As janelas abertas no alto do quadro criam nova moldura, expandem, criando tridimensionalidade na obra, característica significativa nas obras de Ruth, sair do bidimensional, do plano, com recortes esquinados. Ilustrando que estão abertas, que os indivíduos do lado de dentro podiam circular entre fora e dentro confortavelmente, porém no lado inferior, elas estão fechadas. Essa moldura maciça, de linhas retas parece imposto para quem se encontra fora do cabaré. A expansão da superfície superior contrasta com o recolhimento inferior não só no uso das formas, mas igualmente no uso da cor. Aplicação do tom rosado para representar a iluminação nas dependências do cassino e o roxo para a noite na calçada, certamente para trazer o sentido de ambiguidade dessa cor, porque os que olhavam da rua, da mesma forma que pareciam fechados, bloqueados pela forma da moldura, possuíam ao mesmo tempo, sentimentos de libidinagem e volup-

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tuosidade. Essa excitação pode ser observada notando a direção do olhar da figura humana disposta na “janela” inferior da obra. Esse conhecido local, o Cassino da Maroca, existiu e despertou – e desperta – a atenção da sociedade de Passo Fundo desde 1940, pois o local existiu e ainda existe fisicamente, geograficamente, historicamente na cidade. Não foi somente um baile, uma festa que ocorreu neste prédio, pelo contrário, a edificação permanecia presente e imponente na comunidade, essas janelas, esses espaços para atiçar o desejo e a curiosidade dos espiões, permaneciam lá, a luz do dia e da noite. Essa condição de configuração e integração social que funciona como símbolo na obra de arte, é, ao mesmo tempo, o que permite a correspondência entre criação e fruição, possibilitando o acordo que a percepção estética registra entre o artista e o público. Dufrenne (1981) pontua: “A única diferença entre o criador e o espectador é que o primeiro pensa em termos de regras e operações; e o segundo pensa em termos de efeitos, de modo que a necessidade é, imediatamente, a de gerar um sentido” (DUFRENNE, 1981, p. 91).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão do significado das imagens traz outra questão fundamental: significado para quem? Quando é Arte? Esse significado depende do seu “contexto social”, a interpretação de uma obra plástica depende, igualmente, do contexto social e histórico de uma representação. Todo o significado histórico que se procurou compreender na obra Da Janela n 13 (Figura 1), foi construída pelas histórias sobre esse local, que teve sua importância política e econômica na cidade de Passo Fundo, entre 1940 e 1950. A sociedade que presenciou o auge do Palácio Cassino e manteve com o cabaré uma relação complicada, ambígua, era formada, ao mesmo tempo por indivíduos influentes e personagens submissos. Um local de lascívia como integração social muito apreciado na cidade. Esse jogo do olhar e ser olhado, de olhar e dizer que não olha, parece um movimento na obscuridade, o voyeurismo presente na alma humana. A prática de um indivíduo obter prazer sexual através da observação de pessoas, que podem estar envolvidas em atos sexuais, nuas, em roupa de baixo, ou qualquer vestuário que seja apelativo para o indivíduo em questão, o/a voyeur. A luxúria deste local refletia de várias formas na sociedade passo-fundense das décadas de 1940 e 1950, trazia à tona o desejo instintivo das pessoas, o indivíduo que “olha” não interage com o personagem “olhado” (por vezes não ciente de estar sendo observado); em vez disso, observa-o tipicamente a uma relativa distância, as “janelas” na obra plástica representam esse aspecto social, histórico e cultural, o distanciamento. As interpretações foram feitas através de códigos que norteiam a escolha e significado do tema, a percepção da cor juntamente com o conteúdo social e histórico da composição, do suporte e materiais utilizados. Entendendo que o conceito para compreensão de uma obra de arte pode ter seus usos como uma forma de descrever as diferenças, algumas vezes intensas, entre intenções e efeitos, entre como a mensagem é divulgada (por missionários, pintores, governos e outros), e como é recebida por um pesquisador, com suas referências pessoais e teóricas. Desse modo, acredita-se que a análise de uma obra nunca termina, porque não tem começo nem fim. E da mesma forma, não se pode conceituar uma interpretação como certeira ou vaga. Por fim, percebe-se que a obra Da Janela no13 de Ruth Schneider é um enorme instrumento para compreensão de momentos e conjunturas históricas e sociais pelo historiador. Assim, não se pretende esgotar aqui as investigações históricas sobre o Cassino, as demais obras de Ruth Schneider ou a biografia da artista.

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REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BARROS, Lilian Ried Miller. A cor no processo criativo: um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. DANTO, Arthur Coleman. Aprés la fin de lárt. Paris: Seuil, 1996. DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos, o que nos olha. Trad. de Paulo Neves. São Paulo, Editora 34, 1998. DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 51-83. DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. Trad. de Roberto Figurelli. São Paulo: Editora Perspectiva S. A., 1981 HELLER, Eva. A psicologia das cores: como as cores afetam a emoção e a razão. Barcelona: Garamond, 2012. PAREYSON, L. Estética: teoria da formatividade. Tradução de ALVES, E. F. Petrópolis: Vozes, 1989. QUINTÁS, Alfonso Lopez. Estética. Trad. de Jaime A. Clasen. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

Fontes arquivo pessoal Arquivo pessoal Ruth Schneider [Museu de Artes Visuais Ruth Schneider (MAVRS) Passo Fundo (PF), Rio Grande do Sul].

A MANTA DO SOLDADO, DE LÍDIA JORGE: MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO Ana Denise Teixeira Andrade* (Uniritter) Profª Dª Leny da Silva Gomes** (Uniritter)

1. INTRODUÇÃO A construção da identidade de um ser está condicionada, principalmente, às memórias que guarda consigo. Essas lembranças podem ser geradas, desde logo, pelo núcleo familiar e, depois, expandidas dentro de um macrocosmo, como a nação. É nesse universo reduzido como o seio familiar e pertencendo a uma organização maior, que a identidade será edificada. Essas memórias fazem parte do patrimônio herdado pelo indivíduo, porque “a identidade dos povos, dos países e das civilizações provém de suas memórias comuns, cujo conjunto denomina-se História” (IZQUIERDO, 2011, p.13). Assim, com base nessa identidade coletiva, formam-se grupos menores, tais como família, bairro, cidade, até chegar a formação de um indivíduo, segundo Izquierdo (2011). O conjunto dessas memórias também serve como alicerce para a construção da identidade da narradora-protagonista, no romance A manta do soldado (2003), de Lídia Jorge. Nesse contexto, a protagonista sem nome busca resquícios do passado por intermédio de suas próprias percepções e as informações que recolhe de seus parentes. Vitimada pela situação, a inominada descobre que seu pai verdadeiro, Walter Dias, manteve um relacionamento fortuito e passageiro com sua mãe, a Maria Ema Baptista. Desse encontro, surge uma gravidez indesejada. O pai biológico foge ao compromisso e o avô da criança, o patriarca Francisco Dias, obriga o filho mais velho, Custódio, a reparar o erro do irmão caçula e salvar a honra das famílias. Assim, acontece o casamento e todos vão morar na propriedade rural localizada na cidade fictícia de São Sebastião de Valmares, no Algarve. Maria Ema e a filha juntam-se, então, aos demais membros do clã dos Dias. Entretanto, a filha de Walter, como também é denominada, não estabelece vínculos afetivos com seus familiares, mantendo-se à margem dos acontecimentos, é negligenciada por todos. Porém, mesmo aparentemente alienada, observa e fica atenta a tudo, principalmente quando o assunto está relacionado com Walter Dias. A inominada guarda na lembrança todos os acontecimentos relacionados ao genitor. Mas é uma noite chuvosa do inverno de sessenta e três que seria a recordação primordial de sua existência. Trata-se da visita de Walter ao quarto da filha, quando ela contava com uns quinze anos de idade. Não seria o primeiro encontro entre os dois, pois já houvera um anterior. Porém, pouco lembrava do fato, pois teria uns três anos. Esse encontro clandestino, na adolescência, deixa marcas profundas e inesquecíveis, apesar de ter sido único. A casa, como um todo, é um espaço de lembranças, mas o quarto da personagem inominada é o lugar de refúgio, desde a infância. Tudo vira fonte de memórias, porque está associado ao ser da protagonista, já que “a memória autobiográfica se refere às memórias que mantemos em relação a nós mesmos e nossas relações com o mundo à nossa volta” (BADDELEY, 2011, p. 152). Nesse ambiente organiza as memórias e sente-se livre para soltara imaginação. Em qualquer outro local da residência fica retraída e não se sente à vontade ou integrante daquele núcleo familiar. Entretanto, mesmo isolada, busca elementos da vida pessoal de Walter Dias, ao mesmo tempo em que vai conhecendo e integrando-se ao passado e aos costumes de uma sociedade, em plena época da ditadura *

Mestranda, Centro Universitário Ritter dos Reis, Brasil, [email protected] Profª Orientadora Drª Leny da Silva Gomes, Centro Universitário Ritter dos Reis, Brasil, [email protected]

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de Salazar, em Portugal. Ainda que esse passado histórico apareça como ecos longínquos, é possível perceber aspectos relacionados àquele momento particular vivenciado pelos personagens. Dessa forma, as memórias individuais e coletivas são somadas, a fim de construir a identidade da sem nome, ainda que várias dessas lembranças sejam distorcidas pela passagem do tempo ou contaminadas pela imaginação.

2. WALTER DIAS NA MEMÓRIA DA NARRADORA A manta do soldado revela como pano de fundo da narrativa um passado obscuro e castrador da ditadura salazarista, embora seja apresentado sutilmente. A protagonista cresce dentro desse período de intensas restrições, mas chega à idade adulta em uma época de transição ante a chegada da democracia. Esses momentos estão relacionados com a figura do pai, e o que lhe interessa saber é a vida pregressa de Walter Dias. A protagonista e narradora dá valor a essas informações, porque reconstruindo o passado dele, através da união de fragmentos, podia conceber a ideia de que possuía uma origem, uma identidade, e que não era simplesmente obra de um descuido ou arroubo da juventude. Por isso, ficava sempre atenta aos relatos sobre o caçula da família Dias: Havia anos que ela sabia que Walter ainda criança se tinha apoderado da velha charrete que pertencera a Joaquina Glória [...] e correr perigosamente pelas estradas, enquanto os seus irmãos trabalhavam de sol a sol. Pouco a pouco, ela tinha ficado a saber que, nem mesmo que Francisco Dias o cobrisse de ameaças e privações, Walter trabalhava. Que desde os onze anos se recusava a colaborar, dormindo manhãs inteiras, desviando-se dos caminhos próprios, fazendo atalhos por entre as searas onde se perdia. (JORGE, 2003, p. 52)

O Walter era considerado o diferente da família, pois se negava a colaborar na lida. Sua insubordinação desagradava o pai, pois o trabalho agrícola representava o sustento da família, mas, acima de tudo, seus parentes eram “mão-de-obra”, porque o dono de Valmares achava que sua casa era uma empresa sólida, uma unidade de produção à semelhança dum estado, dirigindo-a como um governador poupado gere um estado. Em nome do aforro, da economia, da produção, em nome do futuro, um futuro sério, avarento, unido e indivisível, do qual havia apenas saído um, havia saído Walter. (JORGE, 2003, p. 44)

Essas memórias iam sendo reveladas à inominada, que se encarregava de juntá-las para conhecer o pai biológico, visto que “o testemunho constitui a estrutura fundamental de transição entre a memória e a história” (RICOEUR, 2012, p. 41). Assim, através das narrativas de outrem, tinha a possibilidade de reconstruir os passos de seu pai e, por conseguinte, a sua própria história. Agora, essas lembranças também lhe pertenciam por direito e faziam parte do repertório pessoal. Paralelamente com a formação familiar, os filhos de Francisco Dias tinham uma educação formal na escola da localidade. Um episódio relacionado com a vida escolar dos Dias revela que a escola em muito se parecia com o pensamento castrador e punitivo do patriarca. De acordo com a moral e os costumes da época salazarista, os estudantes deveriam ter um ensino tradicional, inspirado no próprio regime ditatorial vigente. Para o contentamento do senhor de Valmares, todos os outros filhos tinham sido ensinados por homens enérgicos, pessoas duras, resistentes, irrepreensíveis, pessoas que mantinham os rapazes quietos, distribuíam pancada com determinação, não sorriam, impunham a ordem, procurando fazer de cada criança um obediente, para que se obtivesse um bom trabalhador. (JORGE, 2003, p. 59)

Também “era raro não haver uma criança com uma máscara de asno, com orelhas de ourelo e uma fila de dentes expostos [...] São Sebastião inteira ficava a saber quais as crianças punidas” (JORGE, 2003, p. 59). Assim, a educação escolar dos anos trinta estava baseada no princípio de con-

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formidade com a situação da época, destinado ao trabalho e à obediência cega. Entretanto, “é certamente mais agradável aprender numa sala decorada com cores vivas do que num ambiente cinzento e severo” (IZQUIERDO, 2011, p. 122). Mesmo assim, “o uso de ambientes enriquecidos em humanos não aumentou “ ‘a capacidade de memória’ ” ou a “capacidade mental” das crianças nem dos adultos” (IZQUIERDO, 2011, p. 123). Certamente, uma aula diferenciada, em um ambiente impregnado de sentidos e estímulos variados, fora de qualquer ato repressor, pode estimular a criatividade dos alunos. Isso aconteceu durante a época escolar de Walter: Sim, ao contrário dos outros, o mais novo estava destinado a ser instruído por um incompetente recém-chegado [...] queimava papel, cabeças de fósforos, álcool e algodão-em-rama dentro de frascos. Que volta e meia levava as crianças até os montes cinzentos de São Sebastião, mandava observar a natureza, mandava espiar os animais. [...] Não lhes ensinava nada. (JORGE, 2003, p. 60).

Para Francisco Dias aquela escola servira para seu filho mais moço como um espaço destinado a desvirtuá-lo, em nada colaborando para a formação de um homem de bem. O patriarca organizou a comunidade, falou com o delegado e o professor desapareceu. Porém, a semente do mal já havia encontrado terreno fértil na figura de Walter, segundo Francisco Dias. Ele mesmo tratou de relacionar a imagem do caçula a um “trotamundos”, que apenas viajava para vários lugares sem fixar residência alguma. Para Walter, em qualquer ambiente poderia se viver. De acordo com seu pensamento mundano, “o mundo é grande, mas há sempre aqueles que se apegam a um lugar. Ele, não. Em todo o local se podia viver, desde que se possa partir para o local seguinte” (JORGE, 2003, p. 109). Walter Dias era um homem do mundo, que não se prendia a nenhum lugar. Em toda parte, se sentia livre e bem à vontade. Por isso mesmo, passou toda a sua existência sem se apegar a lugares, sem criar vínculos afetivos. Essas eram algumas das memórias coletivas a respeito do pai biológico. Mesmo tomando conhecimento de suas atitudes, ainda permanecia a mesma admiração de outrora, que perdurou até a proximidade da idade adulta.

3. AS NARRATIVAS A personagem sem nome desenvolveu-se em um ambiente que em nada lhe favorecia. Faltavam-lhe o amor e a proximidade com os familiares, necessários ao desenvolvimento de qualquer indivíduo. Mesmo sem a colaboração dos demais, após a chegada da maturidade, com trinta anos, “começou esse trabalho de traça, que consistia em aniquilar a pessoa de Walter, entrando dentro do seu habitáculo devagar, como uma espia. [...] Ela queria visitar o interior de Walter” (JORGE, 2003, p. 208) e “foi nesse fim de Inverno morno que ela iniciou um texto sobre Walter. Ela sabia, tal como os Dias desde sempre tinham sabido, que não se atinge verdadeiramente a reputação de alguém, enquanto não se atinge o local do sexo” (JORGE, 2003, p. 209). A figura que idolatrava, agora sabia, jamais existira. A aura que encobria esse amor incondicional desvanecia-se e a realidade surgia claramente. Restava-lhe a oportunidade de destruí-lo e isso seria feito, porque o “mundo muda e nós mudamos. Com o tempo, encontramos novos estímulos, pessoas e situações, e temos novos pensamentos e emoções” (ANDERSON, 2011, p. 216). Em absoluto as memórias anteriores foram totalmente apagadas ou extintas, mas “a origem de quase toda nossa vida afetiva está nessas memórias antigas e inconscientes que adquirimos quando muito pequenos” (IZQUIERDO, 2011, p. 126). O abandono e a negligência foram marcas constantes na vida da sem nome e, nessa etapa, não mais se deixava levar pelas emoções e o desejo de se unir a Walter. Era a realidade, pura e simples, que surgia à sua frente, nem havia mais espaço para enganos e ilusões. As memórias individuais e coletivas vinham com força na mente da inominada. Entretanto, mesmo com essa atividade intensa, não faltou espaço para usar a criatividade. A filha de Walter pre-

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cisou da união de ambas - memória e imaginação – para desenvolver o projeto de aniquilar o genitor, pois, “onde estavam as cartas e os desenhos dos pássaros? Estavam guardados, mas iriam ser sacudidos, abertos e folheados com método, passando a ser apenas objetos com interesse, colecionáveis, dentro da biblioteca da sua frieza” (JORGE, 2003, p. 209). Dessa forma, reunido tudo o que pudesse documentar sobre a vida do pai, “olhava para Walter como um caso clínico, falava dele, quando necessário, como dum produto, explicava-o a partir da sua infância [...] Escreveu três narrativas para atingir Walter” (JORGE, 2003, p. 209-210). Esses textos foram escritos com a finalidade de desmascará-lo e, ao mesmo tempo, quebrar a corrente que os mantinha unidos, ainda que esses elos existissem apenas para a sem nome. A partir dessa atitude, sua identidade não estaria mais vinculada ao homem que lhe causara tanto mal a ela mesma e quase destruíra a união do casal Maria Ema e Custódio Dias. Rompia com o pacto familiar, com os segredos e com as mentiras. Era o momento da libertação e de acordo com Ricoeur (2011, p. 95), “são mesmo as humilhações, os ataques reais ou imaginários à auto-estima, sob golpes da alteridade mal tolerada, que fazem a relação que o mesmo mantém com o outro mudar da acolhida à rejeição, à exclusão”. Isso aconteceu na ligação entre pai e filha, trazendo um desequilíbrio, mesmo que fosse apenas unilateral. Após um certo período em casa, escrevendo “as narrativas frias, esses contos de gelo, escritos contra um homem que havia alimentado a vida de pessoas, com esfarrapados desenhos de pássaros” (JORGE, 2003, p. 210), a filha de Walter sai à procura dele para lhe entregar os textos, visto que “era até bastante previsível que Walter tivesse continuado a descer ao longo do continente sul-americano. Não poderia ter ido longe – Walter começava a estar cercado na vastidão do mundo [...] Deveria ter inclinado o percurso na direcção do Brasil ou de Buenos Aires” (JORGE, 2003, p. 210-211). Estava certa de seu palpite, que acabou por ser confirmado pela Embaixada da Argentina. Dirigiu-se para Calle Morgana e lá encontrou-o como proprietário do bar “Los Pájaros”. Foram momentos tensos, pois o que a filha lhe apresentava não era mais o amor incondicional, cego e submisso. Antes disso, era a verdade que chegava às suas mãos de uma forma jamais esperada. A inominada não era mais aquela jovem ingênua, que acreditava em tudo o que Walter dizia e sentia-se encantada, apenas em lembrar que ele era seu pai. Aquela moça se transformara em uma mulher decidida, que estava ali para executar um plano, embora, ele, a princípio, não suspeitasse do que se tratava, pois Leu alto, leu lento, leu suave, leu em espanhol, em português como quem lê noutra língua [...] Walter Dias não conseguia compreender os papéis que sustinha, arrumado à lâmpada de luz escassa, puxada para cima da mesa. [...] a narrativa que ele tinha em mãos, e que lia sem ler, falava duma fantasia agreste, sarcástica e ao mesmo tempo trivial [...]. (JORGE, 2003, p. 220-221)

Walter Dias estava perplexo com o que lia. Era a sua vida revelada através de uma forma jamais imaginada por ele. A verdade sobre a sua existência, quem fora e o que fizera, aparecia nua e crua através das narrativas da filha. Não que esse grau de parentesco representasse alguma importância para ele. Longe disso, mas o contato com a verdade era demasiado forte. Conforme Izquierdo (2011, p. 40-41), “ o indivíduo simplesmente decide ignorar, e cuja evocação suprime, muitas vezes durante décadas. São aquelas memórias que decidimos tornar inacessíveis, cujo acesso bloqueamos”. Foi o que tentou fazer Walter Dias, até mesmo porque “o conteúdo dessas memórias compreende episódios humilhantes, desagradáveis ou simplesmente inconvenientes do acervo de memórias de cada pessoa”, mas “as memórias reprimidas podem voltar à tona em todo seu esplendor” (IZQUIERDO, 2011, p. 41). Isso aconteceu naquele momento, ainda que as informações, a princípio, tivessem atordoado Walter. Porém, logo sua memória foi recuperada e aquele turbilhão de informações a seu respeito foram sendo transformadas em ira. Rebelou-se conta a sem nome, expulsando-a do bar. Mesmo expulsa, sentia que sua vida tomaria um outro rumo, pois não estaria mais aprisionada a um homem como Walter. Aprendera a lição e libertara-se. Voltava para Valmares, junto aos poucos que lá ainda moravam, para retomar a vida. Jamais esqueceria do pai, mas eram em outras circuns-

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tâncias que passaria a viver. Passaria a ser senhora de suas atitudes, não mais influenciada e sob a sombra vigilante do pai, ainda que estivessem distantes um do outro.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O conhecimento sobre as formas de evocar a memória, mesmo dentro de um contexto ficcional, pode ser útil para se reconhecer as situações e os espaços em que as lembranças podem ser desencadeadas. São reconhecidos vários tipos de memória e as diferentes formas de evocá-las. No romance A manta do soldado, as memórias da narradora e protagonista se misturam com as lembranças dos demais personagens. É através das informações recolhidas, das próprias impressões pessoais, que sua mente se alimenta, transformando as recordações em combustível para abastecer a mente fértil, disposta a aprender e a armazenar dados. Principalmente, se o assunto for referente ao genitor. Nesse sentido, todos os demais personagens colaboram com o processo de formação das memórias da personagem sem nome. Na verdade, a troca de recordações é mútua e todos estão envolvidos nesse ambiente impregnado de memórias. Cada um dos personagens, entretanto, mantém uma memória viva, relacionada aos seus interesses pessoais. É um modo particular de reviver as experiências significativas, de buscar na memória resquícios de outros tempos, mesmo que cada um busque a verdade sob uma ótica diferenciada das demais. Mesmo assim, as lembranças individuais e coletivas são enriquecidas, mas, também, podem ser distorcidas pela passagem do tempo e fomentadas pelos recursos da imaginação. Assim como acontece com a narradora-protagonista, as memórias mais íntimas de seus parentes são trazidas à tona e revelam tristezas, momentos ásperos e de inteira indignação dos habitantes de São Sebastião de Valmares. A intensa repressão era visível, inclusive, dentro do próprio ambiente escolar. Portanto, seja dentro da Casa de Valmares ou fora de seus limites territoriais, todas as ações e todos os espaços de convivência se transformam em memórias. Por isso mesmo, as lembranças trazidas à tona pela mente servem como apoio fundamental à atividade de escrever, promovendo a libertação para a personagem sem nome, que encontra na produção de narrativas sobre seu pai um meio profícuo de desmascará-lo. Essa revelação da verdade traz alívio e benefícios para a filha de Walter, que não mais se percebe como uma extensão do genitor, mas assume uma identidade própria.

REFERÊNCIAS ANDERSON, Michael C. In: BADDELEY, Alan; ANDERSON, Michael C.; EYSENCK, Michael W. Memória. Trad. Cornélia Stolting. Porto Alegre: Artmed, 2011. Cap. 9. BADDELEY, Alan. In: BADDELEY, Alan; ANDERSON, Michael C.; EYSENCK, Michael W. Memória. Trad. Cornélia Stolting. Porto Alegre: Artmed, 2011. Cap. 7. IZQUIERDO, Iván. Memória.2 ed. Rev. e ampl. Porto Alegre: Artmed, 2011. JORGE, Lídia. A manta do Soldado. Rio de Janeiro: Record, 2003. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. 5 reimpr. Tradução: Alain François et al. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.

ORGULHO E PRECONCEITO (1813) E OS DIÁRIOS DE LIZZIE BENNET (2012-2013): A INFLUÊNCIA DO CASAMENTO, DO DINHEIRO E DA CLASSE SOCIAL NO UNIVERSO FEMININO Bianca Deon Rossato* (UFRGS/IFSUL)

Ao se deparar com o título deste trabalho, o leitor poderá inquirir o que há ainda a ser descoberto sobre a obra da escritora britânica Jane Austen, praticamente duzentos anos após a publicação de suas obras e de seu falecimento. Mais intrigado ficará, ainda, o leitor ao observar que é a mais popular e mais estudada das obras austenianas - Orgulho e Preconceito (1813) – um dos objetos desta discussão. No entanto, na mesma proporção em que a produção teórica acerca da escritora e de sua obra tomou grandes proporções, a produção de derivativos, prequels, sequels, e adaptações também cresceu exponencialmente (PUGH, 2005), especialmente a partir da década de 1980 com os Silhouette Romances que tinham como espécie de fórmula a trama entre Elizabeth Bennet e Sr. Darcy. (KAPLAN, 2001). Linda Hutcheon (2013) observa que é a repetição com variação que atrai a atenção do público às adaptações e permite que o leitor/fã reviva a experiência da primeira leitura com elementos novos a serem observados e com os quais ele pode dialogar. De forma a observar essas relações entre o romance e suas adaptações, este trabalho objetiva estabelecer uma análise comparativa de temas como casamento, classe social e dinheiro nas obras Orgulho e preconceito (1813) e Os Diários de Lizzie Bennet (2012-2013) a fim de observar como o universo feminino é representado na obra da escritora britânica e como as adaptações têm se apropriado dessas questões. O foco é observar em que medida a herança de Austen vem sendo modificada em função das adaptações. Nesse sentido, o que, inicialmente, chama atenção em relação ao universo austeniano é que ele é habitado tanto por estudiosos e acadêmicos dedicados ao cânone, quanto por escritores, produtores e fãs que se dedicam à cultura de massa. De acordo com Even-Zohar (2010), o cânone se refere a “those literary norms and works which are accepted as legitimate by the dominant circles within a culture and whose conspicuous products are preserved by the community to become part of the historical heritage”1. O teórico afirma, ainda, que o “não-cânone” refere-se a “those norms and texts which are rejected by these circles as illegitimate and whose products are often forgotten in the long run by the community”.2 Even-Zohar (2010) observa, então, que a canonicidade não é inerente à produção artística ou literária, mas faz parte da comunidade e pode se transformar quando a comunidade em si se transforma e outras características passam a ser valoradas. Nesse sentido, a expansão da televisão e da internet tem proporcionado novas produções da cultura de massa - seriados de TV, histórias em quadrinhos, adaptações fílmicas, assim como as fanfictions - que vêm ganhando espaço nos meios acadêmicos o que parece indicar um momento de trasnformações nas relações cânone/não-cânone. Ao se observar a trajetória de análises a respeito da obra austeniana, não é incomum verificar que as posições acerca de sua valoração enquanto texto clássico variam amplamente. Desde a “Nota biográfica do autor”, de seu irmão Henry Austen, até as análises dos últimos vinte ou trinta anos, de pesquisadoras como Kathrin Sutherland, Janet Todd e Audrey Bilger, por exemplo, a obra de Austen Doutoranda em Literatura Estrangeira Moderna pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professora EBTT do Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil. E-mail: [email protected] 1 Aquelas normas e trabalhos literários que são aceitas como legítimas pelo círculo dominante dentro de uma cultura e cujos trabalhos notáveis são preservados pela comunidade para se tornarem parte da herança histórica. (tradução da autora) 2 Aquelas obras rejeitadas por esses meios como sendo ilegítimas e seus produtos são geralmente esquecidos pela comunidade ao longo do tempo. (tradução da autora) *

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tem sido denominada de conservadora burguesa à precursora do feminismo. Assim, parece ficar evidente que as ocorrências sociais de cada época influenciam a apreciação de uma obra. Em 1813, ano de publicação da obra, um artigo no The British Critic relata que Elizabeth Bennet é apresentada com “grande espírito e consistência”, as Senhoritas Bennet mais novas e suas recorrentes idas aos vilarejos mercantis onde os oficiais da milícia ficavam talvez seja exemplificado, segundo o artigo, “em cada cidade provinciana do reino”. (BLOOM, 2008, p. 103). No ano seguinte, Mary Russel Mitford afirma que “a falta de elegância é praticamente a única falha no romance” e que Elizabeth é exemplo disso uma vez que não é uma personagem a altura de Darcy. (2008, p. 104.) Anos mais tarde, em 1826, Sr. Walter Scott afirma que Austen “had a talent for describing the involvements and feelings and characters of ordinary life which is to me the most wonderful I ever met with”3 (2008, p. 105). O que para Scott era primoroso, para Charlotte Brönte é exatamente o que lhe desagrada, em 1848. A escritora romântica afirma que ela “should hardly like to live with her ladies and gentlemen, in their elegant but confined houses”4 (2008, p. 106). A extensão desse artigo não permite que se aprofunde a análise sobre o período em que cada opinião acerca da obra foi proferida. No entanto, fica claro que cada período histórico influencia o modo como as obras literárias são valoradas. A profusão de adaptações de O&P, a partir da série da TV britânica BBC em 1995, estrelando Colin Firth saindo de camisa branca molhada do lago de Pemberley fez com que a obra de Austen ganhasse ainda mais espaço não somente nas produções de cultura de massa, como também no meio acadêmico. Roger Sales, em sua obra Jane Austen and Representations of Regency England, constata que “popular modern texts are relevant to the academic study of Austen since readers construct an idea of the author, and therefore of her works and her historical period”5. (1996, 25). Nessa nova onda de produção e pesquisa acerca do universo austeniano, pesquisadoras como Camile Paglia (1996) não observam mais do que um um movimento conservador e reacionário da classe alta branca devido ao fato de a obra terminar com final feliz trazido pelo casamento, enquanto outras, como Audrey Bilger (1998), Claudia Johnson (2001) e Devoney Looser (2001), observam movimentos feministas e ou até mesmo pós-feministas como Vivian Jones (2012). A trama de Orgulho e Preconceito é das mais reconhecidas na literatura mundial e narra os eventos de “três ou quatro famílias” no interior da Inglaterra do período regencial, especialmente no que se refere a questões como casamento, dinhero e classe social e sua interferência na vida de jovens moças no período em que passam a estar aptas ao casamento. A protagonista, Elizabeth Bennet, é uma das cinco filhas do Sr. e da Sra. Bennet, que ainda têm Jane, Lydia, Mary e Kitty. A Sra. Bennet é uma mãe ansiosa, senão desesperada, por ver suas filhas casadas. Tal comportamento é explicado pelo fato de a mulher não possuir direitos à herança de acordo com as leis britânicas da época. Além disso, o casal não possui nenhum herdeiro homem, o que significa que, com o falecimento do patriarca, a residência de Longbourn seria destinada a um primo distante, o Sr. Collins. A sorte das moças muda quando um jovem, o Sr. Bingley, suas irmãs e um amigo, o Sr. Darcy, instalam-se em Netherfield, o que deixa a Sra. Bennet em estado de êxtase ao cogitar a possibilidade de uma de suas filhas se casar com um homem que possui 5 mil por ano. A partir do desenrolar dessa trama, pode-se estabelecer um debate acerca do universo feminino partindo-se dos três temas presentes na obra: o dinheiro, o casamento e a classe social. Devido à brevidade do artigo ora proposto, algumas cenas serão selecionadas com vistas a investigar de que forma tais temas influenciam/interferem na vida de moças em idade de casamento. No que se refere à classe social, pode-se observar que sua interferência na vida da mulher do período regencial inglês é considerável, uma vez que os ambientes em que ela circula e que poderão Tinha um talento para descrever os envolvimentos e sentimentos de personagens da vida comum que para ele lhes eram os “mais incríveis” que conhecera. (tradução da autora) 4 Dificilmente gostaria de viver com tais senhoras e senhores em suas casas elegantes mas confinadas. 5 Os textos populares modernos são relevantes ao estudo acadêmico de Austen uma vez que os leitores constroem uma ideia do autor, e portanto de suas obras e de seu período histórico. (tradução da autora) 3

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lhe proporcionar encontros com candidatos a marido, dependem grandemente do extrato social de onde são oriundas. Portanto, as Senhoritas Bennet, por circularem em um vilarejo pequeno composto por aquilo que se chamaria nos dias atuais de classe média, têm poucas chances de se casarem bem. Aí está uma das questões que explica o comportamento eufórico da Sra. Bennet ao saber que Netherfiled Park foi locada por um jovem rapaz de 5 mil ao ano. (PP, Cap. 1)6 Ao mesmo tempo, a chance de se tornarem atraentes aos olhos dos homens é proporcional ao seu status social, ou seja, quanto menor seu estatus, menor suas chances de casar bem, ou mesmo casar. Um dos motivos que leva o Sr. Darcy a convencer o Sr. Bingley a deixar Netherfield e retornar a Londres é o fato de que a família de Jane, especialmente a Sra. Bennet, as jovens Lydia e Kitty e o Sr. Bennet, tornam evidente, por seus comportamentos inapropriados, seu baixo estatus social. Da mesma forma, quando a Sra. Catherine de Bourgh confronta Elizabeth acerca de uma suposta proposta de casamento de Darcy, seu principal argumento é de que a jovem é de “nascimento inferior”. (PP, Cap. 56) Ainda no que se refere à questão social, há dois momentos interessantes na narrativa que revelam o quão influente é a classe social na vida de uma jovem. O primeiro deles ocorre durante o período em que Elizabeth está em Netherfield, atendendo sua irmã Jane por um resfriado. Ao ouvir a Srta. Bingley tocar uma música escocesa ao piano, Darcy sutilmente convida Elizabeth para dançar o que ela, tão sutil quanto, recusa. Ao narrar tal cena, o narrador comenta: “Darcy nunca esteve tão encantado por qualquer mulher como estava por ela [Elizabeth]. Ele realmente acreditava que, se não fosse pela inferioridade de suas conexões, ele corria algum perigo”. (PP, Cap. 10). Esse pensamento é exteriorizado na conversa entre Darcy e Elizabeth que segue o primeiro pedido de casamento dele: “Você poderia esperar que eu regozijasse na inferioridade de suas conexões? – felicitar-me com a expectativa de relações cujas condições de vida são tão inferiores as minhas?” (PP, Cap. 34) Os sentimentos expressados por Darcy e por Lady Catherine de Bourgh revelam o destino de moças como as da família Bennet: viver à margem da sociedade até receber uma proposta de casamento. Por isso, casar-se constitui em um evento tão importante na vida das jovens moças do período regencial, pois permite-lhes participar da sociedade, dos eventos, comandar sua própria casa e, acima de tudo, no caso das Bennet, garantir uma velhice tranquila a elas e a seus pais, pelo menos no que se refere à concepção de sua mãe, a Sra. Bennet. A questão do casamento ganha espaço na narrativa quando o Sr. Collins - o primo a herdar Longbourn - ao visitar os Bennet, relata à Sra. Bennet que seu intento é casar-se com uma de suas primas. A matriarca entra em êxtase. No entanto, o que sucede logo a deixa à beira de um ataque de nervos: Elizabeth recusa o pedido do Sr. Collins. E é exatamente a forma como ela o faz que provoca a reflexão do leitor quanto ao universo feminino e seu processo de transformação no período regencial. Dadas as condições da família, a reação óbvia de Elizabeth seria aceitar a proposta de casamento do Sr. Collins. No entanto, ela recusa, afirmando que ela seria a última mulher no mundo que conseguiria fazê-lo feliz e, quando ele faz referência às artimanhas femininas de recusar a proposta para aumentar o suspense, ela diz: “Não me considere uma mulher elegante que pretende aborrecê-lo, mas uma critatura racional falando a verdade de seu coração.” (PP, Cap. 19). Elizabeth utiliza um argumento do iluminismo, a ideia de seres racionais, aplicada às mulheres, possivelmente em uma referência à Mary Wollstonecraft e seu texto Vindicatios of the rights of women (1792), no qual a escritora inglesa do século XVIII, ao parodiar os textos de Fordyce, Gregory e Rousseau, defende a igualdade entre homens e mulhers a partir da perspectiva iluminista e revolucionária oriunda da França. Ainda no que se refere à temática do casamento, Jane Austen apresenta Charlotte Lucas, amiga de Elizabeth, uma já não tão jovem mulher de 27 anos que aceita casar-se com o Sr. Collins,

Uma vez que há grande quantidade de publicações do romance Orgulho e Preconceito, sua referência nesse texto se dará pelo número dos capítulos.

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mesmo ele tendo sido recusado por sua amiga apenas há alguns dias. O narrador descreve como Charlotte consola e entretem o reverendo, com o objetivo único de assegurar sua atenção: a gentileza de Charlotte ía além do que Elizabeth sabia, seu objetivo não era outro senão garantir que Elizabeth estivesse segura das atenções do Sr. Collins, atraindo-as para si própria. Tal era o esquema da Srta. Lucas; e as aparências eram tão favoráveis que, quando eles se despediram, ela estaria quase segura de seu sucesso se ele não tivesse de deixar Hertfordshire tão logo. (PP, Cap. 22)

Quando Collins propõe a Charlotte, não há o suspense que em geral era exercido pelas moças ao exitar responder ao pedido de casamento e é da voz do narrador que se percebe certo julgamento de toda a situação. Ele diz que “a estupidez com que a natureza o favorecera tirava de sua corte qualquer encanto que poderia fazer uma mulher desejar que a mesma se prolongasse”. (PP, Cap. 22). A razão da rapidez do aceite de Charlotte, segundo o narrador, vinha “do puro e desinteressado desejo de um comprometimento, não se preocupava com o prazo em que tal compromisso se efetivaria”. Essas passagens ocorridas com Charlotte estão mais próximas do que corriqueiramente ocorria a moças do que se possa imaginar (GREEN, 1991). É interessante se observar que o narrador não é responsável apenas por relatar o que está diante de si. Ele também emite juízos de valor, através da escolha dos vocábulos, que revelam sua desaprovação a respeito de tais circunstâncias na vida de jovens moças em idade para casarem-se. Já, no que tange à questão do dinheiro, como se pôde observar até aqui, ela perpassa os demais aspectos, uma vez que a posição social e o casamento eram ambos estreitamente vinculados ao dinheiro. Era o dinheiro que garantia a permanência em determinada classe social. No capítulo quatro, quando o narrador apresenta as irmãs de Bingley, ele relata que “eram de uma respeitável família do norte da Inglaterra; um fato mais profundamente marcado em suas memórias do que o fato de a fortuna do irmão e a sua própria ter sido adquirida através do comércio”. Essa observação se dá pelo fato de, no período regencial, o comércio ainda não ser considerado uma atividade de prestígio. Ainda assim, a fortuna da família permite que se identifiquem com a aristocracia, embora critiquem a família do Sr. William Lucas que também já havia vivido do comércio, porém estava longe de possuir grande fortuna, como comprova a necessidade da Srta. Lucas de se casar. A análise de tais temas no romance de Jane Austen permite verificar que o universo feminino dependia grandemente do dinheiro. Além disso, conforme Katherine Green (1991), as moças no período regencial dependiam amplamente das figuras masculinas que as circundavam porque somente a eles era permitido possuir propriedades e trabalhar. A moça em idade de se casar sonhava com um marido, pois pensava que, ao governar uma casa, seria livre, o que era logo verificado como inverdade, uma vez que elas saíam do domínio paterno para caírem no domínio conjugal. Ainda assim, a partir de ideias revolucionárias como as de Mary Wollstoncraft, as relações matrimoniais passaram por tranformações no final do século XVIII e início do século XIX. Ao mesmo tempo em que o conceito iluminista de direitos individuais se expandia, um novo conceito de relação conjugal também se formava: casamentos baseados em arranjos parentais e conveniências familiais começaram a ser substituídos por casamentos baseados em uma relação afetiva entre o casal. (GREEN, 1991, p.1). É nesse sentido que O&P se destaca como representação daquele período uma vez que as vivências de Elizabeth Bennet e Charlotte Lucas refletem a transição entre dois momentos distintos nas relações parentais, familiais e conjugais. Dada a análise acerca de O&P, parte-se ao estudo de Os Diários de Lizzie Bennet (20122013), produzido por hank Green e Bernie Su, autointitula-se uma “adaptação multiplataforma”7 de Orgulho e Preconceito (1813), como se pode verificar em seu website. O projeto, uma narrativa transmidiática, constitui-de de um vídeoblog cujos personagens possuem contas em várias redes sociais. Além disso, a protagosnita possui um diário, “O Diário Secreto de Lizzie Bennet” lançado Disponível em http://www.pemberleydigital.com/the-lizzie-bennet-diaries/. Acessado em 30 Set. 2015.

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em 2014 e, mais de um ano depois, “The Epic Adventures of Lydia Bennet”, ainda sem tradução para o português, teve seu lançamento em setembro de 2015. Lizzie Bennet, a protagonista, filma duas vezes por semana um diário em forma de vídeo com o auxílio de sua amiga, Charlotte Su. A experiência acaba se tornando o projeto de dissertação da moça que cursa mestrado em cominucação em mídia de massa. Durante os 100 episódios, a jovem de 24 anos narra os eventos diários de sua vida. A primeira questão que salta aos olhos do espectador que conhece a obra original é o fato de Lizzie ser, em grande parte dos episódios a narradora dos eventos. Há, então, a sobre posição da personagem e do narrador o que implica na intensificação da ironia e da comicidade, especialmente no que se refere à representação da Sra. Bennet que, assim como no romance, considera o casamento com um homem rico a solução para a vida das filhas. Além de Lizzie, o vlog ainda conta com Jane, a filha mais velha, e Lydia, a mais nova. A primeira é a moça romântica e delicada que estuda e trabalha na área da moda. Já a segunda, é a jovem estudante de graduação que vive seus dias divertindo-se em festas e eventos sociais e que se apresenta como a menos recatada de todas. Uma vez que se trata de uma adaptação contemporânea, pois simula a vida real, no sentido de que os vídeos são postados online e acompanhados pelo público em postagens semanais, há aspectos modificados em relação ao original, o que pode permitir uma representação do contexto histórico estado-unidense contemporâneo. No que se refere à classe social e status, verifica-se que não é a propriedade de uma grande mansão, mas a propriedade de uma grande empresa da área de tecnologia que garante à família Darcy sua fortuna. Bingley tem seu prestígio referenciado pelo fato de ser um estudante de medicina. Da mesma forma, a família Bennet é descrita por Elizabeth como uma família que tem “2.5 kids and a white picket fence”8 (Ep. 1), ou seja, uma família que, de acordo com as estatísticas, é de classe média e possui em geral de 2 a três filhos. O contexto estado-unidense do período em que os vlogs são filmados apresenta um país em processo de recuperação após a recessão de 2009. Ainda assim, a classe média, da qual a família Bennet parece ser a representante, ainda sofre com a hipoteca de suas casas. Além disso, a família ainda tem empréstimos estudantis para saldar referentes às faculdades de suas filhas. As considerações sobre classe social supracitadas contribuem para que Lizzie considere Darcy como Snobby Mr. Douchey durante o episódio 6, dedicado a explicar o porquê de tal apelido que é bastante delesegante. Isso porque ao encontrarem-se na festa de casamento de um amigo em comunn, Darcy esnoba Lizzie em uma conversa com seu amigo Bing Lee, assim como no romance. No episódio 6, Lizzie expressa claramente a incompatibilidade entre eles, por ele ser arrogante, atributo vinculado, senão causado, pela classe social de onde ele provém. Ela afirma: “Just because you’re rich and heir to some kind of entertainment empire, does not mean you’re better than everyone else.”9 (Ep. 6) Assim, a classe social ainda parece ser determinante das relações interpessoais estabelecidas entre os personagens. Considerando-se que o vlog emula relações entre pessoas no século XXI, o casamento já não se configura como o único empreendimento na vida de uma mulher. Ainda assim, grande parte dos episódios iniciais discute a relação entre a irmã mais velha, Jane, e o novo vizinho, Bing Lee. O posicionamento de Lizzie oscila ente a alegria de ver sua irmã feliz e o fato de não considerar uma boa ideia a irmã se apaixonar por um homem escolhido por sua mãe. Em sua opinião, não é possível que sua mãe, que só vislumbra o casamento na vida das filhas, possa ser confiável na escolha de um companheiro. É visível aqui o conflito entre gerações, algo que também se verificava na virada do século XVIII para o século XIX quando o casamento passava a ser baseado em afeição e não em convenções sociais. Além disso, é valido ressaltar que Lizzie evita tratar das questões amorosas quando se trata de sua vida. A protagonista argumenta que não há tempo entre seu mestrado, a escrita da dissertação e seus vídeos para envolvimentos amorosos. 2.5 filhos e uma cerca de madeira branca. (tradução da autora) Só porque você é rico e herdeiro de algum tipo de império do entretenimento, não significa que você é melhor do que as outras pessoas.

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É relevante ressaltar que a temática do casamento também perde espaço na adaptação para as relações entre mulheres. Isso fica evidente, por exemplo, com o fato de que Darcy – um dos personagens mais venerados pelas Janeites10- aparece apenas no episódio 60. Se o objetivo é provocar a ansiedade nos espectadores quanto à aparição do galã, não fica claro. O que fica evidente é que essa ausência permite que outras relações sejam apresentadas. Nesse sentido, as relações entre Lizzie e Charlotte Lu e Lizzie e Lydia recebem maior relevância. Na primeira, diferentemente do romance, no qual o desentendimento se dá pelo aceite de Charlotte ao pedido de casamento do Sr. Collins, o conflito se dá pela divergência na relação com o trabalho. Lizzie considera que seu trabalho deve mudar o mundo, enquanto Charlotte, cuja família também passa por grandes dificuldades financeiras, aceita uma proposta de trabalho de Rick Collins que na opinião de Lizzie envolve “corporate videos, bad reality TV and pointless commentary vlogs”11. (Ep. 42). O desentendimento entre as duas amigas é discutido em alguns episódios e revela um novo dilema na vida da mulher, agora de ordem profissional: satisfação pessoal ou ganho financeiro? Eventualmente, as personagens entendem-se e aprendem a respeitar o posicionamento individual da outra. No que concerne à relação entre Lizzie e Lydia, verifica-se que diferentemente do romance, no qual a protagonista passa toda a trama discordando da personalidade e das atitudes da irmã mais nova, na adaptação a trama permite a construção de uma relação mais íntima entre as irmãs o que leva Lizzie a repensar seu posicionamento inicial em relação à Lydia. A caçula da família é a mais extrovertida, considerada libertina por Lizzie, aquela que não hesita em divertir-se. Ela se deixa envolver por Wickham que a convence a gravar um vídeo íntimo do casal. A gravação é colocada na internet para desespero de Lydia e suas irmãs. Diferentemente da trama original, Lydia se mostra profundamente abalada pelo ocorrido e, a análise do videoblog que ela mesma criou no YouTube, permite ao espectador e a Lizzie, compreender que a jovem buscava, na verdade, chamar a atenção da irmã na busca por sua aprovação. É fato que Lizzie sente-se profundamente culpada, responsável pelo o que aconteceu à irmã e essa descoberta aproxima as duas. O episódio 86 marca o estreitamento dessa relação entre as irmãs. Percebe-se, então, que o videoblog aborda as novas questões presentes no universo feminino, que se referem às relações entre mulheres, sororidade, e relações de trabalho. Da mesma forma que o romance pode ser entendido como uma representação de um momento histórico e de conceitos em transformação, também a adaptação permite essa interpretação. Nesse caso, os conceitos em transformação se referem a questões sobre feminismo e pós-feminismo. Enquanto a Sra. Bennet ainda deseja um bom casamento para as filhas, Jane está focada no trabalho, Lizzie nos estudos e Lydia nas atividades sociais. Cada uma das mulheres Bennet pode ser entendida como a representação de uma faceta da mulher no século XXI, assim como a coexistência de valores considerados conservadores e outros modernos e, até mesmo, conceitos como feminismo e pós-feminismo. Lizzie representa o feminismo e a necessidade de ser forte, de evitar a exposição do corpo feminino como objeto. Apesar disso, ela celebra o romance de Jane e Bing Lee e, ao final do vlog, baixa a guarde e admite seu amor por Darcy. De acordo com Angela McRobbie (2009), o feminismo é algo que impõe restrições aos desejos individuais da mulher, enquanto elas buscavam independência e igualdade em relação aos homens, elas esqueceram o que era inerentemente desejos e sentimentos femininos, como o romance, o amor e a fofoca. Parecia haver uma oposição entre feminilidade e feminismo. Já, o pós-feminismo reconcilia as mulheres com sua feminilidade, ou seja, uma mulher pode conquistar seu espaço na sociedade, ter uma posição profissional bem sucedida e, ainda assim, casar-se, ter filhos, chorar ao assistir a uma comédia romântica.

Termo que designa as fãs do universo austeniano cunhado por George Saintsbury na introdução de 1894 para uma edição de Orgulho e Preconceito e que passou a ser utilizado pelas fãs do universo de Austen. 11 Vídeos corporativos, televisão de má qualidade e videoblogs de comentário sem sentido. 10

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É interessante de se observar que ambas as transformações conceituais no que se refere à mulher passam da coletividade ao indivíduo. Se no período regencial passava-se da escolha da mulher por conveniência familial para a escolha por afeição, o que implica a valorização da mulher como criatura racional e individual, no início do século XXI passa-se da luta do coletivo feminista por espaço na sociedade para a possibilidade da expressão individual feminina. Nesse sentido, ambas as obras constituem-se em relevante espaço para a construção do universo feminino. Por fim, verifica-se que a adaptação atualiza as questões referentes ao universo feminino da obra de Austen, o que contribui para a longevidade do romance e, possivelmente, amplia seu círculo de leitores.

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A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA DE PESSOAS EM SITUAÇÃO CRÔNICA DE DOENÇA NA BLOGOSFERA: EDUCANDO PARA A DOENÇA Bruna Rocha Silveira* (UFRGS)

Compartilhar a dor pode ser terapêutico, tanto para quem escreve quanto para quem lê, bem como educativo e socializador. Os blogues de pessoas em situação crônica de doença contêm vidas pulsantes e experiências vividas, formando uma rede que conta como é viver com essas doenças atualmente. Vejo que os blogues adquirem um valor pelas suas narrativas e pelo alcance que elas adquirem na construção das identidades dos sujeitos que têm uma doença. Entendemos o mundo conforme o representamos (HALL, 1997), logo, ter acesso a diferentes formas de representação das doenças pode vir a ajudar as pessoas que as têm a enfrentar o cotidiano. Conhecer outras pessoas com a mesma doença traz não só o sentimento de partilha, mas de pertencimento e ajuda no processo de eliminação do estigma que está, muitas vezes, associado às doenças crônicas. Ademais, vivemos na era da Sociedade em Rede (CASTELLS, 1999), onde todos estão conectados de alguma forma e na qual o Dr. Google ganhou grande espaço, uma vez que as pessoas saem dos consultórios médicos com um diagnóstico e, ao não saber o que fazer com esse diagnóstico, procuram na internet, nas redes sociais, nos blogs qual a melhor forma de lidar com essa novidade. Nesse sentido, os próprios doentes viram especialistas, porque apesar de o médico ser o especialista no assunto, que dá o diagnóstico e os prognósticos, apenas quem vive diariamente com as dificuldades e adaptações impostas por doenças crônicas é que sabe “ensinar” o como viver com ela, como lidar com ela no cotidiano. Assim como as identidades dos sujeitos, os blogues estão em constante processo de construção, sempre sendo feitos e refeitos. O texto do blogue não é fechado, acabado. Ele permite novas colocações, comentários e respostas. Assim, a vivência do sujeito interfere na escrita do blogue bem como a escrita do blogue interfere na vivência do sujeito. O consumo midiático atua nos processos de formação identitária na sociedade de forma inquestionável. Para Martín-Barbero “a relação da narração com a identidade é constitutiva: não há identidade cultural que não seja contada” (2006, p. 63). Hall falará que ao invés de identidade deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento (Hall, 1997). Seguindo essa mesma linha de pensamento, Larrosa nos explica que “La narrativa no es el lugar de irrupción de la subjetividad, sino la modalidad discursiva que establece la posición del sujeto y las reglas de su construcción en una trama”1 (2004, p.7). Para Bauman, pensamos em identidade (ou identidades) quando não estamos certos do lugar a que pertencemos. Valorizamos mais o pensamento da identidade quando nos vemos diante do vazio, do desconhecido e de uma diversidade de pautas de comportamento. Como explica Arfuch, a partir de Bauman é a reelaboração do que chamamos de identidade que “assume o caráter de uma crise, em que a ‘identidade’ aparece ao mesmo tempo como escape da incerteza e como afirmação e acabamento” (2010, p. 281). E é nessa busca por como agir com essa nova identidade, a identidade do corpo doente, que as pessoas se encontram nas redes de computadores. Para Leonor Arfuch, na cultura contemporânea, a profusão de espaços contando histórias de vida, tanto de pessoas célebres quanto de pessoas comuns (programas de auditório, testemunhos, Mestre em Comunicação Social, Doutoranda em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] 1 Tradução livre da autora: A narrativa não é o lugar da irrupção da subjetividade, mas a modalidade discursiva que estabelece a posição do sujeito e das regras de sua construção em uma trama. *

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retratos de vida em jornais e TV, entrevistas, reality shows, etc) fez da vida ou da sua experiência um núcleo de tematização (2013). Para a autora, na chamada pós-modernidade presencia-se uma crise das metanarrativas, dos grandes relatos da verdade, legitimadores, dando espaço aos microrrelatos, a uma pluralidade de vozes. Assim, quem pode falar da doença não é apenas o médico com seus termos técnicos e jargões próprios da área, mas também a pessoa comum, que vivencia essa doença no seu dia a dia. E um discurso não deslegitima o outro. Eles podem (e devem) conviver, mesclando-se e construindo uma nova forma de narrar a experiência da doença. A autobiografia, como gênero literário tem sua origem nas Confissões de Rousseau. Entretanto meu enfoque está menos em explorar a história do gênero e mais em tentar entender como esse gênero se faz e se modificou até ser “aplicado” nas escritas dos blogues na contemporaneidade. Para tanto, me valho do trabalho de Leonor Arfuch, quando escreve sua tese sobre o espaço biográfico e incorpora ao seu trabalha a teoria bakhtiniana dos gêneros discursivos “como agrupamentos marcados constitutivamente pela heterogeneidade e submetidos a constante hibridação no processo da interdiscursividade social, e também a consideração do outro como figura determinante de toda interlocução” (2010, p. 29). Arfuch também utiliza o conceito de valor biográfico, do mesmo autor, em seu trabalho, conceito que acredito ser de grande importância para a análise da escrita autobiográfica dos blogues. Para Bakthin: “um valor biográfico não só pode organizar uma narração sobre a vida do outro, mas também ordena a vivência da vida mesma e a narração da nossa própria vida, esse valor pode ser a forma de compreensão, visão e expressão da própria vida” (apud Arfuch, 2010, p. 55 – grifos da autora). O valor biográfico interpela narrador e leitor sobre sua própria existência. Arfuch desenvolve assim o conceito de espaço biográfico, operando como ordem narrativa de nossa modelização de hábitos, costumes, sentimento e práticas e não como um espaço que alimenta a exaltação narcisista. Philippe Lejeune, acadêmico e fã confesso do gênero autobiográfico justifica sua escolha por estudar as autobiografias, apesar de não ser um gênero tão valorizado dentro das teorias literárias, para satisfazer uma paixão e porque, segundo ele, após maio de 1968 tornou-se possível “trair sua tese com seu hobby”. Escrever sobre si, seja na forma de diário, blogue, memórias, retratos, etc, por muitos autores é considerado literatura de segundo nível ou, como o próprio Lejeune coloca, um hobby e não uma arte ou um trabalho. Em seu texto seminal sobre esse gênero, O Pacto Autobiográfico (originalmente publicado em 1975), Lejeune lista características da escrita autobiográfica e dá pistas sobre o que esperar de uma escrita autobiográfica. A convenção do que seria uma escrita autobiográfica sugerida pelo autor é composta por dois pactos: o pacto autobiográfico e o pacto referencial. O pacto autobiográfico implica em um relato retrospectivo que uma pessoa faz de sua própria existência, dando importância a sua vida individual e sua personalidade. Um dos aspectos que “faz” o pacto autobiográfico é o nome próprio do autor que o assina. Como lembra Miraux (2005), o sujeito profundo da autobiografia é o nome próprio. Para Lejeune, A autobiografia (narrativa que conta a vida do autor) pressupõe que haja identidade de nome entre o autor (cujo nome está estampado na capa), o narrador e a pessoa de quem se fala. Esse é um critério muito simples, que define, além da autobiografia, todos os outros gêneros de literatura íntima (diário, autorretrato, autoensaio) (2008, p.24 – grifos do autor).

No caso dos blogues o nome não está estampado na capa como em um livro, mas normalmente se encontra na página inicial do blogue ou em uma página auxiliar que descreve esse autor (espécie de orelha de livro) e na assinatura de cada texto postado. O segundo pacto que constitui o pacto autobiográfico é o pacto referencial, ou seja, o texto é uma expressão da verdade e não a verdade da existência real, mas a verdade do texto (Miraux, 2005, p. 23). Para Lejeune, a biografia e a autobiografia são textos referenciais: “eles se propõem a fornecer informações a respeito de uma ‘realidade’ externa ao texto e a se submeter, portanto a uma prova

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de verificação. Seu objetivo não é a simples verossimilhança, mas a semelhança com o verdadeiro. Não o ‘efeito de real’, mas a imagem do real” (2008, p.36 – grifos do autor). O autobiógrafo nos conta o que só ele próprio pode dizer. Converter a experiência em palavra, dar forma à experiência através da língua, dar sentido ao vivido a partir de uma narrativa. A autobiografia é uma busca do autor por si mesmo. Uma espécie de etnografia interior. Para Lapointe, o trabalho autobiográfico assume a perspectiva de aceder a novas compreensões da sua história de vida e encontrar vias inéditas de desvendamento de sentidos e renovação de sua existência (2010, p.147). Segundo Lejeune, a autobiografia “leva-nos a nos abrir para outras disciplinas, essencialmente a psicanálise e a psicologia, a sociologia, a história. Donde inúmeros contatos. Ela permite prestar atenção em si e escutar o outro simultaneamente” (p. 66). Há, indubitavelmente, com o advento da internet 2.0, uma proliferação de vozes que querem ser ouvidas e encontraram nesse espaço uma forma de falar e ouvir seus semelhantes. De aprender com a experiência do outro. E também de conseguir falar de experiências que em outros lugares não podem ser faladas. Os limites do público e privado se borram e cada vez mais aquilo que era vivido apenas no espaço privado, na vida íntima, toma conta do espaço público.

O DIÁRIO A escrita dos blogues não se trata exatamente de uma autobiografia, uma vez que é não é uma obra fechada, acabada, constituída pelas lembranças de seu autor. Ao contrário, é uma obra aberta, em construção permanente, contando pedaços da vida daquele que conta. O blogue se aproxima muito da escrita do diário, com a diferença que o diário é feito para não ser lido por ninguém (pelo menos até a morte de seu autor, quando pode ser transformado em uma biografia) e o blogue é feito para ser lido e comentado. Ele tem um público. O diário é uma escrita quotidiana. Segundo Lejeune “uma série de vestígios datados” (2008, p. 259). Para o autor a base do diário é a data. E seu grande valor está na autenticidade do momento. Ainda para Lejeune, em primeiro lugar o diário é uma lista de dias, “um trilho que permite discorrer sobre o tempo” (2008, p.261). E motivos para escrever um diário podem ser inúmeros: conservar a memória, sobreviver, desabafar, conhecer-se, deliberar, resistir, pensar, escrever, etc. Destaco as possibilidades de desabafar, pois o diário pode ser um amigo a quem se confessa sentimentos e pensamentos sem preocupar-se com o que os outros vão pensar. O de se conhecer, pois quando escrevemos sobre nós mesmos nos vemos com um olhar distanciado, possibilitando uma outra visão sobre si. O de resistir, pois a escrita pode proporcionar coragem àquele que escreve. O pensar, pois o diário se apresenta como uma forma de trabalho. Nesse caso, uma forma de trabalhar a doença no seu dia a dia. E o prazer de escrever. Como diz Lejeune “O diarista não tem a vaidade de se acreditar escritor, mas encontra em seus escritos a doçura de existir nas palavras e a esperança de deixar um vestígio” (2008, p. 265). O autor destaca que os diários e blogues são, geralmente, começados em um momento de crise, com um tema ou assunto específico. Quando essa crise (que pode ser o término de um relacionamento, a perda de um emprego, uma mudança de cidade) passa, os diários e blogues costumam ser abandonados. No caso dos blogues de pessoas em situação crônica de doença a crise não passa, pois a doença não tem cura. E a experiência de viver com a doença é vivida diariamente, sempre. Alguns desses blogues são abandonados, claro, no entanto, a longevidade desses blogues é maior porque trata-se de uma “vida em crise”. Além disso, os blogues transpõe os limites do diário pessoal quando se torna um espaço de convivência com outras pessoas que passam pelas mesmas experiências daquele que escreve.

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Segundo Lejeune, o valor do diário se deve à sua seletividade e descontinuidades. “Das inúmeras facetas possíveis de um dia, ele só retém uma ou duas, correspondentes ao que é problemático” (2008, p.296). Lendo esses “diários na internet” pode-se ter a ideia de que as pessoas vivem para a doença, ou que só a doença tem importância, quando o que acontece é que esse é o espaço em que ela fala da doença, deixando os outros espaços da vida para outras coisas. Porque ao doente dificilmente é permitido falar de doenças em meio aos “saudáveis”. E quando lhe é permitido, só se for para contar coisas boas.

ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA NA BLOGOSFERA Há atualmente uma vasta literatura sobre o fenômeno dos blogues. Do diário pessoal à comunicação empresarial, os blogues são vastamente utilizados por todo o mundo principalmente por apresentar facilidade de execução e pela instantaneidade da notícia. Com o crescimento das redes sociais, os blogues ganharam uma dimensão ainda mais expressiva por terem maior quantidade de canais de divulgação de seu espaço. Assim como é vasto o mundo dos blogues, vasto é o campo que estuda esse fenômeno. Para entender melhor o que é um blogue, me valho aqui da teoria desenvolvida por Primo (2008) para tipificar os blogues. Para o autor, blogues são meios de comunicação e o fato de nomearmos o espaço de blogue não diz sobre sua produção (individual ou coletiva), seus interesses (pessoal ou comercial) ou se ele se compromete com um estilo literário (biografia, ficção ou outros). Seguindo a matriz para tipificações de blogues desenvolvida por Primo, os blogues de pessoas com doenças crônicas selecionados para esse trabalho podem ser classificados de duas formas: como blogues pessoais individuais e autorreflexivos, no qual a pessoa escreve opiniões e reflexões sobre si, sobre os outros e sobre sua vida cotidiana. Segundo Primo, esse é o gênero mais referenciado tanto na academia quanto na imprensa, sendo o mais comum na blogosfera e que eu acredito ser a característica mais forte dos blogues de pessoas com doenças crônicas. Além de pessoais individuais e autorreflexivos, incluo os blogs desenvolvidos por pessoas com doenças crônicas como pessoais individuais reflexivos, porque esses blogueiros comentam e analisam de forma crítica notícias da mídia ou outros produtos da indústria cultural que trazem seu tema principal de interesse à tona, no caso, a doença. Na apresentação do blog Artrite Reumatoide2, por exemplo, Priscila Torres expõe claramente que o blogue se propõe a contar a vida dela e de outras pessoas e divulgar informações externas, deixando claro a intenção de ser um blogue pessoal auto reflexivo e reflexivo além de lugar de partilha: A missão deste blog é compartilhar experiências, divulgar informações e lutar pela melhoria da “qualidade de vida do doente reumático no Brasil, não indicamos tratamento medicamentoso, más fornecemos informações de como viver além da AR, como fazer tudo que fazíamos antes da AR, porém de uma forma diferente. Aqui tem um pouco da minha vida e muito de mim, tudo aquilo que aprendi através da doença, é aqui transcrito e transmitido de uma forma que, quem está lendo, se identifique e  reconheça que não está sozinho. Não são raras as comparações entre os blogues autorreflexivos com os diários pessoais, escritos na intimidade. Não faltam também relações entre a escrita do diário pessoal e a escrita confessional, servindo assim como uma forma de catalisador dos pensamentos e sentimentos da pessoa que o escreve. Entretanto, como já fora dito há uma diferença bastante importante de ser destacada entre o diário pessoal íntimo e o blogue pessoal auto reflexivo: um é escrito para permanecer em segredo o outro busca o olhar alheio, busca o diálogo, quer ser visto, lido e comentado.

http://www.artritereumatoide.blog.br/category/minha-vida-com-ar/

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Não podemos também ignorar que o processo da escrita de um blogue pessoal autorreflexivo se aproxima da escrita autobiográfica e que a forma como o indivíduo se constitui é afetada por essa escrita de si que visa o olhar do outro. Além disso, interfere também na subjetividade desses outros que leem, acompanham e comentam nos blogues. Um blogue, ao contrário do que muitos pensam, é uma construção coletiva, pois um blogue sem leitores e comentários tem vida curta na rede. Nesse sentido, vejo o blogue também como uma conversação em rede, nos termos de Recuero, que diz que “o ponto fundamental é aquele onde essa conversação reconstrói práticas do dia a dia, mas que, no impacto da mediação, amplifica-se e traz novos desafios para a compreensão de seus impactos nos atores sociais” (2012, p. 216). Recuero estuda a conversação em rede dentro do estudo da Comunicação Mediada por Computador, “que abarca um conjunto de práticas sociais decorrente das apropriações comunicativas das ferramentas digitais” (2012, p. 22). Para a autora, o conteúdo dos blogues estabelecem uma conversação com toda a blogosfera. E para que essa conversação aconteça, é necessário que exista um contexto comum entre os participantes da conversa. No caso dos blogues de pessoas com doenças crônicas, o contexto comum é a vivência com a doença. Para Recuero, o contexto se dá a partir do lugar (quadro espaço-temporal da conversação), do objetivo dessa interação e dos próprios participantes (2012, p. 97). Para Clarsk e Schaefer (apud Recuero, 2012, p. 99) “a comunicação apenas é possível quando os participantes têm algum terreno em comum para crenças compartilhadas, conhecimento das expectativas uns dos outros e aceitam as regras interativas que servem para manter o desenvolvimento da conversação”. Para Lejeune, a escrita dos blogues traz um outro pacto à tona, um pacto de amizade (2008, p. 343). Em seu texto escrito em um blogue criado antes do lançamento do livro Cher écran (Querida tela), e posteriormente publicado como um ensaio, Lejeune explica, diferenciando o diário de papel dos blogues, na sexta-feira, 06 de outubro, 12h: A internet fornece um dispositivo que concilia, numa mesma experiência, o recolhimento e o retorno ao outro! [...] O apelo ao outro, os contadores de visitas... Mas também o fato de que os diaristas se leem entre si. É o que chamo de campo de amizade: não apenas relações duais, mas espírito de grupo, solidariedade [...] Mais uma lista: 1) a regularidade (sem isso, você perde seu público); 2) o desejo de seduzir (claro, você está no palco); 3) a autocensura (diferenciar os diários-crônicas dos diários íntimos de fato).[...] na Internet, você lê o diário no ritmo em que está sendo escrito! O leitor compartilha o tempo do diarista! É completamente diferente! Como se fosse uma novela! (2008, p. 342). É curioso como Lejeune compara o blogue a uma novela, pois muitos seguidores/leitores dos blogues esperam com grande expectativa o próximo texto, a próxima “aventura” desse personagem que se escreve na blogosfera. Lejeune, que tinha certo preconceito com a escrita na web, e que ainda hoje a considera um exercício parecido como fazer bolhas de sabão: “maravilhoso, porém frágil”, diz em certo momento, comentando um dos blogues que ele estudara, que “quem gosta de literatura e da humanidade deve ser capaz de ver a beleza de um diário desse tipo, no qual uma mulher traça tão bem os caminhos de sua vida, mesmo que a assinatura não seja de Kafka” (2008, p.350). Lejeune também utiliza uma expressão que, acredito, poderia ajudar a definir a escrita autobiográfica autorreflexiva na web: crônica de humores. Destacando nesses humores a importância dos leitores e comentadores nos blogs. Sem eles os blogues morreriam pela falta de incentivo a continuar a escrita. Quem acompanha um blogue o “lê com simpatia”, como diz o autor. É alguém que escolheu acompanhar aquela escrita. Então, irá incentivar a escrita mesmo que um ou outro texto não o agrade, no aguardo de um bom texto no futuro e também para conhecer melhor seu “amigo” que escreve. Refletindo sobre os blogues, Lejeune entende que quem o cria assume uma responsabilidade e faz uma opção para o futuro. De fato, é o que acontece quando se cria esse pacto de amizade com os leitores do blogue. Há uma responsabilidade em continuar produzindo conteúdo sempre.

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CARACTERÍSTICAS DOS BLOGUES DE PESSOAS EM SITUAÇÃO CRÔNICA DE DOENÇA Em nossa sociedade, que se mostra alucinada por produtividade, hiperatividade e suprema felicidade, falar de algo incapacitante, doloroso e que causa sofrimento é quase proibido. O espaço do blogue torna-se o lugar onde falar sobre a doença é permitido e até desejável. Além disso, os blogues são espaços onde as pessoas podem falar sobre suas doenças abertamente, para pessoas que entendem aquilo que está sendo dito, ato que na “vida real” pode ser muito complicado devido a estigmas e preconceitos. Falar sobre doenças já não é algo muito bem aceito em nossa sociedade. E, atualmente, vivendo em uma sociedade em que o imperativo é ser feliz, saudável e otimista (FREIRE FILHO, 2010), ter um lugar para dividir essas vivências e memórias é mais complicado ainda. Esse é o espaço em que as pessoas podem falar sobre sua doença sem ter medo do que vão pensar dela, sobre o que sua família vai dizer, sobre o que os amigos vão concluir a partir daquilo. É um espaço em que todos do grupo vivenciam a mesma experiência. Aquilo que poderia ser motivo de vergonha passa a ser motivo de partilhamento e de criação de laços afetivos. Para Castells (1999) as redes sociais têm grande importância na criação e manutenção de relacionamentos e de sociabilização atualmente. O caso dos blogues de pessoas com doenças ilustra muito bem isso, uma vez que muitas pessoas com algumas doenças crônicas mal saem de seu espaço físico por conta de mobilidade reduzida, tratamentos complicados, rotina de exames, etc. Lembrando que, quando falo de doença não estou falando da ausência de saúde física, mas das mudanças sociais, psicológicas, emocionais, culturais e identitárias que o diagnóstico traz consigo. Reunir essas memórias é uma forma de dar sentido a essa vida diferente que leva uma pessoa com doença crônica. Dar sentido a tantas dores e rotinas difíceis. Há também uma vontade de contar sua história, principalmente a partir do diagnóstico. É como se as histórias de vida valessem a pena serem contadas e guardadas a partir desse momento de ruptura em vida. É como se o momento do diagnóstico representasse a morte de uma identidade e o nascimento de uma outra. Narrar esse processo nos blogues ajuda no processo de entender essas transformações. Para Errante “nossa posição no mundo não somente afeta nossa interpretação do mundo como também nosso senso do eu serve de intermediário para nosso modo de contar e rememorar o mundo – e nosso lugar dentro dele – para os outros (2000, p. 163). A partir da leitura desses blogues podemos entender o contexto social em que essas pessoas vivem, o que elas querem lembrar, o que preferem esquecer, o que é “contável” dessas vidas. No caso das doenças crônicas, podemos conhecer como é o atendimento de saúde no país, por exemplo. Quais as políticas de trabalho, os planos de acessibilidade, como as pessoas consideradas inaptas à vida social se saem nessa sociedade. É a partir dessas micro-histórias, dessa espécie de diário íntimo que podemos conhecer, entender e analisar como desenvolver políticas para melhorar a qualidade de vida desses sujeitos. Fazer do blogue um lugar de compartilhamento de memórias é possível graças a uma característica da própria rede de computadores: unir pessoas em torno de objetivos/temas comuns. Para Lévy (1999, p.49) “[...] apenas as particularidades técnicas do ciberespaço permitem que os membros de um grupo [...] se coordenem, cooperem, alimentem e consultem uma memória comum, e isto quase em tempo real, apesar da distribuição geográfica e da diferença de horários”. Para o autor a memória é um importante fator para a formação da comunidade virtual. Segundo ele, a identidade do grupo tem estreita relação com sua memória coletiva. É nesses escritos sobre si, sobre a doença, sobre o dia a dia que está não só a vivência do blogueiro, mas a memória coletiva de como é viver com a doença no tempo presente. Os blogues, muito mais que diários, são lugares de encontro, de compartilhamento, de memória. A rotina médica, rotina de exames, obstáculos, derrotas e vitórias são rotinas vividas individualmente, entretanto,

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por se tratarem de rotinas semelhantes e partilhadas, passam a ser memórias coletivas, mesmo que uma pessoa tenha vivido aquela mesma dor ou emoção em um ponto do planeta e a outra pessoa no ponto oposto. Ao compartilhar essas composições, são configuradas e reconfiguradas, constantemente diferentes formas de ser e viver essas doenças. Segundo Arendt “Nós humanizamos o que se passa no mundo e em nós mesmos apenas falando sobre isso, e no curso desse ato aprendemos a ser humanos” (2013, apud BAUMAN, 2004, p. 177). Assim, falar sobre nossas doenças, narrar nossas experiências, organizar o que pensamos e sentimos para compartilhar com o outro é uma forma de sermos humanos. Dessa forma, entendo que compartilhar pode ser um bom modo de diminuir essa dor. Não a dor física, porque para essa existe a medicina, mas para diminuir a dor de não poder falar sobre a doença, a dor de não ter com quem compartilhar. E é espaço de fala, de compartilhamento onde todos que vivem com a doença podem falar abertamente sobre o que vivem e sentem, organizando assim suas vidas em uma narrativa coerente, compartilhando memórias e dores que apresento aqui como possível espaço de educação para doença que pretendo analisar em minha tese de doutorado.

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OS FRACASSADOS DA AMÉRICA: UMA VISÃO DO LOSER NAS NARRATIVAS DE RAYMOND CARVER Carlos Böes de Oliveira* (Feevale)

1. INTRODUÇÃO Scott A. Sandage salienta que “o fracasso não é o lado negro do sonho americano, mas sua própria fundação. O sonho americano dá a cada um de nós a oportunidade de ser um loser por natureza1”. (2005, p.278, tradução minha) Os losers habitam a sombra superdimencionada da ambição. Por muitas décadas os Americanos foram iludidos a acreditarem que o quanto mais duro você se empenhasse no trabalho, o quanto mais ambicioso a pessoa era, maiores seriam as chances de alcançar o sucesso. E o sonho na América, é que ninguém é um loser por natureza. Ou, como o próprio Raymond Carver escreveu em seu ensaio intitulado Fires: Por anos, minha esposa e eu tínhamos uma crença de que se trabalhássemos duro, e tentássemos fazer a coisa certa, as coisas certas aconteceriam conosco. Realmente não é uma coisa feia de se acreditar. Trabalho duro, metas, boas intenções, lealdade, nós acreditávamos que eram virtudes e que algum dia seríamos recompensados. Nós sonhávamos quando nós tínhamos tempo para sonhar. Mas percebemos que trabalho duro e sonhos não são o suficiente2. (1983, p.33)

O conceito de loser tem mudado constantemente em nossa cultura. Ou melhor, o conceito tem sempre se alargado semanticamente. Inicialmente, envolvia aqueles que não se ajustavam a ideologia capitalista. Aqueles que não conseguiam se adaptar, e que eram ejetados do sistema e de sua busca indomável pelo sucesso. Apenas homens brancos que falhavam nos negócios, que tinham seus nomes tingidos, podiam calçar os sapatos ideológicos do loser. Quem é o loser hoje? O alcance semântico do pós-modernismo consegue absorver diferentes tipos de pessoas. Todas as minorias pertencentes à América podem ser inseridas na categoria dos losers Na metade do século XX, as mulheres, os negros, os homossexuais, os latinos, os estrangeiros, os nativo-americanos, os nerds, os sulistas, etc, Devemos nos perguntar em que momento o Loser se tornou uma questão de identidade e não uma questão de cunho financeiro. Porque os Americanos conectam-se com metáforas capitalistas, ou tratam a identidade como uma analogia da forma com que se trata um negócio? Porque mensuram seus fracassos com os dólares perdidos tanto quanto o fazem com os sonhos perdidos?

2. A NOVA HISTÓRIA Na metade do século XX muitos questionamentos foram levantados sobre questões que ancoravam a filosofia modernista. A relação com a “verdade”, a unidade, a universalidade, o centro, e a cientificidade foram conceitos colocados em cheque. O que os pensadores, ditos pós-modernos entendem é que não há mais espaço para respostas definitivas e que tudo não passa de uma repre-

Doutorando em Processos e Manifestações Culturais pela Feevale, Brasil. e-mail: [email protected] Failure is not the dark side of the American Dream; it is the foundation of it. The American Dream gives each of us the chance to be a born loser. 2 For years my wife and I had held to a belief that if we worked hard and tried to do the right things, the right things would happen. It‘s not such a bad thing to try and build a life on. Hard work, goals, good intentions, loyalty, we believed these were virtues and would someday be rewarded. We dreamed when we had the time for it. But, eventually, we realized that hard work and dreams were not enough. *

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sentação, uma retórica de verdade. A disciplina da História não ficou distante de ser questionada pela sua “cientificidade”. Hayden White salienta que [...] de Valéry e Heidegger a Sartre, Lévi-Strauss e Michel Foucault – expressaram sérias dúvidas sobre o valor de uma consciência especificamente “histórica”, sublinharam o caráter fictício das reconstruções históricas e contestaram as pretenções da história a um lugar entre as ciências. (1995, p.17)

Percebeu-se que o historiador não fala de um lugar imparcial. Ele mesmo, como enunciador, carrega elementos ideológicos incapazes de serem “apagados”. Cardoso salienta que a história como disciplina, costumava [...] afirmar que os pretensos centros (entenda-se: lugares de onde se fala) a partir dos quais se afirmariam as diversas posturas diante da mesma não são legítimos ou naturais, mas sim ficções arbitrárias e passageiras, articuladors de interesses que não são universais: são sempre particulares, relativos a grupos restritos e socialmente hierarquizados de poder (em outras palavras: não há História; há histórias”de” e “para” os grupos em questão) (2011, p.15)

Desta perspectiva, nota-se que a neutralidade do historiador para analisar os fatos, ou até mesmo selecionar sua corpora de pesquisa não sai ilesa do universo ideológico e parcial. As dimensões ideológicas de um relato histórico refletem o elemento ético envolvido na assunção pelo historiador de uma postura pessoal sobra a questão da natureza do conhecimento histórico e as implicações que podem ser inferidas dos acontecimentos passados para o entendimento dos atuais. (WHITE, 1995, p.36)

Pensando estes questionamentos, chega-se a conclusão de que em culturas diferentes, a historicidade também é diferente. O ponto de vista se torna um preceito comum nos estudos da história hoje. A Nova História, a história vinda de baixo, ou seja, aquela contada pelos sujeitos que não haviam tido voz anteriormente para contar a sua própria história, ou a história vista por um determinado prisma começa a aparecer. A Nova História é “[...] preocupada centralmente com a diversidade dos objetos e a alteridade cultural, entre sociedades e dentro de cada uma delas.” (CARDOSO, 2011, p.3) Nesta condição, temos a história da loucura (Foucault), A história pós-colonial, a história das mulheres, dos negros, dos homosexuais, e a história dos losers na América, como propomos apresentar. Outro elemento da Nova História é onde ele vai buscar suas fontes, já que documentos oficiais, ou registros comerciais, entre outros exemplos, também representavam uma centralidade do pensamento. Elas vinham carregadas de elementos ideológicos. Por falta de documentos “tradicionais” para escrever a história da diversidade, busca-se outras alternativas e diferentes tipos de “provas”. Para traçar a história do loser, Sandage baseia-se em cartas de suícidio, cartas pessoais, declarações de falência e também na literatura.

3. A HISTÓRIA DO LOSER NA AMÉRICA Os indivíduos Americanos dos séculos XVII e XVIII idolatravam a liberdade, e o individualismo era visto como uma forma legítima para atingir este objetivo. Mas quando o capitalismo alargou seus braços, quando a guerra civil norte-americana se tornou iminente, a situação mudou. Esta situação fez com que a ideologia capitalista ultrapassasse suas fronteiras de mercado, infiltrando-se em ideologias sociais, governamentais e individuais. Guiados pelos mesmos princípios do individualismo, do trabalho duro, e da busca pela liberdade, os americanos redirecionaram o seu ímpeto e identidade nacional. Não é mais a liberdade que os leva ao sucesso, mas sim, a ambição. “Com poucas exceções, a única identidade vista como legítima na America é uma identidade capitalista; em cada passo da vida, investimentos e aquisições são a chave para seguir adiante e evitar a estagna-

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ção3”. (SANDAGE, 2005, p.4) A revolução industrial ocorrida no final do século XIX e início do século XX remodelou a ética norte americana. Para os americanos, a ambição tornou-se o ímpeto e o mote da nação. O crescimento econômico do país magnificou o desejo latente do povo em crescer também. “A ambição tornou-se mais legítima ao mesmo tempo em que a mobilidade ocupacional destituiu a vocação Calvinista; o pecado do orgulho deu lugar à virtude do esforço4”. (SANDAGE, 2005, p.14)

3.1. DESCENDO NA HORA DE SUBIR O self-made man do século XIX caminhava de mãos dadas com sua cara-metade, o loser. A cultura imperialista foi capaz de “apagar” a história daqueles que falharam. A América do século XIX é vista como um período exemplar de fortuna e empreendimento. A história silenciada do fracasso, as vozes dos homens, mulheres e famílias que falharam na busca do sucesso reverbera em diários, cartas suicidas, cartas pessoais, relatórios econômicos, biografias, casos de falência e na literatura. O que acontece a América quando aqueles que caem são pessoas trabalhadoras, que se esforçam e dão o seu melhor? Quem deve ser culpado? A crença e o imaginário sobre este trabalhador que se dedica e alcança o sucesso persiste até nossos dias. A cultura de massa é a grande disseminadora dessa filosofia. Filmes e programas televisivos usam, em larga escala, a imagem do loser que, depois de trabalhar duro, falhando, e trabalhando duro novamente, finalmente alcança o sucesso. A mídia ainda vende a imagem da América como a terra da oportunidade. Os americanos que estavam fracassando não eram aqueles que não tinham ambição ou habilidade. Eram os negócios que acabavam eliminando seus próprios negócios, ou seja, a economia nacional e suas características mutáveis é que estava levando os americanos esforçados e trabalhadores para o fundo da existência social. A história dos primeiros perdedores se inicia com homens brancos de negócio no século XIX. Suas perdas financeiras e também suas perdas em relação à visão da masculinidade (já que um homem que fracassava não poderia ser visto como um homem de “verdade”) levaram a cultura redefinir o fracasso: do dinheiro perdido em um caso de falência a oportunidades perdidas em uma vida desperdiçada. Essa mudança semântica coloca todo mundo em alerta. Pois, a partir de agora, todo mundo pode se tornar um ninguém.

3.2. O SÉCULO XX E OS LOSERS No início do século XX, embora muitos americanos vivessem em áreas rurais, havia um enorme número de tecnologias aparecendo e assumindo relevância no estilo de vida norte americano. Milhares de estradas cruzavam o país; as rodovias na América eram mais extensas do que todas as rodovias da Europa juntas. Além disso, após a segunda guerra mundial, os Estados Unidos se tornaram a economia mais poderosa e influente do globo. Americanos que viviam vidas fixas, começaram a experimentar vidas mais móveis, em cidades ou em subúrbios das grandes áreas metropolitanas. Nos anos que seguiram a segunda guerra mundial, a economia dos Estados Unidos, focada na manufaturação, tornou-se uma economia voltada para serviços e tecnologias de informação, características estas que marcam um país desenvolvido em nossa sociedade contemporânea. Depois da guerra muitos trabalhadores de colarinho azul perderam seus empregos e foram direcionados a posições diferentes e inferiores de trabalho.

―With few exceptions, the only identity deemed legitimate in America is a capitalist identity; in every walk of life, investment and acquisition are the keys to moving forward and avoiding stagnation 4 |Ambition grew more legitimate as occupational mobility deposed the Calvinist sense of calling; the sin of pride made room for the virtue of striving 3

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A ideologia que pregava um amanhã melhor tornou-se opaca. A crença que ditava que o trabalho duro, determinação e ambição poderia levar qualquer um ao sucesso foi despedaçada. De acordo com Bernard Carl Rosen (1998), a transformação ideológica de muitos americanos advém da mudança na estrutura econômica que se seguiu nas últimas três décadas do século XX, quando os meios de produção, que dependiam da força manufatureira, foram deslocados para posições inferiores por uma nova economia baseada nas tecnologias e serviços. Esta nova economia é impiedosa com aqueles que não conseguem se adaptar a ela. Bíceps saudáveis perderam prestígio e utilidade no local de trabalho. Muitos americanos que viviam vidas “saudáveis, honestas e valorosas” como trabalhadores na indústria manufatureira foram substituídos por estratégias de mercado que pudessem se moldar às condições cambiantes do mercado.

4. O LOSER COMO UM DESCENTRADO Um grande número de teóricos e artistas da pós-modernidade questionam os conceitos humanistas liberais. Quando falamos de Humanismo Liberal, nós estamos falando de seu ímpeto centralizador e totalizante, de seus conceitos de autonomia, transcendência, certeza, autoridade, unidade, totalidade, sistema, universalidade, centro, continuidade, hierarquia, homogeneidade, exclusividade e origem. Linda Hutcheon elucida que questionar o Humanismo Liberal não é negá-lo, mas questionar sua relação com a experiência. O pós-modernismo é um “[...]fenômeno contraditório, um que usa e abusa, instala e subverte, o próprio conceito que se opõe5”. (1988, p. 3) Hutcheon ressalta que o pós-modernismo é o resultado de uma postura interrogativa, além de ser uma oposição à autoridade que advém do cenário político dos anos 60. Um dos grandes questionamentos, dos teóricos pós-modernos, recai sobre o conceito de centro. O que é o centro? Desde quando o “centro” é o centro? Nós vivemos em uma época em que estamos repansando a questão do centro, e, a partir disso, refletindo sobre as margens e as fronteiras. Estamos nos desviando dos conceitos de unidade e origem. E, embora o “centro” possa não prevalecer, ele ainda é um subterfúgio atrativo para as artes enquanto representação de uma ficção que pode ser compreendida como sistema de ordem e unidade. O indivíduo descentrado é inevitavelmente identificado com o centro que ele aspira, mas do qual ele é negado. Nos trabalhos de Raymond Carver, o leitor tem muita influência sobre o texto. O estilo elíptico de Carver permite aos leitores ter uma participação ativa no ato de construir a história. O leitor preenche as lacunas da narrativa, inferindo sentido nos momentos de silêncio e ambiguidade. Esta atitude perante o leitor é um dos aspectos mais marcantes na literatura pós-moderna. Quando Raymond Carver lançou seu primeiro livro de contos Will you please be quiet, please? (1976) os seus personagens eram representantes de uma classe social agonizando em dívidas, desempregadas, pessoas que tiveram seus casamentos arruinados por problemas financeiros, infidelidade e falta de comunicação; pessoas que desejavam ter vidas diferentes. Carver e seus personagens representam os descentrados pela classe e pela geografia, já que a maioria de seus personagens, incluindo o próprio autor, viviam em cidades remotas às margens do mundo moderno, normalmente nos estados de Oregon, Washington e Alaska. Os personagens que habitam as narrativas de Carver não são negros, gays ou imigrantes. De fato, as mulheres retratadas em suas histórias vivem em um mundo regido pelas “leis” do mundo masculino. E mesmo assim, os personagens de Carver são losers brancos e machos, perdidos em um mundo que os rejeita. Os personagens são completamente excluídos de qualquer posição de poder na sociedade. Normalmente são alcoolatras desempregados que sentem que o mundo é um lugar perigoso e suspeito. A sensação de inadequação dos personagens

Contradictory phenomenon, one that uses and abuses, installs and then subverts, the very concepts it challenges.

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reverbera em suas inabilidades comunicativas em relação ao Outro. Os personagens são sufocados e solitários.

5. OS LOSERS DE RAYMOND CARVER Em Raymond Carver as formações ideológicas são lineares e restritas. Permitir que os personagens se desloquem para outras formações ideológicas sempre representa um grande risco e uma possibilidade de colapso. Os personagens estão aprisionados a uma identidade fixa, que os condena a posições subalternas em relação ao mundo e ao Outro, qualquer Outro. Embora estejamos vivendo em um mundo heterogêneo, nos contos de Carver a realidade é colocada com tendências homogêneas. Raymond Carver criou um universo onde os personagens se sentem sufocados e ameaçados pelo mundo exterior. E é no discurso (a exterioridade), tanto nas palavras como nos momentos de silêncio, que o leitor/analista percebe a grande tensão e o potencial para o calapso existente no mundo dos personagens. O estilo de escrita de Carver cria uma tensão no texto porque há enormes silêncios em seus personagens. Tudo na vida dos personagens é um fator de ameaça. Os contos de Carver são habitados por sujeitos completamente separados um do outro, alienados e temerosos em se comunicar, embora a comunicação seja um desejo latente entre eles. Cada tentativa de aproximação entre os personagens na estrutura discursiva, cria uma possibilidade de catástrofe, ou, a possibilidade do equivoco e deslocamento. Transitar entre diferentes formações ideológicas seria violar a norma, violar a estabilidade. Em um mundo frágil e opressor, os personagens de Carver vivem sobre a sombra de uma ideologia dominante. Os sujeitos só alcançam e tocam o Outro através do silêncio. A comunicação é estabelecida pelo silêncio. As fronteiras desta formação ideológica assujeitada a uma ideologia do oprimido só trespassa seus limites pelo silêncio. Tudo que vem das palavras gera medo e suspense. O telefone ou uma campainha tocando são sintomas de ameaça. Um bom exemplo pode ser mostrado no primeiro parágrafo de Ponha-se no Meu Lugar, um conto que aparece em sua primeira coleção de contos: O telefone tocou na hora em que ele estava passando aspirador de pó. Tinha feito a faxina em uma parte do apartamento e agora estava na sala, usando o bico fino para tirar os pelos do gato entranhados nas almofadas. Parou, escutou e depois desligou o aspirador. Foi atender o telefone. (CARVER, 2010, p.171)

O leitor de Carver, da mesma forma, quando se depara com os espaços em branco entre cada enunciado, entre cada vírgula ou ponto, preenche estes espaços com tensão e ansiedade, sem entender totalmente o que está ou pode estar acontecendo. Os personagens de Raymond Carver parecem ser extremamente frágeis, incapazes de resolver problemas relacionados a dinheiro ou casamento. Seus protagonistas e personagens secundários não diferem no que concerne à ausência de confiança ou falta de habilidade e inarticulação em relação à fala. O universo criado por Carver é completamente pessimista, já que seus personagens não tem nenhuma ambição e, de certa forma, não estão preparados para aceitar os papéis que a sociedade reservou a eles. Eles não estão preparados para serem pais, maridos e esposas, ou até mesmo empregados. Estes personagens e o mundo que eles representam estão prestes a entrar em colapso, como um de seus personagens em seu segundo livro – Do Que Estamos Falando Quando Estamos Falando De Amor – percebe: “Ele compreendeu que bastava um lunático com uma tocha pra levar tudo à ruína6”. (CARVER, 1981, p.76) Outro personagem em seu primeiro livro – Você Poderia Ficar Quieta, He understood that it took only one lunatic with a torch to bring everything to ruin.

