\"Artaud ocupou toda a minha vida\": uma entrevista com Paule Thévenin sobre Antonin Artaud

July 4, 2017 | Autor: Claudio Willer | Categoria: Antonin Artaud
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Paule Thévenin: "Artaud ocupou toda a minha vida!" (entrevista)
Claudio Willer
Em 1986, convidaram-me para falar em um Evento Artaud, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Relatei a palestra
que havia dado poucos dias antes em São Tomé das Letras,
MG, sob uma tempestade, na escuridão, com raios
atravessando o galpão no qual li seu Van Gogh. Foi
impressionante: interpretei como realização do Teatro da
Crueldade, conforme relatei em uma palestra recente, para o
Taanteatro, que está registrada em vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=YeO-T5QP-bE . Também
participava do Evento Artaud, junto com outros
especialistas, Paule Thévenin (1918-1993), que havia sido
sua secretária e organizava a edição das obras completas
para a Gallimard. Figura admirável. Aproveitei e a
entrevistei. Publiquei logo a seguir na revista Leia. Mais
tarde, em agosto de 2000, reproduzi em Agulha,
http://www.jornaldepoesia.jor.br/ag1willer.htm Agora, para
ampliar o público leitor na razão direta do crescimento do
interesse por Artaud, reproduzo neste Academia.edu.
" ". " "


Os quase 40 anos transcorridos desde a morte de Antonin Artaud (Marselha,
setembro de 1896-Ivry, março de 1948) dão a perspectiva histórica para
qualificá-lo como o principal maldito de nossa época. Para Foucault, depois
de Artaud, não são mais as obras dos loucos e malditos que precisam
justificar-se diante da psicologia, mas a psicologia, questionada, posta
contra a parede, é que preciso justificar-se diante de tais obras.
Hoje é difícil distinguir quanto a criação coletiva, a invenção em cena, o
primado do gestual e de todas as formas de comunicação não verbal e de
ruptura da separação entre espetáculo e público correspondem a uma
influência específica do seu teatro da crueldade ou são práticas comuns a
todo teatro moderno. Outras manifestações - como a performance e a body
art - têm em Artaud seu inventor, em palestras e apresentações que na época
causavam escândalo e consternavam o público. Isso, para não falar do seu
papel como referencial da moderna semiologia, da antipsiquiatria de Laing,
da "esquizoanálise" de Deleuze e Guattari.
Essa contribuição gerou uma bibliografia gigantesca, caracterizando-o como
um dos autores mais estudados e discutidos do nosso tempo - ele que
abominava os literatos e afirmou que "toda escrita é porcaria",
atravessados por imagens luminosas e frases com um extraordinário poder de
síntese, onde a densidade, o delírio e a paixão se integram e se tornam uma
só coisa.
Soma-se a isso uma biografia coerente, marcada por uma busca constante que
inclui sua passagem pelo surrealismo (1924/27) e a ruptura por, na verdade,
encarnar radicalmente as idéias desse movimento: suas iniciativas no teatro
de vanguarda; sua revisão crítica da História e sua discussão do
colonialismo em obras como Heliogábalo e nas palestras mexicanas: seu
mergulho em outro universo; ao participar do culto do peiote dos
Taraumaras: e sua tragédia, seu internamento por oito longos anos, de
hospício em hospício, durante a guerra, na França ocupada, até ser
resgatado em 1946, fisicamente acabado pelo sofrimento - ele, que sempre
execrava os psiquiatras, declarando já em 1925 que "nós nos rebelamos
contra o direito concedido a homens de sacramentar com o encarceramento
perpétuo suas investigações no domínio do espírito", para reiterar em 1947,
em seu Van Gogh, que "em todo demente há um gênio incompreendido cujas
idéias, brilhando em sua cabeça, apavoram as pessoas, e que só no delírio
consegue encontrar uma saída para o cerceamento que a vida lhe preparou".
Talvez essa identificação de gênio e loucura não valha para todo e qualquer
louco; mas vale para Antonin Artaud, como ele o demonstrou através de sua
vida e sua obra.
