Arranjos constitucionais do multiculturalismo na Colômbia

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ARRANJOS CONSTITUCIONAIS DO MULTICULTURALISMO NA COLÔMBIA Wilson Rocha Assis A NORMATIVIDADE CONSTITUCIONAL A Constituição colombiana de 1991 dispõe em seu artigo 7º que “El Estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la Nación colombiana”. O artigo 70 , no mesmo sentido, afirma que “La cultura en sus diversas manifestaciones es fundamento de la nacionalidad. El Estado reconoce la igualdad y dignidad de todas las que conviven en el país”. Não obstante a afirmação de que a Colômbia é um país multicultural e multiétnico, o texto constitucional utiliza por diversas vezes a expressão nação colombiana, bem como consolida no Capítulo I, do Título II, um rol extenso de direitos de viés eminentemente liberal e individualista, tais como igualdade perante a lei (artigo 13), direito à intimidade (artigo 15), livre desenvolvimento da personalidade (artigo 16), liberdade de consciência (artigo 18), culto (artigo 19) e expressão (artigo 20). Já em seu artigo 1o, o texto constitucional afirma que a Colômbia é, a um só tempo, um estado unitário, mas também descentralizado e pluralista. Não obstante seja possível destrinchar analiticamente estes elementos, elidindo a contradição que assoma de uma leitura inicial, é evidente a dificuldade de concretizar, no plano fático, em igual medida, conceitos prenhes de compreensão tão distinta. A Constituição colombiana vacila entre a afirmação da diversidade que compõe o estado colombiano e a reafirmação de uma identidade nacional monolítica. O mito da nação permanece como herança do constitucionalismo clássico de matiz europeu. Não obstante o artigo 3o disponha que “La soberanía reside exclusivamente en el pueblo, del cual emana el poder público”, o artigo 9º1 insiste no conceito de soberania nacional ao tratar dos fundamentos que orientam as relações exteriores do estado colombiano.

O

artigo 10, por sua vez, estabelece que “El castellano es el idioma oficial de Colombia. Las lenguas y dialectos de los grupos étnicos son también oficiales en sus territorios”. O dispositivo deixa claro o intento do constituinte colombiano de operar uma abertura cultural do sistema jurídico estatal, fazendo-o, todavia, sem abrir mão das fórmulas

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Constitución Política de Colombia. Artículo 9º9º. Las relaciones exteriores del Estado se fundamentan en la soberanía nacional, en el respeto a la autodeterminación de los pueblos y en el reconocimiento de los principios del derecho internacional aceptados por Colombia.

tradicionais do constitucionalismo clássico: a Colômbia reconhece as línguas étnicas, mas insiste em estabelecer um idioma oficial, resultando disso o curioso sistema de oficialidade local das línguas étnicas, expresso no artigo 10 acima mencionado. Daniel Bonilla Maldonado, em La Constitución Multicultural, esclarece que a tese da soberania popular foi sustentada na Assembléia Nacional Constituinte pelos representantes indígenas Francisco Rojas Birry, Lorenzo Muelas e Francisco Peña. Maldonado explica que esses representantes, “Desde el punto de vista procedimental, proponen algunas medidas para abrir el sistema democrático colombiano (por ejemplo, declarar que la soberanía reside en el pueblo - y no en la nación, como aparecía en la Constitución de 1886 -, y conceder autonomía a los diversos entes territoriales en los que está divido el país)”2. Densificando o disposto nos artigos 7º e 70, acima citados, e dando forma institucional às manifestações culturais que o estado colombiano afirma reconhecer, o artigo 246, da Carta Fundamental, estabelece que “Las autoridades de los pueblos indígenas podrán ejercer funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial, de conformidad con sus propias normas y procedimientos, siempre que no sean contrarios a la Constitución y leyes de la República. La ley establecerá las formas de coordinación de esta jurisdicción especial con el sistema judicial nacional”. O exercício da jurisdição é função profundamente impregnada de cultura. Por outro lado, o exercício legítimo desse poder pressupõe a partilha de um mesmo universo de signos e símbolos, pelos quais as ações humanas deixam de ser mera causalidade física e passam ser condutas dotadas de valor e significado. Para Paul Riocoeur, “o horizonte do ato de julgar está mais mais na paz social do que na segurança. [...] A finalidade da paz social deixa transparecer nas entrelinhas algo mais profundo, referente ao reconhecimento mútuo; não diremos reconciliação; falaremos muito menos de amor e perdão, que já não são grandezas jurídicas, preferimos falar de reconhecimento”.

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MALDONADO, Daniel Bonilla. La Constitución Multicultural. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad de los Andes - Facultad de Derecho; Pontifcia Universidad Javeriana - Instituto Pensar, 2006, p. 128.

Assim, ao reconhecer as autoridades indígenas como instituições operantes para o exercício da jurisdição, a Constituição colombiana avançou em direção a um nível superior de legitimidade intercultural do Estado. Como veremos a seguir, a Corte Constitucional colombiana, não sem vacilações, tem contribuído de forma expressiva para a concretização do direito de auto-governo das nações indígenas, operando um câmbio fundamental de paradigma no exercício da jurisdição constitucional em estados majoritariamente liberais. O artigo 2863 da Constituição colombiana, por sua vez, estabeleceu uma organização territorial na qual os territórios indígenas ou resguardos, ao lado de departamentos, distritos e municípios, conformam entidades territoriais do estado colombiano. Como entidades territoriais, os territórios indígenas, na forma do artigo 2874, gozam de autonomia para a gestão de seus interesses, o que se traduz no direito de governar-se por autoridades próprias; exercer as competências definidas na Ley Orgánica de Ordenamiento Territorial5; administrar recursos e estabelecer os tributos necessários para o cumprimento de suas funções e; participar das rendas nacionais.

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Constitución Política de Colombia. Artículo 286. Son entidades territoriales los departamentos, los distritos, los municipios y los territorios indígenas. 4

Constitución Política de Colombia. Artículo 287. Las entidades territoriales gozan de autonomía para la gestión de sus intereses, y dentro de los límites de la Constitución y la ley. En tal virtud tendrán los siguientes derechos: 1. Gobernarse por autoridades propias. 2. Ejercer las competencias que les correspondan. 3. Administrar los recursos y establecer los tributos necesarios para el cumplimiento de sus funciones. 4. Participar en las rentas nacionales. 5

A Ley Orgánica de Ordenamiento Territorial foi editada em 28 de junho de 2011. Sobre o novo diploma, pronunciou-se o professor Bartolomé Clavero: “Con un retraso, día más, día menos, de veinte años, Colombia ha promulgado la Ley Orgánica de Ordenamiento Territorial requerida por la Constitución desde su fecha de mediados de 1991. En lo que interesa a los pueblos indígenas, son veinte años de burla de su derecho constitucional a organizarse como entidades territoriales con autonomía superior a la que suponen los actuales resguardos y con mayores garantías también. Y lo que es peor, la organización de las entidades territoriales indígenas se deja pendientes con lo que resulta una excusa, la de que es un asunto a consultar con los propio pueblos interesados. Es un mandato constitucional que se debiera haber desarrollado hace veinte años. El añadido de la consulta significa que el Congreso no es competente para tomar decisiones, ni de aplicación ni de aplazamiento, discrecionalmente; no debe hacerlo sin contar con el consentimiento previo, libre e informado de los pueblos indígenas, algo que, en tales términos, el Estado colombiano no contempla ni practica. Ahora, aunque no se ocupe del autogobierno indígena, la Ley Orgánica de Ordenamiento Territorial entiendo que toma ilegítimamente decisiones, por activa y por pasiva, al respecto”. Disponível em . Acessado em 23 de novembro de 2011.