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Por Favor? – tamém comenta que “[...] sim, havia um grande mal levando o mundo, ele pensou, e ele apenas precisava de um pequeno empurrão, de uma brecha.7” (CARVER, 1976, p.241) Quando perguntaram a Carver se seus personagens estavam tentando fazer a diferença, ele respondeu: Eu acho que eles estão tentando. Mas tentar e ser bem-sucedido são coisas completamente diferentes. Em algumas vidas, as pessoas sempre são bem-sucedidas [...] em outras vidas, as pessoas não conceguem fazer o que tentam fazer [...] Estas vidas são, evidentemente, válidas para se escrever sobre, a vida das pessoas que não têm sucesso. A maioria das minhas experiências próprias tem a ver com essa condição [...] É com a própria vida que eles ficaram desconfortáveis, vidas que eles vêm se despedaçando. Eles gostariam de consertar as coisas, mas eles não conseguem. E, normalmente, eles sabem disso, eu acho, e sabendo disso, eles fazem o melhor que eles podem.8 (1983, p.201)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Raymond Carver “deu voz”, pelo silêncio a este loser. Este personagem fascinante que nasce da cultura norte americana e da necessidade de sucesso, e que permeia toda a história e cultura moderna americana. Nos contos do escritor, os personagens representam a classe trabalhadora, e se deparam com um futuro sem perspectivas de ascensão social. Eles são maridos e esposas em contante dificuldade financeira: estão constantemente mudando de empregos, ou desempregados, ou até mesmo, trabalhando em dois empregos para pagar as contas. Carver dá voz ao homem comum, o zelador, a garçonete, o padeiro, o recepcionista de hotel. Como a maioria dos americanos, os personagens de Carver vivem vidas de desespero silencioso, de alienação e insatisfação. Inconscientes do que eles realmente sentem, a maioria vive sob a submição ideológica de uma cultura dominante. Os personagens do universo de Carver não possuem ambição, eles estão fora da corrida. Eles estão tão assoberbados com os seus problemas que não há espaço para a ambição. Os personagens são sobreviventes tentando manter uma certa ordem em suas vidas turbulentas. O desafio para eles não é a ascensão social ou financeira, mas sim, a sobrevivência social e financeira. As dificuldades em viver em um lar despedaçado, onde a desintregação familiar, o alcoolismo, a infidelidade e a falência estão sempre batendo na porta. Estes são os elementos que fermentam as histórias. A falta de ambição dos personagens pode ser analisada na maioria de seus contos. No conto Coreto, podemos entender o quanto os sonhos dos persongens são pequenos e se distanciam dos ideais americanos de aquisição e sucesso. No conto, um casal é responsável por cuidar de um pequeno hotel. O emprego parece perfeito, e inicialmente eles vêm a si mesmos como pessoas privilegiadas. “Logo que a gente se mudou para cá e começou a trabalhar na gerência do hotel, achávamos que estávamos a salvo. Moradia e utensílios de graça, mais trezentos por mês. Não dá pra recusar”. (CARVER, 2010, p.284) Os descentrados de Carver não são apenas marginalizados socialmente e financeiramente. Geograficamente, eles também estão fora do centro. A maior parte das histórias de Carver se passa em pequenas cidades do Alaska, ou em Yakima e Port Angels, cidades pequenas no estado de Washington, ou, até mesmo em El Paso, Califórnia. A viúva de Carver, Tess Gallagher comenta que os personagens E os lugares são muito parecidos, e como eles se complementam. “A propensão de Ray em colocar uns truques em sua escrita, favorecendo a simplicidade a ornamentação, preferindo a

Yes, there was a great evil pushing at the world, he thought, and it only needed a slipway, a little opening. I think they are trying. But trying and succeeding are two different matters. In some lives, people always succeed […] In other lives, people don‘t succeed at what they are trying to do […] These lives are, of course, valid to write about, the lives of the people who don‘t succeed. Most of my own experience has to do with the latter situation […] It‘s their lives they‘ve become uncomfortable with, lives they see breaking down. They‘d like to set things right, but they can‘t. And usually they do know it, I think, and after that they just do the best they can

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economia como elemento para o verossímil – estes parecem ser elementos presentes na paisagem de Yakima9”. (ADELMAN, 1990, p.9) Esta posição/sujeito loser, nascida na cultura capitalista norte americana, esta esculpida nos personagens criados por Carver. As relações humanas nas histórias do escritor estão repletas de ansiedade e fúria. Não é por acaso que muitas de suas histórias terminam com algum tipo de violência. Os losers de Raymond Carver são sobreviventes e eles resistem em um mundo que os coibe e os marginaliza.

REFERÊNCIAS CARDOSO, Ciro; VAINFAS, Ronaldo; Flamarion (orgs.) Domínios da História: ensaios da teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. CARVER, Raymond. Will you please be quiet, please? New York: Vintage Books, 1976. __________. What we talk about when we talk about love. New York: Vintage Books, 1981. __________. Fires. New York: Vintage Books, 1983. __________. 68 contos de Raymond Carver. São Paulo; Companhia das Letras, 2010. HUTCHEON, Linda. The politics of postmodernism. London: Routledge, 1989. ROSEN, Bernard Carl. Winners and losers of the Information Revolution. Westport, Connecticut: Praeger, 1998. SANDAGE, Scott A. Born losers: a history of failure in America. Boston: Harvard University Press, 2005. WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: Edusp, 1995.

Ray‘s proclivity for scorning tricks in his writing, for favoring simplicity over ornamentation, for choosing economy as the most telling sign of veracity – these seem present in elements of the Yakima landscape.

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CENAS BRASILEIRAS EM O BRASIL É BOM, DE ANDRÉ SANT’ANNA: DA IRONIA AO DEBOCHE Claudia Maira Silva de Oliveira* (URI) Profa. Dra. Ana Paula Teixeira Porto** (URI)

INTRODUÇÃO Podemos compreender que a literatura contemporânea traz consigo marcas de uma sociedade que enfrenta sérios problemas políticos, econômicos e administrativos, representando-os a partir de diferentes perspectivas narrativas, que podem oscilar da simples reprodução ao questionamento crítico, irônico e feroz. Ao construir esse diálogo, compartilhamos a ideia de que a literatura tem sido um meio de veiculação de crítica sobre a sociedade brasileira. Na coletânea de contos O Brasil é bom, publicado pela editora Schwarcz em 2014 pelo escritor André Sant’anna, observamos, através de um discurso direto irônico e debochado dos narradores e dos personagens, uma severa crítica à sociedade brasileira atual. Sant’anna constrói essa representação a partir de uma linguagem que se aproxima do coloquialismo com ênfase em jogos que o escritor faz com as palavras, carregando-as de sentidos diversos. O tom crítico e irônico utilizado por André Sant’anna, nos contos de O Brasil é bom permite que o leitor reflita sobre as situações presentes na sociedade brasileira. Alem disso, assinala inquietudes que não são apenas do narrador, mas da população brasileira de forma geral. Por isso podemos pensar na função desses contos como reflexão acerca da sociedade em que os sujeitos estão inseridos. Segundo Antônio Candido (2006), na obra Literatura e sociedade, a literatura é uma forma de representação da sociedade, pois é por meio dela que se demonstram inquietudes e necessidades de grupos sociais, além de colocar em evidencia as mais diversas realidades de determinados grupos sociais, é nesse sentido que se compreende a crítica que Sant’anna estabelece na coletânea. André San’anna é um expoente contista no que diz respeito à literatura contemporânea do século XXI, nasceu em Minas Gerais, porém já morou em São Paulo e Rio de Janeiro e atualmente vive em Brasília, onde divide seu tempo como roteirista e escritor. Sant’Anna escreve romances e contos, sua primeira obra foi publicada em 1998, a qual teve como título Amor, em seguida editou mais seis livros que se dividem entre contos e romances. Como traço recorrente em suas narrativas, salientamos o cunho denunciador e crítico por meio da ironia. O escritor é uma das vozes significativas da recente produção literária, sendo assim julgamos de suma importância pesquisar suas narrativas curtas e inovadoras. Os contos e romance do escritor, apesar da versatilidade estética e dos diálogos que empreendem com a história recente do país, ainda são pouco referenciados nos estudos acadêmicos e até mesmo explorados na formação docente de alunos dos cursos de Letras. O objetivo central deste trabalho é analisar, a partir do contexto literário e social dos contos “O Brasil não é ruim” e “O futuro vai ser bom”, de que forma se elabora uma crítica social. Partindo desse pressuposto, propomos: a)identificar de que forma o discurso irônico e debochado contribui para a crítica que o escritor estabelece para com a sociedade brasileira contemporânea; b) estabelecer correlações entre as temáticas abordadas pelo escritor com a vida cotidiana dos cidadãos *

Mestranda em Letras – URI. [email protected]. Doutora em Letras. [email protected]

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brasileiros, discorrendo sobre de que forma isso acontece; c)avaliar quais recursos literários André Sant’anna utiliza para propor uma reflexão sobre a problemática social do Brasil; d)verificar como os enredos apresentam relação entre a realidade existente em nosso país e como o escritor articula esteticamente. Um dos traços recorrentes nos dois contos é a brevidade, pois são textos de duas a três páginas, e a fragmentação discursiva no sentido de vários assuntos serem arrolados de forma contínua, direta. Conforme Arruda (2012), a fragmentação presente nos textos mais atuais, nos quais podemos incluir os de André Sant’anna, é característica intrínseca da literatura contemporânea. Para a autora esse elemento é utilizado de forma consciente e proposital pelo escritor. Além disso, tais estratégias parecem pontuar a desconexão e ilogicidade social, pois, segundo Arruda, A vida em fragmentos é inspiração para a arte pós-moderna. Essa descontinuidade é feita pela hibridização de gêneros, pela mistura de texto literário com não literário, pela ruptura inesperada da obra, pela mistura de materiais e recursos. Tudoisso é feito de maneira consciente pelo artista num intuito de apresentar o homem contemporâneo como ele é em seu cotidiano fragmentado e desconexo. (ARRUDA, p. 220, 2012).

Na narrativa “O Brasil não é ruim” podemos observar a presença de um narrador onisciente em terceira pessoa, seu discurso é baseado em frases negativas e repetições propositais, que desejam chamar a atenção para o tema da problemática no Brasil, o que torna o texto uma expressão do realismo na literatura. Segundo Schøllhammer (2012), a literatura contemporânea brasileira explora o realismo a partir de uma nova linguagem literária com objetivo de representar os problemas sociais que assolaram a história recente do Brasil, além disso, os textos contemporâneos almejam explicitar temas subjacentes de exclusão, desigualdade, miséria, crime e violência. Ainda é importante destacar que linguagem utilizada por André Sant’anna é simples e objetiva, através de um discurso direto; a estrutura do conto é linear, carregada de descrições. Podemos visualizar essas características no seguinte fragmento da narrativa: “Sim, não há uma quantidade enorme de crianças brasileiras pobres no inverno dormindo nas ruas, já que criança pobre dormindo na rua, fumando crack é coisa de país pobre [...]( SANT’ANNA, 2014, p. 12), nesta passagem do conto “O Brasil não é ruim”, percebemos um exemplo de discurso direto, linear e carregado descrições, conforme a afirmação anterior. Ademais, aa narrativa é caracterizada pela repetição de frases e estruturas sintáticas, uso de frases negativas (que aparecem como uma ironia e deboche) e coloquialismo, o que induz-nos a pensar que a repetição pode aludir a uma ideia de movimento cíclico que permeia a sociedade brasileira que, há anos, não consegue atingir níveis sociais, culturais e econômicos promissores. Tais estratégias estéticas condizem à reflexão acerca das problemáticas enfrentadas pelos brasileiros especialmente quando consideramos o ano da publicação da obra. Segundo Porto (2015), “Em 2014 que o país começa a sentir efeitos da crise econômica, que avultam faltas de recurso, novos casos de corrupção, dados negativos relacionados a inflação, juros, desemprego,etc”. Para a autora estes problemas elencados causam grande impacto na sociedade brasileira, a crise passa a assolar o país, e gera muitas consequências. O conto do escritor sinaliza, através dos recursos estéticos apontados, essa leitura do país. Considerando os apontamentos realizados de forma sucinta, podemos retomar algumas questões-chave dessa discussão. A primeira se refere à tentativa de identificar de que forma o discurso irônico e debochado contribui para a crítica que o escritor estabelece para com a sociedade brasileira contemporânea. Com base na análise dos dois contos, percebemos que ambos representam a realidade brasileira, principalmente os problemas que o país enfrenta diariamente. Também propõem ao leitor uma reflexão acerca das questões referentes à corrupção e à péssima administração pública. Podemos observar que o conto “O Brasil não é ruim”, assim como “O futuro vai ser bom”, traz a ironia. Em o “Brasil não é ruim”, compreendemos que o autor através do “não” antes de cada

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oraçãotem como objetivo despertar um olhar crítico e reflexivo do leitor para as negações que faz de forma proposital para ratificar o contrário da frase negativa. O textos que contemplam a ironia pretendem despertar o olhar crítico do leitor sobre determinados assuntos a partir da inversão; no caso de André Sant’anna, neste conto, fala-se sobre a crítica sobre a administração e as problemáticas do Brasil com um conjunto de orações que, ao negar, reafirmam o contrário do que dizem. Essa perspectiva de ironia é evidenciada durante toda a narrativa de “O Brasil não é ruim”, especialmente no segundo parágrafo do conto. Nessa passagem observamos a referência que o escritor faz em relação à corrupção, aos desvios de verbas que deveriam ser investidos no bem comum da população brasileira, como a saúde e educação. O narrador também aponta que todas essas atividades ilícitas são mostradas nos meios de comunicação. Podemos compreender que Sant’anna deseja mostrar que as divulgações dos atos corruptos já não chamam a atenção como deveriam, ou seja, essas práticas já estão se tornando comuns e imperceptíveis, tratadas com naturalidade como podemos observar no excerto do conto que segue: Deputados, senadores, governantes, prefeitos, vereadores, empresários, sindicalistas, policiais, juízes brasileiros não são criminosos, já que foram filmados em flagrante recebendo dinheiro, colocando dinheiro na meia, na cueca, na mala preta. O dinheiro que eles não roubam na cara de todo mundo, que não foi mostrado na televisão para quem quisesse ver, não era dinheiro público que não servia para melhorar a saúde e a educação de verdade [...]. (SANT’AANA, 2014, p. 10)

Tendo em vista as descrições feitas pelo narrador, podemos concluir que há um desejo de criticar a organização política e administrativa do Brasil. É importante destacar que o texto de Sant’anna critica não apenas os governantes do país, ou seja, aqueles que ocupam cargos de maior representatividade, mas também todos que se envolvem em atos ilegais e corruptos. Nesse sentido de representação do social por meio da literatura, segundo Hilário (2013), podemos compreender o que o desejo do texto literário é problematizar características constitutivas de nosso tempo e contexto histórico. Os elementos estéticos e literários presentes nesse conto de André Sant’anna constroem uma acentuada critica social ao Brasil. Conforme destaca Porto (2015), em sua exposição oral intitulada “O conto de André Sant’anna: ironia e critica”, os 23 contos que compõem a coletânea de contos fazem uma alusão ao contexto brasileiro, com o proposito levar o leitor a compreender que as narrativas buscam representar histórias da realidade brasileira. Muitos elementos presentes em “O Brasil não é ruim“ são comuns em “O futuro vai ser bom”. Nesta narrativa podemos identificar fortes marcas da oralidade e da linguagem coloquial, como em: “O jogador de Cristo foi pro Real Madrid e o dinheiro foi parar nas mão dele, que era virgem antes, e não nas mão dessas criancinha da África [...] (SANTANA, 2004, p. 14). Nesse excerto, podemos ver que a narrativa explora o discurso através do coloquialismo como por exemplo em “nas mãos dele” e “foi pro Real Madrid” e a oralidade na repetição da palavra “mãos”, além da pontuação que aproxima de um discurso informal. Ainda há presença de um discurso direto que estabelece um dialogo como o leitor devido à fácil compreensão do texto. Através da análise das relações entre a crítica e a linguagem, podemos sentir a ironia na fala do narrador. Essa ironia é evidente na ação discursiva, tanto através de expedientes formais (estilo seco e entrecortado, frases curtas), por meio dos recursos de conteúdo, nessa perspectiva da linguagem e recursos de escrita. Tardivo (2014) explica que essas características fazem parte da literatura contenporânea conforme excerto a seguir: E assim caminham os contos subsequentes, ora mais narrativos, ora próximos da crônica, mas sempre curtos, implacáveis, corajosos quanto às feridas do país (não evitam temas polêmicos ou delicados) e muito bem escritos. A linguagem mescla oralidade e acabamento e faz de André Sant’anna, como sabemos, um dos principais autores da literatura brasileira contemporânea. (TARDIVO, 2014, s/d)

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Através da linguagem e do enredo do conto, notamos que André Sant’anna se baseia na realidade brasileira para criar suas narrativas. Observamos que o conto utiliza-se de jogos com as palavras, como a repetição da palavra “bom”, além da repeti-la várias vezes, notamos o desejo o uso da ironia para representar o oposto da palavra, no caso ruim comotraço recoorente em vários aspectos da sociedade brasileira. O conto chama a atenção do leitor para as questões sobre a educação, critica que os livros que são oferecidos nas escolas fazem apologia à sexualidade, devido ao fato de trazerem figuras de índios pelados, conforme citamos no exerto que segue: “esses livro que dão pras criança nas escolas com imagens inadequadas de índio pelado, esses cara que fuma cigarro e desrespeita os direito do próximo que não quer sentir o cheiro de cigarro’’(SANTANA, 2004, p. 16). São exemplos do uso da ironia e dpo deboche para ridicularizar práticas corriqueiras da sociedade brasileira. A partir desses apontamentos acerca dos contos, podemos concluir que as narrativas propõem uma reflexão acerca da problemática atual da sociedade brasileira, através de um discurso direto, irônico e sem rodeios. A linguagem e os jogos de palavras, que são utilizados no decorrer dos contos ‘‘O Brasil não é ruim ” e o ‘‘Futuro vai ser bom“, fazem com que os leitores reflitam sobre as questões de corrupção, violência e má administração dos orgãos públicos, que desviam grandes quantidades de verbas, principalmente as que deveriam ser investidos em saúde e educação. Ao explorar essas temáticas, a crítica social se constroi por meio da ironia, dessa forma podemos constatar que os contos têm como objetivo despertar criticamente o leitor para assuntos sérios, por meio de um discurso baseado no deboche. Com exploração dessa vertente irônica da literatura, destacamos que as narrativas estão em consonância com as tendências contemporâneas. Conforme destaca Aragão (2013), a ironia é um elemento constitutivo da literatura contemporânea, podendo ser identificada e compreendida por qualquer leitor independente de seu grupo e contexto social. Com base nas negações, que Sant’anna faz em cada frase do primeiro conto analisado “O Brasil não é ruim‘‘, podemos afirmar que o escritor se utiliza das negações para chamar a atenção justamente para o contrário. No conto ‘‘O futuro vai ser bom’’, também percebemos o cunho irônico e debochado. O texto de André Sant‘anna critica de forma enfatica a ideologia que o governo tenta introduzir na população brasileira: a de que os problemas serão resolvidos e a de que o Brasil é bom e será cada vez será melhor.

REFERÊNCIAS ARAGÃO, Hudson Oliveira Fontes. Ironia e literatura: interseções. Anais do SILEL. Volume 3, Número 1. Uberlândia: EDUFU, 2013. Disponível: Acesso em: 30 set 2015. ARRUDA. Angela Maria Pelizer. Cultura e Literatura Contemporâneas: algumas abordagens do pós-moderno. Estação Liteária, Londrina, Jun. 2012. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL9Art16. pdfAcesso em: 21 set. 2015. CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. HILÁRIO. Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Disponível em: dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4626845.pdf. Acesso em: 25 set 2015. PORTO. Ana Paula Teixeira. Conto de André Sant’anna: ironia e crítica. Frederico Westphalen, 2015. (Curso ministrado no Mestrado em Letras da URI. Material não publicado) SANT’ANNA, André. O Brasil não é bom. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

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SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estud. Lit. Bras. Contemp, Brasília, n.39  jan./jun. 2012. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S2316-40182012000100008. Acesso em: 26 set. 2015. TARDIVO, Renato. Literatura política. 14 jun. 2014. Disponivel em: http://www.revistaamalgama.com.br/por/ renato-tardivo. Acesso em: 27 set 2015.

PATRIMÔNIO CULTURAL E ALTER EGO NAS NARRATIVAS VISUAIS DA IMIGRAÇÃO: LUGARES, OBJETOS E SEUS CRUZAMENTOS NOS MUSEUS DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ Daniel Luciano Gevehr* (FACCAT) Aline Nandi** (FACCAT) Gabriela Dilly*** (FACCAT)

A pesquisa problematiza os museus de história (POULOT, 2013), da imigração alemã no Vale do Paranhana e Sinos (RS) a partir da análise das narrativas produzidas e difundidas (CHARTIER, 2002), nesses espaços públicos de visitação. Atentamos para o processo que envolve a produção das narrativas visuais (BURKE, 2004) – compreendidas como parte de um alter ego (HARTOG, 2014) – presentes nesses espaços museológicos, que procuram contar a história da imigração alemã na região a partir de recortes e seleções presentes em seus acervos. Privilegiamos a leitura crítica desses espaços, buscando compreender os diferentes mecanismos utilizados na criação das diferentes ambiências (MENESES, 2013), bem como a criação de imagens e representações que procuram retratar uma determinada história sobre os imigrantes alemães. Nesse sentido, a análise crítica que propomos baseia-se na discussão sobre os elementos simbólicos presentes nesses lugares de memória (NORA, 1993) da imigração, relacionando-os com os conceitos de imagem, representação (JODELET, 2001), patrimônio cultural (CHOAY, 2006) e identidade étnica (SEYFERTH, 2011). A relação existente entre esses elementos é o que norteia a pesquisa sobre esses museus da imigração alemã. Vale ressaltar que a pesquisa aqui apresentada tem como recorte espacial os museus localizados em Sapiranga, Nova Hartz e Picada Café, municípios cuja origem remete à imigração e a colonização germânica na região do Vale dos Sinos. A seleção desses três espaços se justifica, uma vez que ambos representam parte do acervo museológico que busca representar a presença da imigração alemã na região e que dessa forma, guardam elementos simbólicos que pretensamente carregam e perpetuam uma determinada memória (CANDAU, 2012) do grupo étnico. A preocupação com a exaltação e afirmação dos elementos culturais (THOMPSON, 2013), associados à identidade étnica germânica é discutida na pesquisa, na medida em que esses traços identitários se tornam sobressalentes nas representações construídas e difundidas nos museus, seja através da (re)criação de cenários ou até mesmo através de coleções de diferentes tipos presentes nas exposições permanentes nos museus selecionados. A pesquisa pretende ainda discutir em que medida esses museus da imigração alemã contribuem para a (re)produção da memória da imigração na região, uma vez que esses museus são compreendidos como lugares de perpetuação e ressignificação da memória e, também, de afirmação de identidades das comunidades locais (municipais) diretamente ligadas à esses espaços museológicos.

Doutor em história e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR) das Faculdades Integradas de Taquara, Taquara/RS - Brasil. E-mail: [email protected] ** Licenciada em História pela UNISUL e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR) das Faculdades Integradas de Taquara, Taquara/RS - Brasil. E-mail: [email protected] *** Licenciada em História pela UNISINOS e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR) das Faculdades Integradas de Taquara, Taquara/RS - Brasil. E-mail: [email protected] *

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1. TEXTO E CONTEXTO DA PESQUISA Partimos nossa investigação sobre os museus de imigração alemã da noção de que as produções simbólicas – que em nosso caso estão presentes nos espaços museológicos – devem suas propriedades mais específicas às condições sociais em que são produzidas (BOURDIEU, 2001). Nesse caso específico, os museus são compreendidos na pesquisa como manifestações simbólicas, que falam de forma direta sobre o lugar e sobre os grupos sociais responsáveis pela sua produção, num processo de lutas simbólicas (CHARTIER, 2002), no qual a imposição de determinadas representações sobre o passado (BOURDIEU, 2001) sofrem – necessariamente – a seleção daquilo que deve ser preservado e representado nos espaços sociais, e que passam a representar parte do passado. Buscando realizar uma leitura crítica sobre os museus de imigração, atentamos ainda para Chartier (2002), que se refere às inúmeras possibilidades de leitura de um símbolo, afirmando que este nunca é “lido” de uma única maneira. Segundo Chartier, existem diferentes formas de interpretação de um símbolo, sendo que sua leitura está diretamente vinculada ao contexto no qual o observador está inserido, bem como ao olhar que este lança sobre o objeto em questão. Compreendemos ainda os museus de imigração como lugares de memória, na acepção de Pierre Nora (1993, p.21) – logo os lugares de memória – como são os museus de imigração alemã – além de serem socialmente construídos, se consistem em mecanismos de perpetuação da memória (HALBWACHS, 2004). Já para Michel Pollack (1989), os lugares de memória somente se constituem em espaço de preservação de uma memória se assim a comunidade os reconhece. Soma-se a isso a constatação de que, no caso dos museus de imigração, a criação desses lugares se associa diretamente ao período em que essas comunidades passam por transformações, como a chegada de migrantes de outras regiões do Rio Grande do Sul e o fenômeno da industrailização, impulsionado na região a partir da década de 1970. Dessa forma, esses museus constituíram-se enquanto espaços de salvaguarda de uma memória imigrante que não se queria “perder no tempo.” Nessa relação de forças, o imaginário (BACZKO, s/d) tem como um de seus pontos de referência – e de lembrança – os lugares de memória, na expressão de Pierre Nora, para quem “a memória pendura-se em lugares assim como a história em acontecimentos” (1993, p.25). Afinal, esses museus funcionam como lugares de preservação e atualização de uma lembrança sobre a imigração no sul do Brasil (Le GOFF, 2003, p.419), contribuindo para a manutenção e atualização dessa memória. Atentamos ainda para a relação existente entre esses conceitos – que fundamentam nossa compreensão sobre os museus de imigração – e as discussões sobre identidade, comprrendida nesse estudo como “uma construção social, de certa maneira sempre acontecendo no quadro de uma relação dialógica com o Outro” (CANDAU, 2012, p.09). Para o antropólogo a memória – elemento indispensável da construção da identidade de uma comunidade – é “uma construção continuamente atualizada do passado, mais do que uma construção fiel do mesmo” (Ibidem, p.09). Assim, a criação e organização de um museu de história, são entendidas como um fenômeno social, no qual o passado da comunidade é redefinido, de acordo com os interesses do presente, que nesse caso, nos parece estar diretamente associado à preocupação com a preservação dos traços identitários, que nesse caso, nos remetem a pensar nas questões da etnicidade – elemento que aparece como traço identitário fundamental nos museus dessas comunidades. Percebemos que o patrimônio – e em nosso caso mais particular, o museu – funciona como um “aparelho ideológico da memória” (CANDAU, 2012, p.158). Isso se explica em virtude do patrimônio da comunidade ser compreendido como um verdadeiro transmissor da memória do grupo, agregando valores, ideologias e formas de pensar, além é claro, de representar o passado dessa comunidade, que agora se encontra patrimonializado através das exposições produzidas nos museus. Sobre essa questão que envolve o patrimônio e sua produção,

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Candau afirma ainda que “a história do patrimônio é a história da construção do sentido de identidade e, mais particularmente, aquela dos imaginários de autenticidade que inspiram as políticas patrimoniais” (Ibidem: 159). A lembrança dos tempos da Colônia e dos primeiros imigrantes alemães parece servir, nesse contexto, de suporte da memória, para se mostrar o quanto se prosperou e o quanto as comunidades de origem germânica prosperaram. Buscando melhor fundamentar nossa análise, buscamos discutir os sistemas classificatórios que envolvem a produção dessas identidades, que em nosso caso apontam para necessidade de reafirmação da germanidade – compreendida como uma categoria que remete a identidade étnica compartilhada pela comunidade, que os remete a “lembrar e perpetuar” o passado imigrante. Sobre essa questão Giralda Seyferth (2011) se refere ao Deutschtum, que para ela expressa a germanidade, que seria uma espécie de laço identitário, que une os imigrantes e seus descendentes através da etnicidade. Nessa perspectiva, devemos conceituar, ainda que de forma breve, o Patrimônio Cultural como um conjunto de bens de natureza material e imaterial que, por sua vez, são considerados coletivos e preservados durante o tempo (MAIA, 2003). Há de se considerar também que o Patrimônio cultural comporta, ainda, os diferentes costumes de viver de um povo, transmitidos de geração a geração e recebidos por tradição. Esses, para se tornarem um Patrimônio, precisam ser reconhecidos e compartilhados pela comunidade que os produzem – fenômeno que se torna evidente no processo de criação e eleição daquilo que irá constituir os museus da imigração alemã na região do Vale dos Sinos. O museu – compreendido como expressão do patrimônio – engloba, ainda, saberes, lugares e modos de fazer, que comunicam algo sobre a identidade de quem as produz, e que por sua, vez, são transmitidos através das gerações. Decorre daí que os hábitos e as tradições de uma comunidade nos dizem e revelam parte da sua cultura. Ainda, para Veloso (2006), o conceito de referência cultural ressalta o processo de produção e reprodução de um determinado grupo social e aponta para a existência de um universo simbólico compartilhado. Devemos considerar ainda que, de acordo com Meneses (2004, p. 75) o museu é um lugar que toma como base três valores indissociáveis: O valor identitário, que considera o patrimônio como gerador constante de construção de imagens, significados e identidades; o valor econômico, que toma o patrimônio como gerador de oportunidades econômicas; e o valor social, que defende que os projetos interpretativos devem gerar a melhoria da qualidade de vida da comunidade que administra esse patrimônio. Dessa forma, a preocupação com a manutenção dos elementos étnicos, ligados à herança germânica na região, aparece como um elemento identitário que dá sentido e perpetua, através das gerações, o sentimento de pertencimento ao grupo étnico que deu origem às comunidades.

2. OS MUSEUS DE NOVA HARTZ, PICADA CAFÉ E SAPIRANGA Selecionamos para análise três museus que fazem parte de nossa investigação. Decidimos por tal recorte, uma vez que se tornaria impossível percorrer, considerando as especificidades de cada espaço, todos os museus elencados na proposta de nossa pesquisa, que amplia essa discussão para outros lugares de memória na região. Partimos da definição proposta por Gonçalves (2009), para quem o museu-narrativa se constitui em um espaço de exposição, inserido em um espaço urbano, mas no qual a relação com o público ainda guarda marcas bastante pessoais. Esse é precisamente o caso dos museus de imigração que estamos analisando e nos quais observamos, de forma bastante evidente, uma relação muito próxima entre esses lugares de memória e a comunidade que o produz e o mantém vivo. Nessa relação interpessoal, “por meio da qual se dá o fluxo de trocas entre doadores e diretores de museus” (GONÇALVES, 2009: 178) é que ocorre

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a definição daquilo que será exposto e que, constituirá parte do material de expografia presente no museu. É nesse contexto que iremos acompanhar o processo que o autor denomina como “invenção do patrimônio” (Ibidem, p.179). De acordo com ele essa “invenção” – que consiste na seleção e organização – das exposições do museu, “vem acompanhada de valores, como autonomia e liberdade, assumidos por sujeitos individuais ou coletivos” (Ibidem, p.179). A partir disso é que analisamos os três museus mencionados, que conforme veremos, apresentam características muito semelhantes quanto aos seus objetivos e forma de organização e seleção de sua expografia. O primeiro é o Museu Municipal de Nova Hartz, criado pela Prefeitura Municipal em 1999, e que está localizado na área central do município e ocupa uma antiga residência, localizada na atual praça central da área urbana. Organizado a partir de diferentes ambientes, que respeitam a divisão original da casa, o museu apresenta um rico acervo, constituído de móveis, objetos e fotografias, que procuram evidenciar a presença dos imigrantes alemães na localidade. Dessa forma, o museu se apresente como um espaço de memória da imigração e tem como tema principal do seu acervo a imigração e a colonização alemã em Nova Hartz. Na parte central do museu encontramos diversos objetos que evidenciam o estilo de vida dos primeiros moradores, através dos móveis e utensílios domésticos que eram utilizados desde o século XIX até meados do século XX, quando o desenvolvimento da indústria calçadista no município transformou radicalmente o estilo de vida de seus moradores. Com isso, podemos observar – como no exemplo na imagem abaixo – a mistura de elementos de diferentes épocas na expografia do museu, que contam a trajetória de transformação da comunidade, através dos objetos. Notamos na constituição desse ambiente a preocupação em mostrar o ambiente da casa, que é constituído basicamente da cozinha – lugar de preparação dos alimentos, mas também o principal espaço social da casa – no qual as pessoas se reuniam para realizar as mais diferentes atividades e celebrar seus usos e costumes cotidianos, que não se revela apenas através dos móveis e objetos, mas também da produção de bordados, feitos à mão e que contém dizeres, que revelam valores familiares compartilhados. IMAGEM 1 – ACERVO DO AUTOR

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A associação de diversos elementos culturais aparece na imagem acima, na qual utensílios domésticos aparecem em associação com uma cuia de chimarrão – um elemento típico da cultura gaúcha que foi assimilado pelos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul – e outros objetos do uso cotidiano da comunidade nos tempos que antecederam a chegada da energia elétrica e a modernização imposta pelo espaço urbano que se organizava a partir da década de 1950 em Nova Hartz. Nesse mesmo contexto, o pano de parede bordado à mão, aparece como um artefato que demonstra o trabalho doméstico desempenhado pelas mulheres, que além das atividades cotidianas, encontravam tempo para bordar e cuidar da ornamentação da casa. Aliás, o cuidado com a limpeza e a organização da casa é um dos aspectos bastante evidenciado através do museu, que procura imprimir a ideia de organização e cuidado com a casa como atividades diretamente ligadas ao gênero feminino. Outro elemento de destaque no museu é a exposição de fotografias e documentos ligados às atividades educacionais, festivas e religiosas da comunidade. Na imagem apresentada acima, observamos parte da história da comunidade, que se revela aos visitantes através de poses em atos cívicos, em atividades nas escolas e até mesmo na exposição do certificado de Ensino Confirmatório de um membro da Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB). Este aspecto, de caráter religioso, associado ao luteranismo – que naturalmente coexistia com o catolicismo romano – é um elemento de forte vinculação à etnicidade que constitui a comunidade, visto que a prática religiosa ligada à igreja luterana alemã é um traço identitário que distingue essa comunidade, nas quais a germanidade não se fazia presente. Vale ressaltar que o museu, a partir de sua organização, procura demonstrar a preocupação dos imigrantes alemães e seus descendentes quanto à preservação dos valores identitários, que têm a família, o trabalho e a religiosidade como fundamentos que orientam as condutas e as ações coletivas da comunidade. IMAGEM 2 – ACERVO DO AUTOR

Como podemos observar na imagem abaixo, o trabalho, representado através dos instrumentos, cuidadosamente organizados na exposição, busca valorizar as atividades desempenhadas na comunidade e que dessa forma dão destaque para a evolução do trabalho ao longo do tempo. Exemplo disso são as ferramentas utilizadas nas atividades agropastoris, que associam o passado desses

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imigrantes ao espaço rural. No mesmo ambiente, são apresentadas as novas tecnologias que surgiram ao longo do século XX, como as máquinas de calçado, as balanças e o primeiro computador que chegou ao município, na década de 1980. IMAGEM 3 – ACERVO DO AUTOR

A mistura de objetos que representam as atividades econômicas desenvolvidas, em diferentes épocas e contextos, pode ser compreendida como uma tentativa de mostrar aos visitantes o progresso alcançado pelos seus moradores. As diferenças evidenciadas entre a chegada dos primeiros imigrantes e o tempo mais recente se apresentam como um forte elemento de valorização da coletividade, que através do trabalho e da preservação da cultura trazida pelos imigrantes alcançaram o desenvolvimento do município. Já no caso de Picada Café, temos o Parque Histórico Municipal Jorge Kuhn, situado à margem da BR116. Nele encontramos um conjunto arquitetônico constituído por um antigo moinho, o açougue e a venda e residência da Família Kuhn. No complexo do parque – constituído de três edificações e que conjuntamente são compreendidas como um único lugar de memória da comunidade – se torna evidente a tentativa de se criar um lugar de memória que guarda – materialmente – uma memória da imigração alemã no município. IMAGEM 4 – ACERVO DO AUTOR

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O prédio principal, que deu origem ao complexo que hoje constitui o Parque, foi construído na década de 1880, por Christian Kuhn, imigrante alemão que comprou as terras que atualmente compõe o parque. Inicialmente, o prédio em estilo enxaimel, abrigava uma pequena casa de oração da comunidade evangélico-luterana (IECLB) e logo em seguida passou por ampliação e abrigou uma casa comercial e de moradia – visto que a propriedade localizava-se às margens da antiga estrada de pedra, que margeia a atual BR116 e que era caminho de passagem dos antigos tropeiros que circulavam pela região, que ali paravam para se alimentar – daí a origem da denominação Picada Café. No prédio, que atualmente abriga o museu do parque, podemos visitar a venda colonial e a casa do imigrante, que deu origem ao lugar. Um detalhe que chama a atenção é o fato de que o casal Kuhn, responsável pela construção, está enterrado de baixo da casa, onde encontramos inclusive a lápide com seus nomes e data de nascimento e falecimento. Ao lado do museu, temos acesso ao antigo moinho, também de propriedade da Família Huhn. O moinho foi construído pelo imigrante alemão Christian Huhn em 1928 e produzia farinha de milho e centeio, além de óleo de amendoim e descasque de arroz. O moinho conta com uma roda d´água de 5 metros de diâmetro que é movimentada a partir da canalização da água proveniente do Arroio das Pedras, que fica cerca de um quilômetro acima do moinho. IMAGEM 5 – ACERVO DO AUTOR

Em 2007 a propriedade foi adquirida pela prefeitura municipal e com a ajuda de recursos vindos da Alemanha foi recuperado e musealizado. Desde então o lugar foi aberto para a visitação do público. Na parte superior do parque e protegido por um muro de pedra construído manualmente no final do século XIX, encontramos o antigo Açougue Progresso, que atualmente é conhecido como museu do açougue, cujas atividades iniciaram em uma edificação de madeira na década de 1890. A atual edificação, cuja imagem é apresentada abaixo, foi construída em 1941, pelo filho do imigrante, Jorge Kuhn. O açougue encerrou suas atividades em 1970 e atualmente encontramos nesse espaço a preservação do mobiliário e das ferramentas de trabalho que eram utilizadas cotidianamente.

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IMAGEM 6 – ACERVO DO AUTOR

O parque abriga atualmente a casa comercial, o moinho e o açougue, além de espaços de lazer e um palco coberto de apresentações e desempenha papel importante como lugar de memória da comunidade, uma vez que seu processo de criação envolveu um significativo trabalho de educação patrimonial, promovido pela municipalidade em parceria com a comunidade. O terceiro lugar de memória que investigamos é o Museu Municipal Adolfo Evaldo Lindenmeyer – que presta homenagem ao ex-vereador da cidade e também descendente de alemães – que está localizado na área central de Sapiranga, no prédio da antiga estação férrea, conhecida como “Estação Sapyranga”, desativada em 1964. O museu foi criado pela Prefeitura Municipal em 1996 e tem como tema principal de seu acervo a imigração e a colonização alemã no município. Os ambientes do museu são constituídos por diferentes temáticas, que se dividem entre a casa do imigrante, a venda colonial e a evolução da economia no município. Além disso, o museu conta com uma pequena exposição de obras que retratam o episódio dos Mucker – único movimento messiânico ocorrido no Brasil em ambiente protestante e que foi liderado por uma mulher, Jacobina Mentz Maurer. IMAGEM 7 ACERVO DO AUTOR

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Assim, logo na entrada do museu, nos deparamos com a venda colonial que existiu na localidade, desde o século XIX e funcionava em uma edificação em estilo enxaimel. A venda, cuja imagem podemos observar acima, conta com diferentes objetos, que procuram contar parte da história da comunidade, em especial a economia de trocas de produtos, amplamente conhecida em toda região colonial alemã do Rio Grande do Sul. Já a casa do imigrante, como podemos observar na imagem abaixo, é representada pela cozinha e pelo quarto do casal, que mostram parte do mobiliário e dos objetos de uso cotidiano desses imigrantes – retratando a evolução dos objetos ao longo do tempo – constituindo um conjunto de artefatos de diferentes épocas e contextos da história de Sapiranga. IMAGEM 8 – ACERVO DO AUTOR

A mesa da cozinha e o banco onde todos se sentavam para fazer as refeições coletivamente, os utensílios domésticos, os panos de parede com dizeres em alemão – e de grande apelo religioso – e o mobiliário que constituía o quarto do casal são exemplos do patrimônio cultural da comunidade. Esses, por sua vez, remetem os visitantes, a lembrarem do tempo dos imigrantes alemães e de suas dificuldades frente ao novo ambiente da América. IMAGEM 9 – ACERVO DO AUTOR

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Além disso, objetos como formas para confecção de bolachas, doces em compotas, moedor de café e outros vários utensílios do cotidiano são colocados em relevo na exposição da casa, que demonstra também a preocupação com a organização das tarefas e a limpeza com o espaço da casa, que cabia principalmente à mulher. Nesse sentido, se percebe a vinculação do espaço doméstico da casa a presença da mulher, que além de cuidar da família, de ajudar seu marido nas atividades do campo, cuidava muito bem da casa – como uma forma de representação dos usos e costumes dessa germanidade. Assim como dos demais casos analisados, em Sapiranga aparece mais uma vez a preocupação com a representação do trabalho, que é apresentado ao visitante através da exposição que mostra a evolução do trabalho, desde os tempos da Colônia até o apogeu do calçado – elemento de destaque na evolução econômica do município e que se constitui a principal atividade econômica desenvolvida atualmente. IMAGEM 10 – Fonte: http://www2.turismo.rs.gov.br/portal/index.php?q=galeria&cid=372&g=19 Acesso em: 16 set. 2015.

Como percebemos acima, na área externa do museu, encontramos uma réplica da estrada de ferro, inaugurada em 1903 e que ligava Sapiranga a Porto Alegre. A presença da estada de ferro é uma compreendida pela comunidade como uma forma de representar o desenvolvimento econômico da localidade no final do século XIX, logo após o desfecho do conflito do Mucker, que encerrou em 1868, com a vitória das forças imperiais sobre o grupo liderado por Jacobina nas imediações do morro Ferrabraz. Os trilhos do trem simbolizam, nesse contexto, o progresso alcançado pelos alemães e seus descendentes.

3. ALGUMAS APROXIMAÇÕES ENTRE OS ESPAÇOS Percorrer os caminhos que compõe a produção das narrativas visuais em museus da imigração alemã nos faz pensar sobre a complexidade que envolve a manipulação da memória e sobre os diferentes elementos que estão envolvidos nesse jogo de poder, que procura estabelecer uma representação sobre o passado. A análise desses três lugares de memória da imigração no Vale dos Sinos nos permitiu melhor compreender sobre os processos que operam nessa tentativa de registro do passado. Torna-se clara a intenção, por parte daqueles que produziram esses lugares de memória, de imprimir, através do tempo, uma memória, que faz lembrar a rusticidade desse passado imigrante em suas comunidades. A lembrança dos tempos difíceis – que marcaram os primórdios da imigração alemã – e a valorização de elementos simbólicos, materializados através dos objetos

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dos museus, ligados à família, ao trabalho, à religiosidade e a busca do ideal de prosperidade, se mostraram evidentes nas narrativas analisadas. Os museus, enquanto lugares que suportam essas lembranças e difundem essas imagens são, sem dúvida, um excelente espaço de discussão acerca dos interesses e motivações que levam essas comunidades a buscarem, incessantemente, (re) enquadramentos de suas memórias.

REFERÊNCIAS BACZKO, B. Imaginação social. In: Enciclopedia Einaudi (Anthropos-Homem). Portugal: Imprensa nacional/ Casa da Moeda, s/d. v.5. p. 309-310. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand. 2001. BURKE, P. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004. CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012. CHARTIER, R. À beira da falésia. A história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: UFRGS, 2002. CHOAY, F. A Alegoria do Patrimônio. 3 ed. São Paulo: Unesp, 2006. GONÇALVES, J. Os museus e a cidade. In: ABREU, R.; CHAGAS, M. (org). Memória e Patrimônio. Ensaios Contemporâneos. 2 ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 171-186. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. HARTOG, F. Regimes de historicidade. Presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. JODELET, D. Representações sociais: um domínio em expansão. In: JODELET, Denise (org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. LE GOFF, J. História e memória. 5. ed. Campinas: UNICAMP, 2003. MAIA, F. A. Direito à memória: o patrimônio histórico, artístico e cultural e o poder econômico. Movendo Ideias, Belém, v.8, n.13, jun. 2003, p.39-42. MENESES, U. T. B. de. A Exposição museológica e o conhecimento histórico. In: FIGUEIREDO, B. G.; VIDAL, D. G. Museus. Dos Gabinetes de Curiosidades à Museologia Moderna. 2 ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p.15-88. MENESES, J. N. C. História e Turismo Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. NORA, P. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto história. São Paulo, n. 10, dez. 1993. [Revista do Programa de Estudos Pós-graduados em História e do Departamento de História PUCSP]. POLLACK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. POULOT, D. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. SEYFERTH, G. A dimensão cultural da imigração. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 26, n. 77. p. 47-62, 2011. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre cultura popular e tradicional. São Paulo: Cia. Das Letras, 2013. VELOSO, M. O Fetiche do Patrimônio. Habitus. Goiânia, v.4, n.1, jan./jun. p.437-454, 2006.

HIROSHIMA E NAGASAKI: A PROBLEMÁTICA DA REPRESENTAÇÃO E A INFLUÊNCIA DA LITERATURA Daniela Israel* (FEEVALE) Daniel Conte** (FEEVALE)

1. INTRODUÇÃO Na manhã do dia 06 de agosto de 1945, um clarão rompeu o céu de Hiroshima. No momento da explosão da primeira bomba atômica, instantaneamente morreram entre 70 e 80 mil pessoas. Dois dias depois, uma segunda bomba atômica foi lançada sobre Nagasaki, e, em 14 de agosto, o Japão admitiu a derrota na Segunda Guerra Mundial. O jornalista Hershey, em seu livro Hiroshima, relata que quando o povo japonês tomou conhecimento da derrota evidente que ficaram decepcionado mas, “com o espírito tranquilo, obedeceram à ordem imperial de fazer um sacrifício pela paz duradoura do mundo” (2002, p. 71). A declaração da derrota, feita diretamente pela voz do Imperador Hirohito, instalou, na sociedade japonesa, a crença de que foi por ordem do Império que guerra acabou (RUTH, 1971, p. 113). O exposto acima oferece pistas de como o país assimilou sua derrota e se transformou, aos olhos internos e externos, de um agressor a uma vítima dos bombardeios atômicos. Um dos reflexões dessa construção social é observado na maneira como os japoneses se referem ao dia 14 de agosto – preferem usar a expressão shusenbi, quem em português significa “o fim da guerra”, no lugar de haisendi, que significaria o “dia da derrota”. (GONÇALVES, 2011, p. 58). Todavia, mesmo imersas nesse mesmo ethos nacional, Hiroshima e Nagasaki proclamaram para si diferentes identidades. Desta forma, este estudo propõe uma reflexão sobre como se deu o processo das composições identitárias das cidades vítimas dos bombardeios atômicos, e disserta, também, sobre as principais narrativas literárias japonesas sobre a temática.

2. O BOMBARDEIO ESPERADO – O CASO DE HIROSHIMA A cidade de Hiroshima é formada por um conjunto de ilhas e está localizada a aproximadamente 670 km ao sul de Tóquio. Durante as reformas políticas e sociais da era Meiji (1867-1912), foi instalada na cidade a Escola Superior de Educação e com o início da guerra Sino-Japonesa1 a cidade foi escolhida como sede militar. Durante a Segunda Guerra Mundial, mantinha vastos depósitos de suprimentos e era também a sede do batalhão dos pilotos kamikazes. Com a derrota japonesa na batalha de Iwo Jima, em janeiro de 1944, as forças Aliadas vinham sistematicamente bombardeando as principais cidades japonesas e, desde então, o bombardeio a Hiroshima era esperado. A cidade fez o que pôde para minimizar possíveis perdas materiais e imateriais: enviou as crianças para abrigos afastados do centro e colocou os estudantes para demolir suas casas e montar um sistema otimizado para conter o fogo quando as bombas chegassem. O encarte

Mestranda em Processos e Manifestações Culturais na Universidade FEEVALE/Brasil. E-mail: [email protected] Orientador. Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana, professor e pesquisador da Universidade Feevale no curso de Letras e no PPG em Processos e Manifestações Culturais. Tutor PET-Interdisciplinar Feevale (FNDE). E-mail: [email protected] 1 A Guerra Sino-Japonesa foi travada entre China e Japão entre 1894 e 1895 pelo controle da Coreia. *

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do Museu Memorial da Paz de Hiroshima2 expõe a explicação sobre a escolha da cidade como alvo-prioritário: Para assegurar que os efeitos do bombardeio atômico pudessem ser observado com eficácia, os alvos em potencial foram selecionados considerando as cidades com grande área urbana e com pelo menos três milhas em diâmetro [...] Pensava-se que Hiroshima havia sido a primeira cidade a ser selecionada porque era a única dentre as outras quatros que não possuía um campo de prisioneiros aliados de guerra. (MUSEU MEMORIAL DA PAZ DE HIROSHIMA, contra-capa)

Na manhã de 06 de agosto de 1945 um clarão rompeu o céu de Hiroshima. Na explosão da primeira bomba atômica, morreram instantaneamente entre 70 e 80 mil pessoas. Sobre o momento da explosão, o encarte do museu destaca: “Em um instante a cidade foi quase destruída por completo e milhares de vidas preciosas foram perdidas”. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão foi ocupado pelas Forças Aliadas até 1952. Sob o comando do general Douglas McArthur, o governo norte-americano proibiu a publicação de qualquer obra ou informação sobre a bomba e implantou uma série de mudanças e acordos para fortalecer a economia do Japão. Assim, rapidamente, as cidades se restabeleceram e Hiroshima, que teve sua população de 350.000 habitantes reduzida para 50.000, não foi diferente. Com a colaboração norte-americana, novos prédio foram construidos, e em três meses, os trens já circulavam. A data de 02 de maio de 1960 marca a redistribuição das posições políticas e ideológicas vigentes no Japão. Neste dia, o parlamento japonês aprovou o decreto dos três princípios nucleares, que proibia o Japão de produzir armas, mantê-las em seu território ou que essas passassem por seu território. No caso das armas nucleares, a organização da palavra na forma de um texto jurídico instrumentaliza a sociedade japonesa a se organizar e buscar outras maneiras de conviver com os eventos traumáticos. A publicação do decreto representou muito mais do que uma série de regras de conduta sobre as armas nucleares, significou também que havia chegado o momento de estabelecer uma nova forma de tratar o assunto, tanto no âmbito municipal, nacional e internacional.

2.1. A LITERATURA NA REPRESENTAÇÃO DE HIROSHIMA Passados apenas três anos da sanção do decreto, em 1963, o primeiro livro que traz a problemática da explosão da bomba foi publicado no país: Notas de Hiroshima, escrito por Ôe Kenzaburo. A obra, com base nos relatos que o autor fez durante suas viagens à cidade, traz uma visão de Hiroshima abandonada pelo governo e relata as experiências dos sobreviventes, seu sofrimento e seu silêncio. A linguagem literária é clara e objetiva e o eixo central da história é o conceito sobre o “Outro”. Se compreendermos a literatura como algo que “satisfaz à necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade” (CANDIDO, 2004, p. 180), e que dá instrumento para que o sujeito se posicione em relação a esses sentimentos, se percebe em Hiroshima Notes a primeira experiência japonesa bem-sucedida em expor os sentimentos que o evento invoca. Dentro desse contexto é que Hiroshima Notes tem seu valor; não enquanto sua literalidade, mas por sua construção, no conceito proposto por Candido, o qual afirma: “toda obra literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção. (CANDIDO, 2004, p. 177). No interiam da publição do livro e as discussões políticas sobre as armas nucleares, a cidade de Hiroshima, em 1966, aprovou uma resolução que tratava das ruínas do único prédio que resistiu a explosão: elas deveriam ser preservadas por toda eternidade. Sobre a manutenção de prédios histó O encarte do Museu Memorial da Paz é entregue na entrada do museu de forma gratuita. Na primeira página exibe informações sobre o museu, os prédios e localiza o público no espaço. No verso, expõe alguns fatos conforme os transcritos aqui. Disponível em: . Acesso em: 15 jul. 2015.

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ricos, Hobsbawm (1998) expõe que a busca pela preservação material surge como uma grande força simbólica que “ao restabelecer uma parte pequena, mas emocionalmente carregada de um passado perdido, de algum modo restabelece o todo” (HOBSBAWM, 1998, p. 23). O prédio agora oficialmente preservado estabelece e valida “um passado perdido”, mas a problemática da representação necessita ainda do agente humano. Nesse contexto, Chartier propõe que a representação se dá por formas institucionalizadas, no qual representantes – sujeitos singulares – marcam de modo visível e perpetuado a existência do grupo (2002, p. 73), e Hiroshima ainda não havia encontrado esse sujeito. Hiroshima Notes fala sobre o outro – era o relato de alguém que não compartilhou da experiência, e foi uma obra importante quando publicada, mas para a construção da identidade de Hiroshima faltava, a experiência do “Eu”. Em 1969, Ibuse Masuji publicou a obra mais lida, traduzida e ensinada sobre a temática: Chuva Negra. A trama é narrada pelo tio do protagonista de forma simples, em um discurso que o cidadão comum japonês não teria dificuldades a entender. A história gira em torno de como arranjar um casamento para Yasuko, que exposta à radioatividade, sofre com o preconceito da sociedade japonesa. Chuva Negra é considerada uma obra híbrida, ao misturar o romance com trechos de depoimentos coletados pelo autor entre entrevista e diários de amigos mortos no evento. O livro não descreve o momento do bombardeio e seu discurso se constrói na importância da reintegração dos sobreviventes à vida comum. O destaque da obra está na relação entre o Eu e o Outro: o eu, vítima da bomba atômica, e o outro, os japoneses não vítimas. Assim, se “Chuva Negra diz a ‘nós’ (não vítimas) o que ‘nós’ somos enquanto seres humanos, então é porque aqui se encontra um romance que narra as semelhanças entre nós e as vítimas e não as diferenças”. (GONÇALVES, 2011, p. 49) Compagnon (1999, p. 37) declara que “a literatura pode estar de acordo com a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o movimento mais também precedê-lo”. No exemplo de Chuva Negra observa-se uma obra que acompanha e endossa as mudanças sociais, mas que, ao mesmo, aparenta precedê-las. À medida que a obra vai se popularizando, sendo traduzidas a outros países, constrói-se um novo olhar sobre a cidade de Hiroshima. A última obra significativa sobre a temática foi escrita em 1973 por Nakazawa Keiji, sobrevivente da explosão atômica, vindo ao encontro do proposto por Pollak: face a situações traumatizantes, a memória cria zonas de sombra, silêncios e não-ditos, as fronteiras desses silêncios “com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento” (1989, p. 8). No caso de Keiji, as lembranças traumatizantes, que por 30 anos permaneceram como zonas de sombras, deslocam-se e vêm à superfície, rompendo o silêncio quando sua mãe falece, 30 anos depois do ocorrido. Gen Pés Descalços é uma obra literária no formato manga – história em quadrinhos impressas em papel jornal preto-e-branco. Escrito e publicado em 1973, o manga conta a história de Gen, uma criança sobrevivente da primeira explosão atômica que busca reconstruir sua vida. O autor escreveu para a edição brasileira uma breve explicação sua obra: “A série foi baseada em minha experiência pessoal sobre a bomba. As cenas de família, as personagens e vários episódios que aparecem em Gen são pessoas e eventos reais que eu vi, dos quais ouvi falar ou que eu mesmo vivenciei.” (NAKAZAWA, 2001, p. 13). Candido (2004) declara que no universo literário o que “age como força humanizador(a) é a própria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas pertinentes (p. 182); e assim, na literatura sobre a experiência da bomba atômica voltada ao público infantil, a forma pertinente escolhia foram as histórias em quadrinhos. Sobre esta forma literária, a autora Luyten (2000) afirma que ao analisar as histórias em quadrinhos japonesas é possível identificar as representações do que constituí o imaginário japonês. A representação de traumas, beleza, força, disciplina, austeridade, laços familiares expõem-se no desenrolar das páginas. O caso de Gen não é diferente.

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O lançamento do decreto, a manutenção das ruínas e a publicação de Notas de Hiroshima, Chuva Negra e Gen Pés Descalços, somados, representou a ruptura da “fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável” (POLLAK, 1989, p. 8) e permite a construção de uma memória coletiva organizada, que colabora diretamente para construção de nova imagem de Hiroshima. São, então, esses elementos – a memória coletiva não mais silenciada, o direito à literatura e a materialidade histórica – que contribuíram para que Hiroshima viesse lentamente a assumir sua identidade como cidade vítima do primeiro bombardeio atômico, passando a representar um símbolo da paz e da luta contra as armas nucleares. Aos olhos estrangeiros, essa identidade vai se firmando aos poucos. No primeiro momento, quando o jornalista Hershey, retorna a cidade, entrevista os mesmos sobreviventes e publica o livro Hiroshima. Segundo quando o autor Ôe Kenzaburo, de Notas de Hiroshima, recebe, em 1994, o prêmio Nobel da Literatura; e por último, em 1996, quando a Organização das Nações Unidas (UNESCO) reconhece às ruínas de Hiroshima como patrimônio mundial da humanidade.

3. O INESPERADO - A EXPLOSÃO DE NAGASAKI Nagasaki surgiu como uma pequena vila de pescadores e só assumiu importância política com a chegada de portugueses que estabeleceram, em 1549, um ponto de comércio entre a Europa, China e Japão. Foi através da cidade que os japoneses tiveram contato com armas de fogo e com o cristianismo, que rapidamente se espalhou pela região (BATH, 1993, p. 32). A proibição da religião cristã foi sancionada pelos governantes em 1587 e durante o século XVI, os adeptos foram perseguidos e executados; os que sobreviveram, mantiveram seus práticas clandestinamente e, mesmo frente a repressão da época, a cidade se manteve como um centro cristão. Quando o avião da força aérea norte-americana decolou em 9 de agosto de 1945, o destino não era Nagasaki. Na ordem de alvos prioritários estava Kokura, Niigata e, por último, Nagasaki. Todavia, o mau tempo e a pouca visibilidade de Kokura alterou os planos assim, às 11h02min, a bomba atômica foi lançada na cidade de Nagasaki, e sua explosão se deu em cima da mais importante e tradicional catedral cristã de todo o Japão. (BATH, 1993, p. 32). Hoje, totalmente reconstruída, a cidade investe esforços para evidenciar seu “estrangeirismo”, e explora, no mercado turístico, seu estilo exótico de influências holandesas e chinesas. Em 2007, por exemplo, enviou a UNESCO3, um processo para tornar patrimônio cultural universal suas igrejas e seus sítios cristãos. Esse breve relato da trajetória de Nagasaki se faz necessário para que se possam articular os seguintes itens: a) os conceito de representação; b) os estudos de memória e silenciamento; e c) o sentido do passado, afim de compreender como Nagasaki negou o título de cidade vítima de uma explosão atômica. A teoria de Chartier propõe que “é do crédito concedido (ou recusado) à imagem que uma comunidade produz de si mesma, portanto de seu ‘ser percebido’, que depende a afirmação (ou negação) de seu ser social” (2002, p. 10). No exemplo de Nagasaki – seu ser percebido – é marcado pela constante presença estrangeira, e que se expressa – seu ser social – como uma “cidade não-japonesa”. Assim sendo, pode-se enquadrar Nagasaki, como uma “comunidade imaginada”, no entendimento da cidade como uma “comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e ao mesmo tempo soberana.” (ANDERSON, 2008, p. 32). Se analisado o “ser social” de Nagasaki, sob o viés da memória coletiva; aqui compreendida, como a seleção – e a consequente exclusão – de pontos de referência comuns de uma comunidade; UNESCO. Churches and Christian Sites in Nagasaki. Disponível em http://whc.unesco.org/en/tentativelists/5096/> Acesso em: 15 jul. 2015.

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percebe-se uma constante força institucional para excluir o evento da explosão atômica da memória coletiva da cidade. O trecho abaixo exemplifica essa tendência: Os promotores da cidade de Nagasaki ainda preferem pensar em sua cultura local em termos de propriedades holandesas e templos chineses, e, decididamente, não como a cidade da bomba atômica que, no entanto, é. (GONÇALVES, 2011, p. 85)

Em seus estudos sobre memória, esquecimento e silêncio, Pollak (1989) aborda o sentimento de culpa como um fator que favorece o processo de silenciamento. Silenciamento entendido como a tentativa, imposta ou voluntária, de apagar da memória coletiva um evento traumático. O autor explica que a existência de lembranças traumáticas impõe a todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas uma posição de silêncio e que, no caso das vítimas a situação é semelhante. Nesse cenário, é preciso observar também como o contexto internacional atuou sobre a construção identitária de Nagasaki. Pois se, como explica o historiador Hobsbawm (1998, p. 22), operamos em “sociedades e comunidades para quais o passado é essencialmente o padrão para o presente”, o ocorrido em Nagasaki afirmou o que a explosão de Hiroshima atestava o período da guerra nuclear. Gonçalves reforça que é esse fato que torna o ocorrido em “Nagasaki mais terrível, apesar da sua menor carnificina: a sua aniquilação converteu o que poderia ter sido uma aberração [...] em um padrão. Ela virou de estratégia para uma tática; aplicada facilmente em nossas cidades hoje, sejam elas quais forem”. (GONÇALVES, 2011, p. 86) Assim, ainda que a explosão da segunda bomba atômica tenha encerrado o conflito mundial, ao mesmo tempo, iniciou-se a era nuclear. No cenário internacional, o evento de Nagasaki instalou no imaginário coletivo a possibilidade (e o medo) de uma guerra nuclear. A lembrança de Nagasaki agora operando na forma de memória herdada, foi fundamental para que os discursos impostos durante a Guerra Fria tivessem credibilidade.

4. CONSIDERAÇÕES Hiroshima e Nagasaki percorrem diferentes trajetórias durantes seus processos de reconstrução. A peculiaridade de cada um dos municípios, suas heranças culturais e religiosas foram fatores que, somados ao cenário local e internacional, colaboraram para que cada cidade cria-se diferentes identidades. No proceso de construção identirária de Hiroshima se observa que, se a memória coletiva é um elemento constituinte de identidade, que estabelece o “sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si” (POLLAK, 1992, p. 5); e que representar é “uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição” (CHARTIER, 2002, p. 73), pode-se considerar que o que possibilitou Hiroshima estabelecer a identidade de vítima do bombardeio atômico foi, antes de tudo, a construção de suas próprias formas de representar: a materialidade história e simbólica. Nesse raciocínio, Stuart Hall ensina que a representação é parte essencial do processo pelo qual um significado é produzido e disseminado aos membros de uma cultura; processo do qual envolve essencialmente o uso da linguagem, de sinais e imagens que representam coisas. Assim, quando estabeleceu e organizou suas “formas de representar” – as ruínas a literatura – Hiroshima assumiu, então, o status de “cidade vítima” da bomba atômica. Em Nagasaki, o processo foi totalmente distinto, e para compreender os motivos que levaram a cidade negar o título de “cidade não-vítima” dos eventos nucleares, três fatores precisam ser explicados. Primeiro, a posição de Nagasaki, que se percebe e se faz perceber como uma “cidade não-japonesa”; segundo, o evento no contexto internacional, que instalou a era nuclear e desviou a atenção das consequências dos bombardeios atômicos; e por último o sentimento de culpa interiorizado nas vítimas, que as silenciou.

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A força do silêncio de Nagasaki, vem da soma de diferentes construções sociais; em primeiro da prática religiosa local, o cristianismo, que explora a ideia da “culpa” e estimula a “aceitação” dos atos de Deus. Em segundo, do pensamento japonês que, independente da religião, crê que “cremar os mortos e guardar suas cinzas é uma responsabilidade moral maior que cuidar os vivos” (HERSEY, 2002, p. 69). E, em terceiro, estabelecido na força da linguagem, que não proclama sobreviventes – a se referir a alguém que passou pela experiência dos bombardeios atômicos os japoneses “tendiam a evitar o termo sobrevivente, cujo ênfase no fato de estar vivo podia sugerir algum desrespeito para com os mortos sagrados.” (HERSEY, 2002, p. 99).

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O JARDIM DE INVERNO E DE VERÃO, DOS IRMÃOS GRIMM E A XILOGRAVURA: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA Deisi Luzia Zanatta* (UPF) Fabiane Verardi Burlamaque** (UPF)

1. INTRODUÇÃO Como na literatura, na área das artes visuais, plásticas, pinturas, ilustrações, xilogravuras, entre outras, várias são as intenções do artista para criar sua obra. Neste trabalho objetivo realizar uma leitura intersemiótica entre o conto maravilhoso O jardim de inverno e de verão, dos Irmãos Grimm e a ilustração baseada no texto, do xilogravurista J. Borges. A narrativa e a ilustração estão publicadas em Contos Maravilhosos – Infantis e Domésticos (1812-1815), dos Irmãos Grimm. A obra foi publicada em 2012 e conta com a versão original de 156 histórias, distribuídas em dois tomos, traduzidas diretamente do alemão por Christine Röhrig, nunca antes reunidas em português. Embora o conto O jardim de inverno e de verão seja uma das versões de A bela e a fera escolha desse texto e da imagem correspondente, justifica-se, além de um gosto pessoal, pelo fato de não ter encontrado muitos trabalhos anteriores que tenham como corpus esta versão da história, além da ilustração inovadora em formato de xilogravura, quando o comparo com outros mais conhecidos, como: Branca de Neve e os Sete Anões, Rapunzel, A Bela Adormecida, A Gata Borralheira (Cinderela), Chapeuzinho Vermelho, João e Maria, entre outros. O diálogo entre o texto e como ele é representado na pintura, nesse artigo, especificamente, na xilogravura, permite estreitar laços entre a literatura e a arte, tendo em vista que a imagem também é um texto. Com isso, o xilogravurista, através de sua apreensão do texto complementa o texto escrito com a imagem, permitindo também ao apreciador/observador da arte, a sua interpretação. Assim, a fundamentação teórica que melhor pode embasar este trabalho conta com as contribuições de Greimas (1979) sobre a teoria da semiótica do texto e de seus estudiosos Pietroforte (2004), Barros (2005) e Fiorin (1997). Também, busquei subsídios em Trevisan (1999) que postula acerca da leitura iconológica da arte. Diante disso, a estrutura do presente trabalho se apresenta por primeiro com a introdução; após uma breve biografia dos Irmãos Grimm e do xilogravirista J. Borges como também algumas considerações sobre o conto maravilhoso; fundamentação teórica; análise do corpus e considerações finais.

2. TEORIA SEMIÓTICA DO TEXTO Segundo Pietroforte “há pelo menos, três semióticas: a doutrina dos signos elaborada por Charles Sanders Pierce, o desenvolvimento do formalismo russo e a teoria da significação proposta por Algidar Julien Greimas” (PIETROFORTE, 2004, p.7). O embasamento teórico deste trabalho se vincula à teoria greimasiana que aborda a semiótica do texto.

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Doutoranda em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected] Doutor em Teoria Literária pela PUCRS, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras da UPF e coordenadora das Jornadas Literárias de Passo Fundo, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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Com a obra Semântica estrutural, Greimas abre seus estudos acerca do processo de significação gerado pelos signos. Com base nisso, a teoria semiótica se preocupa com o texto, proponde descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz, de acordo com o Plano de Expressão (PE) e o Plano de Conteúdo (PC). Cumpre mencionar, que todo plano de conteúdo se manifesta através de um plano de expressão. Contudo, a semiótica deixa de lado este, que passa a ser estudado na teoria dos sistemas semissimbólicos. De acordo Greimas (1979), no texto escrito não temos cores, gestos, mas quando há uma imagem associada ao texto verbal ocorre a possibilidade de aprofundamento do sentido. Assim, segundo o estudioso, o texto se organiza num percurso gerativo de sentido que compreende três níveis: o nível fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo. No nível fundamental tem-se a abordagem de um tema. Como tudo tem o seu o oposto, a partir dessa temática, se estabelece uma relação de oposição dentro do campo semântico do nível fundamental como, por exemplo, na temática vida, há o seu oposto que é a morte. Logo a categoria semântica de um nível fundamental pode ser vida versus morte. O nível narrativo é aquele que compreende um estado inicial, uma transformação e um estado final do sujeito. Nesse nível, o sujeito deseja algo e manipula o outro para que obtenha tal desejo, ou seja, o sujeito está em disjunção com o objeto valor que desejado. Ao entrar em conjunção com o objeto valor, ocorre a transformação do sujeito, chamada de performance. Vale salientar que a conjunção para um sujeito implica a disjunção para outro, pois “o valor do nível narrativo é o significado que tem um objeto concreto para o sujeito que entra em conjunção com ele” (FIORIN, 1997, p. 28). Se o nível narrativo apresenta as formas abstratas de como um sujeito entra em conjunção com a riqueza, por exemplo, no nível discursivo estas formas abstratas serão revestidas de termos que lhe dão concretude, ou seja, através de um enunciado produzido por uma enunciação. Logo, a conjunção com a riqueza aparecerá no nível discursivo através do roubo de joias, assalto a um banco, recebimento de uma herança etc. O nível discursivo apresenta as variações que são invariantes no nível narrativo. Fiorin (1997) exemplifica tal assertiva: Uma fotonovela, por exemplo, tem uma estrutura narrativa fixa: X quer entrar em conjunção com o amor de Y, X não pode fazê-lo (há um obstáculo), X passa a poder fazê-lo (o obstáculo é removido), o amor realiza-se. Entretanto, seu nível discursivo varia. O obstáculo, por exemplo, ora é a diferença social, ora é a presença de outra mulher, ora é uma doença e assim por diante (FIORIN, 1997, p. 29).

De acordo com Fiorin (1997), um dos estudiosos que deu sequência aos estudos greimasianos, não há percurso gerativo de sentido, se não há plano de conteúdo. Para haver conteúdo linguístico é preciso que haja expressão linguística, pois o plano de conteúdo, que comporta uma unidade discursiva, se manifesta em um plano de expressão e, então, surge o texto. Segundo Barros (2005) o texto pode ser considerado um objeto de significação e um objeto de comunicação. A primeira concepção considera o texto como um todo organizado de sentido, considerando a análise dos procedimentos e mecanismos que o estruturam como tal. A segunda concepção concebe o texto como um objeto histórico-cultural, ligado diretamente às formações ideológicas da sociedade na qual se insere. Sua análise precisa levar em consideração a relação da obra e do contexto histórico e cultural que lhe confere sentido. Barros enfatiza que os efeitos de sentido que a obra proporciona não são obras do acaso, mas decorrem da enunciação. Assim “o discurso nada mais é, portanto, que a narrativa “enriquecida” por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia” (BARROS, 2005, p. 53). Segundo Barros (2005) o discurso elabora por ele mesmo a sua verdade. O enunciador não produz discursos verdadeiros ou falsos, mas elabora discursos que criam efeitos de verdade ou falsidade, que parecem verdadeiros ou falsos, depende de como são interpretados. Logo, o enunciatário

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crê ou não no discurso, em grande parte, graças ao seu conhecimento de mundo, pois “o fazer-crer e o crer dependem de um contrato de veridicção que se estabelece entre enunciador e enunciatário é que regulamenta, entre outras coisas, o reconhecimento das figuras” (BARROS, 2005, p. 70). Além da teoria sobre a semiótica do texto, é preciso voltar o olhar para considerações teóricas acerca da obra de arte. Trevisan (1999) elabora cinco vias de acesso para apreciação leitora da arte: a leitura biográfico-intencional, a leitura cronológico-estilística, a leitura formal, a leitura iconográfica e a leitura iconológica. Atento meu olhar sobre a última, a leitura iconológica, levando em consideração que o objetivo deste trabalho é analisar e interpretar a relação do texto verbal com o visual. Trevisan (1999) cita Mukarosvsky, o qual enuncia que a leitura iconológica tende a definir a concepção de mundo que se reflete numa determinada expressão artística. Possui a intenção de ler a atitude que um determinado homem, em alguma época, adota sobre a realidade, não só quando pretende representa artisticamente, porém sempre que atua sobre ela ou sobre ela reflete. Mukarosvky ainda postula que a obra de arte é uma resposta pessoal às questões fundamentais da vida humana. Com isso, “a leitura iconológica é – por sua natureza – uma leitura polifônica” (TREVISAN, 1999, p. 171), o que significa afirmar que a pintura, escultura, xilogravura pode ser lida de diversas maneiras por outros artistas, como também por leitores, apreciadores. Tal assertiva permite apreender que a obra de arte é uma “obra aberta”, ou seja, o leitor, ao ler a obra percebe nela seus vários estratos, mas caso não compreenda, retorna a eles, a fim de abrangê-los. Portanto, os efeitos de sentido não estão no texto verbal e visual por obras do acaso, mas discorrem de como são estabelecidos pela enunciação e pelos estratos artísticos com a finalidade de atingir o leitor. Diante disso, realizo, a seguir, a análise do conto O jardim de inverno e de verão, e a relação com a xilogravura correspondente.

3. JARDIM DE INVERNO E DE VERÃO E A XILOGRAVURA: UMA LEITURA INTERSEMIÓTICA A narrativa do conto maravilhoso O jardim de inverno e de verão versa sobre um comerciante que tinha três filhas. Antes de sair para uma de suas viagens, cada filha pede o que gostaria de receber de presente: a mais velha pediu um lindo vestido, a segunda, um belo par de sapatos e a terceira, que era a mais bela, pediu uma rosa. Intrigado, mas confiante, o pai prometeu à filha que faria o possível para conseguir a rosa, mesmo estando na alta estação do inverno. O comerciante conseguiu o vestido e o par de sapatos, mas não a rosa. Até que adiante, encontrou um lindo castelo cuja frente era dividida em duas estações: metade inverno, metade verão. No lado verão, se encontravam as mais lindas rosas, enquanto no lado inverno, as árvores estavam secas e uma grossa camada de neve cobria o chão. Ao pegar uma rosa e rumar para sua casa, percebeu que uma fera preta estava atrás de si exigindo a devolução da rosa: “Ou você me devolve a minha rosa, ou eu o mato; ou você me devolve a minha rosa, ou eu o mato!”. O comerciante então respondeu: “Eu lhe peço, por favor, deixe-me levar a rosa, é um pedido especial de minha filha, ela é a mais linda do mundo”. “Se é assim, tudo bem, mas, em troca, prometa que me concederá a mão dessa filha em casamento!”. Para se livrar logo da fera, o comerciante disse que concordava, pensando consigo mesmo que isso jamais aconteceria, que ela acabaria não aparecendo para exigir o cumprimento da promessa. A fera, no entanto, ainda gritou atrás dele: “Em oito dias, eu virei buscar a minha noiva” (GRIMM, 2012, p. 319).

O conjunto de sequências na parte inicial da história apresenta um sujeito em disjunção com o objeto valor que deseja, no caso, a filha mais nova quer muito a rosa que pede ao pai. Nesse sentido, o pai é manipulado pela filha a obter a rosa. A fera também se encontra em disjunção com a vida e será a filha mais nova do comerciante que mediará a transformação da fera em príncipe. As xilogra-

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vuras da narrativa, apresentadas a seguir, ilustram o exato momento em que o pai adquire a rosa para a filha, roubada do jardim de verão do castelo. Ilustrações de J. Borges presentes o livro Contos maravilhosos – infantis e domésticos, dos Irmãos Grimm.

Nas ilustrações, temos dois mundos retratados: a vida, representada pelo jardim de verão e a morte, pelo jardim de inverno. No jardim de verão pode-se perceber um cenário aberto, com a presença da pessoa humana e do sol, além de uma mescla de cores frias e quentes. No jardim de inverno, por sua vez, a imagem nos apresenta um cenário fechado, com a presença de cores frias, da lua e da não presença do humano. Em uma primeira leitura da imagem, tomando como base a teoria semiótica greimasiana, é possível deter o olhar sobre a manifestação do plano de conteúdo e do plano de expressão. Um dos temas das imagens é a morte, representada pelo jardim de inverno e pela condição da fera, consequentemente, o jardim de verão representa a vida e a transformação para a forma humana do príncipe. Com isso, pode-se estabelecer a categoria semântica inverno vs. verão e também a categoria morte vs. vida. Ambas as categorias se encontram dentro do PC e através disso, ocorre a possibilidade de traçar o percurso gerativo de sentido esquematizado pelo quadrado semiótico a seguir:

inverno

verão

morte

vida

não-verão

não-inverno

não-vida

não-morte

1

A relação entre as duas estações diz respeito ao ciclo vital, do percurso da morte até a vida. Logo, os percursos do quadrado semiótico apontam dois caminhos: um formado pelo percurso morte 1

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não-morte a vida; e outro que indica o percurso vida a não-vida a morte. No decorrer deste ciclo, a morte é afirmada no inverno, condição em que a fera está atrelada representada pelo jardim seco e coberto de neve; a afirmação da vida acontece no verão, representada pelo ato do comerciante de roubar a rosa. As zonas de sentido são delimitadas quando, se percebe que a posição das personagens, a fera e a filha mais nova do comerciante, visam transgredir um estado de sofrimento para libertação. No caso da jovem moça, a flor representa o desejo de encontrar um grande amor e para a fera, a jovem desmanchará o jardim de inverno, no qual se atrela a sua forma não humana. Nesse sentido, o conto dos irmãos Grimm em conjunto com as xilogravuras tratam da temática liberdade e logo, temos o plano de conteúdo opressão vs. liberdade. Ao levar em consideração a concepção de mundo do xilogravurista ao retratar uma passagem do conto, deve-se atentar para as cores das imagens, pois, também, são elementos que possibilitam a construção do sentido. O lado esquerdo é rodeado de sombras e há a predominância de cores frias, no caso o verde, azul e o rosa fosco. No lado direito, encontra-se um misto de cores frias e quentes: o laranja, o azul e o rosa claro. A posição ocupada por estas cores se dão apenas no plano de expressão, entretanto uma categoria semissimbólica ocorre no plano de conteúdo. A escolha das cores, logo, pretende representar o mundo sombrio e o vital da imagem, como também da narrativa, apresentado pela seguinte citação do conto: Ele se entristeceu e, justo quando se perguntava se não conseguiria levar presente algum para sua filha preferida, chegou a um castelo em cuja frente havia um jardim dividido em duas estações: metade inverno, metade verão. No lado do verão, vicejavam as mais belas flores de todos os tamanhos, enquanto no lado do inverno as árvores não tinham folhas e uma grossa camada de neve cobria o chão (GRIMM, 2012, p. 319).

A passagem da obra se alia às imagens para lhes dar sentido e assim, perceptivelmente, as xilogravuras se enquadram dentro da categoria de expressão sombra vs. luz. A figura que realiza a liberdade tanto da moça quanto da fera é a rosa adquirida para a filha, pelo comerciante e a relação deve-se ao fato do jardim de inverno não permitir a liberdade dos protagonistas. Logo, no plano de conteúdo, o jardim de inverno representa a morte/opressão e, no plano de expressão, a sombra; contrariamente, o jardim de verão, é a figura que realiza no plano de conteúdo a vida/liberdade e, no plano de expressão, a luz: PC inverno morte opressão vs. verão vida liberdade PE sombra vs. luz Na relação estabelecida pelo esquema acima, o que se mostras nos espaços esquerdo e direito das xilogravuras é o percurso semissimbólico e adquirem a seguinte orientação: do lado esquerdo, há no plano de conteúdo a vida e a liberdade sendo negadas pelo jardim de inverno, confirmada no plano de expressão pelas cores sombrias e, no lado direito, há a negação da morte e opressão, logo a afirmação da vida e liberdade, ressaltadas no plano de expressão através das cores vivas. Com isso, é possível articular as categorias de expressão em um quadrado semiótico, determinando o semissimbolismo da seguinte maneira:

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inverno

verão

morte

vida

opressão

liberdade

sombra

luz

não-verão

não-inverno

não-vida

não-morte

não-liberdade

não-opressão

não-luz

não-sombra

2

A relação semissimbólica que se estabelece também se relaciona com as formas de expressão. Por ser de estrutura eclética, é possível perceber que não há uma proporção formal nas xilogravuras analisadas. Ao observar o comerciante e a rosa, esta possui, praticamente, a mesma proporção que a cabeça do pai da jovem, além da disposição da imagem do jardim de verão possuir mais verticalidade do que a ilustração do jardim de inverno. Os efeitos de sentido produzidos através deste plano de expressão figurativizam a condição que a fera precisa ultrapassar: do lado do inverno para o lado do verão, onde há indicativos da forma humana. Assim, os conceitos que o plano de conteúdo traz e a arte plástica do plano de expressão, remetem ao que o tempo cíclico traduz em temporalidade. Diante de tal assertiva e das orientações de sentido que constroem a temática da transgressão e liberdade, dão sequência quando a fera chega à casa do comerciante para buscar a jovem moça. O impacto inicial da jovem desaparece, quando, durante a convivência com a fera, percebe que esta não é um monstro, pois permite que visite o pai doente. Mesmo com a visita da filha, o comerciante não resistiu e morreu. Tal acontecimento implica, para a moça, a conjunção com a fera e a disjunção com o pai, ou seja, a aquisição da rosa serve de ponte para se ligar à fera e acabar com o feitiço, como também, à aptidão de sair da casa do pai e casar-se com o príncipe preso em forma animal. Essa forma animal está ligada à aparência do jardim de inverno: frio e sem vida. O jardim de verão, por sua vez, guarda a possibilidade da fera retornar à forma humana e, por conseguinte, voltar à vida. Ao ter uma rosa do seu jardim de verão roubada, a fera vem a conhecer a jovem moça que a salvará da morte. Isso se concretiza, quando a moça se dá conta que foram passados oito dias, após estar na casa do pai e se pôs a caminho do castelo, o mais rápido possível. Ao chegar, se depara com um cenário triste, sem vida, tudo a sua volta soava morte, pois o jardim de inverno reinava de ambos os lados e a neve cobria tudo. Ao remexer em alguns repolhos encontra a fera padecendo, porém ao molhar a fera, esta acorda e o encanto se rompe, dando forma a um belo príncipe e o jardim de verão prevalecendo sob o jardim de inverno. Quando a fera vira príncipe e o casamento é realizado, ocorre a performance e a sanção, pois a rosa liga a liberdade, a vida e o amor da jovem para o príncipe, e vice-versa. Assim, o casamento é uma espécie de prêmio para ambas as personagens. A fera se transformou em homem, enquanto 2

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a jovem moça adquiriu a liberdade de sair da casa do pai para adentrar na casa do marido, isso é o ressarcimento pela liberdade perdida. Nesse sentido, o nível discursivo evidencia que a rosa é o símbolo da conjunção com a liberdade, com a vida e com o amor.

4. CONCLUSÃO A proposta, neste trabalho, foi fazer uma leitura intersemiótica entre duas artes distintas: literatura e xilogravura. Através dessa abordagem, tentei verificar como ocorreu a relação entre o conto maravilhoso O jardim de inverno e de verão, dos Irmãos Grimm e a xilogravura que ilustra uma passagem do texto. A primeira seção contemplou uma breve biografia sobre os Irmãos Grimm e do artista José Francisco Borges, como também uma abordagem acerca do conto maravilhoso, de acordo com Propp (1983) e da xilogravura, segundo Curran (2003). A segunda seção contou com a análise do corpus, a qual evidenciou que o texto verbal e visual estabelece uma relação harmônica entre a categoria semântica do Plano de conteúdo e Plano de expressão. Foi possível perceber que há, no plano de conteúdo, a afirmação da morte e da opressão por meio do jardim de inverno, condição animal na qual a fera está atrelada. No plano de expressão, isso se intensifica através das cores frias, o que assegura um caráter sombrio à imagem. Porém, tal condição se modifica no momento em que o comerciante rouba a rosa do jardim de verão para presentear a filha mais nova e será através disso, que a fera se tomará forma humana novamente, ocorrendo então, afirmação da vida e da liberdade. Tal assertiva se afirma no plano de expressão através das cores quentes, o que caracteriza luminosidade à xilogravura. O que ocorre, no final, é a conjunção com a vida e a liberdade, tanto por parte da jovem moça quanto da fera. Ao adquirir a rosa, a filha do comerciante possui a passagem para sair da casa do pai e encontrar um grande amor. A fera, por sua vez, entra em conjunção com a vida, pois a rosa e a jovem mediam afirmação do jardim de verão, através do sentimento de bondade como virtude que está acima da beleza. Dessa forma, a abordagem feita nesse trabalho, propicia uma reflexão sobre a relação entre o conto maravilhoso e a xilogravura, e a produção de sentidos que juntos estabelecem. Ao realizar esta breve análise, pretende-se que se estabeleçam novas contribuições que relacionem o texto literário e arte visual.

REFERÊNCIAS BARROS, Diana. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2005. CURRAN, Mark J. História do Brasil em cordel. 2. ed. 1. Reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. FIORIN, José L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 1997. GREIMAS, Algidras Julien. Semântica estrutural. São Paulo: Cultrix, 1979. GRIMM, Jacob & Wilhelm. O jardim de inverno e de verão. In: _____. Contos maravilhosos: infantis e domésticos. Trad. Christine Röhrig. São Paulo: Cosac Naify, 2012. p. 318-323. PIETROFORTE, Antonio. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2004. PROPP, Vladimir. Morfologia do conto. Trad. Jaime Ferreira e Victor Oliveira. 2 ed. Lisboa: Vega, 1983. TREVISAN, Armindo. Como apreciar a arte: do saber ao sabor: uma síntese possível. 2 ed. Porto Alegre: Uniprom, 1999.

SOCIEDADE DE LEITURA HERMANN FAULHABER: A HISTÓRIA DE UMA BIBLIOTECA Denise Verbes Schmitt* (UFSM) Vitor Biasoli** (UFSM)

1. INTRODUÇÃO A biblioteca constitui-se a partir de um sonho de possuir todo o saber produzido pela humanidade (BARATIN e JACOB, 2000), no entanto, a decisão de fundar e manter uma biblioteca esbarra na configuração da instituição - pública ou privada, voltada para o mundo acadêmico ou para a população em geral - bem como nas políticas de seleção das obras que vão compor o acervo bibliográfico, que dependem não só do público alvo, mas das decisões do seu mantenedor e/ou dos responsáveis pela aquisição dos livros. Ainda assim, a biblioteca só adquire sentido e utilidade através do uso frequente de seu acervo, o que se caracteriza primordialmente pela leitura dos livros, o que nos leva a constatar a necessidade das políticas de incentivo à leitura, para a devida manutenção dos leitores, bem como a formação dos novos. Ao refletirmos sobre leitura, livros e leitores nos deparamos com a necessidade de compreender onde se encontram alocados os suportes de leitura, como se tem acesso as obras e quem são os responsáveis por estes espaços de armazenamento dos livros, ou seja, as Bibliotecas, Gabinetes e Sociedades de Leitura. As pesquisas ainda se debruçam com maior ênfase sobre os modos como ocorre à leitura, sobre os tipos de suporte e suas transformações, bem como sobre quem são os leitores nos diferentes períodos, observando-se uma lacuna em relação aos estudos específicos sobre bibliotecas. Estas reflexões iniciais visam introduzir o tema desta investigação, a história da biblioteca dos imigrantes alemães e seus descendentes, inserida no estudo da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber, da antiga Colônia de Neu-Württemberg – atual cidade de Panambi/ RS. A biblioteca, fundada em 1902, transformada na Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber em 1927, passou por momentos difíceis, como o confisco de seu acervo, os entraves para a construção da sede própria e os problemas para manter-se em funcionamento, o que culminou no seu desativamento em 1999. Ao lermos sobre imigração alemã, encontramos discussões acerca dos hábitos de leitura dos imigrantes e sobre as suas produções literárias, no entanto não se discute sobre como estas pessoas tinham acesso às obras literárias e quais os ideais e motivações que os levaram a fundar bibliotecas, sociedades ou gabinetes de leitura. O projeto de pesquisa, que se encontra em desenvolvimento, pretende traçar a trajetória da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber, percebendo sua atuação social e cultural. No presente artigo apresentamos um levantamento da bibliografia referente ao tema e alguns resultados iniciais da pesquisa. O projeto é financiado pela CAPES/DS.

2. COLÔNIA A Colônia alemã de Neu-Württemberg foi fundada em 1898, por Herrmann Meyer, empresário alemão do ramo editorial, sócio/proprietário do Instituto Bibliográfico de Leipzig - Alemanha. O projeto colonial foi propagandeado como “Colônia Modelo”, que ofereceria educação e assistência Mestranda em História da Universidade Federal de Santa Maria - Brasil E-mail: [email protected] Doutor e professor do curso de Históriada Universidade Federal de Santa Maria – Brasil e colaborador do Programa de Pós Graduação de História da UFSM. E-mail: [email protected]

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religiosa, que foram somente disponibilizados aos imigrantes/descendentes de forma sistemática a partir de 1902, com a chegada do casal Marie e Hermann Faulhaber, ela Professora e ele Pastor Luterano. Faulhaber foi contratado por Meyer para fundar a primeira escola na Colônia e prestar auxílio religioso, independente da crença religiosa. No entanto, o fato de Faulhaber ser luterando criou-se a imagem de uma Colônia de empreendimento privado e confessional, o que levou muitos protestantes a se dirigirem as colônias fundadas por Meyer (ROCHE, 1969, MICHELS, 2001). Na viagem para o Brasil, o casal Faulhaber trouxe na bagagem 200 livros para fundar uma biblioteca em Neu-Württemberg, sendo que os mesmo foram doados pelo idealizador e fundador da Colônia, Herrmann Meyer (MAHP, 2013, NEUMANN, 2009). Foi no espaço escolar que a biblioteca foi instalada. O incentivo à leitura e a formação dos novos leitores veio também da disciplina de leitura, ministrada por Marie, que possuía formação no magistério e havia frequentado algumas disciplinas na universidade como ouvinte1. Marie ainda formou um grupo de leitura, aberta aos alunos das turmas da sétima e oitava séries (o que corresponde atualmente a oitavo e nono ano). Este grupo de alunos reuniam-se nas sextas a noite na residência dos Faulhaber, onde liam as obras de Goethe, Schiller e Shakespeare e por vezes as discutiam (HÖHLE, 2014). As leituras iam ao encontro de outra atividade que Marie desenvolvia com seus alunos: o teatro. Como teatróloga, ela criava as peças e dirigia seus alunos, que encenavam as peças em festas e eventos da comunidade. Nas peças a valorização da educação e da leitura, como formas de assenção financeira e cultural, refletem o carater pedagógico do teatro que remete a formação e manutenção dos novos leitores2.

2.1. A BIBLIOTECA A biblioteca foi fundada entre o final do ano de 1902 e início de 1903, sendo alocada no espaço da escola, na zona urbana da Colônia. Em agosto de 1903 em um primeiro levantamento dos resultados, afirma-se que a biblioteca contava com trinta leitores, que haviam retirado 71 livros e 33 jornais e revistas. O acervo da instituição foi ampliando-se rapidamente ao longo dos anos, tanto que em 1906 a biblioteca possuía 2291 obras, com a média de três a quatro livros ou revistas retirados por família (FAUSEL, 1949). A biblioteca nos primeiros anos funcionou de forma centralizada, na área urbana da Colônia, fato que mudou depois da fundação da rede de escolas do interior do complexo colonial – na área rural - a partir dos anos 1910, quando a instituição passou a funcionar de forma descentralizada, com filiais nas localidades rurais. Cada umas destas sub-unidades possuía um acervo permanente, sendo que ainda criou-se um sistema de empréstimos de livros entre a biblioteca central as filiais rurais, formando um rodizio do acervo, havendo assim a circulação dos livros entre as mesmas. Este sistema trocava entre 50 a 100 livros. Assim a descentralização possibilitou a facilidade de acesso aos leitores do interior, sem a necessidade de deslocamento para sede da Colônia. As filiais, bem como a central, funcionavam dentro do espaço escolar. No início da década de 1920 instaurou-se uma dúvida sobre a biblioteca, havendo a discussão sobre o seu vinculo à escola. Em uma ata escolar do período consta que a instituição não pertencia à escola, por mais que a mesma mantivesse seu acervo alocado no mesmo local. Segundo Hermann Faulhaber, presidente da rede escolar e bibliotecário, a biblioteca estava intimamente ligada a escola, mas não pertencia a mesma, sendo uma instituição à parte.

As mulheres na Alemanha somente receberam a permissão de ingressar na universidade depois dos anos 1900. As datas variaram conforme a região, pois não havia uma legislação federal unificada. Em Tübingen – onde Marie foi ouvinte na universidade – permitiu estudantes universitárias em 1904, já em Baden foi em 1900 e na Baviera em 1903, por exemplo. 2 Sobre Marie Faulhaber ver: SCHMITT. Denise V. Marie Faulhaber: a trajetória de uma imigrante alemã em Neu-Württemberg, 19021939/RS. Monografia (graduação) Universidade Federal de Santa Maria: UFSM. Santa Maria, 2014. 1

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A biblioteca funcionava tanto para consulta local do acervo, como também para retirada de livros e revistas, permitindo ao sócio ficar com as obras por um período de quatro semanas. Para a utilização dos serviços da biblioteca era necessário ser sócio e pagar uma taxa mensal, valor que era destinado para a aquisição de livros, revistas e jornais. Outra forma de entrada de livros no acervo era através de doação, muitas delas feitas pelos proprios sócios, por empresas locais, ou pelo próprio fundador da Colônia, que em alguns momentos esporádicos fez doação em dinheiro. Em 1932 houve uma grande doação, feita em nome de Meyer, mas realizada pela sua família, depois da morte do fundador da Colônia. Os 2500 livros eram provenientes de sua biblioteca particular. A ampliação do acervo por meio de doações foi uma constante na história da instituição, que recebeu doações dos sócios, de empresas locais e de instituições alemãs, que tinham o intuito de preservação da germanidade.