Paule Thévenin colaborou intimamente com Artaud em seu período de maior
produtividade, de 1946, quando readquiriu a liberdade, saindo do asilo de
Rodez e transferindo-se como paciente voluntário para Ivry, nos arredores
de Paris, até sua morte em março de 1948. Sua edição da Obra
Completa (Gallimard) é um modelo de rigor e fidelidade.
Discreta (não deixa que a fotografem), Paule Thévenin vê criticamente a
maior parte da enorme bibliografia sobre Artaud; reconhece a importância de
estudos como os de Blanchot e Derrida, mas acha o discurso universitário
limitado e redutor. É sintética e precisa nas afirmações, como em sua fala
no encerramento do Evento Artaud: "Acho que todas as disciplinas - todas
elas, a filosofia, a psicologia, a literatura, as artes - têm que
interrogar-se a partir de Artaud". [C.W.]
CW - Como começou essa relação tão íntima com Artaud e sua obra?
PT - Já me perguntaram isso muitas vezes. Só posso dar a mesma resposta de
sempre: um dia, depois que ele saiu de Rodez, depois da sua volta ao mundo
livre, fomos vê-lo em seu quarto de Ivry. E ele começou a visitar-nos, e
nós gostávamos da sua presença. Sempre havia um lugar para ele ficar, e
Artaud sentia-se bem conosco.
CW - E isso se transformou em uma colaboração, um trabalho conjunto…
PT - Como ele vinha muito em casa e eu havia parado com os estudos, pediu-
me que tomasse o ditado de alguns de seus textos. Isso aconteceu muito
naturalmente. Artaud sempre, desde seus primeiros escritos, preferiu ditar
seus textos: Heliogábalo, por exemplo, e alguns dos textos de O teatro e
seu duplo, o que provocava erros de transcrição, erros auditivos que depois
corrigi na edição das Obras Completas. Acabei aprendendo a datilografar
para cuidar de sua obra. Van Gogh me foi ditado integralmente, o que levou
cerca de dois meses, e não dois dias, como chegaram a dizer.
CW - Mas ele lia um texto escrito ou improvisava ao ditar?
PT - Geralmente escrevia primeiro o texto, depois ditava, mas ia
modificando o texto enquanto ditava. O manuscrito dele é bem diferente da
versão ditada. O único texto que ele não modificava eram as cartas.
CW - Na minha introdução dos Escritos de Antonin Artaud, eu digo que as
cartas parecem ser sua forma preferida de expressar-se…
PT - Sim, as cartas eram seu meio preferido de expressar-se. Como a carta
que escreveu para Jules Supervielle, que também era o artigo que este lhe
havia pedido para a revista Sur… As cartas eram sua forma preferida de
ultrapassar as barreiras que o impediam de escrever. A segunda parte dos
textos sobre teatro balinês também é constituída por cartas.
CW - E há cartas a Henri Parisot, de Rodez, que para mim têm uma força
especial…
PT - As cartas a Parisot são outro problema. Elas foram escritas em Rodez,
quando Artaud estava internado no asilo, em solidão total. Os textos que
escrevia então eram para ele mesmo, sem intenção de publicar. Quando
Parisot lhe escreveu (para tratar da edição da Viagem ao país do
taraumaras), Artaud teve um interlocutor do mundo livre. Escreveu-lhe
cartas para servirem de prefácio à edição dos Taraumaras e outras para
serem publicadas à parte. Essas cartas dirigiam-se para um interlocutor e
para o leitor. Artaud queria falar de tudo o que havia acumulado, de tudo o
que se havia passado com ele durante aqueles anos em que esteve internado
(de 1937 a 1946), e isso da forma mais penetrante, mais impactante. Ele
sempre pôs muito de si nas cartas, eram parte de sua vida… As cartas para
Génica Athanasiou, as que ele quis que fossem acrescentadas à edição
de Suppôts et supliciations…

CW - E como começou esse trabalho de edição das Obras Completas?
PT - Quando Artaud morreu, estavam planejados quatro volumes. Para atualizá-
los, ele havia planejado acrescentar textos recentes, com um traço da
experiência dramática que viveu. Ele morreu quando isso estava em
preparação. Então decidimos preparar a edição da obra completa, procurar
todos os seus textos e colocá-los em ordem cronológica.
