Arte como mercadoria, como cidade

May 29, 2017 | Autor: T. Sampaio Ferraz | Categoria: Arte Contemporanea, Arte Contemporânea Brasileira, Arte Brasileira
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Série Especulação imobiliária, 2012 de Daniel Escobar

Arte como mercadoria, como cidade Diamond Tower, Singular, Trade, Serenitá, Arboretto, Park Vienna, Forest Park. Um deles pode ser seu um dia! Em tempos de frenesi imobiliário e esperanças endividadas, o mercado brasileiro não cansa de prospectar futuros donos da casa própria, que um dia sonham em conquistar um lugarzinho no “céu”: um metro quadrado, o mais privilegiado possível, no coração da metrópole. Os nomes dos empreendimentos imobiliários dão o tom da série de trabalhos do artista gaúcho Daniel Escobar, Especulação imobiliária, vista pela primeira vez no Santander Cultural, Porto Alegre, em 2012, e exposta na mostra individual do artista na Zipper Galeria, em 2014. Cada um dos nomes representa um lançamento comercial, sob a forma de um objeto-vitrine. A obra-objeto remete tanto a uma vitrine de joias de uma boutique de luxo, quanto a um mobiliário museológico que resguarda sua obra-prima.



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Diferentemente desses objetos “artísticos” – de qualidades tão especiais a ponto de serem resguardados em caixas de vidro –, o conteúdo das vitrines de Escobar, a primeira vista, é ordinário, reciclável e não tem valor “artístico” em si. São pecinhas feitas com papel reutilizado, montadas de modo a imitarem as peças de um jogo infantil. Expostas sob a forma de displays de venda, cada grupo de peças corresponde a um dos lançamentos imobiliários a serem comercializados. O que era comumente apreendido como mero suporte expositivo (vitrine), agora passa a integrar a própria obra (vitrine-objeto), e compõe cada conjunto de peças do trabalho. A absorção do aparato “artístico”, que separava o mundo da arte e o mundo do observador, remete a atitudes subversivas importantes na história da arte, tais como as de Marcel Duchamp, Costantin Brancusi e Lygia Clark, que se apropriaram de elementos que garantiam uma certa artisticidade ao trabalho – quer a base para a escultura, quer a moldura para a pintura, quer a própria assinatura para um trabalho conceitual – e os anularam sob a forma da obra em si. Para além dos questionamentos sobre os limites da arte e seu estatuto enquanto tal, a apropriação do suporte vitrine em Escobar adiciona o problema da mercadoria ao equalizar o caráter comercial do objeto de arte em relação ao empreendimento imobiliário. Ambos são promovidos pelo marketing de departamentos de venda e circulam pelo desejo alheio de serem consumidos. Nesse sentido, a obra de Escobar se mostraria como uma paródia sobre a própria ideia de arte hoje e sobre os mecanismos que envolvem sua circulação. Dentro de cada vitrine, composta por cúpula de vidro e base metálica, sob a qual é fixada uma plaquinha com o nome do empreendimento, o artista dispôs um conjunto de pecinhas inspiradas no jogo do engenheiro. A opção pelo uso do universo lúdico infantil emoldura uma certa ironia do artista, por meio da qual Escobar desconstrói a materialidade dos folhetos de propaganda e divulgação dos lançamentos imobiliários. O mundo de papéis coloridos distribuídos incansavelmente em cada uma das esquinas da cidade, é reutilizado sob a forma

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de peças de jogo, onde, ao contrário de se buscar construir uma cidade1, apenas se empilha, aleatoriamente, como uma montanha de ruínas recicladas. O arranjo desordenado das pecinhas do “engenheiro” pode ser lido como certa incapacidade em se construir uma cidade hoje; os elementos construtivos da arquitetura, amontados, não passariam de restos e ruínas produzidas pelos departamentos de marketing e vendas das grandes incorporadas urbanas. A imagem de cidade, por sua vez, aparece indiretamente com uma imagem de desejo e fracasso, entre a utopia do sonho da casa própria e a banalização do endividamento pessoal. Escobar se preocupou em dispor cada uma das vitrines como uma unidade especial, com uma certa quantidade de pecinhas, com uma determinada altura da cúpula que resguarda o conteúdo da vitrine, com uma tipologia diferente do letreiro que identifica o empreendimento – esta, a ponto de combinar com suas qualidades específicas. Por exemplo, a tipologia usada em Oslo tem um aspecto escandinavo no “design”; Serenitá, por sua vez, combina a letra cursiva com o romantismo da palavra; já Trade, por sua brevidade, faz uso de um tipo simples e direto, tudo em caixa alta. Aqui, uma análise linguística dos nomes utilizados pelas incorporadoras seria revelador para buscar compreender as conexões entre seus significados (conceituais) e suas intenções (mercadológicas). Se há algumas décadas, o mercado batizava seus empreendimentos com nomes de grandes artistas, numa espécie de homenagem (Velazquez, Picasso, Matisse, entre outros), hoje os departamentos de marketing optam por nomes mais “conceituais”, provenientes do mundo da arte, tais como: Vernissage, Acervo, entre outros. Os nomes surgem antes mesmo do edifício, norteiam a construção da identidade visual – tal como Escobar explicita no seu trabalho, e devem passar os atributos e diferenciais do imóvel a fim de seduzir o comprador. 1 Nesse sentido, o engenheiro representa uma das primeiras tentativas da infância de materializar um projeto de cidade.



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Em Especulação imobiliária, as qualidades específicas atribuídas pelos nomes dos empreendimentos, e reforçadas pela formalização do trabalho em displays de venda no recinto de uma galeria de arte, reiteram o que parece ser o ponto chave do artista: uma provocação sobre a construção do valor na arte e sua condição de mercadoria, colocada lado a lado com o mercado imobiliário. Por alguns segundos, a galeria se transforma num stand de oportunidades de vendas imobiliárias na cidade. Não há como negar que o mercado de arte contemporânea se avizinha cada vez mais em sua operacionalidade ao mercado de bens imóveis, sendo ambos provenientes da lógica financeirizada da economia global, cuja pedra fundamental é o capital especulativo e o mercado de ativos. Segundo o artista, em seus projetos mais recentes, tem buscado cada vez mais se utilizar de tudo que o sistema de arte pode oferecer para evidenciar o quanto ele é frágil e suscetível ao mesmo sistema de dominação da circulação do capital. A série de objetos-vitrines de Escobar assimila, assim, a “cadeia alimentar” da economia de mercado, e repõe o problema criticamente, de forma lúdica e paródica. O cotidiano se transforma em arte, a arte se transforma em mercadoria, a mercadoria se transforma em imagem, e a imagem se transforma em sonho: o próprio desejo de consumir. O trabalho de Escobar lida com que ele mesmo chama de “cartografias do desejo”, criadas pelo consumo e pelo entretenimento. Em sua prática artística, tais cartografias são identificadas na coleta de todo material publicitário que possa discorrer sobre a condição de consumidor – slogans, anúncios, folderes etc., este imerso numa cidade que, por sua vez, se materializa como um desejo de cidade, como uma imagem.



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