2.2. A SOCIEDADE DE LEITURA Em 1927 a biblioteca foi transformada na Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber, fato que ocorreu um ano após a morte autodirigida de Faulhaber, um dos fundadores da biblioteca. A alteração foi necessária para que houvesse a melhor gestão da instituição (FAULHABERSTIFTUNG, 1933), assim ocorreu a legalização da instituição, com a promulgação dos Estatutos da Sociedade de Leitura Hermann Faulhaber. A partir da fundação da Sociedade de Leitura, seu acervo passou a ser alocado na casa de Marie, fato que ocorreu até o ano de 1935, em virtude da construção das novas instalações da escola. Em 1939, o acervo da Sociedade de Leitura retornou para residência de Marie, devido ao fechamento da escola, ocorrido pelas políticas de nacionalização do Estado Novo. O fato ocorreu meses depois do falecimento da fundadora, que além de ser uma das principais responsáveis pela formação dos novos leitores, também exerceu a função de bibliotecária, atividade que desenvolveu sem remuneração, como todas as demais que exerceu na Colônia. Até o momento, dentre a documentação apurada, entende-se que a biblioteca deixou de funcionar de forma descentralizada, mas não se sabe se os livros permaneceram nas escolas do interior ou se foram reintegrados à biblioteca central. Com a legalização da Sociedade de Leitura, o acervo necessitou passar por catalogação, para normatizá-la conforme regras de biblioteconomia, separando por áreas de conhecimento. O trabalho de catalogação foi realizado em 1932, pelas sócias da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas (OASE), que a convite de Marie, passaram a encadernar os livros com tecido e bordar os números, para identificá-los3, nos encontros semanais organizados pela OASE. Durante a catalogação, também foi realizado trabalho de restauro. Em 1937, a Sociedade de Leitura foi registrada no Instituto Nacional do Livro (INL). A partir deste período, o acervo ampliou as obras de língua portuguesa, uma vez que a Sociedade de Leitura possuía obras em língua alemã, inglesa, francesa, espanhola e portuguesa. Dois anos depois, o registro foi no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). A regulamentação nos órgãos federais ocorreu durante o período do Estado Novo. Em 1942, a biblioteca foi confiscada. Segundo Battles (2003, p. 187), a destruição de bibliotecas “é uma tentativa de eliminar qualquer evidência material – livros, documentos e obras de arte – que possam atestar às gerações futuras que pessoas de diferentes tradições étnicas e religiosas haviam compartilhado uma herança comum”. No entanto, depois do confisco do acervo, a Sociedade continuou funcionando com livros doados pelo INL, doações dos sócios e com novas aquisições. Em 1945, alguns livros confiscados foram devolvidos.

Ata da OASE de 19/10/1932. A OASE foi fundada em Neu-Württemberg em 1910 e teve como uma das fundadoras, Marie Faulhaber. Marie por inúmeras vezes ficou no cargo de presidente da Ordem.

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Nos anos que se seguiram, a principal meta perseguida pela Sociedade de Leitura foi à construção de uma sede, o que ocorreu no ano de 1963. A edificação do prédio ocorreu no terreno doado por Walther Faulhaber e sua esposa. O filho dos sócios fundadores da biblioteca, Walther Faulhaber, foi o importante articulador na manutenção da Sociedade de Leitura depois do confisco do acervo em 1942 e na liderança para a construção da sede própria da instituição. Depois da construção da sede, a Sociedade começou a enfrentar dificuldades, sendo que as mesmas ocorreram por falta de sócios, o que levou a falta de dinheiro em caixa para manutenção da instituição e da renovação do acervo. A Sociedade não conseguiu reverter à situação e em 1999 decidiu fechar as portas. O acervo composto de 10.000 obras foi dividido entre arquivo público e biblioteca municipal. Quanto ao mobiliário e o prédio da sede foram entregues para a prefeitura municipal.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS A biblioteca nos anos iniciais foi um importante espaço de cultura, lazer, sociabilização e de informação entre os imigrantes alemães/descendentes que se instalaram na Colônia de Neu-Württemberg, mas que com o passar do tempo foi perdendo a função e o espaço de atuação na Colônia. Dentre os fatores que devem ser considerados encontram-se as novas mídias, a proibição do uso da língua alemã durante o Estado Novo e a falta de ações de incentivo a leitura. Ao considerarmos este último item, percebe-se que a falta de ações de incentivo a leitura iniciaram-se depois da morte de Marie, principal promotora das iniciativas que visavam a formação de novos leitores, com a disciplina de Leitura, das atividades do Grupo de Leitura e das peças de teatro que ela mesma produzia que enfatizavam a importância da leitura e da educação, se considerarmos o aspecto pedagógico do teatro, sabendo que as peças eram encenadas nas festas e eventos realizados na Colônia. Durante o Estado Novo, a Sociedade de Leitura buscou resistir às imposições do Estado, que ao promover a nacionalização dos espaços, foi contrário a manifestação da cultura e da identidade étnica dos grupos de imigrantes/descendentes. A resistência ocorreu mediante a manutenção e funcionamento da instituição, mediante a doação do INL, órgão governamental. No entanto, no final de séc. XX a Sociedade findou suas atividades por problemas financeiros e falta de leitores. Ao olhar para a trajetória da Sociedade de Leitura, percebe-se que a falta de ações de incentivo a leitura, como os realizados no início da biblioteca, assim como a falta de atualização do acervo foram os principais fatores que contribuíram para o fechamento da Sociedade de Leitura, levando assim ao fim da história da biblioteca dos imigrantes/descendentes alemães da Colônia de Neu-Württemberg.

REFERÊNCIAS BARATIN, Marc; JACOB, Cristian (dir.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000. BATTLES, Mathew. A conturbada história das bibliotecas. Tradução. João Vergílio Gallerani Cuter. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003. FAUSEL, Erich. Cinqüentenário de Panambi 1899-1949. s.l.: s.ed., 1949. FAULHABERSTIFTUNG. Neu-Württemberg. Eine Siedlung Deutscher in Rio Grande do Sul/ Brasilien. Stuttgart (Alemanha): Ausland-und Heimat Verlags A.-G., 1933. HÖHLE, Nilsa: Nilsa Höhle: entrevista (abr. 2014). Entrevistadoras: Denise Verbes Schmitt e Temia Wehrmann. Panambi, 2014. Arquivo de gravador. Entrevista concedida para Trabalho final de Graduação. MAHP. Panambi: de colônia a município. Panambi: Editora Bühring Ltda, 2013

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MICHELS, Sérgio Ervino. A história ensinada na colônia particular de Neu- Württemberg sob a ótica do protestantismo, da germanidade e da educação. Dissertação [Mestrado]. Programa Pós-Graduação em Educação nas Ciências, UNIJUÍ. Ijuí, 2001. NEUMANN, Rosane Márcia. Uma Alemanha em miniatura: o projeto de imigração e colonização étnico particular da Colonizadora Meyer no noroeste do Rio Grande do Sul (1897-1932). Tese (doutorado) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas: PUCRS. Porto Alegre, 2009 ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Vol. 1. Porto Alegre: Globo, 1969.

A FICÇÃO QUE SE CONFESSA: ELEMENTOS AUTOBIOGRÁFICOS EM O FILHO ETERNO, DE CRISTOVÃO TEZZA Eduarda Vieira Martinelli* (UPF)

1. INTRODUÇÃO A autobiografia é um gênero que vem recebendo muita atenção no atual mercado editorial, ainda que a necessidade de auto-representação do ser humano seja muito antiga. Polêmicas à parte, principalmente vinculadas às biografias não autorizadas, sua história se inicia com o advento da burguesia, sendo o capitalismo agente de mudanças que articulam a individualidade do homem pela massificação da sociedade através do trabalho. Unido a isso, ecos do discurso da Igreja Católica, da danação através do pecado, conclamam ainda a redenção pela confissão. O ser humano, então, procura um meio de encontrar seu lugar num tempo de mudanças extremas, acabando por encontrá-lo no papel e na tinta. Contudo, devido à época em que ocorre o seu surgimento, a autobiografia é um privilégio somente daqueles que possuem o conhecimento da escrita, ou seja, aqueles que têm poder. Com o decorrer da história e com a possibilidade de a escolarização atingir um número maior de pessoas, a autobiografia não é mais uma regalia dos mais ricos, sendo foco de interesse das classes mais desprovidas e de cidadãos comuns da sociedade. Por esse motivo, muitas autobiografias são produzidas por pessoas desprovidas do senso estético e das funções da literatura, permitindo que a crítica generalize e negue o caráter literário do texto intimista. Este trabalho observa o gênero autobiográfico, fazendo um apanhado de suas características, além de um exame da história de sua criação e do interesse do homem em sua produção e consumo. Dois serão os principais teóricos da bibliografia estudada: Philippe Lejeune (2008) e Clara Rocha (1992). O primeiro dá as diretrizes para a constituição do gênero autobiográfico, enquanto os estudos de Rocha atualizam essas primeiras análises. Dessa maneira, foi escolhida a obra O filho eterno (2007), do autor Cristovão Tezza, como objeto de estudo. O trabalho reflete sob que parâmetros o livro poderia ser referido como ficção, quando apresenta uma ligação íntima com fatos da vida pessoal do autor. Embora o trabalho dialogue com esses dados da realidade atual, o estudo da literatura, em termos teóricos, se associa ao estudo da biografia quando ambos passam a se orientar como discursos de reminiscências, ficcionalizadas sempre, em maior ou menor grau, pela expressão do autor/enunciador. Assim, a presente pesquisa bibliográfica contribui aos estudos literários contemporâneos, colocando em questão as fronteiras ente o canônico e o periférico, entre o ficcional e o não ficcional, entre o literário e o não literário.

2. O(S) CONCEITO(S) DA AUTOBIOGRAFIA A autobiografia, como objeto de estudo, tem uma de suas principais abordagens no trabalho de Philipe Lejeune, Le pacte autobiographique, de 1975, que trata do gênero autobiográfico, procurando delinear contornos ao especificar diferenças sutis em sua abordagem e estrutura. Lejeune explica que a observação de textos variados a partir do lugar de um leitor contemporâneo, o levou *

Graduanda em Letras, Nível VIII, bolsista PROBIC/FAPERGS no Acervo Literário Josué Guimarães – ALJOG, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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a seguinte definição de autobiografia: “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (2008, p. 14). Contudo, é indispensável reconhecer que, de acordo com os estudos de Lejeune, o gênero autobiográfico só se confirma de acordo com as seguintes condições: forma da linguagem, assunto tratado, situação do autor e posição do narrador (LEJEUNE, 2008, p.14). Lejeune também afirma que, se uma obra não se encaixar, ao mesmo tempo, em todas as categorias citadas anteriormente, ela não poderá ser considerada uma autobiografia (2008, p.14). No entanto, essas categorias não são completamente rigorosas, possibilitando que algumas condições sejam apenas parcialmente preenchidas: “O texto deve ser principalmente uma narrativa [...]; a perspectiva, principalmente, retrospectiva [...]; o assunto deve ser principalmente a vida individual [...]” (LEJEUNE, 2008, p. 15). Na autobiografia, pressupõe-se que o autor, o narrador e a personalidade que é abordada na obra tenham a mesma identidade, portanto, mesmo quando uma personagem recebe um nome fictício, o leitor pode criar razões para aproximar sua história com a do autor (LEJEUNE, 2008, p. 2425). Contudo, acreditamos que o nome próprio possa ser declinado, não em função do “eu” que narra, mas em função de um outro, que partilha sua vida com o “eu” por trás da autobiografia. A identidade suposta pela autobiografia é marcada pelo uso da primeira pessoa, ou seja, a narrativa em que narrador, autor e personagem têm a mesma identidade. No entanto, podem haver narrações em que o uso da primeira pessoa é feito sem que o personagem principal e o narrador sejam a mesma pessoa, assim como pode acontecer o inverso: narrador e personagem podem corresponder à mesma pessoa, em uma obra em que a terceira pessoa é utilizada (LEJEUNE, 2008, p.16). No texto autobiográfico que faz uso da terceira pessoa, a ligação entre narrador e personagem já não é feita no texto – a partir da referência ao “eu” –, mas corresponde à ideia de que tanto o narrador, quanto o personagem são iguais ao autor, permitindo que se deduza que eles têm a mesma identidade, ainda que o narrador se mantenha implícito (LEJEUNE, 2008, p.16). O uso da terceira pessoa na produção de cunho autobiográfico acontece com o intuito de provocar efeitos diferentes – geralmente na visão do leitor sobre o autor. Afirma Lejeune que “falar de si na terceira pessoa pode implicar tanto um orgulho imenso [...] quanto uma certa forma de humildade [...] (2008, p.16-17)”. Assim, para que o pacto autobiográfico seja travado, a narrativa estabelece com o leitor três pactos diferentes: o pacto romanesco, o pacto referencial e o pacto zero. O pacto romanesco tem, de acordo com Lejeune, dois aspectos fundamentais: a não-identidade, ou seja, a falta de identificação entre autor e personagem; e o atestado de ficcionalidade que, na maioria das vezes, é o subtítulo “romance” na capa ou na folha de rosto do livro (2008, p. 27). Este pacto, então, se estabelece no momento em que a relação entre a identidade do autor e da personagem é inexistente, ao mesmo tempo em que se declara que a obra é uma ficção (LEJEUNE, 2008, p. 29). O pacto zero seria um contrato de leitura indeterminado, visto que o nome da personagem não é citado e o autor não firma nenhum pacto com o leitor em sua obra. Tais características permitem que a leitura seja feita da forma que se preferir (atribuindo ao texto o tipo de pacto que julgar “melhor”) e admitem, também, que se constatem ligações implícitas entre a identidade do autor/narrador/personagem (LEJEUNE, 2008, p. 29-30). Lejeune afirma que a autobiografia é um texto referencial, por fornecer informações sobre uma realidade fora do texto (2008, p.36). O objetivo dos textos referenciais é mais do que ser, apenas, verossimilhante: é reproduzir a imagem do real da forma mais verdadeira (LEJEUNE, 2008, p. 36). Sendo assim, a autobiografia estabelece com o leitor mais um pacto: o referencial, onde aquele que lê esperará encontrar no texto informações verídicas, correspondentes com a realidade (LEJEUNE, 2008, p. 36).

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O pacto autobiográfico e o pacto referencial são, assim, coexistentes e indissociáveis (LEJEUNE, 2008, p. 37). É necessário, porém, observar a relação entre autobiografia e romance a fim de perceber a criação do espaço autobiográfico: no momento em que críticos e autores desvalorizam a autobiografia e exaltam o romance, criam um paralelo entre eles, para delimitar a forma e o espaço onde se deve ler o gênero autobiográfico (LEJEUNE, 2008, p. 43). Lejeune afirma que a autobiografia seria, assim, tanto um modo de ler como um modo de escrever: “um efeito contratual historicamente variável” (2008, p. 46), que muda de acordo com as necessidades e interesses da sociedade na qual se localiza histórica e socialmente.

3. AS ESCRITAS DO EU E OS ESPELHOS DE NARCISO A autobiografia teve sua origem na Europa, espalhando-se, posteriormente, para o resto do ocidente (ROCHA, 1992, p. 14). O termo “autobiografia” foi cunhado pelo alemão Frederico Schlegel em 1789 e tornou-se comum nas demais línguas europeias a partir de 1800. Com o surgimento do termo, reconheceu-se o gênero, permitindo o futuro do sucesso da autobiografia (1992, p. 15). Entretanto, os gêneros autobiográficos apenas começam a atrair a atenção dos consumidores de livros, a partir do século XX, marcados “pela crença no indivíduo, pela atitude confessional e pelo objetivo de preservar um capital de vivências, recordações e fatos históricos” (REMÉDIOS, 1997, p. 9). Tal interesse se estabeleceu pois a literatura confessional trata sobre o eu: uma pessoa do mundo real, viva, despindo sua vida perante o leitor, aproximando-se, assim, dele. O homem, como objeto de seu próprio discurso, põe-se em evidência, centrando a literatura no sujeito, criando a literatura confessional ou intimista. Rocha estuda a obra de Béatrice Didier, voltada ao estudo do diário, para explicitar a dependência da criação dos escritos autobiográficos na tradição cristã, no individualismo romântico e no surgimento da sociedade capitalista, em uma tentativa de explcitar o interesse no gênero: [...] a constituição do diário enquanto género resulta da convergência, na era moderna, de três factores históricos: o cristianismo, o individualismo e o capitalismo. Do primeiro, o diário retém a atitude confessional, o desejo de purificação e absolvição, [...], o exame de consciência. Do segundo, a crença no indivíduo, o interesse pelo particular. E do terceiro, a sua forma de “balanço”, [...] visando preservar um capital de recordações, vivências, [...] (1992, p.16).

O homem da modernidade é considerado, ao mesmo tempo, um cidadão enquadrado nos padrões impostos pela sociedade, que lhe dá todas as possibilidades de sobrevivência, e um ser impossibilitado de encontrar uma figura ou um lugar com quem possa se identificar, restando-lhe, apenas, a consciência de sua individualidade (ROCHA, 1992, p. 19). A escrita seria, então, uma salvação do indivíduo, principalmente ao nos referirmos à produção de diários, que garantem a vivência e preservação da intimidade, em tempos de vida íntima tornada pública (ROCHA, 1992, p. 19). Clara Rocha apresenta em seu estudo uma série de teorias que diferem entre si, mas que são de grande interesse, visto que permitem uma reflexão sobre a produção e grande movimentação do gênero no mercado. Ela estuda essas teorias, a fim de produzir uma justificativa para a redação dos gêneros autobiográficos. Dentre alguns desses estudos, destacamos a seguinte passagem: “O dilema existencial do homem, que transcende tempo e lugar, consiste na necessidade de descobrir significação em uma vida que é finita, enquanto as aspirações e a imaginação humanas não o são” (MORGENTHAU; PERSON apud ROCHA, p. 18). Diz Rocha (1992, p. 26) que aquele que escreve sobre si mesmo vive dois tormentos: o primeiro é o fato de que a vida é incapaz de caber em um livro – tornando o escrito autobiográfico apenas uma cópia do real; e o segundo relaciona-se com a busca de identidade, a tentativa de entender sua própria complexidade como ser humano: “ao mesmo tempo que ambiciona a sua fundação através da

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escrita, o sujeito cada vez mais se reconhece como oscilante, dramático e em diálogo consigo mesmo e com outrem” (ROCHA, 1992, p. 27). O autor da autobiografia pode, de acordo com Rocha, ao escrevê-la: 1) ter a intenção de atingir as expectativas do leitor, narrando a intimidade de uma figura pública (no caso, ele mesmo); 2) corrigir ou desmentir informações ou opiniões erradas, das quais pode ter sido vítima; 3) revelar seu lado “bom” ou “ruim”, a despeito daquilo que pode ser pensado sobre ele; 4) tentar absolver-se de algo; 5) tornar sua autobiografia um testemunho, ao registrar um tempo específico; 6) recuperar o passado através da memória; 7) relatar a angústia pelo tempo já passado e o tempo que está por vir (1992, p. 33-34). Rocha afirma que Lejeune, em seu trabalho Moi Aussi, revisa seus conceitos e conclui que as barreiras a autobiografia e outros gêneros autobiográficos são bastante tênues: o autor atesta que a afirmação de uma identidade por parte do autor nem sempre assegura a veracidade dos fatos narrados, que nem sempre deve-se crer cegamente na subtitulação da obra, e que, não é sempre que uma história, por ser autobiográfica, reconstitui com fidelidade o decorrer de uma vida (1992, p. 37). Além da dificuldade de determinar os contornos da autobiografia, sua produção e recepção por parte do locutor e do interlocutor variou muito (e ainda varia), de acordo com as necessidades da época em que esse tipo de escrita se dá. O objetivo que sempre manterá seu lugar fixo, no momento em que se escreve ou se compra uma autobiografia, é o de encontrar-se, entender-se perante o mundo e como um ser pleno de consciência sobre a vida e sua finitude (ROCHA, 1992, p. 44). A autobiografia, então, se inicia e termina no eu, pois o indivíduo de quem se fala também é aquele que está falando (ROCHA, 1992, p. 45), podendo ser compreendida como uma recriação que funde memória com imaginação, experiência vivida com expectativa, fatos com desejos. Rocha relata que a literatura moderna registra a pluralidade do eu (ROCHA, 1992, p. 48), estudando, principalmente, a relação entre originalidade e alteridade, a fim de reconhecer que o “eu autobiográfico é um diálogo de várias instâncias” (ROCHA, 1992, p. 49, grifo do autor). Denotando, assim, que a personagem presente na autobiografia não seria, de forma nenhuma, a mesma pessoa que o narrador (ROCHA, 1992, p. 46). A fim de explicitar melhor o paradigma entre identidade e alteridade, Rocha compara a escrita autobiográfica com o mito de Narciso, demonstrando que a personagem é exatamente aquilo que o narrador/autor da autobiografia é: um misto de verdade e ilusão, realidade e mentira, pois o Narciso real apaixona-se por um reflexo de si mesmo. Narciso é, ao mesmo tempo, aquele que observa e que é observado, o sujeito que fala e o sujeito a quem se refere – que, transpostos à narrativa autobiográfica, se equivalem ao narrador e ao narrado (ROCHA, 1992, p. 50). O mito de Narciso demonstra dois motivos comuns às intenções autobiográficas: em um primeiro momento procura-se refletir a própria imagem, tal e qual a realidade; mas, não bastando isso, devido à falibilidade do homem e sua insegurança, em um segundo momento (concomitante ao primeiro), também procura criar uma imagem idealizada de si, fugindo da fixação causada pela ideia de eternidade do autor e de sua identidade, provocada pela escrita (ROCHA, 1992, p. 51).

4. A IMAGEM DO FILHO E O PAI ETERNIZADO A obra de Cristóvão Tezza O filho eterno, foi publicada no ano de 2007, recebendo, no mesmo período e durante os anos seguintes, uma quantidade significativa de importantes prêmios literários e reconhecimento. A história do personagem paterno, no livro, é notavelmente próxima da vida de Tezza, possibilitando que o leitor cogite a possibilidade de que, mesmo sendo narrado em terceira pessoa, o texto seja considerado autobiográfico. O livro trata de um momento único na vida da personagem: o nascimento de seu primeiro filho, portador da trissomia do cromossomo 21, também

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chamada síndrome de Down. O texto acompanha, de forma não-linear, tanto as aventuras da adolescência e juventude do pai do menino, quanto a trajetória de crescimento da criança, Felipe. A obra O filho eterno é categorizada por seu próprio autor como um romance brutalmente autobiográfico, termo que une perfeitamente as indagações feitas, até então, neste trabalho. O elemento “romance” nos remete ao pacto romanesco, proposto e estudado por Philippe Lejeune em seu livro O pacto autobiográfico. De acordo com ele, é necessária a afirmação e categorização da obra como romance ao reiterar-se seu gênero no subtítulo do livro ou na desassociação entre autor, narrador e personagem. Contudo, o subtítulo da narrativa não é “romance”, nem Tezza permite que vejamos essas três instâncias como pessoas distintas (apesar de tentar fazê-lo utilizando a terceira pessoa), pois constrói o texto com base em fatos ocorridos em sua própria história. O termo “autobiográfico” se refere a outro tipo de pacto, sugerido, também, por Lejeune em O pacto autobiográfico – e que nomeia o livro. O pacto autobiográfico necessita que exista identificação entre narrador, autor e personagem, no nível do texto – sendo a maneira mais fácil de explicitar essa ligação através da narração em primeira pessoa –, e que, inclusive, essa relação seja confirmada a partir do pacto referencial, o qual produz a conexão entre o escrito e a realidade. Dessa maneira, O filho eterno não poderia, também, ser considerado totalmente uma autobiografia, porque não cumpre este pacto. Reconhece-se, então, o pacto zero, que se firma com o leitor, permitindo que a leitura seja feita da forma que ele julgar mais apropriada. A correlação com os acontecimentos que ocorreram verdadeiramente na vida de Cristovão Tezza, mais a utilização da terceira pessoa ao narrar esses acontecimentos, constitui um espaço em que a narrativa pode ser compreendida tanto como real quanto como fictícia, de forma que o autor exerça um determinado distanciamento sobre aquilo a ser narrado. A terceira pessoa, em um romance baseado em fatos verdadeiros, cria uma espécie de proteção ao redor do autor, lhe dando o poder da dúvida. Ou seja, na obra de Tezza, o leitor pode crer – ­ ou não – que as informações e os sentimentos retratados pelo narrador-personagem correspondem à realidade, evitando que o autor possa ser julgado por aquilo que sentiu/viveu. No caso do texto em análise, o distanciamento entre o foco narrativo em 3ª pessoa e o eu que escreve, permite que se exerça um discurso fidedignamente sincero, sem meias palavras ou omissões constrangidas. O pai focalizado é humano, suscetível à erros, algo autocentrado, por vezes irônico quanto à própria condição, em uma circunstância que deixa claro que Tezza não tem nenhuma intenção de demonstrar-se especialista na síndrome que seu filho (e a personagem Felipe) porta, uma criança que “não lhe dará nada em troca” (TEZZA, 2011, p. 74). Desse modo, o distanciamento provocado pelo uso do pronome “ele”, ao narrar, admite que o autor transforme seu “eu” em um outro, diferente de si. No caso da obra, esse outro será alguém que se mostra mais imaturo, mais radical e (principalmente) mais orgulhoso que o “eu” atual (o autor real, vivendo no mundo real). O rapaz do livro, que será chamado no decorrer da análise de Tezza-personagem – pois não é nomeado durante a obra –, que acabou de tornar-se pai aos 28 anos, ao contrário de Tezza-escritor, não tem medo algum do possível julgamento de outrem. O protagonista expõe, no curso do livro, uma série de opiniões – tanto sobre o filho quanto sobre o mundo – que poderiam ser consideradas arrogantes e, mesmo na situação delicada apresentada com o nascimento de Felipe, cruéis, como no seguinte trecho, ao encontrar-se no quarto do hospital, sozinho com a mulher e o filho, logo após receber a notícia sobre a doença da criança: “[...] eu não preciso desse filho, ele chegou a pensar, e o pensamento como que foi deixando-o novamente em pé [...]. [...] como sempre, está sozinho” (TEZZA, 2011, p. 32). A demonstração tão crua do pensamento, justamente ao receber a dolorida notícia sobre o filho tão desejado, denota certo sentido de superioridade, mal disfarçado, talvez pela sensação de que ainda não é alguém posto no mundo, já que é um artista longe ainda do reconhecimento. Assim, na

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fala do pai, afirma-se que “o filho será a prova definitiva das minhas qualidades” (TEZZA, 2011, p. 14-15), como ponto de confirmação das próprias virtudes ainda não descobertas, seja como escritor, seja como pai e homem. Talvez possa ser dito que a fé no filho e na própria capacidade provém da inexperiência que a juventude de Tezza-personagem promove: existe a possibilidade de que se faça tudo e de que tudo ainda aconteça. Contudo, tais esperanças são, de início, travadas pelo nascimento desse filho “anormal” – o protagonista se relaciona com a ideia de “normalidade” de maneira dúbia: enquanto tenta afastar-se dela, dizendo que “[...] nunca foi exatamente um homem normal” (TEZZA, 2011, p. 40), deseja ser admirado e reconhecido pelos demais (TEZZA, 2011, p. 40). Tezza-personagem orgulha-se e reconhece-se como um ser marginal, à parte da sociedade e totalmente avesso àquilo que seria cobrado por ela. Vê-se, desde muito cedo, como escritor e, por isso, carrega esse estigma consigo, denotando-o a cada uma de suas escolhas: entra em uma companhia de teatro dirigida por alguém que considera seu “guru” (TEZZA, 2011, p. 177); contraria a mãe e alista-se à Marinha Brasileira, à sombra do exemplo do escritor Joseph Conrad (TEZZA, 2011, p. 120); nega-se a ingressar na faculdade de Letras, abrindo, primeiramente, uma relojoaria (TEZZA, 2011, p. 131) e, depois, vai para a Europa, estudar em Coimbra (TEZZA, 2011, p. 91). Após sua chegada em Portugal, estoura a Revolução dos Cravos (TEZZA, 2011, p. 110), que mantém a faculdade de Coimbra fechada durante algum tempo. A reabertura posterior da Universidade, contudo, não impede que a personagem decida retornar ao Brasil. Deixando de ser um “ladrão de sardinhas”, como nos tempos em que realizava pequenos furtos em mercearias portuguesas, permanece em solo brasileiro como sujeito à margem, um escritor, ainda alguém fora dos padrões da normalidade: “Um marginal: uma legítima vocação de marginal ” (TEZZA, 2011, p. 90). O orgulho, termo caro à autobiografia em terceira pessoa, desdobra-se no falar em si em outro foco para a associação da personagem como instância que transita entre literatura e marginalidade, visto que o escritor, um ser pensante – seria superior às demais criaturas racionais do mundo, reafirmando a “predestinação à marginalidade”: “Ele está em outra esfera da vida. Ele é um predestinado à literatura – alguém necessariamente superior, um ser para o qual as regras do jogo são outras. [...] Ele vive à margem: isso é tudo” (TEZZA, 2011, p. 10). No entanto, após o nascimento do primogênito, Felipe, o desejo que mais fortemente se manifesta na personagem é o de retorno à normalidade: em que ser desviado era uma escolha, em que não existia fardo tão pesado quanto um filho mongoloide, como ele próprio irônica e amargamente se refere. O pai tenta, então, encontrar diversos meios de escapar ao diagnóstico da doença do filho, apenas evitando a reponsabilidade inevitável. Contudo, ao deparar-se com a realidade, contenta-se com o projeto de estimulação precoce do filho: Insistentemente, repete, todos os dias, uma bateria de exercícios a fim de exercitar determinadas habilidades cognitivas e motoras do bebê, para torná-lo menos “diferente” (TEZZA, 2011, p. 63-64). A vergonha quanto à condição do filho enfatiza o desejo de pertencer à sociedade e ser reconhecido como parte dela: “A vergonha regula do catador de lixo ao presidente da República. É uma chave poderosa da vida cotidiana [...]”. (TEZZA, p. 44-45, 2011). O pai reproduz, então, esse desejo de inadequação no filho, esperando, que Felipe se “normalize”, se encaixe em ambientes que não o compreendem e, por vezes, não lhe querem. No entanto, o menino não partilha das preocupações do pai: em nenhum momento, ao longo da narrativa, demonstra querer encaixar-se aos padrões de nossa organização social. O filho vive em um mundo particular e evita o mundo externo – Felipe, já marginalizado por sua condição, ignora manter-se à margem, estabelecendo seu domínio, como o rei dos confins do apartamento da família (TEZZA, 2011, p. 184). Diferentemente do pai, desconhece a própria circunstância, da mesma forma como quaisquer outros limites, mesmo os do tempo finito da vida. Isolado e eterno, não traça linhas de ressentimento para um espaço particular de exclusão, como faz o pai: por sua escolha profissional, será sempre julgado e subestimado. Ele, escritor, a seu modo, porém, em sua anormalidade, também

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vive em um território exclusivo, onde ninguém poderá adentrar, pois existem universos únicos em seu íntimo (TEZZA, 2011, p. 100). As duas personagens – pai e filho – se aproximam, também, no papel do artista: além de escritor, o pai já tentou pintar (TEZZA, 2011, p. 195) e, seguindo os passos do progenitor, como um reflexo, Felipe também se interessa pelos pincéis (TEZZA, 2011, p. 196). Todavia, o garoto é mais bem-sucedido nessa empreitada que o homem, desenvolvendo estilo próprio, sendo reconhecido e vendendo suas obras (TEZZA, 2011, p. 211-212). Temos, assim, essas duas criaturas que, com intenção de reproduzir sua visão de mundo, fazem arte. No entanto, o menino não tem esse desejo conscientemente – quando pinta, de sua maneira, ele não tenciona demonstrar uma apreensão pessoal da realidade, ele simplesmente o faz. Pintar quadros, assim como desenhar, ou assistir desenhos japoneses e futebol na televisão é um passatempo (TEZZA, 2011, p. 195). Clara Rocha estuda Morgenthau e Person, que revelam, em um artigo sobre as raízes do narcisismo na sociedade, que o grande o problema do homem é ser uma criatura finita, enquanto sua imaginação e desejos não o são. A sutileza desse dilema, no entanto, varia de acordo com o tempo e o lugar e, no caso de Felipe, com a situação também, já que em jogo se encontra a necessidade de ocupar lugar e sentido no universo, que pode ser mínima ou máxima (MORGENTHAU; PERSON apud ROCHA, p. 18-19, 1992). Felipe, por ser portador de uma síndrome que não lhe permite ultrapassar determinado patamar intelectual, vive somente no agora: “A criança ainda não tem [...] noção de ‘ontem‘, ‘hoje’ ou ‘amanhã’ – a vida é um presente perpétuo irredimível, [...]” (TEZZA, 2011, p. 149). Sendo para-sempre-criança, tem, atrás da proteção do pai e da rotina, a certeza sobre a qual Morgenthau e Person se referem: preenche seu lugar específico dentro de um mundo particular, organizado e repleto de significado. Sendo assim, o menino não carrega a necessidade de deixar gravado na história o testemunho de si e do seu tempo, pois não tem a abstração da morte: Felipe é automaticamente eterno pois não se preocupa com a eternidade. O contrário do pai que, pelo desejo de ser visto e reconhecido, procura deixar seu depoimento – sobre a sua história e a de sua geração – por intermédio da literatura. Escrever tornaria o pai eterno. Assim, como o reconhecimento do escritor não vem, de fato, até muito tarde, a personagem, a certa altura da vida, cria mecanismos que permitem a proteção de seu filho, sua subsistência: “eu tenho que viver mais que meu filho, ele sonha, para jamais deixá-lo sozinho: só eu o conheço, ele se diz, sem perceber, inocente, a estupidez de suas palavras” (TEZZA, 2011, p. 201). O pai abdica, então, – por um tempo – da literatura, tornando-se mais uma engrenagem do sistema, um “funcionário do Estado” (TEZZA, 2011, p. 142). Dessa maneira, unindo e transpondo a narrativa ao mundo real, é depois de muita batalha e amadurecimento que narrador, imagem representada e projetada de Tezza, ao ver o filho, também se olha. Afinal, no exato momento que Felipe nasce, também vem ao mundo um novo ser: um pai. A partir do enredo no livro, assiste-se o crescimento pessoal de Tezza: que abre mão de determinadas teimosias para que sua família e seus filhos tenham condições de, também, crescer, além de livrar-se do egoísmo ainda juvenil, que não admitia os defeitos do filho tão idealizado. Presencia-se, além disso, o aprimoramento artístico do pai que, somente depois de compreender todas as experiências vividas com Felipe, escreve sua grande obra – sobre o eterno filho. Os papéis de pai e de filho, então, se confundem, pois, o garoto, considerado incapaz, ensina àquele que “às vezes as coisas coincidem com a ideia que fazemos delas; às vezes, não” (TEZZA, 2011, p. 14). Conhecendo, então, um pouco mais a si mesmo, o pai descobre, com a ajuda de Felipe, aquilo que existe de mais eterno e que mais se perpetua nas relações humanas: o amor.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A autobiografia, apesar de grande interesse do público, dos escritores e da crítica – devido a polêmica a que remete e a função de expor a vida íntima de, muitas vezes, uma personalidade conhecida – apresenta-se como um gênero complexo. As seções de biografias e autobiografias das livrarias de qualquer cidade, sejam elas pequenas ou grandes, sempre serão frequentadas por uma gama variada de leitores, ávidos pela descoberta de algum segredo obscuro da celebridade do momento ou do ex-presidente do país. O que não se percebe, especialmente como leitor e consumidor do gênero em questão, é que somos completamente dependentes da escrita autobiográfica. Estamos exercendo a capacidade de produzir um texto desse cunho no momento em que se redige uma redação sobre a própria vida em uma entrevista de emprego; ao preencher, em poucos caracteres, a seção “about me”, em redes sociais mais compactas, como o Twitter e o Instagram. A complexidade do gênero acaba por constituir-se assim: no mesmo momento em que um adolescente preenche seu perfil em uma rede social, produzindo um parágrafo sobre sua existência, um escritor renomado, com anos de experiência e com plena capacidade de exercer a linguagem literária, também faz um balanço de sua história pessoal. Queremos dizer, nesse sentido, que o enfoque dos estudos autobiográficos deve ser sobre a capacidade do gênero, especialmente no âmbito literário, de fundir a realidade e a imaginação de maneira a criar um espaço de livre expressão do autor, onde ele poderá exercer o que já chamamos de crueldade narrativa, expondo seus pensamentos e sentimentos sem receio de qualquer julgamento. Assim, considerando o presente estudo das características do gênero autobiográfico através da obra O pacto autobiográfico de Philippe Lejeune, tentando aplicá-las ao livro O filho eterno, de Cristovão Tezza, além da observação das teorias de Clara Rocha, pode-se constatar a hibridização das escritas literárias. A literatura, por si só, estabelece-se, sempre, num âmbito que lhe permite a mobilidade. A função do escritor, ao criar, não é seguir um padrão fixo já instituído por aqueles que vieram anteriormente a ele. Existe a possibilidade e, mais do que nunca, nos tempos fluidos em que vivemos, a necessidade, de novas configurações ao texto literário. Nos processos que permitem ao leitor contemporâneo uma identificação, os desvios da norma são formas de abordagem, maneiras distintas de ver e de se ver. O filho eterno, literatura e verdade, ficção e realidade, é um desvio pleno de sentidos. Sendo assim, pode-se concluir, após a observação das teorias literárias referentes a autobiografia, juntamente com a análise do livro O filho eterno, que a ficção não pode ser excluída de obras ditas autobiográficas, da mesma maneira que a referência com a realidade não pode ser eliminada das obras ficcionais. Ou seja, nenhum uma obra, seja ela categorizada como “autobiografia” ou como “romance”, está livre de basear-se na vida real ou ficcionalizar fatos verdadeiros. Pode-se afirmar, portanto, que o gênero autobiográfico é literário, sim, visto que a linguagem é manipulada com o intuito de tornar determinadas situações da vida do autor mais atraentes, esconder momentos, convencer o leitor, entre outras intenções possíveis de se estabelecerem através do uso desse tipo de linguagem. Após todos os estudos referentes às teorias do gênero autobiográfico e a verificação positiva de sua existência na obra de Tezza, é possível atingir um nível de análise mais subjetiva do texto. Mantendo em mente a relação autor-narrador-personagem e lembrando que a voz atual do autor se mistura com o discurso da personagem, pode-se aproximar o pai do filho, numa abordagem que ultrapassa as relações familiares e conecta suas personalidades. Tezza e Felipe carregam sua principal disparidade, mas também sua semelhança mais evidente, em um conceito muito valorizado na organização social: a normalidade. O rapaz e o pai são, de maneira mais óbvia, afastados por ela devido a doença de Felipe, empecilho para sua absorção

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na sociedade. Tezza, totalmente capaz e sob controle de suas habilidades motoras e cognitivas, é uma “pessoa normal”. Contudo, se observado mais profundamente, descartando o paralelo entre sua saúde e a do filho, Tezza é, como já dito no capítulo de análise, “marginal” aos esquemas sociais, “anormal” perante as expectativas da sociedade, especialmente ao manter como seu principal interesse a literatura. O papel da literatura é, por si só, causar o desconforto por via do pensamento. Assim, ela é absolutamente desconsiderada e descartada, dando, inclusive, uma conotação vulgar para seus apreciadores. Tezza, produtor e apreciador dessa arte, não pertence aos meios formais da sociedade pois procura se expressar por meio da escrita. Nesse ponto, pai e filho podem se aproximar pela visão da arte: Felipe também expressa suas visões, no seu caso, através da pintura. Conclui-se, assim, que apesar das grandes diferenças entre pai e filho, a necessidade de expressar-se e a “anormalidade” trazida pela tendência artística são fundamentais para a aproximação das duas personagens, além de eternizar a existência real de dois seres humanos através da própria obra de arte: um livro.

REFERÊNCIAS LEJEUNE, P. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Organização: Jovita Maria Gerheim Noronha. Tradução de Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. 402 p. REMÉDIOS, M. L. Literatura confessional: espaço autobiográfico. In: _____. (Org.). Literatura confessional – autobiografia e ficcionalidade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997. p. 7-15. Coimbra: 1992. p. 9-56. ROCHA, Clara. Máscaras de Narciso: Estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal. Coimbra: 1992. p. 9-56. TEZZA, C. O filho eterno. 11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2011. 222 p.

PATRIMÔNIO HISTÓRICO E REGIMES DE HISTORICIDADE: PENSANDO PASSO FUNDO Eduardo Roberto Jordão Knack* (PUCRS)

Diferentes autores indicam que a palavra patrimônio assumiu uma força impressionante nas sociedades ocidentais, adquirindo, cada vez mais no transcorrer do século XX, uma conotação positiva. Exemplo disso é profusão de “patrimônios” nas décadas de 1970-1980 (POULOT, 2009). Para Choay (2006, p.11) a expressão patrimônio “se ampliou a dimensões planetárias” e Gonçalves (2003) chama atenção para a recorrência do uso dessa palavra em nosso cotidiano. Fala-se em patrimônio histórico, cultural, etnológico, ambiental, genético, financeiro, político, material e imaterial, entre tantos outros, como também são reconhecidos em nível local (cidades, vilas, famílias), regional (estados, províncias, regiões abrangentes, como pantanal, pampa, planalto) nacional (países) e da humanidade (bens com reconhecimento de órgãos dedicados a preservação e proteção do patrimônio com atuação em âmbito internacional). São diferentes tipologias em diferentes escalas. Candau (2010, p.43) menciona uma “compulsão memorial”, manifestada na obsessão por comemorações, aniversários, genealogias, sucesso das biografias, interesse generalizado pelas “raízes” do passado, entre outras “formas ritualizadas de reminiscências”. A busca pela preservação e divulgação do patrimônio é uma dessas formas que se insere nessa compulsão pela memória. Mais que uma palavra, para Gonçalves (2003) o patrimônio pode ser entendido como uma categoria de pensamento importante. Nas sociedades ocidentais modernas, essa categoria aparece com delimitações precisas que estão relacionadas à valorização, à qualificações próprias da contemporaneidade. A recente conotação exacerbadamente positiva que essa palavra (essa categoria) recebeu, impõem certas dificuldades e problemas para os pesquisadores desse tema. É importante evitar tentações memorialísticas e comemoracionismos. Os historiadores e demais profissionais que se dedicam aos estudos da memória e do patrimônio não devem se deixar levar por ondas de comemorações. É necessário ao pesquisador adotar um olhar crítico para formular problemas, questões relativas aos processos de patrimonialização e não promover ufanismos desmedidos. Estudar a memória, seus usos e as práticas que envolvem os bens patrimoniais, ou mesmo o funcionamento do patrimônio como categoria de pensamento em determinado contexto, exige do historiador um rigor crítico, uma base teórica e uma pesquisa documental, e não celebrações, enaltecimentos, como ocorre com outros grupos sociais. No presente trabalho, o foco do estudo são os processos de patrimonialização que ocorreram em Passo Fundo entre o início de 1990 até o presente momento. Pensar essa questão envolve esclarecer quem escolhe, como e por quê determinado bem se torna patrimônio. A pesquisa incide sobre os princípios que orientaram a seleção dos lugares, acontecimentos e/ou sujeitos que passam a ser considerados patrimônio por um determinado grupo em um contexto histórico específico. A seleção desses elementos (lugares, acontecimentos, sujeitos) é inerente ao trabalho do historiador e a constituição da própria memória (POLLAK, 1992). Isso não significa defender que história e memória fazem parte de uma mesma operação. História e memória são formas distintas de estabelecer filiações, de se relacionar com o passado, mas em determinadas situações, como a patrimonialização de um bem cultural, por exemplo, suas diferenças podem ser reduzidas flexibilizando suas fronteiras.

Doutorando em História pela PUCRS, bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

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Nesse sentido, o patrimônio pode elucidar elaborações eruditas da própria história, formas de compreender, se situar e perceber a passagem do tempo. O patrimônio é, portanto, um indício do “regime de historicidade” (HARTOG, 2013) que marca uma sociedade em um determinado contexto histórico. Cabe esclarecer o que é um regime de historicidade: Entendo essa noção como uma formulação erudita da experiência do tempo que, em troca, modela nossa forma de dizer e viver nosso próprio tempo. Um regime de historicidade abre e circunscreve um espaço de trabalho e de pensamento. Ele dá ritmo à escrita do tempo, representa uma “ordem” à qual podemos aderir ou, ao contrário (e mais frequentemente), da qual queremos escapar, procurando elaborar outra. (HARTOG, 1996, p.129).

O patrimônio, especialmente aquele ao qual é atribuído o valor de “histórico”, é uma expressão de como uma comunidade elabora sua experiência temporal, “engrena” as categorias temporais. “Conforme domine a categoria do passado, do futuro ou do presente, a ordem do tempo resultante não será evidentemente a mesma” (HARTOG, 2013, p.13). A seleção inicial do que será patrimonializado já remete a uma certa compreensão da história por parte dos sujeitos envolvidos no processo. É a partir de um regime de historicidade que determinado valor é atribuído a um bem que se torna patrimônio. Esse valor histórico não é o mesmo, pois a compreensão, a consciência de uma comunidade sobre o tempo e no tempo se altera, alterando aquilo que entende como significativo, como relevante para se tornar patrimônio histórico. É justamente o ato de atribuir valor ao patrimônio que o torna diferente, que orienta sua seleção entre um conjunto de possibilidades para se tornar “histórico” para uma cidade, região ou país, pois “o sentido e a importância dos monumentos não cabem às próprias obras em virtude da sua determinação originária, mas somos nós, modernos, quem lhos atribui.” (RIEGL, 2013, p.14). Esses “valores” atribuídos ao patrimônio são feitos a partir de um quadro de referências (políticas, econômicas, culturais) vinculado aos regimes de historicidade. Quando o valor é atribuído, determinado bem é deslocado de sua circulação social habitual, passa a atrair outro tipo de atenção – memórias, projetos, ações culturais, entre outros. Passa a fazer parte do universo de referências identitárias de uma comunidade. Riegl (2013) elabora um importante estudo sobre o valor dos monumentos no início do século XX, onde estabelece alguns tipos de “valorização” que marcavam aquele contexto. Para esse autor, no “culto moderno dos monumentos” existente nas primeiras décadas do século passado poderiam ser identificados três tipos de “valor de memória”: o valor de antiguidade, o valor histórico e o valor de memória intencional. “O valor de antiguidade de um monumento trai-se à primeira vista pelo aspecto não moderno.” (RIEGL, 2013, p.27). A percepção de um monumento, de uma edificação antiga alcança grande parte da população. A valorização das edificações antigas em oposição ao presente, assentada no valor da dissolução, da passagem do tempo, está vinculada à uma valorização do passado como “busca das raízes” de um povo. Assim, quanto mais distante alcançam as raízes, mais forte é o elo de um povo com sua história. Também exerce forte influência a admiração pelas forças da natureza, que podem alterar os destinos dos homens em questão de segundos. As ruínas oferecem o exemplo mais claro dessa atribuição de valor. Ligadas à nostalgia, ao apego pelo passado, carregam a marca de uma “autenticidade histórica” que afetou à Europa nos séculos XVIII-XIX, mas que perdeu força no transcorrer do século XX por “não ter lugar na cultura de mercadorias e memórias do capitalismo avançado.” (HUYSSEN, 2014, p.96). Perderam lugar nessa sociedade uma vez que constantes transformações, modernizações urbanas levaram a fluxos de especulação imobiliária que sobrevalorizaram espaços, impedindo a coexistência de centros urbanos com antigas ruínas, com exceção no caso de cidades que estabelecem o turismo como uma lucrativa fonte de renda. Nesses casos específicos, edificações arruinadas sobrevivem, mas perdem seu encanto nostálgico que os defensores da preservação das ruínas como monumentos do início do século XX identificados por Riegl observavam. Esses defensores do valor

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de antiguidade concebiam “no monumento um pedaço de sua própria vida” (RIEGL, 2013, p.30), presavam por uma intervenção mínima, apenas para manter as edificações, preservando as marcas da passagem do tempo, da ação da natureza ou mesmo de forças destrutivas desencadeadas pelos próprios homens. Os defensores do valor histórico priorizavam a capacidade que os monumentos tinham de informar sobre o passado. “O valor histórico é tanto mais elevado quanto mais claro for o grau em que se revela o estado coeso, original, que o monumento possuía imediatamente ao ser produzido.” (RIEGL, 2013, p.34). Diverge do valor de antiguidade, pois não procura uma valorização do antigo apenas por meio de um olhar estético, que busca uma contraposição com o presente ou “enterrar” uma identidade cada vez mais fundo no passado. Ao priorizar um valor documental, informativo, visa preservar para que os historiadores, antropólogos, arqueólogos, entre outros profissionais, elucidem lacunas da história. Embora com essa diferença, o valor histórico também prioriza um respeito pela matéria original, mas não por uma admiração, e sim para evitar falseamentos ou deturpação de antigas construções. O valor de memória intencional é a expressão da incessante busca por memória que marcou as sociedades ocidentais durante o século XX. Seus defensores eram empenhados em “fazer que, em certa medida, um monumento nunca se torne passado” buscando “mantê-lo sempre presente e vivo na consciência dos vindouros.” (RIEGL, 2013, p.42). Essa terceira tipologia de valor se diferencia dos outros dois mencionados ao empreender um verdadeiro trabalho de enquadramento da memória (POLLAK, 1992, p.206), um investimento memorialístico que necessita uma constante revitalização para não ser esquecido. Todas as forças que atuam na dissolução de um monumento devem ser combatidas. A restauração passa a ser a arma fundamental para esse valor. Vários postulados basilares do restauro que estavam em voga no final do século XIX eram ligados a ideias que “floresceram sobretudo a partir do Renascimento, amadureceram gradualmente no período que se estende dos séculos XV ao XVIII, e foram conjugadas no estabelecimento das teorias de restauração.” (KÜHL, 2002, p.15). Entre estas: respeito pela origem, defesa da reversibilidade, documentação e metodologia para o restauro, mínima intervenção e “ruptura entre passado e presente” (KÜHL, 2002, p.16). No século XVIII o conhecimento histórico passa a ser compreendido como essencial e no XIX, a partir de ampla discussão teórica, experiências de inventários e intervenções que já vinham sendo realizadas sobre diferentes monumentos, a restauração se consolida como pratica de preservação. Kühl (2002) indica diferentes vertentes de restauradores - aqueles que defendiam uma intervenção maior, buscando unidade de estilo, mesmo que para isso traços e intervenções anteriores fossem perdidas (corrente cujo expoente é Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc); outra defendia um grande respeito pela origem, respeitando as marcas do tempo e com comedidas intervenções (encabeçada por John Ruskin e William Morris). Destaca Camillo Boito como reformulador dessas concepções, que enuncia alguns postulados centrais para a restauração no final do século XIX, como a importância de reunir e estudar uma documentação relativa ao monumento em questão, evitar a perda de elementos característicos, respeito às fases dos monumentos, reconhecimento da fotografia como importante instrumento para registro do trabalho, erguer lápides com inscrições apontando as datas das intervenções e sua natureza. Cabe destacar que tanto um regime de historicidade como esses tipos de valores mencionados acima devem ser compreendidos como tipos ideais, como um instrumento de análise, e dificilmente são encontrados em sua forma pura nos discursos e práticas de patrimonialização. Bem como podem conviver, interagir e cruzar com diferentes valores e diferentes ordens temporais. É importante notar que esses valores estão articulados à regimes de historicidade presentes nas sociedades ocidentais entre o século XIX e XX. Mesmo as divergências entre as correntes de restauração, que exerceram impacto na elaboração de políticas de preservação do patrimônio, são indícios de elabo-

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rações eruditas sobre o passado, vinculadas à atribuição de valores aos monumentos. As iniciativas voltadas para a preservação do patrimônio em Passo Fundo também estão vinculadas a diferentes percepções sobre e valorização dos bens culturais e da história. A atribuição de valor aos bens que foram patrimonializados em Passo Fundo entre 1990 e 2000 pode ser compreendida por uma confluência entre os valores históricos e de memória intencional. Porém, a concepção de história que baseou as justificativas nos projetos de tombamento está associada ao contexto de intensas transformações urbanas que o município enfrentou a partir da segunda década do século XX. Na dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo, Modernização do Espaço Urbano e Patrimônio Histórico: Passo Fundo, RS (2007), no capítulo 3, foram analisados sete projetos de lei para o tombamento de edificações (um dos projetos compreendia três edifícios) entre 1990 e início da década de 2000.1 Foi possível concluir que as justificativas para o tombamento desses bens não partiram de um projeto articulado do poder público ou de grupos da sociedade civil. Embora houvesse a atuação de algumas entidades, que demonstravam interesse ao executivo e ao legislativo na preservação de edificações consideradas históricas, os projetos de lei que tramitaram nas comissões da Câmara partiram de iniciativas isoladas de alguns vereadores. A atribuição de valor, seguindo a definição de Riegl, pode ser caracterizada como um valor histórico, de forma geral. Cabe mencionar que a concepção de história presente nas justificativas para esses projetos estava alicerçada em historiadores locais, que encontra raiz nas concepções de Francisco Antonino Xavier e Oliveira – uma noção de história não acadêmica, baseada no valor de uma história política/econômica que acabou excluindo determinados grupos de suas páginas. Alguns desses bens chamaram a atenção da comunidade simplesmente por serem antigos, o que mostraria a reminiscência de um valor de antiguidade, de busca das raízes do povoado. O valor de memória intencional pode ser identificado na medida em que projetos conscientes de preservação foram concretizados, mas com ressalvas, pois essas edificações enfrentaram um descaso por parte do poder público durante anos, mesmo depois de tombadas, dessa forma é possível apontar a falta de interesse em revitalizar a memória histórica que justificou sua patrimonialização, deixando lacunas na valorização típica da memória intencional. Mas eis o problema que moveu a pesquisa: essas edificações remetiam a experiências próprias das elites em busca da afirmação da cidade como um centro regional. Nesse sentido foram tombadas edificações relacionadas a atividades políticas do município e ao desenvolvimento econômico. Edifícios e espaços que remetiam a experiências de outros grupos foram abandonados e acabaram sucumbindo a intensa especulação imobiliária que ainda está presente, influenciando o desenvolvimento urbano local. Desde a década de 1950, lideranças políticas dedicaram-se a afirmar a cidade como uma capital da região norte do estado. Entre os símbolos desse imaginário a verticalização urbana se destacou como sinal de crescimento, prosperidade e ordem da cidade, em conjunto com o possível desenvolvimento industrial, especialmente da agroindústria. A busca por esse ideal de se tornar a capital do planalto (expressão que aparece em uma série de documentos analisados, como imprensa, propagandas políticas, relatórios municipais, planos de desenvolvimento urbano, entre outros2) levou a um processo de remodelação urbana, caracterizando Entre os processos que tramitaram na Câmara de Vereadores para aprovação do tombamento analisados encontram-se os seguintes bens: Banco da província (hoje Banco Itaú), Cervejaria Brahma (hoje Faculdades Anhanguera), Estação Férrea da Gare (hoje funcionam estabelecimentos públicos e Feira do Pequeno Produtor), Banco Popular/Casa Gabriel Bastos (hoje demolida), Igreja Metodista (ainda em funcionamento), Prédio do Instituo Educacional (ainda em funcionamento), e os prédios da Intendência Municipal (hoje Museu Histórico Regional e Museu de Artes Visuais Ruth Schneider), da Câmara de Vereadores (hoje Teatro Municipal Múcio de Castro) e do Clube Político Pinheiro Machado (hoje Academia Passo-Fundense de Letras). Também foi analisado o Projeto de Restauração do Clube Visconde do Rio Branco, cedido por Maria de Lourdes Isaias, integrante de movimentos em prol da cultura de afrodescendentes, observando que não houve interesse e/ou disponibilidade por parte dos poderes executivo e legislativo em executar o projeto, que cedia a edificação onde funcionou o referido clube (uma associação de mútuo socorro de descendentes de escravos libertos do início do século XX). Para maiores informações consultar Knack (2007) e artigo publicado em uma revista especializada: Knack (2013). 2 Ver Knack (2007) e Knack (2012). 1

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o centro por edificações verticalizadas, confluindo e assentando as principais atividades financeiras e comerciais de Passo Fundo no espaço ao redor da praça Marechal Floriano, levando a valorização imobiliária daquele zona e seu entorno. Esse processo foi acompanhando por propostas de modernização, embelezamento de praças, adequação de ruas, da avenida principal e de infra-estrutura. No final dos anos 1980, boa parte de edificações mais antigas havia desaparecido (o próprio Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano recomendava a remoção de habitações consideradas pobres ou insalubres de parte daquela área), restando apenas exemplares ligados a esfera pública, atividades econômicas ainda em funcionamento, ou casas de moradores que tinham poder econômico suficiente para resistir a especulação imobiliária. Assim, a busca pela afirmação de um imaginário, entre outros elementos, causou a demolição de parte das antigas edificações daquela área, o que limitou a possibilidade de escolha dos vereadores responsáveis pelo tombamento daqueles bens entre 1990 e 2000. E a verticalização não deixou de ser uma representação de poder econômico, com valor imobiliário real, o que impediu a preservação de outros bens e desviou atenção da conservação de muitos prédios históricos, que continuavam não condizendo com uma cidade moderna e urbanizada - uma capital do planalto. Dessa forma, ocorrem encontros e desencontros entre o valor atribuído aos bens tombados nesse período e um regime de historicidade presentista. As experiências relacionadas à modernização da cidade são um indício de uma percepção temporal que prioriza o presente. Antes de 1980-90, as visões de futuro imperavam, onde uma Passo Fundo industrializada e urbanizada era esperada. A partir do início de 1990 os efeitos, positivos e negativos dessa busca começam a aparecer, e o presente passa a ter um peso maior, seja para resolver problemas gerados nesse caminho (como a derrubada de parte da história arquitetônica), ou para afirmar atividades lucrativas como a especulação imobiliária. Nesse contexto, o valor de memória intencional não encontrou espaço nos projetos do poder público. O que pressionou os vereadores no contexto 1990-2000 foi a emergência de “não lugares”, característicos de uma cidade que vinha sofrendo acelerado processo de urbanização. A expressão de Augé (2012) define a situação de pressão que impulsionou os projetos de patrimonialização em Passo Fundo. O aumento no trânsito, o consumo de automóveis, por exemplo, levou a “alterações urbanas implementadas para viabilizar o sempre crescente fluxo de veículos, pela reconfiguração de bairros que se especializaram” (CARVALHO, 2007, p.423) nesse ramo, como o Boqueirão. Também foram nessas décadas que apareceram as primeiras galerias comerciais, shopping centers, grandes garagens de estacionamento, além da intensa verticalização que mudou a fisionomia da cidade. Como Koolhaas (2010, p.31-32) bem coloca: “[...] o facto do crescimento humano ser exponencial implica que o passado se tornará em dado momento demasiado “pequeno” para ser habitado e partilhado por aqueles que estão vivos”. A história, materializada na arquitetura, corre perigo com o crescimento populacional. O desaparecimento da história materializada na arquitetura marcou essa primeira fase de patrimonialização de edificações em Passo Fundo. Vinculada a um regime de historicidade de aceleração, onde forças políticas entendiam que ideias de progresso caracterizavam o presente, sem se importar com consequências futuras, ou mesmo com o passado da cidade, surgiram os tombamentos da década de 1990. A partir de 2002, iniciativas promovidas pela Universidade de Passo Fundo, articuladas como o poder público, começam a efetivar debates, discussões e projetos sobre patrimônio, educação patrimonial e políticas públicas, marcando uma segunda fase no processo de patrimonialização dos bens no município. Embora ainda ligada à necessidade gerada pela acelerada transformação urbana, essa fase marca a articulação de pesquisadores de diferentes áreas (história, arquitetura, artes, jornalismo, entre outras) e poderes executivo e legislativo. Em 2002, Wickert (2002) chamava atenção para o problema da poluição visual, destacando que “o que chama atenção é o descaso com que este patrimônio está sendo tratado atualmente”, afirmando que não existia uma conscientização sobre o “valor de memória” desses bens na cidade.

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Isso porque a memória coletiva que marca especialmente o poder político deve ser compreendida à luz do imaginário de capital do planalto, que está articulado com um regime de historicidade de aceleração, modernização e de ideias de progresso. Mas é importante notar a percepção da arquiteta (atual Secretária do Planejamento) sobre o problema. Reunindo referencial teórico próprio da arquitetura, voltada para restauração, Wickert (2007, p.390) descrevia o contexto em que Passo Fundo se encontrava, com poucas edificações restando para preservação, afirmando que em pleno “século XXI, mutilada pela perda irreparável de dezenas de edificações históricas e conjuntos urbanos”, eram necessários esforços para elaboração de instrumentos de preservação. Carvalho também destacava a derrubada de bens que poderiam integrar o patrimônio municipal, como em artigo publicado em O Nacional (CARVALHO, 2006): “foi anunciada a demolição do Cine Teatro Pampa que por muitas décadas foi um ponto de encontros entre amigos, namorados e até inimigos.” Em outro artigo, Carvalho (2007, p.415) indica a existência de ideias de progresso que orientaram o desenvolvimento do município desde seu centenário em 1957. Kramer e Waihrich (2007, p.9) elaboram um inventário da arquitetura de Passo Fundo entendo o patrimônio “como fundamental para os futuros projetos a serem realizados” por pesquisadores ligados ao curso de Arquitetura da UPF e demais interessados. Nesse inventário foram destacados edifícios “reconhecidos pela comunidade como de importância histórica, social e arquitetônica”, com uma metodologia de trabalho inspirada pelo IPHAN. Também é importante citar o projeto televisivo Momento Patrimônio, de 2011 (mas que ainda segue atuando) desenvolvido inicialmente a partir de uma articulação entre integrantes (professores, alunos e técnicos) dos cursos de História, do Museu Histórico Regional, do curso de Jornalismo e da UPFTV. Segundo Machado (2012, p.10): “o projeto constitui-se em planejar, organizar e apresentar programas de rádio e TV mensais para discutir e divulgar temas de Patrimônio Histórico, Cultural e ambiental, e propor políticas de reconhecimento, restauração e tombamento de patrimônios”, executando programas que envolveram a participação de pesquisadores e lideranças políticas da comunidade. Essa fase marca a consolidação de um momento de reflexão em torno da questão do patrimônio histórico, articulando diferentes grupos, ligados a universidade, instituições culturais e poder político. O valor histórico continuou marcante na emergência de novos bens que entraram para o conjunto de bens patrimoniais do município, ainda em virtude do processo de urbanização ocorrido a partir de 1950. Mas nesse momento aparece, a partir das iniciativas, projetos e debates, a necessidade de estabelecer instrumentos efetivos para a preservação, como inventários, restauração, políticas públicas consistentes. Ocorre uma especialização no valor histórico, afirmando um discurso acadêmico sobre o tema. O valor da memória intencional, ou melhor, a busca pela afirmação de uma memória para a cidade é estabelecida a partir de projetos e discussões que passam a se repetir com frequência entre diferentes setores, levando a um maior cuidado com bens já patrimonializados, e chamando atenção para edificações que corriam o risco de tombar literalmente. Portanto, é possível concluir que o processo de patrimonialização dos bens que passam a integrar o conjunto do patrimônio oficial de Passo Fundo foi impulsionado pela necessidade de preservação frente a derrubada da história materializada na arquitetura, em dois momentos que, embora articulados pela força de um mesmo regime de historicidade, proporcionou mudanças na percepção sobre o que valorizar historicamente.

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OS MAIAS: ALGUMAS PERSONAGENS FEMININAS Elisabeth Weiss* (UniRitter)

1. INTRODUÇÃO “Que desgraça ser mulher. Entretanto, a pior desgraça quando se é mulher é, no fundo, não compreender que sê-lo é uma desgraça.” (Soren Kierkegaard)

Ao longo da história vimos o papel da mulher ficar marcado e restrito às funções de mãe, esposa e dona de casa e ao homem estava destinado o exercício de uma profissão. O poder de decisão era exclusividade masculina. Com a Revolução Industrial, no século XIX, muitas mulheres passaram a exercer atividade fora de casa, embora recebendo valores inferiores à remuneração oferecida aos homens. O aparecimento do feminismo está associado às contradições que permeavam a sociedade liberal da época, onde as leis em vigor formalizavam juridicamente as diferenças entre os sexos masculino e feminino. E essas diferenças são retratadas na obra “Os Maias” (1888), do escritor português Eça de Queiroz. Nesse romance o autor faz uma crítica severa ao tradicionalismo da sociedade burguesa e ao conservadorismo da igreja. Eça expõe as mulheres, na maioria das vezes, como beatas ou como adúlteras. Esse papel desempenhado pela figura feminina mostra a hipocrisia a sociedade do séc XIX.

2. OBJETIVOS Esse artigo tem por finalidade demonstrar a caracterização de algumas personagens femininas no romance Os Maias (1888) de Eça de Queiroz.

3. METODOLOGIA Partindo da perspectiva de que as relações de gênero são construções histórico-sociais, o objetivo deste artigo visa demonstrar as caracterizações de três personagens femininas na obra “Os Maias” (1888), do escritor português Eça de Queiroz: Maria Eduarda Runa, Maria Monforte e Maria Eduarda. Essas personagens se diferem por representar, cada uma delas, uma identidade feminina no século XIX na sociedade portuguesa. Num primeiro momento será feito um breve resumo do romance, logo após uma visão da sociedade portuguesa no século XIX e por fim, uma explanação das personagens.

4. OS MAIAS A história se passa em Lisboa, na segunda metade do século XIX e conta a história de três gerações da família Maia.

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Mestre em Linguagem, Interação e Processos de Aprendizagem, Centro Universitário da Grande Porto Alegre, UniRitter, Porto Alegre, Brasil. E-mail: [email protected]

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Afonso da Maia, nobre e rico produtor de vinhos, se instala no Ramalhete. O seu único filho – Pedro da Maia – de caráter fraco, resultante de uma educação extremamente religiosa e protecionista, casa-se, contra a vontade do pai, com a negreira Maria Monforte, com quem tem dois filhos – um menino e uma menina. Mas a esposa abandona Pedro para fugir com um Napolitano, levando consigo a filha, de quem nunca mais se soube o paradeiro. O filho – Carlos da Maia – viria a ser entregue aos cuidados do avô, após o suicídio de Pedro da Maia. Carlos passa a infância com o avô, formando-se depois em Medicina, na faculdade de Coimbra. Carlos regressa à Lisboa após a formatura, onde se vai cercar de alguns amigos. Seguindo os hábitos dos que o rodeavam, Carlos envolve-se com a Condessa de Gouvarinho, a qual abandonará quando conhecer uma brasileira. Um dia fica deslumbrado ao conhecer Maria Eduarda, que julgava ser mulher do brasileiro Castro Gomes. Carlos seguiu-a algum tempo sem êxito. Com a filha doente ela chama um médico, e então, numa incrível coincidência, Carlos se apresenta como médico. Eles se aproximam logo após o jovem médico curar a pequena. Começam então os seus encontros, visto que Castro Gomes estava ausente. Carlos chega mesmo a comprar uma casa onde instala a amante. Castro Gomes descobre o sucedido e procura Carlos, dizendo que Maria Eduarda não era sua mulher, mas sim sua amante e que, portanto, podia ficar com ela. Entretanto, chega de Paris um emigrante, que diz ter conhecido a mãe de Maria Eduarda e que a procura para lhe entregar um cofre, enviado por sua mãe e que continha documentos que identificariam e garantiriam para a filha uma boa herança. Essa mulher era Maria Monforte – a mãe de Maria Eduarda era, portanto, também a mãe de Carlos. Os amantes eram irmãos. Contudo, Carlos não aceita a notícia e mantém abertamente a relação – incestuosa – com a irmã. Afonso da Maia, o velho avô, ao receber a notícia morre de desgosto. Ao tomar conhecimento, Maria Eduarda, agora rica, parte para o estrangeiro; e Carlos viaja pelo mundo. Passados 10 anos, Carlos regressa a Lisboa para o encontro com Ega – amigo dos tempos de Coimbra - e assim termina o romance.

4.1. A SOCIEDADE PORTUGUESA A partir de 1834, com o triunfo definitivo do liberalismo, ocorreu uma profunda alteração na sociedade portuguesa. O clero foi o estrato social mais afetado, pois praticamente desapareceu com a extinção das ordens religiosas. A nobreza tradicional também sentiu os efeitos da vitória liberal; contudo, as dificuldades crescentes em viver apenas com a renda das terras levaram-na a apostar nas atividades comerciais e industriais, tradicionalmente ligadas à burguesia, o que facilitou a aproximação destas duas classes sociais. Com o desenvolvimento da economia nacional, a alta burguesia adquiriu maior importância política e econômica. Começava então a surgir a consciência de classe, por parte da burguesia. A afirmação da burguesia no período da expansão do liberalismo coincidiu no plano cultural e intelectual com o aparecimento do movimento romântico (que surgiu ainda na primeira metade do século XIX), que refletia a valorização da afirmação do indivíduo. O romantismo afirmou-se como um movimento cultural e artístico marcado pela valorização da imaginação, dos sentimentos e da liberdade individual, que privilegiava nas suas obras os temas naturalistas e exóticos.

5. FIGURAS FEMININAS EM OS MAIAS Na percepção individual ou coletiva da identidade, segundo Stuart Hall (2004, p7), a cultura exerce um papel importante para delimitar tanto os padrões de conduta como excluir as diversas personalidades, e ainda reforçar as características de cada pessoa. Para Hall (2004, p.9) a influência do meio muda o comportamento do indivíduo, já que antigamente, no século XIX não existia globa-

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lização, apenas uma influência Francesa. Por isso numa tentativa de compreender o homem moderno e pós-moderno, teóricos contemporâneos como Stuart Hall (2004), inclinam-se ao estudo das identidades humanas e suas complexidades a partir da literatura. Ele vê o processo de criação da personagem fictícia como um processo para o conhecimento de nós mesmos como indivíduos sociais. Essa visão de Hall (2004) é observada no romance. A história de Eça passa a ser um reflexo da sociedade retratando com muito louvor essa sociedade portuguesa do século XIX. A minúcia e o rigor, bem como o humor e a paródia são atributos que caracterizam a forma como nos é apresentada a sociedade. Assim, o professor e escritor Massaud Moisés (2006) afirma sem rodeios que “os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos”. E esses costumes são abordados no romance, principalmente no que diz respeito as personagens femininas. A crítica do autor teve como alvo praticamente todos os setores da sociedade lisboeta da época. Criticava o sistema parlamentar, a religião burocratizada pelo Estado, a Coroa e ao clero. Além dos mencionados, não escapavam também a imprensa, a poesia, o romance sentimental, o teatro, os agentes econômicos. Mostrou grande preocupação com a deficiente educação das mulheres da burguesia portuguesa, que segundo o autor, só preparadas para o casamento rico, a ociosidade no reduto do lar, cujos encargos cabiam totalmente às criadas ou amas; à beatice e às fantasias sentimentais, o que determinará a importância que o adultério ou desatino feminino teria na literatura queirosiana. Eça de Queiroz começa o romance não por uma descrição de uma personagem, mas por uma casa, mais exatamente a “casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875”, que surge, penumbrosa e prenunciadora, logo na primeira frase do livro, e que era conhecida como a casa do ramalhete” ou, mais simplesmente, “o Ramalhete”. No Ramalhete, um grupo se reunia: os autênticos aristocratas. Carlos e seu avô Afonso se destacam por serem representantes de outra linhagem, seres especiais de uma Lisboa, que segundo o narrador, era povoada por provincianos. Somente os eleitos podem conviver nesse ambiente invejado e admirado. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas janelas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação dos tempos da Sra. D. Maria I; com uma sineta e com uma cruz no topo, assemelhar-se-ia a um colégio de jesuítas. (QUEIROZ,1989:11)

Logo com a introdução e descrição dos homens da época, podemos perceber a importância masculina no romance. É notável que a mulher nas obras queirosiana é a motivação e o interesse de seus enredos, e neles, sempre há um triângulo amoroso. O fato de autor escrever sobre poucas personagens femininas deve-se ao papel quase irrelevante que a mulher detinha na sociedade da época. Em Os Maias (1888) os personagens passam de 60, onde apenas 10% deles, são femininos, porém de grande importância no enredo. Os males que se abateram sobre a família Maia provêm da ligação dos homens a mulheres de uma estirpe menos recomendável. Afonso da Maia une-se a Maria Eduarda Runa, uma mulher de caráter fraco, saúde débil e de uma religiosidade excessiva. Pedro, o filho dessa união, desobedecendo o pai, casa com Maria Monforte, filha de um escravista, e que mais tarde foge com um italiano, deixando o filho Carlos com o pai. Anos mais tarde Carlos, envolve-se com a irmã Maria Eduarda, desencadeando o final trágico da ilustre família Maia. No romance os homens que se envolviam sentimentalmente por mulheres eram considerados de caráter fraco. A figura feminina representa o pecado da luxúria e da perdição, e retrata também a imagem da mulher na sociedade portuguesa do século XIX, como um mero objeto de prazer, um total desprezo. Em Os Maias (1888) não é possível achar mães ou esposas perfeitas. E mesmo quando ausente, as mulheres são temas de conversa entre os homens e os diálogos estabelecidos realçam a futilidade e deterioração dos bons costumes.

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A americana Joan Scott (1989) cita a teoria lacaniana ao falar da linguagem, onde a imposição de regras da interação social é inerente ao gênero. A relação da criança com a lei depende da diferença social, da sua identificação imaginária com a masculinidade ou feminilidade. (SCOTT, 1989, p.15). A relação de poder masculina é culturalmente aceita, pois o gênero é construído através do parentesco. E esse poder masculino reina absoluto na obra do autor português. Em toda obra notamos uma crítica a religião. A personagem Maria Eduarda Runa representa o clero, a igreja, as mulheres beatas. Uma personagem devota e muito triste. Esposa de Afonso da Maia foi vítima de uma sociedade fracamente castradora e penalizadora para a mulher e de uma educação que mantém submissa à figura masculina, antes pela figura do pai, e depois pela figura do marido, que ostentava sua fortuna, boa parte recebida pelo dote da mulher. Instalou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto a Richmond, ao fundo dum parque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey. Os seus bens, graças ao crédito do conde de Runa, antigo mimoso de D. Carlota Joaquina. (QUEIROZ,1989:19)

Apesar de pertencer ao mesmo meio social do marido, são notórias as diferenças entre eles, sobretudo no que diz respeito ao caráter, já que o autor começa a descrevê-la com uma mulher de “caráter fraco”, uma verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar de nada. Segundo Afonso da Maia, o suicídio do filho seria culpa da esposa, que o criara com uma educação católica fervorosa. Na perspectiva do autor, uma geração depende da educação que lhe for ministrada, sobretudo pelo lado materno. Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira. (QUEIROZ,1989:20)

A figura feminina que representa o pecado da luxúria é Maria Monforte. Ficou conhecida na sociedade lisboeta como a “negreira”, por ser filha de um açoriano que fez fortuna no comércio de escravos. Mulher bela, que escandaliza Lisboa com as suas “toilettes excessivas e teatrais”. Maria Monforte é uma “magnífica criatura” com “cabelos loiros, de um oiro fulvo” (QUEIROZ, 1998, p.27). Para ser reconhecida e poder frequentar lugares em que as famílias lisboetas conservadoras frequentavam, casa-se com Pedro da Maia. Além da destruição do marido, é responsável pelo drama vivido pelos filhos, vítimas de uma “hereditariedade implacável”, como dizia Afonso da Maia. Aqui o autor mostra novamente um traço da sociedade, um lado naturalista, considerando o determinismo hereditário, em voga na época. Nas obras de Eça, ler romances servia para caracterizar a sua leitora. Algumas personagens femininas são apresentadas na narrativa lendo romances. Para o autor essa relação entre mulheres e romances assume como um esquema triangular em que o terceiro termo tem como base um misto de futilidade, imaginação doentia, instabilidade emocional e adultério. Uma pessoa só poderia ser influenciada por leituras, a ponto de abandonar a família em nome do amor, se apresentasse um caráter volúvel e fraco. Para abrandar desde já o papá, Pedro quis dar ao pequeno o nome de Afonso. Mas nisso Maria não consentiu. Andava lendo uma novela de que era herói o último Stuart, o romanesco príncipe Carlos Eduardo; Carlos Eduardo da Maia. (QUEIROZ,1989:27)

 O adultério feminino, numa época em que os romances naturalista-realista estavam em evidência, pode ser compreendido se integrado numa problematização mais vasta: a situação da mulher numa época de profundas transformações sociais, nos níveis político, econômico e cultural, onde a imagem da mulher se altera, e começa a assumir novos papéis que vão pôr em causa as normas que definiam e regulamentavam a sua função apenas como esposa e como mãe.

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Maria Monforte, pelo adultério, e Maria Eduarda Runa, pela educação romântica que ministrou a Pedro, foram as principais responsáveis pelo drama que assolou a família Maia e, por essa razão, a imagem que delas se traçava é visivelmente pejorativa. O terceiro elemento feminino da família Maia é Maria Eduarda. Ela surge “com um passo de deusa, maravilhosamente bem feita”(QUEIROZ,1989:128), perante os olhares de Carlos e Craft, no peristilo do Hotel Central. Carlos vê-se convencido dessa imagem e, acreditando que ela “era realmente uma deusa, sem contatos anteriores com a terra, descida da sua nuvem de ouro, para vir ter ali o seu primeiro estremecimento humano” (QUEIROZ,1989:298). Ele enaltece até os objetos pertencentes à Maria Eduarda, e de um modo irônico cita “uma jóia exagerada de cocote”, já sendo uma pista dada pelo autor sobre o passado da personagem. Maria Eduarda tem um comportamento “comprometedor”, segundo o autor, já que ela omite conscientemente algo para Carlos, que cego de amor, nem cogitou interessar-se pelo assunto. Comprovou-se a tese do autor, segundo a qual a educação marcada pelo Romantismo é perniciosa, leva o homem a agir pela emoção. Ela omite seu passado para viver com o amante, numa demonstração clara de desonestidade e manipulação, tal como fazia sua mãe. Desconhecendo suas origens, ela penetra na sociedade lisboeta pela mão de Castro Gomes, com quem mantinha uma relação há cerca de três anos. A filha Rosa era de sua outra união, com um homem chamado Mcgren, que morrera antes do casamento. Ela é apresentada no romance numa perspectiva divina, idealizada. Á sua perfeição física alia-se a sua faceta moral e social, que tanto deslumbrava Carlos. A dignidade, sensatez e equilíbrio são características desta personagem, bem como sua forte consciência moral e social. Em Maria Eduarda, falam mais alto as “razões da sociedade burguesa oitocentista, temerosa de enfraquecer-se pela concessão dos direitos éticos individuais que possam por-lhe em crise as convenções, as modas” (MOISÉS, 1998,p. 148). Ela carrega aspirações políticas e sociais da burguesia revolucionária do final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Ela é produto do meio, da hereditariedade e da educação, pelo que coincidem, no seu caráter e no espaço físico que ela se move, duas vertentes distintas na sua educação: a dimensão cultural e moral, construída quando morava em um convento; outra faceta visivelmente vulgar e fútil, fruto do convívio que estabeleceu com a mãe, Maria Monforte.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS O romance Os Maias (1888) é uma obra intemporal que, ainda hoje, se mantém como uma afiada e aguda crítica aos vícios da sociedade. Com mais de 60 personagens onde o autor, com uma sublime ironia desvenda as atitudes e vícios de toda uma sociedade que, sob uma máscara de hipocrisia, vivia em opulência ridícula e fátua. Escrito durante o século do romance, ele descreve uma época não muito benevolente para as mulheres. A figura feminina cultivou o silêncio e a submissão ao sistema tradicional vigente, sob o comando masculino. As justificativas são variadas, e as análises partem das diversas influências presentes na relação homem-mulher, construída com base nos aspectos culturais, comportamentais, econômicos e até ideológicos. O romance representa a mudança na concepção de identidade e sujeito proposta por Stuart Hall (2004), onde é descrita a transformação do auto-conhecimento do indivíduo oitocentista, sujeito sociológico, para um sujeito pós-moderno, fragmentado. A perda, por parte dos personagens, do sentido de si e de seu lugar no mundo social desloca-o para uma crise de identidade representada no romance pela personagem Maria Eduarda Monforte e ao final do romance, por Carlos Eduardo. Ambos fragmentados, devido às suas novas identidades, já que eram então, irmãos.

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Eça inverte suas “heroínas” em inquietantes símbolos amorosos, não lhes dando justamente um destino venturoso. Todas elas sofrem, com maior ou menor violência, as penas do seu amor fatal. Maria Eduarda parte triste, coberta de negro, para uma vida longínqua e desconhecida. Já Maria Runa morre triste, amargurada e doente. Maria Monforte morre quase na miséria em Paris. Todas as mulheres foram penalizadas por tentar romper com uma concepção ideologicamente marcada do seu lugar na sociedade, em contradição com a ascensão dos valores do mundo masculino e burguês. Enquanto a literatura contemporânea apresenta o modo como se sustenta a nova ordem mundial, a globalização, a literatura oitocentista, mais precisamente o romance queirosiano, apresenta o modo como o sujeito descobre-se deslocado socialmente, numa crise identitária inconsciente. Eça já sentia em sua época, ou previa, dramas pelos quais a humanidade passaria no transcorrer.

REFERÊNCIAS HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-Moderniade. Tradução: Tomaz Silva Tadeu; Louro, Guacira Lopes. 9. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2004. MOISÉS, Massaud. A Criação Literária: Introdução à problemática da literatura.16. ed. São Paulo: Melhoramentos,1998. MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 20. ed. São Paulo: Cultrix,2006. QUEIROZ, Eça. Os Maias. Episódios da vida romântica.1. ed. São Paulo: Editora Ática. v1. _____. 1998. Os Maias. Episódios da vida romântica. 1. ed. São Paulo: Editora Ática. v 2. SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analyses. Gender and the politics of history. New York: Columbia University Press, 1989.

ARQUIVO UNIVERSITÁRIO UM ESPAÇO DE PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA E DO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL ARQUIVÍSTICO Elisângela Gorete Fantinel* (UFSM) Daniel Flores** (UFSM)

A Universidade Federal do Rio Grande - FURG, fundada em 1969, destaca-se entre as demais instituições brasileiras de ensino superior pela produção, organização e disseminação do conhecimento relacionado ao desenvolvimento tecnológico e aos ecossistemas costeiros e oceânicos (UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE, 2011). O processo de desenvolvimento contínuo de uma universidade pública requer, na sua atividade de gestão, a participação efetiva de um conjunto de órgãos que fazem parte da chamada Administração Central. Dentre estes órgãos destaca-se o Conselho Universitário (CONSUN), que representa o órgão máximo deliberativo da Universidade. No desenvolvimento das atividades do CONSUN são produzidos documentos, dentre eles, as atas de reuniões. De acordo com a Tabela e Temporalidade de Documentos da Atividade-meio (CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS, 2001) as atas de reuniões do CONSUN são considerados documentos arquivísticos de guarda permanente. Configuram-se, portanto, em fontes de informação que preservam a memória institucional, são referências para efeito de organização administrativa, didático-científica, cultural, histórica, social e de pesquisa, pois registram as diretrizes de formação da Universidade, retratam as decisões e as atividades desenvolvidas ao longo de seus 46 anos de existência. Nesse sentido, o trabalho tem por objetivo principal identificar e descrever as Atas do CONSUN, no período de 1970 a 1995, de acordo com normas arquivísticas e recursos tecnológicos, visando preservar a memória institucional, promover a difusão do patrimônio documental da FURG e fomentar o acesso à documentação para pesquisadores. Para isso, pretende-se realizar o tratamento das atas de reuniões do CONSUN; a sua digitalização, seguindo as recomendações do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ); a descrição de acordo com os requisitos da norma ISAD (G)1; utilizar o ICA-AtoM2 como software de descrição arquivística de documentos no âmbito do Sistema de Arquivos (SIARQ) inserindo os metadados e os representantes digitais, gerados a partir da digitalização; elaborar um catálogo, instrumento de pesquisa que será disponibilizado na plataforma institucional da FURG para a pesquisa.

Licenciada em Pedagogia e Graduada em Arquivologia pela UFSM. MBA em Gestão Empresarial, na ESPM. Mestranda em Patrimônio Cultural na UFSM. Arquivista do Instituto de Ciências Humanas e da Informação - FURG. E-mail: [email protected] ** Doutor em Metodologías y Líneas de Investigación en Biblioteconomía y Documentación - Universidad de Salamanca/España. Professor Adjunto do Departamento de Documentação da UFSM. E-mail: [email protected] 1 ISAD (G): Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística publicada pelo Conselho Internacional de Arquivos (CIA) é referência mundial para a elaboração de instrumentos de pesquisa. Aplicável a todos os tipos de materiais arquivísticos, em sistemas manuais ou automatizados de descrição. 2 ICA-AtoM (International Council of Archives – Acess to Memory): "Conselho Internacional de Arquivos - Acesso à Memória". É fundamentado em ambiente web, aplicativo de código aberto, software livre, baseado em padrões para a descrição arquivística. *

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1. ARQUIVO: LUGAR DE MEMÓRIA De acordo com Le Goff (2003), importante historiador francês, antes do surgimento da escrita, na pré-história, o homem perpetuava o seu legado, sua história e tradição por meio de narrativas, a qual se denominava de memória oral. Com o surgimento da escrita as memórias, individuais e coletivas, passaram a ser materializadas em suporte físico como placas de argila, papiro, o couro, o papel e posteriormente em meio digital, o qual denomina-se de documentos, aprimorando deste modo, à capacidade do homem em externalizar, registrar, organizar e acessar as suas heranças patrimoniais. A escrita permite, de acordo com Le Goff, comunicar “através do tempo e do espaço e fornecer ao homem um processo de marcação, memorização e registro; ao assegurar a passagem da esfera auditiva à visual” (LE GOFF, 1990, p. 28-29). Para preservar parte da memória, da memória institucional e do patrimônio, buscando o fortalecimento do senso de pertencimento e da construção da identidade individual e coletiva, foram criados os museus, arquivos e bibliotecas, o qual Pierre Nora denominou de “lugares de memória” (NORA, 1993). Nesse sentido, os “lugares de memória”, e aqui especificamente os arquivos, nascem como espaços de preservação do legado das vivências, dos construtos sociais e para o reavivamento de uma memória que não é mais natural e que, portanto, precisa de mecanismos para preservá-la e difundí-la. Os arquivos são os lugares onde a memória se estabelece, solidifica e, especialmente, se perpetua através das gerações. De acordo com Nora (1993), os “lugares de memória” “são mistos, híbridos e mutantes, intimamente entrelaçados de vida e de morte, de tempo e de eternidade; numa espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e do móvel” e possuem uma razão fundamental para existirem, “parar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para prender o máximo de sentido num mínimo de sinais” (NORA, 1993, p.22). Ladolini (1990 apud ROUSSEAU; COUTURE, 1998, p. 34) ao contextualizar os “lugares de memória”, coloca que “a memória registrada e conservada constituiu e constitui ainda a base de toda e qualquer actividade humana: a existência de um grupo social seria impossível sem o registro da memória, ou seja, sem arquivos”. A partir desta concepção pode-se compreender que memória registrada em um suporte físico, um documento, incumbiu ao arquivo à responsabilidade de mantê-la viva. Os lugares de memória seriam, portanto, “formas de manutenção e conhecimento de existência social de determinados grupos culturais que se unem por uma memória que lhes dá os laços identitários” (MACHADO, 2012, p. 3), permitindo a preservação de suas identidades e daquilo que a dinâmica do tempo e do espaço podem levar ao esquecimento. A historiadora e pesquisadora da área da Arquivologia, Heloisa Liberalli Bellotto (2006) traz o entendimento de que a memória é constituída, sob o ponto de vista de arquivo, pela matéria documental em estado bruto. O documento é uma fonte de dados e informações que precisa ser trabalhado, lapidado pelo pesquisador, portanto, o documento em si não é memória, mas sim, é a fonte que permite a sua (re)construção. Por esta razão, o tratamento e a preservação do patrimônio documental arquivístico é fundamental para que se perpetuem os vínculos herdados pelos indivíduos e grupos sociais ao longo do tempo e para que sirvam de fonte de informação para a promoção e a construção de novos saberes. Desse modo, o arquivo, especialmente o que preserva documentos arquivísticos de caráter permanente, configura-se em um espaço dialético, que media o tempo e possibilita um colóquio com o passado. O seu acervo, patrimônio cultural e documental, torna-se fonte de informação e de conexão entre memória e identidade construida e reconstruida pelos indivíduos e pela sociedade.

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1.1. O PATRIMÔNIO DOCUMENTAL ARQUIVÍSTICO O entendimento do que se configura patrimônio documental arquivístico perpassa pela compreensão do conceito de documento. De acordo com Calderon (2011) etimologicamente a palavra documento tem sua origem do verbo “docere” que traduz o significado de ensinar ou instruir. A autora também aponta em seus estudos a correspondência semântica entre os verbos “docere” e “documentum”. Do latim a palavra “documentum” pode ser entendida como algo que transmite conhecimentos e que testemunha fatos. Nessa última colocação, trata-se, de acordo com Calderon (2011), de um “instrumento empregado pelo homem com o propósito de conhecer seu passado, compreender a realidade presente e ajudá-lo a projetar esse conhecimento em suas ações futuras” (CALDERON, 2011, p. 66). Sob este olhar Bellotto (2004) destaca que os documentos de arquivo são: [...] produzidos por uma entidade pública ou privada ou por uma família ou pessoa no transcurso das funções que justificam sua existência como tal, guardando esses documentos relações orgânicas entre si. Surgem, pois, por motivos funcionais administrativos e legais. Tratam, sobretudo de provar, de testemunhar alguma coisa. Sua apresentação pode ser manuscrita, impressa ou audiovisual; são em geral exemplares únicos e sua gama é variadíssima, assim como sua forma e suporte. (BELLOTTO, 2004, p. 37).

A criação do documento é o reflexo da necessidade do ser humano em registrar as suas experiências e vivências buscando garantir, a partir deste registro em um suporte físico, a perpetuação destas construções de natureza cognitiva, intelectual, do registro do modo de ser, viver e de fazer, servido de referência às ações e construções futuras. Internacionalmente a UNESCO se destaca pelo pioneirismo e atuação no debate sobre o patrimônio documental, mitigando e dando legitimidade aos países para elaborarem diretrizes próprias com o objetivo de garantir a gestão documental, a preservação do patrimônio e o acesso às informações. Como garantia de proteção do patrimônio documental evidencia-se um aumento de legislações e políticas de proteção. Neste sentido, referencia-se a Memória do Mundo que define, segundo Zamora (2009), os critérios que devem ser levados em consideração para avaliar um documento ou uma coleção de documentos como patrimônio, a saber: Autenticidad, o sea que es un documento original, que es un documento único e irremplazable, que su significado o influencia es mundial (regional o nacional) que cada documento es producto de su tiempo, puede representar un descubrimiento o ser el primero en su tipo; el lugar en que tuvo origen que puede ser de importancia para la historia mundial (regional o nacional), la gente, el contexto social y cultural, época de cambios importantes e influencia de individuos en la cultura, el arte y la política en alguna comunidad; asunto o tema, puede tratarse de una aportación intelectual o histórica en cualquiera de los campos del conocimiento; forma y estilo, valor estético sobresaliente por representar una costumbre o un soporte desaparecido. Otros criterios: rareza, por su contenido y por su parte externa, es raro, es único; integridad, está bien conservado, está completo. (ZAMORA, 2009, p.4)

O documento arquivístico distingue-se pela sua singularidade, sob o ponto de vista do registro da informação em um suporte físico tendo como características a organicidade, naturalidade, autenticidade, unicidade e indissociabilidade (DURANTI, 1994). É reflexo de funções e atividades do homem/instituição, produto das suas ações em um dado contexto e, pela sua relevância, assume valor de guarda permanente, configura-se em patrimônio documental arquivístico. O patrimônio documental arquivístico é “tido como aqueles de valor histórico, cultural e de memória, recolhidos a instituições arquivísticas, geralmente públicas, onde supostamente recebem proteção” (SILVA, 2008, p. 102) e que, dado a sua relevância precisa ser preservado e difundido para a sociedade.

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2. ARQUIVO UNIVERSITÁRIO: PRESERVAÇÃO E DIFUSÃO DA MEMÓRIA A universidade possui em sua essência, funções consideradas indispensáveis para seu funcionamento: o ensino, a pesquisa e a extensão e, através destas funções, exerce um papel preponderante para a sociedade fomentando a construção de conhecimentos, na inovação de processos científicos e tecnológicos, na formação de profissionais qualificados, no desenvolvimento da economia, na prestação de serviços sustentáveis e na coesão social das comunidades. No seu processo de gestão administrativa existem aspectos que são essenciais para que se garanta o sucesso das funções mais amplas da universidade e, nesse entendimento, destacam-se os seus acervos documentais constituídos pelos seus arquivos correntes, intermediários e permanentes que forma o arquivo universitário. Um arquivo universitário é formado por um: [...] conjunto de documentos, tanto institucionais quanto privados, produzidos, recebidos e acumulados por estabelecimento de ensino superior no curso da gestão jurídica-acadêmica-administrativa que servem de suporte informacional e prova de evidência no exercício de suas funções, constituindo a memória institucional” (BOTTINO, 1995, p. 67).

Seguindo essa premissa, Mariza Bottino (2012) aponta que os arquivos universitários, passam a ter a missão de contribuir para o desenvolvimento das instituições de ensino superior, “subsidiando as suas ações administrativas; pedagógicas, no âmbito do ensino, pesquisa e extensão; culturais e sociais, para a consecução dos objetivos institucionais” (BOTTINO, 2012, p. 23). Além disso, de acordo com Bellotto (2014) depois de cessado o valor primário dos documentos, os de uso corrente e intermediário, o arquivo irá custodiar os documentos considerados de valor permanente. Os documentos de guarda permanente constituirão a memória e a história da universidade. Considerando esse contexto a missão do arquivo universitário é, de acordo com Bottino (2012), sobretudo, a de atender os seus usuários em suas demandas “administrativas, pedagógicas e culturais” bem como, “preservar a memória institucional por meio da preservação da sua herança documental” (BOTTINO, 2012, p. 25). Bellotto (2014) apresenta o papel principal dos arquivos universitários, destacando as seguintes responsabilidades: 1. Reunir, processar, divulgar e conservar todos os documentos relativos à administração, à história e ao funcionamento/desenvolvimento da universidade; 2. Avaliar e descrever estes documentos, tornando possível seu acesso, segundo as políticas e procedimentos elaborados especificamente para estes fins; 3. Supervisionar a eliminação, ter o controle da aplicação das tabelas de temporalidade, a fim de que nenhum documento de valor permanente seja destruído (BELLOTTO, 2014, p. 74).