CW - Eu levantei a hipótese de ainda haver inéditos…
PT - Sim, ainda há inéditos. Por sua importância, eu fiz questão de
acrescentar as cartas às Obra Completa, como meio de dar ao leitor o que
era importante. Até agora, publicou-se uma grande parte. Um dia, será
preciso publicar a correspondência completa. Há as dificuldades com a
família, tudo isso, mas o importante é publicar o máximo possível.
CW - Então é um trabalho infinito.
PT - Sempre se acham mais cartas. Nas bibliotecas, universidades, com
pessoas… Ainda faltam muitas das cartas desde sua volta a Paris até sua
morte. Para mim, é um trabalho infinito! Já são 23 volumes! A cada nova
edição acrescento cartas que foram achadas depois. Eu refiz todos os
volumes, exceto o 10 e o 11, deCartas de Rodez - que ainda podem vir a ser
refeitos. Não sei se conseguirei terminar essa edição das obras completas
até o fim de minha vida. Acho que nunca terminarei…
CW - Gostaria de ter um depoimento seu sobre Artaud, descrevendo-o como o
via. Acho as descrições existentes de Artaud muito pesadas - como a de
Anais Nin -, mostrando-o trágico, torturado o tempo todo…
PT - As pessoas são sempre más testemunhas e Artaud contou muito para mim,
ocupou toda minha vida com seu texto. Não quero ser uma falsa testemunha.
mas quando vejo obras que o mostram como só paroxístico ou histérico, eu
não concordo. A visão que tenho de Artaud é de alguém que sabia ser alegre,
que também era capaz de divertir-se e de brincar.
Ele me tratava cerimoniosamente, como uma grande dama, me tratava por vous.
Era sempre o vous, não aceitava o tu. Isso porque foi tutoyé (tratado
por tu) durante os anos em que esteve internado - então o tu era penoso
para ele. Mas mesmo isso, era capaz de comentar de um modo engraçado. No
fim da vida, rejeitou todas as religiões e não suportava as manifestações
religiosas. Quando Marie Casarés foi conhecê-lo, estava usando uma corrente
com uma cruz, e Barrault pediu-lhe que a tirasse, pois iria desagradar a
Artaud. E houve aquela ocasião no Flore, quando Abel Gance mandou um
emissário procurá-lo. Gance já estava bem velho mas ainda queria fazer um
grande filme sobre a vida de Cristo e convidou Artaud para trabalhar no
filme. Artaud ficou furioso. Essas coisas, ele contava vituperado, mas
também rindo, se divertindo.
Também houve o caso do coiffeur. Antigamente, era costume os homens fazerem
a barba no coiffeur (cabeleireiro masculino). Artaud parecia
um clochard (vagabundo de rua), sempre com o mesmo capote velho, e resolveu
entrar no coiffeur e fazer a barba. Na hora de pagar, quis dar a gorjeta ao
barbeiro, e este recusou, fez questão de não aceitar. E certa vez, Artaud
perdeu a chave de seu quarto em Ivry e ficou rondando a clínica à noite,
sem poder entrar. Então dois policiais, que o viram rondando, vieram saber
o que estava acontecendo e acabaram ajudando-o a pular o muro. No dia
seguinte, ele comentou: "Vejam, foram vistos dois agentes de polícia me
ajudando a pular um muro…" Ele contava essas coisas rindo, alegremente.
CW - Essas conjurações e feitiçarias de que Artaud fala nas Cartas de
Rodez, no Van Gogh, a magia negra contra os poetas malditos… Até que ponto
ele acreditava mesmo nisso ou para ele eram apenas metáforas?
PT - Não há limite entre os dois, metáfora e realidade. a história de
Artaud é exemplar, é a história de uma entreprise, de uma ação maléfica
contra um homem. Isso é muito forte no nível do símbolo e é real de um
certo modo. Por ser forte e ser real, tem um sentido. É preciso prestar
atenção, é preciso tomar cuidado: sempre há algo de real nisso tudo.
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