De fato, o parágrafo do artigo 3296 esclarece que incumbe ao território indígena a decisão de constituir-se como entidade territorial. Neste caso, o território indígena deverá sujeitar-se ao disposto na Ley Orgánica de Ordenamiento Territorial e será delimitado pelo Governo Nacional, com participação dos representantes das comunidades indígenas, com prévia aprovação da Comissão de Ordenamento Territorial. O artigo 3567, dispõe que, para atender aos serviços a cargo dos Departamentos, Distritos e Município, provendo-os dos recursos necessários para financiar adequadamente sua prestação, será criado por lei um Sistema General de Participaciones, do qual são beneficiárias as entidades territoriais indígenas, uma vez constituídas. Contudo, o texto constitucional deixa expresso que os resguardos indígenas serão beneficiários dos recursos do Sistema General de Participaciones, ainda que não se tenham constituído em entidade territorial. Portanto, as comunidades indígenas colombianas são responsáveis diretas pela gestão dos recursos orçamentários destinados ao atendimento de suas necessidades. O artigo 330 acrescenta que os resguardos serão governados por conselhos formados e regulamentos segundo os usos e costumes das comunidades indígenas, havendo expressa previsão constitucional para o exercício dos seguintes poderes: i. de velar pela aplicação das normas legais sobre uso do solo e povoamento de seus territórios; ii. definir as políticas, planos e programas de desenvolvimento econômico e social dentro do território, em harmonia com o Plano Nacional de Desenvolvimento; iii. promover os investimentos públicos em seus territórios e velar por sua devida aplicação; 6

Constitución Política de Colombia. Artículo 329. La conformación de las entidades territoriales indígenas se hará con sujeción a lo dispuesto en la Ley Orgánica de Ordenamiento Territorial, y su delimitación se hará por el Gobierno Nacional, con participación de los representantes de las comunidades indígenas, previo concepto de la Comisión de Ordenamiento Territorial.Los resguardos son de propiedad colectiva y no enajenable. La ley definirá las relaciones y la coordinación de estas entidades con aquellas de las cuales formen parte. PARAGRAFO. En el caso de un territorio indígena que comprenda el territorio de dos o más departamentos, su administración se hará por los consejos indígenas en coordinación con los gobernadores de los respectivos departamentos. En caso de que este territorio decida constituirse como entidad territorial, se hará con el cumplimiento de los requisitos establecidos en el inciso primero de este artículo. 7

Constitución Política de Colombia. Artículo 356. Salvo lo dispuesto por la Constitución, la ley, a iniciativa del Gobierno, fijará los servicios a cargo de la Nación y de los Departamentos, Distritos, y Municipios. Paraefecto de atender los servicios a cargo de éstos y a proveer los recursos para financiar adecuadamente su prestación, se crea el Sistema General de Participaciones de los Departamentos, Distritos y Municipios. Los Distritos tendrán las mismas competencias que los municipios y departamentos para efectos de la distribución del Sistema General de Participaciones que establezca la ley. Para estos efectos, serán beneficiarias las entidades territoriales indígenas, una vez constituidas. Así mismo, la ley establecerá como beneficiarios a los resguardos indígenas, siempre y cuando estos no se hayan constituido en entidad territorial indígena.

iv. receber e distribuir seus recursos; v. velar pela preservação dos recursos naturais; vi. coordenar os programas e projetos promovidos pelas diferentes comunidades em seu território; vii. colaborar com a manutenção da ordem pública dentro de seu território, de acordo com as instruções e disposições do Governo Nacional; viii. representar os territórios indígenas ante o Governo Nacional e as demais entidades às quais se integrem; ix. além de outras funções assinaladas pela Constituição e pela lei. 
 O parágrafo do artigo 330 assinala que a exploração dos recursos naturais nos territórios indígenas far-se-á sem prejuízo da integridade cultural, social e econômica das comunidades indígenas, exigindo-se a participação dos representantes das respectivas comunidades nos processos de tomada de decisão a respeito das atividades desenvolvidas. O caput do artigo 329 estabelece que os resguardos são propriedade coletiva e inalienáveis. A teor do artigo 638, são ainda “imprescriptibles e inembargables”. O parágrafo do mesmo artigo acrescenta que um território indígena poderá compreender o território de mais de um departamento, hipótese em que sua administração far-se-á pelos conselhos indígenas em coordenação com os governadores dos respectivos departamentos. Segundo o Departamento Administrativo Nacional de Estadística (DANE)9, em outubro de 1993, havia 313 resguardos titulados, que correspondiam a 22,8% do território nacional. Já o Censo Geral de 2005 identificou 710 resguardos titulados, localizados em 27 departamentos e 228 municípios do país, ocupando uma extensão de 34 milhões de hectares, que cobrem 29,8% do território colombiano. Esses dados revelam um aumento de 127% do número de resguardos, com aumento de 7% em relação à área total do país.

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Constitución Política de Colombia. Artículo 63. Los bienes de uso público, los parques naturales, las tierras comunales de grupos étnicos, las tierras de resguardo, el patrimonio arqueológico de la Nación y los demás bienes que determine la ley, son inalienables, imprescriptibles e inembargables. 9

Colombia Una Nación Multicultural. Su diversidad étnica. DANE: Octubre de 2006. Disponível em . Acessado em 14 de agosto de 2011.

Segundo o Informe do Ministério do Interior e Justiça ao Congresso colombiano10, de 31 de maio de 2010, “Colombia cuenta en la actualidad con 1.392.623 indígenas, población que corresponde al 3,4% de la población nacional”. A representatividade política das comunidades culturalmente distintas se dá através da previsão constitucional para circunscrições eleitorais especiais, pelas quais esses grupos poderão eleger seus representantes. Há no artigo 17111 da Constituição colombiana a previsão de uma circunscrição nacional especial por comunidades indígenas para eleição de dois senadores. Os candidatos indígenas, para disputarem as vagas na casa legislativa, deverão ter exercido um cargo de autoridade tradicional em sua respectiva comunidade ou em organização indígena, qualidade que deve ser acreditada mediante certificado da entidade. Em relação à Câmara de Representantes, o artigo 176 prevê que “La ley podrá establecer una circunscripción especial para asegurar la participación en la Cámara de Representantes de los grupos étnicos y de las minorías políticas” sendo que, por esta circunscrição, tais grupos poderão eleger até quatro representantes. Um último aspecto digno de nota na Constituição colombiana, antes de iniciarmos a análise da rica jurisprudência produzida pela Corte Constitucional do país, é o disposto no artigo 96, 2, c, pelo qual os membros dos povos indígenas que vivem em territórios fronteiriços poderão obter nacionalidade colombiana por adoção, dentro de critérios de reciprocidade, segundo tratados internacionais. O dispositivo reconhece que as fronteiras territoriais dos estados nacionais formados a partir da independência latinoamericana operaram uma espúria divisão de territórios indígenas, havendo situações em

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Informe al Congreso. Ministério del Interior y de Justicia: Mayo de 2010. Disponível em . Acessado em 12 de agosto de 2011. 11

Constitución Política de Colombia. Artículo 171. El Senado de la República estará integrado por cien miembros elegidos en circunscripción nacional. Habrá un número adicional de dos senadores elegidos en circunscripción nacional especial por comunidades indígenas. Los ciudadanos colombianos que se encuentren o residan en el exterior podrán sufragar en las elecciones para Senado de la República. La Circunscripción Especial para la elección de senadores por las comunidades indígenas se regirá por el sistema de cuociente electoral. Los representantes de las comunidades indígenas que aspiren a integrar el Senado de la República, deberán haber ejercido un cargo de autoridad tradicional en su respectiva comunidad o haber sido líder de una organización indígena, calidad que se acreditará mediante certificado de la respectiva organización, refrendado por el Ministro de Gobierno.

que um mesmo povo indígena teve parcelas de seus membros e territórios divididos entre diferentes estados nacionais12. A Constituição colombiana estabelece um standard avançado de tratamento do tema multiculturalismo. Todavia, a normativa constitucional colombiana é prenhe de tensões decorrentes da flagrante contradição entre os elementos que ela positiva. Os paradoxos da Constituição colombiana podem ser interpretados com uma decorrência clara da alteração de um paradigma de estruturação dos estados. Ao promover a alteração desses paradigmas, dando luz a uma série de enormes possibilidades de normação social, que se encontravam obscurecidas pelo império dos valores liberais, a Constituição colombiana força os limites conceituais da filosofia política contemporânea.