Sob este enfoque, os arquivos universitários sejam eles pertencentes à fase corrente ou intermediária em uma visão do seu papel gerencial, se constituem em elementos estratégicos quer servindo como suporte à gestão administrativa, jurídica, social ou como fonte de informação. Já na sua fase permanente, estes acervos servem à preservação da memória e da história da própria instituição, constituindo-se em patrimônio documental. Posto isso, pode-se inferir que os arquivos que uma universidade custodia possuem informações valiosas sobre a trajetória administrativa, organizacional, histórica e da memória da instituição. Diante desta dinâmica, não se pode perder de vista que a sociedade passa por transformações sociais, econômica, informacional e de desenvolvimento tecnológico refletindo diretamente nas instituições onde os ambientes estão cada vez mais dinâmicos, desafiadores e imprevisíveis. A revolução tecnológica imprime “maior velocidade, produção e quantidade de informação” (BOTTINO, 2012, p. 25) e de documentos e este aumento significativo da produção documental reflete nas universidades. A informação e o acesso a ela tornam-se fundamentais e os arquivos, ganham

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maior destaque na tomada de decisões e o seu papel passa a ser essencial e indiscutível (PONJUAN DANTE, 1998). Canongia (2004) reforça essa dinâmica quando infere sobre o deslocamento do eixo de produção dos: setores industriais tradicionais (mão-de-obra, matéria prima e maquinaria) para setores cujos produtos e/ou processos são cada vez mais intensivos em tecnologias de informação e conhecimento, nos quais os fluxos de informação, know how tecnológico e gerencial são fatores críticos de sucesso. (CANONGIA, 2004, p. 234)

Seffrin et al. (2004, p.11) ensina que o uso dos recursos, tecnologias de informação e comunicação eletrônica “apropriada ao acesso, à organização e ao processamento da informatização, cada vez mais eficiente e eficaz, fundamentam as ações estratégicas dos arquivos universitários”, para que se consolide a qualidade do serviço do arquivo e a razão da sua existência. Os arquivos universitários, que tem registrado em seus documentos o conhecimento, deverão servir de apoio às atividades administrativas e legais, à tomada de decisões, ao desenvolvimento do ensino, da pesquisa e da extensão. Além disso, também deverão valorizar a memória institucional, à preservação da história, do saber e do fazer acadêmico fomentando à construção de novos conhecimentos em prol da ciência, da inovação, do desenvolvimento da sociedade.

3. METODOLOGIA E RESULTADOS PARCIAIS 3.1. REVISÃO DA LITERATURA A partir da proposta e das temáticas do trabalho realizou-se o levantamento de materiais bibliográficos, de forma impressa ou eletrônica, como livros, artigos, periódicos, manuais, regimentos, revistas, dentre outros, para subsidiar a construção do referencial teórico e a contextualização dos elementos norteadores da pesquisa, do seu tema e problema. Destaca-se que a revisão da literatura é desenvolvida permanentemente ao longo da elaboração da pesquisa a fim de que se possa qualificar, teoricamente, a análise e interpretação dos resultados alcançados.

3.2. COLETA DE DADOS E ANÁLISE DO OBJETO DA PESQUISA Considerando que a pesquisa é qualitativa e descritiva, para a análise da documentação - Atas de reunião do CONSUN, foco deste estudo, foi utilizado à observação direta. A partir da observação foi possível realizar a coleta de dados e informações, permitindo mapear e identificar à situação do acervo quanto à aplicação dos instrumentos de gestão arquivística das instituições federais de ensino superior (Plano de Classificação de Documentos e Tabela de Temporalidade). Além disso, também foi possível verificar a forma de acondicionamento, sistema de registro, controle e acesso, as condições de preservação e o estado de conservação do acervo.

3.3. PREPARAÇÃO DO ACERVO E DEFINIÇÃO DOS REQUISITOS DE DIGITALIZAÇÃO: O conjunto documental a ser digitalizado e posteriormente descrito é formado pelas Atas de Reunião do CONSUN e seus respectivos anexos, referente aos anos de 1970 a 1995. O volume documental está representado por cerca de 0,70 metros lineares (05 caixas de arquivo), compreendendo o período de gestão de seis reitores. A preparação do conjunto documental é fundamental para o sucesso do desenvolvimento das próximas etapas do trabalho. A preparação consistiu na higienização de cada documento utilizando uma trincha com cerdas macias, retirada de clipes, grampos e

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organização do acervo de acordo com o Plano de Classificação de Documentos, adotado pela FURG, deixando em conformidade para realizar a digitalização. Considerando que as Atas do CONSUN são de guarda permanente, o processo de digitalização desta documentação seguirá as recomendações do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) que são apresentadas na obra “Recomendações para digitalização de documentos arquivísticos permanentes” (CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS, 2010). O seu texto aborda as diretrizes quanto às técnicas para formatos de arquivo digital, parâmetros para a obtenção de qualidade da imagem, tais como a resolução linear, o perfil de cores e a escala, além de tratar da especificação de equipamentos de captura de imagens. Os requisitos propostos pelo CONARQ contemplam a “geração de representantes digitais com qualidade arquivística, fidelidade ao documento original e a capacidade de interoperabilidade” (CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS, 2010, p. 4), evitando ter que refazer a digitalização dos documentos com o passar dos anos. Depois de digitalizado o representante digital, será salvo no computador e renomeado de acordo com um código único e universal atribuído.

3.4. PRÓXIMAS ETAPAS DA PESQUISA As próximas atividades da pesquisa consistirão em digitalizar o acervo de acordo com os requisitos do CONARQ. Realizar a descrição arquivística de acordo com a norma de descrição arquivística ISAD (G) e inserir os metadados e os representantes digitais no software ICA-AtoM; elaborar instrumento de pesquisa (catálogo) e difundir o catálogo via internet na plataforma institucional, propiciando o seu acesso aos pesquisadores.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os espaços de arquivo preservam parte das memórias individuais e coletivas a qual é chamada de memória materializada, que se dão por meio dos objetos, os documentos arquivísticos. Estes documentos são testemunhos do passado, do cotidiano vivido, das experiências individuais e coletivas, tornando-se provas das ações dos homens, permitindo a compreensão do experimentado, aqui e agora, no tempo presente e, pela sua significância a um grupo em comum, constituem-se em patrimônio cultural de uma sociedade. Com base nas reflexões realizadas destaca-se, que a preservação das memórias nos arquivos e aqui, especiamente os arquivos universitários, alcança maior sentido na medida em que ela é acessada. O arquivo da contemporaneidade não é mais concebido “por e para sábios, mas cada vez mais se busca nele uma comunicação próxima como público” (THIESEN, 2009, p.75), cujos interesses manifestam-se de forma distintas que podem variar desde uma pesquisa científica até a elucidação de uma curiosidade empírica. A difusão, o acesso e o compartilhamento das informações, é sim, uma forma de tornar conhecido o “espaço de memória”, a instituição arquivística, e aquilo que ela preserva, mas também, e, sobretudo, trata-se da democratização das fontes de informação para diferentes públicos, buscando fortalecer o sentido de identidade e pertencimento. Diante desta dinâmica, entende-se que o conhecimento arquivístico, somado ao uso de recursos tecnológicos e de comunicação são referências para que os arquivos, enquanto instituições públicas ou privadas, possam criar pontes que possibilitem e promovam a valorização do patrimônio cultural e documental arquivístico, por meio da preservação, da difusão e do acesso à informação.

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MARGINALIDADE SOCIAL E VIOLÊNCIA NOS CONTOS “DE GADOS E HOMENS” E “JAVALIS NO QUINTAL”, DE ANA PAULA MAIA Emanoeli Ballin Picolotto* (URI) Ana Paula Teixeira Porto** (URI)

INTRODUÇÃO No contexto da literatura brasileira contemporânea, surgem autores que exploram em suas narrativas sujeitos desprovidos de dinheiro, conhecimento e principalmente cultura letrada. Os personagens que aparecem nesses textos, segundo Sussekind (2002), vivem em meio a uma sociedade repleta de medo e violência, uma vez que “[...] é fundamentalmente um imaginário do medo e da violência que organiza a paisagem urbana dominante na literatura brasileira contemporânea”. (SUSSEKIND, 2002, p. 65). É característica recorrente na literatura brasileira contemporânea a reprodução da sociedade urbana, repleta de violência e problemas sociais e econômicos. Ainda nessas narrativas, é comum a exploração de temáticas recorrentes à violência do meio rural e urbano, ao homem comum, marginalizado que vive à margem da sociedade, o que leva o leitor a identificar nesse contexto retratos da sociedade atual contemporânea. De acordo com Medeiros (2013) a obra literária é uma fonte privilegiada de representação: A leitura do complexo texto da cidade, suas ruas, cruzamentos e labirintos, seus sujeitos e as relações aí estabelecidas, desde há muito se detém sobre a obra literária como fonte privilegiada de representação e registro da vida urbana e suas implicações na constituição de sujeitos e sociedades. (MEDEIROS, 2013, p. 169).

Conforme destaca a autora, a partir da leitura de um texto literário é possível conhecer os sujeitos que estão inseridos na nossa sociedade contemporânea, descobrindo como vivem, seus sonhos, dificuldades, anseios, medos, culpas e principalmente uma busca incessante por melhores condições de vida, tanto intelectual quando material. Uma autora representativa dessa literatura é Ana Paula Maia, cuja carreira literária inclui contos, ensaios e romances. Iniciou seus trabalhos de escritora em 2003 publicando seu primeiro romance intitulado O habitante das falhas subterrâneas. É uma autora ainda pouco conhecida que traz em suas narrativas de acordo com Porto (2015) assasinatos a sangue frio, violência contra animais e homens, apresentando personagens “brutos” e sofredores. Através de personagens e dos enredos das narrativas, a autora representa uma realidade nua e crua da sociedade brasileira contemporânea, dando destaque a sujeitos excluídas e inferiorizados que utilizam da violência como forma de satisfação e reconhecimento. De acordo com Gens (2013), o texto de Ana Paula Maia tem como objetivo a denúncia e a crítica socialé uma autora que aborda com maestria a violência da contemporaneidade. Assim, na obra da escritora, pode ser vista uma espécie de painel crítico literário da sociedade atual, levando o leitor a uma reflexão acerca da contemporaneidade. Considerando a produção literária de Ana Paula Maia, este trabalho tem como corpus de análise os contos “De gados e homens”, publicado em 2013 na antologia de contos De gados e homens, e Mestranda do Mestrado em Letras da URI- Câmpus de Frederico Westphalen. Bolsista CAPES. Professora orientadora do trabalho, docente dos Cursos de Graduação e Mestrado em Letras da URI–Câmpus de Frederico Westphalen.

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“Javalis no quintal”,publicado em 2011 na coletânea de contos Geração Zero, organizada por Nelson de Oliveira. Ambos mostram o homem comum, marginalizado que utiliza da violência para se sobressair perante os que estão ao seu redor. Em “De gados e homens”, o enredo gira em torno do quotidiano do personagem principal Edgar Wilson, que trabalha em um abatedouro de gado, desenvolvendo a função de matar o gado, porém nesse dia Edgar foi ordenado pelo patrão a ir desempenham outra função, e em seu lugar ficou um funcionário na qual ele acreditava não desempenhar a função de forma adequada. Nesse conto, há um narrador em 3° pessoa que abre espaço para diálogos entre os personagens da narrativa, fazendo comentários sobre as atitudes tomadas pelos personagens. Já em “Javalis no quintal”, narra-se, através de um narrador em 3º pessoa, a história de Eulálio Marvim, que ao receber a visita do amigo Adamâncio o questionando e criticando sobre o porquê nunca ter matado um javali começa a refletir sobre suas atitudes. Nesse conto o narrador faz comentários e inclusive se questiona sobre a vida do personagem central, que é visto pela sociedade onde vive como um fracassado por nunca ter conseguido matar um javali. A partir desses contextos narrativos, o objetivo deste estudo é refletir sobre a representação da marginalidade social e da violência nos contos “De gados e homens” e “Javalis no quintal”. A pesquisa dar-se-á através de análises e interpretações dos contos literários, a partir do método da literatura comparada, baseando-se em pesquisas bibliográficas acerca da literatura brasileira contemporânea, bem como acerca da marginalização social e da violência na literatura brasileira. Para alcançar o objetivo do estudo, o trabalho será dividido em duas partes: primeiro busca-se analisar a representação da marginalidade e da violência nos contos a partir do discurso do narrador; depois analisam-se as relações presentes nas narrativas de Ana Paula Maia, chegando então as considerações finais.

REPRESENTAÇÃO DA MARGINALIDADE E VIOLÊNCIA NA LITERATURA DE ANA PAULA MAIA O primeiro conto a ser analisado é “De gados e homens” no qual, através do personagem principal Edgar Wilson, vivenciamos o dia-a-dia de um abatedouro de gado. Nessa narrativa Ana Paula Maia utiliza como principal temática a violência, através de uma linguagem forte, direta e crua fazendo com que o leitor em um primeiro momento se assuste com o que está escrito e assim reflita sobre a sociedade que nos rodeia. De acordo com Porto (2015) os personagens que aparecem em De gados e homens possuem uma carência de valores: Os personagens não medem esforços para valer-se da violência, acentuadamente do assassinato a tiro ou a paulada precisa na cabeça, para atingir determinado fim – dinheiro -, e dessa forma sua constituição está atrelada à falta de valores, à brutalidade e à violência, confirmando uma carência de valores nesses sujeitos. (PORTO, 2015, p. 44).

Essa afirmação feita pela autora pode ser identificada através do personagem Edgar Wilson, alguém sem caráter, com perfil de justiceiro que se utiliza da violência como forma de vingança, pois ao retornar ao abatedouro, após fazer a cobrança para o patrão, toma uma atitude que acaba chocando fortemente o leitor: “Com a marreta, sua ferramenta de trabalho, acerta precisamente a fronte do rapaz que cai no chão em espasmos violentos e geme baixinho” (MAIA, 2013, p. 234). De acordo com o fragmento, essa prática feita por Edgar, que após ter agredido e matado o rapaz que ficou trabalhando em seu lugar, agiu como se nada tivesse acontecido, convidando os amigos para comer os hambúrgueres que havia ganhado onde foi fazer a cobrança, sem remorso, constrangimento ou culpa. Assim, a leitura do conto de Ana Paula Maia leva o leitor a várias reflexões, ora concorda ora não concorda com as atitudes dos personagens.

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O personagem Edgar Wilson possui a função de abater o gado, a qual, segundo ele, desempenha com maestria, sem deixar que o gado sofra na hora do abate, porém em um dia simples de trabalho as coisas foram diferentes. O patrão pediu para que Edgar fosse fazer uma cobrança e em seu lugar ficasse outro funcionário, só que esse funcionário denominado Zeca, tinha prazer em matar o gado, fazendo com que o animal sofresse na hora do abate. Como visualizado no fragmento a seguir onde Edgar Wilson explique ao patrão porque não deve deixar Zeca em seu lugar: “- O Zeca já abateu algumas vezes, né? – diz Milo / - É, abateu. Mas ele deixa o bicho acordado ainda. O boi sofre muito. Seu Milo. O Zeca não tem uma pegada boa não”. (MAIA, 2013, p. 230). Como pode ser visualizado Edgar não quer que Zeca abata o gado, demonstrando ter dó dos animais, pois estes irão sofrer além do normal. Essa temática da violência levantada por Ana Paula Maia é recorrente quando pensamos em literatura brasileira contemporânea. De acordo com Pelegrini (s.d) essa linha de representação é uma das mais importantes na literatura brasileira “entendendo-se violência, aqui, como o uso da força para causar dano físico ou psicológico a outra pessoa, o que, forçosamente, recai na problemática do crime. (PELEGRINI, s.d, p.134). A problemática da violência física pode ser relacionada ao conto em analise, que se utiliza dessa prática para abater os animais, porém somente ele pode exercer essa função demonstrando ter piedade dos animais quando estes são mortos por outra pessoa. Ele pode matar, mas outra pessoa não, pois fará o gado sobre. Como visualizado no fragmento a seguir onde Edgar ao ver Zeca entrando no abatedouro demonstra ter piedade dos animais: “É com o coração pesaroso que Edgar vê, minutos depois, o rapaz sorridente seguir até o boxe de atordoamento ao sair da sala de Milo”. (MAIA, 2013, p. 231). No conto “De gados e homens” a autora busca representar que assim como no abatedouro quem mata não sofre punições, na nossa sociedade as coisas também são assim. Conforme destaca Porto (2015) há nas narrativas de Ana Paula Maia uma preferência por temas que estão presentes no quotidiano da sociedade, mas que são ocultados nas rodas de conversas, pois contamos com policiais despreparados e convivendo cada vez mais com crimes hediondos sem que os culpados sejam punidos. Dessa forma, Edgar acaba fazendo justiça ao se vingar de Zeca que maltratou o gado, considerados seres inocentes que não podem se defender. O segundo conto a ser analisado é “Javalis no quintal” também da autora Ana Paula Maia, nessa narrativa podemos perceber através do personagem principal denominado Eulálio Marvim um sujeito que sofre preconceito pela sociedade, e principalmente por seu amigo Adamâncio, por nunca ter conseguido matar um javali com as próprias mãos. A narrativa inicia com Adamâncio chegando na casa do amigo Eulálio em uma camionete Ford que possui na caçamba um animal morto que a metros de distância é possível perceber pelo cheiro de carne podre. Essa prática de morte de animais é recorrente na vida dos personagens que fazem parte desse conto de Ana Paula Maia, sendo que quem não cometer dessa prática não será considerado um homem de verdade. Como podemos perceber no fragmento a seguir onde através do narrador em 3º pessoa é possível saber o porquê da visita de Adamâncio ao amigo Eulálio com o animal morto na caçamba: “Pois é isso que ocorrerá. Sujeitos como Adamâncio não deixariam de lembrá-lo de suas obrigações como homem e cidadão local”. (MAIA, 2011, p. 165). Fica claro nesse fragmento que só é considerado um cidadão local o homem quem cometer dessas práticas brutais, na qual Eulálio não gosta, mas se sente pressionando pelas pessoas que os cercam. Nesse conto identificamos uma sociedade machista que acredita ser fundamental a morte de um animal para provar que um ser é homem e se enquadrar no status de cidadão local, indo ao encontro do que afirma Porto (2015) de que os espaços que permeiam essas narrativas, de Ana Paula Maia, são acentuados pela brutalidade e marginalização a que são submetidos os sujeitos que ali estão inseridos. Como fica evidente no fragmento a seguir, onde o narrador faz questão de lembrar que Eulálio precisa matar um javali: “Quando conseguir um desses, sua vida neste lugar será para sem-

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pre um sossego. Ele sabe que enquanto não abater seu próprio javali não o deixarão em paz” (MAIA, 2011, p.170). Através da leitura do conto é possível perceber que há uma necessidade por parte de Eulálio em matar o animal, porém isso vai contra os seus preceitos éticos e morais, ele demonstra não querer cometer essa violência que aparenta ser sem nenhuma necessidade, apenas por prazer. Até certo ponto da narrativa Eulálio Marvim demonstra não querer cometer a violência contra os animais, tem receio, medo, não se sabe ao certo o que ele está pensando. Porém no decorrer do conto é possível perceber que Eulálio não se sente um homem de verdade por nunca ter conseguido cometer tal crime. Como pode ser observado no fragmento a seguir onde até mesmo o narrado em 3º pessoa se questiona sobre a sua onisciência: Eulálio Marvim sente-se um homem ao meio, e no meio da sala se mantém meditando. No que medita não se pode dizer ao certo, pois os pensamentos são silenciosos. Nem mesmo para um narrador onisciente é possível conhecer todos os segredos de seus personagens. Eles, entre pensamentos silenciosos, retornam de seus estreitos abismos e podem surpreender até o seu narrador. (MAIA, 2011, p. 172).

Através desse fragmento, podemos perceber que a vida de Eulálio era tão confusa que até mesmo o narrador do seu próprio conto não entende o que se passa por sua cabeça, pois ora não quer cometer práticas brutais ora fica pensando em comete-las para ser visto como um homem de verdade. Visualizamos através de Eulálio um sujeito que mudou suas atitudes para satisfazer a sociedade que o cerca, pressionado deixou de acreditar no que considerava correto e partiu para a violência buscando nessa um sentido para sua vida. No conto “Javalis no quintal” é possível identificar um sujeito que pressionado pelas pessoas ao seu redor acaba, assim como seus amigos, utilizando da violência para tentar uma posição de destaque. Conforme afirma Porto (2015) através de uma linguagem cuidadosa, a narrativa da autora pode ser vista como uma crítica, “encontram-se nessas figuras uma legitimação de um mundo brutal, violento e marginal”. (PORTO, 2015, p. 46). Através de seus personagens, Ana Paula Maia representa a violência contra seres indefesos que não podem se defender perante um ser humano com uma arma, como é o caso aqui no conto dos javalis que diante de tantas pessoas querendo os matar acabam se tornando inofensivos e morrendo para satisfazer e levantar o status social dos homens locais.

RELAÇÕES PRESENTES EM “DE GADOS E HOMENS” E “JAVALIS NO QUINTAL” DE ANA PAULA MAIA No texto de Ana Paula Maia encontramos frases curtas, através de uma linguagem direta que traz palavras duras para retratar o quotidiano dos personagens. Tanto em “De gados e homens” quanto em “Javalis no quintal” a autora utiliza de práticas brutais e principalmente da violência para representar o dia a dia de seus personagens. De acordo com Porto (2015) a violência que utiliza Ana Paula Maia, em suas narrativas, aparece não apenas no enredo, “mas na própria tessitura narrativa que objetivamente narra a história de homens e animais violentos”. (PORTO, 2015, p. 38). O narrador que aparece em ambos os contos analisados é em 3° pessoa, que utiliza da sua onisciência para se adentrar na vida e história dos personagens centrais, assim como dos personagens secundários, fazendo comentários e levando o leitor a entender que até ele, o narrador, não conhece o que se passa na cabeça dos sujeitos que fazem parte do conto que ele está narrando, como é o caso de “Javalis no quintal” onde o próprio narrador se questiona sobre sua onisciência. Outro aspecto que vale ser destacado nas narrativas é a presença somente de sujeitos cujo sexo é masculino, e estes cometem atitudes brutais e de violência contra os animais. Em “De gados e homens” Edgar Wilson faz o trabalho mais duro do abatedouro que é o de matar o gado, já em “Javalis

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no quintal” todos os personagens do conto veem como necessidade moral a morte de um javali, o qual até certo ponto da narrativa o personagem principal Eulálio Marvim é contra essa brutalidade, mas por ser pressionado pelas pessoas a seu redor acaba mudando suas atitudes. Ana Paula Maia, ao escrever os contos já nomeados, buscou representar uma metáfora da sociedade contemporânea em que estamos inseridos. No primeiro conto analisado “De gados e homens” a autora faz de Edgar Wilson um justiceiro que utiliza da violência física para se vingar do amigo que fez com que o gado sofresse na hora do abate. O gado por sua vez, representa as pessoas injustiçadas que permeiam a nossa sociedade, as quais não conseguem se defender e acabam sofrendo punições injustas sem ter ninguém a seu favor. Já no segundo conto “Javalis no quintal” é possível identificar uma sociedade machista, onde se você não matar não será considerado um homem de verdade, e acaba sofrendo pressões psicologias de quem faz parte do seu meio. O estilo de escrita empregado por Ana Paula Maia leva ao que Antonio Cândido, em “O direito a literatura” chama de uma literatura que nos leva a humanização, isto é, a partir da leitura de um texto literário conseguirmos nos humanizar e refletir sobre a nossa sociedade. Esse é o caso dos contos analisados que através da temática, estrutura, representação da violência e principalmente das práticas brutais utilizadas pela autora fazem com que o leitor se choque em um primeiro momento, mas reflita sobre a sociedade atual em que estamos inseridos.

REFERÊNCIAS CÂNDIDO, Antonio. O direito à literatura. GENS, Rosa. Ficção de autoria feminina contemporânea: Indicações no Brasil. 2013. Fórum Identidades. Itabaiana: Gepiadde, Ano 07, Volume 13/ jan. / jun. de 2013. p. 35-44. MAIA, Ana Paula Maia. Os javalis no quintal. p. 165-179. In: OLIVEIRA, Nelson de (Org.).Geração Zero Zero. Rio de Janeiro: Geral, 2011. ______. De gados e homens. Rio de Janeiro: Record, 2013. MEDEIROS, Vera Lúcia Cardoso. Contribuições da literatura brasileira contemporânea ao “livro de registro da cidade”. Estudos da Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília. nº 42, 2013, p. 169-180. PELEGRINI, Tânia. As vozes da violência na cultura brasileira contemporânea. Artigo. Crítica Marxista. PORTO, Ana Paula Teixeira. O sentido de estar à margem: a narrativa de Ana Paula Maia. p.35-48. In: GOMES, Gínia Maria (Org.). Século XXI: perspectivas para a literatura brasileira. Frederico Westphalen: URI, 2015. SUSSEKIND, Flora. Desterritorialização e Forma Literária. Literatura Brasileira Contemporânea e Experiência Urbana. p. 60 – 81.

LIBRETO, ÓPERA BABY E LIVRO LITERÁRIO PARA A INFÂNCIA: ASPECTOS DA POESIA INFANTIL E HUMOR NA CRIAÇÃO DE KAREN ACIOLY Fabiano Tadeu Grazioli* (URI) Alexandre Leidens** (URI)

1. PALAVRAS INTRODUTÓRIAS A Coleção “Bagunça”, da Rocco Jovens Leitores, formada até o momento pelos livros “Chuveiro” (2008), “A tinta” (2008) e “Os bichos” (2008), de autoria de Karen Acioly, com ilustrações de Nathalia Sá Cavalcanti, é o aproveitamento das letras das canções do libreto de “Bagunça” (2003), primeira ópera para bebês produzida (escrita e encenada) no Brasil. A ópera para crianças não é um produto cultural recorrente nas produções teatrais brasileiras, conforme podemos perceber na pesquisa de Alessandra Hartkopf (2009), intitulada “A ópera infantil brasilera contemporânea”, na qual a autora, no recorte temporal de 1950 a 2008, registrou a existência de apenas quinze produções profissionais. “Bagunça” figura, no levantamento de Hartkopf, como ópera baby, única com tal denominação na pesquisa. Além disso, os livros da coleção “Bagunça” registram, em sua última página, que a ópera era a primeira criação dessa categoria para bebês. Criação original, a obra exigia, no seu conjunto, uma readequação especial do gênero, que, no conjunto de linguagens que opera, buscava se comunicar efetivamente com o público em questão. Exemplo do resultado desse esforço são as três primeiras canções/cenas do espetáculo, que foram escritas e eram cantadas em “bebelês”, um idioma criado para se comunicar com as crianças no espetáculo. O poema que figura em “A tinta” (2008) é um exemplo desse idioma. Na presente comunicação, o criativo percurso das letras das canções da ópera baby registradas no libreto, passando pela encenação, transformadas depois em livro literário para criança, encontra respaldo nos estudos de Linda Hutcheon (2013), para quem as adaptações são revisitações deliberadas anunciadas e extensivas de obras passadas e representam modos distintos de interagir com os públicos de diferentes épocas. Contudo, nosso interesse maior recai na análise da criação literária de Acioly, antes letra de música, depois palavra cantada no espetáculo e, agora, poema oferecido à criança no formato de livro artístico. Nosso olhar, neste trabalho, recai sobre o poema do livro “Chuveiro” (2008). Nosso objetivo é perceber suas qualidades literárias, tendo em vista algumas características relacionadas por Maria da Glória Bordini em “Poesia Infantil” (1986). Também nos interessa perceber a construção do humor no poema, tarefa que faremos a partir do estudo “Poesia e humor para crianças”, de Leo Cunha (2005). Também lançaremos mão de algumas reflexões sobre a construção poética de Acioly a partir de considerações de Giani Rodari (1982). As análises apresentadas possuem abordagem qualitativa, sendo de natureza aplicada. Quanto ao objetivo proposto, o tipo enquadra-se como exploratório-descritivo e o procedimento técnico envolve pesquisa bibliográfica e documental, partindo de conhecimentos já produzidos para explorar o corpus do estudo: o poema “Chuveiro”.

Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo/RS; professor da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Erechim/RS; diretor de Teatro. E-mail: [email protected]. ** Licenciado em Letras pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Erechim/RS.E-mail: [email protected] *

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Cabe registrar que, devido à brevidade deste texto, nossa opção se fez pela análise do poema e não do livro, tarefa que evidenciaria as relações entre texto, ilustrações e projeto gráfico, pois elas não se apresentam de forma simples no livro em questão e demandariam mais espaço e tempo. Contudo, vale registrar o trabalho primoroso de Nathalia Sá Cavalcanti em ilustrações que jogam com o texto, principalmente na exploração do humor. Por não sermos adeptos a classificações rígidas em relação à produção literária e às categorias de leitores, insistimos em dizer dizer que o livro se enquadra na categoria pré-leitor – primeira e segunda fases – para fazer uso das categorias evidenciadas por Nelly Novaes Coelho (2000). Se considerarmos o predomínio da ilustração frente aos textos (ou seja, há texto em todas as páginas, mas há um predomínio absoluto da imagem), a obra seria mais indicada para a segunda fase, para a qual Coelho (2000, p. 199) prevê “textos brevíssimos, sempre centrados em uma situação atraente e sugestiva para o olhar e a mente infantil”, faixa etária a partir de quatro/cinco anos. Contudo, os leitores da primeira fase, com idades de dois/ três anos, também podem se beneficiar da obra, pois com a “mediação alegre e afetuosa do adulto” (COELHO, 2000, p. 198) a criança que não decodifica as palavras pode se beneficiar das imagens, uma vez que vive uma fase de elaboração da linguagem organizada, durante a qual a criança vai aprendendo a “ver” o mundo (e não olhar) o mundo; vai descobrindo os nomes dos seres que lhes rodeiam. Tal nomeação é fundamental no processo do desenvolvimento perceptivo/intelectual dos pequenos, à medida que os leva a estabelecer relações de identidade entre a situação representada no livro pelas imagens, o mundo visível e concreto que lhes é familiar (no cotidiano em que vivem) e no mundo invisível da linguagem que eles devem aprender a dominar. (COELHO, 2000, p. 198).

2. O POEMA, RECUPERADO DO LIVRO Reconstruímos o poema com base na pontuação e na disposição dos versos nas páginas do livro, como é o caso da segunda, terceira, quinta, sexta, oitava, nona e décima primeira estrofes, o que significa dizer que o livro sugere uma disposição para o poema, no caso de ele ser recuperado e diagramado seguindo a estrutura de estrofes. Não podemos garantir que essa seja a disposição original do poema no libreto, pois não tivemos acesso a ele durante esta análise.

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Chuveiro Lava a boca molha a tinta, limpa o rosto o umbigo, a pinta. A bagunça, a bagunça... Limpa, limpa. Chove no chulé do Zé, agora na linda Dora na perna fina da Nina, no peito do pé do Pedro, na bundoca da Clara, no ciricotico do Ciro. A bagunça, a bagunça... Limpa, limpa. No chulé e na bunda do Zé na perna do pé de Ciro na cara linda da Dora no ciricotico da Nina na pindamonhangaba do Pedro no paralelepípedo da Clara. Bunda, bundoca, bundinha. Água, brincadeira, bagunça. Bungaça, çabunga, Bagunça, gunça! Bagunça. Ba-guuuuuuuuunnnnnnn-çaaaaa!!! (ACIOLY, 2008) Sobre a disposição do poema no livro, parece-nos importante informar que, para cada verso da primeira, da quarta e da sétima estrofes, a equipe gráfica que cuidou do livro (ilustradora, designer gráfico e diretor de arte, supomos) designou uma página. As demais estrofes estão distribuídas em

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outros formatos: dois, três ou quatro versos em uma única página, dependendo da proposta do projeto gráfico e ilustrativo para aqueles versos em relação à ilustração.

3. POESIA INFANTIL: ALGUNS ASPECTOS PRESENTES NO POEMA O poema “Chuveiro”, de Acioly, responde positivamente à apreciação sugerida por Maria da Glória Bordini (1986), em “Poesia Infantil”, na qual, segundo a autora, o arranjo de elementos sonoros deve encontrar alguma ressonância no arranjo das figuras de linguagem e construções gramaticais, bem como na disposição dos versos e das estrofes. (BORDINI, 1986). A título de exemplificação, e sem a pretensão de esgotar o sistema de equivalências, notamos que o banho bagunçado registrado no conteúdo geral do poema, no espaço do “Chuveiro” (expressão título que interliga semanticamente as estrofes e versos), é sugerido na “bagunça” que a mistura de versos irregulares (de diferentes métricas) traz ao poema. Há um verso de uma única sílaba poética e versos com sete, oito e até nove sílabas poéticas. Há também uma “bagunça” em relação às unidades rítmicas (estrofes): temos um terceto, depois um dístico e, na sequência,uma estrofe formada por um único verso. Posteriormente, temos uma sextilha (ou sexteto), seguido da repetição do dístico e da estrofe de um só verso anteriores. Mais uma sextilha ou sexteto e depois um terceto e mais uma estrofe formada por um único verso. Fecham o poema dois dísticos. Há uma “bagunça” instaurada também na construção da sétima estrofe, quando posta em relação à quarta estrofe. Essa “bagunça” se inicia na construção sintática (são misturados, nos quatro primeiros versos, as partes do corpo em relação aos personagens, tendo em vista o que foi apresentado na quarta estrofe), e nos dois últimos versos são acrescidas duas palavras longas e engraçadas que não faziam parte da quarta estrofe. No nível semântico, a “bagunça” se instaura, pois, de fato, as proposições se misturaram. Tal “bagunça” evolui para o nonsense, tomado aqui como ponto máximo da desordem, quando se afirma que “[Chove] na pindamonhangaba do Pedro / no paralelepípedo da Clara”. (ACIOLY, 2008). A segunda e a quinta estrofes repetem os mesmos versos “A bagunça / a bagunça”. (ACIOLY, 2008). Na “bagunça” que toma conta do poema, a anarquia opera também na palavra bagunça, que, no primeiro verso da décima estrofe, transforma-se em “bungaça” e “çabunga”. No nível lexical, temos duas palavras que nascem da brincadeira e do jogo de letras e sílabas. Já no nível semântico, ambas são destituídas de significado, apelando ao humor e ao ilogismo. Quando temos versos livres, é importante lembrar que o ritmo comparece trazendo a sonoridade ao poema de acordo com as intenções do poeta, diferentemente dos versos metrificados (regulares), nos quais a sucessão de sílabas fortes e fracas predeterminam um ritmo sonoro. Embora o poema não apresente um ritmo regular, é de fácil percepção uma harmonia intencional até o final da sexta estrofe do poema, antes das “bagunças” sintáticas e semânticas iniciarem. Harmonia que não se mantém completa, frisamos, intencionalmente, para registrar, também no aspecto sonoro, a desordem, pois, de acordo com Bordini (1986), no seu ofício, o poeta busca rearranjar o real dentro de um esquema não apenas mental (o nível semântico, no poema) de entendimento, mas também físico, de participação corporal (o nível fônico do poema). (BORDINI, 1986). Ao fazer um levantamento das constantes estruturais do poema infantil, no final de “Poesia Infantil”, Bordini (1986) expõe diversos aspectos, dos quais vamos aqui reproduzir aqueles que dizem respeito diretamente ao poema que estamos analisando e também apresentar, em contraponto, os expedientes que Acioly (2008) utiliza e que não são elencados por Bordini. Nos aspectos fônicos, chama-nos atenção, que na construção de “Chuveiro”, não foram utilizadas assonâncias e aliterações à revelia, como sugere Bordini (1986), recursos esses amplamente utilizados em “A tinta”, da mesma autora e coleção. Cabe registrar a ocorrência das aliterações, pelos efeitos sonoros que produzem em “Chove no chulé do Zé” e “no peito do pé de Pedro”. Bordini (1986) lista, na composição do poema

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infantil, a onipresença de rimas internas e finais, das quais a autora fez uso do primeiro caso em “na perna fina da Nina” e “Chove no chulé do Zé”. Verificamos em “Chuveiro” a presença de refrões, ocorrência que Bordini (1986) prevê para estágios mais amadurecidos (leitores maiores). “Bagunça / Bagunça // Limpa, Limpa”, breves versos que formam as sucintas segunda e terceira estrofes se repetem na quinta e sexta estrofes e na segunda e décima. No quadro rítmico, afirma Bordini (1986) que, na poesia culta moderna, categoria que o poema em questão se encaixa (principalmente em oposição à poesia folclórica), os metros geralmente comparecem irregulares ou ausentes. “Chuveiro” está adequado a tal característica, conforme já salientamos. Quanto ao esquema rítmico, Bordini (1986) salienta que, para crianças pequenas, apresenta-se geralmente mais sincopado1 e simples. Por se tratar de versos livres, temos um esquema aleatório de sons, conforme já frisamos, que se modifica significativamente dentro da própria estrofe, como é o caso destes versos da sétima estrofe: “na perna do pé de Ciro” e “na pindamonhangaba do Pedro”. Na perspectiva lexical, o nome comum predomina, como avisa Bordini (1986), sendo que o nome próprio também se faz presente na nomeação das crianças, na quarta e na sétima estrofes. Em vez dos conectivos coordenativos, como sugere Bordini (1986), figuram, na quarta e na sétima estrofes, as preposições “no” e “na” e “do” e “da”. Nas demais estrofes, registra-se a parca ocorrância dos artigos “o ” e “a”. Em “Chuveiro”, as frases tendem a produzir o ordem direta, e as frases declarativas tomam o primeiro lugar. Em relação ao emprego literal e figurativo da palavra, salienta-se o primeiro, como quer Bordini (1986). As caraterísticas lexicais e morfosintáticas levantadas por Bordini (1986) em “Poesia Infantil” – algumas delas verificadas no poema em análise – “se encarregam de efetuar a necessária adaptação dos meios expressivos dos poderes de compreensão da criança”. (BORDINI, 1986, p. 64). Ainda sobre as coordenadas que Bordini nos legou sobre a poesia infantil, na década de 1980, queremos destacar: O poema infantil, nas diversas modalidades de origem, popular ou culta, orientado ora para o gozo corporal do som, ora para o prazer fantástico das imagens, ora para o jogo ideológico com a existência do leitor, constitui um repto cognitivo para a criança. A gratuidade inerente a esses tipos tão diversos de brincadeira com palavras – quando artísticos e não professorais – arrasta o pequeno leitor a uma situação mental em que se pode tudo desde a quebra de padrões linguísticos até a subversão dos moldes de apropriação do real. (BORDINI, 1986, p. 39).

O poema de Acioly opera nos níveis apontados pela autora: sonoro, imagético e ideológico, constituindo, como quer a autora, uma provocação intelectual para o pequeno leitor. Cabe registrar que a escrita poética de Acioly também responde a esse leitor no nível ideológico, à medida que sugere uma atmosfera lúdica no momento do banho da criança. Os meninos e meninas citados no poema – Zé, Ciro, Dora, Nina, Pedro e Clara – cumprem a tarefa de não corresponder à atividade chata e autoritária outorgada pela maioria adultos para o momento do banho: obedecer a determinados padrões e regras. Não se trata, por outro lado, do descumprimento da tarefa. Trata-se de realizá-la com a alegria e a bagunça que são características da infância. O banho, na construção poética de Acioly, é momento de festa, de transgressão, de alegria. Ficando assegurado esse espaço lúdico, mesmo que pela linguagem artística, o poema recupera um jeito de ser criança, o que significa dizer que ele tem implicações ideológicas ao assumir tal posicionamento frente à infância. Ainda olhando para o poema de Acioly a partir do fragmento de Bordini (1986), fica evidente nos versos da autora carioca a gratuidade inerente às brincadeiras inteligentes com palavras, as quais arrastam o leitor para uma vivência potencializada da infância. A quebra dos padrões linguísticos, que nessas vivências estão incluídos, estão presentes no poema em questão, conforme apresentamos, bem como a subversão dos moldes de apropriação do real, à medida que o pequeno leitor, Fortemente acentuado.

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em contato com o poema, compreende que o banho pode ser algo diverso do que o mundo adulto lhe revela. Sobre a “novidade” que a referida subversão representa, Bordini (1986, p. 39) afirma: Em contato com o texto poético, a criança é tomada por vivências que a distanciam de seu ambiente familiar, linguístico e social. Todavia, a configuração eminentemente ordenada dos estímulos do mundo poético (os ritmos, a criação de vínculos entre objetos isolados) garante que esse deslocamento se processe num clima de segurança, em que o incomum produz prazer e não temor.

No poema infantil com traços de qualidade, a novidade que a criação poética representa para a criança traz em si o olhar que a distancia de suas vivências habituais e, ao mesmo tempo, garante que o incomum produza deleite e não medo. “Assim, a experiência do poema propicia o alargamento dos conteúdos da consciência por uma prazerosa tomada de posse do desconhecido, suscitada pelo desafio das formas e ideias”. (BORDINI, 1986, p. 39). Nesse processo, as características do poema “Chuveiro”, já comentadas, também se agregam à poesia infantil de Karen Acioly. Forma e conteúdo, conforme demonstrado, se ajustam e possibilitam a apreensão aprazível do desconhecido, o que propicia a ampliação dos modos de ser e perceber o mundo.

4. POESIA E HUMOR PARA CRIANÇAS Em importante estudo que tem o mesmo título de nossa seção, publicado no livro “O que é qualidade em Literatura Infantil e Juvenil: com a palavra o escritor”, organizado por Ieda de Oliveira (2005), Leo Cunha afirma, grosso modo, que, na poesia infantil, “podemos apontar duas correntes (ou pelo menos tendências): uma que é mais marcada pelo lirismo e outra que se distingue principalmente pelo humor”. (CUNHA, 2005, p. 79). Cunha destaca a importância da poesia lírica para criança, mas volta sua atenção para a segunda corrente, na justificativa de que a qualidade da poesia infantil caracterizada pelo humor é menos valorizada do que deveria. Nos interessa, no estudo, revisitar as formas a partir das quais o humor pode se manifestar na poesia para crianças: o humor no jogo de palavras, o humor no jogo de ideias e o humor na reinvenção do cotidiano. Nossa atenção recai principalmente no humor no jogo de palavras, tendo em vista as ocorrências no poema em questão. Tratando do humor que se constrói a partir do jogo de palavras, Cunha (2005, p. 81-82) afirma que “Para a criança, a linguagem é um espaço privilegiado para a apreensão e compreensão do mundo. Por isso, brincar com palavras é uma atividade natural, que ela faz com prazer e por prazer”. Cunha trata inicialmente de um humor que nasce da sonoridade, da brincadeira com os sons da palavras. Nesse sentido, no poema “Chuveiro”, “chulé do Zé” é brincadeira exemplar, pois, além da relação sonora das palavras, há o flagrante do humor registrado no fato de se admitir que o menino tem chulé, subvertendo a ideia de um possível menino asseado e limpo. Contudo, o humor no jogo de palavras, no poema em questão, ocorre sobretudo na seleção lexical de alguns versos. Em se tratando do momento do banho de um grupo de crianças, a autora explorou de forma cômica a nudez e as partes íntimas dos pequenos, utilizando-se: a) da presençada palavra “bunda” e suas variações, como em “na bundoca da Clara” na quarta estrofe, “No chulé e na bunda do Zé” na sétima estrofe, e toda a oitava estrofe: “Bunda / Bundoca / Bundinha”; b) da utilização da palavra siricotico num contexto que pode significar o orgão genital masculino, no verso “no ciricotico do Ciro”, na quarta estrofe2, e o orgão genital feminino, no verso “no ciricotico da Nina” da quarta estrofe, o que pode gerar estranheza, mas que, se relacionado ao mundo infantil, rico em invenções, trocadilhos, neologismos, e ideias inusitadas, não se torna absurdo. Pendem ao humor também a seleção das palavras “pindamonhangaba” e “paralelepípedo”, dos versos finais da sétima estrofe, pela pronuncia engraçada que A ilustração para este verso reforça esta possibilidade.

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possuem. Tais palavras, e ainda “ciricotico”, nas duas situações apresentadas, e a palavra “bunda” e suas variações trazem humor ao poema também pela surpresa que causam. Bem explicou Angela Leite de Souza (2013, p. 26): Que efeito seria esse [que o poema infantil em geral produz no leitor]? A surpresa, que é, sem dúvida, um dos meios mais eficazes de que o texto poético se vale para capturar o leitor. Quer pela co­locação inusitada de um termo no verso, quer por um novo significado dado a um conceito conhecido, quer pela invenção de uma palavra – a poesia encontra jeitos especiais de atraí-lo. Ainda mais quando esse leitor é uma criança, a grande especialista em criar neologismos e misturar sentidos!

Segundo Cunha (2005), muitas vezes o jogo de palavras é realizado em detrimento do sentido, daquilo que é inteligível. Isso acontece, por exemplo, com a inserção das palavras “pindamonhangaba” e “paralelepípedo”, dos versos finais da sétima estrofe, e também com as palavras “Bungaça” e “çabunça”, na décima estrofe, essas últimas evidentes brincadeiras com a palavra “bagunça”. Quanto ao sentido relacionado ao humor, Bordini (1986, p. 65) afirma: “Quando da ocorrência de tonalidades cômicas ou fantásticas, a articulação interna do sentido é feita pelo ilogismo livre-associativo”. Essa colocação traz uma perspectiva de recepção muito ampla do poema infantil, o que é altamente positivo, e assegura o espaço do leitor-criança frente ao poema criado, observando-se justamente as características da infância, pois “Brincar com palavras é uma atividade natural para a criança”, conforme apregoou Cunha (2005, p. 81-82). O humor que se constrói a partir do jogo de ideias é aquele que nasce da brincadeira com ideias e conceitos, não exatamente com as palavras (CUNHA,2005). Acreditamos que, de modo geral, a atmosfera que impera no poema, a qual já descrevemos, é uma tentativa bem sucedida de construir humor articulando ideias e conceitos de maneira original e sensível sobre um tema recorrente na infância. Dessa ocorrência, podemos passar à breve análise do humor na reinvenção do cotidiano, que é aquele que diz respeito aos projetos literários que percebem o humor nas situações mais banais, encontradas pela criança em seu dia a dia. (CUNHA 2005). Acioly demonstra ter, em “Chuveiro”, o olhar da decoberta, no caso dela, humorado, para uma situação do cotidiano da criança. A autora, a seu modo, reinventa o mundo ao lançar um olhar sensível e lúdico para as cenas da infância.

5. PALAVRAS FINAIS Cabe revermos, neste fechamento, algumas palavras de Bordini (1986) acerca da utilização do ilogismo e da comicidade na poesia infantil. Pergunta a pesquisadora se a insistência histórica do poema infantil no ilogismo e na comicidade não traz em si uma forte dose de traição à criança e se seria demais suspeitar que os produtores adultos apostam nesses expedientes para manter a criança em um certo estágio mágico, não lhe abrindo as portas às prerrogativas adultas da racionalidade. É a pesquisadora que responde às suas próprias provocações: “Só quando a produção poética transcede a tendência à inferiorização de seu destinatário, tratando-o em pé de igualdade e apresentando-lhe um texto com o mesmo nível artístico que para o público infantil, é que essa traição não ocorre”. (BORDINI, 1986, p. 21). O poema“Chuveiro” salta aos nossos olhos à medida que não inferioriza seu destinatário, apresentando-se ao pequeno leitor com alto nível artístico, conforme fomos demonstrando ao longo desta comunicação. Há de se oferecer o poema infantil ao pequeno leitor, respeitando aspectos de sua pequena idade, mas fazê-lo com requinte, sem perder a oportunidade de promover um encontro com um produto artístico sofisticado, que nasce do mergulho na própria infância, conforme apontamos na criação de Acioly. Souza (2013) salienta a tentação dos adultos de corrigirem as falas poéticas das crianças, tentação essa “peri­gosamente castradora, pois não só reprime a espontaneidade, como ignora a in-

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timidade que a criança tem com as coisas concretas e ainda aumenta o sentimento de inferioridade que nossa cultura habitualmente imprime no espírito infantil”. (SOUZA, 2013, p. 22). A produção de Acioly, exemplificada aqui pelo poema “Chuveiro”, demonstra que a autora não silencia suas próprias falas poéticas com matizes infantis na elaboração de sua poesia. Acioly e seu processo criativo também nos lembram as palavras de Gianni Rodari (1982, p. 140), para quem Criatividade é sinonimo de pensamento divergente, isto é, de capacidade de romper continuamente os esquemas da experiencia. É criativa uma mente que trabalha, que sempre faz perguntas, que descobre problemas onde os outros encontram respostas satisfatórias (...), que recusa o codificado, que remanuseia objetos e conceitos sem se deixar inibir pelo conformismo.

Sendo a palavra artística o objeto que Acioly remanuseia, é através dela que a autora rompe os esquemas de experiência, no labor do trabalho artístico. As qualidades apontadas por Rodari (1982) comparecem na criação artística de Acioly, que, não temos dúvida, é exemplo de adulto-artista que sabe que o livre uso de todas as possibilidades da língua representa uma das direções para as quais a criatividade pode expandir-se. A autora, salvo o conhecimento em poesia infantil que garante os arranjos de que falávamos anteriormente, comporta-se como criança, como sugere Rodari (1982) que, tendo sua imaginação estimulada a inventar palavras, aplica seus instrumentos sobre todos os traços da experiência, ato que provoca sua intervenção criativa e impulsiona sua produção poética. E, por fim, cabe-nos fazer uma afirmaçãoem torno do fato de o poema de Acioly nascer inicialmente para compor, como letra de canção, o libreto da primeira opera baby do Brasil, transformar-se em cena/música do referido espetáculo e, depois, migrar para as páginas da obra literária para crianças. Nossa intenção não foi o de estudar o processo de adaptação que o percurso descrito acima expõe, contudo, é importante verificar que a “transcodificação” que envolveu diferentes mídias – para usar uma expressão de Linda Hutcheeon (2013) – está “contaminada” pelas características da produção literária de Acioly. A cadeia artística que antecede o livro, e do qual o livro é, até o momento o produto final, singulariza-se pelo conjunto de características que apresentamos para o poema, já que esse é matriz para os produtos artísticos que o antecederam.

REFERÊNCIAS ACYOLI, Karen. Chuveiro. Rio de Janeiro: Rocco jovens leitores, 2008. BORDINI, Maria da Glória. Poesia Infantil. São Paulo: Ática, 1986. CUNHA, Leo. Poesia e humor para crianças. In.: OLIVEIRA, Ieda. O que é qualidade em Literatatura Infantil e Juvenil? Com a palavra o escritor. São Paulo: DCL, 2005. COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. HARTKOPF, Alessandra. A ópera infantil brasileira contemporânea. In: XIX Congresso da ANPPOM, 2009, Curitiba. Anais... Curitiba: UFPR, 2009, p. 132 -135. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Editora UFSC, 2013. RODARI. Gianni. Gramática da fantasia. São Paulo. Summus, 1982. SOUZA, Angela Leite. Alguns dedos de prosa sobre poesia. In.: CUNHA, Leo. Poesia para crianças: conceitos, tendências e práticas. Curitiba: Positivo, 2013.

PRÉDIOS HISTÓRICOS DE UM BAIRRO: SUAS VIDAS, SUAS MEMÓRIAS, SUAS IDENTIDADES Fátima Giuliano* (ULBRA)

A cidade é um grande cenário de imagens e de linguagens, uma esfera intercambiante de fronteiras de sentidos. A cidade é um sistema de interação comunicativa entre os atores sociais, responsáveis pela produção de uma cultura e simbologias urbanas (PRYSTHON, 2006, p.7).

Na pesquisa em Educação e, mais especificamente, nos Estudos Culturais em Educação, nossos estudos são forjados através de um pensamento e de um questionamento que beira o inusitado, que busca trilhar por caminhos nem sempre convencionais e busca, acima de tudo, apresentar indicativos a perguntas e questionamentos, sem nunca dar respostas definitivas pois, segundo os Estudos Culturais da vertente pós-estruturalista, estas não existem. Como moradora de um dos bairros mais antigos e tradicionais da cidade de Porto Alegre e como pesquisadora dos Estudos Culturais em Educação, quis investigar o que o bairro onde habito ensina a quem nele vive ou por ele circula. Da principal indagação da minha dissertação de mestrado: o que se aprende pelo simples fato de viver, frequentar, passear, permanecer e gostar de estar no bairro Cidade Baixa? procuro, neste recorte, responder a parte dessa indagação com o objetivo: investigar como as camadas históricas se descortinam no bairro e quais formas de relação com a população elas produzem. Vou, portanto, em direção a uma possível pedagogia da cidade no bairro Cidade Baixa. Parto do pressuposto de que se pode entender e perceber uma cidade, bairro ou região como textos culturais que falam conosco, que nos contam histórias, que nos convocam a certos entendimentos e certas práticas e, assim, atravessam nossas vidas, imprimem nelas suas marcas e acabam contribuindo para nos constituir como pessoas. Esses textos nos educam. Para atingir este meu objetivo, investiguei, identifiquei e relacionei os textos e fazeres do bairro com sua população fixa ou mutante. Para isso foi imprescindível ver nesta pesquisa certas práticas culturais que se esboçam, ensinam e educam. Elas me permitiram pensar sobre uma possível pedagogia da cidade.

1. UM JEITO DE PESQUISAR A “CIDADE BAIXA” Para conseguir atingir meu objetivo o modo de pesquisar de Simon Gottschalk (1998), mediante uma etnografia pós-moderna, me ofereceu ferramentas teórico-conceituais e metodológicas que abrem espaço para a ambiguidade, o avesso, a instabilidade, a transitoriedade, as interrupções midiáticas, as experiências pessoais, os afetos. Através da etnografia pós-moderna praticada por Gottschalk (1998), vão sendo construídas leituras sobre as cidades e descobrimos como, por morar, andar ou frequentar um espaço urbano, aprendemos muitas coisas e vamos nos educando nele. Pelos passos desse etnógrafo pós-moderno diferentes formas de desvendar e entrelaçar caminhos investigativos mostraram-se possíveis e eu, como uma aprendiz de etnógrafo, segui estes passos. Dos cinco “movimentos metodológicos” que o autor Gottschalk (1998, p.25) me apresentou, os dois escolhidos, para este artigo, foram sendo captados e relacionados com minha experiência na Cidade Baixa. Atravessada pela auto-reflexividade, procurei apresentar a transformação pós-moderna

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Mestre em Educação, Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, Brasil, email: [email protected]

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da voz “onisciente e ausente” realista e descartar a objetividade intrínseca. Ao falar de desvios em espaços determinados, apontei o valor do local para a auto-reflexividade, para as sensações, as emoções, as interferências e compreendi o quão é importante desenvolver métodos de pesquisa de observação que levem em consideração e se adequem ao local de análise. Com o fim da busca pela “grande verdade”, o estudo etnográfico pós-moderno perscruta o momento presente e procura as diferentes verdades que podem ser percebidas e identificadas, “experimentais, locais, modestas, temporais e intertextuais” (GOTTSCHALK, 1998, p.10). Em meu relato, não pretendi que minhas narrativas fossem conclusivas e determinantes, mas que sofressem diferentes interpretações, fossem frequentemente modificadas e reconstruídas e tivessem um elevado grau de subjetividade. Tudo isso me ajudou a construir um outro olhar sobre os lugares históricos da cidade, suas diferentes tramas e suas contundentes pedagogias que nos constituem como sujeitos urbanos desses tempos. Estes modos de olhar foram exercitados desde junho de 2013 e prosseguiram até julho de 2014, percorrendo o bairro cuja composição do repertório iniciou com as manifestações de junho de 2013 e foram até o período da Copa de 2014. Para compor esta extensa trajetória, fiz meus registros mediante fotografias, entrevistas com personalidades do bairro como André Venzon, 38 anos, à época da pesquisa Diretor do Museu de Arte Contemporânea do RS e Otávio Marshall, aproximadamente 36 anos, sócio-gerente administrativo do StudioClio Arte e Humanismo, conversas informais e anotações em meu caderno de campo. Percorro agora um pequeno caminho e discorro sobre as pedagogias que me mostraram formas de educar e de conduzir os sujeitos e vou em direção a uma pedagogia da cidade.

2. A MULTIPLICIDADE DE PEDAGOGIAS Na pós-modernidade, a cultura passou a ser entendida e percebida não mais só ligada ao domínio da erudição e de seu viés segregador e sim passou a dar voz e vez para o que começou a ser designado como cultura de massa, dando espaço e significando lugares diversos da cultura, ampliando seu alcance e atingindo as classes populares. Nos diz Costa (2011, p. 108) que, dessa forma, por exemplo, podemos nos referir, à cultura de massa, típico produto da indústria cultural ou da sociedade techno contemporânea bem como às culturas juvenis, à cultura surda, à cultura empresarial, ou às culturas indígenas, expressando a diversificação e a singularização que o conceito comporta.

A cultura entendida pela leitura dos Estudos Culturais, não valoriza apenas o que de melhor foi criado pelas civilizações ou o que é restrito a alguns saberes e elementos elencados como eruditos, mas a cultura, traduzindo e significando fatos diários e corriqueiros. “A cultura passa a ser vista tanto como uma forma de vida (ideias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e relações de poder), quanto toda uma gama de produções, de artefatos culturais (textos, mercadorias, etc)” (COSTA, 2011, p.109). A função principal da pedagogia sempre foi a de educar os jovens, visando conduzi-los nas direções que a sociedade considerava desejável. Muitas pedagogias estão em discussão hoje em dia, nos estudos sobre Educação, especialmente quando estes se inscrevem nos Estudos Culturais. Variados espaços e artefatos se aproximam, ultrapassam, mesclam e cruzam as instituições educativas tradicionais como escola, família e Igreja e estes jovens convivem e habitam no e com estes diferentes espaços e artefatos. É por isso que precisamos problematizar a pedagogia. As pedagogias surgem para permitir que a introdução à vida seja feita de forma mais depurada e perceber a maneira como cada indivíduo vai responder a sua permanência e aos embates desta vida, inseridos neste processo educativo é um dos nossos desafios hoje. Giroux (2002, p.100) diz que “a pedagogia representa um modo de

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produção cultural implicado na forma como o poder e o significado são utilizados na construção e na organização de conhecimento, desejos, valores”. Dessa forma, se apresenta aqui uma possibilidade e necessidade de pluralização no conceito de pedagogia. Quanto a isso, Camozzato (2014, p.4) nos diz que existe um tensionamento entre a “pedagogia unitária” e as pedagogias que tomam forma com as modificações que ocorrem com relação à cultura, instadas na pós-modernidade. De outra maneira, colocar em foco a diversidade de pedagogias existentes atualmente permite “ir em direção às importantes contribuições do pós-moderno e da virada linguística” (CAMOZZATO, 2014, p.4). Essas formas de condução foram alvo de minha pesquisa sobre os sujeitos da Cidade Baixa e como essas pedagogias os produzem, como permitem uma troca constante, um mesclar de ensinamentos de condutas, de construção de sujeitos que podem ser acoplados, transmutados, ressignificados ou montados, conforme interesses, tendências, poderes em ação, objetivos sociais, etc. Quando atuamos sobre nós mesmos, para nos produzirmos, estamos praticando uma vontade de pedagogia, e isso é feito a partir de relações conectadas e sistemáticas e elas não ocorrem em ambientes pré-determinados. O seu objetivo é “a sociedade como um todo e, ao mesmo tempo, cada um de nós” (CAMOZZATO e COSTA, 2013, p.32-33). A vontade de pedagogia trabalha em seus fundamentos com o conceito de governamentalidade e, portanto, aplica o princípio de que devemos nos governar e governar os outros. Segundo as autoras, há vontade de pedagogia quando existe vontade de governar sujeitos. De outra forma, de acordo com Camozzato (2014, p.587), neste nosso “mundo líquido”, pós-moderno e contemporâneo, as argumentações sobre pedagogias do presente “estão centralmente articuladas às práticas de si”. As pedagogias do presente são as que se constituem e atuam num sistema de atualização permanente e ininterrupto sendo, portanto, relacionadas ao tempo contemporâneo e sua liquidez, impermanência, volatilidade e inconstância. Neste caso, o alvo das pedagogias do presente se submete ao tempo em que vive e se constitui, integrando este mesmo tempo. É assim que quando olhamos para o bairro Cidade Baixa e seus prédios antigos começamos a vislumbrá-lo como um espaço de práticas pedagógicas, um espaço educativo, portanto. O conceito de pedagogias culturais alicerça minha pesquisa no que tange aos diferentes lugares, para além da escola, que se apresentam para educar, para constituir os sujeitos. Surge, também, para expressar todo “um conjunto de transformações sociais e culturais” que se mostraram em minha pesquisa. Busco ir, então, em direção ao esboço de uma pedagogia da cidade, tentando mostrar o quanto este lugar cidade/bairro pode ser considerado como uma pedagogia cultural por educar, construir, constituir, formar, ressignificar com seus ensinamentos. O sujeito é impactado, moldado, impregnado por este lugar de prédios históricos e, ao mesmo tempo, ele, por morar nele, frequentar ou transitar também transforma este lugar e se integra em suas ações educativas. Em minhas análises se descortinam diferentes formas de se educar na cidade/bairro, seja por tomar posse do lugar, pelo convívio nos lugares de patrimônio cultural ou por descobrir as histórias do lugar. Não vim para aprender, mas aprendo, compreendo, interajo e ressignifico com minha intervenção, cada situação é vivida e aprendida.

3. SOBRE CAMADAS HISTÓRICAS E HISTÓRIAS DA CIDADE Ao transitar por uma cidade, suas construções e prédios, também são textos culturais que falam de nós, de nosso tempo e de outros tempos que nos constituem, que também nos educam e nos mostram as diversas formas de habitar e viver na cidade. Seja através do sobrado que virou restaurante, casa noturna, bar, seja através de um Solar que virou Museu ou espaço de cultura, educação e lazer, seja através de uma rua de casas geminadas que seguem integrando o cenário do bairro e

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abrigam espaços de arte, ou religiosos, assim como moradias onde crianças residentes brincam e se divertem, como se lá o tempo tivesse parado. O que nos diz essa convivência multifacetada, que possibilita integrar diferentes interesses e necessidades? O que nos dizem estes lugares sobre preservar a história e a vida do passado e trazê-los para o presente? O que suscita nos residentes antigos e nos jovens residentes e frequentadores? Como nos diz Fonseca (2009, p. 65), para que a função do patrimônio cultural se cumpra, é imprescindível “identificar e documentar” antes de selecionar o que será protegido e, posteriormente, deverá colocar em ação o “promover” e “difundir”, “que viabilizam a reapropriação simbólica e, em alguns casos, econômica e funcional dos bens preservados”. Para que se perceba um pouco sobre isso, busquei três lugares da Cidade Baixa; StudioClio, Museu de Porto Alegre José Joaquim Felizardo e Travessa dos Venezianos, que atravessam os tempos e trazem narrativas que ensejam um aprender e ensinar constantes. O primeiro deles é o “StudioClio Arte & Humanismo”, localizado na José do Patrocínio. Segundo Otávio, o prédio remonta ao ano de 1924 e funcionou durante um tempo como um cortiço, onde as pessoas alugavam quartos para morar. Em 1979, foi adquirido por Flávio Del Mese1 para se tornar o Estúdio Flávio Del Mese. O espaço oportunizava, às pessoas, sessões de projeção de slides com áudio sobre diferentes e exóticos lugares do mundo. Para Otávio, “teve um papel importantíssimo na história de Porto Alegre”. A conformação espacial interna era similar ao que é hoje, com um auditório para 150 pessoas. A programação do StudioClio tem uma conexão com o que era mostrado no Estúdio Flávio Del Mese, isso fomentou outras iniciativas culturais na Cidade Baixa e em outras partes de Porto Alegre. Segundo Otávio, “o StudioClio participa ativamente da vida do bairro, porque ele dialoga com todo mundo; com o comerciante, com os moradores. A gente é bem visto por todo mundo”. As fachadas, que são trabalhadas através de imagens/ painéis, dialogam com os residentes e com os frequentadores da Cidade Baixa. Muitos param para ler o que está nestes painéis, para ver estas imagens. O StudioClio serve como um centro, que busca trazer sujeitos e que agrega conhecimento para os residentes e todos os que frequentam o lugar. Otávio diz que eles procuram democratizar ao máximo a programação, sem elitizar, buscando atingir camadas diversas da população. Desde atividades gratuitas até atividades como viagens, banquetes temáticos, shows, concertos, encontros com personalidades, cursos. O prédio foi adquirido em 2003 de Flávio Del Mese, que buscou um comprador que tivesse objetivos semelhantes aos dele, que desse continuidade ao seu projeto e continuasse proporcionando uma ligação cultural de Porto Alegre com o resto do mundo. Pertence à família de Otávio e foi restaurado e adaptado para as necessidades do StudioClio. Nas palavras de Otávio, “a Cidade Baixa tem uma vocação de diversidade, de estimular diferentes universos e de pessoas, e o StudioClio faz parte deste ciclo”. Percebo, através desta narrativa, a importância que tem um prédio, parte da construção histórica de uma cidade, restaurado, retransfigurado, ressignificado para a comunidade local, ou mesmo para toda a cidade, como diz Cerqueira (2005, p.92), “patrimônio aqui se refere ao legado social, comum, que é depositário de memórias e de identidades coletivas”. Dos vários e-mails que Otávio recebe, ele se refere a um que denomina o StudioClio como “verdadeiro patrimônio cultural de Porto Alegre”. Percebo que este prédio histórico, que abriga cultura, lazer, entretenimento, informação, e congrega diferentes sujeitos que transitam pela casa, seja usufruindo de sua programação ou convivendo e habitando o mesmo lugar, celebra a importância de preservar e manter as lembranças e memórias destes lugares centenários, ensinando muitas coisas. Ensina que a história de uma cidade e de um bairro é composta por um mosaico variado e multifacetado de antigas e novas construções, e que as antigas construções precisam ser Fotógrafo nascido em Caxias do Sul começou a viajar quando enviado pela Companhia Jornalística Caldas Junior à Inglaterra/Londres, onde residiu por dois anos. Iniciou seus trabalhos para a Vita Press e, após, foi para o Vietnã e Camboja, onde permaneceu por oito meses. Voltou a Londres e de lá para o Brasil, com farto material fotográfico. De volta ao Brasil foi chamado a falar sobre diferentes aspectos culturais, históricos e geográficos dos países que visitou, construiu o Studio Del Mese, sala de projeções, a primeira planejada e construída para esse fim, onde hoje funciona o StudioClio.

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conservadas, restauradas, para que permaneçam como testemunhos vivos do fluir das vidas e das experiências. Como diz Cerqueira (2005, p.94), a cultura imaterial, quando entendida como patrimônio, não pode ser mapeada como os tradicionais modelos da cartografia, como prédios ou obras de arte, mas “os mapas da cultura devem expressar, numa cidade, que existe diversidade cultural e diversidade de modos de apropriação desta cidade; que os diferentes grupos que a constituem possuem os seus próprios mapas; [...] que uma cidade, e tudo o que ela possui, não é uma, mas várias cidades.” O StudioClio dá vida a estes conceitos, pois não se restringe unicamente a uma programação cultural, mas, como diz Otávio, “do ponto de vista fiscal, o StudioClio está inserido na categoria de educação especial, temos fins lucrativos, mas nosso caráter é educacional, não é meramente cultural”. Pode-se perceber isso pela programação sugerida, que tem uma “estrutura curricular transdisciplinar”, mais voltada à educação do que à cultura, é um projeto com uma metodologia original que aponta para a “transdisciplinaridade e a multisensorialidade”, uma combinação de diferentes disciplinas do conhecimento para explicar temas da história e da cultura usando, além dos recursos visuais e auditivos, os sensoriais, como o olfato e o paladar, buscando ultrapassar os limites de percepção. Aqui se apresenta o conceito de pedagogias culturais por confirmar que diferentes lugares, para além da escola, se apresentam para educar, para constituir os sujeitos. Surge, também, para expressar todo um conjunto de transformações sociais e culturais. Outro prédio histórico da Cidade Baixa que educa seus frequentadores assim como os habitantes do bairro é o prédio que abriga o “Museu Joaquim José Felizardo”, que já abrigou a família de Lopo Gonçalves, preservando, para o presente, fragmentos da história do passado. Segundo fonte do próprio Museu, ele tem como missão “promover a interação da sociedade com o patrimônio cultural do Município, com ênfase na sua história e memória, através da preservação, pesquisa e comunicação dos bens culturais sob a guarda da Instituição”. O Museu nos conta sobre a cidade de Porto Alegre através de seus três acervos: histórico, fotográfico e arqueológico. Apresenta exposições e promove encontros culturais mensais, por exemplo o “Diálogos no Museu”, e também cursos e oficinas. O projeto Caixas de Memória, leva um “pedacinho” do Museu e da história da cidade até as escolas públicas (GELMINI, TOCCHETTO e ZUBARAN, 2011). Oportuniza também, visitas guiadas de escolas, universidades e grupos de profissionais da área de turismo e interessados, portanto, oportuniza educação, conhecimento, informação que pode ser transmitido a esses sujeitos através das peças em exposição, mas também pelo fato de circular por seus espaços, de percorrer seus corredores, seu jardim. Tudo isso nos ensina, nos educa, nos mostra a importância de manter em atividade estes espaços que contam uma história, que através de suas diferentes camadas históricas nos constituem, inscrevendo-se na história atual de residentes, frequentadores e transeuntes. Estas convivências e vivências foram experienciadas, também, quando dos diversos eventos que ocorreram nos jardins do Museu. Aprender, descobrir, viver a história do lugar, transcender e transpor as barreiras do tempo, achar um denominador que sirva de elo e que transmita o conhecimento do passado e os traga para o presente. Mas, da mesma maneira que o Museu educa, ele é educado e reconfigurado por todos que por lá transitam, pelos que ocupam os seus espaços, para as diversas outras funções que são dadas a este lugar, ele se redesenha e é inserido no contexto contemporâneo. O Museu está vivo! Um território tombado na década de 1990, na Cidade Baixa, é o conjunto da Travessa dos Venezianos, que hoje abriga a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa − Chico Lisboa, instalada no número 19, há 10 anos. Além da associação, existem residências, uma casa de religião e alguns ateliers. Segundo André, a partir dessa iniciativa, muitos projetos se desenvolveram iniciando, em 2005, com o Projeto Antirretratos Cidades sem Face, que começou na Cidade Baixa com o fotógrafo Luis Sperotto. Vários grupos orbitavam no entorno, como o núcleo de gra-

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vura, o Atelier de Vasco Prado, o Atelier Livre, o Núcleo dos Gravadores de RS e a Associação dos Ceramistas, na Rua Lopo Gonçalves. Os grupos sempre habitaram, pois existe um sentimento pelas “casinhas” da Travessa dos Venezianos, pelo que elas representam e simbolizam na construção histórica do bairro e, também, pela proximidade com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e seu Instituto de Artes. Segundo André, “a Cidade Baixa sempre foi um bairro residencial que, ao longo das décadas, foi se adaptando para esses novos usos, que são mais contemporâneos”. A Travessa dos Venezianos tem uma particularidade. Mesmo sendo um logradouro público tombado, os sujeitos habitam as residências, que apesar do tombamento e do restauro não afastou as pessoas. As crianças brincam durante o dia, espiando pelas janelas, batendo nas casas dos outros, como diz André “elas vão crescer na Travessa, vão permanecer e continuar sua família, mantendo vivo este espírito do lugar, que tem muito que é apreendido e compartilhado”. O que normalmente ocorre é que as políticas de preservação objetivam a defesa do patrimônio material, mas o uso desse território, a preservação dos costumes, essa vida que segue e estes residentes antigos preservam este aspecto imaterial da Travessa. Isso vem ao encontro da ideia de Fonseca, usando a expressão de Arantes (1989 apud Fonseca, 2009, p.67) de que a preservação do patrimônio cultural é uma ‘prática social’ “ que implica um processo de interpretação da cultura, como produção não apenas material como também simbólica, portadora, [...] ‘de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade’” (FONSECA, 2009, p.67). Para André, quando um empresário compra uma casa antiga para transformar em um bar e faz escolhas, como o nome do estabelecimento, o tipo de música e de bebida que ele vai servir, ele possibilita que se compartilhe uma cultura com outros sujeitos que frequentam o mesmo lugar e, portanto, ele “consegue restaurar uma convivência, uma vida para aquele lugar”. O primordial é manter ativa a vida do lugar, sua sociabilidade. A Cidade Baixa tem uma área histórica preservada que fica ao lado do centro histórico. Um antigo bairro de pobres, militares e negros é hoje um dos bairros mais valorizados, sem perder o seu aspecto democrático, popular, valorizado pela diversidade. É um bairro que serve como exemplo; para André: “certo ou errado ele é um bairro muito falado, muito publicizado pelas pessoas que vivem nele, ou que para cá vêm”. Concordo com o que diz André: que “a Cidade Baixa, pela proximidade com o centro e pelo seu corpus urbano, pelas pessoas que vivem, que circulam, é um bairro que educa quando as pessoas podem se deslumbrar, num primeiro momento pelas fachadas, pelos aspectos arquitetônicos da região, desse corpus urbano”. As casas antigas e suas fachadas podem servir também para encantar com sua magia. Os residentes e frequentadores vão consumir até mesmo de uma forma inconsciente este aspecto cultural. Estes lugares fazem a mediação com a arte e com a cultura, que também está na Cidade Baixa. Na concepção de construção histórica, quando um sujeito caminha pelas ruas do bairro e percebe o valor dessas casas, seja este sujeito o empresário que vai explorar comercialmente, seja um jovem que veio para estudar e buscar um lugar para moradia, seja um artista que entende que residir num lugar assim é a realização de um sonho, essa busca e a participação neste cenário educa estes sujeitos. A fala de André dialoga com o que diz Cerqueira (2005, p.100) sobre o conceito de educação patrimonial: que busca sensibilizar as comunidades sobre a importância de preservar a sua memória; mais do que isso, busca gerar uma reflexão sobre as memórias dos diferentes grupos sociais, de modo que se perceba que patrimônio não é somente o monumento belo e notável que fala do passado de algumas elites, mas que patrimônio é, outrossim, todo símbolo de memória coletiva, do terreiro à igreja, do sobrado à senzala, das praças públicas aos prédios às escolas, dos antigos armazéns de bairro aos grandes teatros, das canchas retas aos estádios de futebol.

Para André, o sujeito que conhece estes espaços e percebe sua força e potência visual não vai deixar de se surpreender e no momento em que há este encontro, esta surpresa, este deslumbra-

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mento, é ali que tem início um processo educativo. O conhecimento pode ser transmitido com amor, paixão e envolvimento. Portanto, se percebe que estamos sendo educados para esta revitalização, que estamos nos apropriando destes lugares e dando continuidade a suas histórias e, ao mesmo tempo, estes lugares estão sendo ressignificados nestes novos usos, estão sendo remodelados para fazer parte do contexto contemporâneo.

4. LEITURA FINAL Ao finalizar este estudo procuro responder ao meu objetivo ao compreender que os prédios antigos, tombados ou não, mantêm presente e atual o passado, eles ressignificam seus códigos, que trazem até os sujeitos, residentes, frequentadores e transeuntes as histórias vividas em suas construções, ensinam através de seus prédios antigos e de suas fachadas, que o patrimônio histórico deve e precisa ser preservado, seja tombando o imóvel ou seja, simplesmente, mantendo-o vivo, habitando seus lugares com diferentes finalidades, para que se transforme em lugar. Estes lugares, por seus novos usos, ensejam aprendizagens acerca do direito à cidade, acerca das camadas históricas da região, sendo vistos como mantenedores da história, evidenciando-os como memória, pois como diz Gonçalves (2009, p.27), “o patrimônio é usado não apenas para simbolizar, representar ou comunicar: é bom para agir [...]. Não existe apenas para representar ideias e valores abstratos e para ser contemplado. O patrimônio, de certo modo, constrói, forma as pessoas.” Uma possível pedagogia da cidade se vislumbra para educar sujeitos, para transformá-los e adequá-los ao mundo contemporâneo e permitir que estes sujeitos atuem sobre estes diferentes lugares.

REFERÊNCIAS CAMOZZATO, Viviane Castro; COSTA, Marisa Vorraber. Vontade de pedagogia – pluralização das pedagogias e condução de sujeitos. Cadernos de Educação da UFPel, n.44, jan-ab. 2013. CAMOZZATO, Viviane Castro. Pedagogias do presente. Educação & Realidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, v. 39, n. 2, p. 573-593, abr./jun. 2014. CERQUEIRA, Fábio Vergara. Patrimônio cultural, escola, cidadania e desenvolvimento sustentável. Revista Diálogos. v.9, n.1, 2005, p.91-109. COSTA, Marisa Vorraber. Estudos culturais e educação - um panorama. In: SILVEIRA, Rosa Maria Hessel (org.). Cultura, poder e educação: um debate sobre Estudos Culturais em educação. Canoas: Ed. Ulbra, 2011. p. 107-120. FONSECA, Maria Cecília L. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: CHAGAS, Mário e ABREU, Regina (org). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 56-76. GELMINI, Ana Carolina; TOCCHETTO, Fernanda; ZUBARAN, Maria Angélica. O solar que virou museu: memórias e histórias. Porto Alegre: PMPA, 2011. GIROUX, Henry. Praticando Estudos Culturais nas faculdades de educação. In: SILVA, T. T. (Org.). Alienígenas na sala de aula. Uma introdução aos estudos culturais em educação. 7. ed., Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2002. GONÇALVES, José Reginaldo S. O patrimônio como categoria de pensamento. In: CHAGAS, Mário e ABREU, Regina (org). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. 21-29.

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EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: UMA LEITURA DE MUNDO DENTRO DO CONTEXTO DO PATRIMÔNIO CULTURAL Daniel Luciano Gevehr* (ISEI/FACCT) Gabriela Dilly** (FACCAT)

1. INTRODUÇÃO Atualmente é palavra de ordem falar sobre patrimônio cultural, no seu sentido mais usual, tangível (edificado, objeto) ou intangível (práticas, tradições, música, modos de ser, fazeres); e para entender o porque desse debate, é preciso buscar as motivações na história. É com o processo de Revolução Industrial, segundo Françoise Choay (2006), que se tem a primeira associação da ideia de valor de sensibilidade ao patrimônio histórico que a autora entende em sua obra apenas como o patrimônio edificado, materializado. Antes disso o patrimônio é visto pelo seu valor para a representação da nação, pelo seu apelo cognitivo (capacidade de transmitir conhecimentos) e seu valor econômico (exploração turística). A consciência de que grandes mudanças no mundo estavam acontecendo, rupturas se estabeleciam, fez com que se pensasse em algumas permanências, entre elas o patrimônio histórico. O fortalecimento das discussões acerca do patrimônio relaciona-se ainda com o advento da importância da imagem, “os estudos dedicados às antiguidades estão inscritos na grande corrente que desvalorizou o testemunho da palavra e da escrita, em proveito do testemunho da visão e da representação iconográfica.” (CHOAY, 2006, p. 206). Mas se formos analisar, em última instância, esse patrimônio poderia ter suas imagens preservadas através de fotografias, filmagens, não precisaria mais manter sua representação material. Choay nos apresenta um último e devastador argumento sobre o porque da supervalorização do patrimônio cultural: “o patrimônio histórico parece fazer hoje o papel de um vasto espelho no qual nós, membros das sociedades humanas do fim do século XX, contemplaríamos a nossa própria imagem.” (CHOAY, 2006, p. 240) A sociedade olha para si mesma a fim de compreender os processos que a jogam para o futuro, numa gigantesca sessão de análise de sua própria identidade. A imagem patrimonial numa perspectiva narcisista. A autora se refere a esse processo como “revolução protética”, na qual a função do patrimônio é estabelecer mediações entre o homem e o mundo, entre os homens e em relação ao futuro. Essas mediações seriam o “tomar fôlego”, parar para refletir sobre a nossa identidade e seguir em frente. A Educação Patrimonial entra nessa “onda” no fim do século XX como um mecanismo através do qual é possível favorecer o contato das pessoas para com o patrimônio cultural, visando o conhecimento que possa resultar em valorização e consequente preservação dos bens culturais. Também nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN, documento que serve de referência para a estrutura dos currículos nas redes de ensino brasileiras há clara menção à necessidade de estudo do patrimônio cultural em sala de aula, sendo a educação patrimonial uma possibilidade de metodologia para tornar isso realidade. Consideraremos neste artigo as várias abordagens conceituais sobre educação patrimonial, bem como limitações e competências. Doutor em História, professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT), coordenador do curso de História e Geografia do Instituto Superior de Educação Ivoti (ISEI); Taquara – RS – Brasil. email: [email protected]. ** Graduada em História e mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT), Taquara – RS – Brasil email: [email protected]. *

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2. EDUCAÇÃO PATRIMONIAL As primeiras noções a respeito de Educação Patrimonial no Brasil surgiram em 1983, por ocasião do 1º Seminário sobre “Uso Educacional de Museus e Monumentos”, que aconteceu no Museu Imperial, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Maria de Lourdes Parreiras Horta e Evelina Grunberg, na época, foram precursoras na divulgação do tema e na execução de propostas educativas dentro do próprio Museu Imperial, no qual exerciam suas atividades profissionais. Em linhas gerais, para se chegar a uma proposta de Educação Patrimonial no Brasil, a inspiração foi encontrada “[...] no modelo da heritage education, desenvolvido na Inglaterra.” (IPHAN, 2014, p. 13) Nessa concepção inicial o entendimento de educação patrimonial era de “[...] um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no patrimônio cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo.”(HORTA, 1999, p. 6). Horta refere-se à importância do trabalho com os objetos históricos como fonte de informações, defendendo a experiência direta com a fonte, favorecendo um trabalho investigativo de descoberta de elementos históricos a partir das características expressas nas imagens/objetos/lugares. Através de atividades de educação patrimonial, Parreiras Horta (1999) afirma que o cidadão passa a ser capaz de apropriar-se do patrimônio cultural de forma consciente e crítica, envolvendo-se no processo de valorização e preservação dos bens culturais como forma de fortalecimento da cidadania e de sua própria identidade. A Educação Patrimonial pode ser assim um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao desenvolvimento da auto-estima dos indivíduos e comunidades, e à valorização de sua cultura, como propõe Paulo Freire em sua idéia de “empowerment ”, de reforço e capacitação para o exercício da auto-afirmação. (HORTA, 1999, grifos da autora citada)

Evelina Grunberg, se refere à educação patrimonial de forma mais abrangente como “[...] o processo permanente e sistemático de trabalho educativo, que tem como ponto de partida e centro o Patrimônio Cultural com todas as suas manifestações.” (GRUNBERG, 2007. p.05). Também é dela o conceito de patrimônio cultural como “[...] as manifestações e expressões que a sociedade e os homens criam e que, [...], vão se acumulando com as das gerações anteriores. Cada geração as recebe, usufrui delas e as modifica de acordo com sua própria historia e necessidades.” (GRUNBERG 2007, p. 05) Percebe-se nessas conceituações uma preocupação com a simplicidade dos termos, no sentido de fazer-se entender perante um público leigo no assunto, o que também é uma preocupação da Educação Patrimonial, tornar o patrimônio acessível a todos, mediando a leitura dos símbolos culturais que nos cercam. Os símbolos, os objetos e os lugares históricos seriam permanências do passado no presente, que ao serem estudados, investigados, trariam à tona a compreensão desse passado relacionado com o presente. Baudrillard (2012) se refere ao objeto antigo como elemento completo, “que se dá como totalidade”, que por não ter mais a função original existe apenas para significar. Ele caracteriza o objeto antigo como quente (repleto de simbologias e significados) em oposição aos objetos contemporâneos, os quais considera vazios, frios. “Existe pois um estatuto particular do objeto antigo. Na medida em que aí se encontra para esconjurar o tempo na ambiência e onde é vivido como signo, não se distingue de não importa qual outro elemento e se acha em relação com todos os outros.” (BAUDRILLARD, 2012, p. 83). Esse objeto antigo, que pode apresentar-se como objeto em si, edificação, lugar, dança, canto, festejo, modo de fazer, artesanato, entre muitas outras expressões do patrimônio cultural é justamente o foco da educação patrimonial. Relacionar-se com o patrimônio, compreendê-lo inteiramente de forma a perceber sua importância passando então a valorizá-lo em função dessa relação estabelecida.

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Em sua origem, as ações de educação patrimonial obedeciam a uma metodologia própria, amplamente disseminada entre professores nos anos 90 e 2000. Este método possuía quatro etapas distintas do processo de investigação: - Observação: consiste na utilização dos sentidos para apropriar-se do bem cultural em sua forma concreta, investigando sua aparência, cheiros, barulhos, nuances materiais. - Registro: etapa feita através do registro do objeto, utilizando para isso a descrição oral, escrita, desenhos, qualquer forma de representação gráfica do objeto de estudo. - Exploração: “Análise do bem cultural com discussões, questionamentos, avaliações, pesquisas em outros lugares [...], desenvolvendo as capacidades de análise e espírito crítico, interpretando as evidências e os significados.”(GRUNBERG, 2007, p. 06) - Apropriação: recriação interpretativa do bem cultural, demonstrando que apropriou-se dele, que o compreendeu. Pode acontecer através das artes plásticas, teatro, dança, ou outras atividades lúdico/pedagógicas. As etapas favorecem um trabalho investigativo, através do qual a pessoa envolvida tem a oportunidade de exercitar o espírito científico, fazendo perguntas ao objeto cultural (aqui entendido de forma mais ampla como qualquer tipo de patrimônio cultural) que poderão ser respondidas na hora ou instigarão a pesquisa em outras fontes, o que consiste num processo de aprendizagem muito rico, baseado em descobertas e de acordo com as premissas recentes de educação. Podemos encontrar nesta metodologia educativa alguma inspiração em teorias educacionais em destaque nos anos 90 e 2000, como Piaget e Vigotsky. Jean Piaget desenvolveu seus estudos observando crianças e constatou que as mesmas aprendiam através do esquema assimilação – acomodação, ou seja, assimilavam, conheciam o objeto de aprendizagem através dos sentidos e o mesmo era introjetado junto ao arcabouço de conceitos já estabelecidos internamente no indivíduo, que são as ferramentas que ele possui para conhecer o mundo ao seu redor. O simples contato/relação com o objeto de aprendizagem não é por si só suficiente, “[...] embora essencial, da mesma forma também não é uma condição suficiente ao desenvolvimento cognitivo humano, uma vez que para tanto é preciso, ainda, o exercício do raciocínio. Por assim dizer, a elaboração do pensamento lógico demanda um processo interno de reflexão.” (TERRA, p. 03). Além disso, estão presentes nessa relação outros fatores complementares como a maturidade do indivíduo, de que forma se dá essa experiência com os objetos, a vivência social e as formas que o organismo se adapta ao meio. A aprendizagem se daria no processo de equilíbrio de todos estes elementos: empírico, cognitivo e emocional. “Trata-se de um fenômeno que tem, em sua essência, um caráter universal, já que é de igual ocorrência para todos os indivíduos da espécie humana mas que pode sofrer variações em função de conteúdos culturais do meio em que o indivíduo está inserido.” (TERRA, p. 03) Lev Vogotsky influenciou a educação patrimonial por meio de sua proposta de aprendizagem através da mediação, ele afirma que os processos cognitivos se originam na mediação entre o homem e o meio em que vive, sendo que o homem interage sobre o meio e o meio interfere no homem, assim “a partir da sua atuação em situações de interação social, da qual participam instrumentos e signos que o levam a se organizar e estruturar seu ambiente e seu pensamento. Os instrumentos e signos, social e historicamente produzidos, em última instância, mediam a vida.” (IPHAN, 2014, p. 22). Dentro deste processo de mediação surge o sentimento de pertencimento, de fazer parte de determinada realidade cultural, constituindo dessa forma uma identidade. Associando os conceitos de assimilação e acomodação de Piaget e a mediação de Vigotsky temos os princípios que norteiam a educação patrimonial: interação com o patrimônio cultural na etapa da observação, registro e exploração como as ações de reflexão e mediação com o objeto de aprendizagem, para chegar a etapa da apropriação, como a internalização do conceito aprendido.

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Não podemos esquecer que todo esse processo passa ainda por questões afetivas, subjetivas, que implicam numa aprendizagem significativa, pois o patrimônio cultural não poderia estar isento disso. É através da identificação com o patrimônio cultural que o sujeito da aprendizagem estabelece um vínculo com o objeto, no caso o patrimônio (seja ele tangível ou intangível). Identidade cultural é um conceito muito importante nesse processo, pois a educação patrimonial poderá utilizar-se de uma relação pré-existente entre o cidadão e o patrimônio cultural, ou ainda despertar essa relação com a atividade educativa, usando da reflexão para que o sujeito perceba um vínculo com o patrimônio, passando então a valorizá-lo. Essa valorização é sempre o objetivo principal das propostas de educação patrimonial, é através dela que se dará a preservação e a atualização do patrimônio cultural. Outra questão importante é que, surgida entre as paredes do Museu Imperial, a educação patrimonial sempre acabou por tender ao uso de objetos de museu e ao espaço museal como ponto de partida, ou seja, as ações em forma de oficinas ou outras atividades educativas acabavam por utilizar-se muito mais de objetos de museus para observar, registrar, explorar e apropriar do que outros objetos, advindos de outros contextos. Sobre isso é preciso ter muito claro que os objetos que se encontram em museus tem um significado específico como suportes de memórias constituídas, de discursos dominantes que priorizam algumas vozes do passado. As instituições que tratam da preservação e difusão do patrimônio cultural, sejam elas arquivos, bibliotecas, museus, galerias de arte ou centros culturais, apresentam um determinado discurso sobre a realidade. Compreender esse discurso, composto de som e silêncio, de cheio e vazio, de presença e ausência, de lembrança e esquecimento, implica a operação não apenas com o enunciado da fala e suas lacunas, mas também a compreensão daquilo que faz falar, de quem fala e do lugar de onde se fala. (CHAGAS, 2002, p. 43)

Além disso, até chegarem ao espaço museal, os objetos passam por uma longa trajetória de escolhas, desde a seleção para doação na casa das famílias onde os mesmos se encontravam, uma vez que parte-se do pressuposto de que o que é doado para o museu é algo que não significa mais muito para as pessoas que detinham a sua propriedade, sendo muito comum a doação de acervo por ocasião do falecimento de entes mais antigos, como avós por exemplo. Depois disso, dentro da instituição de memória ele passa por nova triagem, observando as condições físicas, possibilidades de exibição em exposições ou a opção por compor a reserva técnica, observando se há ou não relação entre aquele objeto e a história que o museu conta. “Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o acervo dos museus é o produto das escolhas realizadas por determinados agentes sociais, estando diretamente relacionado às significações que esses atribuem aos objetos, ao próprio museu e ao que esse deveria conter.” (POSSAMAI, 2010, p. 65-66). O contexto em que surge a educação patrimonial fica assim apresentado, no qual se percebe aspectos muito positivos mas também os dilemas de uma educação que reproduz modelos e difunde uma história conservadora, ainda carente de mais criticidade e mais proximidade com os “esquecimentos históricos”. Grandes foram os passos dados pela preservação do patrimônio cultural através da educação patrimonial, mas faltou ainda chegar até os grupos não representados nos museus, à margem da história e da memória oficial.

3. EDUCAÇÃO PATRIMONIAL TRANSFORMADORA Amplamente propagadas no território brasileiro, as ações de educação patrimonial obedecendo a metodologia criada no Museu Imperial geraram a demanda do “Guia Básico da Educação Patrimonial”, produzido com o apoio do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no ano de 1999.

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Com essa difusão nacional, cada região adaptou a metodologia a sua realidade, criando diversos projetos de grande qualidade visando educação para a valorização do patrimônio cultural. Destacaremos aqui o projeto surgido e implementado na cidade de Londrina, no Paraná. Inspiradas nos estudos de Moacir Gadotti e Demerval Saviani, herdeiros das concepções de educação libertadora de Paulo Freire, as reflexões e práticas educativas feitas em Londrina tem por princípio a educação para o senso crítico, para a autonomia e para a cidadania. Para Magalhães (2009b) a educação patrimonial anteriormente contextualizada neste artigo é considerada tradicional e, portanto, herdeira das características da educação formal tradicional, como por exemplo: ser universalizante e homogeneizante, no sentido de pressupor a existência de uma única memória e um único saber; ser integralizante, priorizando as manifestações culturais dos grupos dominantes e oficiais, vinculados ao Estado; propor uma única possibilidade para o conhecimento com foco na preservação e não na apropriação do patrimônio pelo sujeito; ser impositiva, deixando assim de favorecer a valorização de múltiplas memórias e identidades culturais. Chama-se de educação patrimonial transformadora a concepção usada em Londrina, sendo que Magalhães (2009ab) atribui a essa prática os seguintes princípios: reconhecimento do contexto cultural local, valorizando a sua própria memória, percebendo-se como agente histórico (aquele que faz história); percepção da diversidade cultural e a multiplicidade das expressões do patrimônio; aceitação das várias possibilidades de interpretação e apropriação do patrimônio, favorecendo inclusive o surgimento de conflitos, percebe o espaço local/individual em relação com o espaço plural/ coletivo, valorizando as narrativas e tensões entre o universal e o singular. Essa forma de compreender a educação patrimonial favorece ações que geram cidadania pois “[...] possui caráter político, visando a formação de pessoas capazes de (re)conhecer sua própria história cultural, deixando de ser espectador, como na proposta tradicional, para tornar-se sujeito, valorizando a busca de novos saberes e conhecimentos, [...].” (MAGALHÃES, 2009a, p. 52) Isso não significa que não devemos mais considerar o patrimônio cultural tido como oficial como objeto de projetos educativos, mas sim que é importante perceber esse patrimônio como uma forma possível de representar o passado e não a única, é possível levantar esses questionamentos e re-significar estes símbolos predominantes. Também é importante fazer com que os cidadãos percebam que os elementos aos quais eles atribuem significado não são menores ou menos relevantes que o patrimônio cultural já estabelecido, é possível eleger novas alternativas de representação da identidade cultural de um grupo fazendo assim com que o mesmo as valorize. “Para que haja preservação, faz-se necessário a interação, que leva a valorização de sua herança cultural e a produção de novos valores e conhecimentos.” (MAGALHÃES, 2009a, p. 61) Os projetos educativos desenvolvidos em Londrina, em grande maioria aconteceram fora das paredes dos museus e longe dos bancos escolares, foram propostas executadas em comunidades e associações de bairros das periferias, carentes até mesmo de reconhecimento em alguma identidade, seja ela qual for. Magalhães (2009b) afirma ainda, referindo-se a educação patrimonial transformadora, que a preocupação maior é a de ser instrumento para a garantia ao direito à memória e à cidadania, fortalecendo a identidade cultural entendida como plural e múltipla.

4. EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NA EDUCAÇÃO FORMAL Criada em espaços educativos não formais, a educação patrimonial pode vir a ser uma ferramenta interessante para uso em sala de aula. É uma proposta de utilização de bens patrimoniais como objeto de estudo, que favorece a construção do conhecimento pelo aluno a partir de fontes primárias, estimulando primeiras experiências de pesquisa.

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Obedecendo ou não a uma metodologia da educação patrimonial, é possível explorar diversos temas nas aulas, buscando principalmente uma abordagem multidisciplinar que faça os alunos pensarem o patrimônio cultural de forma mais ampla. “É recomendável que o grupo de professores de diferentes áreas se reúna para discutir e planejar sequências de ações didáticas e projetos educativos voltados ao patrimônio cultural e natural na escola.” (FIGUEIRA, 2012, p. 84). Inserida no tema transversal de pluralidade cultural prevista nos Planos Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), a educação patrimonial deve perpassar o conteúdo, atravessando as temáticas de todas as disciplinas do currículo regular. Outro ponto importante é partir do que os alunos consideram patrimônio cultural, seus lugares de memória (NORA, 1993), pois nem sempre existe o vínculo com os lugares e bens patrimoniais oficiais. Quando os alunos percebem que fazem parte da história e que também são agentes históricos, o professor pode interligar fatos e estabelecer conexões que permitam que o jovem/criança perceba que a sua memória individual faz parte de uma memória coletiva (HALBWACHS, 2004). Dessa forma é possível ampliar o debate para além do patrimônio individual, observando quais são os elementos que representam a coletividade. A educação patrimonial pode vir a ser uma alternativa para construir com o aluno a aprendizagem sobre as narrativas históricas, uma vez que surgirão diversas interpretações sobre os objetos históricos em estudo, sendo que não será possível estabelecer uma única forma de perceber as representações estabelecidas entre os alunos e o patrimônio cultural. Assim perceberão que a história não usa de verdades, mas sim discursos sobre, narrativas que irão ainda depender de quem fala, para quem fala e como fala.

5. CONCLUSÃO Inicialmente é preciso perceber que a neutralidade não tem lugar em nenhum espaço de realização da educação patrimonial, uma vez que o próprio patrimônio cultural não é neutro. Museus, arquivos, salas de aula, comunidades em geral, todos são territórios em disputa, espaços de poder em dinâmicas sociais diversas. Estabelecida essa premissa inicial, cabe ressaltar que fórmulas prontas (metodologias) podem até servir como guias num primeiro momento, mas devem com certeza ser adaptadas às realidades de trabalho. Portanto, cada trabalho educativo terá sua própria forma de acontecer, obedecendo principalmente os objetivos a que se pretende chegar e o tipo de patrimônio com o qual se trabalha. Analisando a trajetória da educação patrimonial no Brasil, se percebe que aconteceram mudanças nas abordagens, essas modificações conceituais acompanharam todo o debate crítico a respeito da história como campo do conhecimento e do patrimônio cultural como representação da sociedade. O patrimônio cultural passou muitos anos reproduzindo uma história conservadora, contando apenas a versão da elites dominantes, do colonizador e dos grupos de poder. Da mesma forma a educação patrimonial também o fará se o profissional não carregar consigo os questionamentos de uma educação crítica. O patrimônio cultural pode ser sim uma ótima ferramenta para compreender o mundo que nos rodeia, mas como tudo deve ser interpretado e o mais importante para isso é saber, mais que as respostas, as perguntas corretas a fazer. São elas que poderão produzir conhecimento e não apenas reproduzir.

Tania Mariza Kuchenbecker Rösing, Miguel Rettenmaier (Org.)

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REFERÊNCIAS BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2012. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais : pluralidade cultural, orientação sexual / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília : MEC/SEF, 1997. CHAGAS, Mário. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. In TOLENTINO, Àtila Bezerra. Educação patrimonial: educação, memórias e identidades. João Pessoa: Iphan, 2013. CHAGAS, Mário. Memória e poder: dois movimentos. Cadernos de Sociomuseologia, vol. 19, n. 19, 2002, p. 43 – 80. Disponível em http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/367/276. Acesso em 16 ago. 2015. CHOAY, Françoise. Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: UNESP, 2006. FIGUEIRA, Cristina Aparecida Reis. Educação Patrimonial no ensino de história nos anos finais do ensino fundamental: conceitos e práticas. São Paulo: Edições SM, 2012. GRUNBERG, Evelina. Manual de atividades práticas de educação patrimonial. Brasília, DF: IPHAN, 2007. Disponível em https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/558606/mod_resource/content/0/GRUNBERG_Evelina. pdf. Acesso em 15 ago. 2015. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. HORTA, Maria de Lourdes P., GRUNBERG, Evelina, MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial. 1999. IPHAN. Educação Patrimonial, Histórico, conceitos e processos. 2014. Disponível em http://portal.iphan.gov. br/uploads/ckfinder/arquivos/Educacao_Patrimonial.pdf. Acesso em 14 ago. 2015. MAGALHÃES, Leandro Henrique. Educação patrimonial: da teoria à prática. Londrina: Ed. Unifil, 2009a. Disponível em http://www.unifil.br/portal/arquivos/publicacoes/Livro_Educacao_Patrimonial.pdf. Acesso em ago. 2015. MAGALHÃES, Leandro Henrique. Educação Patrimonial: Uma análise conceitual. In: ZANON, Elisa Roberta; ET AL. (org). A construção de políticas patrimoniais: ações preservacionistas de Londrina, Região Norte do Paraná e Sul do país. Londrina: EdUniFil, 2009b. pp. 65-77. NORA, Pierre. Entre memória e história. A problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: Revista do Programa de Pós-graduação em História e do Departamento de História PUCSP, nº 10, dez. 1993. pp. 07-28. POSSAMAI, Zita Rosane. As artimanhas do percurso museal: narrativas sobre objetos e peças de museu. Revista Museion, vol.4, n. 7, Jan – Jun, 2010, p. 64 – 72. TERRA, Márcia Regina. O desenvolvimento humano na teoria de Piaget. Disponível em http://www. unicamp. br/iel/site/alunos/. Acesso em 15 ago. 2015.

AS IDENTIDADES DESLIZANTES EM A VARANDA DO FRANGIPANI, DE MIA COUTO Gisela Lacourt* (UPF)

O cenário cultural da atualidade é formado por identidades múltiplas e complexas, resultantes de embates culturais que surgiram, principalmente, dos processos da colonização europeia nos demais continentes. Assim, o exame da identidade cultural de uma nação deve incluir aspectos relacionados à tradição, à língua, aos usos e costumes, bem como aos processos históricos pelos quais passou. Nesse sentido, a arte e a literatura configuram-se como constituintes de identidade, já que estão diretamente vinculados à cultura de um povo.

1. A CONSTITUIÇÃO IDENTITÁRIA E CULTURAL Homi Bhabha, em O local da cultura (2013), discute a questão da cultura nas sociedades contemporâneas. Para ele, a existência do homem contemporâneo é marcada pela sensação de sobrevivência, em meio às fronteiras do presente, sem uma nomenclatura própria, “além do atual e controvertido deslizamento do prefixo ‘pós’: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo...” (BHABHA, 2013, p.19). A questão cultural encontra-se na esfera do “além”, já que a cultura das sociedades pós-modernas ultrapassou determinadas fronteiras, mas ainda é fortemente marcada por aquilo que lhe é anterior. O uso do prefixo “pós” junto com as designações do passado indica que o homem da atualidade não é mais o mesmo se comparado ao de outras épocas, porém tem sua identidade marcada pelas reminiscências do passado. De acordo com Bhabha, este seria um momento de trânsito em que surgem figuras complexas, resultantes do entrecruzamento de espaço e tempo. Para Bhabha, qualquer pretensão à identidade no mundo moderno perpassa a consciência das posições do sujeito, as quais envolvem as questões de raça, gênero, geração, localidade geopolítica, orientação sexual. No entanto, é crucial ultrapassar as narrativas de subjetividades originais e iniciais para que se possa centrar nos processos de embates entre diferentes culturas. Esse momento de entrecruzamentos culturais, a que Bhabha chama de “entre lugares”, possibilita a elaboração de estratégias de subjetivação individual ou coletiva. As experiências intersubjetivas e coletivas de nação bem como o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados nos domínios da diferença. Essa diferença, destaca Bhabha, não pode ser interpretada como reflexos de traços culturais ou étnicos previamente estabelecidos, “inscritos na lápide fixa da tradição” (2013, p.21). Do ponto de vista da minoria, a articulação social encontra-se em meio a uma negociação complexa, que tenta conferir autoridade aos hibridismos culturais resultantes dos processos históricos. Homi Bhabha entende que: o “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através das condições de contingência e contraditoriedade que presidem sobre as vidas dos que estão ‘na minoria’” (2013, p.21).

Desse modo, o reconhecimento advindo da tradição constitui uma forma parcial de identificação, já que o acesso ao passado introduz outras temporalidades culturais incontáveis na invenção

Mestra em Letras, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected].

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da tradição. “Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade original ou a uma tradição ‘recebida’”(BHABHA, 2013, p. 21), já que não se podem reaver elementos constituintes de uma cultura de modo integral. Um fator determinante para se estabelecer uma identidade cultural numa sociedade que passou por um processo de dominação político-cultural reside na análise do discurso colonial. Bhabha (2013) percebe nesse discurso uma dependência do conceito de fixidez – signo da diferença cultural, histórica e racial – determinada pela constituição ideológica da alteridade. Entende-se essa fixidez como uma representação contraditória da rigidez, da ordem e, ao mesmo tempo, da desordem, da degeneração, ao passo que o estereótipo torna-se a principal estratégia desse discurso. Trata-se de uma forma de conhecimento e identificação que oscila “entre o que está ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (BHABHA, 2013, p. 117). A validade do estereótipo colonial resulta da ambivalência do discurso, já que essa duplicidade garante a repetibilidade do estereótipo em conjunturas históricas e discursivas mutantes; produz efeitos de verdade; sustenta estratégias de individualização e marginalização, priorizando, sempre, o excesso. Diante do significado da opressão e da discriminação, as posições dogmáticas e moralistas são interpeladas pela análise da ambivalência. A leitura que Bhabha faz do discurso colonial indica que: o ponto de intervenção deveria ser deslocado do imediato reconhecimento das imagens como positivas ou negativas para a compreensão dos processos de subjetivação tornados possíveis (e plausíveis) através do discurso do estereótipo. Julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade política prévia é descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível ao se lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de poder e resistência, dominação e dependência, que constrói o sujeito da identificação colonial (tanto colonizador como colonizado) (BHABHA, 2013, p. 118).

Percebe-se nesse excerto que Bhabha (2013) reflete sobre os processos de subjetivação do sujeito colonial que atravessam o discurso do estereótipo. No entanto, a imagem estereotipada precisa ser deslocada num contexto de elementos que se opõem, ou seja, o deslocamento se estabelece na contrariedade. O teórico afirma que para compreender a produtividade do poder colonial, é fundamental evitar submeter as representações desse poder a um julgamento normatizante, pois a ambivalência do objeto do discurso colonial se torna compreensível na articulação da diferença, “que é ao mesmo tempo um objeto de desejo e escárnio” (BHABHA, 2013, p. 119). Nesse sentido, a alteridade – o entre lugar – revela as fronteiras do discurso colonial, permitindo a transgressão desses limites. O autor aponta, também, para a marginalização a que as formas de alteridade racial/cultural/histórica foram submetidas nos textos teóricos que tratam da articulação da diferença ou da contradição, os quais apresentam como justificativa a revelação dos limites do discurso representacional do Ocidente. De acordo com Bhabha, as análises tradicionais da diferença cultural e racial identificam estereótipos e imagens elaborados num discurso moralista e nacionalista, colocando os sujeitos da contradição no papel de transgressores. Assim, essa estratégia configura aquilo que o teórico chama de marginalização da alteridade. Bhabha (2013) discute as condições e especificações mínimas do discurso colonial como aparato de poder, que se baseia no reconhecimento e no repúdio de diferenças raciais, culturais e históricas. A intenção desse discurso, na percepção do teórico, é de justificar a dominação, o sistema de administração e de instrução pela origem racial, colocando o colonizado como um sujeito degenerado. Existe um jogo de poder no interior do discurso colonial e das posições deslizantes de seus sujeitos que surgem dos “efeitos de classe, gênero, ideologia, formações sociais diferentes, sistemas diversos de colonização, e assim por diante” (BHABHA, 2013, p. 124). No entanto, o teórico dá destaque para uma forma de governo que delimita uma nação sujeitada, dominando várias esferas de atividade. Nesse caso, mesmo existindo um jogo no sistema colonial – representado pela diferença, o discurso colonial cria um colonizado como uma realidade social ambígua, pois, ao mesmo tempo, é “um ‘outro’ e ainda assim inteiramente apreensível e visível” (BHABHA, 2013, p. 124). Esse dis-

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curso assemelha-se a uma forma de narrativa em que a produtividade e a circulação de sujeitos e signos são associadas a uma generalidade reelaborada e reconhecível. Adota-se, então, um regime de verdade, o qual Bhabha compara, pela sua estrutura, com o realismo. Ao abordar esse aspecto do discurso colonial, o teórico utiliza-se das concepções de orientalismo elaboradas por Edward Said para examinar a constituição do Oriente pelo discurso do europeu. Na obra Orientalismo: o oriente como invenção do Ocidente (2007), Edward Said afirma que o orientalismo é um discurso produzido pela cultura europeia que definiu o oriente em termos políticos e culturais. Said faz, em seu texto, algumas considerações acerca do orientalismo para entendê-lo sob diferentes perspectivas. Em uma dessas definições, o teórico afirma que o orientalismo tem uma perspectiva acadêmica, construída pelos pesquisadores do tema que elaboram estudos e teses de caráter científico sobre o oriente na perspectiva do ocidente. Relacionado a essa tradição acadêmica, existe um significado mais geral para o termo. Nesse caso, a noção de orientalismo advém da distinção ontológica e epistemológica entre Oriente e Ocidente. Embora os dois modos de perceber o orientalismo – acadêmico e imaginativo – sejam distintos, existe um intercâmbio entre eles. Soma-se a essas duas noções a ideia de que o orientalismo pode ser uma instituição autorizada a operar no Oriente, “fazendo e corroborando informações a seu respeito, descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o” (SAID, 2007, p. 29). Entende-se com isso que o orientalismo é a forma que o Ocidente criou para dominar e reorganizar o Oriente. Nesse ponto, Said (2007) considera fundamental avaliar o orientalismo como discurso para compreender a disciplina extremamente sistemática de que a cultura europeia se utilizou para manipular o Oriente em vários aspectos: político, sociológico, militar, ideológico, científico e imaginativo. De acordo com Said, a influência do orientalismo, no auge da dominação europeia sob o Oriente, era tal que dificilmente alguém poderia escrever, pensar ou agir sobre o Oriente sem considerar as limitações do pensamento e das ações que o orientalismo impõe. O teórico deixa claro que o orientalismo não determina unilateralmente aquilo que é dito a respeito do Oriente, mas esse discurso sempre influencia, de algum modo, as discussões sobre tal questão. Do mesmo modo, a cultura europeia se fortaleceu e ganhou identidade na oposição que estabeleceu com o Oriente. Para Said (2007), os homens fazem sua história e só conhecem o que eles mesmos fizeram. Nesse sentido, o teórico afirma que o Oriente e o Ocidente são criações do homem, elaboradas pelo e no discurso. Acerca disso, o teórico faz algumas observações que considera importantes para evitar uma compreensão equivocada do orientalismo. Ele considera um erro a conclusão de que o Oriente foi, em sua essência, uma criação ou uma ideia sem realidade correspondente: “seria incorreto acreditar que o Oriente foi criado – ou como digo ‘orientalizado’” (SAID, 2007, p.32). Nesse caso, o fenômeno do orientalismo não trata da correspondência entre orientalismo e Oriente, mas da coerência interna do orientalismo e de suas ideias sobre o Oriente. Outra observação que o teórico faz a respeito da temática é a de que as culturas, as ideias e as histórias não podem ser estudadas sem que a influência do orientalismo seja avaliada. Said ressalta que o orientalismo não surgiu de uma necessidade imaginativa da cultura ocidental, já que a relação entre esses dois espaços geográficos envolve fatores importantes como poder e dominação. Stuart Hall (2006) assegura que a identidade não é fixa, nem estável; ela está em determinado lugar, pois depende de um contexto social e histórico. Não se pode afirmar que o sujeito está constituído genuinamente, uma vez que os indivíduos possuem várias identidades, as quais são instáveis e determinadas por um contexto específico, ou seja, a identidade de um sujeito não pode ser resumida a uma única ideia. O mesmo pode ser dito em relação à identidade social, sobretudo na sociedade moderna. A observação do indivíduo é fundamental para a análise da identidade social, pois, assim, torna-se possível estabelecer uma relação entre os elementos identitários particulares em busca de uma constituição coletiva. Desse modo, a identidade cultural de um povo pode ser apreendida por meio do exame do discurso dos sujeitos situados em um determinado momento histórico e em uma

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função social. Como afirma Hall, identidades culturais são “aqueles aspectos de nossas identidades que surgem de nosso ‘pertencimento’ a culturas étnicas, raciais, linguísticas, religiosas e, acima de tudo, nacionais” (2006, p. 8). Para o teórico, as culturas nacionais do lugar em que o indivíduo nasce constituem-se em uma das principais fontes de identidade cultural. Quando o sujeito busca uma definição de si próprio, um dos aspectos que se tornam relevantes é o pertencimento a uma determinada nacionalidade. Hall salienta que “ao fazer isso estamos falando de forma metafórica”. E explica: “Essas identidades não estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós pensamos nelas como se fossem parte de nossa natureza essencial” (2006, p. 47). Em verdade, as identidades nacionais não são fundamentos que se possuem desde o nascimento; elas são formadas e transformadas por meio da representação. Somente é possível compreender o que significa pertencer a uma nacionalidade pela forma como esta é representada, pelo seu conjunto de significados, que resulta na cultura nacional. Segundo Hall, uma nação não é somente uma entidade política, mas algo que produz sentidos, um sistema de representação cultural. Os sujeitos não se constituem apenas como cidadãos legais de uma nação; eles constroem o conceito de nação em sua unidade representativa. Logo, uma nação é uma comunidade simbólica que pode levar a um sentimento de identificação e de lealdade. Hall afirma que a formação de uma cultura nacional “contribuiu para criar padrões de alfabetização universais, generalizou uma única língua vernacular como meio dominante de uma comunicação em toda a nação, criou uma cultura homogênea e manteve instituições culturais nacionais, como, por exemplo, um sistema educacional nacional” (2006, p. 50). Esses elementos demonstram que a cultura nacional resultou do processo de industrialização e dos dispositivos da modernidade. Porém, outros aspectos são relevantes ao se determinar um conceito de nação, pois conferem a esta definições ambíguas, levando a crer que as identidades nacionais não são tão unificadas e homogêneas como representam ser. Ao afirmar-se que as culturas nacionais são sistemas simbólicos e representativos, constroi-se a concepção de cultura como discurso. A cultura seria, portanto, uma forma de construção de sentido que influencia e organiza as ações dos sujeitos e as concepções de si próprios, conforme sustenta Hall. Para ele, “as culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a nação, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades” (2006, p. 51). Assim, para Hall, a identidade nacional é uma “comunidade imaginada”, determinada por vários fatores. De acordo como o teórico, a forma de narrativa nacional, ou seja, o modo como a cultura é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular. Essas fornecem toda a representatividade simbólica resultante de eventos históricos, tradições e experiências partilhadas dentro de tal comunidade. Dessa forma, as afirmações do teórico, confirmam a possibilidade da verificação da identidade cultural por meio da análise de uma obra literária.

2. A IDENTIDADE CULTURAL MOÇAMBICANA EM A VARANDA DO FRNGIPANI O escritor moçambicano António Emílio Leite Couto, que assume o pseudônimo literário de Mia Couto, possui uma escrita inventiva, fortemente amparada no insólito. A maioria de suas obras, romances e contos, narra o cotidiano do povo de Moçambique sob o viés da tradição oral, rica em mitos e lendas que perpassam o imaginário coletivo. Mia Couto, declaradamente, não tem por intenção produzir uma literatura de cunho documental, tradutora da identidade de seu país. Ao contrário disso, recria os elementos culturais por meio de suas “brincriações”com a língua. Justamente por isso, a obra desse romancista e poeta caracteriza-se como grande detentora de identidade, já que não há uma preocupação direta com o dado histórico ou com fatos do real, pois, como afirma Chiampi (2008), a tentativa de transpor o real para a narrativa literária pode deturpar a realidade e produzir estereótipos que se distanciam dessa pretensa realidade. Nesse sentido, a identidade cultural de um povo não pode ser definida somente a partir de uma perspectiva histórica, uma vez que a cultura

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ultrapassa as manipulações políticas nas relações entre colonizador e colonizado. Ao tratar disso, o romance A varanda do frangipani, rico em elementos insólitos, constitui-se numa valiosa fonte de identidade. Ermelindo Mucanga, no romance A varanda do frangipani, é um xipoco (fantasma) que conta a história da investigação da morte de Vasto Excelêncio, diretor de um asilo instalado na fortaleza de São Nicolau, no litoral moçambicano. Ermelindo, após vinte anos de sua morte, ocorrida na véspera da independência moçambicana, recebe a notícia do seu conselheiro de que terá de voltar ao mundo dos vivos no corpo de Izidine Naíta, o policial que chega à fortaleza para investigar a morte do diretor do asilo. De acordo com o pangolim, o investigador tem seis dias de vida, tempo necessário para que o xipoco pudesse “remorrer” e, assim, passar pela cerimônia de enterro, conforme os costumes do seu povo, procedimento que lhe foi negado no momento de sua morte, o que, como consequência, o condenou a ficar em estado de xipoco, uma alma sem paradeiro. A partir de então, o fantasma passa narrar os fatos ocorridos com Izidine, dividindo o papel de narrador com os idosos do asilo. Todas as noites, o investigador interroga um dos internos, e, assim, os idosos vão contando suas histórias e confundindo o policial, já que todos assumem a autoria da morte do diretor. Esse romance torna-se bastante simbólico na medida em que trata das fronteiras do passado e do presente, o passado representado pelos idosos e o presente pelo investigador, em que resistência e assimilação se entrecruzam. A cada história, fica evidente o caráter insólito que perpassa a tradição oral, do mesmo modo que os elementos autóctones que constituem a cultura desse povo, no romance, no período pós-independência, encontram-se sob a ameaça do esquecimento, já que os contadores de histórias estão se extinguindo. A narrativa tem por cenário único a antiga fortaleza militar, contando apenas com o testemunho do frangipani. O local, pela dificuldade de acesso, manteve-se isolado no período da guerra pós-independência. Esse distanciamento geográfico está associado à não aceitação do presente, a uma certa rejeição às mudanças suscitadas por anos de dominação, luta pela independência e guerra civil por parte de alguns moçambicanos, sobretudo aqueles que vivem longe dos centros urbanos. Os moradores do asilo são os detentores da tradição, mas se encontram confusos em relação ao presente e temerosos em relação ao futuro, enquanto que o investigador Izidine não compreende esse mundo, justamente, por estar afastado de suas raízes culturais. Esses elementos narrativos são indicadores de que a identidade cultural moçambicana encontra-se numa situação de fronteira, em que o presente e o passado se entrecruzam e as diferenças culturais se interpõem. Verifica-se em A varanda do frangipani que a noção de entre-lugar, da qual trata Bhabha, está em evidência na constituição das personagens e do espaço. A varanda, assim, é o divisor e, ao mesmo tempo a zona de contato, a intersecção entre dois “mundos” com culturas diversas que se enfrentam e/ou se mesclam, produzindo identidades híbridas, sem fronteiras definidas. Verifica-se que a varanda representa uma série de fronteiras indefinidas na narrativa, em que elementos culturais distintos se fundem. Nesse sentido, não há uma delimitação clara entre aquilo que é europeu ou moçambicano. A fortaleza de São Nicolau estabelece uma relação de fronteira entre Moçambique e Europa, pois esse local serviu de proteção aos portugueses durante a guerra pela independência moçambicana. Nesse local, as personagens vivem os conflitos gerados pelas diferenças culturais, e cada uma delas demonstra um posicionamento distinto em relação à cultura do outro. Assim, os espaços narrativos são bastante representativos na obra, pois estão diretamente ligados ao jogo de forças culturais que se estabelece em Moçambique. A fortaleza abarca as diferentes formas por meio das quais os moçambicanos lidam com a influência europeia. Desse modo, cada espaço indica um tipo de relação com os elementos culturais do outro, e a fortaleza engloba todos os espaços e suas relações distintas, representando a nação moçambicana. Entre os espaços narrativos em A varanda do frangipani, o asilo é aquele que comporta as fronteiras presente e passado, vida e morte, novo e velho, urbano e rural, realidade e invenção. O

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grupo de idosos que habita esse espaço está no final da vida, por isso demonstra grande preocupação os elementos culturais que ficaram no passado, pois teme que os jovens esqueçam a tradição. Por causa disso, eles contam e inventam histórias na tentativa de preservar as raízes culturais de seu povo. No entanto, esses elementos culturais chegam ao presente modificados pelo filtro da memória. Assim, o limite entre a verdade sobre os fatos do passado e a invenção é muito tênue. Além disso, o afastamento geográfico mantém essas personagens, de certo modo, presas ao passado, já que estão distantes das transformações que Moçambique presencia na área urbana. Um espaço que assume relevância na obra é o gabinete de Vasto Excelêncio. Nesse ambiente, as relações se diferenciam daquelas presenciadas nos outros espaços, pois as fronteiras que se fundem nesse local estão relacionadas às esferas de poder e às questões raciais. O diretor do asilo é um mulato que age de acordo com os seus interesses próprios, submetendo os idosos a toda a espécie de crueldade. A identidade desse moçambicano pode ser percebida como uma construção contraditória, uma vez que ele participou ativamente das lutas pela independência de seu país, mas sempre com uma postura que se aproxima mais do estereótipo de colonizador. Essa personagem é descrita por Ernestina, sua esposa, como alguém cruel tanto como os portugueses como com os moçambicanos. É, justamente no gabinete que ele revela seu lado violento e dominador. Esse espaço restrito, em que o diretor articula os desvios dos suprimentos do asilo, o contrabando de armas e delibera sobre os castigos que devem ser aplicados aos velhos, pode simbolizar a administração política em Moçambique no período pós-independência. Mia Couto aborda essa questão em Pensatempos, afirmando que o poder apenas mudou de mãos, em Moçambique, com a libertação. O gabinete do asilo remete à pequena porção de Moçambique, da qual trata Mia Conto (2007), que tem privilégios financeiros e políticos, enquanto boa parte da população passa por necessidades, do mesmo modo que os idosos da fortaleza de São Nicolau. Nesse sentido, a independência de Portugal não significou uma mudança de vida para boa parte do povo moçambicano, pois o poder e o dinheiro estão concentrados nas mãos de uma pequena elite. A análise de A varanda do frangipani indica que os espaços criados no romance podem ser associados à estrutura social e política de Moçambique bem como às diferentes identidades que são construídas nesses locais. Assim, o gabinete de Vasto Excelêncio representa o abismo social que se instaurou no país liberto. Antes da independência, culpava-se apenas o colonizador pelas injustiças cometidas contra o povo e acreditava-se que o fim do domínio português solucionaria os problemas pelos quais a população pobre passava. Se o asilo e o gabinete remetem a espaços opostos, em que este representa o poder e a corrupção e aquele a população que vive à margem dessas esferas na sociedade moçambicana, a varanda indica que os limites que separam esses dois mundos não estão bem definidos. No espaço interno do asilo estão concentrados os momentos de contar histórias que evocam a tradição dos antepassados. Já no gabinete aparecem as cenas de abuso de poder e de violência que remetem ao colonizador, porém as diferenças raciais que compõem a varanda não criam uma visão maniqueísta de brancos e negros vivendo em Moçambique. Ao contrário disso, cada personagem tem uma relação distinta com a cultura autóctone moçambicana, pois a varanda abarca a mistura, a mestiçagem, as trocas culturais. A personagem de Izidine Naíta não pertence a nenhum dos espaços narrativos, por isso ele tem uma das identidades mais deslizantes na obra. Ele circula por esses espaços, sem pertencer, especificamente, a nenhum deles. Nesse sentido, a noção de pertencimento à determinada cultura também não é bem definida, pois Izidine chega à fortaleza com características bastante europeias, mas, aos poucos, vai lembrando alguns rituais moçambicanos. O mesmo fato ocorre com outras personagens, tais como a enfermeira Marta e Domingos Mourão, já que nenhuma delas pode se declarar genuinamente portuguesa ou moçambicana.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos espaços narrativos em A varanda do frangipani remete à ideia de entre-lugar defendida por Bhabha (2013), pois, assim como as personagens têm suas identidades indefinidas, os moçambicanos têm identidades híbridas, resultantes das trocas culturais e das relações de dominação e poder. Entende-se, também, que o grau de apagamento da cultura autóctone moçambicana depende do tipo de contato que o colonizado teve com o dominador. Essa diferença de relações interculturais pode estar relacionada à localização geográfica das comunidades e é representada ficcionalmente por meio da fortaleza de São Nicolau, que manteve um grupo de moçambicanos bastante ligado à tradição, por estarem isolados do restante do país por um longo período de tempo. Conforme aponta Mia Couto (2005), o distanciamento dos centros urbanos manteve a população rural presa a uma tradição que acabou se tornando, para boa parte dos moçambicanos urbanos, um mito, repleto de crendices e monstros imaginários. Nesse sentido, a obra mostra que esses dois opostos, distanciamento e proximidade absolutos, não traduzem a identidade real moçambicana, uma vez que, devido ao processo histórico pelo qual Moçambique passou, é impossível negar a influência da cultura do colonizador, ao mesmo tempo, que não se pode renegar a própria cultura e assumir integralmente a cultura do outro. A varanda do frangipani mostra que definir fronteiras em meio a tantas diversidades é praticamente impossível. Relaciona-se a isso o fato de a obra ser estruturada a partir de opostos que não se definem totalmente ao longo da narrativa. No tempo e no espaço construídos na trama não há como distinguir entre aquilo que é autóctone ou estrangeiro. Nesse sentido, a identidade cultural moçambicana resulta das trocas culturais que ocorreram ao longo do tempo. As diferenças relações que os nativos mantiveram com o colonizador, também, influenciaram a construção das identidades individuais, formando, assim, uma nação de identidades múltiplas e deslizantes.

REFERÊNCIAS BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008. COUTO, Mia. A varanda do frangipani. São Paulo: Companhia da Letras, 2007. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2006. SAID, Edward W. Orientalismo: Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

COLÉGIO NOSSA SENHORA DE LOURDES, FARROUPILHA/RS (1922-1954): A DOCÊNCIA A PARTIR DA MEMÓRIA DA IRMÃ MAFALDA SEGANFREDO Gisele Belusso* (UCS)

O presente ensaio tem como objetivo compreender a formação docente em serviço e o cotidiano escolar do Colégio Nossa Senhora de Lourdes1, Farroupilha/RS, por meio das memórias da irmã e professora Mafalda Seganfredo. Utilizo como referencial teórico as contribuições da História Cultural com Chartier(1991,2002) e Pesavento(2008) e das culturas escolares com Vinão Frago (1995) e Vidal ( 2005, 2009), como metodologia a análise documental com Luchese (2014), Le Goff ( 1996) e a história oral com Bonazzi (2005). A história oral oportuniza ao pesquisador construir, através da entrevista, mais uma possibilidade de fonte documental logo impõe o compromisso do rigor metodológico. Como lembra Bonazzi(2005), a seleção da testemunha, o cuidado com os questionamentos e a relação de respeito e confiança, devem ser aspectos considerados para organizar e guiar os procedimentos da entrevista. A escolha dessa entrevistada foi motivada pelo fato dela ter sido professora na instituição de ensino pesquisada e também pela longa trajetória de vida dedicada à congregação. O Colégio Nossa Senhora de Lourdes foi aberto em 1917, em Nova Vicenza (hoje Farroupilha), segunda escola inaugurada no Rio Grande do Sul pela Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos BorromeuScalabrinianas. Essa congregação é instituída na Itália em 1895, a partir da necessidade de irmãs para trabalhar no Orfanato Cristovão Colombo2, São Paulo, Brasil. As instituições educacionais fundadas pela congregação contavam com o trabalho de religiosas em diferentes funções, entre essas, a docência. As primeiras irmãs vieram do Noviciado de São Paulo para atuar no Estado Só no ano de 1927 foi inaugurado o noviciado em Bento Gonçalves, RS. E é a partir das lembranças e memórias de uma ex-aluna do noviciado de Bento Gonçalves, docente do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Irmã Mafalda, que pretendo acessar as representações do cotidiano escolar do “Lourdes3”.Entendo que as lembranças individuais,conforme Halbwachs (2006), são nossas e também dos outros eindissociável do contexto social.Logo é preciso analisar o relato oral com essa especificidade e entrecruzamento com outras fontes, tais como atas, fotografias, decretos e legislações.

1. AS PRIMEIRAS APRENDIZAGENS: A ESCOLA DA VIDA A história de vida da irmã Mafalda revela que sua relação com o ensinar vinha de casa, desde o tempo de menina. Natural de Nova Bassano, interior do Rio Grande do Sul, em uma família de onze irmãos em que ela era a oitava, certamente, seu lar foi a primeira escola. Com as famílias numerosas, características no interior, aprendiam desde cedo a partilhar e cooperar.

Mestranda em Educação, Universidade de Caxias do Sul, Brasil. [email protected] Esse estudo é parte do projeto de pesquisa Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Farroupilha/RS: Tecendo histórias de sujeitos e práticas (1922-1954). Sob a orientação da professora doutorada Terciane Ângela Luchese, financiado pela Capes. 2 O Orfanato Cristovão Colombo foi a primeira instituição educativa da Congregação no Brasil, inaugurada em 1895. 3 Assim é chamado o Colégio Nossa Senhora de Lourdes pela comunidade de Farroupilha, RS. *

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Foi em casa também que aprendeu a ser católica. Segundo Scariot (2006, p. 161) rezar o terço era costume todas as noites, além da oração antes do café da manhã e das leituras dos livros de santos4 que havia em casa. Com apenas “10 anos de idade foi escolhida pela comunidade da Capela de Nossa Senhora Caravaggio e São Carlos5, para administrar a catequese às crianças e adolescentes do local.” (Scariot, 2006, p.163). Na escola ajudava a professora, “é acontece que eu já tinha uma certa prática, se eu não lecionava diretamente eu ajudava a professora e a diferença era que lá na colônia a gente lecionava para primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto e a seleta, todos juntos.”(Mafalda Seganfredo, 2015). Fez parte também da equipe que realiza os exames pelas “escolinhas” do interior, lembrançasdesses momentos mostram indícios sobre o método utilizado e a presença do dialeto “Talian” nas comunidades do interior do Rio Grande do Sul. Eu era ainda menina, antes de 18 anos, então eu ia, fui... destinada a acompanhar a equipe que ia fazer os exames nas escolas da colônia. Em uma ocasião eu fui junto numa escolinha e daí o método era assim ... B-O – BO. Tinha gente grande já, era da cartilha, então um rapaz terá dito, essa aí meio boba, eu vou me examinar com ela. Que era livre. Então veio um rapaz lá fazer exame comigo. Então eu disse pode abrir a cartilha escolher aquilo que tu quer ler.Tinha assim.b - o – bo, t-a- ta, bota. Ele disse b – o, ele tinha até bigode, grande,bo, t - a – ta. Stivale.( MAFALDA SEGANFREDO, 2015)

Ela representa acerca de si própria “ainda menina”, frente a um rapagão que mal sabia decifrar silabicamente a leitura de uma palavra simples em português e observa na continuação de seu relato que fica pensando “coitado! será que não se sente excluído?” Não saber falar o português, de fato, foi motivo de perseguição, exclusão e em alguns casos prisão, no período de nacionalização durante o Governo de Vargas. (KREUTZ, 2014). No entanto, talvez o que seu espanto deixe transparecer quando se refere ao “rapagão” ou “coitado”, não foi sua meninez, mas a falta de escolarização e da alfabetização em português de imigrantes e que lhes constituía uma condição de exclusão. Conforme Luchese (2015), nas regiões de colonização italiana no Rio Grande do Sul6as primeiras iniciativas escolares foram poucas, inicialmente improvisadas, muitas vezes com um único professor, em comunidades que o dialeto “Talian” era comum, o que dificultava a alfabetização em português. Ainda conforme a autora, os exames finais eram considerados um momento privilegiado no calendário escolar. Na documentação analisada pôde perceber que os exames finais eram realizados por uma comissão examinadora determinada pelo intendente, que o canto do Hino Nacional fazia parte do ritual, bem como a aplicação de exame escrito e oral, exposição de cadernos e por vezes premiações aos melhores alunos e ainda uma oportunidade da comissão avaliar a professora em seu trabalho, tudo devidamente registrado em atas, uma celebração do saber. Aqui destaquei alguns breves aspectos dentre outros do estudo de Luchese(2015) referente aos exames finais.Destaco ainda que a região de colonização italiana não contempla Nova Bassano, a região da aplicação dos exames relatados pela entrevistada, mas que alguns aspectos se aproximam, como a composição da banca examinadora e da prova oral de leitura. Aos dezoito anos de idade decidiu seguir a vida religiosa com o consentimento da família e passa a trabalhar no hospital de Guaporé. “Fiz meu ano de experiência no hospital, as irmãs me encaminharam para saúde, então aprendi fazer injeções, curativos, [...] uma vez era assim também na saúde. Se aprendia fazendo.” (Mafalda Seganfredo, 2015). O ensino pelo exemplo e prática fez parte da formação inicial de Mafalda.

Conforme Scariot (2006, p. 162), as leituras eram a revista dos Jesuítas, do Anuário Antoniano, livros de santos e outros livros e revistas que vinham da Itália. Seu pai era imigrante italiano. 5 Paróquia administrada pelos padres Carlistas, o ramo masculino, da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo Scalabrinianas. 6 Região de Colonização italiana conforme Luchese e Grazziotin (2015, p.343) considero “aquela formada pelas antigas colônias ocupadas a partir de 1875, por imigrantes predominantemente italianos: Colônia Cond’Eu, Dona Isabel e Caxias.” 4

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Após essa experiência prática, no início do ano de 1946, ela ingressa no noviciado em Bento Gonçalves, situação comum a outros familiares.Além dela mais duas irmãs, duas sobrinhas e um sobrinho seguiram a vida religiosa. (Scariot, 2006, p. 164-165). Era um período em que muitas jovens optavam por este caminho, conforme o relato da Irmã Mafalda“éramos em 90 noviças, entre as quatro séries”.Dessas turmas, após os votos, muitas eram destinadas as escolas formando o corpo docente e de funcionárias das instituições escolares.

2. PRÁTICAS E FAZERES NO “LOURDES”. Na condição de irmã, Mafalda Seganfredo7 iniciou a atividade docente na metade do ano de 1951, logo após ter concluído o noviciado8 e realizado os votos em 29 de junho deste mesmo ano. Destinada ao Colégio Nossa Senhora de Lourdes em Farroupilha/RS, passa a atuar como docente no quarto ano do ensino primário. Utilizo o termo, destinada, pois não era uma escolha.As irmãs após os votos eram convocadas a assumir uma missão e essa decisão era função da Madre Superiora, a partir da necessidade das comunidades.9 Quando questionada de como foi a primeira experiênciade professora no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, Mafalda recorre a suas lembranças, “já tinha como prática de lecionar, eu já tinha feito na minha casa10 ” e tinha o livro11 com os conteúdos a serem trabalhados. Considera ainda que neste momento foi mais fácil porque eram só os do quarto ano, ou seja, quando ajudava sua professora eram todos na mesma sala, em diferentes níveis de adiantamento12. A entrevistada exerceu a docência no Colégio Nossa Senhora de Lourdes de 1951 até 1962, trabalhando em diferentes turmas, inicialmente com o primário e após com o curso ginasial. Período, na educação brasileira, de crescente expansão da escolarização, de inserção das ideias do movimento escolanovista, porém, de altos índices de analfabetismo, de evasão escolar e de repetência. (RIBEIRO, 2000). Nesse período houve no Colégio a modalidade de atendimento de internato e externato. O Internato era apenas para meninas e entre essas havia alunas que estavam internas em função da distância.Eram elasoriundas de outras cidades e outras eram aspirantes, ou seja, pretendiam seguir a vida religiosa. Isso diferenciava de certa forma a rotina de um grupo e outro. Viviam juntas, praticamente, o que separava era porque, aquelas que vinham para ser irmãs, vinham para fazer uma experiência pra saber se tinham vocação. Nos ajudavam na limpeza da casa, para se pagar, por exemplo ao invés de pagar um salário, uma mesada por mês conforme, elas ajudavam na limpeza, principalmente na limpeza da casa e os trabalhinhos assim. Estudavam e não pagavam nada do estudo, tinha algumas que talvez davam alguma coisa, outras traziam coisas da colônia por exemplo, tinham alunas de Bento, eu tive de principalmente dos distritos aqui, por exemplo de Nova Milano. (MAFALDA SEGANFREDO, 2015)

Analisar o cotidiano escolar nos permite perceber que adaptações na rotina foram constituídas no interior da instituição escolar conforme seu público. O “Lourdes” apesar de escola particular é confessional, o que gera uma singularidade neste contexto. Algumas internas não custeavam seus Irmã Mafalda Seganfredo, nascida em 09 de agosto de 1928, em Nova Bassano, RS. Seus pais, Lino Seganfredo e Thereza Parisotto. Uso aqui o nome civil da religiosa. 8 O noviciado foi realizado em Bento Gonçalves, Colégio Medianeira, em um período de dois anos. 9 Cada nova instituição era uma nova comunidade. 10 Sua casa: Nova Bassano, enquanto vivia com a família. 11 Certamente em livros em português pois conforme Kreutz (1994, 45-46), o decreto 406 de 4 de maio de 1938 dirigido às escolas étnicas determinou que o material fosse em português. 12 Era uma aula isolada, onde um mesmo professor ensinava a todos os níveis. E consoante a Souza(2008, p. 46), “consideradas muitas vezes como um ‘mal necessário’ [...], a expressão ‘escolinha’ do bairro e da roça, a escola alfabetizante instalada predominantemente em zonas de população rarefeita, modesta em suas finalidades e marcadas por muitas carências.” 7

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estudos na condição de aspirantes,corroborando com Vinão Frago (2002), de que cada instituição escolar é singular com relação as culturas escolares. Por estar a escola situada em uma região de colonização italiana, o dileto é uma das questões que fez parte das culturas escolares e gerou no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, práticas escolares diferenciadas. “Os muitos dialetos trazidos pelos primeiros imigrantes ainda persistiam [...] até a década de 1970 pelo menos, como atesta a pesquisa de Frosi e Mioranza, publicada em 1983.” (FAGGION; LUCHESE, 2014, p.263). As línguas que deviam ser ensinadas na escola eram o português, o inglês, o francês e o latim. Era um tempo que era muito vigiado para que aprendessem em português, porque eram todos da colônia. Então um ano eu me lembro de que a diretora daquele tempo disse: Nós precisamos, para puxar forte para esses alunos, que falem português e aprendam a escrever em português. Nós tivemos que fazer uma classe separada para puxar mais aqueles alunos que vinham da colônia e falavam em dialeto. Falavam muito mal em português. ( MAFALDA SEGANFREDO, 2015)

No período em que as escolas étnicas foram perseguidas, as “italianas” e confessionais foram consideradas menos perigosas pelo secretário de Educação José Pereira Coelho de Souza, pois em sua opinião adotaram facilmente as medidas de nacionalização. (KREUTZ, 2014, p.157). O que parece condizer com o relato da professora de que era preciso aprender o português e detalha a estratégia criada para dar conta dessa atribuição da escola para o período. O estudo de Giolo (2009, p.252), evidencia mais uma vez a consonância da igreja com o projeto Republicano em que considera que “uma das contribuições mais decisivas que a Igreja católica deu ao Estado republicano foi seu empenho na nacionalização13 do elemento estrangeiro.” (Giolo, 2009, p.252). A educação física foi outra questão estimulada com o processo de nacionalização, atribuição esta que ficava a cargo da irmã Mafalda, querecorda a preparação para desfile de sete de setembro. “Era preciso marchar”, iniciava com a prática no pátio da escola, após na rua, para que no dia do desfile estivessem prontos. Desfilavam de uniforme e era preciso marchar corretamente e a banda da escola acompanhava os alunos. Nos períodos em que não estava se aprendendo marchar, as aulas eram distribuídas entre jogos e exercícios de ginástica.Ela lembra de ensinar vôlei e caçador. Existia um livro para a professora e a partir das orientações contidas nele, se preparavam as atividades. Aquelas maiorzinhas de segunda série, terceira série, que já são mocinhas, eu fazia com aqueles paus para não encurvar, para não fazer barriga e não perder a postura, pois se tinha um livro de educação física, um livrinho que pelo menos pra quem dirigia. Para exercícios vários, para postura, para digamos assim a maneira de ficar.(MAFALDA SEGANFREDO, 2015)

A circulação de livros na escola era tanto para os alunos como para os professores. Já os materiais para educação física parecem por vezes serem improvisados, visto que traziam “os paus” de casaconforme relato da professora. Na sala de aula procurava manter uma rotina organizada em que geralmente começava por olhar a lição de casa, que era a mesma para todos, com o cuidado de tomar a lição e verificar se alguém não tinha feito e neste caso, procurava saber o motivo. No entanto, reforça em seu discurso que era difícil alguém não fazer. Sua representação sobre os alunos é de que “eles eram bem estudiosos” e seus pais “cuidavam muito para que os alunos fizessem o tema.”(Mafalda Seganfredo, 2015). Às vezes era necessário enviar bilhetes às famílias e conversar com os pais. “Muitas vezes ia até a casa dos pais.” Conta que era muito bem recebida e não recorda de algum pai ter rejeitado suas indicações, que por vezes eram cuidados com relação àsaúde, como problemas de visão.

Para saber mais : Os estudos de Giron(1989), Gertz(1991) e Kreutz( 1991, 1994, 2003).

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Essas são algumas representações das práticas escolares encontradas na análise da entrevista da irmã Mafalda Seganfredo, ciente de que como lembra Pesavento (2008), essa representação passa pela subjetividade da entrevistada de si e do mundo e que é involuntariamente envolvida por processos de percepção, reconhecimento, valorização ou exclusão. Portanto, existem lembranças e também esquecimentos e são nessas águas turvas de representações partilhadas e construídas pelos sujeitos para explicar o mundo que o pesquisador se movimenta.

3. ENSINAR E APRENDER: UM TEMPO DE FORMAÇÃO EM SERVIÇO Quando a docente inicia a atuação no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, cursava o ginásio. O município de Farroupilha não tinha o curso ginasial femininoem 1951,logo, as irmãs que precisavam continuar os estudos eram acolhidas pelos padres Maristas, no Colégio São Tiago, conforme o relato: As irmãs que estavam fazendo o ginásio, elas então estudavam com os irmãos Maristas, eu fui formada no São Tiago. Eles davam às aulas a parte para nós, pois eram só meninos, e aqui, eram só meninas. Quando eles vinham fazer os exames para nós aqui, era eu e mais uma colega, eles faziam o exame aqui, separado. (MAFALDA SEGANFREDO, 2015).

Nessa fala é evidenciada uma característica da época. O primário atendia classes mistas, porém, no curso ginasial, os alunos eram atendidos em salas ou até mesmoem instituições escolares distintas, conforme o gênero. Esse foi o caso de Farroupilha/RS, em que o Colégio São Tiago, dos Padres Maristas, inaugurado em 1945, atendia somente meninos no curso ginasial e o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeu Scalabrinianas, inaugurado em 1917, autorizado a ofertar o curso ginasial em 1954, atendeu somente meninas. A abertura do ginásio no Colégio das irmãs gerou uma nova demanda para a congregação de formar professoras para atuar no secundário. Conforme a Irmã Mafalda era preciso fazer cursos nas férias porque naquele tempo “tinha gente que lecionava que não tinha curso adequado.” (Mafalda Seganfredo, 2015). Ela participou dos cursos de férias que eram ofertados em julho, janeiro e parte de fevereiro, em Ana Rech, Caxias do Sul/RS, a partir do ano de 1955. A representação da Irmã Mafalda referente ao período de formação remete a um tempo “duro”, uma formação exigente, em que vinham pessoas do Rio de Janeiro, muito “evoluídas”.Além das aulas teóricas, tinham as práticas e as alunas eram observadas pela equipe do curso que as avaliava. As aprovadas recebiam o registro de professora.Ela realizou os cursos de Francês, História Geral e História do Brasil e com esta formação estava autorizada a lecionar essas disciplinas para o ginásio, com o devido registro. Para dar continuidade aos estudos se desloca a Porto Alegre, pois os cursos em Ana Rech, não eram mais ofertados e realiza ainda o curso de Geografia e secretária. Na década de 60, do século XX, emerge a necessidade do ensino superior no município de Caxias do Sul e nos fundos da catedral começam a ocorrer os primeiros cursos da Universidade de Caxias do Sul. Os registros de professora e de secretária foram suficientes para que a professora pudesse prestar vestibular e ingressar no ensino superior em quegraduou-se em História. Conforme Mafalda, essa primeira turma tinha 21 alunos, dos quais eram 20 moças e 1 rapaz, que desistiu. Todas as alunas já eram professoras e a maioria era de pessoas leigas. Irmã Mafalda trabalhou no Lourdes até concluir a graduação em história e após foi destinada a outras instituições de ensino até o ano de 1966. De 1967 a 1971, foi Superiora Provincial da Província Imaculada Conceição14. Em 1977 assume o trabalho junto ao Pontifício Conselho da Pastoral dos Migrantes e Itinerantes em Roma, Itália, até 1998, quando retorna ao Brasil atua na Pastoral A congregação no Rio Grande do Sul é dividida em duas províncias: Província Cristo Rei, com sede em Porto Alegre e Província Imaculada Conceição, com sede em Caxias do Sul.

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Migratória da Diocese de Caxias do Sul e ainda por um período breve no Hospital Mãe de Deus em Porto Alegre/RS. Nos últimos dois anos encontra-se em situação de acolhimento junto à comunidade do Colégio Nossa Senhora de Lourdes. Quando pergunto sobre o que marcou seu trabalho no “Lourdes”, ela relata que a relação com as famílias e a valorização da comunidade era muita grata no período em que atuou e que ela não percebe mais hoje isso nas famílias da escola.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Lecionava, era um prazer, naquele tempo. Eu fui secretaria do colégio, não sei como eu fazia tudo, porque tinha faculdade, tinha 44 horas de aula por semana, secretaria e mais outras coisas que fazia. (MAFALDA SEGANFREDO, 2015)

Neste fragmento a entrevistada relata sua representação sobre este período de estudos e trabalho em que ainda podemos observar o fato de, além da função de professora, também era responsável pela secretaria. Para Chartier (1991, p.177) não é possível “haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.” Ela dá sentido aqui ao seu cotidiano, porém essasituação foi uma característica da época em que muitos professores leigos já atuavam desta forma permanecem em serviço realizando a formação. Pode-se observar que esta congregação oportunizou a entrevistada que realizasse a formação, o que não foi exceção, segundo ela, outras irmãs também frequentaram o curso de férias, ou ainda, os cursos em São Paulo para aprender a metodologia Montessori e também concluíram cursos de graduação e pós-graduação nos anos subsequentes. Por fim pode-se afirmar que as memórias docentes são uma forma privilegiada de ver o cotidiano de uma instituição escolar e suas práticas, atingindo o vivido em contraponto com o registrado nos documentos. Conforme Luchese e Grazziotin (2015, p. 354), as lembranças desses professores assumem, ao mesmo tempo, significados particulares quando manifestam sentimentos e experiências coletivas, quando se entrelaçam em ponto de contato, que se articulam e se estruturam produzindo um passado que é recomposto, trazendo dimensões difíceis de perceber no meio dos documentos escritos.

Olhar a instituição escolar pelas lentes da cultura escolar, como ampla categoria de análise, permite não apenas ampliar nosso entendimento sobre o funcionamento interno da instituição como nos provoca a rever as relações estabelecidas historicamente entre escola, sociedade e cultura. (VIDAL, 2009, p. 39) Para estabelecer essas relações é preciso vasculhar as representações conservadas dos sujeitos participantes do cotidiano escolar, assim, entendendo que as culturas escolares não são pressupostos, mas sim um processo e também um resultado das vivências dos sujeitos e suas apropriações das tradições e das culturas que existiam na instituição escolar.

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Documentos acessados Entrevista com Mafalda Seganfredo realizada pela Autora Gisele Belusso em 04 de agosto de 2015.

NARRATIVAS E AÇÕES QUE CONSTITUEM E POSICIONAM A FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE COMO UM EVENTO CULTURAL IMPORTANTE E PECULIAR À CIDADE Gisele Massola* (ULBRA) Antes de saber o que a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela. Essa instituição [história] se inscreve num complexo que lhe permite apenas um tipo de produção e lhe proíbe outros. Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso tudo aquilo que é a sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos, políticos) na análise (MICHEL DE CERTEAU, 1982, p. 178, grifos do autor).

Neste artigo, resultado de uma pesquisa de doutorado em Educação recentemente concluída, trago alguns elementos da história e do contexto em que se processou a composição de um importante e expressivo evento cultural ocorrido em solo gaúcho – a Feira do Livro de Porto Alegre –, atenta ao pensamento de Certeau (1982), destacado na epígrafe acima, por pretender indicar que a organização de um evento/feira com o porte deste, assim como as formas de dar-lhe significado, sempre é construída a partir das ênfases atribuídas a determinados componentes, elementos, discursos, representações, informações e fatos. A abordagem analítica desse evento/feira também requer seleções, tendo em vista a perspectiva teórica em que o estudo se insere. No caso deste estudo, tal perspectiva teórica corresponde aos Estudos Culturais, campo de estudos multifacetado, diversificado e amplo, usualmente caracterizado como interessado na problematização de certezas expressas em contextos e discursos. Quero destacar que as escolhas que fui fazendo com o propósito de apresentar esse evento estão pautadas nas questões que formulei ao longo da investigação, as quais estão implicadas em um contexto por onde busquei transitar. Conforme procuro demonstrar mais adiante, as compreensões daí advindas produzem diferentes formas de reinvenção do que está sendo focalizado. No caso do evento cultural que examinei, a Feira do Livro, cabe desde já registrar que, à medida que tais compreensões são acionadas em diferentes instâncias – mídia, comunicação, publicidade, literatura, consumo, etc. –, se produzem para esse evento novas formas de significação e se negociam ações de legitimação que nele vão imprimindo determinados sentidos e marcas. Para as análises que empreendi, o ponto mais relevante a ser destacado refere-se à aceitação da representação como capaz de conferir ao passado um lugar de existência (lugares de memória) e de estabelecer articulações com o contexto atual por meio de uma história comum coletiva. É importante fazer tais considerações porque elas me auxiliam a entender a Feira do Livro como um evento cultural e me permitem refletir sobre os sentidos e funções que lhe são atribuídas na cultura (por meio de suas produções e instituições), operando, tal como referiu Sarlo (1998), como uma “máquina cultural” cujos mecanismos e engrenagens são constituídos por ideias, ações, experiências configuradas, instituições, argumentos e atores. Interessou-me, especificamente, compreender a engrenagem dessa “máquina cultural” – as permanências e rupturas nela operadas no

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Possui graduação em História e mestrado em Educação ambos pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), com especialização em Ciências Sociais, e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente, é professora tutora de graduação dos cursos de licenciatura em História, Geografia e Ciências Sociais em EAD da ULBRA. Pesquisadora colaboradora do projeto “Estudos Culturais da Ciência e Educação – uma revisão dos estudos desenvolvidos neste campo articulatório“ coordenado pela Professora Drª Maria Lúcia Wortmann da UFRGS.

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decorrer do tempo –, entendendo-a como parte de um conjunto de estratégias gestadas para (re) significar as práticas nela e a partir dela instituídas, bem como indicar as dimensões implicadas na sua constituição/produção enquanto evento cultural. Além disso, cabe referir ainda, como argumenta Hall (1997) que na contemporaneidade a cultura tem uma dimensão substantiva e um papel central na constituição das significativas mudanças que vêm ocorrendo na atualidade e que movem as ações e os sujeitos. Ela tem também uma dimensão epistemológica, atinente às modificações operadas nos modos de compreender e de analisar as produções e as instituições sociais.

1. APRESENTANDO ALGUMAS FACETAS DA FEIRA DO LIVRO DE PORTO ALEGRE A primeira edição da Feira do Livro de Porto Alegre ocorreu em 1955, tendo como inspiração um evento semelhante que se realizava na Cinelândia, no Rio de Janeiro, a respeito do qual o jornalista gaúcho Say Marques1 trouxera informações para os livreiros locais, estimulando-os a promover algo parecido para popularizar o acesso ao livro. Tal intenção aparece explicitada no slogan da 1ª edição do evento: “Se o povo não vem à livraria, vamos levar a livraria ao povo”. Porém, por certo, além de promover a popularização do livro, os promotores da Feira também almejavam a venda de livros e a ampliação do mercado literário. Desde sua primeira edição, esse evento, que passou a ocorrer anualmente, foi realizado em locais públicos: primeiramente, era restrito à Praça da Alfândega, passando, posteriormente, a ocupar também parte das imediações e dos prédios vizinhos, localizados no chamado “Centro Histórico de Porto Alegre”, tendo ocorrido ampliações espaciais que estenderam o evento até a orla do Guaíba, onde ficam os armazéns do antigo Cais do Porto. Essa expansão ocorreu, notadamente, nos anos 1990, perdurando nas edições mais recentes. Atualmente, a Feira do Livro tem sido caracterizada como um dos “maiores eventos culturais da América Latina realizados em espaços abertos”. Tal expressão, empregada para referir-se ao evento, aparece com recorrência em títulos e legendas do jornal ZH e em informativos da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre (SMC) ao referirem-se à Feira. Esta abrange programações dirigidas a públicos de diferentes faixas etárias, ocorrendo por aproximadamente 15 dias – o período compreendido entre a última sexta-feira de outubro até o segundo domingo de novembro, prolongando-se até a segunda ou terça-feira quando o feriado nacional de 15 de novembro (Proclamação da República) ocorre em um desses dias. A iniciativa de organização do evento partiu de um grupo de representantes do setor livreiro e de editores ligados à seção RS da Câmara Brasileira do Livro (CBL), que se constituiu como um braço dessa renomada instituição nacional, criado especialmente em função da Feira do Livro de Porto Alegre. No ano de 1963, a entidade passou a denominar-se Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL) e tornou-se oficialmente a instituição promotora e organizadora da Feira até o presente momento. Desde a consolidação da CRL a organização e direção da Feira envolvem negociações que acontecem entre os associados dessa instituição, embora ela não tenha por função exclusiva a promoção da Feira. Cabe a essa entidade definir normas, regras e regulamentos; estabelecer reuniões preparatórias; decidir por meio de resoluções o horário e o período de funcionamento da Feira; promover eleições Marques foi diretor-secretário de um dos principais jornais do Rio Grande do Sul nos anos de 1950, o Diário de Notícias, fundado em 1925. Durante as primeiras edições da Feira, o jornalista – além de apoiar a iniciativa, contando com apoio de autoridades do governo e dos representates do setor livreiro e editorial – compunha e publicava textos naquele períodico, buscando noticiar e divulgar os acontecimentos relativos à Feira. Acrescenta-se, ainda, que esteve entre os principais responsáveis por incentivar a realização do evento em seus primeiros anos, como Henrique D’avila Bertasso (1º presidente da Câmara Rio Grandense do Livro, triênio 1963- 1965), Maurício Rosenblatt (presidiu a Câmara em cinco biênios: 1966-67/1970-71/1972-73/1974-75 e 1976-77) e Leopoldo Bernardo Boeck (livreiro e editor, foi presidente da Câmara de 1968-69) (TILL, 2004).

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das comissões organizadoras, coordenadorias e diretoria; elaborar e avaliar a programação; coordenar e executar a Feira; autorizar e controlar diversas ações relacionadas a ela; conseguir apoiadores ou patrocinadores; prestar contas e resolver demandas durante a realização, entre outras atividades ligadas à promoção do evento. Cabe referir também que relacionado ao próprio contexto histórico da Feira, na década de 1990, presenciou-se um grande “boom” de transformações, atrelado, de certo modo, a mudanças presenciadas no cenário brasileiro, em que a implementação, o fomento e o incentivo de políticas culturais se intensificaram, quando ocorreu a consolidação do Ministério da Cultura (MinC)2. Nessas alterações esse evento/feira passou a ser gestado a partir da lei de incentivo a Cultura. Com isso, a Feira do Livro de Porto Alegre passou a contar com no máximo seis patrocinadores âncora3, que aportam quotas idênticas e obtêm exatamente as mesmas contrapartidas, que incluem: concessão do espaço, sem ônus para instalar estande às suas expensas em local privilegiado do recinto da feira; assinatura (inserção de logomarcas) em todas as peças publicitárias, gráficas e promocionais, bem como na programação visual; instalação de estandes com estúdio para órgãos da imprensa, de modo a permitir a cobertura “ao vivo”, bem como o deslocamento de programações diárias, que passam a ser realizadas e exibidas a partir do espaço da Feira. Tais patrocinadores têm obtido compensações que envolvem “incentivos fiscais, comercialização institucional ou valor publicitário, e a conversão da atividade não comercial em atividade comercial”, tal como Yúdice (2006, p. 32) comentou em seu estudo. Cabe registrar que, a partir da Lei de Incentivo à Cultura (LIC), e da Lei Rouanet, as empresas patrocinadoras podem deduzir parte do valor investido na Feira dos impostos que devem pagar. A Feira pode ser pensada, então, como um recurso que promove o livro, a leitura e a cultura em geral. Em termos de atividades culturais realizadas no período da Feira, cabe registrar que, à medida que o evento foi crescendo em proporções, outras ações foram sendo incorporadas à sua programação, estando entre elas a realização de mesas-redondas, palestras e debates sobre temas de diferentes ordens, tais como sustentabilidade, cinema e literatura, direitos autorais, patrimônio artístico, memória e preservação, perspectivas da economia brasileira frente à crise mundial, envelhecimento e longevidade, poesia, etc. Ao lado dessas, passaram a ser realizados seminários nacionais para a discussão de questões, tais como o papel da biblioteca e da leitura no desenvolvimento da sociedade, da crítica e da literatura e o papel do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL). Além desses temas, foram também já discutidos: o papel do poder público na criação de políticas de leitura para estados e municípios, contando com a presença de autores, cartunistas, ilustradores e representantes governamentais e com bate-papos com jornalistas, psiquiatras e psicólogos, entre outros profissionais, sendo essas atividades direcionadas ao público em geral. Somam-se a isso apresentações artísticas (musicais, rodas de histórias, saraus literários, grupos de danças folclóricas, orquestras), encontros, atividades de contação de histórias e encenações de peças de teatro destinadas, em especial, ao público infanto-juvenil. Também vale apontar as atividades da Hora do Educador e Durante muitos anos, especificamente de 1953 a 1985, as demandas pertinentes ao campo da cultura estiveram contempladas pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), que integralizava ações destes dois seguimentos. Em março de 1985, pelo Decreto nº 91144, no período que caracterizou o processo de redemocratização do Brasil, durante o governo de José Sarney, foi instituído o Ministério da Cultura como uma área desmembrada da Educação. Em 1990, durante o regimento do governo de Fernando Collor de Mello, por meio da Lei nº 8.028, houve uma alteração que transformava o então Ministério em Secretaria, estando diretamente atrelada à Presidência da República; já no governo de Itamar Franco, em 1992, esse processo foi revertido com a Lei nº 8.490. Em 1999, no governo Fernando Henrique Cardoso, ocorreram transformações no Ministério da Cultura, com a ampliação de seus recursos e a reorganização de sua estrutura, promovida pela Medida Provisória nº 813, de 1995, transformada na Lei nº 9.649, de 1998. Em 2003, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, foi aprovada a reestruturação do Ministério da Cultura (MinC) com o objetivo de “potencializar suas ações procurando minimizar distorções e ampliar o acesso da população aos bens culturais. A Cultura passou a ser vista sob três dimensões: a simbólica, a cidadã e a mercadológica, e suas ações passaram a ser desenvolvidas para fortalecer cada um dos três campos”, conforme informações contidas no Portal do Ministério da Cultura. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/o-ministerio/historico-do-ministerio-da-cultura/. Acesso em Fevereiro de 2012. 3 O grupo de patrocinadores está dividido atualmente em quatro categorias principais: Patrocínio Especial (compreendendo aqueles que seriam os patrocinadores-âncoras), Apoio Mídia/Imprensa, Apoio Cultural e Apoio Institucional. 2

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programações escolares (endereçadas para professores, com debates sobre temáticas variadas, entre elas: acessibilidade e inclusão, narrativas, bibliotecas, leitura, cultura popular, HQs), oficinas (poesia, crônicas, Libras, design editorial, haicai, origami) e exibições de filmes, curtas e documentários4 que focalizam, por exemplo, o suspense, em conto adaptado de Luis Fernando Veríssimo (Noite), desencontros amorosos (Livros no Quintal), relatos de viagens (Mapa-Múndi) e intercâmbio cultural (24 horas com Carolina), entre outros. Ainda entre as atividades que podem ser destacadas na Feira, está a “mediação de leituras”, que consta da apresentação de uma obra, da leitura de uma história ou da observação de ilustrações variadas, ao final das quais são abertos espaços para comentários e apresentações dos participantes. O propósito dessas mediações de leitura é colocar o grupo participante em contato com textos de autores clássicos e reconhecidos nacional ou internacionalmente. O “clima” descontraído criado nessas atividades parece voltar-se a motivar as crianças a desejarem ter/ler o livro que está sendo apresentado, bem como outros que lá estão expostos, mobilizando-as a solicitarem sua compra pelos pais. Chamam atenção as diversificadas formas de divulgação das obras lançadas na Feira, pois muitas delas envolvem, por exemplo, aproximações entre leitura, artes plásticas e espetáculos teatrais, voltando-se, ao que parece, a atingir um maior número de pessoas. Tais atividades compreendem sessões temáticas e espaços abertos destinados a determinados públicos, tais como o teatro de mesa, a poesia na feira, o sarau poético, além de oficinas de crônicas, curtas e documentários, críticas a obras literárias de grandes escritores e lançamentos de obras de autores anônimos ou já “consagrados”. Todas essas atividades vão tornando a Feira uma grande celebração, na qual cada vez mais é estimulada a produção de sujeitos leitores, igualmente envolvidos com outras dimensões da cultura. Pode-se dizer, então, que essa mescla de atividades diversificadas realizadas na Feira se configura como uma nova e atual forma de investimento na cultura, que passa pela intenção de promover a leitura mediante a valorização dos sujeitos leitores. Modos assemelhados a esse de posicionar a leitura podem ser encontrados em programas oficiais escolares, em que se enfatiza, com frequência, a importância de a leitura suscitar prazer.

2. CONSOLINDANDO A FEIRA DO LIVRO COMO UM EVENTO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL DO RIO GRANDE DO SUL Todas as atividades comentadas igualmente incluem-se entre as muitas modificações procedidas na Feira do Livro de Porto Alegre, que, como já comentei, se caracteriza cada vez mais pela mescla de ações culturais de diferentes âmbitos. Pode-se pensar que toda essa estrutura tem conferido ainda mais legitimidade ao evento, tomado como altamente representativo da cultura gaúcha, como também já referi. Isso parece ficar bastante evidenciado por dois títulos conferidos à Feira: em 2006, a Ordem do Mérito Cultural5, na categoria Cavaleiro, e, em 2010, o seu reconheci-

Os exemplos listados compuseram parte da programação da 58ª edição da Feira do Livro de Porto Alegre. A Ordem do Mérito Cultural foi criada pelo Governo Federal em 1995 com a finalidade de homenagear pessoas, grupos artísticos, iniciativas ou instituições, mediante condecoração outorgada pelo Mistério da Cultura (MinC) em reconhecimento por suas contribuições à cultura brasileira. A homenagem acontece anualmente, através de indicações realizadas em período determinado no formulário do site do MinC, podendo ser sugerida por qualquer pessoa ou entidade, cabendo à comissão selecionar e premiar os indicados. A comissão é composta por gestores das secretarias dos Ministérios da Cultura, das Relações Exteriores, da Educação e da Ciência e Tecnologia. Os premiados recebem a medalha/emblema das mãos da presidenta da República, que é a grã-mestre da Ordem, e da ministra da Cultura, a chanceler. As premiações são designadas a partir de três categorias: Grã-Cruz, Comendador e Cavaleiro, diferenciadas por suas insígnias. É possível ainda que a mesma pessoa, grupos artísticos, iniciativas ou instituições recebam a comenda mais de uma vez, só que em classes diferentes. Os órgãos e entidades públicas e privadas, nacionais e estrangeiras são admitidos na Ordem do Mérito Cultural sem grau de classes. Disponível em: http://www.cultura.gov.br/site/acesso-a-informacao/programas-e-acoes/ordem-do-merito-cultural/. Acesso em: Outubro de 2012.

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mento pelo Conselho do Patrimônio Histórico-Cultural de Porto Alegre como Patrimônio Cultural Imaterial6. Merecem também ser registradas ações desenvolvidas pelo Ministério da Cultura (MinC), por meio do Programa Monumenta, gestado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que visam à “preservação de conjuntos urbanos das cidades históricas brasileiras sob proteção federal com desenvolvimento econômico e social” (BRASIL, 2010, p. 2). Esse programa, que conta com o investimento financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o apoio técnico da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tem entre seus principais objetivos: “preservar o patrimônio histórico e artístico urbano; aumentar o conhecimento da população a respeito da importância do patrimônio; e estimular a utilização econômica, cultural e social das áreas de recuperação” (ibid). Atualmente, participam do programa 26 cidades brasileiras, escolhidas de acordo com a sua representatividade histórica e artística; os recursos para preservação são assegurados mediante a assinatura de convênios entre o Ministério da Cultura e as prefeituras e estados. Porto Alegre recebeu ações desse programa para proceder à restauração e preservação da Praça da Alfândega e dos Armazéns do Cais do Porto – locais que abrigam a Feira – a partir de 2004. Muitas vezes, tem-se afirmado a relevância da inclusão do Centro Histórico de Porto Alegre nesse programa7, em função do expressivo número de edificações com valor histórico-cultural localizadas no entorno da Praça da Alfândega (um dos três pontos focais da cidade; os outros dois são a Praça da Matriz e a Praça XV de Novembro, ambas localizadas no centro de Porto Alegre) e nas proximidades do Cais do Porto, as quais datam de meados do século XIX, já tendo desempenhado funções comerciais, portuárias e aduaneiras. Foram contempladas com ações de restauração e melhorias urbanísticas, em Porto Alegre, as áreas compreendidas entre a Praça da Alfândega e o Palácio Piratini, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, o Memorial do Rio Grande do Sul, o Pórtico Central do Cais do Porto e o Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, além das ruas, calçadas, monumentos e fachadas de prédios das proximidades dessas edificações. De acordo com registros do programa: (...) estão previstas no Monumenta, além das ações de recuperação e restauração de edifícios de valor cultural, públicos e privados, também iniciativas voltadas à valorização dos fatos que tiveram o centro histórico como cenário, a intensificação das atividades culturais e a qualificação dos serviços oferecidos. Ao orçamento do projeto somam-se recursos extraprograma, consequência de ações de reforço que têm como agentes e fontes financeiras outras instituições públicas e privadas, tais como o Trensurb (do Ministério das Cidades), a Câmara Riograndense do Livro, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e o Santander Cultural, entre outros (BRASIL, 2010, p. 29).

A seleção dos locais a serem contemplados pelo Programa Monumenta também considera se o espaço escolhido desempenha funções ligadas à educação patrimonial e à valorização do patrimônio cultural pelas comunidades. Esse é o caso específico da área contemplada em Porto Alegre, pois os

Antes da Constituição de 1988, as leis, decretos e ementas previam o tombamento patrimonial de bens materiais (prédios, ruas, construções), no intuito de ampliar tais entendimentos de patrimônios culturais, permitindo a preservação de equipamentos culturais nãomateriais. A partir de 2004, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial criou os decretos que possibilitaram o tombamento de celebrações, festas populares, manifestações literárias, musicais, plásticas e cênicas, lugares e feiras, entendendo a relevância desses eventos na concentração e reprodução de práticas culturais coletivas. É com base nesse artigo da Constituição que, em 2004, a Feira do Livro de Porto Alegre foi considerada pela Câmara Estadual um dos patrimônios culturais de maior importância do Estado. 7 As etapas do projeto preveem, inicialmente, as ações de delimitação do perímetro, obtenção de licenças ambientais, projeção orçamentária e elaboração de projetos de trabalho assegurando equipe técnica especializada (arquitetos, historiadores e administradores) na busca da composição arquitetônica original das edificações. Posteriormente, serão desempenhadas ações de controle, fiscalização, acompanhamento e monitoramento do andamento das obras por parte do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em parceria com órgãos da administração municipal, tais como a Equipe do Patrimônio Artístico, Histórico e Cultural (EPHAC) e o Conselho Municipal de Cultura, bem como o órgão estadual de preservação do patrimônio, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE) e a Secretaria de Estado da Cultura (SEDAC). 6

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locais revitalizados8 são ocupados por pelo menos dois dos eventos mais destacados na cidade – a Feira do Livro e a Bienal do MERCOSUL. Após deter-me no conjunto de materiais reunidos no acervo documental da Câmara Rio-Grandense do Livro, nos registros e informativos divulgados no site institucional da CRL e nos arquivos montados com edições do jornal ZH e nas cartilhas do Programa Monumenta, parece-me ser possível afirmar que foi a partir de meados dos anos 1990 que a Feira sofreu acentuados processos de modificação, os quais permitiram projetá-la como um evento marcante para a cultura gaúcha. As modificações, ampliações, redirecionamentos e extensões que busquei registrar foram, em grande parte, viabilizados tanto pela introdução e contribuição de patrocinadores, quanto pelas inúmeras associações procedidas entre entidades e eventos que passaram a apoiar a Feira. No entanto, nem sempre as modificações pelas quais passou a Feira nestes últimos 60 anos podem ser estritamente relacionadas a aspectos internos do evento. Por vezes, as mudanças estão associadas a um contexto mais amplo de eventos e processos em curso na sociedade, os quais vêm estabelecendo novas formas de organização e de negociação dos processos de comunicação, entre os quais está o crescente domínio da tecnocultura, com suas redes de divulgação de informações, tais como internet, sites, correio eletrônico, Facebook e Twitter, além dos canais multimídias e dos telefones celulares. Estendendo-se para esses espaços, o próprio jornal ZH, a cada edição e cobertura do evento, tem ampliado recursos e estratégias para divulgação, promoção, comunicação e produção de eventos desse porte, o que, de certo modo, marca a instantaneidade, a desterritorialização e a mobilidade na divulgação de informações disponibilizadas, por exemplo, nas páginas da Web. Dessa forma, as mudanças percebidas na organização da Feira podem ser configuradas a partir de várias situações, que permitem definir ou sublinhar aspectos particulares em relação aos deslocamentos de função e de significado processados a partir da produção, circulação e representação de situações, sendo valorizados determinados processos, eventos e instituições da sociedade.

3. ALGUMAS PALAVRAS FINAIS Pode-se apontar um determinado momento a partir do qual o evento passou a assumir uma dimensão de espetáculo, o que ocorreu quando a Feira foi associada a outros eventos culturais considerados importantes para a cidade. Essa situação pode ser olhada a partir de Canclini (2007), que nos alerta para os deslocamentos que vêm sendo procedidos na concepção do que é cultural, tendo em vista a relevância de uma gama de “novas” e diferenciadas produções, o que implica considerar os específicos modos pelos quais os significados são negociados. Enquadram-se nessa direção as ações governamentais incentivadas pelo estado e voltadas para os campos culturais, delegando, muitas vezes, o gerenciamento de atividades artísticas, especialmente daquelas que exigem altos investimentos e envolvem público de massa (cinema, música, televisão e eventos que atraem multidões, tal como a Feira do Livro) a instâncias privadas. Estas, por meio das redes de patrocínio, alcançam uma maior circulação de suas imagens e marcas, com-

Além da revitalização dos espaços públicos citados, ganharam destaque, entre outros, a Oficina de Arqueologia, que ocorreu na Praça da Alfândega e na Santa Casa de Misericórdia, e trabalhos correlatos de educação patrimonial, oferecidos ao público escolar – uma mostra de grafismo sobre os tapumes da escavação arqueológica na praça – e ao público em geral. Entre as ações do projeto, incluiu-se também a Oficina de Arqueologia: Capacitação Técnica, realizada em parceria com a Faculdade Porto-Alegrense (FAPA) para capacitação de estudantes para atuarem como auxiliares em trabalhos arqueológicos, com a finalidade de relacionar e preservar “áreas prioritárias do patrimônio histórico e artístico urbano, aumentar a consciência da população acerca do patrimônio, estabelecer critérios de prioridades de conservação e estimular a utilização econômica, cultural e social das áreas em recuperação de âmbito do projeto” (BRASIL, 2010, p. 13). Posteriormente, somou-se às ações uma Oficina de Formação dos Artesãos da Praça da Alfândega, destinada aos artesãos que atuam na Praça Alfândega, para oferecer capacitação sobre noções de associativismo, relações humanas, história de Porto Alegre, informática e conhecimentos específicos sobre tecidos e fibras, bijuterias com resina, madeira e porongo, com o intuito de auxiliar na confecção de objetos artesanais de qualidade e com alguma relação com a história de Porto Alegre.

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binando negócios, publicidade e cultura na promoção de espetáculos culturais cada vez mais midiatizados. Além disso, parece-me ser possível afirmar que a Feira ganhou nos últimos anos uma conotação de espetáculo, sendo importante lembrar, a partir de Kellner (2006), que “a sociedade espetacular espalha seus bens principalmente através de mecanismos culturais de lazer e consumo, serviços e entretenimento, governados pelos ditames da publicidade e de uma cultura mercantilizada” (p. 123). Em relação a esse aspecto, é possível indicar que na Feira se entrelaçam publicidade, espetáculo, exposição e divulgação literária, mas também marcas de instituições e de produtos, em ações de marketing incentivadas pela promoção de patrocinadores, característica que demarca e determina algumas “novas” maneiras de compreender a Feira. Nessa mesma direção, as análises evidenciam que ao longo do tempo, a Feira do Livro configurou-se como um peculiar evento cultural, classificado como um dos mais expressivos e representativos da cultura gaúcha, tanto em termos de extensão, circulação de pessoas e expositores, quanto no que se refere a programações endereçadas a públicos de diferentes faixas etárias. E ainda, permitem registrar atravessamentos relacionados a políticas culturais pautando significados atribuídos à Feira do Livro enquanto evento que opera em uma dimensão construtiva e inventiva da cultura gaúcha. Por fim, é importante registrar, ainda, que a Feira do Livro se configura como um importante espaço pedagógico onde estão em operação práticas culturais contemporâneas vinculadas à leitura e à configuração do que é literário. Nesse sentido, nela são produzidas e veiculadas distintas representações não apenas do que significam o livro, a leitura e as práticas culturais vinculadas a ambos na época atual, mas igualmente de práticas de consumo de diferenciados artefatos colocados em destaque nesse evento.

REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Cultura. Economia e Política Cultural: acesso, emprego e financiamento. Brasília: Ministério da Cultura, 2007. (Coleção Cadernos de Políticas Culturais Volume 3). ______. Ministério da Cultura. Programa Monumenta: Porto Alegre. (Org.) Briane Bicca. – Brasília: Iphan/ Programa Monumenta, 2010. CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções de nosso tempo. Educação & Realidade. Porto Alegre, v.22, nº. 2, jul./dez. 1997. p. 15 – 46. KELLNER, Douglas. Cultura da mídia e triunfo do espetáculo. In: MORAES, Dênis (Org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. SARLO, Beatriz. La máquina cultural. Maestras, traductores y vanguardistas. Buenos Aires: Ariel, 1998. TILL, Rodrigues. Say Marques: o criador da Feira do Livro de Porto Alegre em 1955. Porto Alegre: R.T/Evangraf, 2004. YÚDICE, George. A conveniência da cultura: usos da cultura na era global. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

INVENTARIAÇÃO E LEITURA DE UM PATRIMÔNIO MULTIFACETADO: A ESTATUÁRIA DAS MISSÕES PARAGUAIAS NAS PESQUISAS DO LACUMA (Laboratório de Arqueologia e Cultura Material da Universidade de Passo Fundo) Jacqueline Ahlert* (UPF) As atividades do Laboratório de Cultura Material e Arqueologia contemplam a preservação de acervos de cultura material vinculados a realização de pesquisas acadêmicas, promoção de cursos de formação profissional sobre conservação, formação de acervos, limpeza de material iconográfico, lítico e cerâmico; elaboração de documentação gráfica e fotográfica, técnicas de descrição de artefatos arqueológicos, construção de bancos de dados e catalogação dos acervos. Desenvolve, ainda, técnicas de acondicionamento e armazenamento de artefatos arqueológicos e do âmbito da cultura material, elabora laudos em temas de cultura material e executa projetos de educação patrimonial. As instalações físicas do laboratório localizam-se no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Passo Fundo. Espaço destinado a investigações e salvaguarda do acervo arqueológico para projetos de pesquisas junto ao Centro Nacional de Arqueologia (CNA), ao Departamento de Normas e Licenciamento (DEPAM) e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Entre os projetos desenvolvidos pelo LACUMA, destaca-se neste artigo o inventário da estatuária missioneira platina e colonial sul-rio-grandense, cujos referenciais teóricos, problemas de pesquisa, objetivos e paradigmas teóricos são elucidados abaixo. A metodologia adotada implicou na criação de fichas de registros para o trabalho de campo, prevendo registros individuais para cada peça e seus usos, com destaque para sua historicidade e análise estética.

1. UM ACERVO COMPLEXO As obras escultóricas talhadas por indígenas e padres nas doutrinas jesuíticas da Província Paraguaia inserem-se num processo de longa duração, iniciado nas oficinas, em princípios do século XVII, mantido durante os 159 anos de administração da Companhia de Jesus e, por fim, dilatado e ressignificado durante os séculos XIX e XX, com derivações que chegam à contemporaneidade. Os usos e sentidos conferidos às imagens são complexos. Na ambiência missional, estátuas de santos presentificavam o sagrado em capelas, igrejas e nos ambientes domésticos. No transcurso dos anos, foram alvo de roubos, incêndios e destruições causadas por incursões bélicas e de apropriação do espaço simbólico e geográfico das doutrinas. Inúmeros exemplares resistiram, protegidos em casas particulares e acervos de museus brasileiros sul-rio-grandenses, uruguaios, paraguaios e argentinos. Tais imagens são testemunhos da sensibilidade e interpretação dos ameríndios sobre os dogmas e a iconografia católica europeia, e sob a ótica da história cultural e da arte podem iluminar aspectos relevantes do complexo processo de missionalização de nativos pela Companhia de Jesus.

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Doutora em História Ibero-Americana pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora da Universidade de Passo Fundo, coordenadora da especialização em Cultura Material e Arqueologia da Universidade de Passo Fundo; pesquisadora do Programa de Pesquisas Interdisciplinares da Região Platina Oriental e pesquisadora-responsável pelo inventário do acervo de estatuária missioneira do LACUMA - PPGH-UPF. Email: [email protected].

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Uma vez estabelecidos na América do Sul, os ícones – como ocorre desde os primórdios do cristianismo –, foram sendo recriados e transformados segundo projeções que o contexto cultural e social circunscrevia. O Concílio de Trento havia sido importante para sistematizar as estratégias de evangelização, destacando a potencialidade das imagens. Promulgou, em sua última sessão de trabalho, o decreto sobre a veneração às relíquias dos santos e as imagens sagradas. Embora tenha apontando para um novo direcionamento, no sentido de buscar o controle sobre a execução dos novos programas iconográficos, o texto conciliar não impôs de fato nenhum sistema de regras muito preciso para a execução dessas obras. De certa forma, isso garantiu (e protegeu legalmente os jesuítas) a flexibilidade da figuração dos ícones. Tudo indica que os artesãos não sofreram a pressão da representação correta. Entretanto, os julgamentos sobre o prejuízo qualitativo da atividade artesã autônoma, conforme os cânones sacros europeus, foram recorrentes. Deveriam exercer os labores nas oficinas, caso contrário “o fazem de todo mal”, advertia Sepp, em fins do Seiscentos (Cf. SEPP, 1971). Os padres visitavam as oficinas diariamente. A produção de esculturas era significativa, os artesãos esculpiam para as demandas de seu próprio povoado, mas também sobre encomenda. No entanto, havendo material e conhecimento técnico, supõe-se que a maioria das imagens era produzida fora desse espaço vigiado pelos curas. Algumas talhas permitem entrever o modelo barroco de que receberam influência ou inspiração. Outras rompem bruscamente com tal protótipo, libertam-se do cânone e manifestam a sensibilidade indígena, que endurece os panos criando ângulos no lugar das curvas, contidos em seus voos, aproximados da estrutura corporal do personagem e conectados ao tronco de cedro que foi sua base. O resultado é uma estrutura simultaneamente complexa e simétrica, mais atenta aos valores da forma do que ao teor da expressão (ver figuras 1, 2 e 3). Fig. 1: Escultura realizada por artesãos missioneiros. Imagem de N. S. da Conceição, 108 cm x 60 cm. Acervo: Museo de Santa Maria de Fé/PRY.

Fotos: Jacqueline Ahlert

Fig.2:

Escultura realizada por artesãos missioneiros. Imagem de N. S. da Conceição, 42 cm x 14 cm. Acervo: Museo San Bernardino. Montevidéu/URY

Fig. 3: Escultura realizada por artesãos missioneiros. Imagem de Nossa Senhora Conceição, 11,5 cm x 5 cm. Acervo: Família de Aparício da Silva Rillo. São Borja/RS.

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Fora das imponentes paredes das igrejas, as imagens dos santos libertavam-se da imobilidade das grandes proporções e, pequenas e leves, partilhavam o cotidiano indígena. A mentalidade linear europeia, possivelmente, não alcançava o universo cíclico no qual haviam penetrado os ícones católicos. Os cultos às imagens, “veneradas com devoção e invocadas pelos indígenas” (SEPP, [1691] 1943, p.179), tornou-se rito incorporado por meio da mediação realizada pelas concepções anímicas presentes na cosmovisão dos missioneiros. Os santos acompanhavam os índios à roça, participavam das festas, confinavam-se nos isolamentos, ou coabitavam intimamente nos montes e campos. Acreditava-se que protegiam as casas, curavam doenças, auxiliavam partos – “tomar a imagem, e ter um parto tão súbito e feliz, foi um só ato” (MONTOYA, [1639] 1985, p. 215) –, interferiam no cotidiano missioneiro e promoviam a conjugação dos acervos. O sistema anímico deu sentido à didática barroca, às imagens, aos santos como seres dotados de vida e poder. Essas esculturas contêm a expressão do desenvolvimento da autonomia religiosa e estética dos missioneiros, indexando significados de diferentes universos culturais. Carregadas da historicidade do processo de interiorização da fé no cotidiano das Missões, nos aproximam da compreensão de uma nova dinâmica de orientação da experiência religiosa, do contexto como a fé e a devoção passaram da imagem e de seu significado no imaginário dos índios até sua introdução nas residências desses indivíduos, perpetuando uma prática religiosa coletiva e individual. Por onde quer que transitassem, os missioneiros estavam acompanhados das imagens. De tal forma que, em todo período colonial, se caracterizaram como misioneros por serem índios cristianizados e devotos de um adstrito panteão de santidades, da qual se provia “as maletas das chinas em suas viagens e, como os Penates dos romanos, eram expostas no interior dos copés, quando os podiam construir para receberem as manifestações devotas da família” (OLIVEIRA, [1818] 1842, p. 335), nos mais variados confins platinos. No período jesuítico, os povos localizados na Banda Oriental do rio Uruguai – conhecidos posteriormente como “Sete Povos das Missões” – contavam com uma cifra próxima a trinta mil habitantes, quando as primeiras incursões bélicas, ocasionadas pelo Tratado de Madri, insinuaram-se na região. Com o Tratado e a consequente Guerra Guaranítica (1753-1756), inúmeros índios missioneiros execrados pela brutalidade e barbárie espanhola iniciaram uma grande migração, acompanhando o exército português. A maioria, no entanto, permaneceu nas reduções, mesmo após o fim da fase reducional administrada pelos jesuítas, com a expulsão da ordem, quando a tutela foi conferida aos dominicanos, franciscanos e mercedários. A desestruturação resultou em movimentos migratórios de grupos de missioneiros, sobretudo nos períodos de guerra, uma vez que muitas famílias acompanhavam os índios arregimentados pelos exércitos hispano-platino e luso-brasileiro. Por óbvio, o trabalho nas oficinas também enfraqueceu, atingindo diretamente a produção das esculturas de maior vulto. Junto a esse déficit, devem-se somar os constantes ataques e roubos a que estas imagens estiveram submetidas a partir da retirada dos loyolistas e, sobretudo, durante o século XIX. O mais significativo neste processo para o estudo da imaginária é a dilatação do espaço de movimentação dos indígenas missioneiros nos vários segmentos da sociedade colonial, seja como empregados em tarefas rurais ou urbanas, seja pela via da mestiçagem, principalmente pelo casamento e concubinato das índias guaranis. Esse, sem dúvida, foi um dos modos através dos quais a estatuária espalhou-se (num primeiro momento) pelo atual estado do Rio Grande do Sul. Como observou o viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, em 1821, a alma da experiência missioneira caracterizou-se pelo altíssimo conteúdo sacro, na religiosidade que impregnava todas as condutas e atividades. Esse costume, ambiência ou mentalité (Cf. THOMPSON, 1998, p.14), rema-

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nescia na vivência das famílias espalhadas em rancherios nas imediações das antigas reduções, ou no próprio pueblo, nos acampamentos militares, nas chácaras e estâncias. Encontra-se ainda grande número de guaranis que sabem e ensinam a seus filhos o catecismo, em língua vulgar, e as orações que os padres da Companhia de Jesus tinham composto (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 362).

Juntamente aos resquícios de práticas religiosas, havia se conservado o culto e devoção às imagens. Restos de esculturas, “encontram-se em todas as casas e foram tirados das igrejas destruídas da margem direita do Uruguai e das capelas que tiveram a mesma sorte nas aldeias portuguesas” (SAINT-HILAIRE, 2002, p. 362-3). A parte da história composta por fontes escritas, primárias e secundárias, dos censos, registros de batismo, das narrativas realizadas por viajantes, dos relatórios redigidos por militares e administradores, e mesmo, a parte do que dizem as próprias imagens – como cultura material emanada da vivência – e a historicidade dinâmica em que estiveram inseridas, as representações escultóricas missioneiras têm outras histórias. As leituras de sentido que receberam as imagens ao longo de 400 anos (desde 1609), fecham um ciclo com a atribuição de valor simbólico que carregam na contemporaneidade. A remanescência das imagens está envolvida por histórias de herança familiar – dada especialmente por casamentos entre as índias missioneiras e os povoadores, posto que, muitas imagens acompanharam as mulheres –, como retribuição a favores prestados, presentes singelos de indivíduos que tinham as estátuas como bens simbólicos; como ethos identificatório, mantendo a função de culto, entre alguns grupos. Parte destes remanescentes converteu-se em coleção particular, outra foi coletada ou doada a museus, outras frações ainda permanecem no seio do culto familiar e algumas se converteram em insígnia da bricolagem religiosa brasileira, a exemplo das imagens missioneiras de Jesus Menino e de Nossa Senhora da Conceição, veneradas no “Centro Espírita de Umbanda Pai Oxalá”, em São Borja, no Rio Grande do Sul. Estas imagens alcançaram o século XXI como bens simbólicos. A relevância dos acervos particulares não reside somente na perpetuação dos cultos domésticos ou nas estátuas em si, mas também na apropriação, identificação e práticas que as acompanham. Valorizam-se suas formas barrocas suntuosas, como expressividade da maestria dos escultores indígenas. Da mesma forma, sua historicidade marcada pela estética indígena, como testemunhos materiais do processo único de “evangelização” de milhares de indígenas por uma ordem religiosa. O olhar dos devotos (próximo ao dos seus executores e contemporâneos da imagem) é distinto do olhar patrimonial e, ainda mais, das projeções do colecionador. Nos primeiros, a noção da historicidade da imagem esta presente, contudo, seu valor de mercado não. Conforme o historiador de arte e imagens Hans Belting, “as imagens sagradas melhor revelam seus significados através de seus usos” (1997, p. 397). O problema introduzido por ele, sobre o lugar da imagem na história do Ocidente, indica a complexidade dos sentidos das imagens missioneiras, desde os seus “valores de forma” até os seus “valores de conteúdo”. Problematiza este enfoque, o processo das imagens não haverem sido talhadas para comporem o rol de objetos artísticos da história da arte da América Meridional, integrando livros de arte, catálogos de museus, ou mesmo, sendo objeto de pesquisa acadêmica. Compreendidas sob a ótica de sua significação religiosa intrínseca, elas não apenas representavam um ser espiritual, mas eram tratadas como tal, sendo veneradas, invocadas, carregadas em andores nas procissões. No entanto, considerar que objetos de culto pouco têm a ver com a criação artística pode e deve ser questionado. Tratando da estatuária procedente das doutrinas, pela imanência cultural guarani, é certo que seus artesãos não possuíam a intenção de compor um novo estilo artístico. Nem mesmo concebiam as imagens como arte ou expressão individual e original de uma

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concepção de mundo exteriorizada na talha da madeira. No entanto, é inegável que exploraram certa liberdade criativa na manufatura de objetos de uso pessoal e familiar. Ainda assim, a transformação da iconografia tradicional católica não se deu por ânsias artístico-expressivas, no sentido moderno do termo. O mais correto seria considerá-la inserida em um fenômeno de vontade de pertencimento. Os guaranis aspiravam por santidades coerentes com a sua cosmovisão, com a sua dinâmica, na qual a veracidade e a beleza da natureza repousavam naquilo que se pode apreender. Mantendo a função de imaginatio, as imagens “mediadoras entre os homens e o divino” tiveram na alteração da estética um dos elementos de sagração da interatividade entre o ícone e quem o vê, “ou que, mais exatamente, é visto por ele” (SCHIMITT, 2007, p. 45). A intenção principal na alteração do ponto de vista é abranger as imagens como objetos universais de indagação, com recursos de investigação próprios, que vão além das qualidades estéticas e formais.

2. OS PROBLEMAS DE PESQUISA Complexificam a interpretação destas imagens a longa duração histórica em que estiveram inseridas, os múltiplos receptores que a imagem teve até transformar-se em peça museológica. Estes destinatários, impensáveis para o artesão, ao longo da trajetória da estátua, modificaram-na, com repinturas, mutilações, acréscimo de adornos etc. As diversas perspectivas postas sobre a imagem desenvolveram um significado que pode ser diferente daquelas expectativas intencionadas na sua origem. Existiu o receptor posterior, que interpretou e usou a imagem como quis, e aquele original, implícito, que prefigurou a obra conforme os fins desejados. A imagem constituiu outros referentes, conforme o receptor que a integrou ao seu modo de vida e suas conexões imaginárias. No decorrer da sistematização das esculturas em catálogo, os seguintes problemas de pesquisa são investigados: Na esfera dos usos da estatuária, é certo que funções distintas alteravam a estética das esculturas, mas de que modos a dialética produtor-receptor condicionavam as características da imagem? Nas esferas da remanescência, quando as estátuas constituíam um elo com o passado missional, o que cingia o vínculo imagem-memória? E, posteriormente, como se estabelece a relação imagem-espectador, no âmbito museológico e patrimonial, alienado dos usos que determinaram a configuração da estatuária? Em história da arte, um documento pode ter valor histórico e valor artístico. Mas como se define esse valor? Como se interpretam os nexos entre um valor e outro? E mais, como se combinam, na interpretação histórica de uma obra de arte, a análise de seu ‘estilo’ e a investigação de seu significado, ambos condicionantes do valor artístico e histórico da obra?

3. A RELEVÂNCIA E OS OBJETIVOS DA PESQUISA A digitalização do acervo visa sistematizar as informações referentes a técnicas e procedimentos de fatura das esculturas, proveniências das peças, estado de conservação, intervenções, entre outros. Inventariando-o através de reprodução fotográfica, seu conteúdo pode ser disponibilizado aos pesquisadores em formatos de imagens e textos, contribuindo para a historiografia e para as demandas sociais. Neste sentido, os objetivos gerais concentram-se em construir uma base de dados para pesquisa da arte colonial da América Platina; ampliar a significação e atribuir sentido para arte missioneira como componente da História da Arte do Rio Grande do Sul, para além das convencionais e limitadas denominações de “barroco crioulo”, “barroco jesuítico – guarani” ou “barroco missioneiro”,

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potencializando, deste modo, seu valor histórico e artístico, como forma de garantir a permanência e a integridade deste patrimônio. De maneira específica objetiva-se explorar os limites e possibilidades das metodologias de leitura iconográfica; complexificar a concepção ingênua e simplista de alguns estudos que consideram as representações como reflexo da sociedade que as produziu, onde se reforça a ideia de que os objetos culturais funcionam como “espelho do tempo”, refletindo a sociedade e o pensamento dos homens que as criaram. Dos estudos abrigados no Laboratório de Cultura Material e Arqueologia decorre a formulação conceitual da formação histórica e artística de um estilo de arte missioneiro. Como estilo, somente pode ser considerado a partir da interferência indígena. Nisso está a sua importância e significado como patrimônio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Retornando ao espaço missioneiro dos séculos XVIII e XIX, alguns viajantes e administradores referem-se aos trabalhos artesanais muito superficialmente. São mais comuns as observações sobre as estátuas. Nelas, já ao longo do século XIX, fica visível que remanesceram algumas grandes e suntuosas imagens, com as quais muitos se surpreendem. Fora estas, outras (a grande maioria), “são uns troços de madeira mau lavrados e pior pintados”, “sem valor artístico”, afirmou-se, “mas com algum valor histórico”. Esta última observação, realizada por Avé-Lallemant, em 1858, foi uma notificação para a qual não se deu a atenção devida. A indiferença com estas imagens que, aparentemente, só portavam valor histórico saiu cara ao patrimônio artístico-cultural da América meridional, em geral, e para o Rio Grande do Sul, em particular. Em 1936, Mário de Andrade foi convidado para articular a criação de uma instituição nacional de proteção do patrimônio. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), criado por decreto presidencial em 30 de novembro de 1937, previa a salvaguarda e o tombamento de bens materiais e imateriais de interesse público. Na ocasião, chamavam a atenção de Mário de Andrade os tipos de discernimentos que se aplicavam à validade, ou não, da cultura material do período colonial. Observou o escritor: “O critério tem que ser outro. Tem que ser histórico, e, em vez de se preocupar muito com beleza, há de reverenciar e defender especialmente as capelinhas toscas, as velhices dum tempo de luta e os restos de luxo esburacado que o acaso se esqueceu de destruir” (apud ARAUJO, 1999, p. 7). Os intelectuais envolvidos nesta discussão intentavam rebater as leituras preconceituosas sobre o acervo de arte colonial paulista. Algo similar ao que ainda buscamos no Sul do país. Lúcio Costa manifestou sua cumplicidade com Mário de Andrade nesta causa: “não são [as peças de arte sacra] simples cópias inábeis, mas, muito pelo contrário, legítimas ‘recriações’, podendo ser consideradas [...] autênticas expressões da arte brasileira dessa época” (apud ARAUJO,1999, p. 7). A coerência destas observações repetiu-se quando da presença do urbanista no Rio Grande do Sul para a projeção do Museu das Missões, em 1937. No entanto, foi somente no final da década de 1980 que houve uma preocupação em catalogar os remanescentes da cultura material missioneira. O atraso em dar início a um processo de preservação e valorização das imagens custou à história da arte sacra do Rio Grande do Sul e do Brasil a perda de grande parte deste acervo de valor histórico e artístico inestimável. Desde esta iniciativa, mais de trinta anos já se passaram. Oportunamente, a advertência realizada pela equipe do inventário sobreveio como uma sentença:

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Inversamente proporcional à representatividade e ao caráter testemunhal desse acervo é o seu estado de conservação. A equipe técnica do projeto pode comprovar sua rápida deterioração. Se não forem tomadas medidas enérgicas e adotada uma política de preservação de bens móveis, assim como seu tombamento pelos órgãos competentes, este acervo se deteriorará num curto espaço de tempo. Tal questão agrava-se se consideramos o fato da inexistência, no Rio grande do Sul, de um laboratório técnico de restauro equipado para análise e trato específico da madeira, dado que indicamos aos organismos financiadores de pesquisa como extremamente urgente e importante para a conservação de todo o patrimônio artístico do Sul do país (COUTINHO; VIEIRA, 1993, p. 37).

É importante que o esforço realizado seja continuado, para estabelecer parâmetros de conservação das imagens, rastrear sua localização, possíveis vendas, roubos, restaurações etc. Além de incluir as peças registradas por pesquisas acadêmicas, doadas a museus e antes não contabilizadas, a imaginária encontrada em escavações arqueológicas, entre outros. Inúmeros já foram os avanços atingidos no Rio Grande do Sul nas áreas de permanência e interpretação destes bens: pesquisas lato e stricto sensu; criação de cursos de graduação e especialização em conservação e restauro de bens móveis; laboratórios de pesquisa; reforma e reestruturação de museus. É sumamente importante seguir o processo de esquematismo, sintetização ou simplificação que se efetuou pelas vias das escolhas estéticas do artesão através da própria reminiscência dos testemunhos materiais da imaginária missioneira. Contudo, para efetuar-se tal processo é imprescindível a disponibilidade da transdisciplinaridade, que inclui conhecimentos científicos, tecnológicos, históricos e artísticos. Enfim, é indispensável a valoração destas obras enquanto manifestação religiosa popular do século XVIII e XIX no Rio Grande do Sul, não obstante, pela necessidade de atribuição de valor histórico e artístico para o acervo missioneiro, de uma maneira geral, como forma de garantir a permanência e a integridade deste patrimônio.

REFERÊNCIAS ARAUJO, Emanoel. A singularidade de São Paulo. In: LEMOS, Carlos A. C. A imaginária paulista. São Paulo: Edições Pinacoteca, 1999. AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela Província do Rio Grande do Sul (1858). São Paulo: Ed. USP, 1980. BELTING, Hans. Likeness and presence: a history of the image before the era of art. Chicago: University of Chicago Press, 1997. COUTINHO, Maria Inês; VIEIRA, Mabel Leal. Inventário da imaginária missioneira. Canoas: La Salle, 1993. MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista espiritual feita pelos religiosos da Companhia de Jesus nas províncias do Paraguay, Paraná, Uruguay e Tape. Porto Alegre: Martins Livreiro, [1639] 1985. OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. Episódio de um diário das campanhas do Sul (1818). Revista Trimensal de História e Geographia ou Jornal do Instituto Histórico Geographico Brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia de D.L. dos Santos, 1842, tomo quarto, publicado entre as p. 331-349. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul, 1820-1821. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Tradução de José Rivair Macedo. Bauru: Edusc, 2007. SEPP, Antônio. Viagem às Missões Jesuíticas e trabalhos apostólicos. São Paulo: Livraria Martins, [1691] 1943. _______. Relación de viajes a las misiones jesuíticas; Continuación de las labores apostólicas; Jardim de Flores Paraguaio. (Edición critica de las obras del padre a cargo de Werner Hoffman). Buenos Aires: EUDEBA, 1971. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

UMA PROPOSIÇÃO ANALÍTICA PARA “HOJE É DIA DE MARIA” Jaqueline Souza Sampaio de Oliveira* (UFPR)

O roteiro televisivo Hoje é Dia de Maria foi escrito por Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando de Carvalho e baseado no texto encomendado a Carlos Alberto Soffredini (SP,1939-2001), autor e diretor de teatro e importante pesquisador contemporâneo da cultura popular brasileira. A minissérie é composta por oito capítulos e foi ao ar de terça-feira a sexta-feira no horário das 22:30h, entre os dias 11 e 21 de janeiro de 2005, sendo umas das produções que deram início às comemorações dos 40 anos da Rede Globo de Televisão. Neste ano (2015) foi reexibida como telefilme em comemoração ao cinquentenário da mesma emissora em 2 de junho de 2015 (primeira parte) e 4 de junho de 2015 (segunda parte), fazendo parte do especial ¨Luz, Câmera, 50 anos“. Houve continuidade da minissérie em outubro de 2005, com mais 4 capítulos, intitulada ¨Hoje é dia de Maria – Segunda Jornada¨, possibilitada pela importante audiência que se manteve nos 34 pontos do Ibope e garantiu importantes prêmios nacionais e internacionais, segundo o site Memória Globo1: (...) Input International Board TAIPEI 2005; foi finalista no International Emmy Awards 2005, nas categorias Minissérie para TV e Melhor Atriz (Carolina Oliveira); Hors Concours BANFF Canadá 2006; nomeação e exibição no Prix Jeunesse International Alemanha 2006; Grande Prêmio da Crítica APCA 2005; Prêmio Qualidade Brasil 2005, nas categorias Melhor Projeto Especial de Teledramaturgia, Melhor Autor de Teledramaturgia (Carlos Alberto Soffredini com adaptação de Luís Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho), Melhor Atriz Revelação de Teledramaturgia (Carolina Oliveira) e Melhor Diretor de Teledramaturgia (Luiz Fernando Carvalho); Prêmio Mídia 2005 (Midiativa); Prêmio ABC 2006, na categoria Melhor Fotografia Programa de TV (José Tadeu Ribeiro); Prêmio Contigo! 2006, nas categorias Diretor (Luiz Fernando Carvalho) e Atriz Infantil (Carolina Oliveira).

A narrativa apresenta o percurso da menina Maria. O pai dela tornar-se violento e alcoólatra após a morte da mulher, tendo o quadro agravado devido a partida dos filhos, retirantes que nunca mais voltarão, restando-lhe apenas sua filha caçula, Maria. Ela insiste para que o pai se case com uma viúva vizinha, seduzida pelas promessas de cuidado e carinho. Após o casamento, a mulher passa a dar-lhe os serviços mais pesados, tanto da casa quanto do sítio, e a trata com a crueldade das madrastas dos contos de fadas. A menina morre devido a um exaustivo castigo e a madrasta a enterra. Depois mente ao pai que Maria partiu sem despedir-se, o que causa mais sofrimento e demência a ele. Quando o pai finalmente encontra o seu túmulo, suas lágrimas ressucitam a menina. Após este episódio, Maria foge em busca das ¨franjas do mar“. Sua jornada a levará por diversos contos populares brasileiros, pautados no repertório de Câmara Cascudo, Silvio Romero e Mario de Andrade. Os personagens que encontra pelo caminho pertencem ao folclore nacional, sendo que a imagem cristã de Nossa Senhora da Conceição a ampara e conforta. A menina enfrenta diversos percalços, desempenhando ela também o papel de defensora dos fracos, como quando desafia o demônio Asmodeu, que queria lhe comprar a sombra do amigo Ze Cangaia. Irado, o diabo rouba-lhe a infância, transformando-a em mulher de um dia para outro. Nesta fase Maria conhece seu grande amor: amaldiçoado, ele é seu protetor pássaro encantado durante o dia e homem amado quando se encontram, durante a noite. Para esta análise, apresenta-se um recorte da 1a. Jornada, tendo como escopo o primeiro episódio, intitulado O sol levante. Pretende-se utilizar a obra escrita e a fílmica do episódio mediate Especialista em Literatura Brasileira e História Nacional, Universidade Federal do Paraná. E-mail: [email protected] http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/hoje-e-dia-de-maria/curiosidades.htm

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alguns aspectos da Teoria da Adaptação estudada por Stam e Linda Hutcheon. Busca-se, neste sentido, entender que as adaptações precisam ser reinterpretadas, não mais pelo prisma da fidelidade ao hipotexto, mas ao diálogo proposto entre o texto original e a adaptação, suas divergências, convergências e pelas escolhas marcadamente contextuais. No roteiro, Abreu e Carvalho (2005, p. 8) apresentam um texto marcadamente literário, repleto de imagens poéticas: O sol se levanta, trazendo uma luz nova. A estrela d’alva ainda brilha no céu da manhã. E uma lua se desmancha. MARIA, vestida da cor do campo, com todas as suas flores, se deleita em seu balanço, que voa, amarrado ao tronco de uma árvore.

O processo de adaptação do texto literário para o cinematográfico é um processo de recriação, pois reelabora os signos, sendo que “todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos” (KRISTEVA, 1974 p. 64). Desta forma, a minissérie Hoje é Dia De Maria, ao unir os relatos culturais da produção literária, cinematográfica e televisiva, traz a conhecimento público diferentes memórias, evidenciando construções de identidade e possibilitando novos movimentos de leitura, através do veículo midiático. O diretor conseguiu traduzir para a televisão, através dos recursos do audiovisual, um diálogo entre a Literatura, o Cinema e a História. Os processos de adaptação utilizados pelo autor/ diretor foram fundamentais para a integração do leque cultural nacional. Carvalho incorporou, na adaptação do roteiro para a minissérie, referências e elementos de várias áreas da Arte, de forma a proporcionar o diálogo entre obra original e a adaptação. Através do veículo televisivo ˗ e outras dimensões mercadológicas geradas pela obra ˗ os autores contam e mostram diferentes aspectos do folclore brasileiro, muitas vezes fragmentados na regionalização dos costumes locais. Há um evidente resgate visual e sonoro das manifestações populares da cultura branca, negra e indígena que extrapola o roteiro narrativo marcado pelo enredo literário. A minissérie concilia a expressão artística erudita e popular brasileira e integra a cultura miscigenada das raças que nos constituem. Entremeando a narrativa, o telespectador pode ver e ouvir, por exemplo, a Folia de Reis, ao ritual dos Índios Xavantes, o batuque e a dança da Umbigada Paulista, e a rabeca de Mestre Salustiano e seu filho Pedro. A produção musical possui arranjos contemporâneos para Villa-Lobos, Guerra Peixe, Francisco Mignone, Alceu Boquino, entre outros. Nas músicas incidentais, a Orquestra de Câmara Rio Strings apresentou instrumentos de cordas, de sopro, percussão e harpa, além de instrumentos típicos do folclore brasileiro, como violão, viola caipira e rabeca. Há de se indicar também cuidado com a cenografia e figurino, de forma a caracterizar o mais próximo possível a realidade das cores, materiais, gentes e artes brasileira. A feitura quase artesanal realizada pelas equipes de arte, figurino e iluminação é primorosa, fazendo reaproveitamento e utilização de técnicas e materiais não tradicionais.

1.1. NO SOL LEVANTE O episódio escopo deste artigo possui 48 minutos e faz parte da Primeira Jornada da minissérie, denominada ¨No sol levante“, (ABREU & CARVALHO, p.6-51), conforme roteiro televisivo. Como toda a primeira fase, é ambientado na área rural. O espaço é restrito à casa do sítio do pai de Maria e seus poucos cômodos, sendo o exterior como um quintal: a roça de milho, o capinzal, a estrada e o ribeirão. A passagem do tempo é determinada pela iluminação, que marca manhã, tarde e noite, dividida em 40 cenas. O diretor as intercala, sendo que o telespectador tem a impressão que é um narrador onisciente, que tudo vê e acompanha, sem cortes, continuamente. Paralelamente à trama, durate o casamento da Madrasta com o Pai de Maria, há a apresentação da festa Folia de Reis, tradicional do interior brasileiro Os convidados acompanham a festa junto a um grupo vestido de trajes coloridos e munidos de belos estandartes. O Reisado Flor do Oriente,

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de Duque de Caxias, Baixada Fluminense gravou a cena, tendo inclusive incorporado versos criados com esclusividade pelo Mestre Tião para a trama televisiva.

1.2. A MENINA ENTERRADA VIVA Segundo o diretor Luiz Fernando Carvalho, em entrevista publicada em livro constante do box comercializado com os vídeos da minissérie (2006), a obra “nasceu da alegria que tive ao me deparar pela primeira vez, já adulto, com os contos populares recolhidos da oralidade popular brasileira por Silvio Romero e Câmara Cascudo, entre outros”. No episódio analisado, percebe-se intertextualidade entre os contos populares citados pelo diretor. Silvio Romero (2007, p. 72-73) registrou no estado do Sergipe um conto português intitulado A madrasta. Deste conto há alusão à personagem da madrasta má e a cantiga “Xô, xô, passarinho” (00:33:28), com pequena alteração poética para atender o enredo da minissérie. A presença funesta da mãe postiça também lembra o clássico Cinderela (Grimm e Perrault): Maria sempre está perto da fuligem e do fogo, além de trabalhar sem parar, como escrava. O conto Gata Borralheira é muito popular entre o público contemporâneo, tanto pelos recontos atualizados da obra, como produções cinematográficas recentes da Disney, como Cinderela (USA, 2015). No Brasil existe a versão resgatada da oralidade por Silvio Romero no Estado de Pernambuco e aprresentada em livro de coletânea, intitulada de Maria Borralheira (ROMERO, 2007. P; 67-71). Parte da reedição dos contos folclóricos da oralidade, resgatado por Câmara Cascudo em 1999, o conto ¨A menina enterrada viva“ consta do capítulo “Natureza Denunciante”, em que o ato criminoso é revelado pela natureza idílica (“ramos, pedras, ossos, flores, frutas, aves, animais” (CASCUDO, 2014, p. 22). Percebe-se que o primeiro episódio da minissérie Hoje é dia de Maria realiza transtextualidade, tanto com o conto de Romero, como mais claramente com o de Cascudo. Segundo Genette (Palimpsesto, 1982), o termo se aplica a textos se têm relação manifesta ou secreta e enfatiza, assim como a Teoria da intertextualidade de Kristeva e o “dialogismo” de Bakhtin, a interminável permutação de textualidades. O texto de Cascudo, na parte que Maria é consolada e ganha mel da madrasta é resgatado na narrativa cinematográfica e no roteiro. Em citação, quase que na íntegra, respaldado e adaptado à regionalização do falar caipira e interpretação dos atores. Comparando Cascudo com Abreu & Carvalho, podemos observar: - Case com ela, papai. Ela é muito boa e me dá mel! - Agora ela lhe dá mel, minha filha, amanhã lhe dará fel (...). Cascudo (p. 302)

MARIA (Muito tímida) tava querendo le preguntá por que causo é que o nhor pai num ajusta casamento com aquela viúva dali? (...) (Mais segura) Ah, mó de que ela é boazinha a conta inteira. Puis se inté me deu mel pra cumê! PAI Pui a tarzinha agora te dá mel? Pui ao despois há de ter dar fel... Abreu & Carvalho (p.23 (roteiro) e 00:16:56 (DVD): Outros elementos da narrativa estão presentes no capinzal que nasce no local onde ela está enterrada e na interferência do pássaro que “salva” Maria do descontrole do pai, que, alcolizado, tenta beijá-la, insinuando um incesto. A presença do pássaro protegendo a menina segue todo o percurso

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da minissérie, o que demonstra como o conto de “natureza denunciante” faz parte do imaginário popular brasileiro.

1.3. A ADAPTAÇÃO EM FAVOR DA IDENTIDADE E MEMÓRIA A minissérie baseada na obra de Sofrefini é apontada como um marco da televisão brasileira, no sentido de suas conexões com o cinema pós-moderno de Fellini (PUCCI JR, 2010, p.2). Segundo ele, apesar da TV não ser cinema, “no que concerne à ficção e ao documentário, apresentam proximidade notável em termos de linguagem, mesmo que eventualmente as soluções narrativas sejam diferentes”. Neste artigo, Pucci Jr. atesta que o próprio diretor assumiu que seu desejo era realizar cinema dentro da TV (CARVALHO, 1994, p. 113-114). Os enquadramentos de Hoje é dia de Maria utilizam-se de recursos próprios da cinematografia hollywoodiana: visões amplas, closes nos personagens e quebras espaçotemporais. Para a gravação da minissérie, um domo (ou cúpula) foi construído na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro, RJ). A estrutura possuía 5800m2 e foi montada em solo natural, sem base de concreto, garantindo um visual rural mais realista. O uso de estúdio circular para simular um espaço, além das rupturas narrativas dos padrões aristotélicos, demandam uma mistura que rompe e amplia a adaptação, realizada ao extremo. Neste episódio, em comparação ao texto original, os elementos foram modificados e ampliados para atender tanto a proposta do veículo (televisão), quanto de forma a valorizar e dar a conhecer ao grande público a riqueza da cultura popular brasileira: identidade e memória. Os bastidores (making off) dos ensaios comprovam a variedade de recursos utilizados pelo diretor, mas também demonstram claramente as ações concomitantes e paralelas ao enredo. A minissérie possibilita ao telespectador um leque visual e sonoro de grande impacto. Segundo Certau (1982, p. 52): (...) existe em cada história um processo de significação que visa sempre preencher o sentido da história: o historiador é aquele que reúne menos os fatos do que os significantes. Ele parece contar os fatos, enquanto efetivamente, enuncia sentidos que, aliás, remetem o notado a uma concepção do notável.

A música incidental e a música cantada da primeira jornada intertextualiza diversas cantigas populares, em especial a composições de Heitor Villa-Lobos, A presença da orquestra e do coral, constitui um âmbito maior de abrangência: tanto a música erudita como a folclórica permeiam a narrativa fílmica. O diretor trabalhou com referências e elementos de várias áreas: teatro, circo, cinema, literatura, literatura oral, de cordel, opereta, musical, animação, artes plásticas, dança (Folia de Reis, Cirandeiros), fotografia e tantos outros recursos digitais e tecnológicos do cinema e audiovisual contemporâneos, conciliando expressões artísticas na linguagem televisiva. Segundo Linda Hutcheon (2011), geralmente se presume que a história é o núcleo que é transposto para outras mídias e gêneros. Aqui há experimentalismos que extrapolam a linearidade narrativa do roteiro. Desta forma temos o contar e o mostrar unidos em recriação contínua; Os recortes se integram formando uma colcha de retalhos única, vigorosa. O interagir, proposto principalmente no próprio ato do “como contar”, natural da teledramaturgia, está no foco dado pelo diretor na condução do olhar do telespectador: ele faz planos gerais e vai aproximando a câmera dos rostos e expressões dos atores, permitindo uma emoção compartilhada e simulando presença no espaço dos fatos televisionados. Outra ação do diretor chega ao que Stam (2006) denomina paratextualidade, esta marcadamente mercadológica: há uma sequência na segunda jornada e nos produtos subsequentes ao filão descoberto: o público consumiu a minissérie, comprou seus DVDs, o livro do roteiro televisivo, o CD com 44 músicas da segunda fase, os cartões postais, o livro com fotografias da série.

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Houve repercussão de ibope, sendo que na Academia surgiram diversos trabalhos escritos sobre a minissérie: Antropologia, Letras, História, Cinema, Comunicação, Música, Arte, etc. Todos os personagens tiveram seu destaque, no entanto, convém apresentar a quase supressão da filha da madrasta, Joaninha, que justificaria várias ações da madrasta em detrimento à Maria. No roteiro, apesar de suas poucas falas, ela interage mais com a mãe, mas suas cenas, na edição, foram retiradas. Outra cena que difere do roteiro é a última. No texto fonte, a Madrasta conversa com Joaninha e prevê as dificuldades que Maria passará em sua jornada. No entanto, na minissérie, o diretor opta por colocá-la só, quase do lado de Maria, gritando suas “pragas” diretamente à menina. Esta cena também é dúbia, pois Maria já estava na estrada quando o fato acontece, o que impediria que elas se confrontassem, como dá a entender a cena. Esta alteração é nomeada como singularidade por Machado (2005) e tem a intenção de atingir o público. Segundo o autor, esta intencionalidade é proposital, com vistas a abarcar um certo número de conhecimentos do telespectador, promovendo identificação. Uma ampliação importante também se apresenta na voz off, que não está no roteiro original. Ela dá o tom de “contação de história”: um narrador que apresenta a história de Maria, no tom áspero e idoso da atriz Laura Cardoso. A voz também marca o clímax e passagem de tempo após a morte de Maria, de forma e tirar o telespectador do sonho proposto pelo diretor. Também é a técnica utilizada no término do primeiro episódio, de forma a garantir a continuidade e o retorno do telespectador: Longe, num lugar ainda sem nome, havia uma pobre família desfeita. E era uma vez uma menina chamada Maria (...) (00:01:00) Antonce, o tempo foi passando(...) (off) (00:36:25) Antonce, de maneiras que foi anssim por esta forma, Maria ganhou estrada (...) Mai fecha a janela dos óio, dorme e sonha. Que a noite lhe seja risonha e amanhã a gente continua, quando caí o sol arribá a noite e suspendê a lua. Inté. (00:47:54). O impacto do pós-modernismo nas adaptações, discutido por Stam (2006, p. 27), é retratado na minissérie de forma única, no sentido em que todos os sinônimos utilizados pelo crítico se integram em um grande caldeirão cultural nacional: (...) adaptação enquanto leitura, reescrita, crítica, tradução, transmutação, metamorfose, recriação, transvocalização, ressuscitação, transfiguração, efetivação, transmodalização, significação, performance, dialogização, canibalização, reimaginação, encarnação ou ressurreição.

Como na ressurreição de Maria, resgatada pelo pai (outra referência aos contos de fadas – cantiga popular “O primeiro foi seu pai” e as princesas salvas por príncipes dos clássicos infantis), o suporte da minissérie cumpre o que promete Cannito (2010): realiza o papel de janela, por meio dela se observa o mundo. E um mundo pós-moderno, híbrido. Segundo Hutcheon (2011), o modo como interagimos com as histórias contadas ou mostradas é imersivo em graus e maneiras diferentes: imaginação, percepção auditiva e visual e modo participativo e interativo. Cada modo e cada mídia tem sua própria especificidade, assim como quem comunica tem uma intencionalidade. O público percebe o que se apresenta e também pode variar na intensidade e entendimento, pois o como se frui dos enunciados é particular e individual. Eternizado através do audiovisual, diversas manifestações pertencentes ao nosso patrimônio cultural imaterial expõem as expressões de vida e tradições de comunidades e grupos. Ao ser transmitida e feita para a televisão, as janelas se duplicam de forma ininterrupta, como espelhos projetados infinitamente. O telespectador pode ter acesso a diferentes manifestações artísticas e culturais que representam

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identidades regionais ou nacionais. Isto permite levar ao conhecimento de inúmeras pessoas a diversidade brasileira e até mesmo reforçar determinadas características culturais ao provocar reconhecimento e identificação. Entende-se que na reconstituição de memória das manifestações culturais expostas há uma artificialidade demandada pelo suporte cinematográfico e literário. No entanto, há nesta adaptação uma importante influência na integração e na construção da memória social e da identidade cultural brasileira, que independe o fator econômico de lucratividade previsto ao suporte televisivo ou as divergências da adaptação do texto verbal. É inegável que a possibilidade de acesso a tantas artes do vasto território brasileiro, através do meio digital e de alinhavos do folclore e cultura nacional presentes em Hoje é Dia de Maria, é uma forma íntegra de preservar a memória para as gerações futuras. Na contemporaneidade, nada é absoluto, permanente. Observar o mundo ficcional, enquanto representação da realidade e do contexto que nos circundeia, faz de nós leitores/telespectadores, seres em transição, circunscritos em nossa própria história, mas participantes do processo de atualização e movimento de nossa memória e identidade.

REFERÊNCIAS ABREU, Luís Alberto de. CARVALHO, Luiz Fernando. Hoje é dia de Maria. São Paulo: Globo, 2005. CANNITO, Newton. A televisão na era digital: interatividade, convergência e novos modelos de negócio. São Paulo: Summus, 2010. CARVALHO, Luiz Fernando. Depoimento. In: ALMEIDA, J. M. A.; ARAÚJO, M. E. As perspectivas Televisão Brasileira Ao Vivo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. CARVALHO. Luiz Fernando et al. Hoje é dia de Maria. Coletânea de Fotos da 1ª e 2ª jornadas. São Paulo: Globo, 2006. CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 13a. Edição. São Paulo: Global, 2004. CERTEAU, Michel de. As produções do lugar. In: A escrita da história. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. CINDERELLA. Direção de Kenneth Branagh. USA: Walt Disney Pictures, 2015. min., animação, dublado, color. HOJE é dia de Maria. Direção: Luís Fernando Carvalho, Produção: Rede Globo. Rio de Janeiro: Globo Marcas e Som Livre, 2006, 3 DVDs. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cehcinel. Florianópolis: ed. Da UFSC, 2011. p. 21-59 KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. 3a. Edição. São Paulo: Perspectiva, 2012. MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo : SENAC, 2005. MEMÓRIA GLOBO. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/ hoje-e-dia-de-maria. Acesso em 28 maio 2015. PUCCI, Jr., Renato Luiz. A televisão brasileira em nova etapa? Hoje é Dia de Maria e o cinema pós-moderno. Grupo de Trabalho “Fotografia, Cinema e Vídeo”, do XIX Encontro da Compós. PUC-RJ, Rio de Janeiro, RJ, em junho de 2010. ROMERO, Silvio. Contos Populares do Brasil. Raízes. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha do Desterro Florianópolis, n. 51. p. 19-53. Jul/dez. 2006.

ATUALIZAÇÃO DA FÁBULA EM “A REVOLUÇÃO DOS BICHOS” E “A PRIMAVERA DA PONTUAÇÃO” Jian Marcel Zimmermann* (IFSUL/UFRGS)

A Literatura apresenta uma situação paradoxal, ao mesmo tempo em que pode ser concebida como instrumento de intervenção social, ela também é socialmente definida. Esta assertiva vale também quando tratamos de gêneros. Reis assim define esta relação: Deduz-se que os gêneros literários podem definir-se como categorias substantivas, representando entidades historicamente localizadas, quase sempre dotadas de características formais variavelmente impositivas e relacionáveis com essa sua dimensão histórica. (REIS, 2003, p. 246).

Marcuschi (2002) chama a atenção para a maleabilidade dos gêneros1, que atendem a determinadas demandas sociais e são permeadas por evoluções, tanto do ponto de vista da modificação natural da produção textual, como relativas a surgimentos tecnológicos. Os romances que compõem o corpus de nosso estudo utilizam-se dessa maleabilidade, produzindo novas modalidades do que tradicionalmente define-se como Fábula (muito embora, pela riqueza dos textos, estas definições possam ser questionadas/estendidas). Originalmente a fábula era transmitida de maneira oral, o que determinava certas características estruturais. Exemplo disso é que durante muito tempo a fábula tinha como característica primordial ter um enredo curto, ágil e bastante simbólico. No entanto, com a passagem para o código escrito, esta exigência deixou de ser relevante, tanto que hoje encontramos inúmeros romances e novelas com caráter fabular, além de também poder aparecer como parte integrante de narrativas maiores. Outra característica constante nas fábulas é a personificação, geralmente de animais, mas que posteriormente estendeu-se a outros objetos, geralmente aludindo a situações vividas por humanos. A atribuição de características humanas a outros seres normalmente ilustra algum vício ou alguma virtude, via de regra, de forma satírica e/ou pedagógica. Fiorin, em uma análise mais detida, aponta outra implicação à fábula: Em geral, a fábula mostra um descompasso entre o discurso e as ações. Cada fábula revela um mecanismo discursivo de que se valem as pessoas para mascarar seus propósitos, para encobrir suas intenções, para alterar o significado de seus atos. Nesse sentido, a fábula é uma história sobre as estratégias discursivas do ser humano. (FIORIN, 2003, p. 398)

A fábula tradicionalmente tinha a função de transmitir valores, intimamente relacionados com a sabedoria popular. A moralidade transmitida por este gênero textual tinha por objetivo sugerir soluções no campo da convivência social. No entanto, com o passar do tempo, a despeito de produções tradicionais, a fábula foi atenuando seu caráter pedagógico. As fábulas mais recentes geralmente buscam o humor, e, ao invés de pregar ensinamentos, elas objetivam despertar reflexões, mantendo o caráter estrutural lúdico próximo das produções tradicionais. Outra modificação relevante na estrutura das fábulas concerne à questão espaço-temporal. Tradicionalmente, nas fábulas, a representação do tempo e do espaço evitava a particularização. Internamente, esses elementos funcionais estavam submetidos à ação representada. Com o passar do Professor de Literatura do Instituto Federal Sul Rio-Grandense (IFSUL). Mestre em História da Literatura, Fundação Universidade de Rio Grande (FURG). Doutor em Literatura Comparada, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: jianmarcel@ pelotas.ifsul.edu.br 1 Muito embora não trate especificamente de gêneros literários, as definições do autor são aqui relevantes. *

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tempo, isto se modificou, pois ela hoje em dia é produzida, em muitos casos, para questionar certos elementos ou acontecimentos específicos, sendo assim datada e localizada. A Teoria Literária demorou a imputar relevância à figura do leitor, mas nas fábulas ela sempre foi imprescindível. Por seu caráter didático, a preocupação com a recepção sempre se fez presente na configuração das fábulas. Neste sentido, também percebemos uma mudança de foco. As fábulas eram produzidas visando o público infanto- juvenil, no entanto, este panorama se alterou, muitas fábulas hoje em dia são direcionadas também ao público adulto, tanto em termos temáticos quanto na profundidade das reflexões desenvolvidas.

1. “A REVOLUÇÃO DOS BICHOS” Como já pontuado anteriormente, a fábula tem como uma de suas características básicas a transmissão de valores universais, utilizando-se para isso de enredos que não são localizáveis no tempo e no espaço. No entanto, algumas narrativas mais recentes, apesar de manterem vários elementos relativos às fábulas tradicionais, adicionam o componente histórico em seus enredos, ou seja, tornando possível determinar o tempo e o espaço ficcionalizados, corrompendo (atualizando, renovando...) assim uma das premissas das fábulas. Exemplo disso é o romance A Revolução dos Bichos, 1945, do escritor inglês George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair). No enredo desta narrativa há uma figuração do estado em que se encontrava a União Soviética após a revolução de 1917, usando para isso o artifício da personificação de animais que se rebelaram contra os humanos e passaram a administrar a granja na qual trabalhavam. Este romance traz à obra de arte o contexto do Stalinismo, que foi um regime político implantado, à força, na antiga URSS, pelo ditador Josef Stalin. Tratava-se de uma degeneração do Marxismo2, transformando-se em uma ditadura burocrática e totalitária, responsável pela morte de aproximadamente 20 milhões de soviéticos. Com a morte de Lênin (principal nome da revolução que derrubou o regime monárquico), a disputa pelo poder estabeleceu-se entre Leon Trotsky e Josef Stalin, cujas ideias políticas, apesar de socialistas na concepção de ambos, eram na maioria dos pontos antagônicas. Stalin acabou vencendo a disputa com Trotsky pelo poder, afastando-o do governo e do Partido Comunista, além de exilá-lo da URSS, e posteriormente assassiná-lo no México (muito embora não comprovado, seu assassinato possivelmente foi a mando de Stalin). Com poder absoluto, Stalin passou a perseguir todos os que se opunham a ele. Entre 1936 e 1938, realizou diversos ataques contra seus adversários, os quais foram presos, julgados e executados. O Stalinismo, que passou a dominar a URSS, tinha como principal característica ser uma ditadura com regime unipartidário, com centralização dos processos de tomada de decisão, forte repressão a dissidentes políticos e ideológicos, culto à personalidade do líder do partido e do estado, grande presença de propaganda estatal, incentivo ao patriotismo como forma de organização dos trabalhadores, censura aos meios de comunicação e expressão, como a imprensa, rádio, jornais, literatura etc.; coletivização obrigatória dos meios de produção agrícola e industrial e militarização da sociedade e dos quadros do partido. A característica fabular mais saliente no romance A Revolução dos Bichos é o fato dos animais de uma fazenda, Granja do Solar, serem antropomorfizados. Muito embora, em muitos casos, de capacidade cognitiva reduzida, todos falavam e raciocinavam. No entanto, diferentemente das fábulas tradicionais, estes animais não possuem papel generalizante, eles referem-se a personagens históricos da URSS pós- revolução de 1917. Como exemplo, podemos citar o porco Napoleão, cuja Teoria Econômica/Filosófica/Política de crítica ao capitalismo elaborada por Marx e Engels.

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postura, características e atitudes, correspondem ao líder soviético Josef Stalin. Outro porco, Bola de Neve, refere-se a Leon Trotsky, o porco Major representa Lenin, etc. Ademais, outras categorias também aparecem de forma simbólica no romance, como o Stalinismo que aparece sob a alcunha de Animalismo, além dos humanos no enredo representarem os capitalistas do mundo factual. O caráter didático das fábulas, na obra em questão também aparece, mas de forma mais sutil, e referindo-se a episódios da história soviética. Exemplo disso é o fato da Granja dos Bichos não ser auto-sustentável, assim como a União Soviética não o era, implicitamente sugerindo ao leitor que, por mais organizado e independente que o ser humano seja, ele necessita estabelecer relações com os outros para que possa sobreviver de forma menos penosa: Mesmo assim, à medida que o verão passava, alguma escassez imprevista começou a se fazer sentir. Faltaram óleo de parafina, pregos, corda, biscoito para os cachorros e ferraduras para os cavalos, coisas que não podiam ser fabricadas na granja. Mais tarde, faltaram também sementes e adubo artificial, além de vários tipos de ferramentas, e finalmente a maquinaria para o moinho de vento. Como obter tudo isso, ninguém conseguia imaginar. (ORWELL, 2007, p. 54)

Outrossim, A Revolução dos Bichos encerra uma visão do narrador sobre o que ocorreu na União Soviética. Inferimos que a ditadura tinha como uma das bases de sustentação a ignorância do povo. Além disso, a desonestidade dos governantes é apresentada em diversos episódios, como no fato de eles moldarem as leis de acordo com a conveniência, de maneira que pudessem desfrutar, de forma exclusiva, das riquezas produzidas pela granja. Como se percebe no seguinte trecho: Nenhum animal matará outro animal. Embora ninguém o mencionasse ao alcance dos ouvidos dos porcos ou dos cachorros, parecia-lhes que a matança ocorrida não se encaixava muito bem nisso. Quitéria pediu a Benjamin que lesse o Sexto Mandamento, e quando Benjamin, como sempre, respondeu que se recusava a tomar parte em tais assuntos, ela procurou Maricota, que leu para ela o Sexto Mandamento. Dizia: Nenhum animal matará outro animal, sem motivo... (ORWELL, 2007, p. 75)

O texto também apresenta algumas verdades universais, como costuma ocorrer nas fábulas. O exemplo mais tocante neste sentido refere-se à morte de Sansão. Trata-se de um cavalo, o trabalhador mais dedicado da granja, cujas palavras de ordem eram Napoleão tem sempre razão e Trabalharei ainda mais. Ele trabalhava em prol da causa comum tendo que, em muitos casos, negligenciar a própria saúde. No entanto, quando estava doente e em idade de se aposentar, foi levado da granja sob o pretexto de ir ao veterinário, mas alguns animais conseguiram ler, na carroça que o levara, a inscrição matadouro de cavalos. A revolta dos animais, posteriormente contida pelas palavras inebriantes do porco Garganta, demonstra toda crueldade e ingratidão de nosso mundo, o que nos instiga a pensar que devemos ter mais atenção também às nossas questões individuais, pois os outros nem sempre terão olhos generosos para com os demais. O humor é uma característica saliente nos textos fabulares contemporâneos, entretanto, aqui ele aparece de forma muito sutil. A presença que se faz mais saliente neste sentido é a ironia introjetada pelo narrador, principalmente quando dá voz aos personagens. Na maioria das vezes, os personagens não têm capacidade de julgar com lucidez a própria situação. Exemplo disso é que constantemente afirmavam que agora, pós-revolução, eram livres, e antes, escravos. Na verdade a situação em que viviam era muito similar à anterior e, em muitos aspectos, mais exploratória. A falta de entendimento justifica-se pela falácia semeada pelos porcos, que governavam a granja e levavam uma vida de luxo, e em seus discursos sempre afirmavam a melhoria da qualidade de vida dos animais da granja, quase sempre com dados forjados para que assim o parecesse. Como já dito anteriormente, a grande inovação formal deste texto é a introdução da História em um texto fabular. Um recurso utilizado no texto a fim de introduzir fatos históricos é a metaforização. O Famoso discurso de Lenin instigando à revolução, por exemplo, transforma-se em um dis-

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curso do porco Major, proferido em uma reunião dos bichos da granja, o qual, a exemplo de Lenin, incita os animais a se organizarem e a se rebelarem contra o sistema imposto, visando um futuro de igualdade e prosperidade a todos: Esta é a mensagem que vos trago, camaradas: rebelião! Não sei dizer quando será esta revolução, pode ser daqui a uma semana ou daqui a um século, mas uma coisa eu sei, tão certo quanto vejo esta palha sob meus pés: mais cedo ou mais tarde, justiça será feita. Fixai isto, camaradas, para o resto de vossas curtas vidas! E, sobretudo, transmiti esta minha mensagem aos que virão depois de vós, para que as futuras gerações continuem na luta até a vitória. (ORWELL, 2007, p. 14)

Ademais, são inúmeros os fatos históricos presentes na narrativa sob a égide da metáfora, como o exílio de Trotsky (Bola de Neve), o massacre dos “traidores”, o comércio com os recentes inimigos (humanos/ capitalistas), etc. Todavia, o que é mais relevante (revoltante) na questão histórica, é o apagamento da história a fim de ludibriar e conformar a população com o estado atual do país (granja): Os animais ficaram sabendo também que Bola-de-Neve jamais havia recebido —como pensavam muitos até então —a comenda Herói Animal, Primeira Classe. Era apenas uma lenda, criada algum tempo depois da batalha do estábulo por ele próprio. Muito ao contrário, em vez de condecorado, ele fora repreendido por demonstrar covardia durante a batalha. Novamente alguns bichos ouviram isto com perplexidade, mas garganta conseguiu convencê-los de que havia um lapso em suas memórias. (ORWELL, 2007, p. 80)

Os governantes tentavam a todo momento transformar em negativa a imagem de Bola- de Neve, agora exilado, pois ele poderia representar uma oposição, uma esperança de mudança. Esta estratégia torna-se ainda mais grave ao atentarmos para o fato de tratar-se de uma modificação artificial de uma história vivida pelos animais, que são ardilosamente convencidos de que estavam todos iludidos por suas próprias memórias.

2. “A PRIMAVERA DA PONTUAÇÃO” O romance A Primavera da Pontuação, publicado em 2014, pelo autor gaúcho Vitor Ramil, também opera uma espécie de atualização da fábula. O enredo trata de elementos linguísticos personificados (pontos, vírgulas, agentes da passiva, etc.), e tudo principia pelo atropelamento de um ponto, fato desencadeador de uma série de manifestações populares, que acabam tendo implicações nas mais variadas camadas sociais, desde a nobreza até a população prosaica. Apesar do autor de A Primavera da pontuação afirmar, em uma espécie de posfácio, que sua obra não possui os vínculos mais evidentes com o mundo factual (protestos no Brasil em 2013, Primavera Árabe3, etc.), é inevitável que nós leitores estabeleçamos o vínculo, principalmente pelo fato de que não ser possível estabelecer até onde vai a ficcionalidade da obra. Ela encerra-se no ponto final da narrativa? Ela persiste no posfácio artisticamente produzido (inclusive com a criação de personagens)? Acreditamos que se trata de mais um obstáculo interpretativo semeado de forma criativa pelo narrador, e é neste sentido que estabeleceremos uma contextualização do referente externo da narrativa, a fim de que nossa leitura e análise sejam mais esclarecedoras. No ano de 2013, o Brasil presenciou a maior manifestação popular (como protesto político) desde o fora Collor nos anos 90. Num primeiro momento, o protesto deu-se em função do aumento da tarifa do ônibus urbano, no entanto, foi apenas o estopim para que boa parte da população se unisse a fim de reivindicar melhorias em todos os aspectos da sociedade que estavam em desacordo

Entende-se aqui Primavera Árabe como a onda de protestos e revoluções ocorridas no Oriente Médio e norte do continente africano, em que a população foi às ruas para derrubar ditadores ou reivindicar melhores condições sociais de vida.

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com a sua vontade. Uma das frases mais ouvidas foi não era pelos 20 centavos, valor do aumento da passagem. Apesar da maior parte das manifestações, que ocorreram em todo o país, serem pacíficas, elas foram muitas vezes duramente reprimidas pelas autoridades, inclusive com o uso de violência. Esta medida teve efeito contrário, serviu de estímulo à união popular. No entanto, alguns grupos praticavam vandalismo e pregavam a violência nos protestos, mas eram grupos minoritários, que sucumbiram à vontade da maioria, que era apenas protestar ambicionando mudanças. Os protestos tinham como alvos a área política (combate à corrupção e à passividade dos políticos diante do sofrimento das pessoas), a baixa qualidade dos serviços públicos prestados (principalmente na área da saúde e transporte público) e na ineficiência da polícia, nos gastos com a copa do mundo e na necessidade de se fazer uma reforma política. Imediatamente após as manifestações, algumas medidas emergenciais foram tomadas para atender às reivindicações, como a contratação de médicos estrangeiros pelo governo brasileiro para sanar o déficit destes profissionais no serviço público-gratuito; a transformação da corrupção em crime hediondo; apoio à reforma política; destinação de boa parte dos royalties provenientes do petróleo para a saúde e a educação. O romance A Primavera da Pontuação estrutura-se como uma fábula, na medida em que há a personificação de alguns elementos. No entanto, difere-se das fábulas tradicionais pelo fato de não personificar animais, neste caso, quem recebe vida e voz são elementos linguísticos (ponto, vírgula, palavra ônibus, compostos eruditos, agente da passiva...). O texto apresenta também uma perspectiva moderna de História (Nova História4), que se atém a fatos contemporâneos que ainda não fazem parte da História Oficial. Para esta construção histórica, diferentemente da História tradicional, os personagens historicizados são, em sua maioria (mas não exclusivamente) pessoas comuns, trabalhadores, donas de casa, etc. que mostram a implicação que os fatos históricos possuem na vida das pessoas. Para tal, a introdução aos acontecimentos se dá pela voz de um repórter televisivo (cujo nome é Vocativo), que noticia ao vivo os acontecimentos, nos aproximando cronologicamente e contextualmente das cenas: “Amigos telespectadores, estamos ao vivo, transmitindo diretamente do local onde tiveram início as manifestações que, neste momento, paralisam grande parte do centro de Ponto Alegre”, falava Vocativo, conhecido repórter, ao microfone da mais importante rede de televisão do país... (RAMIL, 2014, p. 14)

Assim como nas fábulas tradicionais, no romance em questão também encontramos, diluídos no enredo, alguns ensinamentos, que neste caso soam mais como alertas. Podemos citar como exemplo a Igreja do Caminho, criada e gerenciada com o intuito principal de gerar lucro aos seus fundadores. Ela é fundada para esconder um crime cometido pelo pastor, e toda sua trajetória passa pela falsidade, pelo charlatanismo, tanto que o pastor e sua esposa foram vítimas de chantagem e aceitaram um sócio com quem dividiriam os imensos lucros obtidos através de doações dos fiéis. Este episódio serve como alerta, para que tenhamos cuidado em nossas crenças e nas escolhas que fazemos, que elas não sejam inocentes nem facilmente ludibriadas por belos discursos, mas fruto de uma convicção bem fundada. Como já dito anteriormente, a introdução da História nas fábulas é algo inovador e, neste caso, constatamos também que o romance apresenta uma visão do narrador sobre alguns fatos históricos. O fato de nomear a polícia como Passiva, nos direciona a interpretá-la como algo que, contrariamente ao que se espera, não tem atitude diante das demandas que lhe são postas. A ridicularização

Nova História é a corrente historiográfica surgida nos anos 1970 e correspondente à terceira geração da chamada Escola dos Annales. A Nova História rejeita a composição da História unicamente como narrativa, valoriza os documentos oficiais como fonte básica e considera as motivações e intenções individuais como elementos explicativos para os eventos históricos, mantendo a velha crença na objetividade.

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dos governantes é outro elemento crítico introduzido pelo narrador que, através das figuras do Rei e da Rainha, nos mostra a desonestidade, as conspirações e os jogos de interesse presentes nas administrações públicas. O texto também apresenta uma teoria sobre as manifestações populares ocorridas: Pois é, meu caro Vocativo, de repente nossa sociedade tão hierarquizada descobre que nós, a pontuação, esse mero acessório empregado para simular na escrita a riqueza expressiva da oralidade, temos voz e pensamento próprios. Coloco-me no lugar dos todo- poderosos nomes e verbos e imagino sua preocupação: como lidar com uma exclamação que questiona, uma interrogação que se exclama, um ponto que quer dar livre curso às ideias ou uma vírgula que pretende pôr um ponto-final no estado atual de coisas? (RAMIL, 2014, p. 34)

Outra semelhança entre as fábulas tradicionais e A Primavera da Pontuação é a inserção de verdades (ou valores) universais o longo da narrativa. Percebemos este elemento ao analisarmos a relação afetiva entre pais e filhos, como no caso do Ponto atropelado, que acabou sendo adotado pelo casal Palavra Caminhão e Palavra Ônibus. As adversidades e testes pelos quais o casal e o filho passaram atestam a firmeza do sentimento recíproco, semelhante ao afeto entre pais e filhos naturais. Outra verdade universal exposta no romance é a tendência do ser humano à conspiração. Percebemos muitos exemplos no texto, a conspiração da Rainha para assassinar o Rei, a conspiração dos Compostos Eruditos a fim de tumultuar a sociedade, etc. Apesar dos momentos sentimentais e de conflito, a característica mais marcante desta obra é o humor. Este é manifestado de diversas maneiras, como por exemplo, no uso textual que o nome dos personagens representa gramaticalmente: “... Superlativo era inteligentíssimo...” (p. 10), nos trocadilhos entre os nomes e seu campo semântico: “... Sou integrante do movimento religioso Ponto de Cruz. Somos pela não violência, respondeu o Ponto Pacífico...” (p. 22), ou ainda pela criação de situações cômicas: “Estou enjoado, acho que vou...” disse o Rei, e vomitou no próprio colo antes de poder concluir a frase. “Usa a janela, relaxado!” Gritou a Rainha. O Rei botou a cabeça pra fora e golfou outra vez, com força, no instante em que a carruagem adentrava o pátio de Versalete. A peruca voou, misturando-se ao vômito ainda no ar. A carruagem parou e a Rainha desceu, falando aos empregados: “Pão regurgitado e circo para vocês, com os cumprimentos de vossa nulidade real”... (RAMIL, 2014, p. 25)

Outra estratégia narrativa utilizada no romance é a mescla entre fatos históricos de épocas distintas, claramente identificáveis, a fim de desenvolver uma assertiva. No intuito de criticar a repressão promovida pela polícia e pelo exército, encontramos representado aqui o atentado do Riocentro5, chamado no romance de Pontocentro, inclusive apresentando detalhes conhecidos que reafirmam a representação, como o Puma cinza metálico, famoso no evento histórico e também constante na narrativa. Nesta, este evento mistura-se com as manifestações populares contemporâneas da obra, mostrando que na essência, o tratamento dado ao povo não mudou tanto quanto se pensava. Assim como ocorre em A Revolução dos Bichos, a relação com a história é de questionamento e até certo ponto conflituosa em A Primavera da Pontuação, pois um procedimento que se repete em ambos os romances é a representação de algo grave em termos históricos, a tentativa do apagamento dos fatos por meio do discurso. Cada vez menos a mídia falava no acidente ou se ocupava em querer identificar seus protagonistas. Havia até quem defendesse a ideia de que o atropelamento não fora mais que uma hábil invenção do Sindiponto, o mafioso sindicato da pontuação. (RAMIL, 2014, p. 66)

Atentado do Riocentro é o nome pelo qual ficou conhecido um frustrado ataque a bomba que seria perpetrado no Pavilhão Rio centro, no Rio de Janeiro, na noite de 30 de abril de 1981, por volta das 21 horas, quando ali se realizava um show comemorativo do Dia do Trabalhador, durante o período da ditadura militar no Brasil.

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Assim sendo, percebemos que, cada um a seu modo, os dois romances utilizam-se dos artifícios presentes nas fábulas tradicionais, adaptando-os e alterando-os conforme seus objetivos formais. Além da contribuição semântica e artística, ambos expressam os anseios formais que o decorrer dos anos requer, se os enredos modificam seus valores e objetos, a forma de contá-los também se modifica, é o que percebemos de mais saliente na análise aqui desenvolvida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo desenvolvido nos permite estabelecer alguns pontos relevantes na relação entre os romances. Primeiramente nos chama a atenção o fato de ambos terem um objetivo muito parecido, o de problematizar uma situação social posta. Cada um em um contexto diferente, ambos evidenciam aspectos velados pela sociedade, introduzindo aí uma abordagem crítica subjetiva do problema, no intuito de gerar reflexões a respeito das mazelas que afligem a população. No entanto, as estratégias para efetivar seus objetivos são distintas. O narrador de Orwell faz uma crítica direcionada e cheia de ironia, utilizando em suas metáforas elementos que são de fácil apreensão para o leitor. Já Ramil opta por outro tipo de humor, cativando o leitor a acompanhar a narrativa com o atrativo lúdico, seu narrador não direciona pessoalmente as críticas presentes na obra, apenas denuncia as mazelas e incita à reflexão. O motivo inicial de nosso estudo, a verificação de possíveis atualizações em narrativas fabulares, permitiu constatações significativas. A principal delas tem relação com uma característica cara às fabulas tradicionais, a de contar verdades universais através de situações generalizantes, não datadas e não localizadas. A estratégia desenvolvida nos romances analisados aqui é exatamente oposta, eles apresentam fatos históricos, ou seja, datados e localizados, a fim de defender seus pontos de vista, interferindo assim radicalmente na estrutura tradicional da fábula. De todo modo, não se trata de uma negação às fábulas, pelo contrário, o fato de utilizar e atualizar a forma das fábulas é uma maneira de reverenciá-las, mostrar que elas ainda têm relevância no contexto literário atual, mas que, como todo gênero duradouro, deve sofrer alterações para ainda fazer sentido e cativar leitores.

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A FRAGILIDADE DAS PERSONAGENS FEMININAS NO CONTO JAMILA DE JULIO EMÍLIO BRAZ João Paulo Massotti* (URI)

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Durante muito tempo a história da humanidade tem sido marcada pela tradição patriarcal, em que a mulher sempre foi vista como inferior ou até mesmo submissa ao homem. Em dados momentos da história sua capacidade intelectual foi posta à prova e desmerecida junto à figura masculina. Na literatura muitas autoras e obras, como Jane Austen e seu Pride and Prejudice, foram inúmeras vezes recusadas por se tratar de um texto feito por mulheres, obrigadas em certos casos a escrever sob pseudônimos, com a justificativa de dar credibilidade da obra. Para Simone de Beauvoir, uma justificativa para isso está em que os “antifeministas não têm dificuldade em demonstrar que as mulheres não são homens” (BEAUVOIR, 1970), e que portanto não tem o mesmo prestígio e qualidade que eles. A partir de seu livro, O Segundo Sexo, publicado pela primeira vez em 1949, a autora resgata inúmeros exemplos sobre a condição feminina, seja no campo da literatura, da psicologia ou da sociologia. Para ela, “basta passear de olhos abertos para comprovar que a humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas roupas, rostos, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupações são manifestamente diferentes” (BEAUVOIR, 1970) e que, embora pareçam superficiais, essas diferenças existem e quase sempre imprimem um discurso opressor. Ao formular a pergunta “o que é ser uma mulher?” a autora observa a ausência de uma necessidade que justifique, por exemplo, impor ao homem o mesmo questionamento, uma vez que é natural que o seja. O homem, nesse sentido, representa um campo positivo e neutro, capaz de denominar a todos os demais indivíduos enquanto seres humanos, uma vez que a eles é dirigido o termo “os homens”. Por outro lado, “a mulher aparece como o negativo, de modo que toda determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade” (BEAUVOIR, 1970). Assim, ao querer justificar o pensamento feminino o homem impõe sua neutralidade positiva ouvir os homens dizer-se: “Você pensa assim porque é uma mulher”. [...] minha única defesa era responder: “penso-o porquê é verdadeiro”, eliminando assim minha subjetividade. Não se tratava, em hipótese alguma, de replicar: “E você pensa o contrário porque é um homem”, pois está subentendido que o fato de ser um homem não é uma singularidade; um homem está em seu direito sendo homem, é a mulher que está errada. (BEAUVOIR, 1970, p. 9)

O silenciamento feminino ocasionado pelo sistema patriarcal – imbuído pelo propósito de procriação – inviabilizava a credibilidade intelectual das mulheres. Outro aspecto interessante, e sobre o qual Kate Millet, feminista americana, nos chama atenção é para o fato das distinções sociais e políticas não estarem “baseadas na riqueza ou na posição social, mas no sexo” (MILLET, 1970, p. 14), uma vez que para ela a base de toda a nossa civilização se dá no patriarcado. Uma civilização que, segundo Beauvoir é masculina, a qual “o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo (BEAUVOIR, 1970). Para a autora, essa submissão na mulher não se deve, como em outros casos, por exemplo entre negros e brancos nos Estados Unidos, à desigualdade numérica, em que a maioria impõe sua lei à minoria, *

Mestrando em Literatura Comparada na URI – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI Frederico Westphalen).

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uma vez que há tantos homens quanto mulheres na terra. Deve-se, antes, a um acontecimento histórico que subordinou o mais forte (homem) ao mais fraco (mulher), e que tem um ponto em comum na religião. Por mais por mais que se busque na história o ponto inicial em que a mulher passou a ser subordinada ao homem. É quase impossível precisar quando isso se deu, uma vez que “sua dependência não é consequência de um evento ou de uma evolução, ela não aconteceu” (BEAUVOIR, 1970). De acordo com Muraro (MURARO apud DURÃES, 2009) uma justificativa para o início da submissão feminina ao homem pode estar no mito da criação. Ao citar As máscaras de Deus, do autor americano Joseph Campbell, ele aponta para os mitos da criação, dividindo-os em quatro grupos correspondentes às etapas cronológicas da história humana, a qual a Bíblia teria sido escrita na quarta e última etapa o que, de certo modo, contribuiu para que o processo de submissão feminina fosse gradativamente ocorrendo na primeira etapa o mundo teria sido criado por uma deusa mãe sem auxílio de ninguém; na segunda, por um deus andrógino ou um casal; na terceira um deus macho que ou cria o mundo ao tomar o poder de uma deusa ou através do corpo de uma deusa primordial. E, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho. (MURARO apud DURÃES, 2009, p. 133-134)

Assim, os traços de uma sociedade patriarcal já são percebidos nas Sagradas Escrituras, desde o Cristianismo na Bíblia, até o Islamismo no Alcorão, em que, de forma lenta e gradual a mulher foi sendo marginalizada e conforme Beauvoir (1970), o homem venceu desde o início. Uma característica marcante em ambas as escrituras diz respeito à virgem (santa) ou as virgens (prometidas). Desse modo, há a supressão da mulher pecadora e a exaltação à Virgem, mãe de Jesus, concebida sem pecado, no Cristianismo e, o paraíso das setenta virgens aos mártires da religião Islâmica. O que reflete que a pureza feminina consiste em manter a castidade. E foi contra a sociedade patriarcal que, segundo Kate Millet, a revolução sexual se lançou, na tentativa de abolir tanto a ideologia “da supremacia do macho como a tradição perpetua através do papel, condição e temperamento atribuídos a cada um dos dois sexos” (MILLET, 1970, p. 10) além de “desafiar a estrutura patriarcal e criar um ímpeto inicial necessário para realizar as enormes transformações que uma revolução sexual deveria provocar no plano das concepções sobre o temperamento, função e estatuto dos dois sexos” (MILLET, 1970, p. 12) Beauvoir aponta que, independente de ser homem ou mulher, todos são considerados seres humanos, mas a ação exercida pelas mulheres sempre foi simbólica, ou seja, suas conquistas sempre partiram do que lhes foi cedido pelos homens. Uma justificativa dada pela autora a isso se deve ao fato de que as mulheres não têm os meios concretos de se reunir em uma unidade que se afirmaria em se opondo. Não têm passado, não têm história, nem religião própria; não têm, como os proletários, uma solidariedade de trabalho e interesses; não há sequer entre elas essa promiscuidade espacial que faz dos negros dos E.U.A., dos judeus dos guetos, dos operários de Saint-Denis ou das fábricas Renault uma comunidade. Vivem dispersas entre os homens, ligadas pelo habitat, pelo trabalho, pelos interesses econômicos, pela condição social a certos homens — pai ou marido — mais estreitamente do que as outras mulheres. Burguesas, são solidárias dos burgueses e não das mulheres proletárias; brancas, dos homens brancos e não das mulheres pretas. (BEAUVOIR, 1970, p. 13)

Desse modo, os historiadores têm negligenciado ou até mesmo ignorado o problema da revolução sexual, permitindo-se apenas poucos comentários acerca de, por exemplo, o direito ao voto para a mulher. Consideravam essa conquista, inicialmente como uma insensatez, e por vezes tomaram-na como uma mera onda exibicionista por parte das mulheres. E como o presente envolve o passado, desde as escrituras é que o passado tem sido escrito quase que exclusivamente por homens. Contudo, conforme Millet (1970), as revoluções que tiveram início durante a revolução sexual foram tão importantes quanto os outros aspectos sociais a que os historiadores dedicam toda sua atenção.

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Para Millet e Beauvoir, a mulher sempre foi propriedade do homem. Tanto que Millet, ao criticar o casamento aponta que, ainda nos séculos XIX e XX, fazia com que a mulher perdesse todos os seus direitos, comparando-a inclusive aos criminosos ao entrar na prisão. “O marido possuía tanto a sua pessoa como os seus serviços, podia alugá-la (e alugou-a) de qualquer modo que lhe aprouvesse [...] tudo o que a mulher adquirisse pelo seu trabalho ou herdasse sob tutela tornava-se propriedade legal do marido.” (MILLET, 1970, p. 17). Do mesmo modo Beauvoir defende que a mulher sempre foi, senão a escrava do homem ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições; e ainda hoje, embora sua condição esteja evoluindo, a mulher arca com um pesado handicap. Em quase nenhum país, seu estatuto legal é idêntico ao do homem e muitas vezes este último a prejudica consideravelmente. (BEAUVOIR, 1970, p. 14)

Em algumas culturas essa noção de propriedade, quando se fala em mulher, ainda permanece. Segundo a jornalista muçulmana Irshad Manji (MANJI apud DURÃES, 2009) O Alcorão, livro ditado por Maomé, é entendido pelos muçulmanos como um livro a ser imitado, nunca interpretado o que por vezes tem feito com que a figura da mulher se tornasse insignificante aos olhos da religião. E que, embora não haja menção alguma quanto a figuras masculinas ou femininas ao mito da criação no início da oba, o livro direciona mais tarde, a um posicionamento extremamente machista ao mencionar a autoridade do homem sobre a mulher devendo essas ser clementes e obedientes ao marido. Dentro desse arcabouço teórico apresentado, observam-se características a ser analisadas nas personagens do conto Jamila. Tanto a imposição masculina diante do mais frágil, quando a submissão da feminilidade observada na mãe de Jamila e nas demais personagens femininas que, assim como ela, cometeram o mesmo pecado, serem elas corrompidas pelos estupradores.

2. PERSONAGENS FEMININAS A FRAGILIDADE DIANTE DA VIOLÊNCIA Jamila, conto do escritor contemporâneo Júlio Emílio Braz narra em primeira pessoa as vivências de uma professora – inominada – e sua melhor aluna Jamila, a partir de uma série de atrocidades cometidas com a chegada de soldados americanos, após a invasão à cidade de Basra no sul do Iraque. De forma realista, a narradora procura demonstrar um cenário tomado pela violência do homem – soldados – associada à intolerância ocasionada através do extremismo religioso – muçulmanos – contra a figura feminina. Ao tornar a narrativa em primeira pessoa, o autor possibilita à narradora/personagem maior autonomia ao descrever todo o horror que presencia presa a uma cadeira de rodas. A chegada dos soldados americanos em solo Iraquiano, o medo e o despreparo das tropas e a violência sexual, física e psicológica cometida por eles, diante de, principalmente mulheres e crianças: “O helicóptero era um monstro enorme e cinzento, confundindo-se com a areia, que nos golpeava e rugia interminavelmente, despejando mais e mais soldados sobre nós [...] tinham medo, muito medo. Tinha morte por trás de tanto medo.” (BRAZ, 2012, p. 79) Mesmo com a banalização da violência e das inúmeras mortes ocasionadas, a narradora justifica o caos de uma guerra, a qual o ser humano perde a noção de civilidade e torna-se animal. Por vezes essa animalidade é apenas o desejo desesperado pela vida. Desejo que a personagem-narradora mantém, mas que ao mesmo tempo lhe incomoda, pois inconformada com a situação de Jamila, sua melhor aluna antes do conflito, é nela que diz estarem os reflexos daquilo que não lhe fizeram, mas que compartilha na dor dos outros: De certo modo, o inferno de Jamila é o meu inferno também, pois eu sei o que acontece com ela e não consigo arrancar de dentro de minha cabeça essa lembrança torturante. [...] Meu inferno é saber que Jamila nem sabe muito bem por que sofre, já que merecia carinho ou pelo menos compreensão, depois de tudo por que passou e sofreu. (BRAZ, 2012. p. 80)

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Apesar da violência cometida contra Jamila, há um contraste em relação a sua pureza. Para a professora, a incompreensão de Jamila diante dos fatos intensifica a inocência diante dos acontecimentos. Para os pais da personagem, ancorados no extremismo religioso, a filha se torna pecaminosa, uma vez que não pôde preservar a pureza envergonhando a família. Assim, o ódio, da narradora, contra os soldados americanos é com o passar do tempo e dos fatos, externalizado contra a família de Jamila, primeiro ocasionado pelo abandono quando os soldados vieram e, mais tarde, justificado pelo descaso quando eles se foram: “Meu coração encheu-se de ódio quando cruzei o olhar com o seu pai e os irmão. Xinguei todos eles. Onde estavam quando os soldados vieram? Por que a abandonaram? Estaria Jamila pagando pela vergonha que todos sentem por sua própria covardia? [...] Tivesse uma arma e coragem para fazê-lo, se não estivesse confinada nesta cadeira de rodas – razão pela qual os soldados me pouparam, acredito -, eu mesma mataria todos.” (BRAZ, 2012, p. 82)

No entanto, todo esse ódio entra em conflito com a culpa. A narradora se sente culpada por não ter compartilhado do mesmo desfecho dado às outras mulheres. Por sua condição – de cadeirante – a tê-la impedido de, como suas iguais, experimentar a mesma dor: Há uma certa culpa em minha raiva contra todos eles. Eu escapei da dor e da desonra das outras mulheres. Apenas me empurraram e me deixaram de lado, eu e minha cadeira de rodas. Sobrevivi para ouvir os gritos e as súplicas das outras mulheres. (BRAZ, 2012, p. 82)

Embora do mesmo modo, humilhada pelos soldados, como em outras vezes fora pelos homens da vila onde mora em Basra, desta vez carrega o peso da felicidade que julga não merecer. Nenhum deles se aproximou de mim. Senti-me contraditoriamente má comigo mesma, menos do que uma mulher, mas ao mesmo tempo, feliz por ter escapado de tal suplício. [...] aos olhos dos homens que me recusaram mais vezes do que posso me lembrar. [...] Nada diferente da situação que vivi com os homens da aldeia. (BRAZ, 2012, p. 83)

Durante a narrativa, percebe-se que Jamila representa a coletividade feminina, em que o seu sofrimento passa a ser a representação do sofrimento das mulheres da aldeia. Desse modo, ainda que não tenha uma noção aprofundada do que se passa no íntimo da personagem, além de sua incompreensão diante da situação, a narradora aponta para as semelhanças que são capazes, aos olhos do leitor, de sensibilizar a sua tenra, breve e tortuosa vida: “Olhar para ela é encarar todas as outras mulheres que ficaram abandonadas na aldeia, é enfrentar a própria covardia.” (BRAZ, 2012, p. 82). Ao analisar a personagem Jamila é possível entender que o caos deixado pelos soldados, após a tentativa de “libertação” do povo Iraquiano das mãos de Sadam, foi direcionado principalmente as mulheres que abandonadas pelos homens da aldeia não tiveram tempo de se defender: “Mulheres. Mais velhas do que Jamila. Machucadas como Jamila.” (BRAZ, 2012, p. 88). Há inúmeros registros acerca da violência contra a mulher que estão associados a comportamentos de uma sociedade patriarcal tradicional. Muitas vezes, parte de uma cultura dominante, enraizada no extremismo religioso justifica a postura dos agressores, imprimido na vítimas, de forma quase que abstrata uma culpa que lhes nega a possibilidade de defesa. No conto, as personagens femininas sofrem três tipos de violência: primeiro há o feminicio das que lutam para escapar da brutalidade; em seguida há a violência tardia, das que são poupadas por suas condições físicas ou por não agradarem aos soldados, tornando-se assim vítimas do abandono e, mais tarde, do preconceito dos moradores da vila; e por último as desonradas pelos seus agressores que, repetidas vezes, e de forma brutal as estupram.

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Felizes as que morreram atingidas pelas balas dos soldados. Essas ainda encontram quem chore por elas [...] por elas terem honrado seus nomes. Felizes aquelas que, como eu, não interessaram aos soldados. Pobres daquelas que, como Jamila, sobreviveram e interessaram àqueles homens. (BRAZ, 2012, p. 83)

A fragilidade da personagem Jamila e das demais personagens femininas que tiveram o mesmo fim diante dos horrores cometidos, se intensifica quando, para as famílias, motivadas pelas crenças religiosas, que não aceitam a violação das mulheres, passam a ser consideradas impuras. Assim, a tortura física e psicológica que sofreream nas mãos dos soldados, se repete na indiferença dos pais e irmãos: “o pai de Jamila jamais a perdoou pelo crime que julga que a filha cometeu. Jamila sofre pela vergonha que o pai sente diante dos outros, mas, antes de mais nada, diante de si mesmo” (BRAZ, 2012, p.86). Para o islamismo o matrimônio é um das mais sublimes manifestações da vontade divina e, portanto deve ser respeitado. Considerado como essencial torna o celibato algo demoníaco, carregado de disfunções afastando os indivíduos da pureza divina. Assim, ao praticar o matrimônio, a mulher deve ser considerada casta o que faz com que, o contrário em uma leitura extrema da situação, seja condenável, mesmo que a vítima não seja responsável pela sua violação. Ao abandonar Jamila, diante da invasão dos soldados, acreditava-se tê-la abandonado a morte e, deste modo a manutenção da honra familiar. Contudo, ao sobreviver, Jamila, agora abusada, torna-se impura, por não ser capaz de manter o recato feminino, ou de honrar sua condição de pureza feminina. Neste sentido, nota-se que o mal ocasionado pelos homens da família, ao abandonarem a filha e irmã, que por não ter sucumbido como as demais mulheres no feminicidio gerado, legitima a culpa pela sua fragilidade: “As feridas que eles deixaram eram bem mais profundas e haviam sido feitas na alma e no espírito de Jamila. [...] O pai. Os irmãos. Eles haviam feito aquilo com ela.” (BRAZ, 2012, p. 85). A moral no campo da sexualidade é atribuída à razões que surgem da experiência histórica, muitas delas de modo infeliz ou cruel. Não cabe, neste trabalho, detalhar como tais atos estão enraizados na sociedade, mas identificá-los como parte da natureza machista e preconceitusa, baseada muitas vezes em leituras superficiais presentes em ideologias religiosas. No conto, a religião – islamica – de maneira tendenciosa aparece de três maneiras: primeiramente, é responsável pela clausura e sofrimentos de Jamila, pois são os religiosos de Karbala que possuem essa visão arcaica de pureza, mesmo quando a vítima não compartilha da culpa; em seguida a aparece como cúmplice, pelo silenciamento da mãe de Jamila diante das decisões dos homens; e por último, no outro extremo, é utilizado pela narradora como forma de agradecimento: “Alá é grande! Fui poupada” (BRAZ, 2012, p. 83), e súplica: “Rezo a Alá para acalmar meu coração” (BRAZ, 2012, p. 83). Por fim, a libertação das personagens acontece através de um desfecho tão bárbaro como todo seu enredo. Por mais que a professora tivesse, num esforço sobrehumano enfrentado toda a família para continuar vendo Jamila, sabia da intolerância e da impossibilidade de trazê-la novamente à escola ou salvá-la da clausura. O sofrimento de vê-la definhando, esquecida no quarto escuro, e a lúcida percepção de Jamila prisioneira nas mãos própria família tornam a morte da personagem a única possibilidade de libertação: “Queria que Jamila morresse [...] mais dia, menos dia, Jamila realmente morreria. Na verdade ela já estava morta”. (BRAZ, 2012, p. 89).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Jamila questiona a violência e a incapacidade – fragilidade – dos personagens femininos. Utilizando uma postura crítica centrada na cultura patriarcal o estudo do conto nos permite analisar a força da literatura como denúncia de extremismos que, baseados na religião, oprimem e punem milhares de mulheres. Muitas vezes essas práticas são consequências de um sistema, no qual a figura

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do homem é tida como centralizadora do poder, quase velada e muitas vezes incapaz de ser punida ao cometer atos bárbaros contra a figura da mulher. Júlio Emílio Braz cria figuras femininas tidas como frágeis diante da violência cometida pelo homem que, ao mesmo tempo, são carregadas por um sentimento de luta comum, na qual a figura central é representada por Jamila, uma sobrevivente do modelo arcaico patriarcal ainda em voga em muitas culturas. A narradora, por sua vez simboliza a luta de inúmeras mulheres que buscam o seu reconhecimento mesmo sabendo ser a voz seu único instrumento de denúncia.

REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. São Paulo : Difusão Européia do Livro, 1970. Tradução de Sérgio Milliet. p. 7 – 23. BRAZ, Júlio Emílio. Jamila. In: Jovens Náufragos e suas batalhas. Global : São Paulo, 2012. MILLETT, Kate. Política Sexual. Lisboa : Dom Quixote, 1970. p. 9 – 47. DURÃES, Jaqueline Sena. Mulher, sociedade e religião. In: Congresso de Teologia da PUCPR. Anais eletrônicos. SANCHES, M. A. (Org). Curitiba: Champagnat, 2009. Disponível em: http://www.pucpr.br/eventos/ congressoteologia/2009/. Acesso em 09 set. 2015.

TINTIM NO CONGO: A ÁFRICA DE HERGÉ E OS POVOS AUTÓCTONES NA HISTÓRIA EM QUADRINHOS Josiani Job Ribeiro* (Feevale) Daniel Conte** (Feevale)

Representar é um ato natural dos seres humanos, toda a construção do sujeito social é estruturada a partir de suas representações de mundo, assim, representar é dar uma significação a algo, é produzir efeitos de sentido à vida. As representações são essenciais na construção e composição das sociedades, Hall (1997, p. 1) afirma que “Representação é uma parte essencial do processo pelo qual o sentido é produzido e trocado entre membros de uma cultura”, assim, são as representações que dão sentido aos acontecimentos sociais e eventos cotidianos, e são elas que nos permitem construir conceitos e cenários que sequer conhecemos, como o caso da representação social da África, que se encontra inserida no imaginário1 dos indivíduos na atualidade. As políticas colonizadora, expansionista e escravocrata adotadas pelos países europeus nos séculos passados, tornaram a África familiar à sociedade contemporânea, mas não de forma positiva e benéfica, já que, tudo o que foi construído neste imaginário faz parte de um senso comum, embasado em uma representação eurocêntrica2 . A representação social construída da África foi fundamentada no discurso da ausência de cultura e civilidade, o que autorizava o europeu a tomada das terras para doutrinar os autóctones: Nem o imperialismo, nem o colonialismo é um simples ato de acumulação e aquisição. Ambos são sustentados e talvez impelidos por potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação [...] (SAID, 1995, p. 43)

Tal perspectiva resultou em diversas representações equivocadas, como a inexistência de religiões, simplesmente pela fé da população local em crenças diferentes dos europeus. O senso comum, aliado a falta de interesse e necessidade em conhecer a África, fez com que sociedade contemporânea elaborasse estereótipos para o local e para seu povo. São muitos os equívocos cometidos pela coletividade no que tange à realidade africana, sendo o primeiro deles, o fato de muitos identificá-la como um país, e não como continente; de desconhecerem a existência de uma África branca, apesar do Apartheid3 ter se tornado público mundialmente, de desprezarem o fato do Egito, e suas pirâmides que são parte do Patrimônio Mundial Cultural4, serem africanas. Se hoje, com o advento tecnológico e global as representações de África se mantiveram estagnadas em noções inventadas pela ambição colonizadora, durante o período colonial a situação foi ainda pior. As invenções e representações passadas ao mundo pelo colonizador não podiam ser verificadas, o que o colocava na situação de portador da verdade. Além disso, é preciso levar em conta que, a cena colonial foi demasiadamente longa, e que a política expansionista europeia é findada apenas na segunda metade do século XX, a representação social do colonialismo altera-se em cada nação envolvida, não apenas pela posição ocupada nesta trama (colonizador x colonizado), mas também pelo período em que a colonização é estabelecida. Licenciada em História, mestranda Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale (RS/Brasil). E-mail: [email protected] Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana, professor e pesquisador da Universidade Feevale (RS/Brasil) no curso de Letras e no PPG em Processos e Manifestações Culturais. Tutor PET-Interdisciplinar Feevale (FNDE). E-mail: [email protected] 1 Halbwachs (2006) define a memória como algo coletivo e vinculado a um grupo, em que neste conjunto o individuo crê em uma memória significativa e representativa a todos. 2 De acordo com Ferreira (2009) é a representação centrada na Europa ou nos europeus. 3 De acordo com a Unesco, é um regime político de segregação das populações negras e brancas, adotado na África do Sul entre os anos de 1948 e 1994. 4 As pirâmides do Egito foram declaradas Patrimônio Mundial Cultural pela UNESCO em Convenção do Comitê de Patrimônio Mundial, realizada de 22 à 26 de outubro de 1979 na cidade do Cairo. *

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Neste sentido, será analisada a representação do africano na história em quadrinhos “Tintim no Congo” do escritor e desenhista belga Georges Prosper Remi, conhecido mundialmente como Hergé (1907-1983), pertencente a série “As aventuras de Tintim”. A história foi produzida pela primeira vez em 1930 no Le Petit Vingtième, um segmento infantil do jornal bruxelense Le Vingtième Siècle, no idioma francês. Foi transformada em livro no ano de 1931 em versão preto e branco, em 1946 foi revisada pelo autor e publicada em cores, e foi publicada pela primeira vez no Brasil em 1970. A história retrata a ida do jornalista belga Tintim e seu companheiro canino Milu, para o Congo Belga, atual República Democrática do Congo, onde os dois se envolvem em uma série de aventuras, nesta, serão analisados tanto as ilustrações, quanto os diálogos criados para a história.

1. AFRICANO DE HERGÉ: A REPRESENTAÇÃO DOS POVOS AUTÓCTONES Tintim visita o Congo em 1930, no ápice da colonização belga que se instaurou no país de 1908 a 1960, para uma viagem imersa em promessas de safaris e caçadas. Desde sua chegada ele se mostra receptivo à colônia e se integra aos autóctones, contudo fica evidente a perspectiva de branco colonizador, uma vez que, se posiciona como um indivíduo superior e faz uso da população local como serviçal, sobre isto Fanon (2008, p. 47) relata “Sim, do negro exige-se que seja um bom preto; isso posto, o resto vem naturalmente”, evidenciando que a população local para ser valorizada deveria servir ao colonizador, não apenas no que concerne à prestação de serviços, mas também no que diz respeito à conduta social, a cumprindo as normas coloniais, e ser reconhecido como sujeito pelo branco. Tratando-se de uma ficção, em nenhum momento o personagem se depara com a barreira linguística, ele visita diferentes aldeias e se depara com diversos autóctones, porém todos dominam o seu idioma Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural – toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. (FANON, 2008, p. 34)

Deste modo, Hergé legitima o discurso colonial através da linguagem, e isso resulta em um grande impacto e influencia na cultura dos autóctones, pois, desautorizando a língua materna se deslegitima a cultura e explicita o movimento de em abandoná-la. O autor instiga seu leitor a pensar que no Congo, todos são capazes de se comunicar através da língua da nação colonizadora, e, assim, destaca um dos mecanismos civilizadores colonial. Em todos os quadrinhos em que ocorrem diálogos entre Tintim um habitante congolês, o personagem branco é tratado como autoridade, em uma lógica definida por Fanon (2008, p. 47): “Queira ou não queira, o negro deve vestir a libré que lhe o branco lhe impôs. Observem que, nos periódicos ilustrados para crianças, todos os negros têm na boca o “sim sinhô” ritual”, explicitada na seguinte imagem

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I. Branco x colonizador

Fonte: HERGÉ, 2008, p. 11.

O tratamento entre os personagens de cor branca, não segue a mesma lógica dos personagens de diferentes etnias, expondo o que foi defendido acima, e ressaltando a intensão do autor em promover na sua história um ideal colonial. A partir deste momento, Tintim se direciona para a primeira caçada e os diálogos e tirinhas que seguem, estampam total descaso ao Congo, e expõe a representação social gerada na década de 30 do negro, pois, os personagens negros que surgem deste momento em diante, são figurados como dotados de pouca inteligência, covardes, demostram medo dos animais e da vegetação de seu próprio território, são pouco confiáveis e ingênuos. E, em relação à representação física dos autóctones, as ilustrações mostram todos iguais, com pele e cabelos pintados no mesmo tom de preto e bocas enormes. Em um dado momento, Tintim encontra um macaco na selva, que é ilustrado fisicamente similar aos personagens autóctones, com pelos desenhados com o mesmo tom de preto que as pessoas, assim, como a boca. II. Ilustração macaco

Fonte: HERGÉ, 2008, p. 17.

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III. Ilustração autóctone

Fonte: HERGÉ, 2008, p. 26.

Além disso, ano iniciar o contato com os animais nativos, lembrando que, no que refere-se à vida animal africana, há a representação do selvagem, em que os animais são reconhecidos como predadores, que crescem livres, são ariscos e convivem em uma dinâmica de caçar ou se defender, de acordo com a habilidade de cada um. Esses aspectos são ignorados por Hergé nas caçadas de Tintim, que ao se deparar com os animais selvagens, apesar de evidenciar preocupação, consegue livrarse deles através da lógica e surpreendentes ideias, que soam como zombaria, um exemplo disso, é quando seu amigo canino Milu resolve enfrentar um leão e com apenas uma mordida ele arranca o rabo do felino, e com isso o leão passar a adular o cão. A história em quadrinhos também está repleta de ilustrações que remetem à política assimilacionista adotada nas colônias, tornando perceptíveis os conceitos “assimilados” e “nãoassimilados”, sendo aqueles os que corresponderam ao processo de aculturação imposto pelo colonizador e estes os que não se deixaram influenciar pelos elementos culturais oriundos da metrópole e mantiveram seus hábitos culturais de origem. Neste panorama, aos “assimilados” eram concedidos os direitos concernentes aos cidadãos metropolitanos, contanto que abdicassem à vida tribal. Na imagem que segue é possível identificar estas diferenças nas vestimentas dos autóctones IV. Política assimilacionista

Fonte: HERGÉ, 2008, p. 20

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Além de ser notória a diferença nas roupas, a imagem está carregada de estereótipos em seu diálogo, nela Tintim causa um acidente quando seu carro estraga no meio da linha férrea, e as pessoas saem do trem para criticá-lo, apresentando-se indivíduos assimilados, com roupas que se aproximam de um ideal europeu, ainda que estereotipados. A única mulher do quadrinho usa um vestido adornado com pele, em um país de clima equatorial, combinado com joias e chapéu, mas está descalça, bem como, um dos homens combina trajes típicos com gravata e chapéu. Outro aspecto relevante é a construção do diálogo, ao se reportar a Tintim para reclamar do acidente, a mulher mostra que um dos passageiros do trem se machucou, e diz “Óia só o qu’ocê fez no coitado do negrinho”, com esta fala o autor pode estar tanto zombando dos autóctones devido aos erros na construção da frase, ou ao utilizar a palavra “negrinho”, busca mostrar como os assimilados se portam, identificando o outro como negro, mas não se reconhecendo em seu conterrâneo, e tentando se aproximar do sujeito branco. Neste sentido, Fanon (2008, p. 40) ao tratar do caso do negro antilhano explica como ocorre o processo de assimilação para os autóctones “É que o antilhano é mais “evoluído” do que o negro da África: entenda-se que ele está mais próximo do branco; e esta diferença existe não apenas nas ruas e nas avenidas, mas também na administração e no Exército”, como o branco não reconhece nada na colônia como legítimo, e nega a existência de uma cultura à população, os indivíduos autóctones podem rebelar-se contra a metrópole ou acreditar neste discurso e buscar a cultura do outro para si. Para garantir o êxito do processo colonial os autóctones precisaram ser desfragmentados, são negados a eles identidade e cultura, o que mais uma vez Fanon (2008, p.46) expõe: “No caso do negro, nada é parecido. Ele não tem cultura, não tem civilização, nem um “longo passado histórico”. Todos os símbolos culturais e elementos que conectavam os autóctones ao seu território, o colonizador busca lhe tirar, cada símbolo foi descontruído, o que para muitos significou um estado de limbo cultural e os instigou a buscar referências no outro, neste caso o colonizador A necessidade da invenção é criada pela dialética e pela interdependência que ela impõe entre os vários contextos da cultura. Uma vez que “esgotamos” nossos símbolos no processo de usá-los, precisamos forjar novas articulações simbólicas se queremos reter a orientação que possibilita o próprio significado. (WAGNER, 2010, p. 105)

A negação de identidade e do reconhecimento como sujeito, torna a cultura daquele que nega aos autóctones a existência, uma possibilidade para a construção de novas articulações simbólicas. Contudo, nem todos os autóctones seguiram tal lógica, e através desta mesma perspectiva buscaram fortalecer a sua etnia e cultura. Apesar da história de Hergé também apresentar negros com roupas étnicas, nenhum personagem autóctone se mostra contra o processo de aculturação. Ao conviver com os autóctones, Tintim constrói-se eficaz na resolução dos problemas cotidianos da população, mas sem se preocupar com a cultura e realidade local V. Resolução de problemas locais: remédio

Fonte: HERGÉ, 2008, p. 30.

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Assim como, VI. Resolução de problemas locais: chapéu

Fonte: HERGÉ, 2008, p. 27.

Nas imagens acima, Tintim está na aldeia dos Bakanas onde, após resolver diversos problemas locais, torna-se importante para os aldeões, que passam a recorrer ao protagonista ao surgimento de impasses. Na primeira imagem Tintim resolve a situação com uma pílula de quinina, que é utilizada para o tratamento de malária, e induz os aldeões a acreditarem que é um grande curandeiro quando, em verdade, apenas possui recursos medicinais. E, assim, deparamo-nos com o retrato do autóctone ingênuo, que por desconhecer as substâncias medicinais utilizadas pelo europeu, crê no poder do protagonista, que por sua vez não desfaz tal crença. Na segunda imagem essa ingenuidade é lavada a um ponto tênue, em que nos questionamos se o autor deseja apenas retratar tal ingenuidade ou representar uma possível falta de inteligência, pois, dividir um chapéu ao meio e retratar duas pessoas felizes com esse resultado, configura deboche. Durante toda a história Hergé não preocupa-se em afirmar ou ilustrar a identidade dos povos autóctones, muito pelo contrário, ele se preocupa apenas em ressaltar a política assimilacionista, reforçando o que Woodward (2012, p. 11) afirma: “A identidade é marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças – neste caso entre grupos étnicos – são vistas como mais importantes que outras, especialmente em lugares particulares e em momentos particulares”. Damo-nos conta da nossa identidade através do outro, a partir de nossas diferenças em relação a ele. Na história da humanidade, algumas destas diferenças se tornaram razões determinantes para conflitos, preconceitos étnicos e até mesmo guerras, sendo exatamente esta diferença identitária a fortalecedora do colonialismo, pois, foram nas diferenças de identidade entre os grupos étnicos que o discurso de superioridade em relação ao outro se intensificou e solidificou a funcionalidade perversa entre colonizador e colonizado.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS As representações de África e dos autóctones criadas pelo autor estão carregadas de preconceito étnico e social, uma vez que a representação do outro-africano é figurada desde uma rede simbólica colonizadora. Representação de África e não do Congo, pois, apesar do título da história ser “Tintim no Congo” nos diálogos da mesma, em nenhum momento é dito que ele irá ou está no Congo, mas sim, na África. A edição brasileira da história conta com uma nota, em que é salientado que o autor reproduziu as atitudes colonialistas da época, e que o próprio garantiu que pintou o povo africano conforme os estereótipos burgueses e paternalistas do período. Assim, é possível questionarmo-

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nos se, estando ciente que estes eram olhares colonialista, paternalista e burguês, o autor tentou fazer uma crítica a esses olhares ou apenas corroborou com eles, pensando que a história teria maior aceitação do público se ele levasse em conta o que Charaudeau (2008) chama de “Saberes do Interpretante”, ou seja, levando em conta o conhecimento prévio do leitor para o qual a história era destinada, e idealizou que a sociedade para qual ele produziu a história compreenderia a conotação colonizadora. Mesmo que tal perspectiva fosse real, Hergé estaria condicionado às “Circunstâncias do Discurso” defendida por Charaudeau (2008), em que ao produzir um texto o “EU comunicante (EUc)” projeta um leitor, neste caso o “TU destinatário (TUd)”, mas aquele que lê tal texto, pode não estar de acordo com as circunstâncias discursivas que “EUc” produziu e o leitor por sua vez, interpretará o texto a partir de suas referências, tornando-se, assim, o “TU interpretativo (TUi)”, que construirá uma nova imagem do autor, o “”EU enunciador (EUe)”. Desta forma, Charaudeau nos permite indagar, que independente de Hergé ter construído uma história direcionada a um público apoiador do discurso colonial, ele não poderia ter garantias de que apenas este público teria acesso a história, do mesmo modo que, a política colonial era unanimidade em Bruxelas, ou que sua história não seria interpretada em outra ótica, como esta análise, e que seria compreendido que a produção apenas retratava um olhar, que não o seu. Na chegada de Tintim à África, ou ao Congo, o personagem é recepcionado pela população local com cartazes de boas-vindas e euforia, evidenciando a escolha de Hergé em levá-lo a este local uma vez que, se tratando da África a viagem poderia ter qualquer outro destino. A escolha pelo Congo foi embasada pelo fator colonial, o personagem belga visita a colônia de seu país, e ambos são beneficiados, afinal, expõe o êxito do sistema colonial belga, que consegue assimilar os autóctones a ponto do jornalista ser famoso na colônia, e a história conta com a garantia de leitores, o que se confirma, já que no ano seguinte a sua publicação em jornal, a história tornou-se livro. Além disso, a escolha evidencia a importância do processo colonial para a população das metrópoles, Hergé não opta por um país africano não colonizado ou colonizado por outra nação, ele leva Tintim até a sua colônia, e fortalece os estereótipos construídos por sua nação através de uma história em quadrinhos. Entretanto, o autor ignorou as consequências de sua história, tal como, não poderia imaginar o sucesso que seu personagem alcançaria mundialmente. Independente das condições de produção em que a história em quadrinhos foi escrita, Hergé sedimenta em sua materialidade discursiva uma ideologia em favor das políticas coloniais e preconceituosas, do contrário ela não teria construído tais diálogos ou ilustrações, que permanecem intactas até a atualidade.