A PRÁXIS DOS DIREITOS CULTURAIS O reconhecimento de formas institucionais estranhas à filosofia política iluminista ou liberal, dificulta sobremaneira a articulação sistêmica do corpo político. A abertura dos constituintes colombianos às formas históricas de constituição dos povos americanos situados dentro do estado colombiano aprofunda o processo histórico de descolonização da América. A descolonização iniciou-se na passagem do século XVIII para o século XIX, com a ruptura da aliança continental Europa-América. Referida aliança foi construída em termos muito desiguais desde fins do século XV, através do processo de conquista e colonização da América pelos europeus. A descolonização iniciada no fim do século XVIII, não obstante a ruptura dos laços políticos com a Europa, manteve as formas institucionais básicas então estabelecidas de exercício do poder. Os estados americanos, tal como os estados europeus, nasceram fundamentados sobre os mesmos mitos: unidade nacional, soberania territorial, capitalismo, cientificismo, monolinguismo, individualismo. Estes conceitos estruturantes do pensamento político e social foram integralmente reproduzidos nos recém-formados estados latino-americanos do século XIX.

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O manifesto lançado em novembro de 2010, em Assunção, no Paraguai, durante o III Encontro Continental do Povo Guarani, identificou a nação guarani como dividida entre os estados argentino, boliviano, brasileiro e paraguaio. Vide nota de rodapé n. 3.

Todos estes valores, que conformam o núcleo duro do pensamento político liberal, entranharam não apenas as estruturas institucionais do mundo americano, mas, sobretudo, as formas discursivas, as possibilidades do pensamento. Ao fixar as categorias descritivas do confuso processo histórico de descolonização da América (estado, indivíduo, capital, governo, democracia), o pensamento político liberal definiu o universo de visibilidade do mundo. Os navegantes europeus e as monarquias européias colonizaram não somente o território, mas sobretudo o pensamento político da América. A consciência do eurocentrismo que impregna grande parte das ciências sociais latino-americanas13 conduz à continuidade dos esforços de descolonização empreendido por um setor da intelectualidade latino-americanos. Tal esforço implica confrontar o universo coerente do pensamento liberal com os elementos que ele expungiu. O apagamento da diferença foi a resposta liberal à diversidade cultural americana. Todavia, o enclausuramento da diferença em guetos territoriais ou a sua exclusão do universo das representações jurídicas não foi suficiente para extingui-la. Sucintamente, eis o caminho liberal para o trato da diferença: a diferença foi primeiramente criminalizada e estigmatizada, impondo aos seus membros dois caminhos inexoráveis: extermínio ou integração; em seguida, a diferença foi tolerada, desde que se mantivesse em nichos suficientemente distantes da sociedade liberal, afastando-se de seu caminho de progresso e incontida expansão; por último, quando o choque tornou-se inevitável, em face da constante expansão da sociedade majoritária, a diferença foi ruidosamente afirmada por aqueles que a portam, que se valeram, por vezes, das mesmas categorias de pensamento liberal, para afirmar não só os seus direitos territoriais, mas o seu direito a existir enquanto grupo distinto das comunidades nacionais. Nesse contexto, emerge um espaço expressivo de contradições que irá transladar-se para o embate político e judicial. Assim, confrontada com os avanços do texto constitucional de 1991 em matéria de multiculturalismo, a Corte Constitucional colombiana foi chamada a resolver um conflito de natureza muito distinta daqueles que comumente chegam aos tribunais. Afirmava-se, perante a Corte Constitucional, o direito a

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Sobre o assunto, LANDER, Edgardo. Ciencias sociales: saberes coloniales y eurocéntrico. En libro: La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. LANDER, Edgardo (comp.). CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales: Buenos Aires, Julio de 2000. Disponível em . Acessado em 17 de agosto de 2011.

formas radicais de diferença, que desafiavam as formas tradicionais de enxergar e de expressar-se diante da natureza, das instituições, dos espaços territoriais, da liberdade humana. Efetivamente, a Corte Constitucional colombiana, guiada pelo Constituição promulgada em 1991, olhou para além da janela da cultura liberal, para vislumbrar um universo jurídico-conceitual radicalmente distinto. Como sintetiza Daniel Bonilla Maldonado14, havia no texto constitucional colombiano de 1991 uma tensão não resolvida, condensada em dois pólos: de um lado a identidade cultural e a autonomia política das “minorias”; doutro lado a unidade cultural e política da nação. O autor argumenta que esta tensão decorre de dois conflitos de valores que, não obstante distinguíveis analiticamente, se encontram e se confundem na prática: primeiro, a tensão entre direitos individuais e o reconhecimento das tradições morais e políticas das minorias culturais; segundo, a oposição entre o princípio da unidade política e o direito de autogoverno das minorias15. O autor, acertadamente, afirma que “La Corte Constitucional es la institución colombiana que ha intentado dar respuesta de la manera más profunda a las preguntas generadas por la tensión entre derechos individuales y diferencia cultural”16. De fato, afastando-se da tentação de reduzir toda a realidade conflituosa que lhe chegava às medidas e ferramentas epistemológicas do pensamento liberal, a Corte colombiana foi capaz de fazer uma leitura antropológica dos casos concretos que a alcançaram. Dessa rica experiência, começou a se formar um caudal de decisões que iniciou o ingresso daquela corte no universo teórico do multiculturalismo. Finalmente, a pós-modernidade chegava aos tribunais latino-americanos. a) Caso El Tambo17:

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MALDONADO, 2006, p. 147.

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Efetivamente, por detrás do conflito explicitado pelo autor, reside o mito das soberanias nacionais, do qual decorre quase toda a estrutura dogmática e filosófica do pensamento constitucional moderno. O estado soberano definiu-se a si mesmo como uma realidade superior ao indivíduo, às coletividades e à própria cultura, concebidos por ele mesmo sob o símbolo inventado da nação. Ao criar o universo conceitual no qual poderia ser discutido, o estado engendrou as condições para a realização dos elementos que são discursivamente enunciados como suas próprias premissas. Soberania estatal e nação são realidades naturalizadas pelo discurso estatal, produtos do ato performativo de sua enunciação. 16

MALDONADO, 2006, p. 156.

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Sentença T-254/94

No caso El Tambo, a Corte Constitucional da Colômbia foi chamada a mediar um conflito situado em um contexto de multiculturalismo em sentido estrito. Na forma como descrito na introdução deste trabalho, trata-se de um caso de diversidade cultural de saída, no qual, para fins de reconhecimento e legitimação da ordem constitucional, não operam os efeitos pré-constituintes dos conceitos e categorias discursivas. A diferença cultural radical, em casos desse tipo, demanda do sistema constitucional, entendido como sistema de tutela de liberdades, um esforço antropológico de reconhecimento da alteridade. Alter, aqui, não é apenas o que é externo ao “eu” discursivo. Trata-se efetivamente do outro radicalmente distinto em suas formas de pensamento e vivência do mundo. Trata-se de ação de tutela18, na qual membro da comunidade indígena de El Tambo, Município de Coyaima, Departamento de Tolima, recorreu à Corte Constitucional19 contra decisão do Cabildo da comunidade indígena, que lhe impôs, no exercício da jurisdição indígena, a pena de expulsão da comunidade, junto com sua família, pelo cometimento do delito de furto. As dificuldades para a aceitação da jurisdição indígena - decorrentes, por certo, da radical inovação que o instituto representava, quando confrontado com os sistema tradicionais de jurisdição dos “estados nacionais” - manifestaram-se quando do julgamento da causa pelo Tribunal de primeira instância. Para referida Corte, o ato de expulsão contestado constitui uma “acción particular emanada de los miembros de la comunidad en ejercicio de la libertad de asociación y no de un acto de justicia especial 18

Constitución Política de Colombia. Artículo 86. Toda persona tendrá acción de tutela para reclamar ante los jueces, en todo momento y lugar, mediante un procedimiento preferente y sumario, por sí misma o por quien actúe a su nombre, la protección inmediata de sus derechos constitucionales fundamentales, cuando quiera que éstos resulten vulnerados o amenazados por la acción o la omisión de cualquier autoridad pública.La protección consistirá en una orden para que aquel respecto de quien se solicita la tutela, actúe o se abstenga de hacerlo. El fallo, que será de inmediato cumplimiento, podrá impugnarse ante el juez competente y, en todo caso, éste lo remitirá a la Corte Constitucional para su eventual revisión. Esta acción solo procederá cuando el afectado no disponga de otro medio de defensa judicial, salvo que aquella se utilice como mecanismo transitorio para evitar un perjuicio irremediable. En ningún caso podrán transcurrir más de diez días entre la solicitud de tutela y su resolución. La ley establecerá los casos en los que la acción de tutela procede contra particulares encargados de la prestación de un servicio público o cuya conducta afecte grave y directamente el interés colectivo, o respecto de quienes el solicitante se halle en estado de subordinación o indefensión. 19

Constitución Política de Colombia. Artículo 241. A la Corte Constitucional se le confía la guarda de la integridad y supremacía de la Constitución, en los estrictos y precisos términos de este artículo. Con tal fin, cumplirá las siguientes funciones: [...] 9. Revisar, en la forma que determine la ley, las decisiones judiciales relacionadas con la acción de tutela de los derechos constitucionales.

conforme al artículo 246 de la Constitución, razón suficiente para declarar improcedente la acción de tutela”20. A Sala Penal da Corte Suprema de Justiça confirmou a sentença impugnada e considerou ainda que a sanção não foi arbitrária, em razão das várias advertências feitas ao recorrente. Restou à Corte Constitucional, ratificando os termos da Constituição e com suporte em outras ciências sociais, em especial a sociologia, restabelecer a discussão a seus devidos termos, para considerar o ato impugnado como autêntico ato de jurisdição indígena. A Corte considerou que “Las comunidades indígenas son verdaderas organizaciones, sujetos de derechos y obligaciones, que, por medio de sus autoridades, ejercen poder sobre los miembros que las integran hasta el extremo de adoptar su propia modalidad de gobierno y de ejercer control social”. A Corte acrescentou: Las comunidades indígenas no se equiparan jurídicamente a una simple asociación. Son una realidad histórica, dinámica, caracterizada por elementos objetivos y subjetivos que no se reducen al animus societatis propio de las asociaciones civiles. Se nace indígena y se pertenece a una cultura, que se conserva o está en proceso de recuperación. La pertenencia a una comunidad indígena no surge de un acto espontáneo de la voluntad de dos o más personas. La conciencia de una identidad indígena o tribal es un criterio fundamental para la determinación de cuándo se está ante una comunidad indígena, de suerte que la mera intención de asociarse no genera este tipo de colectividad (D 2001 de 1988, art. 2o., Convenio 169 de la O.I.T. sobre pueblos indígenas y tribales en países independientes, aprobado por la Ley 21 de 1991, art. 1o. num. 2o.). Ferdinand Tönnies distingue los conceptos de comunidad y sociedad. A su juicio, la primera, se caracteriza por la existencia de una voluntad orgánica; la segunda, por una voluntad reflexiva de sus miembros. La comunidad es una forma anterior a la sociedad que se desarrolla a partir de la familia y, ordinariamente, en pequeñas poblaciones, en las cuales no prevalece la obtención de beneficios económicos sino los lazos de sangre y las costumbres.

A Corte Constitucional colombiana estabeleceu que “El método de adopción de una decisión no es el criterio determinante para precisar su naturaleza. La cualidad democrática del procedimiento de expedición no se transmite al acto o decisión, hasta el grado de definir su naturaleza, ni excluye la posibilidad jurídica de que se trate de un acto jurisdiccional”. A Corte esclareceu que a autonomia assegurada constitucionalmente aos membros das comunidades indígenas lhes assegura autonomia administrativa, orçamentária e financeira dentro de seus territórios (tal como ocorre com as demais entidades territoriais criadas pela Constituição), mas também o exercício de autonomia política e jurídica, que se traduz na eleição de suas próprias autoridades, no poder de jurisdição dentro de seu âmbito territorial. Estas medidas são vistas pelos magistrados

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Sentencia No. T-254/94

constitucionais como o reconhecimento e realização do princípio da democracia participativa e pluralista e respeito à diversidade étnica e cultural da nação colombiana. Todavia, no confronto destes valores com os direitos e garantias definidos como fundamentais, a Corte Constitucional criou quatro regras de interpretação, assim apresentadas: Las diferencias conceptuales y los conflictos valorativos que puedan presentarse en la aplicación práctica de órdenes jurídicos diversos, deben ser superados respetando mínimamente las siguientes reglas de interpretación: 1. A mayor conservación de sus usos y costumbres, mayor autonomía. 2. Los derechos fundamentales constitucionales constituyen el mínimo obligatorio de convivencia para todos los particulares. 3. Las normas legales imperativas (de orden público) de la República priman sobre los usos y costumbres de las comunidades indígenas, siempre y cuando protejan directamente un valor constitucional superior al principio de diversidad étnica y cultural. 4. Los usos y costumbres de una comunidad indígena priman sobre las normas legales dispositivas.

Plenamente consciente dos profundos debates teóricos que envolvem a compreensão do direito em um contexto intercultural, o tribunal constitucional acrescenta: Existe una tensión entre el reconocimiento constitucional de la diversidad étnica y cultural y la consagración de los derechos fundamentales. Mientras que éstos filosóficamente se fundamentan en normas transculturales, pretendidamente universales, que permitirían afianzar una base firme para la convivencia y la paz entre las naciones, el respeto de la diversidad supone la aceptación de cosmovisiones y de estándares valorativos diversos y hasta contrarios a los valores de una ética universal. Esta paradoja ha dado lugar a un candente debate filosófico sobre la vigencia de los derechos humanos consagrados en los tratados internacionales. La plena vigencia de los derechos fundamentales constitucionales en los territorios indígenas como límite al principio de diversidad étnica y constitucional es acogido en el plano del derecho internacional, particularmente en lo que tiene que ver con los derechos humanos como código universal de convivencia y diálogo entre las culturas y naciones, presupuesto de la paz, de la justicia, de la libertad y de la prosperidad de todos los pueblos.

Assim, acertados os termos teóricos nos quais a discussão deve ser travada, a Corte Constitucional entendeu que - uma vez que, à luz dos tratados internacionais ratificados pela Colômbia, a pena de desterro somente se refere à expulsão do território do Estado21 - a pena de exclusão da comunidade imposta pela comunidade indígena não vulnera a proibição de desterro inserta na Constituição colombiana. Todavia, a Corte considerou que viola a vedação constitucional ao confisco a perda absoluta das melhoras

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Entende a Corte Constitucional que “la pena de destierro sólo se refiere a la expulsión del territorio del Estado y no a la exclusión de las comunidades indígenas que habitan un espacio de dicho territorio pero que no exhiben el carácter de Naciones”. No ponto, discordo do julgado da sábia Corte Constitucional colombiana. As comunidades indígenas podem ser concebidas como autênticas nações, privadas, contudo, da características de estatalidade que não lograram ver reconhecidas no cenário contemporâneo internacional. Estatalidade e nacionalidade, contudo, são conceitos distintos e inconfundíveis.