REFERÊNCIAS CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. 2. ed. São Paulo, SP: Contexto, 2008. 256 p. FANON, Frantz. O negro e a linguagem. In: ___. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 33-52. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. PR: Positivo, 2009. xxiv, 2120 p.

4. ed. Curitiba,

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, SP: Centauro, 2006. 222 p. HALL, Stuart. The work of representation. In: _____. Representation: cultural representations and signifying practices. London/TheLondon/Thousand Oaks/New Delhi: Sage/The Open University, 1997. (Trad. Ricardo Uebel). HERGÉ. Tintim no Congo. 1º ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2008. 64 p. (Série As aventuras de Tintim).

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MAZRUI, Ali A.; WONDJI, Christophe (org.). História Geral da África – VIII: África desde 1935, Brasília: UNESCO, 2010.1272 p. SAID, Edward W. Territórios sobrepostos, histórias entrelaçadas. In: ___. Cultura e imperialismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p.33-98. WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo, Cosac Naify, 2010. 27- 48 e p. 75-123. WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

“TRIUNFO DOS PELOS”: UMA REFLEXÃO SOBRE IDENTIDADE, GÊNERO E SEXUALIDADE NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA Juliane Della Méa* (URI) Lizandro Carlos Calegari** (UFSM)

1. INTRODUÇÃO A sociedade pós-moderna trás consigo, além de diversas conquistas nas áreas da ciência, da tecnologia e da economia, muitos questionamentos sobre a fluidez dos valores humanos e sociais, tento em vista o consumismo desenfreado, a informação em alta escala e as relações dilaceradas. O tempo cronometrado passa a ser um valor de troca, assim como o espaço que é algo a ser visto, medido e materializado. A nova maneira de ver o mundo celebra o presente, unifica o espaço em um só tempo cronológico. O sujeito pós-moderno vive em uma era de ciberespaço, conectado à alta tecnologia, inserido na segmentação e na efemeridade. Sendo assim, as distâncias já não importam mais, pois o que está sendo apresentado é o fim da geografia em termos de espaço, sendo as fronteiras meras formas simbólicas e sociais, “a distância é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida” (BAUMAN, 1999, p. 19). Apesar dessa condição pós-moderna, a busca da identidade é um tema de ordem e fator social, cultural e coletivo, que envolve identificações externas em um confronto de si com o outro para se identificar como sujeito uno, desestabilizando quadros de referências que oferecem aos indivíduos um lugar estável e definido em seu meio social. Consequentemente, ocorre um choque entre as representações socialmente definidas e a identificação pessoal do sujeito, que é diretamente afetado pelas alterações sociais e culturais, provocando seu deslocamento individual. O sujeito pós-moderno possui uma identidade que se desarticula continuamente, sofrendo mutações e fragmentações, dando origem a novas políticas identitárias, que se encontram em transição e adaptação para com a sociedade atual. Segundo Stuart Hall, As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno. A assim chamada “crise de identidade’’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (1998, p. 7)

Esse processo de adaptação à contemporaneidade, ao qual Hall se refere, caracteriza-se pela expansão de múltiplos campos sociais autônomos, com representações sociais acerca de gênero, identidade de gênero e sexualidade, bem como as inserções diferenciadas do travestismo. O conto Triunfo dos pelos, de Aretusa Von, narrativa vencedora do concurso organizado pelas Edições GLS, da editora Summus (2002), permite uma reflexão sobre as representações sociais acerca de gênero, identidade e sexualidade, colocando em xeque os conceitos de binários construídos

Graduada em Letras-Espanhol pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen. Professora da rede Pública e Privada do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Gestão Estratégica de Pessoas. Especialista em Literatura Brasileira. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Frederico Westphalen. E-mail: [email protected]. ** Este trabalho foi apresentado à disciplina "Seminário de Estudos Avançados: Pós-Modernidade e Pós-Modernismo na Literatura" ministrada em agosto de 2015 no PPGL-URI/FW pelo Prof. Lizandro Carlos Calegari (UFSM). *

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historicamente e legitimados socialmente. Isso porque o conto, além de desestabilizar os conceitos de sexo e gênero, denunciando as relações de poder que hierarquizam os espaços geográficos e discursivos, expõe a arbitrariedade patriarcal, que aprisiona a própria condição humana, denunciando a opressão de mulheres e de homossexuais. Assim, todas as certezas, os sólidos construídos na modernidade, adquirem uma forma líquida, flexível, mutável, que pode, a qualquer momento, fluir para o desejado.

ENTORNO NO CONTO TRIUNFO DOS PELOS Com a ascensão da tecnologia global, é impossível ignorar as imensas transformações sociais, culturais e políticas dentre a humanidade. O que era tido como anormalidade (homossexuais, transvestis, gays, lésbicas,...), hoje emerge como individualismo. Nesse sentido, a busca desenfreada pela inclusão afasta a noção de definido e definitivo, pois não existe nem no mundo heterossexual, nem no mundo gay, uma identidade fixa, imóvel, transmutável. Ambas as diversidades são flexíveis, como ocorre na literatura, na cultura e na arte. O queer permanece à margem do padrão social imposto, o que contribui para que sistemas de exploração e exclusão se perpetuem até os dias atuais, é nessa fluidez de quebra de parâmetros e paradigmas que o queer sustenta atenções: Queer é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante – homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”, do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomoda, perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2004: p. 7-8)

No conto Triunfo dos pelos, a narradora/personagem começa dizendo: “Hoje acordei homem”. No entanto, não age conforme tal gênero. Ao acordar com um pênis, possui réstias da feminilidade que lhe acompanhou durante todo o tempo em que fora mulher. Nas linhas seguintes, recorda-se do pedido que fez a Oxum na festa de casamento, que esteve e onde pegou o buquê da noiva, para tentar justificar o corpo de homem com as insatisfações e tristezas de esposa que horas antes se consola em um mero pedido, sua vida infeliz, como sugere ao dizer: “agora apanho do marido, só porque engordei e não dou o loló” (VON, 2000, p. 15). A metamorfose da protagonista ocorre em um período cronológico curto, porém, sua realização é notória no decorrer da narrativa, destacando que, enquanto mulher, sua aparência física estava deplorável e, ao se transformar no estereótipo do homem desejado, possui todo o poder físico e social que o gênero masculino lhe proporciona: “tenho um pau lindo de 21 centímetros [...]. Agora como homem sou uma paisagem! Cabelos escuros, bem curtos, pescoção poderoso, corpo musculoso sem aquelas ridículas dobras de gordura (VON, 2000, p. 15-16). Descobrindo-se homem, abandona sua casa, filhos e marido e parte para a rua, em busca de aventuras sexuais. Declara ela (agora transfigurada em ele): “estava louca para testar minha nova condição, ter mil opções, transar com todo mundo, aceitar qualquer proposta em que eu pudesse exercitar meu novo instrumento” (VON, 2000, p. 16), e sai de casa rumo às ruas de São Paulo, sendo admirada(o) por onde passa. “Pego uma lotação na rua Yervant Kissadjikian, lá no Jardim Consórcio, bairro pobre da zona sul de São Paulo, onde nasci e sempre morei. Vou para os Jardins, zona chique da cidade [...] descemos a pé a rua Augusta, antes glamorosa, hoje toda decadente e pichada. De manhã, é mais deprimente, mais crua, as boates fechadas, as putas dormindo (VON, 2000, p. 16-17). Em meio à transgressão de gênero, observa-se a mutação do espaço social urbano, onde periférico e central comungam da mesma demanda pela legitimação das subjetividades marginalizadas

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pela matriz heterossexual: os anseios e desejos sexuais de sujeitos que se apropriam do discurso (literário) para expor sua posição, enquanto membro de uma sociedade que classifica e condena sexo-gênero-desejo. No conto em análise, a protagonista utiliza-se de performances, que não têm nitidez de escolhas e/ou opções, sendo um ato involuntário no decorrer da narrativa, suas ações decorrem de modo automático, submetidas a linhas de discurso e poder. Nas palavras de Judith Butler: O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado, […] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.(BUTLER 2010, p. 25), 

Aspectos que produzem a falsa noção de estabilidade, em que a matriz heterossexual estaria assegurada por dois sexos fixos e coerentes, os quais se opõem como todas as oposições binárias do pensamento ocidental: macho x fêmea, homem x mulher, masculino x feminino, pênis x vagina etc. Essas desconstruções binárias são observadas na sequência dos fatos, quando, ao encontrar uma bela mulher, a narradora/protagonista sente-se atraída sexualmente por ela, sem tremeluzir, convida-lhe para uma aventura, pois, na condição de homem, isso é extremamente normal e aceitável. Após o ato sexual culminado, decepciona-se com seu desempenho como homem, porque não consegue satisfazer sua parceira: “Fico naquela depressão pós-coito, sem graça, visto as calças [...]. Quis dar uma de machinho e me danei” (VON, 2000, p.18). Neste momento, a personagem nota que, na verdade, o gênero masculino não é garantia de ter uma satisfação sexual plena, mesmo que este lhe proporcionasse total liberdade para buscá-la. Assim, não desiste de retribuir através da sexualidade tudo o que lhe foi mal atribuído por parte do marido. Aretusa Von deixa evidente nessa narrativa à representação do masculino, como ser superior, másculo, detentor de toda liberdade e representante legítimo do poder – aos olhos da sociedade – características postas em contradição pela protagonista. Prosseguido seu itinerário de experimentos sexuais, depara-se com um guarda de trânsito que demonstra interesse por ele/ela: “um guarda de trânsito me olha interessado, parece disposto a me pagar um cachorro-quente com purê de batatas. “Ah, homens em uniformes” (VON, 2000, p. 18), esse fora apenas um sexo passivo em troca de roupas. Nesse momento, a identidade sexual da protagonista volta à tona quando a narradora afirma que, após a relação sexual anal (antes repudiada), quando realizada com carinho, é motivo para que a própria se apaixone. “Minha alma continua com a velha mania das mulheres. É só alguém te comer direitinho que pronto, o coração se entrega que nem pizza no sábado à noite” (VON, 2000, p. 19). Satisfeita e realizada, segue com seu ideal – permitir-se a tudo. Uma suposta identidade feminina novamente ressoa ao passar na zona de travestis e sentir saudades de suas roupas de mulher. Ao entrar um boteco do bairro Marquês, encontra uma manicure carente, cuja fantasia era transar com os papéis de gênero invertidos, que concorda trocar as roupas com ele, emprestando ainda uma peruca loira, batom e pó compacto para completar o visual, “Vamos ao banheiro trocar as roupas. [...] Encho a parte de dentro do top de papel higiênico úmido, com o aparelho de barbear que a moça sempre carrega na bolsa dou um trato geral nos pelos da perna” (VON, 2000, p. 19). Depois de conseguir as roupas com a mulher, a personagem a deixa porque não está interessada em ter relações com uma pessoa do sexo feminino: “não estou interessada, quero rua” (VON, 2000, p. 19). Sua vontade agora era sair como travesti, usar roupas femininas, novamente. A protagonista deseja viver suas identidades transitórias e as diversas formas de sexualidade que a elas é permitido, enquanto transita livremente pelas fronteiras escorregadiças de gênero e sexualidade. O modo hegemônico binário de acepção do corpo sexuado é transitório na medida em que seus desejos sexuais são concretizados e confidenciados na narrativa, tal qual a categorização do desejo erótico em heterossexual, bissexual e homossexual. Toda essa classificação de identidades biológi-

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cas e suas divergências são compreendidas para Thomas Laqueur (2001) como um jogo de domínio hierárquico, em que o masculino se sobrepõe ao feminino: “Uma anatomia e fisiologia de incomensurabilidade substituiu uma metafísica de hierarquia na representação da mulher com relação ao homem” (LAQUEUR, 2001, p. 17). Apesar de transfigurada em homem, a voz feminina continua ao longo da narrativa, declinando-se no feminino, porém alteram-se as posições sociais. Discorrendo, a narradora segue pela rua onde as travestis que ali fazem ponto a ameaçam: “- Ei, aqui é o meu ponto! - berra um travesti alto e negro [...] O negócio estava ficando feio para o meu lado. Os amigos do negro começam a se juntar contra mim e eu sozinha e abandonada com o pinto entre as pernas (VON, 2000: p. 20)”, fato que provavelmente resultaria em uma briga, se não fosse o carro que para e a manda entrar. Quem está ao volante, para surpresa, é o seu marido, aparentemente frequentador assíduo da zona, pois pergunta se ela é nova por ali. Propõe o motorista um hotelzinho próximo ali. Nesse momento, todas as memórias de agressões sofridas pelo marido retornam com intensidade, e as identidades feminina e masculina da personagem entram em conflito, pois o medo e a raiva são maiores que seu desejo, porém o segue, refletindo que como homem pode revidar a violência. “Estou besta. Boquiaberta. Não consigo dizer nada. [...] Muda, sigo o gordo do meu marido pela escada ensebada do hotel. O velho medo que tenho dele me assombra e esqueço que estou homem, que posso sair na porrada e quebrar os dentes do infeliz” (VON, 2000, p. 20). Chegando ao quarto, mais uma surpresa lhe reserva o destino, o marido tira a calça, e está vestindo seu conjunto novo de lingerie negro. A inversão de papéis é completa, quando o marido apresenta roupas íntimas femininas. Parece que a ocasião é especial para ele. Desfilando as banhas trêmulas, pergunta: - Gosta? Roubei esta calcinha da vaca da minha mulher. Ai me dá um tesão! Fica de quatro na cama, com o bundão branco empinado, implora. - Faz de mim sua mulherzinha, faz... (VON, 2000, p. 21).

Nesse momento, o homem, que até então tem sido o detentor de todo o poder, acaba por apresentar seu desejo sexual com alguém que julga ser desconhecido, deixando de reprimir o que lhe proporciona prazer, nada parecido ao seu comportamento social. Seu desejo homossexual é revelado, rompendo com a matriz heterossexual. A partir das diversas funções, experiências e novas identidades, a personagem se identifica como parte absoluta do universo. “Sou homem, sou mulher, sou gay, sou travesti, sou o universo” (VON, 2000, p. 21), e aproveita a oportunidade para vingar-se do marido: “meu membro acorda de repente, assanhado com a possibilidade de sodomizar aquele homem que tanto me fez sofrer” (VON, 2000, p. 21). Finalmente ela se dá por vingada, após exaurir sexualmente o próprio marido: “horas de selvageria depois, deixo o homem lá, acabado, prostrado” (VON, 2000, p. 21). A protagonista não sente apenas como mulher ou homem, mas como um sujeito fragmentado, reunindo em si várias identidades, que pode ser chamada de identidade queer, revelando a instabilidade do sujeito inserido na sociedade, na desconstrução das dicotomias de sexo, gênero e sexualidade.

2. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao refletir sobre o conto Triunfo dos pelos, escrito por Aretusa Von, é possível destacar na narrativa a subversão da identidade de sexo, gênero e sexualidade que condizem com uma crítica queer, pois desconstrói as dicotomias de sexo, gênero e sexualidade, salientando que as identidades do sujeito pós-moderno são instáveis. Segundo Louro (2007):

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Somos sujeitos de muitas identidades. Essas múltiplas identidades sociais podem ser, também, provisoriamente atraentes e, depois, nos parecem descartáveis; elas podem ser, então, rejeitadas e abandonadas. Somos sujeitos de identidades transitórias e contingentes. Portanto, as identidades sexuais e de gênero (como todas as identidades sociais) têm o caráter fragmentado, instável, histórico e plural, afirmado pelos teóricos e teóricas culturais. (2007, p. 12)

A ruptura da identidade fixa abre espaço para amplas possibilidades afetivas. O que a narradora demonstra com a passagem do conto, que dá origem ao título. “Uma penugem preta recobre todo o meu rosto. De nada adiantaram as depilações, anos de luta com pinças e águas oxigenadas para disfarçar o buço. Os pelos haviam vencido triunfalmente” (VON, 200, p. 16). Os pelos são alusão ao gênero masculino da sociedade patriarcal, que reflete o poder, o domínio, a satisfação de realizar todos os desejos contidos, sem recriminação ou julgamento. Ideia que fortalece a suposta incapacidade feminina em construir uma subjetividade para além do estereótipo da passividade. A quebra dos binarismos desmantela a ficção dos gêneros masculino e feminino e das sexualidades hetero e homo. Essa quebra é notória, no momento em que a protagonista (em corpo masculino), posterior à insatisfação da primeira relação sexual, com uma mulher, afirma: “Como mulher eu podia dissimular, mas como homem não dá” (VON, 2000, p. 18). Essa metamorfose, apesar de não inteligível racionalmente, é aceita pela narradora/personagem como natural, o que a motiva em suas aventuras sexuais. Dentro dessa fragmentação binária, é interessante destacar o campo geográfico centro/periferia, e o campo social público/privado. A desigualdade no espaço urbano reflete a iniquidade entre homens e mulheres perante a globalização e seu constante processo de hibridização, quebrando as fronteiras geográficas, sociais e espaciais, pois, segundo Bauman (1999), “a distância é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida” (BAUMAN, 1999, p. 19), sendo que no conto a protagonista, fragmenta-se em diferentes esferas sociais e sexuais, o que na sociedade patriarcal, a associação da mulher ao espaço privado (lar) e do homem ao espaço público (sociedade), no conto se mescla trazendo transformações em diferentes espaço geográficos que interagem e com distintos desejos. Aretusa Von deixa explícito nessa narrativa, o quão importante, plausível e opressivo é a reflexão sobre a diferença sexual dentro do caráter cultural, social e empírico, aos quais homens e mulheres se submetem em prol das relações de poder que hierarquizam os espaços, os discursos e os desejos.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.  BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª Ed, 2010. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro: Rio de Janeiro: DP&A, 1998. LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Trad. Vera Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho. Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. _____. O corpo educado pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. VON, Aretusa. Triunfo dos pelos. In: ______. Triunfo dos pelos e outros contos gls. Prefácio de João Silvério Trevisan. São Paulo: Summus, 2000.

O ESPAÇO E A MEMÓRIA CONTRUINDO A IDENTIDADE EM OS CUS DE JUDAS Letícia Moraes Marques* (Universidade Feevale) Dr. Daniel Conte** (Universidade Feevale)

1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA Ao largo dos vários séculos de colonização europeia, os impérios políticos foram perdendo força no final do século XIX e início do século XX em África. O sistema colonial encontrava-se em declínio nos anos 60, e no final dos anos 70, desaparecera de maneira considerável, principalmente na África do Sul, que já havia conquistado independência estando livre do controlo Europeu. A independência de um vasto território colonial teve como influência as circunstâncias locais, além do “ [...] aproveitamento das mesmas por líderes africanos hábeis, apetrechados com uma oportuna ideologia anticolonial. ” (FAGE, 2014, p.477). Nessa sequência, a história da descolonização em África é referida, principalmente, pela relação com o desenvolvimento dos movimentos nacionalista, mais em específico a negritude, o pan-africanismo e o pan-islamismo. As potências coloniais passaram a se posicionar de forma diferente com relação à África, a partir do século XX, pois é neste período que vários acontecimentos históricos tanto na Europa quanto na própria África acabam por influenciar as transformações no continente. As duas guerras mundiais de 1914-1918 e 1939-1945 agiram como propulsoras nesse processo de descolonização em África, já que a Europa sofre um grande desequilíbrio econômico, abalando notoriamente a confiança Europeia na preservação do domínio Africano. É através dessas circunstâncias que os europeus começam a perceber com “ [...] uma rapidez cada vez maior em reconhecer que o sistema colonial continha a sua própria destruição, dado que civilizar era um dos seus objectivos expressos e sem dúvida a sua justificação moral. ” (FAGE, 2014, p.478). Por mais que os europeus quisessem, não puderam ignorar o fato de que o regime colonial contribuiu para a formação educativa em África. Até mesmo a colônia de menor significação tinha um sistema de escolarização, com objetivo de tornar o africano mais eficiente com intuito de melhorar a exploração das riquezas da colônia. Mas, além disso, quase toda a accção dos governantes coloniais em África – criação de novos sistemas de controlo político, propagação do cristianismo, desenvolvimento de novos meios de transporte, introdução de novas formas de agricultura ou de exploração mineira, aproveitamento de fontes de energia, instalação de novas indústrias e tecnologias, exploração da economia monetária e de mercado e, talvez mais importante, a procura de mão-de-obra assalariada para estas e muitas outras actividades – foi em sentido geral profundamente educativa. (FAGE, 2014, p.478).

E é a partir dessas ações que o poderio europeu começa a se desmantelar em África, já que o colonizado começa perceber que todo aquele sistema político implantado pelo colonizador pode ser realizado por africanos para africanos. Os países colonizados almejavam obter a própria identidade nacional, a própria independência, resumindo, desvincular-se da metrópole. A guerra ultramar de Independência de Angola, com data entre, 1961-1974, teve início, com a recusa da colheita forçada do algodão, e com repressão a isso veio a opressão por parte dos portugueses. A partir dessa resistência embrionária, a ditadura Salazarista dá início a Guerra Ultramarina, reprimindo os movimentos de libertação, enviando Graduanda em Letras, Universidade Feevale, Brasil. E-mail: [email protected] Doutor em Letras, Universidade Feevale, Brasil. E-mail: [email protected]

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tropas para as colônias em África, com objetivo de manter o império sobre as províncias – Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Moçambique – que buscavam através dos movimentos de libertação a independência. Essa autonomia já era reconhecida pela ONU, mas a metrópole insistia em manter-se através de seu regime colonialista. Angola, com ajuda das milícias de frente de libertação ganha força e acaba contribuindo também com a autonomia das outras províncias. A queda da ditadura Salazarista vem logo em seguida com a Revolução dos Cravos, no ano de 1974 que, pôs fim ao sistema colonialista, opressor e ditatorial em que vivia Portugal e suas ex-colônias. O longo período de colonização e a Revolução dos Cravos deixaram marcas devastadoras tanto no território português quanto no território Africano, determinando, portanto, uma modificação e uma reinterpretação das identidades desses territórios. Após a Revolução dos Cravos, Portugal e suas ex-colônias iniciaram um processo de reconstrução da identidade nacional. Esse pensamento foi disseminado de maneira expressiva ante a sociedade, de forma a modificar a literatura dos autores lusitanos e africanos. Entre os anos de 1926 até 1974, Portugal viveu um período de imposição ditatorial, que limitava e impedia ato artístico de se manifestar, conforme sua vontade, principalmente no âmbito da literatura. Essa imposição também se fez em África – pois já existiam grupos de intelectuais nas colônias africanas desde 1940 – mas de forma mais agressiva e opressora. Esse processo iniciou-se através da literatura, realizada por escritores, lusitanos e africanos, que em sua maioria participaram na guerra de libertação. Livre das amarradas da ditadura, os escritores apropriam-se do contexto histórico da guerra para construção de uma literatura contemporânea engajada na reconstrução da identidade nacional, procurando restabelecer a identidade de nação por meio de novas práticas culturais. Entre esses autores, destaca-se António Lobo Antunes, que alguns anos após ter participado ativamente na guerra de libertação em Angola, como oficial do exército português, publica o romance Os Cus de Judas, em que narra os fatos vividos na guerra de forma perspicaz e devastadora. Como a base teórico crítica, apoia-se em BARCHELARD (2000), BAUMAN (2005), HALBWACHS (1990) e PESAVENTO (1999), a narrativa revela de maneira ácida e áspera às barbáries da guerra e as experiências de um narrador-personagem, marcada pela brutalidade e pela morte. O texto literário apresenta um entrelaçamento entre espaço e a memória, colocando em questionamento a identidade do narrador-personagem, bem como a identidade da nação Portuguesa, que durante um longo período da história viveu sob o prestígio das descobertas marítimas, além do seu papel de relevo com relação aos movimentos literários. Esses dois fatos contribuíram significativamente com um ideário nacional de descobertas gloriosas e de conquistas valorosas, que se vê esfacelado após a Revolução dos Cravos e com o fim do regime colonialista. Destaca-se também, que a identidade possui papel importante na representação do fato histórico na narrativa literária de António Lobo Antunes, a qual ambiciona, além de preservar a história, resgatar a memória na construção das referências do imaginário português e de seu arranjo simbólico ficcional. O escritor define e ressignifica um período da história de seu país e de uma de suas colônias de forma moderna e cítrica, contribuindo com a legitimidade da história através da narrativa literária. A construção ficcional de António Lobo Antunes tem o espaço e a memória como elementos fundamentais na reconstrução da identidade nacional lusófona no contexto pós-colonial. Essa reconstrução se faz através do diálogo entre história e literatura, que deve ser analisado a partir do contexto em que ele foi produzido. A narrativa apresenta a memória individual do narrador que se reproduz coletivizada. Para Halbwachs a memória não é não é um fenômeno de cunho pessoal, ela é um fenômeno de cunho coletivo e social, pois ele acredita que a memória é construída de maneira coletiva, e que está submetida a transformações, flutuações e a constantes mudanças. A memória representa o passado, mas não podemos esquecer que o passado nunca é individual, e que ele faz parte de um indivíduo que está inserido em um contexto social, seja ele nacional, escolar ou familiar. Sendo assim, é possível estabelecer uma relação de sentido entre o

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espaço, memória e identidade. E essa relação se faz à medida que o espaço e a memória criam condições de desenvolvimento para a criação da identidade. A identidade tornou-se tema de grande preocupação das sociedades contemporâneas. Gerando uma busca incessante pela representação/construção das identidades nacionais, tanto individuais quanto coletivas. Bauman observa que essa contemporaneidade vive em um tempo “liquido”, em que “ A idéia de “identidade” nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o “deve” e o “é” [...] ” (BAUMAN, 2005, p.26). Esse tempo “líquido” é identificado por Bauman, como “Modernidade Líquida”, que é marcada pelas amplas transformações da sociedade e pelo surgimento das identidades heterogêneas, bem como a fragmentação do indivíduo.

2. A NARRATIVA No romance de Antunes, essa representação/construção de identidade se manifesta por meio dos elementos de espaço e memória que se organizam em um exercício de aprendizagem na busca da reconstrução da identidade. Em Os Cus de Judas a problematização é implicada por meio da identidade nacional portuguesa, que se vê em crise de pertencimento através do narrador-personagem que ironiza e repele sua identidade portuguesa carregada de ideais épicos, religiosos, familiares e nacionalistas esfacelados com o fim do colonialismo. Esse sujeito retorna ao seu país de origem, sem suas referências ideológicas, ele estabelece novas convicções e não se identifica mais com a sociedade com a qual pertencia. Como afirma o narrador: “Não te pertenço e nem me pertences, tudo em ti me repele, recuso que seja este o meu país, eu que sou homem de tantos sangues misturados por um esquisito acaso de avós de toda a parte [...]” (ANTUNES, 2010, p.77) O estudo da representação/construção da identidade através do espaço e da memória se faz necessário, visto que todo sujeito possui inúmeras relações com os espaços em que viveu ou em que ainda vive, mas essas relações só são construídas imageticamente através da memória e de suas significações. Compreender que o espaço é um dos elementos fundamentais das principais categorias da produção literária é de suma importância, pois o espaço marca as transformações estéticas da narrativa, além de ter relação com a forma com que a memória é entendida em diferentes contextos sociais. Juntamente com suas representações, o espaço apresenta-se como um desafio, pois como observa Pesavento o espaço é por excelência, o lugar “onde as coisas acontecem”. O espaço deteriora consequentemente a memória e a identidade do sujeito em Os Cus de Judas, ele desconstrói o narrador-personagem provocando o não pertencimento do sujeito, transformando-o em um ser flutuante que como ele mesmo afirma: “flutua na estreiteza assustada do presente” (ANTUNES, 2010, p.41). Esse “presente estreito” é a condição que determina a identidade individualista, solitária e afastada do narrador, que não consegue estabelecer relações, individualidade que fica evidente em todo o seu diálogo com Maria José (interlocutora), que em momento algum se pronuncia. Segundo Bachelard nós “ [...] habitamos nos espaços de acordo com todas as dialéticas da vida, que nos enraizamos, dia a dia, num, ‘canto do mundo’” (BACHELARD, 2000, p.24). É o enraizamento em África que constrói a identidade esfacelada e fragmentada do narrador em Os Cus de Judas, gerando a sentimento de não pertencimento do narrador-personagem com relação à pátria. Dessa forma, a identidade em conflito do narrador-personagem apresenta-se com o reconhecimento do sujeito ao colocar-se como um ser deslocado que não reconhece suas raízes e que não pertence a lugar algum. Como o próprio narrador observa: “Flutuo entre dois continentes que me repelem, nu de raízes, em busca de um espaço onde ancorar...” (ANTUNES, 2010, p.182) São os espaços narrados e os fragmentos da memória que constroem a identidade deteriorada do sujeito em Os cus de Judas, pois o narrador sente-se deslocado e marginalizado em seu próprio país de origem ao retornar da guerra. O pertencimento com relação ao território português e

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a sua identidade cultural, não estão presentes no narrador. As experiências vividas antes e depois da guerra se misturam e se reapresentam por meio de uma Lisboa oprimida e melancólica, que como afirma o narrador: “ [...] Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilhão cada vez mais atenuado de marchas marciais da despedida, que a lembrança paralisa nas atitudes do espanto”. (ANTUNES, 2010, p.18) A memória do narrador-personagem também apresenta-se em conflito, mas ele procura preencher as lacunas de sua memória através dos elementos que contribuem com construção imagética de seu antigo espaço. Reunindo as características religiosas da casa de sua infância com o “espectro de Salazar”, pois como afirma Halbwachs “ [...] é porque com um esforço suficiente de atenção eu poderia, em minhas lembranças deste pequeno mundo, reencontrar a imagem do meio onde estava [...] ” (HALBWACHS, 1990, p.59): O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Espírito Santo corporativo, salvando-nos da idéia tenebrosa e deletéria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noção sinistra de democracia, primeiro passo para o desaparecimento, nos bolsos ávidos de ardinas e marçanos, do faqueiro de cristofle. O Cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da Conferência de São Vicente de Paula, e, por inerência, dos pobres domesticados. O desenho que representava o povo em uivos de júbilo ateu em torno de uma guilhotina libertária fora definitivamente exilado para o sótão, entre bidés velhos e cadeiras coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistério que acentua as inutilidades abandonadas. (ANTUNES, 2010, p.13).

A identidade épica e decadente da nação portuguesa é ironizada juntamente com a ditadura salazarista, configurando o sentido das lembranças do narrador reproduzidas: De modo que embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grátis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, conseguindo, num arroubo de fervor patriótico, ser acotovelada por uma multidão agitada e anónima semelhante à do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, imponente, à sua própria morte. (ANTUNES, 2010, p.14)

Percebe-se também que o sentimento hostilidade é absorvido pelo narrador-personagem principalmente em Lisboa, pois é lá que o médico sente-se marginalizado e passa a perceber a dimensão dos equívocos históricos cometidos pela administração colonial portuguesa. Subitamente sem passado, com o porta-chaves e a medalha de Salazar no bolso, de pé entre a banheira e o lavatório de quarto de bonecas atarraxados à parede, sentia-me como a casa dos meus pais no verão, sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, móveis encostados aos cantos cobertos de grandes sudários poeirentos, as pratas emigradas para a copa da avó, e o gigantesco eco dos passos de ninguém nas salas desertas. (ANTUNES, 2010, p.18).

O narrador não se reconhece mais após a guerra, e vive uma vida suspensa a espera do pior: Talvez que quando eu for velho, reduzido aos meus relógios e aos meus gatos num terceiro andar sem elevador, conceba o meu desaparecimento não como o de um náufrago submerso por embalagens de comprimidos, cataplasmas, chás medicinais e orações ao Divino Espírito Santo, mas sob a forma de um menino que se erguerá de mim como a alma do corpo nas gravuras do catecismo, para se aproximar, em piruetas inseguras, do negro muito direito, de cabelo esticado a brilhantina, cujos beiços se curvam no sorriso enigmático e infinitamente indulgente de um buda de patins. (ANTUNES, 2010, p.11). As palavras do narrador coadunam com Pesavento, quando observa que a “A literatura, ao “dizer a cidade”, condensa a experiência do vivido na expressão de uma sensibilidade feita texto”. Ao narrar aspectos da cidade o narrador aponta para o entrelaçamento das imagens com os discursos da cidade, uma vez que é possível conduzir um aprofundamento entre o contexto da cidade em trans-

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formação com as relações entre a história e a literatura. Como observa-se, no fragmento abaixo que exemplifica os aspectos apresentados com relação a descrição da cidade (espaço): [...] Lisboa, entende, é uma quermesse de província, um circo ambulante montado junto ao rio, uma invenção de azulejos que se repetem, aproximam e repelem, desbotando as suas cores indecisas, em rectângulos geométricos, nos passeios, não, a sério, moramos numa terra que não existe, é absolutamente escusado procurá-la nos mapas porque não existe, está lá um olho redondo, um nome, e não é ela, Lisboa começa a tomar forma, acredite, na distância, a ganhar profundidade e vida e vibração [...]. (ANTUNES, 2010, p.92).

O narrador de Os Cus de Judas se sente deslocado dentro do seu país, ele não possui a sensação de pertencimento à cultura de seu país. A narrativa de Lobo Antunes, possui uma riqueza de imagens marcantes e originais, que são apontadas pela violência, lirismo, acides e ironia, que fornecem legitimidade a essa narrativa fragmenta. As construções imagéticas da narrativa se concretizam através do espaço e da memória. Esse narrador-personagem se manifesta como um sujeito fragmentado que ao longo da narrativa sente o espaço em que está inserido cada vez mais confuso e conflituoso. Sua inquietação existencial se manifesta através da rejeição dessa nação e da ironia com relação ao modo com que os portugueses assinalavam sua presença através de seu conservadorismo vazio, de suas aventuras passadas, que de certa forma só vieram a devastar a cultura de suas ex-colônias. Como afirma o narrador: [...] Em toda parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presença aventureira através de padrões manuelinos e de latas de conserva vazias, numa subtil combinação de escorbuto heróico e de folha-de-flandres ferrugenta. (ANTUNES, 2010, p.21-22).

A identidade é marcada por meio de símbolos (SILVA, 2000), esses símbolos são representados na narrativa através das passagens em que o narrador revela as peculiaridades de Lisboa e que personificam a identidade esfacelada e deteriorada da nação lusitana: Entenda-me: sou um homem de um país estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e reflectem umas às outras nas fronteiras do azulejo e nos ovais dos lagos, e a ilusão de espaço que aqui conheço, porque o céu é feito de pombos próximos, consiste numa magra fatia de rio que os gumes de duas esquinas apertam, e o braço de um navegador de bronze atravessa obliquamente num ímpeto heróico. (ANTUNES, 2010, p.31).

A precariedade da guerra e as situações desumanas reforçam o questionamento do narrador com relação à motivação de lutar a favor de uma pátria pela qual não se sente pertencente. O narrador questiona e reforça o sentimento de não pertencimento à pátria se perguntando quem realmente era o seu verdadeiro inimigo, Lisboa ou o cu de Judas: A cada ferido de emboscada ou de mina a mesma pergunta aflita me ocorria, a mim, filho da Mocidade Portuguesa, das Novidades e do Debate, sobrinho de catequistas e íntimo da Sagrada Família que nos visitava a domicílio numa redoma de vidro, empurrado para aquele espanto de pólvora numa imensa surpresa: são os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os americanos, os russos, os chineses, o caralho da puta que os pariu combinados para nos foderem os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de pó vermelho e de areia [...] (ANTUNES, 2010, p.40).

O que percebemos é que a identidade do sujeito português após 1975 vai, dentro de um processo erosão-colmatação, ressignificando-se a partir da revificação do espaço da guerra anticolonial. Espaço que se desmontou em movimento desesperançoso quando pensamos no sujeito e na sua habitação do espaço histórico e de sua materialidade.

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REFERÊNCIAS ANTUNES, António Lobo. Os Cus de Judas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. BARCHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/Zygmunt Bauman; trad, Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2005. FAGE, J. D., História da África. Lisboa: Edições 70, 2014. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Trad. Laurent Léon Schaffte. 2ª ed. São Paulo: Edições Vértice, 1990. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O Imaginário da Cidade. Porto Alegre Ed Universidade - UFGRS, 1999.

ACONDIÇÃO FEMININA EM BALADA DE AMOR AO VENTO DE PULINA CHIZIANE E EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO DE MIA COUTO Lilian Raquel Amorim de Quadra* (URI) Ana Paula Teixeira Porto** (URI)

A condição feminina em África pouco tem mudado, desde sua independencia de Portugal em 1975. Gomes (2013, p. 1) comenta que em vários países de pós-conflito o número de mulheres no governo cresce a cada ano, no entanto, continua havendo uma grande “discrepância entre as políticas e a prática. Uma vez que mulheres africanas que representam o poder político a nível local e nacional continuam a não ter autoridade e a depender quase sempre das decisões da política em grande parte gerida por homens“. Condição esta, historicamente, já conhecida por se tratar de uma sociedade patriarcal, e na grande maioria, com muitas tribos internas com tradições culturais, ainda muito presentes na sociedade. Sobre a questão da mulher, Aires comenta que esta é representada como figura essencial da sociedade, incorporando as contradições das sabedorias ancestral e moderna, mas que também surge como, vítima das injustiças e contradições de uma sociedade patriarcal, colonial e pós-colonial, que as vota a papéis de sobrevivência na sua comunidade, justificados através de crenças e de uma dimensão onírica que legitima e alivia a vida – a mulher que espera pelo regresso, que suporta os maus tratos, que suporta o mundo. Surgem representações de mulheres com diferentes características: prostitutas, virgens, velhas e novas, casadas e viúvas, perigosas, sedutoras, misteriosas, vítimas de violação e abusos, portuguesas ou moçambicanas, submissas, rebeldes e independentes, sábias, mães, esposas, conservadoras da tradição, instauradoras de uma nova realidade movida pelo sonho (AIRES, 2014, p.202).

Na sociedade moçambicana, especialmente as pertencentes ao sul deste país, é eminentemente patriarcal e neste sentido a escrita literária se torna “muitas vezes um grito de protesto, uma denúncia, um relato de experiência que se volta para o íntimo universo feminino“ (FREITAS, 2014, p.2). E é apenas na primeira metade do século XX que começa-se compreender e observar o papel social da mulher, frente a economia, politica e religião dentro da sociedade moçambicana. No entanto mesmo sendo pensada a questão da mulher, “os ecos do passado são retidos, em que por um lado a mulher é detentora de uma independência econômica, e por outro, estar submetida a determinados ritos de passagem para ser completamente aceita na sociedade” (COSTA; GUEDES, 2010, p.1), ou seja, mesmo lutando pelos seus direitos, a mulher africana sempre depara-se com a tradição patriarcal, ainda muito presente no cotidiano e na vida dos africanos. Nesse sentido, a partir deste trabalho pretende-se abordar a representação da mulher africana em narrativas do século XXI, considerando que as obras são instrumentos para representar a sociedade africana. E ainda observar como se dá criticamente e historicamente a construção destas personagens. Com isso, a análise consiste na abordagem comparatista de dois romances: Balada de amor ao vento, de Paulina Chiziane e O último voo do flamingo, de Mia Couto.

Mestranda do Mestrado em Letras – Literatura Comparada, URI, Campus de Frederico Westphalen, Brasil E-mail:lilian.quadra@yahoo. com.br ** Doutora em Letras. Professora do Mestrado em Letras – Literatura Comparada, URI, Campus de Frederico Westphalen, Brasil E-mail:[email protected] *

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Esta abordagem está amparada nas proposições da Literatura Comparada de linha americana, a qual permite o cotejo de obras e autores distintos, pois, como comenta Remak (1994, p.175), a “literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico é o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença”, permitindo uma compreensão mais completa da literatura como um todo. Além da Literatura Comparada, utilizamos para esta abordagem a Crítica Sociológica, pois esta compreende que a literatura deve ser entendida como parte da sociedade. Assim como cita Silva, “a crítica sociológica é aquela que procura ver o fenômeno da literatura como parte de um contexto maior: uma sociedade, uma cultura” (2005, p. 141), isto é, ela busca aumentar a percepção e a observação do leitor sobre o mundo social. Nesse sentido, a obra literária seria o painel das mudanças e transformações uma vez que ela influencia e é influenciada pela sociedade, podendo “aparece tanto na superfície do texto (descrição de casas, roupas, hábitos, etc.) quanto na caracterização das personagens (sua psicologia, seus preconceitos, ambições, etc.) e na estrutura profunda do texto” (CANDIDO, 2005, p. 145). Tendo como base a Literatura Comparada e os pressupostos da Crítica Sociológica e ainda autores que discorrem sobre a condição feminina na sociedade africana, o primeiro romance analisado é o livro Balada de amor ao vento, da moçambicana Paulina Chiziane, publicado inicialmente em 1990. Sobre o livro, Valer (2009, p.1) ressalta que a autora “descortina os horizontes de uma das muitas culturas africanas. De um modo geral, a autora procura descrever o estatuto do ´eu feminino´ em uma sociedade patriarcal e poligâmica”. Além disso, como acrescenta Alós (2012, p.79) a obra de Chiziane traz à baila o conflituoso embate de certos valores tribais autóctones com as diretrizes sociais ocidentalizadas. Tal embate termina por redimensionar a configuração da organização familiar moçambicana, em especial no que toca aos papéis sociais exercidos pelas mulheres, tanto na esfera pública quanto na privada.

Para a análise da figura feminina neste romance, o recorte foi feito a partir da personagem Sarnau, e como eixo para reflexão buscou-se discorrer sobre os seguintes pontos: a relação entre a mulher e o homem; a relação entre Sarnau e a sociedade e a relação entre a personagem e os filhos. A narrativa relata um longo período desde a meninice de Sarnau até sua idade adulta, uma vez que se trata da memória da narradora. No decorrer da história, a personagem principal nos aponta para a vida sofrida da mulher em uma sociedade patriarcal, dotada de tradição e crenças em seus antepassados. Percebemos isto já no inicio da narrativa, quando a narradora dialoga com o leitor, afirmando que “os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra” (CHIZIANE, 2007, p. 12) Isso dá-nos uma introdução do que encontraremos ao longo da narrativa e alerta ainda que o que irá contar não é novidade, uma vez que há muitas mulheres que vivem desta forma. A linguagem do romance é informal e é feita em primeira pessoa, recurso este que aproxima a narrativa ao leitor. Pelas memórias a personagem aborda a mulher africana diante de um futuro traçado pelos antepassados. O romance gira em torno dos encontros e desencontros entre Sarnau e Mwando; o casamento na adolescência com Nguila, herdeiro da tribo dos Zucula; a traição ao marido; a fuga da aldeia Mambone, abandonando os três filhos e a sobrevivência em meio à pobreza de Mafalala, espaço este que encontra para se prostituir. No final do romance, ela conta que está com a filha já crescida e que Mwando a reencontra. Perante a sociedade, Sarnau era conhecida e respeitada por ser a primeira esposa do rei, desempenhando um papel fundamental na tribo, como a progenitora dos futuros herdeiros. No entanto, a posição que ela ocupa em relação ao homem é inferior, uma vez que a mulher tudo deve suportar para agradar o marido, como ilustrado no trecho “Sarnau, o lar é um pilão e a mulher o cereal. Como o milho serás amassada, triturada, torturada para fazer a felicidade da família. Como

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o milho suporta tudo, pois esse é o preço da tua honra” (CHIZIANE, 2007, p. 46).Esse fragmento faz referência ao grande sofrimento, a qual a mulher passa a sofrer após o casamento, ou como a própria narradora denomina, a “escravatura da poligamia“. Mesmo ocupando uma posição importante na tribo, Sarnau é infeliz, pois divide a pouca atenção do marido com as demais esposas, o que acarreta na traição da jovem. A descoberta da poligamia logo após o casamento confirma que ela não seria a única mulher na vida de Nguila, passagem está que ela descreve no seguinte trecho: Meu Deus, acorde-me! Caí de olhos apavorada, duas gotas de água rasgaram verticalmente o meu rosto enquanto os lábios tentavam dissimular um sorriso forçado, Sarnau, nem todos os sorrisos são alegrias, nem todas as lágrimas são tristezas. Meu marido esta ao lado de outra mulher mesmo na minha cama, sorriem, suspiram envoltos nas minhas capulanas novas, meu Deus, eu sou cadáver, eu gelo, abre-te terra, engole-me num só trago (CHIZIANE, 2007, p.55)

A poligamia é uma tradição em muitas tribos da África e, na obra fica nítida, uma vez que Sarnau deve viver em harmonia com as demais esposas, impedida até mesmo de sentir ciúmes, quando isso acontece, é espancada pelo marido: “a bofetada que lhe dei foi só uma disciplina para aprenderes a não fazer ciúmes” (CHIZIANE, 2007, p. 57). Percebemos ainda a violência que ela sofre por parte do marido, evidenciando, mais uma vez, a impotência perante o homem em uma sociedade patriarcal. Mesmo sendo obrigada a permanecer em um casamento poligâmico, Sarnau não aceita tal situação: “Ah, maldita vida de poligamia, quem me dera ser solteira, ou voltar a ser criança” (CHIZIANE, 2007, p. 78). Notamos que, mesmo diante de todo o sofrimento que Sarnau sente diante da solidão na vida matrimonial, ela consegue engravidar, dando a luz a gêmeas meninas, o que acaba afastando ainda mais o marido. A relação com as filhas é conflituosa, sendo que o cuidado e a criação das mesmas são feitos pelas servas, e ela é chamada apenas para amamentá-las, como notamos no trecho: “as crianças estão entregues à macaiaia e só se lembram de mamar quando estou presente. O trabalho das machambas não é comigo, tenho muitas servas que se encarregam disso” (CHIZIANE, 2007, p. 79). Com a chegada do terceiro filho, fruto da traição, os laços com o marido são restabelecidos, uma vez que finalmente ele acredita ter recebido o primeiro herdeiro homem. No entanto é por este mesmo filho que ela abandona-o, deixando as gêmeas, e foge com medo de ser morta ao ser questionada sobre a traição. É a partir deste momento em que ela abandona os filhos, que podemos compreender a preocupação que ela tem por eles, pois, se descoberta a traição, tinha a consciência que seria morta, assim como eles. Se pensarmos de acordo com os pressupostos da crítica sociológica a qual postula que a obra influencia e é influenciada pela sociedade podemos entender que o romance Balada de amor ao vento de Paulina Chiziane aproxima à obra a realidade da sociedade africana uma vez que aborda tematicamente assuntos que já são recorrentes nestas sociedades, tais como a tradição, as crenças e ainda denuncia a sociedade patriarcal e poligama, em que a mulher é tida quase como mercadoria, sem sentimentos, apenas servindo para satisfazer ao homem e para a procriação dos filhos, prova disso é o pagamento do labolo, ou seja, o valor pago para retirar a moça da casa dos pais, passando a pertencer à família do noivo. Notamos também que a condição social que ela desempenha na sociedade é inferior ao homem, mesmo ocupando o papel de primeira esposa, Sarnau sofre a violência fisica e psicológica do marido, e é obrigada a aceitar o casamento poligamico. Quando foge, se prostitui como forma de sobreviver em uma cidade rodeada pela pobreza, uma vez que não havia outro meio de sobrevivencia. Distanciando desse romance, temos em O último voo do flamingo uma narrativa também pós colonial, mas que traz a questão da mulher de uma forma não tão aprofundada como no primeiro romance, o que não nos impede de entender como a mulher africana esta represetada na obra coutia-

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na. O romance do moçambicano Mia Couto foi publicado em 2000 e tem como base o pós-guerra em uma vila imaginária na África. Sobre o romance, Fritzen (2013, p.58) nos comenta que ele pode ser um exemplo fecundo de diálogo que a obra do escritor estabelece com a História e com a sociedade moçambicana após a independência, pois, no romance, encontram-se diversos elementos, como o tema, o enredo, a definição do tempo e do espaço, bem como a construção de personagens e o narrador que permitem perceber que fatores sociais e históricos estão permeados no texto, não apenas na sua estrutura, mas na movimentação interna que o livro estabelece com o contexto externo.

Nesse sentido, a obra oscila entre real e o imaginário e ainda sobre a tradição cultural de África e a cultura portuguesa. A história é narrada pelo tradutor da vila de Tizangara o qual tem como eixo as misteriosas explosões de soldados de paz da ONU, restando apenas o orgão genital. Para relatar tais acontecimentos aos chefes maiores, um europeu é enviado para investigar as mortes, sendo guiado pelo tradutor e também narrador. O estrangeiro descobre uma terra marcada pelo sofrimento, corrupção e desigualdades, mas sustentada pela crença e pela superstição a partir de personagens que vão se inserindo no longo do romance. A narrativa é em terceira pessoa e possui uma linguagem informal e mesmo utilizando alguns ditados e palavras típicas de Moçambique, é possível ter uma compreensão do texto. A obra passa no tempo do pós-guerra, fato esse, o qual se tenta explicar o motivo das explosões. Como recorte deste romance, buscou-se a partir da personagem Ana Deusqueira, abordar como a mulher é representada na obra, e assim como o primeiro romance analisado, foram estabelecidas os seguintes pontos para abordagem: qual a relação entre homem e mulher e ainda qual o papel da mulher na sociedade africana de Moçambique. A personagem Ana Deusqueira é a prostituta da vila de Tizangara, conhecida como “a mais competente conhecedora dos machos locais” (COUTO, 2005, p.26), e mesmo o romance sendo em terceira pessoa, temos uma descrição e até um capitulo do livro dedicado à personagem. Esta foi presa e transferida para a vila de Tizangara em uma operação para a reeducação em uma Operação de Produção, e torna-se a peça chave para o esclarecimento dos acontecimentos que permeiam a vila, uma vez que até a chegada de Ana, a vila não possuía prostituta, como percebemos no seguinte trecho: A mulher exibia demasiado corpo em insuficientes vestes. Os tacos altos se afundavam na areia como os olhos se espetavam nas suas curvaturas. O povo olhava como se ela fosse irreal. Até recentemente não existira uma prostituta na vila. Nem palavra havia na língua local para nomear tal criatura. Ana Deusqueira era sempre motivo e êxtase e suspiração (COUTO, 2005, p.28).

Ana é descrita como uma mulher com “as mil imperfeições, mulher de inverdades, mulher bastante descapotável” (COUTO, 2005, p.27) a qual se denominava “puta” legítima e possuidora de uma voz carnal e incendiadora como a bebida. Perante a sociedade, ela impunha respeito e autoridade, sendo que no início da narrativa é a ela que as autoridades recorrem para tentar descobrir de qual homem pertencia o órgão dilacerado no centro da cidade. Tal autoridade também é percebida logo no início quando o carro dos estrangeiros não dá arranque, sendo necessário que as pessoas empurrassem, no entanto é a partir da ordem de Deusqueira que o povo empurra a viatura, como notamos no trecho: “foi Ana Deusqueira quem emitiu um estalar de dedos. Num segundo, mãos às dezenas se juntaram nas traseiras do veiculo. Enquanto o povo empurrava a viatura, a prostituta enfeitou-se como se estivesse emoldurada, mãos sobre as coxas” (COUTO, 2005, p.32). No entanto, mesmo possuindo uma posição social na vila, ela tem consciência de que exerce uma profissão má afamada, e que sendo prostituta, morrerá prostituta, ou seja, a personagem mesmo sendo autoridade no assunto, não vê uma perspectiva de ascensão social dentro da sociedade, permanecendo nesta posição até o fim de seus dias, pois como ela mesma cita em uma entrevista que confere ao jovem europeu,

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Começo assim, explico esse meu serviço. Para dizer uma coisa, o seguinte: o senhor; num próximo tempo, vai deixar de ser ministro. Transitará para ex-ministro. Mas eu não transitarei nunca. Uma puta nunca é “ex”. Há ex-enfermeira, há ex-ministro... só não existe ex-prostituta. A putice é condenação eterna, uma mancha que não se lava nunca mais (COUTO, 2005, p.82).

Na mesma entrevista ainda, a personagem comenta que mesmo trabalhando com os homens nunca fora de homem nenhum, alguém que lhe pregasse sentimento, neste sentido, podemos perceber certa carência, uma vez que ela se sente orgulhosa quando os homens da terra ficam enciumados quando os estrangeiros chegam a vila sentindo-se donos das mulheres locais. Tal carência é percebida na seguinte passagem “E eu, Excelência, eu até me sinto orgulhada nesses ciúmes deles. É que eu nunca fui de ninguém. Nunca. Haver homens que me disputam me faz sentir pertencida, faz conta que sou mulher de um só exclusivo” (COUTO, 2005, p.85). Em relação ao homem, a personagem é inferior e subalterna, pois, além de levar uma vida sofrida, é violentada, apanhando do administrador local no momento em que descobre que ele era o responsável pelas explosões ocorridas na vila. Tal violência é descrita pelo narrador no seguinte trecho Já a prostituta no chão e o pé do administrador voou na direção dela. Ana Deusqueira, inclinada sobre um braço, ergueu o rosto e gritou. – Você é uma merda! Vou-te denunciar! Outro pontapé. Ana ia sangrando, o rosto dela perdia o contorno. Tornei-me visível a ver se a violência parava (COUTO, 2005, p.193).

Percebemos a partir dos pressupostos da literatura comparada, a qual permite o cotejo de obras distintas, que as duas personagens femininas moçambicans apresentam similaridades e distanciamentos no decorrer das narrativas.Notamos que as duas aproximam a obra a realidade quando trabalham a questão da mulher em Moçambique. No primeiro romance, Balada de amor ao vento temos a narrativa em primeira pessoa, o que aproxima o leitor as ações e pensamentos de Sarnau, diferentemente, no segundo romance, O último voo do flamingo, temos a personagem Ana Deusqueira, construída a partir do olhar do tradutor da cidade. Quanto ao tema principal das narrativas também há distanciamentos, uma vez que a primeira é permeada pelas memórias afetivas da protagonista, em relação a idas e vindas de um relacionamento amoroso. E na segunda narrativa, a temática gira sobre os estranhos acontecimentos das explosões de soldados da ONU em uma vila imáginaria. Mas vale ressaltar que, mesmo possuindo enredos diferentes, as duas narrativas denunciam em suas histórias a degradação em relação a figura feminina, representando que, mesmo após o pós-colonialismo, as mulheres ainda estão longe de sua liberdade em questão de autonomia e independencia dos homens. A respeito das similharidades, temos nas duas narrativas uma construção verossímil acerca da condição da mulher, em uma sociedade patriarcal, poligama e repleta de tradições e culto aos antepassados. Aproximando, além das duas personagens serem tratadas como mercadorias, uma vez que a primeira, Sarnau, casa-se mediante labolo, isto é, o pagamento feito pela família do noivo para possuir o direito matrimonial da noiva, permitindo ainda a posse dos filhos do futuro cassamento. E no segundo romance, Ana Deusqueira vende-se como meio de sustentar-se em meio a uma vila corrupta cheia de pobreza por parte da população, mas rica pelos seus governantes, ao lado afetivo das personagens, sendo que, mesmo que ambas moldam-se dentro da sociedade, atendendo as necessidades de sobreivencia, notamos a fragilidade no campo afetivo que as envolve. As duas personagens se aproximam ainda quanto à violência que sofrem, pois com Sarnau, ela é violentada fisicamente e psicologicamente dentro de casa pelo e também por Mwando enquanto implora para que ele não a abandone em Mafalala, e com Ana Deusqueira, é violentada pelo administrador em um espaço fechado, quando ameaça contar sobre o envolvimento deste com as explosões ocorridas na vila. Essa violência evidencia mais uma vez o papel frágil diante de homens

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do poder, em que respectivamente, a primeira refere-se ao rei de Mambone e o segundo ao administrador de Tizangara. Percebemos a partir das duas narrativas pós-coloniais, de escritores africanos do século XXI, que, mesmo havendo um imbricamento entre as culturas africanas com as culturas europeias, a partir da colonização, a questão da mulher ainda esta entrelaçada a um passado patriarcalista, poligâmico, evidenciando a violência e condição de subalternidade a qual mulher ainda enfrenta.

REFERÊNCIAS ALÓS, Anselmo Peres. O romance de autoria feminina em Moçambique: Balada de amor ao vento, de Paulina Chiziane. Dossie.n. 2, 2012. P. 78 – 86. Disponível em:< http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tl/article/viewFile/4204/3757> Acesso em: 23 set. 2015. AIRES, Tiago. Mia Couto: a escrita sobre a mulher, essa canoa, ilha, leoa e todo o resto. In: SILVA, Fabio Mario (Org.). O Feminino nas Literaturas Africanas em Língua Portuguesa. Lisboa 2014, p. 201 – 219. Disponível em:< http://www.academia.edu/10908804/O_feminino_nas_literaturas_africanas_em_l%C3%ADngua_portuguesa> Acesso em: 21 set. 2015. CANDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre o Azul, 2006. 9ªed. Disponível em: Acesso em: 10 jun. 2015. CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. Ed. Caminho, 2ª ed. Lisboa, 2007. COUTO, Mia. O último voo do flamingo. Companhia das letras. São Paulo, 2005. COSTA, Laysa Cavalcante; GUEDES, Joana Camila. As cicatrizes do amor: a representação da mulher na sociedade moçambicana em Paulina Chiziane. Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v.1, 2010. Disponível em:< http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ci/article/view/13506/7665> Acesso em: 24 set. 2015. GOMES, Patricia Godinho. Na senda da luta pela paz e igualdade, o contributo das mulheres guieenses. Buala. Disponível em: Acesso em: 15 set. 2015.

OBRAS RARAS COMO PATRIMÔNIO CULTURAL: A PRESERVAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE Maria Célia Azevedo Lopes* (Feevale) Ernani Mügge** (Feevale)

1. INTRODUÇÃO Na atualidade, é possível constatar grande transformação na forma de produzir, registrar e acessar informações, por conta das novas tecnologias da informação e comunicação que emergiram no século XX e modificaram práticas e parâmetros estabelecidos. Uma das consequências de tal fenômeno dá-se no âmbito do livro e da leitura, em que a popularização de novos formatos de livro em versão digital foi potencializada pela internet, oferecendo ao leitor novas possibilidades de leitura. Diante dessa nova realidade, surgiram, nos meios acadêmicos e nos círculos literários, calorosos debates quanto ao futuro do livro. A pergunta que até hoje encontra ressonância é a seguinte: teriam os antigos formatos se tornado obsoletos, a ponto de estarem com seus dias contados? A resposta não é unânime: enquanto alguns teóricos apontam para o fim do livro, outros defendem o triunfo do formato tradicional, o volume em papel, encadernado sob uma capa. Este grupo vale-se do argumento da facilidade de acesso, uma vez que o livro em papel não depende de dispositivos digitais para ser acessado. Livros manuscritos ou impressos há mais de quinhentos anos, por exemplo, ainda podem ser lidos, bastando ao leitor abri-los e dominar o idioma ali presente. Essa permanência lhes garante um valor imaterial e, mesmo em um contexto marcado pela tecnologia, recebem atenção especial por parte de instituições e profissionais que se dedicam à preservação do patrimônio histórico e cultural. A Biblioteca Nacional (BN) é, no Brasil, a instituição referência em acervos de livros raros. Através do Plano Nacional de Recuperação de Obras Raras (PLANOR), cadastra acervos e presta assistência técnica a projetos de preservação. Com o objetivo de divulgar esses acervos, no ano de 2012, a referida instituição publicou o Guia do patrimônio bibliográfico nacional de acervo raro, que apresenta um mapeamento das obras raras do Brasil. Em relação ao RS, consta a informação de que vinte e sete instituições possuem tal acervo. Uma questão importante é entender como se justifica a preservação destes acervos na contemporaneidade, uma época globalizada, na qual os conceitos “digital” e “descartável” estão presentes no cotidiano e afetam, entre outras esferas, as práticas culturais. Para tanto, é possível pensar em três passos: compreender o conceito de Patrimônio Cultural, de obra rara e, sob a perspectiva dos critérios de preservação, compreender a relevância das obras que compõem o acervo das raras para a sociedade contemporânea.

Graduada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Licenciatura Plena em História pela Universidade Luterana do Brasil. Mestranda em Processos e Manifestações Culturais na Universidade Feevale, Novo Hamburgo/RS. E – mail: [email protected]. ** Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de Pós-Doutorado – CAPES, no Mestrado em Processos e Manifestações Culturais, na Universidade Feevale, Novo Hamburgo/RS. Integra o grupo de pesquisa “Linguagens e Manifestações Culturais” (Feevale). E-mail: [email protected]. *

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2. PATRIMÔNIO CULTURAL O patrimônio cultural constitui-se de bens materiais e imateriais. De fósseis a documentos escritos, os bens são registros humanos que veiculam informações sobre a época em que foram produzidos. O interesse por eles deve-se ao processo de significação que adquiriram ao longo do tempo, por carregarem “a memória de um povo para além de sua existência” (CHATEAUBRIAND apud POULOT, 2009, p. 9). Assim, são tidos como um passaporte para o passado, pois dão acesso a informações que existem há séculos ou até milênios, e tem uma função social muito importante relacionada à memória coletiva e à identidade de um povo. Além disso, assinalam o passado glorioso da sociedade humana. Os bens que constituem o patrimônio cultural da humanidade estão depositados em bibliotecas, arquivos ou museus, que tem a missão de salvaguardar sua integridade física e informacional, para que as gerações atuais e futuras tenham acesso às informações que carregam. Eles se destacam, em especial, pelo valor histórico, estético e cultural que carregam. Até integrarem o patrimônio, passam pelas fases de identificação, avaliação e classificação. Em uma tentativa de definir o que é patrimônio cultural, Chastel (apud POULOT, 2009, p.17) afirma: “O patrimônio reconhece-se pelo fato de que sua perda constitui um sacrifício e sua conservação pressupõe sacrifícios”. Regina Abreu (2009) corrobora essa definição ao mencionar o sentimento de perda que leva à formação do patrimônio, uma vez que há a necessidade de salvar significativos vestígios do passado produzidos pela humanidade e que estão ameaçados de destruição. Para a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco), “O patrimônio cultural é de fundamental importância para a memória, a identidade e a criatividade dos povos e a riqueza das culturas. ” (UNESCO, 2015). O livro faz parte do patrimônio documental. Por isso, é um importante meio de comunicação inventado pelo homem. Carrega, para além do seu tempo, a época que o produziu, através do conteúdo e da materialidade. Alguns livros, por diversas razões, destacam-se dos demais e, por essa razão, são considerados raros. Tal classificação ocorre a partir de uma minuciosa avaliação realizada no volume, que busca identificar valores através de critérios de raridade adotados pelas instituições.

3. CRITÉRIOS DE RARIDADE E INSERÇÃO DO LIVRO NO PATRIMÔNIO CULTURAL Variadas são as metodologias e os critérios utilizados para definir obras raras. A conceituação depende da instituição ou dos colecionadores que possuem estes livros, não existindo, desta forma, unicidade no conceito de obra rara. Para um dos grandes bibliófilos brasileiros, Rubens Borba de Moraes, um livro inicialmente é “comum”, passa a ser “escasso”, torna-se “raro”, e acaba sendo “raríssimo” (MORAES, 1998, p. 44). É a classificação como raro e raríssimo que incluiria um livro ao patrimônio cultural a ser preservado. Ana Virgínia Teixeira Pinheiro (1989) afirma que a obra rara pode ser definida à luz dos conceitos único, raro e precioso. Único refere-se a um único exemplar conhecido de determinada obra; raro é quando uma obra tem raridade inquestionável, como, por exemplo, a Bíblia de Mogúncia1 (1462); precioso diz respeito a obras que possuem valor afetivo para determinadas instituições ou colecionadores. Em O que é livro raro? (1989), a autora propõe uma metodologia que utiliza a atribuição de valores para definir livro raro. Para Pinheiro, os critérios de raridade perpassam cinco grandes ca-

Trata-se do incunábulo mais antigo da Biblioteca Nacional, que possui, em seu acervo, apenas dois exemplares. É a primeira obra impressa na qual constam a data e a marca dos impressores Fust e Schoeffer (ex-sócios de Gutenberg), no colofão.

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tegorias: limite histórico, aspecto bibliológico, valor cultural, pesquisa bibliográfica e características do exemplar. O limite histórico é um critério que considera as principais datas da evolução tecnológica do livro. O limite é estabelecido por duas datas marcantes, século XV (Invenção da imprensa) e 1801, quando inicia a produção industrial de livros. Os primeiros livros impressos, datados até 1500, são denominados incunábulos, cuja palavra origina-se do latim, in cuna (no berço), uma alusão ao berço da imprensa. O aspecto bibliológico refere-se à obra enquanto objeto pela arte e manufatura. Assim, seu valor advém do suporte, dos materiais, tipo de impressão e peculiaridades que apresenta, como, por exemplo, encadernações de luxo, marcas d’água, ilustrações, entre outros. Os colecionadores de encadernações valorizam esse aspecto. Para Moraes, eles “pouco se importam com o texto, o que vale para eles é a obra de arte que o encadernador realizou” (1998, p. 69). São livros com valor artístico e nem sempre apresentam valor literário. Valor cultural é um critério que se relaciona à importância daquela obra como fonte de informações sobre o passado, seja pelo conteúdo ou pelas condições de impressão e publicação. Nesse critério, enquadram-se também edições limitadas ou esgotadas, “desaparecidas”, censuradas, interditadas ou expurgadas. Um exemplo de obra que é classificada como rara por este critério é uma Bíblia com edição inglesa, de 1631, na qual o sétimo mandamento “não cometerás adultério” foi impresso como “cometerás adultério”, por causa de um duvidoso esquecimento do tipógrafo, que suprimiu a palavra “não” da frase. Devido ao erro, a edição foi queimada na época, restando apenas quatro exemplares, que são considerados raros (MORAES, 1989). A pesquisa bibliográfica identifica obras de suprema raridade através de bibliografias que, para Moraes, são importante fonte de informação para a identificação ou aquisição de uma obra rara. Afirma ele: “Pode-se dizer que não há livro que não tenha sido descrito em algum repertório. Se é raro então, não falta bibliografia que o descreva até com minúcias” (1989, p. 105). As obras raras classificadas por meio deste critério são únicas, preciosas (obras mais procuradas por bibliófilos) ou apresentam alguma curiosidade, pelo assunto ter sido tratado de forma peculiar ou a tipografia ser incomum. São obras que possuem alto valor comercial. Características do exemplar é um critério que se refere a obras que apresentam características peculiares, como elementos acrescentados posteriormente à publicação: marcas de propriedade, de artífices ou comerciantes renomados ou dedicatórias de personalidades famosas.

4. PRESERVAÇÃO DE OBRAS RARAS O conceito de preservação é apresentado por Sérgio Conde de Albite Silva. Para ele, preservação é “qualquer ação que, recorrendo à plataforma tecnológica disponível, aos conhecimentos técnico-científicos existentes e às políticas institucionais, visa a garantir estabilidade química e resistência mecânica aos suportes onde está registrada a informação” (2005, p.180). Portanto, preservar um livro é o resultado de ações políticas e técnicas, tomadas por um profissional que reconhece a importância de manter este patrimônio para garantir o acesso a estas obras pelas gerações futuras. As obras que fazem parte desta pesquisa foram analisadas e classificadas como raras pelas instituições que as salvaguardam. Em cada uma, foram, inicialmente, identificados valores, de acordo com os critérios de raridade definidos pela instituição. Esse é o primeiro ato de preservação, pois as obras que recebem tal classificação são retiradas do acervo geral, acondicionadas e armazenadas em locais específicos, visando à conservação de sua materialidade. As três são consideradas expoentes do acervo constituído pelas instituições que as preservam. Elas encontram-se armazenadas e acondicionadas em ambientes adequados à conservação de sua materialidade.

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4.1. SOLO DE CLARINETA A obra faz parte da coleção de obras raras da UCS, localizada na Biblioteca Central da Cidade Universitária. É uma coleção com aproximadamente 1.800 itens, divididos em periódicos (1.053 exemplares) e livros (753 exemplares), obras publicadas entre os séculos XVI e XX, de diversas áreas do conhecimento. Em 1999, a UCS comprou o acervo do psisquiatra e professor da UFRGS, Luiz Carlos de Almeida Meneghini e, após avaliação, identificou-se que algumas obras eram raras. Logo, elas foram separadas e integradas ao setor de obras raras da instituição. Dentre os volumes raros de Meneghini estão obras de Érico Veríssimo: Incidente em Antares, As mãos de meu filho: contos e artigos, Solo de clarineta e O tempo e o vento, contendo dedicatórias manuscritas do autor a Meneghini. Uma das obras que merece destaque é Solo de Clarineta, livro de memórias de Veríssimo, em dois volumes. O primeiro é de 1973, com dedicatória e desenho manuscrito do autor e, o segundo, de 1976, concluído por Flávio Loureiro Chaves após a morte do escritor em 1975. A UCS possui os dois volumes que foram reunidos e encadernados para Meneghini, com suas iniciais gravadas em dourado na lombada. Foto 1: Solo de Clarineta - UCS

Fonte: Autora, 2013

Trata-se da primeira edição, em ótimo estado de conservação, ilustrado e com a seguinte dedicatória do autor: Para Mariazinha e o Meneghini, com um abraço amigo este solo de clarineta / P.S. fica o analista proibido de interpretações fálicas ao título, sob pena de processo penal (1973). O livro é considerado raro não só por ser um exemplar com anotações manuscritas como também pela dedicatória e ilustração feitas pelo autor, um dos mais importantes escritores gaúchos, reconhecido no país inteiro pelo conjunto da obra e adaptações das histórias feitas para o cinema e televisão, o que atribui valor à obra. Todas estas peculiaridades tornam-a muito mais do que um volume de papel que apresenta uma narrativa. Colocam-na sim como um símbolo concreto, materializado da amizade de Veríssimo por Meneghini eternizada naquelas páginas.

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4.2. DELLE NAVIGAZIONI ET VIAGGI A obra faz parte da coleção de obras raras da Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (BIC/UFRGS). A biblioteca foi criada oficialmente em 1971, e sua história está ligada à aquisição da biblioteca particular de Gertz Eduardo Secco Einchenberg (1901-1980), professor da Faculdade de Medicina e bibliófilo, no ano de 1969. Estima-se que a coleção era composta por cerca de 40 mil volumes que, no final dos anos 70, foram transferidos para a UFRGS. Possui uma localização privilegiada, pois se localiza no campus Central, no térreo da Reitoria. Foto 2: Delle Navigazioni et Viaggi - BIC/UFRGS

Fonte: autora, 2013

O departamento de obras raras da BIC/UFRGS foi inaugurado em 1978 e abriga a Coleção Eichenberg de obras raras. É uma coleção composta por 10 mil volumes que foram separados do acervo geral Eichenberg, adquirido pela Universidade. Após a transferência do referido acervo, a UFRGS contratou profissionais da área para avaliar o mesmo. A equipe constatou que uma parte expressiva

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– ¼ do total – das obras era rara. A temática da coleção envolve literatura, arte e história, e contém exemplares da coleção Brasiliana (obras impressas no Brasil ou sobre o país durante o século XIX). A obra em questão é do século XVI, período marcado pela expansão marítima, na qual ocorreram as Grandes Navegações. Os países europeus disputavam o domínio dos mares e investiam na descoberta de novas rotas e territórios. Nesse contexto, a Itália se destacou pela produção de conhecimentos náuticos de seus cartógrafos. Um cartógrafo italiano desta época foi Giovanni Battista Ramusio, que publicou, entre 1550 e 1559, a obra Delle Navigazioni et Viaggi, em três volumes, que traz mapas e relatos de viagens realizadas por navegadores ao Novo Mundo, dentre eles, Pedro Álvares Cabral. Os três volumes estão encadernados em capa de pergaminho. Além de ser uma obra sobre as descobertas marítimas, sua importância está, também, no fato de conter o primeiro mapa conhecido do Brasil e apresentar ilustração do escambo realizado na costa brasileira, em seu terceiro volume.

4.3. ENCICLOPÉDIA FRANCESA A coleção da Enciclopédia francesa salvaguardada no Memorial Jesuíta da Unisinos é considerada “item valiosíssimo”2 do acervo de obras raras. O memorial J, que tem por objetivo preservar a história da atuação dos jesuítas na América Latina, é parte da biblioteca e ocupa dois andares do prédio. O acervo é composto por mais de 200 mil livros, 1.200 títulos de periódicos e milhares de documentos históricos. O setor de obras raras, parte do memorial, conta com uma coleção de 2.300 itens, dos séculos XV ao XIX. Uma obra expoente da coleção é a Enciclopédie Française (1751-1772), editada por Denis Diderot e Jean Le Rond d’ Alembert, em Paris. No Memorial encontra-se a primeira edição da obra completa, composta por 28 volumes, dentre os quais 17 são formados por verbetes e outros 11 por ilustrações explicativas remissivas a eles. O objetivo dos editores, ao organizá-la, era reunir em livros todo o conhecimento humano disponível até então, para “ilustrar” as pessoas. Era a época do Iluminismo, durante a qual se acreditava que só o conhecimento e a razão, representados pela luz, seriam capazes de romper com a ignorância e a superstição, vigentes, sob a ótica dos idealizadores da obra, durante o período que denominavam de idade das trevas. Para contribuir com a composição da Enciclopédie, os editores convocaram grandes nomes do Iluminismo, como, por exemplo, Jean-Jacques Rousseau e Voltaire, para confecção dos verbetes, e Louis-Jacques Goussier, Bonaventure-Louis Prévost e Charles Nicolas Cochin, para fazer as ilustrações.

Conforme material de divulgação do acervo do Memorial. (s.d.)

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Foto 3: Enciclopédia Francesa

Fonte: Memorial Jesuíta Unisinos, 2013

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os livros Solo de clarineta, Delle Navigazioni et Viaggi e Enciclopédie Française registram fragmentos de passado. A primeira traz registros manuscritos de um grande escritor, a segunda, a “certidão de nascimento” do Brasil e, a terceira, um projeto ousado, censurado, mas que lançou a ideia de um instrumento para acesso ao conhecimento. Por que investir recursos humanos e financeiros para preservá-las? Eis uma questão complexa e subjetiva, ligada à história, à memória e à identidade de um povo. Não será possível a qualquer ser humano presenciar todos os fatos ocorridos no curso da história da humanidade; entretanto, há meios de acesso a, pelo menos, uma parte deles, através dos registros, o que possibilitará a construção de imagens, cenas deste passado que faz parte da constituição da identidade dos indivíduos, ao qual, indiretamente, eles pertencem. Dessa forma, os registros são importante memória a ser evocada. Afinal, é a partir da memória que o indivíduo e também a coletividade formam identidade e fixam raízes. A preservação desses registros se justifica, pois, uma vez que as obras raras podem ser consideradas “lugares de memória” (NORA, 1993, p.12), ou seja, meios de acesso a uma memória. “A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (ibidem, p.10). O autor afirma que são espaços criados pelo homem contemporâneo, com o objetivo de fazer com que a história e a memória supram a necessidade de identificação do sujeito globalizado e fragmentado. O livro é o resultado de uma montagem, consciente ou não, da história, da época e da sociedade que o produziu. É algo que fica, dura, deve ser preservado. É um monumento. Enquanto os homens e as sociedades sucumbirão ao tempo, eles permanecerão, pelo menos um pouco mais, dando testemunho, como um elo entre o presente e passado, a fim de manter sempre uma possibilidade de memória do que já ocorreu para os dias que virão.

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REFERÊNCIAS ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (orgs.) Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. 2.ed.,Rio de Janeiro, Lamparina, 2009. FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL. Guia do patrimônio bibliográfico nacional de acervo raro. Rio de janeiro, 2012. MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz. 3 ed. Brasília: Briquet de Lemos, 1998. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo: PUC-SP. Nº 10, 1993. PINHEIRO, Ana Virgínia Teixeira . O que é livro raro? Uma metodologia para o estabelecimento de critérios de raridade bibliográfica. Rio de Janeiro: Presença edições; Brasília: INL, 1989. POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009, 240p. SILVA, Sérgio Conde de Albite. Algumas Reflexões sobre a Preservação de Acervos em Arquivos e Bibliotecas. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1998. UNESCO. Site da Instituição. Disponível em: http://www.unesco.org/. Acesso em 03 ago 2015.

ESTÉTICA DO VISÍVEL EM OS CORUMBAS DE AMANDO FONTES Maria Iraci Cardoso Tuzzin* (UFSM)

Foi em momento posterior à Semana da Arte Moderna de 1922 que o santista Amando Fontes publicou Os Corumbas (1933). Narrativa que teve longa gestação, originada no início da década de 1920, quando o escritor residindo no Rio de Janeiro participa do grupo de intelectuais reunidos em torno de Jackson de Figueiredo, filósofo e escritor considerado “grande prosador” por Alfredo Bosi. Num intervalo de tempo maior do que uma década, as ideias do artista trouxeram à luz o romance Os Corumbas, fato verificado somente após a Revolução de 30 e ao fim de sinuosa trajetória, durante a qual Fontes viveu em três estados: Bahia, Sergipe e Paraná, que terminou, mais uma vez, no Rio de Janeiro, quando o autor chegava aos 34 anos. Obra da maturidade do escritor e romance de estreia, Os Corumbas foi celebrado com aplausos pela crítica por rejeitar a prolixidade e apresentar uma escrita concisa e próxima à variante falada. Característica, aliás, considerada traço harmonizador a amalgamar a temática sobre o proletariado e a forma narrativa, de modo especial, a categoria personagens. Figuras estas, representativas de parcela da população retirante e suas vivências no espaço urbano. Entretanto, é importante relembrar que por mais próximo que o fazer literário esteja da realidade, ele o produto e o resultado de muitas decisões, que envolvem, sobretudo, a diferenciação entre a literatura de caráter ficcional e outras literaturas.

1. A FICÇÃO BRASILEIRA DE 1930 Distintos estudos indicam que não foram poucas as tentativas teóricas de definir as fronteiras que separam realidade e ficção. A História enquanto disciplina, por exemplo, tendeu a enaltecer seu caráter verídico e relegou à ficção o papel da fantasia, a despeito da ficção vez por outra ser citada como fonte histórica até mesmo pelos historiadores. Contudo, Antonio Candido defende que, por seu caráter mimético, o texto ficcional responde às funções de representação da realidade, uma vez que: [..] a literatura é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem, que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração [...]. (CANDIDO, 1972, p. 53).

Além de a linguagem constituir-se em elemento essencial de configuração técnica do texto, ela também organiza as relações entre a fantasia e a realidade. Porém, ao longo de nossa história político-intelectual diferentes correntes de pensamento tenderam conceituar a literatura enquanto instância portadora e/ou refletora do mundo social. Na década de 1930 o campo intelectual brasileiro vivenciou um processo de radicalização ideológica decorrente de um contexto de intensas transformações no país e no mundo, nesse momento conflitos de cunho político atingem literatos e críticos, envolvendo-os em discussões polarizadas. A polarização ideológica, então, que permeia o ambiente intelectual e literário, divide escritores em dois grandes grupos: os de direita (defensores da reforma espiritual e moral da sociedade, catolicismo, integralismo) e os de esquerda (favoráveis à transformação dos meios de produção, fim da exploração do trabalho, horizonte comunista). Essas duas visões de mundo disputam qual modelo

Doutoranda em Letras, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil E-mail: [email protected]

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de romance melhor corresponderia aos anseios do quadro social. Obviamente, o romance escrito na década de 1930 esteve no centro dessa disputa – defendido à esquerda, fruivel à direita. Assim, a perspectiva social vincou profundo e fez despertar escritores de ação comprometidos com a reflexão, a sondagem e a denúncia dos problemas sócio-político-econômicos do país. Os romancistas dos anos 30, como se cristalizou pela crítica denominá-los, não obstante a diversidade de sua produção, foram insuflados – nem todos, é certo – por esse projeto ideológico comum. Assim, sob o clima de fermentação política desse contexto de transformações, num decênio que se abria com a revolução liberal que derrubara a República Oligárquica, mais que denunciar, parte da intelectualidade brasileira desejava interferir no processo histórico, motivada pelos ideais utópicos de mudança social. No campo da literatura, são representativos os romances Os Corumbas de Amando Fontes e Cacau de Jorge Amado. Por conseguinte, a ficção desse período nasce e se difunde sob o influxo da atmosfera ideológica após o êxito da Revolução Soviética, mobilizando escritores militantes, alinhados com a esquerda, em diferentes países, imbricando a arte da linguagem com projeto político, pois: “[...]a consciência da luta de classes, embora de forma confusa, penetra em todos os lugares – na literatura inclusive[...]”. (LAFETÁ, 2000, p. 28), consequentemente, o romance se faz problematizador, empenhado em esquadrinhar a realidade do país, denunciando suas estruturas socioeconômicas agigantando a figura do trabalhador e suas mazelas, de modo que o: [...]proletário [...] que nasce [das] experiências do romance de 30 é fundamental para definir a abrangência e o sentido da produção daquele momento. O gesto de mergulhar nos problemas brasileiros foi amplo não apenas porque abrangeu geograficamente o Brasil inteiro, mas porque também se espalhou por um variado espectro de questões: foi uma literatura social não apenas no sentido econômico do termo, que remete à luta de classes, mas também na figuração dos papeis e funções destinados à mulher. (BUENO, 2006, p. 327).

Assim, o romance Os Corumbas integra um projeto estético alinhado a concepções teóricas em que este gênero literário atrai para si, também, a responsabilidade de provocar reflexões sobre problemáticas originária do contexto histórico. Por isso, o drama da família Corumba espelha criticamente a realidade dos operários em estado de penúria, em ritmo desarmônico com a evolução do parque fabril brasileiro em acelerado progresso. Através do protagonismo do sertanejo convertido em proletário, ou “operários modernos”, como mencionado no Manifesto Comunista, a base do Brasil industrial se delineia. Logo, trabalhadores rurais, vaqueiros, miseráveis, prostitutas, retirantes, desempregados, soldados, militantes, malandros, entre outros, ganham vida no romance, pois: “[...]a personagem [...] com mais nitidez torna patente a ficção, [...]através dela a camada imaginária se adensa e se cristaliza. ” (CANDIDO, 1964 p. 14), retratando um Brasil que dá os primeiros passos no campo industrial.

2. DESAMPARADOS EM TRÂNSITO A propósito do título do romance, Os Corumbas, destacamos que há diferentes significados atribuídos ao termo corumba, porém todos inseridos em um mesmo campo semântico que corresponde a roceiro mal trajado, desajeitado, feio. A palavra designa, também, o trabalhador dos engenhos, mais precisamente, aquele proveniente das serras, do interior, o matuto, o caipira, o pobre. Oriundo do meio agrícola, longe do litoral e da capital, o grupo de figuras que compõe a família Corumba é revelado a partir do velho João Piancó que aparece em destaque no começo do romance. Seu perfil é de um pequeno proprietário de terra, que pode ser identificado como a matriz do coronel; todos devem favores a ele, pois representa a única oportunidade de trabalho, ou seja, de sobrevivência no sertão. A personagem é emoldurada com os ingredientes da seca. A primeira grande seca do

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século XX no Nordeste, a de 1905, que destrói as esperanças do velho Piancó, e o leva à morte por desgosto. Ainda na primeira parte, há a apresentação da bela moça Josefa, filha de João Piancó e o jovem Geraldo Corumba, o gaitista mais conhecido da região, que é convocado por Piancó para compor o cortejo festivo em homenagem ao santo por ocasião da chegada da chuva. O personagem Geraldo é descrito por suas peculiaridades corporais que fortalecem os indícios de sofrimentos e privações: Justamente pelas onze da manhã foi que chegou Geraldo, cavalgando um ruço magro e perereca. Era moreno-claro, de estatura mediana, corpo delgado e ágil. Estava sem casaco, na sua camisa nova de riscado, calças brancas seguras por um largo cinturão de couro, com vistosas fivelas de metal. À cabeça, um largo chapéu de palha de carnaúba, circulado por uma fita escarlate, quebrado atrás e empinado na frente, emprestava-lhe um ar pimpão e alegre. (FONTES, 1981 p.5).

Quase todas as características de Geraldo Corumba indicam ruína e deterioração, pois é figurado como homem de corpo magro e pouca estatura, resultado das precárias condições de vida. Somente os adereços de sua roupa lhe conferem um ar de vaidade e alegria. Até mesmo seu meio de locomoção potencializa a imagem de escassez dominante na parte do romance que se destina a revelar como se vive no sertão. Ao final de dois anos de namoro Geraldo e Josefa se casam e passam a viver nas terras Piancó. Devido a longa estiagem, o casal e os três filhos decaem fisicamente, sem água e sem comida, se põem a caminho. Reagir, sair da inércia, deslocar-se de um lugar para outro configura determinadas imagens, convertidas em recurso utilizado como expediente retórico por romancistas do período de 30, como por exemplo, Graciliano Ramos, com Vidas Secas e Raquel de Queiroz, com seu livro O Quinze. Como peões, os Corumbas foram acolhidos no Engenho Ribeira, situado no município de Capela, onde viveram por dezessete anos. Nesse período, a família foi acrescida por mais três filhos: duas meninas e um garoto, este morreu prematuramente, todos trabalhavam. As mulheres, apesar de desempenhar atividades semelhantes aquelas dos homens, recebiam menos pelo que faziam. Com a decadência da produção açucareira e redução da jornada de trabalho nos engenhos, a família viu agigantarem-se as dificuldades e minguarem as esperanças. O que tinham era apenas o sonho da matriarca Josefa Corumba: mudar para Aracaju, a capital do estado de Sergipe. Na Capital, havia emprego decente para as duas meninas mais velhas. Era nas Fábricas de Tecidos. Estavam assim de moças, todas ganhando bom dinheiro... Pedro não custaria em conseguir um bom lugar, como ferreiro ou maquinista.... Uma outra vida, enfim. Vestia-se melhor, andava-se no meio de gente.... Depois, tinha assim uma certeza, uma espécie de pressentimento, de que lá as filhas logo casariam. Isso, as mais velhas. As duas meninas novas iriam para a escola. Nem precisavam até trabalhar. Caçulinha, que era tão viva e inteligente, bem poderia chegar a professora... (FONTES, 1981, p.10).

Desse modo, eles novamente: “[...]puseram-se na estrada[...]. ” (FONTES, 1981 p. 9). O novo deslocamento da família corumba que deixa o sítio onde mora para aventurar-se em uma região aparentemente promissora, além de encerrar a primeira parte do romance, alude à perspectiva que relaciona ficção e realidade, remetendo a uma importante função social da arte que consiste em provocar questionamentos, pois: “[...] a capacidade que os textos possuem de convencer [...]suscitam no leitor uma impressão de verdade porque antes de serem ou não verossímeis são articulados de maneira coerente. ” (CANDIDO, 1987, p. 11). Além disso, a temática da mobilidade do sertanejo explorada no romance por Amando Fontes ecoa em outra arte irmã: a pintura. Cândido Portinari também retratou por meio de traços e cores o drama do homem da roça. Onze anos após a publicação do livro Os Corumbas, o pintor expõe o cotidiano dos migrantes, destacando expressões de dor e sofrimento de nove personagens de semblante cadavérico que caminham sob um céu azul povoado, emblematicamente, de pássaros pretos.

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Portanto, a penúria dos miseráveis rurais retratada na literatura e na pintura demonstra que no deslocamento do sertão para a cidade iniciar-se-ia a metamorfose do sertanejo em retirante.

3. ENFIM, A CIDADE Madrugada de rigoroso inverno, Geraldo, Josefa e os cinco filhos, acordam para mais um dia de trabalho nas fábricas de tecidos e na estrada de ferro da metrópole. O pai e os três mais velhos (Rosenda, Pedro e Albertina) misturam-se aos grupos de trabalhadores que: “[...]eram mulheres, na sua maioria. Velhas, moças, crianças. Donzelas, casadas, prostitutas. (FONTES, 1981, p.18). As duas filhas menores (Bela e Caçulinha) frequentam a escola, a mãe cuida da casa. Um dos pilares da economia sergipana nas primeiras décadas do século XX foi o setor agroexportador açucareiro. Entretanto, a partir de 1913, intensificou-se o processo de implantação de fábricas de tecido. A cidade de Aracaju, em 1934, possuía 49 fábricas, destacando-se as unidades produtoras de tecidos, calçados, bebidas, doces charutos, cigarros e móveis. O desenvolvimento industrial foi acompanhado pela evolução desordenada da cidade, cujo número de habitantes que em 1890 era de 16.336, ampliou-se para 50.564, em 1930. Eram trabalhadores provenientes do meio rural, em sua maioria, que buscavam emprego nas fábricas, destaca Dantas, 2004. Assim, viveram seis anos no bairro industrial de Aracaju trabalhando nas fábricas e no que mais aparecesse. Durante esse tempo, multiplicaram-se as dificuldades, crises e tristezas. Rosenda, após breve namoro, sempre censurado pela família, foge de casa com o namorado, cabo Inácio. Este a abandona em seguida. Percebendo inexistência de alternativa de sobrevivência e para constrangimento dos pais, a filha mais velha dos Corumbas escolhe a via da prostituição, fazendo a mãe lamentar: “uma filha se fazer mulher perdida! ... Nunca pensei que Deus me desse esse castigo! ” (FONTES, 1981, p.52). Albertina, a segunda filha mais velha da família Corumba trabalha na Sergipana. Constantemente assediada pelo chefe, passa a hostilizá-lo em represália as suas investidas e, por esse motivo, o interesse dele pela funcionária, torna-se maior. Certa manhã, depois de mais um ataque do contramestre, Albertina revida. Grita-lhe impropérios e o ameaça com ofensas, consequentemente, é demitida por justa causa. Na hora do acerto, disseram-lhe: “A senhora mesma foi a culpada de tudo.” (FONTES, 1981, p.29). O tempo vai passando, a situação da família piora e Albertina não encontra novo trabalho. Meses depois, é contratada pela Têxtil, lá conhece o doutor Fontoura. Envolvem-se afetivamente. Às escondidas, o flerte do médico com a: “[...]moça do Tecido[...]uma operária[...]. ” (FONTES, 1981, p.140) se fortalece mais e mais, porém não evolui para o casamento e sim para um relacionamento alternativo. Albertina também foge de casa com o namorado. Meio ano depois, Josefa e Geraldo tiveram mais uma certeza: “[...]era a segunda filha que viam a prostituição arrebatar-lhes. ” (FONTES, 1981, p.123). Diante de crescentes e incontornáveis flagelos que progressivamente os acometiam, e: “[...]vendo a miséria já na porta. ” (FONTES, 1981, p.73), Bela, débil e magérrima, é tirada da escola para empregar-se na fábrica e ajudar no sustento da casa. A saúde frágil da terceira filha dos Corumbas é exacerbada pela tuberculose contraída no trabalho. Acometida pela grave doença que pode atingir todos os órgãos do corpo, especialmente os pulmões, pois o bacilo causador (Koch) se desenvolve nas regiões do corpo em que há bastante oxigênio, ela definha. Como quem adormece, num: “[...]domingo [...] expirou. ” (FONTES, 1981, p.104). A descrição da morte da personagem remete ao período romântico quando artistas iam a óbito pelo contágio com a enfermidade e a patologia distinguia o tuberculoso com o status de intelectual, porém a trajetória de Belinha não teve nenhum glamour, ela simplesmente finou.