implementadas pelo membro excluído na parcela da propriedade coletiva que ele ocupava. Tal sanção impor-lhe-ia uma situação de indigência e total despojamento, com perda absoluta de suas possibilidades de subsistência, vedada pelo constituinte. A Corte entendeu ainda que as sanções impostas em sede de jurisdição indígena devem guardar proporcionalidade com a conduta sancionada. Assim, a sanção deve ser razoável e deixar intactos outros valores jurídicos protegidos pelo ordenamento. Da mesma forma, a jurisdição indígena deve observar os princípios da responsabilidade individual do acusado e da presunção de inocência, entendidos como pressupostos essenciais do poder sancionador, seja do Estado, seja de particulares autorizados constitucionalmente ao exercício da jurisdição. Por essas razões, a pena foi tida por “desproporcionada y materialmente injusta por abarcar a los integrantes de su familia, circunstancia que genera la vulneración de los derechos fundamentales al debido proceso y a la integridad física de sus hijos”. b) Caso Embera-chamí22: Em Embera-chamí, a Corte Constitucional foi provocada a revisar acción de tutela proposta por membro da comunidade Embera-chamí, condenado pelo cometimento de homicídio praticado contra membro da mesma comunidade indígena. Narra a sentença que a conduta foi praticada em estado de embriaguez, o que configura, segundo os usos e costumes da comunidade indígena, o tipo descrito, na língua da comunidade, como Itúa biu’ba bea’si (um homem embriagado matou a um companheiro)23. Os envolvidos foram presos e ouvidos pelas autoridades do Cabildo indígena local de Purembara, empreendendo fuga em seguida, quando se entregaram à Fiscalía 24 de Belén de Umbría, argumentando que haviam sido ameaçados de morte e torturados por membros da comunidade indígena à qual pertencem. O órgão do Ministério Público iniciou as investigações quando foi notificado de que o Cabildo Mayor Único de Risaralda, em reunião dos cabildos locais, havia proferido julgamento, condenando um dos acusados à pena de oito anos de cárcere. A Fiscalía deu por encerrada a

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Sentença T-349/96

O julgado esclarece que “Aunque el fenómeno de la tipicidad no se da aquí tal como lo entendemos nosotros, pues no existe una ley escrita y estricta, si se verifica una interiorización de la prohibición” (Sentença T-349/96).

investigação e representantes da defensoría del pueblo tentaram junto à comunidade que modificassem o julgado. Em seguida, a Asamblea General de Cabildos en Pleno de la comunidad Embera-chamí, que reúne os dirigentes e membros da comunidade, proferiram novo julgamento, aumentando a reprimenda para 20 anos de cárcere. No novo julgamento, conforme estabelecem os usos e costumes da comunidade indígena, estiveram presentes os familiares da vítima e do acusado. A severidade da pena imposta pela Assembléia Geral dos Embera-chamí considerou a qualidade da vítima, “Edgar era un muchacho muy joven, honrado, trabajador, no tenía ningún antecedente ante el resguardo indígena”, bem como os antecedentes de “rebeldía” do réu em relação à comunidade24. O reú entendeu por bem ingressar com ação de tutela perante o Juzgado Único Promiscuo Municipal de Mistrato25, que conheceu da ação considerando que “El actor no dispone de otro medio de defensa judicial, en tanto que contra las decisiones de la comunidad no cabe recurso alguno”. Ademais, considerou que aquele foi o primeir caso de homicídio que a comunidade resolvia, razão pela qual conclui que “no hubo (...) ninguna costumbre, ningún uso, que permitiera aplicarse en razón de su constancia, y permanencia, y en acierto de la sabiduría de los conocimientos de esta organización étnica”. O Juzgado Municipal entendeu que houve flagrante violação ao direito do autor da ação de tutela ao devido processo legal, já que as normas não eram preexistentes ao caso; o réu não esteve presente em seu julgamento, já que se 24

Sentença T-349/96

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Ley 270/1996.

Artículo 11. La Rama Judicial del Poder Público está constituida por: I. Los órganos que integran las distintas jurisdicciones: a) De la Jurisdicción Ordinaria: 1. Corte Suprema de Justicia. 2. Tribunales Superiores de Distrito Judicial. 3. Juzgados civiles, laborales, penales, penales para adolescentes, de familia, de ejecución de penas, de pequeñas causas y de competencia múltiple, y los demás especializados y promiscuos que se creen conforme a la ley; [...] Parágrafo 1º. [...] Los jueces del circuito tienen competencia en el respectivo circuito y los jueces municipales en el respectivo municipio; los Jueces de pequeñas causas a nivel municipal y local. Artículo 22. [...] Cuando el número de asuntos así lo justifique, los juzgados podrán ser promiscuos para el conocimiento de procesos civiles, penales, laborales o de familia.

encontrava recluso no cárcere distrital; os membros da família da vítima participaram do segundo julgamento na condição de juízes; não se ofereceu ao réu o direito de apresentar provas e contraditar aquelas apresentadas pelos responsáveis por sua acusação; não se assegurou também o seu direito a impugnar a decisão, já que não foi notificado dela; o autor foi julgado duas vezes pelo mesmo caso, não se observando, no segundo julgamento, a vedação de reformatio in pejus, já que a sanção originalmente imposta foi consideravelmente agravada. Sob essas premissas, o Juzgado Municipal concedeu a tutela interposta para tornar sem efeitos a decisão da comunidade indígena. O feito foi devolvido à Fiscalia 24 de Belén de Umbría, para que esta retomasse o curso das investigações. Em seguida, concedeu-se ao autor o “beneficio de la libertad provisional, en virtud de la tardanza de la fiscalía encargada en dictar la resolución de acusación”. O processo subiu então à Corte Constitucional para revisão da sentença proferida pela instancia ordinária. A indagação inicial suscitada pela Corte foi a necessidade de estabelecer os limites concretos que a Constituição impõe ao exercício da jurisdição indígena, em especial no julgamento da conduta de membro de comunidade indígena contra outro membro da mesma comunidade, quando os acontecimentos tiveram lugar dentro do território da respectiva comunidade. A Corte Constitucional colombiana situa adequadamente o conflito submetido à sua análise quando considera que a resposta a esta primeira indagação demanda a discussão em torno do alcance do princípio do reconhecimento da proteção à diversidade cultural, consagrado no artigo 7º, da Constituição daquele país. O tribunal busca supedâneo na doutrina especializada, destacando que a existência de uma etnia demanda a ocorrência de duas condições: uma subjetiva, a que se denomina consciência étnica, entendida como a “la conciencia que tienen los miembros de su especificidad, es decir, de su propia individualidad a la vez que de su diferenciación de otros grupos humanos, y el deseo consciente, en mayor o menor grado, de pertenecer a él, es decir, de seguir siendo lo que son y han sido hastael presente”; outra, objetiva, referente aos elementos materiais que distinguem o grupo, basicamente o“conjunto de creaciones, instituciones y comportamientos colectivos de un grupo humano. (...) el sistema de valores que caracteriza a una colectividad humana”, tal como

“la lengua, las instituciones políticas y jurídicas, las tradiciones y recuerdos históricos, las creencias religiosas, las costumbres (folklore) y la mentalidad o psicología colectiva”26. A partir destas considerações, a Corte Constitucional estabelece sua premissa fundamental: “sólo con un alto grado de autonomía es posible la supervivencia cultural”; a partir da qual extrai como conclusão o postulado da “maximización de la autonomía de las comunidades indígenas” e sua proposição lógica contrária operativa que é a “minimización de las restricciones a las indispensables para salvaguardar intereses de superior jerarquía”27. Nesse ponto, merece destaque a lição da Corte sobre as normas de superior hierarquia aptas a legitimar restrições à autonomia das comunidades culturalmente diferenciadas. Não se trata, pois, de um critério formal de hierarquia, que tenderia a considerar como superiores todos os valores positivados no texto constitucional. Neste ponto, ensina a corte que “si bien la Constitución se refiere de manera general a la Constitución y la ley como parámetros de restricción, resulta claro que no puede tratarse de todas las normas constitucionales y legales; de lo contrario, el reconocimiento a la diversidad cultural no tendría más que un significado retórico. La determinación del texto constitucional tendrá que consultar entonces el principio de maximización de la autonomía que se había explicado anteriormente”28. Tratando-se de relações puramente internas, ou seja quando os fatos ocorrem dentro do território da comunidade, envolvendo exclusivamente os seus membros, o princípio da maximização da autonomia ganha relevância, de modo que o núcleo de direitos intangíveis, ou seja, daqueles direitos que alcançam uma dimensão material de superior hierarquia em relação ao valor constitucionalmente protegido da diversidade cultural, alcançaria apenas o “derecho a la vida, la prohibición de la esclavitud y la prohibición de la tortura”29. Sustenta a Corte que somente esses direitos alcançam um verdadeiro consenso intercultural, o que se comprova, segundo a Corte colombiana, pelo

26

Sentença T-349/96

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Idem.

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Idem.

29

Idem.

seu reconhecimento nos mais diversos tratados de direitos humanos30. A esse núcleo de direitos, a corte acrescentou ainda “una legalidad mínima, entendida funcionalmente como la existencia de reglas previas respecto a la autoridad competente, los procedimientos, las conductas y las sanciones, que permitan a los miembros de cada comunidad un mínimo de previsibilidad en cuanto a la actuación de sus autoridades”. A Corte se debruça então sobre o estudo antropológico de Carlos Cesar Perafán e Luis José Azcárate, acerca do sistema jurídico dos Embera-chamí e suas relações com o sistema jurídico estatal ordinário. O julgado expõe que a jurisdição indígena Embera-chamí compõe-se de três níveis, que se articulam para a solução de conflitos e prevenção de vinganças de sangue entre as famílias da comunidade. O sistema segmentário envolve um acordo entre as patrilinhagens do ofensor e da vítima quanto à sanção que deverá impor-se ao autor da conduta. Já o sistema de compensação envolve uma sanção consistente em pagamento de soma em dinheiro e o sistema centralizado se leva a cabo nas reuniões veredais ou gerais31, onde estão representadas as patrilinhagens (famílias extensas) de todas as partes envolvidas no conflito. A sentença destaca ainda a existência de uma interface entre a jurisdição especial indígena e a jurisdição ordinária, já que em casos de homicídio “la comunidad ha utilizado de una manera particular su relación con la justicia ordinaria. A ésta se le remiten para el castigo los casos que la comunidad misma no puede resolver, con el fin de evitar que se desaten guerras intertribales”. O estudo antropológico que empresta fundamento à decisão da Corte destaca que se “el homicida es muy necio, muy exagerado y no se 30

A sentença 349/96 menciona expressamente o Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966, a Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950, a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, a Convenção contra a Tortura e outros Tratos e Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e a Convenção de Genebra relativa a direitos de guerra, de 1949. Sobre o ponto, argumenta MALDONADO: “Más aún, ¿por qué los tratados son una prueba relevante de que los grupos indígenas aceptan ciertos valores? Los grupos aborígens no fueron parte de la discusión y redación de estos tratados. [...] La única referencia a los sistemas morales y jurídicos de los grupos indígenas se encuentra en una nota a pie de página en donde la Corte apela a la literatura antropológica disponible. Citando sólo un libro, la Corte concluye que las comunidades aborígenes no aceptan la tortura, la pena de muerte o la esclavitud” (2006, p. 176). A Corte fundamentou-se no estudo realizado pelos antropólogos Carlos Cesar Perafán y Luis José Azcárate, acerca do sistema jurídico da comunidade indígena Embera-chamí. O que diria Daniel Bonilla Maldonado ao deparar-se com o voto do Mininistro Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal brasileiro, que, no julgamento da Petição 3.388, relativa ao caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol ao definir etnia, lança mão de vetusto Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, publicado pelo Ministério da Educação e Cultura, no ano de 1983? Consta do voto do ministro brasileiro que etnia é um “grupamento humano homogêneo quanto aos caracteres lingüísticos, somáticos e culturais”. 31

Sentença 349/96: “[...] la decisión se toma en una reunión veredal sólo si todas las partes pertenecen a una misma vereda; de lo contrario, la decisión deberá tomarse en una reunión general. También se deciden en las reuniones generales las faltas muy graves”.

aviene al castigo, se remite a la justicia ordinaria. También cuando los patrilinajes dolientes no permiten que se castigue a la persona, bien porque se opongan al castigo, bien porque los familiares de la víctima acudan por cuenta propia a denunciar al victimario a la justicia ordinaria”32. O mesmo estudo antropológico contém interessante trecho em que um membro da comunidade compara as penas impostas segundo os usos e costumes indígenas e as penas cominadas segundo a tradição jurídica dos brancos (caponías): “En la cárcel se está bien, se come bien, se duerme bien; pero, no se ve la familia y se fuma marihuana, basuco, se aprende de homosexual, se aprende de fechorías y los castigos son muy largos. Cuando la persona sale no se ha rehabilitado, llega vicioso, llega homosexual, llega corrompido. Así, la pena de la cárcel no corrige, antes daña. (...) En cambio, en el cepo, cuando el cepo se aplica solo, el castigo es muy corto -12 o 24 horas-, pero es efectivo. La persona no quiere volver a él. Cuando se trata de penas graves, que llevan tiempo, estos tiempos son mucho más cortos que los de la cárcel porque llevan el cepo nocturno que sí es de verdad un castigo, pero, durante el día, aunque no se trabaja en lo propio, se está viendo a la familia, a los hijos, se sabe qué les falta, si están enfermos, disponiendo vender alguna cosa, para llevar al hospital, atendiendo. Además, como se trabaja en terrenos de los comuneros, ellos también están siendo advertidos, que si hacen lo mismo, van a tener que pagar igual, que ellos no quieren esto, por eso hacen también trabajar al condenado suavecito, no vaya a ser que cuando les toque el turno a ellos los hagan trabajar duro.”

Voltando os olhos ao caso sob julgamento, a Corte considerou que a pena imposta pela jurisdição indígena não viola o direito à vida. Quanto ao castigo del cepo (em português, pelourinho) a Corte Constitucional asseverou que se trata de “pena corporal que hace parte de su tradición y que la misma comunidad considera valiosa por su alto grado intimidatorio y su corta duración. Además, a pesar de los rigores físicos que implica, la pena se aplica de manera que no se produce ningún daño en la integridad del condenado. Estas características de la sanción desvirtúan el que sea calificada de cruel o inhumana, ya que ni se trata de un castigo desproporcionado e inútil, ni se producen con él daños físicos o mentales de alguna gravedad”33. No que se refere à legalidade do procedimento34, a Corte entendeu que os usos e costumes Embera-chamí foram respeitados, o que torna legítimo o julgamento realizado. Entendeu o tribunal que se coaduna à Constituição o julgamento através de 32

Sentença T-349/96.

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Idem.

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“Aunque parecería extraña a la mentalidad de los embera-chamí una noción como la de "debido proceso", es pertinente aludir a ella en el caso sub-lite, pues consta en el estudio antropológico, que obra en el proceso, que la comunidad repudia y castiga los abusos de quienes ejercen la autoridad, lo que implica una censura a la arbitrariedad, y es ésa la finalidad que persigue el debido proceso”. Idem.

reunião geral, na qual presentes os familiares do agressor e da vítima. A necessidade de um segundo veredito, proferido pela reunião geral dos membros, objetivou sanar as irregularidades do primeiro, realizado pelo Cabildo Mayor Único de Risaralda, autoridade ilegítima para o julgamento do caso, em face de sua gravidade, segundo os usos e costumes da jurisdição Embera-chamí. Com relação à ausência do réu em seu julgamento, a Corte assentou que “puede decirse del derecho de defensa, que no existe para ellos tal como nosotros lo entendemos, pues no son valores individuales los que dentro de su cosmovisión se protegen prioritariamente”35. Ao contrário, o essencial para a comunidade é a manutenção da paz quebrantada pelo homicídio perpetrado, que poderia implicar um conflito de famílias que somente se pode prevenir mediante um acordo das patrilinhagens acerca da intensidade e duração da pena, condição que se apresenta imprescindível para a legitimidade do julgamento. Assim, no que se refere ao procedimento adotado, a Corte concluiu que “comunidad ejerció las facultades jurisdiccionales que le atribuye la Constitución siguiendo estrictamente el procedimiento establecido en su ordenamiento jurídico”36. Todavia, a Corte entendeu que, ao impor uma sanção completamente estranha ao ordenamento jurídico indígena tradicional, qual seja o cumprimento de uma pena privativa de liberdade de vinte anos, “en una cárcel blanca”, houve uma violação do requisito da legalidade da pena, já que a comunidade, tradicionalmente, havia assinado ao delito de homicídio em estado de embriaguês (Itúa biu’ba bea’si) pena de três anos de trabalho forçado e cepo. Assim, reformando em parte a tutela anteriormente concedida, a Corte Constitucional decidiu consultar a comunidade Embera-chamí sobre sua disposição em julgar novamente o acusado, conforme suas práticas tradicionais, das quais faz parte a pena imponível, ou se consideram que haverão de ser os juízes ordinários que levarão a termo o julgamento.