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Joana ou Caçulinha é a filha mais nova do casal e a esperança da família, pois além de talentosa tinha: “[...]olhos claros, cabelos castanho-loiros, branca e rosada. ” (FONTES, 1981, p.23). Era sonho da família que Caçulinha se formasse professora. Porém, o estado de miséria dos Corumbas força-os a promover a interrupção dos estudos da menina que, sem reclamar, passa a integrar os mais de: “[...]três milhões de operários. ” (FONTES, 1981, p.19), empregados nas fábricas de tecido de Aracaju. Assim, Caçulinha adapta seu antigo comportamento estudantil à rotina dos operários da fábrica de tecidos, doravante torna-se uma autêntica proletária, competente, séria e laboriosa. Todavia, o convívio social com o novo grupo humano estimula o desabrochar de afetos e, como não poderia ser diferente, Caçulinha se apaixona. Como num conto de fadas, é arrebatada pela sedução de Sargento Zeca, moço descendente de família endinheirada: “[...]bem ricona.Tudo senhor de engenho e fazendeiro. ” (FONTES, 1981, p.118). Após prolongado noivado, a moça é seduzida e abandonada pelo rapaz. O mau passo de Caçulinha tornou-se conhecido de todos, depois que ela e a mãe exigiram que o delegado obrigasse o namorado a reatar o compromisso de noivado casando-se, agora por força da lei. O malogro da tentativa foi imediato, consequentemente, a desventura de Caçulinha agigantou-se. Além de perder o noivo, tornar pública a própria desgraça, a moça foi demitida do emprego, pois: Este era um velho hábito, que desde a sua fundação as fábricas vinham mantendo com rigor: não permitir nunca o trabalho, na seção do escritório, a moças que não tivessem vida honesta. (FONTES, 1981, p. 163).

Contudo, o político Gustavo de Oliveira que, apesar de casado, costumava apaixonar-se com facilidade é arrebatado, dessa vez, pela beleza e pelo sofrimento da noiva abandonada, e fez dela sua amante. Resignadamente, Caçulinha assume sua nova condição e conforta a mãe: “Não fique triste, mãe. Não fique. [...]não era essa minha sina? Pois bem: estou cumprindo...” (FONTES, 1981, p.166). Ao contrário das irmãs, Caçulinha desvia das incertezas da prostituição elegendo o concubinato como forma de sobrevivência dali por diante, escolha aliás, comum entre moças seduzidas ou violentadas, nas primeiras décadas do século passado. Também, diferentemente de Rosenda e Albertina, a personagem apresenta um perfil psicológico em evolução, em processo de amadurecimento, novo. Inicialmente, nos primeiros tempos de namoro Caçulinha era propensa à ingenuidade, ao acreditar, por exemplo, que ela, uma ‘operária do tecido’ se tornaria esposa de filho de fazendeiros. Com o fim abrupto do noivado, sua inexperiência é convertida em razoabilidade, impelindo-a a fazer escolhas e assim: entre a obviedade do meretrício preferiu a relativa segurança do amancebamento. Pedro Corumba, é o único filho homem vivo de Geraldo e Josefa, tímido, soturno e trabalhador, tornou-se um: “[...]operário modelar”. (FONTES, 1981, p.54). Em pouco tempo ascendeu as melhores posições nas oficinas da estrada de ferro localizadas na região de Aribé, em Aracajú, onde executava diferentes tarefas. Durante a noite, estudava. Apesar de julgar baixo o próprio salário, retirava parcela dele e: “[...]comprava livros e mais livros, revistas e jornais [...]tinha[...]aquela fome insaciável de ler”. (FONTES, 1981, p.54). As ideias de Tosltoi e Trotsky passaram a exemplificar, enfatizar ou esclarecer os diálogos entre ele e o amigo José Afonso, nesses encontros falavam sobre: “[...]oprimidos [e] opressores. ” (FONTES, 1981, p 63), oportunidades nas quais Pedro Corumba fazia questão de repetir: “[...]quando a gente se acostuma com a leitura, é um caso sério. Tudo quanto é distração fica de lado”. (FONTES, 1981, p.55). Quando as fábricas de tecido ampliaram a jornada de trabalho também no turno da noite sem pagamento de hora extra, o filho de Geraldo colocou-se ao lado dos operários, por isso, foi acusado de: “[...]revolucionário e comunista. ” (FONTES 1981, p.63), não esmoreceu, permaneceu defendendo

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melhores condições de trabalho e salário digno para os proletários até ser traído, preso e deportado para o Rio de Janeiro. A matriarca Josefa, remanescente feminina é figura emblemática e apresenta comportamento ambíguo. Se por um lado, timidamente, sinaliza romper com estereótipos vigentes no meio social do começo do século XX ao incentivar a filha mais nova nos estudos: “[..] haveriam de fazê-la normalista e professora [..] não levaria a vida dura das irmãs [...]” (FONTES, 1981, p. 24), por outro sucumbe a tradição quando pensa em si e no futuro que ela e o marido desejavam para as filhas: “Queriam, apenas, vê-las casadas! [...] Casadas elas seriam gente”. (FONTES, 1981, p.59). A visita que fez, irrealizável em outras circunstâncias, à casa da filha Caçulinha num domingo de manhã, sinaliza os movimentos derradeiros da trajetória da personagem, cuja atitude reforça a predestinação a que o sertanejo está supostamente sujeito devido às condições climáticas. Josefa rende-se ao se dar conta que o sonho se transformara em pesadelo e obedece ao marido. Resignadamente principia o retorno ao interior. Derrotada, ela finalmente, sucumbe, pois: “[...]estava já sem forças [...] ante tanto infortúnio acumulado que acabava por obrigá-los àquela retirada, à volta humilhante para as senzalas da Ribeira. ” (FONTES, 1981, p.172).

4. NOTAS (IN)CONCLUSIVAS Por meio de um conjunto de elementos literários esteticamente trabalhados Amando Fontes representa em seu romance Os Corumbas, diferentes aspectos sobre a realidade do operariado nordestino em tempo de surto industrial no Brasil. Desse ponto de vista inferimos que a produção intelectual do artista almeja evidenciar criticamente as contradições da modernização do país em suas estruturas políticas e socioeconômicas. Através da imagem do operário fracassado, figura síntese do romance de 30, Fontes difunde o sintoma de uma avaliação reprovável do presente vivido nas primeiras décadas do século XX, ao explorar, ficcionalmente, problemas e misérias dos trabalhadores sergipanos, pois: No caso do romance de 30, a formação da consciência de que o país é atraso canalizou todas as forças. Produziram-se romances que se esgotavam ou na reprodução documental de um aspecto injusto da realidade brasileira ou no aprofundamento de uma mentalidade equivocada que contribuiria para a figuração desse atraso. O herói, ao invés de promover ações para transformar essa realidade negativa, servia para incorporar algum aspecto do atraso. [...]em Os Corumbas é o operário [...]. (BUENO, 2006, p. 78).

O sonho da matriarca Josefa em viver na cidade impeliu a família de sertanejos em sua epopeia rumo ao desconhecido.  O que eles não esperavam era a substituição desse anseio por uma vida exacerbadamente mais sofrida. Do insucesso da iniciativa das personagens emergem seres privados de dignidade, silenciados e nulos politicamente. Amando Fontes expressa uma singular maneira de tornar visível a realidade humana e social, aproximando a literatura da história, com isso elabora um retrato eficaz da realidade, pois ao mesmo tempo em que coloca o homem e as relações humanas em foco, instaura um questionamento social, trabalhando um novo espírito crítico e alcançando importância não só documental, como também estética.

REFERÊNCIAS CANDIDO, Antônio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1964. _______. A literatura e a formação do homem. SP: Ática, 1972. _______. Literatura e subdesenvolvimento. SP: Ática, 1987.

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BUENO, Luís. Uma história do romance de 30. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006. DANTAS, Ibarê: História de Sergipe República (1989-200). RJ: Tempo Brasileiro, 2004. FONTES, Amando. Os Corumbas. RJ: José Olympio Editora, 1981. LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 2000.

A FORMAÇÃO DA PERSONAGEM LEITORA ATRAVÉS DO ENREDO EM NORTHANGER ABBEY Monica Chagas da Costa* (UFRGS)

O romance inicialmente intitulado Susan, escrito por volta de 1798, pela pena da inglesa Jane Austen, trata da história da formação de Catherine Morlando como mulher e como leitora. Publicado postumamente, em 1818, foi renomeado pelo irmão de Jane, Henry Austen, como Northanger Abbey. Neste trabalho, procura-se acompanhar o enredo da obra para esclarecer como ele trabalha na formação da figura de Catherine como uma leitora sob instrução. Northanger Abbey abre com a apresentação de Catherine Morland, a heroína da história, e sua família. A frase inicial já oferece algumas informações sobre o que esperar da personagem: “No one who had ever seen Catherine Morland in her infancy, would have supposed her born to be an heroine”1 (AUSTEN, 2006, 961). Ao mesmo tempo em que temos certeza de que ela será a heroína, uma vez que se o caso fosse o oposto a frase não teria o mesmo destaque, sabemos que o material humano com que iremos lidar não é exatamente o que esperaríamos de uma protagonista. Não apenas a sua família é grande e sem graça para ser digna de uma heroína, como a figura da menina não condiz com o que usualmente se relaciona com a imagem de uma. Ela não é inteligente, muito menos concentrada ou esforçada. Catherine é uma menina comum, sem nenhuma vocação aparente para a carreira de heroína. Segundo Gilbert e Gubar (1989), “Austen dramatizes all the ways in which Catherine is unable to live up to the rather unbelievable accomplishments of Charlotte Smith’s and Mrs. Radcliffe’s popular paragons. Heroine, it seems, are not born like people [...]”2. No entanto, é nesse lugar que ela é colocada, e, por mais que nossas expectativas ou, ainda melhor, as expectativas dos leitores acostumados com os romances a que Jane Austen se refere quando escolhe o termo “heroína”, estejam em aparente tensão com as características da personagem, a história do romance terá de buscar convencer seus leitores de que esta é uma figura válida de heroína. Condizendo um pouco mais com a figura da heroína, a personagem prepara sua sensibilidade através de leituras que “heroines must read to supply their memories with those quotation which are so serviceable and so soothing in the vicissitudes of their eventful lives.3” (AUSTEN, 2006, 962). O interesse por livros realmente úteis e informativos não aparece ainda, ela prefere, nesses casos, andar a cavalo, jogar cricket ou baseball, correr pelo campo. No entanto, suas leituras são as esperadas de uma menina de dezessete anos. A partir de então a falta de preparo da personagem é reduzida parcialmente, e ela já está apta a adentrar efetivamente na narrativa e ocupar o seu papel, “for though she could not write sonnets, she brought herself to read them.”4 (AUSTEN, 2006, 963), e isso é suficiente para que o narrador inicie o seu percurso. O enredo começa a se apresentar no fim do primeiro capítulo, quando o narrador aponta que “when a young lady is to be a heroine, the perverseness of forty surrounding families cannot prevent her. Something must and will happen to throw a hero in her way.”5 (AUSTEN, 2006, 963). Como na vila de Fullerton, onde Catherine vive, não há nenhum rapaz por quem ela possa se apaixonar, o Licenciada em Letras, UFRGS, Brasil E-mail: [email protected] “Ninguém que conhecesse Catherine Morland em sua infância imaginaria que ela haveria nascido para ser uma heroína” (tradução minha) 2 “Austen dramatiza todos os modos em que Catherine não consegue estar de acordo com as habilidades dos populares modelos de perfeição de Charlotte Smith e Mrs. Radcliffe. Heroínas, ao que parece, não nascem como gente” (tradução minha) 3 “Heroínas devem suprir suas memórias com aquelas citações tão úteis e acalentadoras para as vicissitudes de suas agitadas vidas.” (tradução minha) 4 “porque por mais que ela não escrevesse sonetos, ela se esforçava em lê-los” (tradução minha) 5 “Quando uma moça deve ser uma heroína, a perversidade de quarenta famílias não pode detê-la. Algo deve e vai acontecer para colocar um herói em seu caminho.” (tradução minha) *

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narrador se encarrega de colocar um acontecimento que a leve a sair de sua casa. Ele é proporcionado por um casal de vizinhos, sem filhos, que convida a moça para uma estada na cidade de Bath. Contrariando as expectativas do leitor acostumado a romances sentimentais, em que a heroína é seduzida por um homem de uma posição social elevada (como em Pamela, de Richardson), os pais de Catherine não a alertam para os perigos dos lordes e baronetes, mas para o perigo de gastar dinheiro sem controle ou andar com o pescoço descoberto no frio. A menina, também ao contrário de outras heroínas, deixa a casa sem a segurança de uma irmã confidente para quem escrever sobre as novidades de Bath. A moça parte de Fullerton quebrando, novamente, as expectativas quanto ao comportamento apropriado a uma heroína. A autora insere o tipo de tradição em que se baseia para criar o enredo da história, mas contraria o que o leitor dessas obras esperaria, construindo um texto que desvia do padrão. “Jane Austen never lets us doubt her dual intention in the narrative. She places before us both what a character should be if he were to conform with the Gothic mode, and what he really is.”6 (MUDRICK, 1976, 77) Mrs. Allen, a vizinha da heroína que a leva para Bath, supostamente deveria ocupar o lugar da acompanhante mais velha que dificulta o trajeto da protagonista. No entanto, o que acontece ao longo do romance é o contrário: ela se omite na hora de ajudar Catherine com suas decisões, e não presta muita atenção em qualquer outra coisa que não tenha relação com a qualidade da roupa das personagens que a cercam. As interferências, muito esparsas, são feitas por Mr. Allen, seu marido, e têm o tom de conselho muito mais que de ordem. Essas duas personagens montam para a protagonista um ambiente de relativa liberdade, em que sua principal diretriz é o próprio bom senso. Já em Bath, logo depois do fim do baile em que se conhecem, Catherine mais uma vez quebra a tradição da composição de romances. O narrador indica que ela, muito possivelmente, tenha se apaixonado antes do rapaz, e isso, “as a celebrated writer has maintained7”8 (AUSTEN, 2006, 970), é muito impróprio para uma heroína. Segundo Marilyn Butler (2011), “Catherine does just what she should not, falling in love with her man without waiting for him to make the first move9 […]”. No entanto, é por esse motivo que, ao final do romance, Henry irá se apaixonar e depois se declarar para a moça. A autora parece encadear os dois pontos do enredo para, mais uma vez, relativizar os protocolos previstos nas leituras dos romances sentimentais e góticos com os quais discute através de seu texto. O romance segue para um dos capítulos mais citados de Northanger Abbey, que apresenta a amizade de Isabella e Catherine se fortalecendo através do compartilhamento de leituras de romances. Com esse mote, a autora insere no texto uma “defesa do romance” contra a opinião comum de que eles seriam obras de menor qualidade. Apesar de ser uma opinião um pouco controversa, pois surge do fato de Isabella se engajar nesse tipo de leitura, o tom desse trecho é bastante apaixonado. É preciso, antes de tudo, contextualizar e procurar entender as razões de a autora advogar por este gênero. O sistema de produção editorial inglês sofreu na segunda metade do século XVIII um crescimento gigantesco. Os motivos de tal crescimento estão relacionados com as mudanças educacionais no sistema das Grammar schools e aumento do número de Sunday schools, com a expansão desenfreada do volume populacional (principalmente nas áreas urbanas), e, também, com novas técnicas editoriais. O aumento da alfabetização do público feminino gerou a necessidade da criação de um gênero que satisfizesse as demandas dessa nova classe leitora. Esse gênero é, por excelência, o romance. “Para os editores da época, a leitora era acima de tudo uma leitora de romances.” (LYONS, “Jane Austen nunca nos deixa duvidar de sua intenção dual na narrativa. Ela coloca à nossa frente o que a personagem deveria ser conforme o romance gótico e o que ela realmente é.” (tradução minha) 7 “Como um celebrado autor sugere” (tradução minha) 8 O autor a que Austen se refere é Samuel Richardson, no número 97 do periódico The Rambler: “That a young lady should be in love, and the love of the young gentleman undeclared, is an heterodoxy which prudence, and even policy, must not allow.” (RICHARDSON, 1751) [“que uma jovem moça se apaixone, sem o declarado amor de um jovem rapaz, é uma heterodoxia que a prudência, e até a diplomacia, não devem permitir” (tradução minha)] 9 “Catherine faz exatamente o que não devia, apaixonando-se por seu homem sem que ele dê o primeiro passo” (tradução minha) 6

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1997, 171). Portanto, não é surpreendente que os escritores independentes fossem aqueles que escrevessem com o olhar voltado para o público feminino (romances) e masculino (jornais e revistas). O que acontece com o gênero do romance é, portanto, que: A feminização do público leitor de romances parecia confirmar os preconceitos dominantes sobre o papel das mulheres e sua inteligência. Romances eram tidos como adequados para as mulheres por serem elas vistas como criaturas em que prevalecia a imaginação, com capacidade intelectual limitada, frívolas e emotivas. (LYONS, 1997, 171)

De certo modo, o público se confunde com o próprio objeto de leitura, e as características relegadas a um são associadas a outro. “The novel is a status-deprived genre, implies Austen, because it is associated with a status-deprived genre.10” (GILBERT & GUBAR, 1984, 131). Ao mesmo tempo em que Jane Austen, ao longo do enredo, parece demonstrar essa concepção de romance como gênero mais suscetível a problemas de leitura como a confusão entre a realidade e a ficção, ela propõe, em momentos como essa defesa, que se pense no gênero (da obra) para além do gênero (do leitor), ou vice-versa. Ela argumenta que o próprio escritor, como ela, deva apresentar suas personagens como leitoras de romances, e que: [...] while the abilities of the nine-hundredth abridger of the History of England, or of the man who collects and publishes in a volume some dozen lines of Milton, Pope, and Prior, with a paper from the Spectator, and a chapter from Sterne, are eulogized by a thousand pens, - there seems almost a general wish of decrying the capacity and undervaluing the labour of the novelist, and of slighting the performances which have only genius, wit and taste to recommend them. (AUSTEN, 2006, 974)11

De modo semelhante à heroína de seu romance, Jane Austen se coloca em um lugar em que somente “genius, wit and taste” podem recomendá-la ao leitor. Assim, ela se justifica na escolha de sua protagonista leitora de romances através desse discurso em prol do próprio gênero. No próximo capítulo, Austen põe em prática sua proposta, e apresenta Catherine e Isabella discutindo o romance que leem juntas, The Mysteries of Udolpho, de Ann Radcliffe. Miss Thorpe, então, produz uma lista de outros sete romances do mesmo estilo, indicados por sua amiga, Miss Andrews. Apesar de admirar a amiga por ter lido todos os romances da lista, Isabella parece mais preocupada no tipo de admiração que a outra moça desperta nos rapazes do que na sua capacidade de leitura. Logo depois, Catherine e Isabella saem do Pump-yard onde estavam e encontram James Morland e John Thorpe em Cheap-street. Os quatro voltam para casa juntos, e nessa caminhada Catherine e John discutem suas leituras. Mr. Thorpe é exatamente o leitor que a autora repreendera a momentos atrás: ele não admite ler romances, principalmente Udolpho, pois tem mais o que fazer – humilhando a interlocutora amante desse tipo de textos. No entanto, ele se contradiz, afirmando que apenas as obras de Mrs. Radcliffe (autora de Udolpho) valem a pena serem lidas. Catherine se decepciona com o caráter do irmão da amiga, uma vez que, somado à crítica irrefletida que ele faz ao gênero preferido da moça, está o fato de logo depois do fim da conversa ele ser indelicado com a mãe e as irmãs. Marilyn Butler (2011), referindo-se à relação de Northanger Abbey com as obras de outras três romancistas, esclarece a função de John Thorpe na história: “[He] is not merely a vulgar ‘rattle’ in the style of Mr. Dubster in Camilla, and a burlesque version of the Richardsonian villain who abducts the

“O romance é um gênero privado de status, sugere Austen, porque é associado a um gênero privado de status” (tradução minha) “Enquanto as habilidades do novecentésimo escritor da História da Inglaterra, ou do homem que reúne e publica em um tomo uma dúzia de versos de Milton, Pope e Prior, com um texto do Spectator, e um capítulo de Sterne, é elogiado por mil penas – parece haver um desejo geral de desdizer da capacidade do escritor de romances e menosprezar o seu trabalho, desprezando a performance daqueles que têm apenas seu gênio, sua inteligência e seu gosto para recomendá-los” (tradução minha)

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heroin in a carriage”12 (fato que acontece logo em seguida na narrativa) “he himself brings the topic of Camilla,” 13– na mesma conversa mencionada acima. “[...]. Any reader who has read it [Camilla] spots not only John Thorpe’s shortcomings as a critic for Burney’s novel, but his habit of acting as if he lived in it”14. A personagem é, portanto, um dispositivo para um jogo que Jane Austen propõe, que se estende desde o início até o fim de Northanger Abbey: “you must be a novel reader to play, or else you will not pick up the clues; you must be a general reader to score well”15 (BUTLER, 2011, xvi). Esse jogo, por assim dizer, faz parte da constituição do romance como “an ambitious, innovative piece of work, quizzically intellectual about fiction itself16” (BUTLER, 2011, xvi), ou seja, da obra da autora que mais reflete o que ela pensava sobre a ficção e, por associação, sobre o leitor. Assim, a grande rede de referências que ela articula em personagens como John Thorpe serve tanto para pensá-lo como parte da ficção criada à sua época, como enquanto leitor da própria criação ficcional. O segundo volume transfere o centro da narrativa da relação de Catherine com os Thorpes para a relação dela com a família Tilney. Catherine se prepara para deixar Bath; em um de seus últimos contatos com Isabella, percebe que a moça aceita muito facilmente a conversa de Capitão Tilney, e que seu irmão, James, se mostra muito enciumado. Ela discute o comportamento da amiga com Henry Tilney, que ironicamente a tranquiliza, com a certeza de que seu irmão vai embora da cidade em breve e que não pretende nada sério com Miss Thorpe. Na manhã em que parte de Bath, Catherine começa a conhecer melhor o caráter de General Tilney: impaciente, regrado, severo, irritadiço. Todas essas características se somam para associá-lo à figura que a heroína formará em sua mente: a do vilão da história, que possui segredos escondidos em sua própria casa e tendências homicidas. No entanto, ela falha em perceber que, ao invés de um malfeitor ligado a um passado de castelos e abadias, o General é um homem moderno, que tem como valores, acima de tudo, a melhoria de sua propriedade e o crescimento da renda e do prestígio da família. Nem mesmo quando já em Northanger, no tour em que ele leva a protagonista para conhecer a casa – chamando atenção para todas as reformas e melhorias que ele introduzira – Catherine percebe esse lado do pai de Henry, uma vez que está tão envolvida na fantasia gótica que a torna cega para outras leituras. Uma das razões pelas quais ela se deixa envolver tão facilmente nessa fantasia é a conversa com Henry, em que ele ironiza as expectativas da moça, inventando uma história para a sua iminente chegada à abadia. A narrativa de Tilney é baseada nas leituras góticas familiares a Catherine, e, por mais que ela diga “Oh! Mr. Tilney, how frightful! – This is just like a book! – But it cannot really happen to me. I am sure your housekeeper is not really Dorothy.”17 (AUSTEN, 2006, 1040), ela continua entretendo esperanças de encontrar esse tipo de enredo dentro da casa. É interessante pensar que, como coloca Martyn Lyons (1997), “o romance [...] é por si só um meio de sedução”, e que a ligação entre Tilney e as histórias pela qual é apaixonada seja a porta de entrada de sua visita a Northanger. O aspecto da abadia, contudo, logo na chegada decepciona a moça. Enquanto suas expectativas estavam relacionadas à decadência e à antiguidade, a verdadeira aparência de Northanger é moderna e confortável. A partir de então, Catherine se vê envolvida em uma série de cenas em que suas expectativas construídas através das leituras de romances como The Mysteries of Udolpho são “Ele não é simplesmente um tagarela qualquer no estilo de Mr. Dubster em Camilla, ou uma versão burlesca do vilão richardsoniano que sequestra a heroína em uma carruagem” (tradução minha) 13 “Ele mesmo levanta o tópico de Camilla” (tradução minha) 14 “Qualquer leitor que tenha lido o romance [Camilla] enxerga não somente suas falhas como crítico do romance de Burney, mas também seu hábito de agir como se vivesse dentro de um deles” (tradução minha) 15 “Você deve ser um leitor de romances para jogar, ou não vai entender as dicas; você deve ser um leitor geral para fazer uma boa pontuação” (tradução minha) 16 “Uma ambiciosa e inovadora obra, intrigantemente reflexiva sobre a própria ficção” (tradução minha) 17 “Oh, mr. Tilney! Que terrível! – É tão parecido com um livro! – Mas isso não pode acontecer comigo. Tenho certeza de que a empregada não é Dorothy” (tradução minha) 12

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quebradas, e uma nova forma de interpretação dos fatos é construída. De fato, a ligação dessas cenas com as histórias de Ann Radcliffe são altamente reconhecíveis. Portanto, por mais que haja a presença dessas obras, de qualidade reconhecida por Austen, na formulação do romance, a atenção do leitor se volta para o perigo de lê-las como apenas uma sucessão de acontecimentos terríveis. A autora parece apontar para a necessidade da criticidade e da reflexão no processo da leitura. Depois de todas as conjecturas a respeito da história da morte da mãe de Eleanor, com que Catherine se envolve logo na chegada à abadia, chega o momento de esclarecimento. Catherine encontra Henry na volta de sua (decepcionante) incursão ao quarto de Mrs. Tilney, e ele rapidamente compreende a fantasia criada pela moça. Nesse momento, “[h]is role as Chatherine’s unsentimental education is clear”18 (MUDRICK, 1984, 79). O rapaz clama pela razão de Catherine, argumentando: “Dear Miss Morland, consider the dreadful nature of the suspicions you have entertained. What have you been judging from? Remembering the country and the age in which we live. Remember that we are English, that we are Christians.”19 (AUSTEN, 2006, 1061). Depois desse pequeno discurso, a moça se retira com os olhos cheios de lágrimas de vergonha. Esse é, segundo Butler (1984), “the typical moment of éclaircissement towards which all the Austens actions tend, the moment when a key character abandons her error and humbly submits to objective reality”20. O próximo capítulo começa, desse modo, com a frase-chave “The visions of romance were over”21 (AUSTEN, 2006, 1061). A partir de então, ao invés de se deixar confundir pelos textos ficcionais com que tem contato, Catherine fica mais envolvida com outros tipos de textos, bem mais relacionados à sua vida real. Assim, na manhã seguinte ela lê não um romance, mas uma carta de seu irmão James, anunciando o fim do noivado com Isabella. Segundo Raymond Williams (2011), “Jane Austen orienta suas heroínas firmemente em direção a casamentos apropriados” de acordo com a fórmula moral geral que a guia em suas composições. Assim, Catherine finalmente formada enquanto leitora capaz, e merecedora de um marido com certo nível social e intelectual, levará como prêmio Henry Tilney. Entretanto, o oposto também é verdadeiro: Austen desencaminha suas personagens de casamentos não apropriados. O ingênuo James, bastante parecido com sua irmã, não merece ser enganado pela esperta Isabella. O noivado é desfeito e cada uma das partes recebe o que é de direito. Catherine consegue perceber isso, de fato, apenas depois da discussão do assunto, descrito na carta, com os amigos Eleanor e Tilney. A volta de Catherine para a casa de seus pais, e o comentário da autora sobre o seu destino são interessantes pois chamam atenção para alguns aspectos importantes da composição do romance. O primeiro é que a autora definitivamente se coloca em relação a outras escritoras mulheres, uma vez que “the author” é retomado como “she” ao final da frase. O segundo é a valorização da nobreza de títulos em romances com que Northanger Abbey; Catherine obterá esse selo de aprovação através do casamento de Eleanor com um lorde (o que também suaviza a opinião do general e permite que a heroína e o herói se casem), mas não com o próprio casamento. O terceiro aspecto é a marcação da diferença entre o relato que é apresentado e os outros; por mais que a autora se baseie em diferentes fontes de romances para construir o seu, sua criação é original. O fim, no entanto, não decepciona os leitores acostumados com o gênero, pois Henry, contra a vontade do pai, volta e se declara para Catherine. Apesar de terem de esperar algum tempo, todo o período de corte leva um ano desde a data em que os dois se conheceram. A heroína acaba em glória, casada e bem estabelecida como leitora e mulher. Assim como “Cervantes [em Dom Quixote] zombou dos romances de cavalaria que ainda existiam e do público que aceitava seus efeitos de credibilida “seu papel na educação não sentimental de Catherine está claro” (tradução minha) “Cara Miss Morland, pense na terrível natureza das suspeitas que você entretinha. Com que base você as julga? Lembrando do país e da época em que vivemos. Lembre-se de que somos ingleses, de que somos cristãos.” (tradução minha) 20 “o momento típico de éclaircissement para o qual todas as ações de Austen tendem, o momento quando uma personagem chave abandona seus erros e humildemente se submete à realidade objetiva” (tradução minha) 21 “As visões de romance haviam acabado” (tradução minha) 18 19

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de e seus códigos narrativos” (GOULEMOT, 2009, 113), Austen lança, em Northanger Abbey, uma crítica à levianidade com que eram tratados os romances góticos com que lidava e o público que se deixava envolver pela fantasia, sem nenhum tipo de criticidade.

REFERÊNCIAS AUSTEN, Jane. Northanger Abbey. In: ______. The Complete Novels. Introdução Karen Joy Fowler. Londres: Penguin Books, 2006. BUTLER, Marilyn. Introduction. In: AUSTEN, Jane. Northanger Abbey. Londres: Penguin Books, 2011. p. xi-xlx ______. The Anti-Jacobin Position. In: SOUTHAM, B. C. (ed.) Jane Austen: Northanger Abbey and Persuasion. London: Macmillan, 1976. p. 106-121 GOULEMOT, Jean Marie. Da Leitura como Produção de Sentidos. In: CHARTIER, Roger. Práticas de Leitura. Tradução Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. GILBERT, Sandra M. GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenthcentury Literary Imagination. New Haven: Yale University Press, 1984. LYONS, Martin. Os Novos Leitores no Século XIX: Mulheres, Crianças, Operários. In: CAVALLO, Guglielmo. CHARTIER, Roger (org.). História da leitura no mundo ocidental. Tradução Cláudia Cavalcanti (alemão); Fulvia M. L. Moretto (italiano); Guacira Marcondes Machado (francês); José Antônio de Macedo Soares (inglês). São Paulo: Ática, 1999. 2 v. p.165-202 MUDRICK, Marvin. Irony versus Gothicism. In: SOUTHAM, B. C. (ed.) Jane Austen: Northanger Abbey and Persuasion. London: Macmillan, 1976. p. 73-97 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.

ESTATUTO DA CIDADE: PRESERVANDO PATRIMÔNIOS Talissa Maldaner* (UPF) Janaína Rigo Santin** (UPF)

CONSIDERAÇÕES INICIAIS Ao longo das últimas décadas ocorreu um rápido processo de adensamento populacional das cidades brasileiros, devido o grande contingente de habitantes que migraram do campo para as áreas urbanas, em busca de melhores condições de vida e mais oportunidades. No entanto, como as cidades brasileiras já eram grandes, elas acabaram se expandindo desordenadamente e sem controle e planejamento adequados, favorecendo assim a formação de periferias, cortiços e habitações irregulares, ocupando áreas próximas à rios e encostas de morros, acarretando risco aos moradores e ao meio ambiente, principalmente em época de chuvas fortes (SANTIN, 2005). Em vista disso, aumentaram os embates e movimentos sociais para que fosse inserido na Constituição Federal de 1988 um espaço que tratasse da política urbana, do direito à cidade e à habitação. O que realmente se concretizou, com a inserção de um capítulo na Carta Magna que trata especificamente desse assunto, em seus arts. 182 e 183. Entretanto, as discussões não cessaram já que a Constituição reclamava uma lei ordinária federal capaz de regulamentar o capítulo sobre política urbana. Ela foi editada somente em 2001, denominada Estatuto da Cidade. Este importante instrumento estabelece que a política urbana dos municípios deve visar o desenvolvimento sustentável das cidades, de acordo com a sua função social (SANTIN, 2013). Dessa forma, o Estatuto da Cidade, é um importante instrumento legislativo com vistas a orientar a edição de Planos Diretores municipais mais sustentáveis, capazes de enfrentaros impasses históricos de anos sem planejamento nas cidades brasileiras e, principalmente, como será visto ao longo deste artigo, para proteger o patrimônio histórico, artístico e cultural, com vistas a que sejam utilizados de forma racional e equilibrada. O presente trabalho apresenta o que é o Estatuto da Cidade, num segundo momento traz os conceitos e a diferenciação do patrimônio histórico, artístico e cultural e por fim relata os principais mecanismos de defesa e proteção do patrimônio pelo Estatuto da Cidade.

1. ESTATUTO DA CIDADE: NOÇÕES GERAIS Em relação às políticas urbanas pode-se destacar a Lei 10.257 de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade, que é a esperança de mudança do cenário urbano brasileiro, pois surge como uma tentativa de democratizar a gestão das cidades brasileiras e de minimizar os graves problemas que assolam o país, decorrentes da rápida e desordenada ocupação do espaço.

Acadêmica do curso de Direito da Universidade de Passo Fundo- UPF. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da UPF (PIBIC/UPF).Passo Fundo, RS, Brasil. E-mail: [email protected] ** Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa; Bolsista CAPES; Doutora em Direito pela UFPR; Mestre em Direito pela UFSC; Professora do Mestrado em Direito e do Mestrado e Doutorado em História da Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, RS, Brasil. E-mail: [email protected] *

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A Lei 10.257/2001 foi criada para regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que tratam da política urbana, e está organizado em cinco capítulos. O primeiro capítulo refere-se às diretrizes gerais para a política urbana, envolvendo parcerias entre entes federais, estaduais e municipais. Na segunda, aborda os instrumentos de política urbana aptos a tornar as cidades mais sustentáveis. Em sequência, o terceiro capítulo aborda o Plano Diretor, o qual, conforme art. 40 da referida lei e artigo 182 caput da Constituição Federal, é de competência municipal e é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. A quarta parte do Estatuto da Cidade alude à gestão democrática, conquista que garante a participação de toda a população nas decisões tomadas pela municipalidade relativas ao direito urbanístico. E por fim, o último capítulo versa sobre as disposições gerais, em especial sanções pelo descumprimento de suas disposições, como a aplicação da lei de improbidade administrativa. O Plano Diretor é essencial, pois irá concretizar em âmbito municipal todas as diretrizes e instrumentos de política urbana dispostas na lei ordinária e na Constituição Federal. Mas deve-se atentar ao fato de que os municípios que são obrigados a ter um Plano Diretor devem editá-lo com urgência, para que este esteja adequado ao Estatuto da Cidade. Para tanto, a participação dos cidadãos na cobrança da edição de um Plano Diretor Sustentável representa importante papel, à medida que são responsáveis pela garantia da aplicação das medidas debatidas no plano, reafirmando a gestão democrática participativa. Vale destacar que o objetivo primordial do Estatuto é o de ordenar o pleno desenvolvimento da função social da cidade e da propriedade urbana, conforme disposto em seu art. 2º. Logo, ele dá condições para que o município empenhe-se na busca por cidades mais sustentáveis, englobando o direito à moradia, saneamento, infraestrutura urbana, trabalho e lazer, garantindo não só para as presentes mas também para as futuras gerações (SANTIN, 2013). Por fim, cabe ressaltar que o Estatuto da Cidade traz poderosos instrumentos no que tange à proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural. Reforça e obriga a atuação do poder público municipal nesse sentido, contrariamente à desatenção histórica com o que se marcou a gestão pública brasileira na proteção do patrimônio. Mas antes de detalhar todos os dispositivos, é preciso compreender o significado de cada um desses conceitos.

2. PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARTÍSTICO E CULTURAL Sabe-se da importância do patrimônio das cidades para a cultura de uma nação. Conforme a Declaração de Caracas: “O Patrimônio Cultural de uma nação, de uma região ou de uma comunidade é composto de todas as expressões materiais e espirituais que lhe constituem, incluindo o meio ambiente natural” (INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS, 1999). Logo, o patrimônio é o conjunto de bens que contam a história de um povo e a sua relação com o meio ambiente. De acordo com o Iphan: A Constituição Federal de 1988 revitalizou e ampliou o conceito de patrimônio estabelecido pelo Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, substituindo a nominação Patrimônio Histórico e Artístico, por Patrimônio Cultural. Essa alteração incorporou o conceito de referência cultural e significou um aprimoramento importante na definição dos bens passíveis de reconhecimento, sobretudo os de caráter imaterial. A Constituição inova, ainda, quando estabelece parceria entre o poder público e as comunidades para a promoção e proteção do Patrimônio Cultural Brasileiro. Mas, mantém a gestão do patrimônio e da documentação relativa aos bens sob responsabilidade da administração pública [...] (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, [2015?]).

Por conseguinte, busca-se a valorização do patrimônio cultural com a participação de todos os setores e camadas da sociedade brasileira. E por isso o presente artigo ressalta o significado de cada tipo de patrimônio, que pode ser classificado em Histórico, Artístico e Cultural.

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O patrimônio histórico foi construído pelas sociedades passadas e é uma importante fonte de pesquisa e de preservação da identidade e da cultura dos antepassados. Compreende equipamentos e construções, é o conjunto arquitetônico em zona urbana e rural, o qual deve ter seu valor histórico preservado (LEDUR, 2012). O patrimônio artístico, segundo Magalhães, pode ser classificado como “os locais para a manifestação das mais diversas criações artísticas, como por exemplo, as composições musicais e a poesia”. (MAGALHÃES, 2007). Também aqui são citadas obras de arte, pinturas, esculturas, o traçado dos prédios urbanos conforme as diversas fases arquitetônicas, etc. Já o patrimônio cultural, que pode ser material ou imaterial, está relacionado diretamente com a identidade, a memória, entre outros fatores que contribuíram para a formação dos grupos que compõem a sociedade brasileira, conforme consta no artigo 216 da Constituição Federal de 1988. São exemplos de formas de expressão o patrimônio cultural: os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. Pode-se citar como patrimônio cultural as festas religiosas, procissões, quermesses, jornadas literárias, rodeios, carijos da canção, etc. O patrimônio deve ser reconhecido e analisado como de interesse coletivo. Para tanto, os trabalhos de proteção devem ser reforçados, para garantir a memória e a identidade da sociedade brasileira.

3. INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO O tema patrimônio está previsto em diversos dispositivos, não se encontra apenas na Constituição Federal, mas também em leis específicas, como é o caso da Lei nº 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade, que estabelece em seu artigo 2º, XII, que deve-se proteger, preservar e recuperar o meio ambiente natural e construído, o patrimônio cultural, histórico e artístico. Essa lei visa melhorar a qualidade de vida das pessoas e também garantir o desenvolvimento qualitativo da cidade, sem comprometer a memória e a identidade do ambiente (SANTIN, 2013). Vale destacar o papel do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – órgão que atua no Brasil na gestão, proteção e preservação do patrimônio histórico e artístico. Como consta no site, o Instituto é: Uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura que responde pela preservação do patrimônio cultural brasileiro. Cabe ao Iphan proteger e promover os bens culturais do País, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. Sua missão é promover e coordenar o processo de preservação do patrimônio cultural brasileiro para fortalecer identidades, garantir o direito à memória e contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, [2015?]).

Logo, esse instituto, que é pioneiro na América Latina, zela pelo cumprimento dos instrumentos legais a fim de proteger o patrimônio cultural e os bens que tenham grande valor identidade do país. Em se tratando de legislação, tem-se a Lei nº 7.347/1985, que trata da ação civil pública e responsabiliza quem causa dano aos bens de valor artístico, histórico, turístico e paisagístico. Já a Constituição Federal enumera um rol de instrumentos de proteção muito importante, como o artigo 23, que estabelece competência comum entre todos os entes federados na proteção dos bens de valor histórico, artístico e cultural, com vistas a impedir que sejam destruídos.

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Oportuno também colacionar aqui o Decreto-Lei nº 25/1937, o qual organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Afirma que o patrimônio histórico e artístico nacional é o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. Para tanto, o Decreto nº 25 de 1937 regula o tombamento, mais importante instrumento para a proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural. Trata-se de um processo de proteção, no qual o imóvel não pode ser demolido nem mesmo reformado, pode apenas ser restaurado, para manter suas características originais. O proprietário desse imóvel tem o bônus de continuar exercendo o direito de posse e propriedade, mas deve garantir a característica e forma original, sob pena de sanções penais e civis. (SANTIN, 2013). Segundo o Iphan, o tombamento é o mais tradicional dos instrumentos de reconhecimento e proteção do patrimônio nacional, percebemos isso nos dados divulgados pelo Instituto: Aplicado aos bens de natureza material desde 1937, em 2014 atingiu o total de 1113 bens materiais tombados pelo Iphan, incluindo monumentos, conjuntos urbanos e paisagísticos, coleções e objetos de arte. Nesse universo, é importante ressaltar o significativo número de conjuntos urbanos – 78 bens – que resulta em aproximadamente 70 mil imóveis tombados pelo Iphan (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, [2015?]).

O Instituto ainda protege por meio da tutela esses bens tombados, que se subdividem em bens móveis e imóveis, estes incluem, ainda, “equipamentos urbanos e de infraestrutura, paisagens naturais, ruínas, jardins e parques históricos, terreiros e sítios arqueológicos” (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, [2015?]). Veja-se que a proteção é uma ação muito importante, pois impede que o bem desapareça ou até mesmo que seja destruído, mantendo-o preservado para as futuras gerações. Ainda cabe mencionar que a Constituição Federal de 1988 estabelece o dever do Poder Público em proteger o patrimônio por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação e outras formas de acautelamento e preservação como, por exemplo, as operações urbanas consorciadas, a outorga e a transferência do direito de construir. Vê-se a grande preocupação do constituinte e do legislador ordinário em instituir medidas protetivas a esses bens de grande valor para a história e a cultura da sociedade brasileira. Entretanto, apesar de se perceber que são inúmeros os instrumentos legais e constitucionais de proteção, muitos centros históricos, obras de arte e monumentos são abandonados e deteriorados pela ação do tempo. Há um grande descaso com muitos edifícios históricos, deteriorados, desocupados ou servindo de abrigo para as pessoas de baixa renda, traficantes e usuários de drogas, dentre outros, o que agrava as condições de degradação dos locais. Nas palavras de Moraes: Cabe destacar que o abandono de prédios e centros históricos das cidades, não apenas prejudica a memória e identidade de um país como cria condições favoráveis à marginalidade e ao desequilíbrio social, haja vista a desvalorização dos imóveis e a ocupação clandestina, que acelera a depredação desse patrimônio que, em alguns casos, pertence à humanidade (MORAES, 2006, p. 1).

Vê-se o quanto é importante medidas protetivas por parte do Poder Público a esses espaços. Com base em experiências positivas, observa-se que o principal uso dos prédios restaurados é essencialmente relacionado à cultura e lazer. Assim, preserva-se a história brasileira, propicia-se o desenvolvimento de atividades econômicas voltadas ao turismo, além de criar novos espaços necessários ao lazer da população, sem precisar depredar e prejudicar esses espaços de valor histórico (MORAES, 2006). A conservação do patrimônio é de interesse público, pois são bens vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil, à identidade de seu povo e também por terem excepcional valor artístico e cultural. Logo, as formas de proteção devem ser cada vez mais reforçadas, para aumentar não só

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sua abrangência como também tornar mais rigorosa a punição daqueles que causem danos ao patrimônio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim sendo, o Poder Público deve adotar as medidas cabíveis – iniciando-se principalmente pelos municípios – capazes de viabilizar o planejamento e a aplicação dos instrumentos contidos no Estatuto da Cidade. Editar planos diretores participativos, capazes de dar condições para o desenvolvimento sustentável da cidade, com vistas à proteção ambiental, ao crescimento econômico e à justiça social. E nessa pauta de sustentabilidade primordial uma agenda para recuperação, proteção e preservação dos prédios históricos, bem como desenvolver projetos turísticos e comerciais nesses locais, construindo assim uma cidade melhor para as presentes e futuras gerações. O Poder Público municipal deve adotar uma política urbana adequada e eficaz, com vistas a atender as necessidades da população conjugadas à proteção do patrimônio material e imaterial, dos bens móveis e imóveis, prédios e ruínas, paisagens naturais e construídas; enfim, tanto o patrimônio histórico, quanto o artístico e o cultural devem ser preservados, pois todos eles, de alguma forma, caracterizam a história e a cultura brasileira. Além disso, deve-se buscar a sustentabilidade das cidades: valorizar a ideia de que adequar e reformar edifícios é melhor do que demolir, e também que é necessário respeitar a identidade dos bairros, qualificando os espaços sem desconsiderar o que preexistia. Toda a coletividade tem direito de usufruir desses espaços, mas também tem o dever de preservá-los para as presentes e futuras gerações. O que não pode acontecer é o empobrecimento da expressões culturais e o esquecimento das memórias e da identidade que formou a sociedade brasileira. É preciso valorizar a cultura e seus espaços e divulgar pelo mundo o que as cidades brasileiras tem de melhor em relação ao seu patrimônio histórico, artístico e cultural.

REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. INSTITUTO BRASILEIRO DE ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL (IBAM). Estatuto da cidade: para compreender... Rio de Janeiro: s. n., 2001. INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Patrimônio Cultural. Base de dados. Iphan, Brasília, [2015?]. Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/218>. Acesso em: 11 jan. 2016. INTERNATIONAL COUNCIL OF MUSEUMS. Cadernos de Sociomuseologia: Declaração de Caracas. In: SEMINÁRIO “A MISSÃO DOS MUSEUS NA AMÉRICA LATINA HOJE: NOVOS DESAFIOS“, 1, jan. – fev. 1992, Caracas. Anais eletrônicos. Caracas: s.n., 1999. Disponível em: . Acesso em: 11 jan. 2016. LEDUR, F. A. P. A Educação Patrimonial Formal Como Elemento Reconhecedor do Patrimônio Cultural em São Mateus do Sul – PR. 2012. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional) – Universidade do Contestado, Canoinhas, 2012. MAGALHÃES, H. Patrimônio Cultural, Histórico e Artístico. [artigo científico]. Uberlândia: s.n., 2007. Disponível em:< http://www.direitoambiental.adv.br/ambiental.qps/Ref/QUIS-7BUHBM>. Acesso em: 11 jan. 2016. MORAES, I. R. O Estatuto da Cidade e a Proteção Jurídica do Patrimônio Histórico Cultural Urbanístico. Manaus. 2006. Disponível em: < http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/manaus/novos_desafios_isaac_ribeiro_de_moraes.pdf>>. Acesso em: 21 jul. 2015.

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SANTIN, J. R. A gestão democrática municipal no Estatuto da Cidade e a teoria do discurso Habermasiana. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, v. 42, n. 0, 2005, p. 121-131, 2005. SANTIN, J. R. Estatuto da Cidade e Instrumentos de Política Urbana para Valorização do Patrimônio Histórico, Cultural, Paisagístico e Ambiental. Revista de Direito Ambiental, v. 70, 2013, p. 195-213, abr. – jun. 2013.

RESSIGNIFICAÇÃO DA REPRESENTAÇÃO DE ZUMBI E DO CONCEITO DE QUILOMBO NA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA Tani Gobbi dos Reis* (URI/FW) Denise Almeida Silva** (URI/FW) Conhecido na História do Brasil, Zumbi é o sujeito que chefiava o quilombo dos Palmares, este era local onde se escondiam ou eram abrigados os escravos fugidos de senzalas e fazendas, onde serviam com sua força braçal no trabalho do campo e eram submetidos a violentas formas de tortura como forma de punição. Do conceito de espaço de escravos fugidos em busca de sua libertação, o termo quilombo sofreu várias ressignificações ao longo dos séculos; o mesmo ocorreu com a representação da figura histórica de Zumbi dos Palmares que, embora, não deixou de ser o chefe, a lideração maior e símbolo de resistência, nos é apresentado um novo olhar, sob o viés da voz silenciada, da minoria, do negro. O ensaio revisa, ainda que superficialmente, as novas significações dos termos quilombo e Zumbi, tem como corpus analítico os poemas “Linhagem”, Carlos Assunção, em Cadernos Negros 9 (1986) e “Sonhos I e II”, integrantes do poema longo “Quilombos”, de José Carlos Limeira (2011), e o conto de Cuti, “Dívidas em vida”, publicado em Cadernos Negros 16 (1993). Embasam o trabalham pesquisas sobre a história do quilombo e reflexões sobre o quilombismo, sobretudo as de autoria de Abdias Nascimento, Conceição Evaristo e Márcio Barbosa. Historicamente, os quilombos representaram uma forma de resistência à escravidão, de reivindicar seu próprio espaço, frente às injustiças e desigualdades sofridas pelos negros na época escravocrata. O conceito de quilombo passou por várias transformações, desde o termo para designar as habitações de negros fugitivos até adquirir sentido ideológico, como nos apresenta Beatriz Nascimento (2006) É no final do século XIX que o quilombo recebe o significado de instrumento ideológico contra as formas de opressão. Sua mística vai alimentar o sonho de liberdade de milhares de escravos das plantações em São Paulo, mais das vezes através da retórica abolicionista. Esta passagem de instituição em si para símbolo de resistência mais uma vez redefine o quilombo [...] É enquanto caracterização ideológica que o quilombo inaugura o século XX. Tendo findado o antigo regime, com ele foi-se o estabelecimento como resistência à escravidão. Mas justamente por ter sido durante três séculos concretamente uma instituição livre, paralela ao sistema dominante, sua mística vai alimentar os anseios de liberdade da consciência nacional [...] Este momento de definição da nacionalidade faz com que a produção intelectual se debruce sobre este fenômeno buscando seus aspectos positivos como reforço de uma identidade histórica brasileira. Mas não só nela, em outras manifestações artísticas o quilombo é relembrado como desejo de uma utopia[...]

Ao analisarmos esta conotação, não poderíamos esquecer da heroicidade tão intrinsecamente ligada à história dos quilombos. Como não poderia deixar de ser, a figura do herói é enormemente destacada, principalmente a figura de Zumbi, e isto mais do que tudo neste período ganha uma representação capaz de ao lado de muito poucos a imagem deste chefe se confundir com uma alma nova nacional [...] (NASCIMENTO, 2006, p. 122-123). Parafraseando Abdias Nascimento (2009, p. 205), quilombo significa “reunião fraterna e livre”, em que a sociedade quilombola convive em comunhão, representa uma etapa no progresso humano e sociopolítico em termos de igualitarismo econômico, uma vez que se assume como tal, ser-humano, cidadão, com direitos e deveres e com uma função social e política. Mestranda em Literatura comparada, pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen, e graduada em Comunicação Social/Jornalismo, pela UFSM/CESNORS – Câmpus de Frederico Westphalen. E-mail: tani@ uri.edu.br ** Doutora em Letras, pela UFRGS, Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Câmpus de Frederico Westphalen. E-mail: [email protected] *

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O quilombismo preza pela vida coletiva dos quilombolas, ou seja, [...] Não há propriedade privada da terra, dos meios de produção e de outros elementos da natureza – todos os elementos básicos são de propriedade e uso coletivo. Uma sociedade criativa, no seio da qual o trabalho não se define como uma forma de castigo, opressão ou exploração; o trabalho é antes uma forma de libertação humana de que o cidadão desfruta como um direito e uma obrigação social [...] (NASCIMENTO, 2009, p. 205).

1. OBJETOS E ANÁLISE 1.1. SONHOS I E II, “QUILOMBOS”, DE JOSÉ CARLOS LIMEIRA Sonhos I O rei de Portugal Mandou ao meu povo matar Se Palmares ainda vivesse Em Palmares queria estar Cumbe na Paraíba, Alagoas, Macaco e Subupira Mangueira, São Carlos, Portela na Avenida São quantos? Ontem morri em Andalaquituche, Tabocas, Amaro, Acotirene Hoje no Juramento, Borel, Turano, Salgueiro, Curuzu... Morro subindo morro Rolo ladeira cada dia com decidido ar de defunto novo Quando desce a noite, vejo em cada fundo de prato o reflexo da luz da vela E sonhos pra devorar Sonhos II Te vejo meu povo feliz Teu sonho querendo sentir Se Palmares ainda vivesse Pra Palmares teria que ir Você já pensou se Domingos Jorge Velho e sua malta Não houvessem tido tanta sorte? Já pensou naquele país da serra da Barriga? Sei que talvez não, É difícil imaginar uma terra Onde não fosse possível ver Uma negra Ter que mostrar a bunda Abrir as coxas, tirar das entranhas o pão de cada dia Onde não fosse possível ver Criancinhas De dez, oito, seis anos Voltando às quatro da manhã Depois de vender chicletes e o último resquício de dignidade Nos cruzamentos da cidade. (LIMEIRA, 2011, p. 195-197)

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Tanto “Sonhos I” quanto “Sonhos II” possuem a característica de denúncia, pois, através dos versos: “Quando desce a noite, vejo em cada fundo de prato o reflexo da luz da vela” (Sonhos I); e “É difícil imaginar uma terra/ Onde não fosse possível ver/ Uma negra Ter que mostrar a bunda/ Abrir as coxas, tirar das entranhas o pão de cada dia/ Onde não fosse possível ver/ Criancinhas/ De dez, oito, seis anos/ Voltando às quatro da manhã/ Depois de vender chicletes e o último resquício de dignidade/ Nos cruzamentos da cidade.” (Sonhos II) podemos perceber a miséria e o sofrimento representados nos poemas. “Sonhos I” retoma a história dos quilombos citando os principais espaços históricos: “Cumbe na Paraíba, Alagoas, Macaco e Subupira/ Mangueira, São Carlos, Portela na Avenida”. Já em Sonhos II, o poeta nos apresenta o cenário do alto da serra da Barriga, onde se localizava o quilombo de Palmares – um dos quilombos mais ricos e de maior organização e força do povo negro brasileiro: “Já pensou naquele país da serra da Barriga?”. Nos versos iniciais, em ambos os poemas, Palmares se caracteriza como um “paraíso” para os negros, o quilombo é o Sonhos Idealizado por eles, desejo explicitado no “Sonhos I”: “Se Palmares ainda vivesse/ Em Palmares queria estar”; e, também, impossível, pois Palmares não existe mais: “Teu sonho querendo sentir/ Se Palmares ainda vivesse/ Pra Palmares teria que ir”, mas nota-se nesses dois últimos versos que, ainda, há esperança de viver esse sonho em que as mulheres não tenham que se prostituir para obter o alimento e onde as crianças não precisem trabalhar, um lugar em que as pessoas vivam dignamente.

1.2. “LINHAGEM”, DE CARLOS ASSUNÇÃO Eu sou descendente de Zumbi Zumbi é meu pai e meu guia Me envia mensagens de orum Meus dentes brilham na noite escura Afiados como o agadá de Ogum Eu sou descendente de Zumbi Sou bravo valente sou nobre Os gritos aflitos do negro Os gritos aflitos do pobre Os gritos aflitos de todos Os povos sofridos do mundo No meu peito desabrocham Em força em revolta Me empurram pra luta ma comovem Eu sou descendente de Zumbi Zumbi é meu pai é meu guia Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim Eu tragos os duros punhos cerrados Cerrados como rochas Floridos como jardins (ASSUNÇÃO, 1986) Assim com há uma valoração das raízes dos afrodescendentes que foram escravizados, há uma firmação dessa identidade, expressa nos versos: “Eu sou descendente de Zumbi/ Meus dentes brilham na noite escura/”. O poema além de abordar a condição do negro escravizado no Brasil, os

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estima de modo que os afirmam perante o mundo e as coisas negras, “fugindo do discurso produzido nas décadas anteriores carregado de lamentos, mágoa e impotência” (EVARISTO, 2010, p. 8). O poeta, num jogo de palavras, explorando som e significado das palavras na construção do poema, recria o episódio das lutas de Palmares, promovendo a ascensão de Zumbi, como líder maior dos quilombos, para se tornar um guia. Percebemos a consciência poética da luta e a afirmação dos negros, tendo Zumbi como símbolo-maior, se constrói mais fortemente nos versos: “Zumbi é meu pai é meu guia/ Eu trago quilombos e vozes bravias dentro de mim”. A partir da representação e da rememoração da memória de Zumbi do Palmares e das lutas dos negros há uma reconquista de espaço, de identidade, propiciando ao afrodescendente resistir e se firmar enquanto ser. Além do mais, Carlos Assunção relembra os maus-tratos sofridos pelos negros, e a bravura do eu-lírico em resistência à escravidão. O poema é também uma forma de protestar, de prestar solidariedade e respeito à memória daqueles que ruíram como Zumbi e todos aqueles que contribuíram para a luta organizada e coletiva que foi a vida nos quilombos.

1.3. DÍVIDA EM VIDA, DE CUTI O conto tem como cenário um anfiteatro, o qual estava lotado pelos: “Brancos cujos Melhores Amigos são os Negros”, os “Não tive a Intensão de Ofender”, a “Senhora Democracia Racial”, o “Deputado Amor Não Tem Cor”, o “Reverendo Somos Todos Iguais”, e outras autoridades políticas, militares, empresariais e eclesiásticas. Estavam para uma palestra que chegava ao fim, com o microfone, estava o “Dr. Zumbi”, que abandonando a posição de orador, abriu um enorme baú e começou e retirar objetos e dispondo-os sobre uma mesa, haviam “correntes, chicotes, grilhetas, máscaras de folha de flandres, centenas de orelhas arrancadas à faca, cacetetes de vários tipos, paus-de-arara e outros que tais” (CUTI, 1993, p. 47). O autor utiliza metáforas para fazer menção às torturas, ao tempo de sofrimento e a distância entre os continentes africano e americano, como pode ser apreciado com a seguinte transcrição: “Um século depois, retomou sua exposição, após um gole de Oceano Atlântico bastante avermelhado.” (CUTI, 1993, p. 47). Zumbi retorna a falar ao público expondo quantos trabalhadores foram escravizados, maus-tratados, sem receberem salário, então, após o cálculo, chega ao montante de seiscentos bilhões de dólares, pois foram, em média, dois mil e quinhentos trabalhadores por século, ou seja, trezentos anos, multiplicando pelos doze meses do ano, e depois pelo salário mínimo, Zumbi chegou ao total de US$ 600.000.000.000 (CUTI, 1993, p. 47). E complementa: Gostaria de salientar que, por motivos patrióticos, não foram considerados décimo terceiro, férias em dobro, semana inglesa, seguro desemprego, indenizações por invalidez e morte, aposentadoria, vale refeição, insalubridade, PIS, vale transporte e outros benefícios atuais. Os prejuízos psicológicos advindos de torturas, estupros e outras formas de sadismo praticadas por seus antepassados, nada disso foi computado. A crueldade refinada dos senhores, atualmente, também deixamos de lado. Vamos inaugurar um novo tempo (CUTI, 1993, p. 47).

Pelo transcorrer da trama, o conto de Cuti, também, poderia se chamar Acerto de contas uma vez que, criativamente, o autor coloca Zumbi como Doutor e protagonista da narrativa, cobrando as dívidas passadas dos afrodescendentes e os demais personagens que, inversamente do que geralmente ocorria, neste conto não tem voz, são apenas espectadores.

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PALAVRAS FINAIS Após as análises percebe-se que o conceito de quilombo continua atrelado a um espaço para tratar a discriminação e desvalorização do negro, como um refúgio, mas também, onde ele pode viver com seus direitos preservados. Por meio da literatura, diga se de passagem também coletiva, tornou-se possível uma reconstrução positiva dessa identidade negra, uma vez que, como evidenciado nesse estudo, a literatura se constitui em espaço de reivindicação de uma cidadania alcançada a partir de referenciais simbólicos. Se a figura do quilombo é uma imagem coletiva, mítica, de um espaço étnico, o texto literário se constitui num momento decisivo da passagem do individual ao coletivo, ou seja, integração individual à coletividade metafórica do quilombo. A figura do Zumbi representada no conto e no poema de Assunção continua sendo o líder maior, sendo referência aos demais negros. O que os autores proporcionaram foi dar uma possível voz aos silenciados pela “História”, quem, nos fala é a voz refugiada. E assim como Zumbi é símbolo da resistência negra, vai ser reverenciado ora como vítima, ora como herói. Isso se dá, pelo fato de que as raízes da cultura e da vivência afro-brasileira estão profundamente ligadas nos fatos históricos.

REFERÊNCIAS ASSUNÇÃO, C. Linhagem. In: Cadernos Negros 9, poemas. São Paulo: Edição dos autores, 1986. CUTI. Dívida em vida. In: Cadernos Negros 16, contos. São Paulo: Edição dos autores, 1993. EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma voz quilombola na literatura brasileira. Um tigre na floresta de signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil. 1. ed. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2010.Disponível em: . Acesso em: 03 set. 2015. LIMEIRA, J.C. Quilombos. Repertório, Salvador, n. 17, p.195-197, 2011. Disponível em: . Acesso em: 03 set. 2015. NASCIMENTO, A. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população afro-brasileira. In: NASCIMENTO. E. L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro Edições, 2009. (Coleção Sankofa, vol. 4). NASCIMENTO, B. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa oficial, 2006. p. 117125. Disponível em: . Acesso em: 5 set. 2015

LITERATURA E MEMÓRIA: ALICERCES PARA A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DOS POVOS MISSIONEIROS1 Tanise Corrêa dos Santos* (UPF) Nelci Müller** (URI)

Sobre a história das Missões existem inúmeros estudos, em especial, sobre a história fundacional, porém, no aspecto literário ainda há muito para ser resgatado e estudado, em particular, sobre as várias etnias que compõem esta região. Na primeira parte, avaliaram-se as memórias literárias dos povos Mbyá, Espanhol e Português, pois este estudo examina a contribuição da etnia portuguesa, quanto às memórias literárias, aliás, para o estudo completo levou-se cinco anos para sua concretização. Deve-se salientar a importância do patrimônio cultural da Região das Missões, especialmente no que se refere à herança literária, relacionada a seus afazeres quotidianos e ciclo vital, em seus vários gêneros textuais de cunho social e religioso, de testemunho oral ou escrito, para que a herança não se apague com o tempo, mas permaneça viva na memória de todos. Os pressupostos teóricos que embasam este estudo são de duas ordens: uma literária, fundamentada na relação literatura e sociedade, conforme Antônio Cândido e a outra sobre as questões da memória fundamentada em Pierre Nora e Maurice Halbwachs. Estes reflexionam sobre a memória e os esquecimentos e silêncios relacionados a ela. Além disso, Paul Veyne oferece distinções entre literatura e história a serem consideradas neste estudo. A metodologia tem como suporte a pesquisa bibliográfica e os testemunhos de tradição oral.

1. CONTRIBUIÇÃO DAS ETNIAS NA CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DAS MISSÕES Pela importante contribuição de diversas etnias na construção da região das Missões, pelo patrimonial e cultural e, também, pela escassa ou ausência de uma bibliografia especializada que realcem, em especial, a sua produção literária, justifica-se a realização deste estudo ao pretender o resgate da herança literária das várias etnias, especialmente, as etnias mbyá-guarani, a portuguesa e a espanhola, nesta primeira etapa de pesquisa, a qual surgiu com os estudos de Müller (1991) sobre as representações da literatura o romance das Missões. As etnias possuem patrimônio cultural variado, seja pelas obras que agora figuram como patrimônio de inestimável valor histórico e cultural, seja pela sua história que é parte fundamental da região, seja ainda pela sua herança literária pouco conhecida e divulgada, porém muito rica e interessante.

Primeira etapa do Projeto de Iniciação Científica Missões: literatura, História, Memória, apoiado com bolsa PIBIC/CNPq (2005-2008). Mestranda em Estudos Linguísticos – Linha de Constituição do Texto e discurso da Universidade de Passo Fundo – Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected] ** Doutor em Teoria da Literatura pela PUC - RS. Professora da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões- Campus de Santo Ângelo – RS. E-mail: [email protected] 1 *

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1.1. HERANÇA PORTUGUESA O homem não se despoja de sua cultura pelo simples deslocamento. Assim, pois o folclore açoriano, transportou-se para as áreas rio-grandenses. Os costumes trazidos aos poucos evoluíram, sem que houvesse profunda modificação, em contato com elementos estranhos. Firmava-se aqui, uma etnia em pleno processo de fusão, porém culturalmente coesa pela unidade do idioma. A Literatura Oral, criada ou assumida pelo grupo social, o acompanha em sua trajetória pelos novos mundos, interagindo nos falares, poesias, danças, brincadeiras, alcançando a compreensão de todos, adaptando-se no espaço e no tempo (BARROSO, 1997, p. 61). Os adágios (provérbios ou ditados), enunciados em frases curtas e singelas, sintetizam a sabedoria de vida, adquirida na experiência dos séculos e refletem a bagagem cultural dos povos entre os quais eles transitam. Conhecem-se vários adágios oriundos dos portugueses que podem sugerir o tipo de relação social ao qual está vinculado: poder, amizade, crença, administração. Campos (In: BARROSO, 1997, p. 38) afirma que o único adágio a falar do poder do dinheiro é este: “O dinheiro fala todas as línguas.” Além desse adágio há outros mais conhecidos e utilizados pelos habitantes da atual Região das Missões, como esse: “A quem o feio ama, bonito lhe parece”, sobre a relatividade da beleza. Vejamos mais alguns adágios utilizados e difundidos na Região das Missões: A mulher e a galinha Não se deixa passear A galinha o bicho come, A mulher dá o que falar. Quem pode, pode, Quem não pode se sacode. Fiz a cama na varanda, Esqueci do cobertor Deu o vento na roseira Me cobriu toda de flor. Os descendentes da Ilha de Faial, nos legaram vários provérbios de sabedoria popular, como estes: A cavalo dado não se olha o dente. Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura. Da Ilha do Pico também herdamos alguns provérbios, como estes: A união faz a força. Cada terra com seu uso cada roca com seu fuso. Devemos mencionar os adágios procedentes da Ilha de Santa Maria: A bom entendedor meia palavra basta. Não troques o certo pelo duvidoso. Depois do mal feito, Chorar não é proveito.

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O adágio “Cada louco com a sua mania” é proveniente da Ilha Terceira. Da Ilha de Graciosa, temos: “De pequenino se torce o pepino”. Da Ilha das Flores: “Quem tem janelas de vidro, não anda a atirar pedradas” e o tão pronunciado “Pra baixo, todos os Santos ajudam” (CAMPOS, In: BARROSO, p. 63). Somem-se aos adágios os enunciados que sintetizam a sabedoria de vida: Não faças o bem sem saberes a quem. Quando um burro fala, o outro murcha as orelhas. Dize-me com quem tu andas e te direi quem és. Cachorro que come ovelha, só matando. Águas paradas são mais. Devagar se vai ao longe. Antes tarde do que nunca. Mais tem Deus para me dar do que o Diabo para me tirar. Depois do mal feito, chorar não é proveito Quem pode mais chora menos (Coletados em São Luiz Gonzaga). Para Marques (1989), na linguagem folclórica, encontram-se os falares populares que procedem da pátria portuguesa, trazidos no século XVI, e modificados pela colonização, e apesar da imensidade do território e das dificuldades de comunicação, nos falares há uma relação de unidade relativa e uniformidade (p. 24). Eis alguns exemplos: Mandraca- feitiço (Fronteira e Missões) Mandraqueiro- feiticeiro (Fronteira e Missões) Trumbico- qualquer coisa (Missões) Nariz de folha- Intruso (Missões) Gringa- abóbora de pescoço (Missões) Afilipado- bem trajado (Missões) Lapuz- mal vestido (Missões) Mandado- relâmpago (Missões) Rácula- matraca (Santo Ângelo - Missões) Quebrado- briga de namorado (Santo Ângelo - Missões) Barra do dia- madrugada (generalizado) Ruana- pessoa loira ( Campanha e Missões) Acachapado- doente, abatido (generalizado) (MARQUES, 1998, p. 25).

Podemos ver claramente, que a maior parte de nossos provérbios têm origem portuguesa. Além desses provérbios, há as apotegmas que para o povo não tem distinção entre este, aforismo e máxima. É dito curto e sentencioso: Agora é que o circo pega fogo. A ambição rompe o saco (MARQUES, 1998, p.35). Os refrões são fórmulas diversificadas que encerram um conceito; o mesmo que adágio. Vejamos alguns: Quem canta, seus males espanta. A ocasião faz o ladrão. China, canha e bolacha, em qualquer lugar se acha (MARQUES, 1998, p. 37).

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Existe também advinhas, ou seja, enigmas populares que numa linguagem metafórica ou ambígua, sob forma de sentenças interrogativas, dísticos, quadrinhas, sugerem implicitamente solução e encontram-se generalizados em todos os povos. Desempenham papel de relevo no meio social, como um meio de testar a argúcia, a inteligência do indivíduo (CAMPOS, In: BARROSO, 1997, p. 63). Luís da Silva Ribeiro, em 1950, coletou algumas advinhas na Ilha Terceira, diz o etnógrafo que elas não são mais improvisadas, talvez porque perderam o interesse, pois sabendo as respostas, deixam de ser prova de argúcia, para ser apenas demonstração de boa memória. Estas adivinhas procedem da Ilha Terceira, mas há as suas variantes no RS: Variantes O que é o que é? Seis mortos estendidos Cincos vivos passeando Mostrando-se sentidos. R- Violão. O que é o que é Seis mortos atravessados em um caixão Cinco vivos passando por cima Os mortos falam, os vivos não. R- Violão. O que é o que é? Tem coroa e não é rei, tem escamas e não é peixe? R- Ananás. Quanto mais se tira, mais se cresce? R- Buraco. Tem dentes, mas não tem boca, não morde, mastiga ou come, é careca e tem cabelo. R- O pente. (Coletado em São Luiz Gonzaga) O que é que caminha deitado e descansa em pé? R- O pé. (Coletado em São Luiz Gonzaga) As parlendas, as fórmulas empregadas para distrair e acalentar crianças, elas se constituem de versos sem pé nem cabeça, conservados na lembrança infantil pelo ritmo fácil e coerente. Nos Açores denominam-se rimas infantis, lenga-lenga ou cantilenas. “André põe-te de pé Vai a porta e vê quem é È um homem pechinchino Que tem medo de mulher”.

“Teresinha de Jesus Abre a porta e vê quem é É um homem pequenino Que tem medo de mulher”.

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“A galinha do vizinho Bota ovo amarelinho, Bota um, Bota dois... Bota três... (até o número escolhido) (Coletado em São Luiz Gonzaga) Vou ali e volto já Vou apanhar maracujá. (Coletado em São Luiz Gonzaga) (fórmula mnemônica) “Dedo mindinho Seu vizinho Pai de todos Fura bolos Mata piolhos” (dedo mínimo) “Este diz que está com fome (anelar) “Este diz que não tem quê (médio) “Este diz que vai furtar (indicador) “Este diz que não vá lá (polegar) “Este diz que Deus dará”. As réplicas que são respostas rimadas e em caráter jocoso: -Tá com fome? Mata um home e come. Quem cochicha O rabo espicha. Quem se importa O rabo entorta. (MARQUES, 1998, p. 36) Quem se ofende O rabo acende”. “Quem reclama o rabo inflama. (generalizado) As formas de escolha são versos recitados ou cantados: “Uni, duni, tê Salamê, minguê Um sorvete colorê Foi escolhido por você”. (MARQUES, 1998, p. 40)

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Os trava-línguas são parlendas que apresentam dificuldade de pronúncia, formados pos palavras de difícil articulação: - O peito do pé do Pedro é preto. - Achei chuchu chocho no tacho sujo. (MARQUES, 1998, p. 41) Três pratos de trigo para três tristes tigres. A pinta pintou, a pinta do pinto pintado. Sabia que a mãe do sabiá sabia assobiá? Atrás da pia tem um prato, Um pinto e um gato, Pinga a pia, pia o pinto e mia o gato. Olha o sapo dentro do saco, O saco com o sapo dentro, O sapo batendo papo E o papo soltando vento. No vaso tinha um aranha e uma rã A rã arranha a aranha e a aranha arranha a rã. É um dado, é um dedo, é um dia É um dia é um dado, é um dedo, É um dedo, é um dia, é um dado, É um dado, é um dedo é um dia. Não consinto que confundas, Funda com cinto, Nem consinto que confundas Cinto com funda. (Coletado em São Luiz Gonzaga)

CONSIDERAÇÕES O homem não se despoja de sua cultura pelo simples deslocamento. Assim, pois o folclore açoriano, transportou-se para as áreas rio-grandenses. Os costumes trazidos aos poucos evoluíram, sem que houvesse profunda modificação, em contato com elementos estranhos. Firmava-se aqui, uma etnia em pleno processo de fusão, porém culturalmente coesa pela unidade do idioma. No alvorecer da segunda metade do século XIX, ouve um intenso tráfego marítimo, contribuindo para o desenvolvimento dos Açores. Traziam riquezas como pimenta, canela, cominho, gengibre, açafrão, noz-moscada, pau de cravo, entre os que mais ganham destaque. Além disso, vemos que a poesia popular manifesta-se das mais das mais diversas maneiras, as xácaras, por exemplo, sobrevivem ao longo dos tempos. As variantes, as refundições, as reelabo-

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rações, resultam da dinâmica dos fatos, mantendo-se, porém a fisionomia fundamental. A memória coletiva retém o repertório. Assim ele chega até nós, permanecendo nas mais diversas situações do dia a dia do povo missioneiro e até em outras regiões do estado. É fundamental salientar que a língua se encarrega de fazer suas modificações ao longo do tempo, como afirma Pollak (1989) em seus estudos sobre Pierre Nora (1985) e que apesar da memória individual ser de menor duração a coletividade se encarrega de reguardar estes arquivos culturais, repassando-os para que as futuras gerações a eles tenham acesso, sejam através de relatos orais ou até mesmo de testeminhos escritos com a finalidade de resguardar o patrimonio literário imemorial.

REFERÊNCIAS BARROS, Eliane Cruxên. DACANAL, José Hildebrando (org.). RS: Imigração & Colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. BARROSO, Vera Lúcia Maciel (org.) Presença Açoriana em Santo Antônio da Patrulha e no Rio grande do Sul. Porto Alegre: EST, 1997. MARQUES, Lílian Argentina Braga e outros. Rio Grande do Sul: Aspectos do Folclore. Porto Alegre; Martins Livreiro, 1998. MÜLLER, Nelci. A Representação das Missões no Romance Sul-Rio-Grandense. (1881-1988). Dissertação. (Mestrado em Teoria da Literatura) – Instituto de Letras e Artes, PUCRS, 1991. NORA, Pierre. Lês Lieux de Mémoire. Paris: Gallimard, 1985. POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. V. 2, 1989, p. 3-15.

GÊNERO E ESCRITA EM CLARICE LISPECTOR Vinícius Linné* (UPF)

1. INTRODUÇÃO Embora Clarice Lispector seja celebrada como uma das grandes escritoras brasileiras, é preciso ressaltar que sua origem é ucraniana. Sua família residia na aldeia de Chechelnyk, na qual Lispector nasceu e foi batizada de Haia. Por ser judia, a família Lispector precisou fugir dos progroms se alastravam da Rússia na década de 20. Em função disso, tomaram um navio para o Brasil. Ao chegar no novo país, todos trocaram seus nomes, a fim de torná-los mais próximos aos brasileiros. Assim, Haia passou a ser Clarice. Apesar disso, as tradições não foram trocadas. A família Lispector permaneceu fiel à sua religião, o judaísmo, tendo transmitido todo patrimônio de crenças, costumes e estudos à filha mais jovem, influenciando de sobremaneira sua escrita, conforme se verá adiante. De acordo com Benjamin Moser (2009), biógrafo da autora, Lispector cresceu pertencendo a uma comunidade judaica que mantinha as tradições de seus antepassados, cultivando o estudo da Torá e respeitando as datas sagradas. Em 1930, Lispector chegou a ingressar no Colégio Hebreu-Iídiche-Brasileiro, no qual aprofundou seus estudos acerca da religião. Embora o judaísmo jamais apareça como tema central em sua obra, são muitos os estudos que comprovam sua influência na escritura de Lispector, especialmente ligados ao seu romance final, “A hora da estrela”. Entre eles destaca-se o nome da personagem principal, Macabéa, proveniente dos Macabeus, além da relação conflituosa da escritora com Deus. Um aspecto ainda inexplorado nesse sentido é aquele que liga as representações da escrita na obra de Lispector com o gênero de quem escreve. Ao analisar seus livros “Perto do Coração Selvagem” (1944), “A Maçã no escuro” (1961), “Água viva” (1973), “A hora da estrela” (1977) e “Um sopro de vida: pulsações” (1978) torna-se evidente a ligação estabelecida entre a escrita e o gênero masculino. São sempre os homens que se envolvem com as palavras no papel, criando novos mundos através delas, como em um simulacro de Deus. O presente artigo explora essa ligação e busca no patrimônio cultural judaico as explicações para que tal relação se estabeleça.

2. O HOMEM COMO DETENTOR DA ESCRITA Segundo Oz e Oz-Salzberger (2015), devido a todas as perseguições que o povo judeu, tido como escolhido, sofreu ao longo da história, somente um aspecto garantiu sua continuidade, ou seja, a preservação do seu patrimônio cultural e simbólico: a palavra: A continuidade judaica sempre se articulou em palavras proferidas ou escritas, num sempre expansível labirinto de interpretações, debates e discordâncias, e numa interação humana única. Na sinagoga, na escola e, acima de tudo, em casa, esta interação sempre envolveu duas ou três gerações em conversas profundas. A nossa não é uma linhagem de sangue, mas uma linhagem de texto. (OZ & OZ-SALZBERGER, 2015, p. 15.)

Sendo assim, é através dos estudos de textos sagrados e da contação de lendas que a permanência judaica se dá, cada uma sendo atribuída de forma especial a um gênero distinto. De acordo *

Doutorando pela UPF, Universidade de Passo Fundo, Brasil. E-mail: [email protected]

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com a tradição, os homens deveriam passar os ensinamentos da Torá aos filhos, lendo com eles o Talmude e debatendo as grandes questões, em uma relação que Oz e Oz-Salzberger (2015, p. 42) classificam como de “pai – livro – história – filho”. Já às mulheres, caberia a transmissão oral de lendas e costumes, mais informais do que a palavra escrita, conforme se analisará adiante. Esta ligação do homem com a palavra provém de algo ainda mais antigo, enraizado na mitologia judaico-cristã. Afinal, no primeiro livro do Pentateuco, “Gênesis”, o mundo é criado pela palavra, fortemente ligada ao Deus masculino e patriarcal: “E Deus disse: Faça-se a luz. E foi feita a luz.” (BÍBLIA, 2010, p. 16). Tal ligação, porém, evidencia-se ainda mais enraizada na vivência humana: A Palavra se converte numa espécie de arquipotência, onde radica todo o ser e todo acontecer. Em todas as cosmogonias místicas, por mais longe que remontemos em sua história, sempre volvemos a deparar com esta posição suprema da Palavra. [...] Nos relatos da Criação de quase todas as grandes religiões culturais, a Palavra aparece sempre unida ao mais alto Deus criador, quer se apresente como instrumento utilizado por ele, quer diretamente como fundamento primário de onde ele próprio, assim como toda existência e toda ordem de existência provêm. (CASSIRER, 2009, p. 64-65)

Perseguindo essa ligação entre Deus, o masculino e a palavra, Lispector transforma muitos de seus personagens em escritores, narradores ou autores. O primeiro deles surge no seu livro de estreia, “Perto do coração Selvagem”, publicado em 1944. A obra narra boa parte da vida de Joana, especialmente seu casamento com Otávio. Otávio é formado em direito e passa o romance todo envolto com a escrita de sua obra: um livro que tem a pretensão de mudar a visão judiciária do país. Apesar disso, o que se vê são seus rituais de escrita e sua filosofia transposta para o papel: Endireitou o busto, alisou o cabelo, ficou sério. Agora ia trabalhar. Como se todos assistissem e aprovassem com a cabeça, cerrando os olhos no assentimento: isso, isso mesmo, muito bem. Alguém real incomodava-o e sozinho ficava solto, nervoso. “Todos” pois assistiam-no. Tossiu ligeiramente. Afastou o tinteiro com cuidado. Começou. “A tragédia moderna é a procura vã de adaptação do homem ao estado de coisas que ele criou”. (LISPECTOR, 1998c, p. 121)

Otávio age, de fato, como um demiurgo no momento da criação, como se toda expectativa fosse depositada nele, como se o seu papel fosse o de criar o que ainda não existe, muito mais do que registrar seus pensamentos. Ao longo de toda a obra, embora Joana encante pela palavra falada, ela terá uma única aproximação com a palavra escrita. Como se esta não lhe pertencesse, tal contato gera um desconforto em Otávio. Uma folha de caderno intercalava suas páginas. Olhou-a e descobriu a letra incerta de Joana. Inclinou-se com avidez. “A beleza das palavras: natureza abstrata de Deus. É como ouvir Bach.” Por que preferia que ela não tivesse escrito essa frase? (LISPECTOR, p. 124, 1998c)

Não há qualquer ritual para a escrita de Joana. De fato, ela situa-se fora da narrativa, restando apenas uma folha de caderno, informal, portanto, com uma letra incerta, representando a falta de prática com a escrita. O pensamento de Joana liga a palavra a Deus, reforçando a ideia de uma escritura demiúrgica e masculina. No mesmo momento, Otávio expressa seu desconforto, como se Joana tivesse invadido os seus domínios. É importante ressaltar que no momento em que encontra a folha, Otávio se preparava para escrever. Depois, sente-se impedido de continuar. E de repente grande melancolia desceu sobre ele. Que estou fazendo afinal? – perguntou-se e nem sabia por que se agredira tão subitamente. Não, não escrever hoje. E como essa era uma concessão, uma ordem indiscutível perscrutou-se: se quisesse sinceramente poderia trabalhar? e a resposta foi resoluta: não [...] Hoje alguém lhe dava o descanso. Não Deus. Não Deus, mas alguém. Muito forte. (LISPECTOR, p. 124, 1998c)

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A escrita de Joana invadiu os domínios do masculino, impedindo Otávio de prosseguir naquele dia, como se ele houvera tido suas palavras surrupiadas. Apesar disso, a força da escrita de Joana não se compara à força de Deus. A dupla negativa “Não Deus” confirma isso. Suas palavras têm poder, mas falta-lhes ainda a legitimidade do masculino para que elas tenham um domínio demiúrgico e criacionista. Tal poder aparece evidenciado em “A maçã no escuro”, de 1961, em que depois de um trauma vivido e de um longo tempo de silêncio, Martin, o protagonista, descobre o poder das palavras: “E aquele homem de óculos de repente se sentiu singelamente acanhado diante do papel branco como se sua tarefa não fosse apenas a de anotar o que já existia mas a de criar algo a existir.” (LISPECTOR, 1999a, p. 356) Assim, o escritor funde-se ao mito do criador, conquistando tanto poder a ponto de criar o próprio Deus. “Então na sua carne em cólica ele inventava Deus. [...] Um homem no escuro era um criador. Na escuridão as grandes barganhas se fazem. Foi dizendo ‘oh Deus’ que Martim sentiu o primeiro peso de alívio no peito”. (LISPECTOR, 1999a, p. 332). No momento em que materializa a palavra “Deus”, é como se Martim O criasse, O fizesse existir. Uma vez que só assim, na presença de Deus, poderia haver a noção de pecado, essencial para sua expiação. Os últimos dois livros de Lispector também repetem essa fórmula do homem como ser demiúrgico, responsável pela criação de universos ficcionais através da palavra. Em “A hora da estrela”, publicado em 1977, Lispector dá vida a um narrador chamado Rodrigo S. M. que mais do que a função de relatar os acontecimentos da vida de Macabéa, ele tem o papel de impingir-lhe existência. Macabéa é então um produto do seu narrador. Aliás, toda personagem é, de fato, o produto de um narrador que lhe conta a história, seja este narrador quem for. mas neste romance há uma situação especial: Macabéa nasce mesmo do narrador que faz parte da história enquanto personagem. Ele é o autor do romance em que nos conta como ele “cria” Macabéa. ele é o criador e Macabéa é sua criatura. Macabéa existe como projeção dele, como parte dele e existe em função dele. [...] É ele quem nos conta a história de como ele, escritor, inventa Macabéa, explicando a todo momento como este trabalho, difícil, de lidar com as palavras e escrever um romance, acontece. (GOTLIB, 2001, p. 287)

De fato, na obra, Rodrigo detém o papel de escritor, como se Lispector por si só não fosse conseguir dar vida a uma personagem como Macabéa, sem a inferência desse criador masculino que singulariza a narrativa. Já em sua obra final, “Um sopro de vida: pulsações”, publicada postumamente em 1978, Lispector leva ao extremo a representação do escritor como Deus. Neste livro, há um personagem chamado Autor, assim, com “A” maiúsculo e sem outro nome que o identifique, cuja função é ser o criador de outra personagem: Ângela Pralini. Inicialmente é importante perceber como o nome do narrador conduz diretamente às reflexões judaicas acerca do impronunciável nome de Deus. A prescrição que manda guardar segredo, aplica-se, em primeiro lugar, ao nome do deus, pois um mero enunciado deste desata todos os poderes encerrados neste deus. Quanto mais elevado e poderoso o deus, tanto mais forte e eficaz deveria ser o seu verdadeiro nome. Daí ser bastante lógico aceitar que os homens não pudessem portar o autêntico nome desse arquideus, deste criador; pois o referido nome era, ao mesmo tempo, o divino em si e, na verdade, em sua mais alta potência, sendo por isso, demasiado torto para a débil natureza do mortal, matava, pois, àquele que o ouvisse. (CASSIRER, 2009, p. 71)

Ao decorrer da obra, esse personagem deificado faz chover sobre as terras para que com o barro das encostas e as rochas duras ele possa esculpir sua criação, Ângela Pralini. Novamente, assim como na criação bíblica, as palavras dão a vida a este ser:

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Ângela é a minha reverberação, sendo emanação mi­nha, ela é eu. Eu, o autor: o incógnito. É por coinci­dência que eu sou eu. Ângela parece uma coisa ínti­ma que se exteriorizou. Ângela não é um “persona­gem”. É a evolução de um sentimento. Ela é uma idéia encarnada no ser. No começo só havia a idéia. Depois o verbo veio ao encontro da idéia. E depois o verbo já não era meu: me transcendia, era de todo o mundo, era de Ângela. (LISPECTOR, 1999b, p. 30)

Por ser concebida à imagem de seu criador, Ângela é dotada da escrita. É a única personagem escritora a aparecer nas obras em questão. Apesar disso, Ângela não é capaz de criar como seu autor. Durante a narrativa, ela busca escrever um livro sempre difícil e incompleto, que verse sobre “as coisas”. Seu papel, portanto, não é o de engendrar vidas, mas antes o de registrar o que existe e refletir sobre, distanciando-se da figura demiúrgica. O próprio Autor duvida que Ângela conseguirá seu intento: Ângela ao que parece quer escrever um livro estudando as coisas e objetos e sua aura. Mas duvido que ela aguente o compromisso. Suas observações em vez de serem construídas em livro saem descompromissadamente de seu modo de falar (LISPECTOR, 1999b, p. 101).

Além de duvidar da escrita de sua criação, Autor ainda liga o modo de escrever de Ângela à fala. Esta ligação conduz diretamente ao estado das mulheres quando relacionadas à palavra na obra de Lispector e também no judaísmo: como portadoras da palavra oral, não da escrita.

3. A MULHER COMO DETENTORA DA FALA De acordo com Oz e Oz-Salzberger (2015), enquanto aos homens cabia transmitir aos filhos o estudo da Torá e do Talmude, às mulheres cabia o domínio da palavra falada. O sexo feminino, portanto, ligou-se desde cedo à oralidade, à contação de lendas, costumes caseiros, orações e canções. Segundo o próprio Talmude, “dez medidas de fala desceram ao mundo, e as mulheres pegaram nove.”(OZ & OZ-SALZBERGER, 2015, p. 109). A citação que a princípio parece soar ofensiva, na verdade é aclamada por conceder às mulheres uma superioridade em relação aos homens quanto ao domínio oral da tradição. Em Lispector, embora a escrita seja de domínio quase exclusivo dos homens, o poder da palavra falada pertence às mulheres. Já em “Perto do Coração Selvagem”, Joana é capaz de inventar histórias e seduzir ao contá-las. — Papai, inventei uma poesia. [...] Posso inventar outra agora mesmo: “Ó sol, vem brincar comigo.” Outra maior: “Vi uma nuvem pequena coitada da minhoca acho que ela não viu.“ — Lindas, pequena, lindas. Como é que se faz uma poesia tão bonita? — Não é difícil, é só ir dizendo. (LISPECTOR, 1998c, p. 14)

É importante perceber a distinção entre os verbos “criar” e “inventar”. O primeiro é utilizado como no caso da escrita de Martin, dando origem a um novo mundo ou uma nova ordem. Já o segundo é usado sempre que se refere às histórias de Joana, pressupondo uma invenção que não transpõe as próprias palavras. Não só para o pai Joana inventa poesias. Ela também tece histórias para as meninas do internato, desvelando a vida de pessoas que elas avistam ao longe, atribuindo histórias e sentimentos a elas. Além disso, Joana também seduz seu amante sem nome com as palavras que inventa e as narrativas que lhe conta. Outra mulher relacionada às palavras na obra de Lispector chama a atenção justamente pela sua mudança de status na versão final do livro. Trata-se da protagonista de “Água viva”, publica-

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do em 1973. A obra, considerada uma das mais intimistas da autora, trata de reflexões acerca da criação artística e seus elementos. Segundo Moser, a primeira versão foi intitulada “Atrás do pensamento”, a segunda “Objeto gritante”, mas mais importante do que isso foi a modificação sofrida pela protagonista. Nas primeiras versões, a personagem era uma escritora, o que faz sentindo ao analisar o quanto as reflexões sobre as palavras e sua criação estão presentes no texto. Apesar disso, na versão publicada, a personagem é uma pintora, relacionada, portanto, também ao fazer artístico, mas num sentido muito mais de reprodutibilidade do que de criação demiúrgica. Essa substituição parece ser esclarecedora quando se analisam as demais obras e se percebe sempre a ligação do universo masculino com a escrita e a criação pela palavra. Sendo atribuição de um Deus patriarcal essa criação, uma mulher não poderia executá-la do mesmo modo, de acordo com a tradição judaica. Por fim, uma personagem que confirma tal pressuposto é Ângela Pralini, de “Um sopro de vida: pulsações”. A única personagem feminina ligada à escrita não busca executar, como já foi afirmado, nenhum movimento de criação. Na sua tentativa de escrever, ela é, inclusive, rechaçada por Autor: AUTOR.- Escusado dizer que Ângela nunca vai escrever o romance cujo começo todos os dias ela adia. Não sabe que não tem capacidade de lidar com a feitura de um livro. Ela é inconseqüente. Só consegue anotar frases soltas. [...] ÂNGELA.- Amanhã começo o meu romance das coisas. AUTOR.- Não começará nada. Primeiro porque Ângela nunca acaba o que começou. Segundo porque suas esparsas notas para o seu livro são todas fragmentárias e Ângela não sabe unir e construir. Ela nunca será escritora. [...] O livro que a pseudo-escritora Ângela está fazendo vai se chamar de “História das Coisas”. (Sugestões oníricas e incursões pelo inconsciente). (LISPECTOR, 1999b, p. 102)

Além de duvidar de sua capacidade de concluir a obra, Autor ainda chama sua criação de “pseudo-escritora”, num movimento análogo ao de Otávio ao afirmar que por mais forte que posse a escrita de Joana, ela ainda não se igualava a Deus. Em todas as obras, por mais longe que a mulher fosse em sua relação com a palavra, ela ainda não era capaz de adquirir a mesma magnitude de um criador masculino.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de Lispector ter sido uma precursora nos caminhos da escrita, sendo, inclusive, a primeira mulher a ter uma carteira de jornalista, em sua composição literária ela repete os ensinamentos da tradição Judaica. Ou seja, a escrita aparece em suas obras ligada principalmente aos homens, numa espécie de representação de Deus. Já as mulheres, quando aparecem relacionadas às palavras, o fazem de modo oral, como contadoras de diferentes histórias, inventando pela fala, mas não com a mesma legitimidade de um criador. Desta forma, o patrimônio cultural herdado por Lispector impõe suas questões de gênero, ligando a escrita como criação ao universo masculino. Tal consideração se percebe de forma extrema nos momentos em que Lispector antepõe um personagem masculino e criador, como no caso de Rodrigo S. M. ou de Autor, à sua criação, sempre feminina. Através desse movimento, Lispector busca, portanto, reproduzir em seus personagens escritores a função demiúrgica de Deus, ou seja, do masculino como fonte da qual o universo, neste caso ficcional, provém. Importante notar, ainda, que enquanto o homem cria, a mulher inventa. Aumentando, na distinção dos verbos, a distância entre os dois gêneros. Diante disso, pode-se concluir que embora Lispector fizesse parte do avanço das conquistas femininas, a cultura judaica e patriarcal se impõe em sua escrita, reproduzindo as questões de gênero ao transformar o homem em Deus criador e a mulher em mera criatura, ainda que inventora e contadora de histórias.

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REFERÊNCIAS BÍBLIA SAGRADA. São Paulo: DCL, 2010. CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2009. GOTLIB, Nádia Battella. Macabéa e as mil pontas de uma estrela. In: MOTA, Lourenço Dantas; ABDALA JUNIOR, Benjamin (Orgs). Personæ: grandes personagens da literatura brasileira. São Paulo: SENAC, 2001. P. 285-317. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998a. _____. Água viva: ficção. Rio de Janeiro: Rocco, 1998b. _____. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco 1998c. _____. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a. _____. Um sopro de vida (pulsações). Rio de Janeiro: Rocco, 1999b. MOSER, Benjamin. Clarice,. São Paulo: Cosac Naify, 2009. OZ, Amós; OZ-SALZBERGER, Fania. Os judeus e as palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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