35

Idem.

36

Idem.

c) Caso Arhuaco37: O caso Arhuaco trata de ação de tutela proposta por representante legal da Igreja Pentecostal Unida da Colombia (IPUC), juntamente com 31 indígenas arhuacos, em razão de proibições, impostas pelas autoridades tradicionais indígenas, da prática de atos de proselitismo religioso e cultos públicos dentro do resguardo indígena; encarceramento de membros da Igreja e pastor que atuavam na comunidade; fechamento do templo pentecostal instalado dentro do território indígena. Os autores entenderam haver vulneração de diversos direitos fundamentais, entre os quais à vida, à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade, à liberdade de consciência, à liberdade religiosa e de culto, à liberdade de expressão, à honra e à liberdade pessoal. O povo Arhuaco (ou Ika), instalados na região de Sierra Nevada de Santa Marta, entre os departamentos de Magdalena, Cesar e Guajira, possui um longo histórico de conflitos com lideranças religiosas forâneas. Em 1888, uma missão Capuchina instalou-se nas imediações da região em que vivia a comunidade indígena, criando um sistema de orfanatos para onde eram levadas crianças indígenas de muito pouca idade. Segundo estudos e documento juntados aos autos da ação, o sistema implantando pela missão católica foi desenhado explícita e especificamente para “romper la organización social y familiar de los indígenas y dirigido a producir la aculturación requerida para la imposición de una nueva fe. [...] A los huérfanos (considerados como tales por el hecho de no ser cristianos) les era prohibido salir del orfanato para visitar sus hogares, hablar en Ika y, en caso de escapar, podían ser perseguidos por una especie de policía indígena (constituida por los denominados semaneros) creada para estos efectos”. A forte oposição do povo Ika, levou à formação da Liga Indígena de la Sierra Nevada, em 1936, mais tarde substituída pelo Consejo Indígena Arhuaco, pelo qual se obteve a criação da primeira reserva territorial Arhuaca, com um total de 185.000 hectares, no ano de 1976. Narra a sentença que, em 1982, após uma tomada pacífica da missão Capuchina, o “Consejo Indígena Arhuaco logró que aquélla saliera definitivamente del territorio Ika, el cual fue constituido en resguardo indígena al año siguiente”. O processo de aculturação iniciado pela missão católica desde fins do século XIX abriu caminho para a chegada dos primeiros pastores evangélicos à região, o 37

Sentença SU-510-98

que ocorreu por volta de 1950, mediante convite de uma liderança indígena38. Os trabalhos missionários protestantes se intensificam na década de 1960, após a assinatura de convênio de cooperação entre o governo colombiano e o Instituto Lingüístico de Verano, descrito pelo julgado da Corte como um grupo missionário norte-americano que persegue a conversão dos indígenas através da tradução da Bíblia, fato que marca “el quiebre de la hegemonía de la Iglesia Católica sobre la actividad misionera en las comunidades indígenas de Colombia”39. Vê-se, pois, que entre os arhuaco, o proselitismo religioso de matizes ocidentais levou a constantes conflitos com as lideranças indígenas tradicionais, o que se reveste de particular gravidade em face da composição etno-identitária da comunidade. Em notável esforço de imersão no universo cultural radicalmente distinto do povo arhuaco, a Corte colombiana considerou que “el pueblo Ika, para un observador externo se define con arreglo a un conjunto de firmes creencias y de mitos fundadores. La comunidad como tal es la encarnación de una cosmovisión”40, razão pela qual há uma coincidência das esferas política e religiosa, organizadas sobre a autoridade dos mamos41. Nesse sentido, a Corte considerou que o direito fundamental descrito pelos cânones ocidentais como liberdade religiosa merece uma releitura interna, a partir das especificidades culturais de cada sociedade, em face do mandamento constitucional de reconhecimento e tutela da diversidade cultural, previsto no artigo 7º da Constituição

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“Según los mamos Ika, la llegada de los primeros pastores evangélicos, invitados a la Sierra por una líder indígena llamada María Eugenia Solís, se produjo aproximadamente hacia el año de 1950”. Sentença SU-510/98. 39

Idem.

40

Idem.

41

“El mamo es una personalidad omnipresente en la vida diaria de la comunidad indígena. Así por ejemplo, gracias a la confesión, conoce en profundidad a cada uno de los individuos que la componen, es consciente de la situación económica de cada familia [...]. De otra parte, sólo el mamo conoce en detalle los mandatos de la "Ley de la Madre" y es el único que posee los conocimientos esotéricos suficientes para interpretarla a cabalidad. De esta forma, el mamo se convierte en el intermediario necesario entre el individuo y las fuerzas sobrenaturales del universo. [...] todas las decisiones de carácter político que se adoptan en el interior de la comunidad resultan determinadas, validadas y fundamentadas por el discurso sagrado que sólo el mamo es capaz de articular. Por una parte, los mamos han sabido reelaborar la tradición sagrada de los Ika [...], han logrado acordar un papel a la "civilización blanca" dentro de su discurso sacro, conforme al cual los Ika (y, en general, todos los pueblos indígenas de la Sierra) son los "hermanos mayores" de la humanidad, aquienes corresponde velar por la integridad y equilibrio del universo y cuidar de sus "hermanitos menores" los blancos, quienes se empeñan en destruir el universo cuyo centro es la Sierra Nevada”. Sentença SU-510/98

Colombiana. Assim, em uma comunidade cuja cosmovisão é acentuadamente teocêntrica, “no es posible considerar que las autoridades de la comunidad Ika, cuya identidad perceptible externamente es de índole acusadamente religiosa, frente a las manifestaciones de los demandantes, tengan el carácter de sujetos pasivos de la libertad religiosa y, deban, en consecuencia, garantizar dentro del territorio bajo su jurisdicción las prácticas evangélicas”. Assim, as autoridades próprias da comunidade podem limitar a liberdade de culto de seus membros sempre que o pleno exercício desse direito ameace o direito de superior hierarquia à integridade cultural de toda a comunidade42. Para proferir o fallo constitucional, a Corte colombiana dignou-se a ouvir especialistas e, mormente, a própria comunidade indígena, deixando-se contaminar por sua coerência interna, pelas percepções, concepções e valores que orientam sua particular compreensão. Abstendo-se de valorar e julgar a incomensurável diferença do outro, o que é vedado ao julgador em face do reconhecimento constitucional de todas as diferenças43, o magistrado poderá alcançar, em máxima medida, uma compreensão autêntica do universo cultural submetido a sua jurisdição. O trecho a seguir é epistolar e merece ser transcrito: En este sentido, considera la Corte que en aquellos eventos en los cuales resulta fundamental efectuar una ponderación entre el derecho a la diversidad étnica y cultural y algún otro valor, principio o derecho constitucional, se hace necesario entablar una especie de diálogo o interlocución - directa o indirecta -, entre el juez constitucional y la comunidad o comunidades cuya identidad étnica y cultural podría resultar afectada en razón del fallo que debe proferirse. La función de una actividad como la mencionada, persigue la ampliación de la propia realidad cultural del juez y del horizonte constitucional a partir del cual habrá de adoptar su decisión, con el ethos y la cosmovisión propios del grupo o grupos humanos que alegan la eficacia de su derecho a la diversidad étnica y cultural. A juicio de la Corte, sólo mediante una fusión como la mencionada se hace posible la adopción de un fallo constitucional inscrito dentro del verdadero reconocimiento y respeto de las diferencias culturales y, por ende, dentro del valor justicia consagrado en la Constitución Política (C.P., Preámbulo y artículo 1°)44.

A Corte reiterou o entendimento segundo o qual somente com um elevado grau de autonomia é possível a sobrevivência cultural das comunidades indígenas, reafirmando ainda a regra em virtude da qual à maior conservação de usos e costumes 42

“El severo recorte que puede sufrir la libertad religiosa del indígena disidente, tanto en lo que se refiere a la exteriorización de su nueva fe como a su práctica militante, es simplemente incidental a su pertenencia a una comunidad que se cohesiona alrededor del factor religioso”. Sentença SU-510/98. 43

“el Estado debe cuidarse de imponer alguna particular concepción del mundo pues, de lo contrario, atentaría contra el principio pluralista (C.P., artículos 1° y 2°) y contra la igualdad que debe existir entre todas las culturas (C.P., artículos 13 y 70)”. Idem. 44

Idem.

deve corresponder um maior âmbito de autonomia. Reconhecendo que a comunidade arhuaca goza de altíssimo grau de conservação cultural, a Corte concluiu que seu nível de autonomia deve ser muito amplo. Em razão dessas constatações, a Corte foi chamada a tecer considerações etnográficas e sociológicas tendentes a estabelecer o grau de comprometimento que as práticas da Igreja Pentecostal geram sobre a cultura Arhuaca, desincumbindo-se da tarefa investigando a organização política da comunidade, o seu mundo espiritual e religioso, perscrutando as especificidade de seu sistema jurídico - fortemente centrado na autoridade e nos poderes expiatórios dos mamos -, e a inserção da comunidade dentro do concerto regional e nacional colombiano. Sobre a instalação de um templo religioso pentecostal dentro do resguardo indígena, a Corte entendeu que a questão denota grave violação do direito da comunidade indígena à propriedade coletiva da terra. Referido direito é regulado pelo artigo 66945 do Código Civil colombiano, em razão do qual o tribunal constitucional afirmou que “Como propietaria absoluta de su resguardo, la comunidad Ika puede decidir, en forma autónoma, quién puede o no entrar al mismo y, con aún mayor razón, está facultada para prohibir que se construyan instalaciones por parte de grupos extraños a su cultura”46. Ademais, a Corte demonstra elevada compreensão do fenômeno do interculturalismo quando destaca que “no cabe formular reproche alguno si la consideración para definir el destino del suelo (C.P. art. 330-1), en últimas, resulta determinada por motivos religiosos”47. Neste ponto, a Corte entendeu que somente prevelecem sobre o direito da comunidade à propriedade coletiva de suas terras os interesses da Nação relacionados à preservação da segurança nacional, da soberania nacional e da conservação da ordem

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Código Civil colombiano. “Artículo 669. El dominio que se llama también propiedad es el derecho real en una cosa corporal, para gozar y disponer de ella, no siendo contra ley o contra derecho ajeno”. 46

Sentença SU-510/98.

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Idem.

pública. Mesmo relevantes interesses regionais48 devem ser preteridos quando há séria ameaça à sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. A comunidade, sob o ditame do artigo 7ª da Constituição colombiana, que reconhece e tutela a diversidade étnica e cultural do país, goza de autonomia para estabelecer seu grau de abertura à cultura majoritária, o que define a exclusiva competência de suas lideranças para autorizar ou não o trânsito e fixação de pessoas e instituições no resguardo indígena. Sobre as penas aplicadas aos dissidentes religiosos da comunidade, a Corte sustentou a constitucionalidade das medidas uma vez que “el juicio de conformidad constitucional de una determinada acción o abstención de una autoridad indígena referida a miembros de su comunidad, como punto de vista externo a la misma, no puede operar sin que antes se intente aprehender su significado en el contexto sociocultural en que se origina. La violación constitucional, cuando ella se presenta, debe trascender la mera diferencia de enfoque cultural de una acción y, en términos indubitables, lesionar la dignidad de la persona humana.”49 Entendeu a Corte colombiana que as crenças que compõem o cânon evangélico, com suas repercussões deontológicas (proibição do uso do poporo e do mambeo de coca; proibição de participação nas cerimônia batismais, matrimoniais e mortuárias, bem como do uso de amoletos, todos considerados feitiçaria; a não aceitação da confissão e das adivinhações pelos mamos) comprometiam seriamente a autoridade 48

“Así, ha considerado que las obras públicas que obedecen a un interés de carácter meramente regional (vgr. la carretera Troncal del Café) deben ser suspendidas si la afectación al territorio de una comunidad indígena pone en peligro la infraestructura productiva de la comunidad y, por tanto, amenaza la subsistencia material de la misma”. Sentença SU-510/98. O caso da Carretera Troncal del Café foi julgado na Sentença T-428/92, na qual restou consignado que “El interés de la comunidad indígena está claramente delimitado en un ámbito espacial y temporal; en cambio el interés de los beneficiarios de la ampliación de la carretera, que en términos generales podría ser descrito como el interés de los pobladores de la zona cafetera del occidente colombiano, abarca un mayor número de personas, e incluso se puede afirmar que dentro de ese número de personas se incluye a la comunidad indígena. En estas circunstancias, se trata de un conflicto entre dos intereses colectivos, siendo uno de ellos compartido por ambas colectividades. El interés de la comunidad indígena posee una legitimación mayor, en la medida en que está sustentado en derechos fundamentales ampliamente protegidos por la Constitución”. No dispositivo da decisão a Corte condenou os empreendedores a indenizar a comunidade no montante dos prejuízos causados e considerou ainda que “En todos aquellos casos similares al presente, por sus hechos o circunstancias, siempre que se haya ocasionado perjuicios a Comunidades indígenas derivadas de la omisión de normas sobre estudios previos de impacto ambiental para la realización de obras públicas, la doctrina constitucional enunciada en esta sentencia tendrá CARACTER OBLIGATORIO para las autoridades, en los términos del Artículo 23 del Decreto 2067 de 1991”. 49

Sentença SU-510/98.

dos mamos, a cosmovisão tradicional e, consequentemente, a estabilidade da milenar estrutura social e cultural Ika, o que justifica, per si, as penas e limitações impostas. Todavia, a Corte ressaltou que a sanção a uma pessoa por “por el mero hecho” de professar o culto evangélico é arbitrária, pois a simples crença não ameaça gravemente a sobrevivência da cultura. Todavia, sancionar uma pessoa somente por sua crença “en cambio, sí viola el núcleo esencial - el mínimo de los mínimos - de la libertad de cultos. No obstante, la creencia en el evangelio puede implicar que se incumplan las normas tradicionales de la comunidad por ser incompatibles con los mandatos bíblicos. En este caso, las autoridades están en su derecho de sancionar a quien no obedece en los términos en los que deben obedecer los restantes miembros de la comunidad”50. Assim, ao impor um marco de reconhecimento e proteção da cultura Arhuaca, atestando a constitucionalidade da leitura feita pelas autoridades tradicionais indígenas em defesa de sua cultura, ameaçada pela cinco vezes secular intromissão de grupos religiosos de matiz europeu na vida dos povos americanos, a Corte colombiana avançou de forma muito significativa na concretização de um ideal intercultural de respeito e diálogo humanos. Segundo ensinou o avançado tribunal constitucional colombiano “Imponer una interpretación distinta de los hechos o modificar la orientación normativa de la acción de las autoridades indígenas, en este evento tendría el carácter de irrespeto cultural prohibido por el artículo 7 de la C.P.”.

Daniel Bonilla Maldonado, analisando os três casos expostos neste trabalho e confrontando-os com os principais teóricos do multiculturalismo, conclui “La Corte pasa de defender una perspectiva liberal radical en el caso El Tambo, a apoyar una fuerte, aunque no absoluta, concepción de la autonomía cultural en el caso Embera-chamí, a defender una posición liberal culturalmente sensible en el caso Arhuaco. [...] Mientras que El Tambo se ubica dentro las fronteras teóricas de autores como Dworkin y Rawls, Embera-Chamí comparte el mismo horizonte teórico de autores como Tully, y Arhuaco sigue de cerca la línea de argumentación defendida por teóricos como Kymlicka”51

50

Idem.

51

MALDONADO, 2006, p. 193.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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