Arte, criação e trabalho pedagógico

May 31, 2017 | Autor: S. Rangel Vieira ... | Categoria: Contemporary Art, Criativity, Criatividade, Arte Educação, Ensino De Artes Visuais
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CUNHA, VIEIRA da Susana R. Arte, Criação e trabalho pedagógico. Revista Pátio Ensino Fundamental. Porto Alegre: Grupo A Educação S.A., Ano XX, no. 79, Agosto/outubro 2016, p.10-13

Arte, criação e trabalho pedagógico Dra. Susana Rangel Vieira da Cunha

A criatividade tem dono? Há alguns anos atrás, em visita a um país onde a maioria da população vivia com poucos recursos econômicos, fiquei impressionada com as soluções que os mecânicos criavam para que seus carros circulassem pelas ruas. Além das soluções de ordem funcional, também se percebia preocupações estéticas. Ou seja, as pessoas que colocavam os automóveis em movimento com poucos recursos materiais, além de fabricarem, adaptarem, reciclarem outras peças, tinham também propósitos de embelezamento. Na maioria das vezes, não classificamos este tipo de trabalho como criativo, pois o senso comum ensinou que a criatividade está confinada ao campo das Artes e assim não reconhecemos que o trabalho realizado em qualquer campo do conhecimento e nas mais diversas situações, da biotecnologia à construção de canoas Yanomami, também é guiado pelo pensamento criativo, às vezes estético. Assim, o pensamento criativo não é exclusivo dos artistas, é uma competência humana que nos difere de outras espécies e como nos ensinou, desde a década de 70, a artista visual Fayga Ostrower: “Consideramos a criatividade um potencial inerente aos homens [e as mulheres]. (...) O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam” (Ostrower, 1987, p.5).

Se atribuirmos a criatividade apenas ao campo da arte, como denominaríamos o processo que levou a descoberta do avião? do teflon? das lentes de contato? do computador? Os processos de todos/as os inventores/as são criativos/as, seus produtos revolucionaram o mundo tanto quanto os produtos de Giotto, da Vinci, Cézanne, Picasso, Duchamp, entre tantos outros que romperam com modelos vigentes da arte de seu tempo. Deste modo, instigo a refletirem: a criatividade é um traço que se manifesta apenas nos artistas e na Arte? O que diferencia o pensamento criativo dos artistas, dos médicos, dos bioquímicos, dos cozinheiros? A grosso modo, pode-se afirmar que os processos de criação nos diferentes campos e em nosso cotidiano são desencadeados pela: curiosidade sobre algo, necessidade e persistência de encontrar soluções, tensão que se forma entre o que existe e o que poderá ser – o desconhecido -, ousadia de romper com o instituído e abandono das certezas. Estes “ingredientes” levam criadores/as a buscarem um meio, – o veículo – para concretizar suas intenções, entenderem

e

dialogarem

com

as

materialidades

e

finalmente

reconfigurarem de outras formas. No campo da Arte, tais reconfigurações são denominadas de “obras” e não visam uma “utilidade” instrumental, mas “inauguram significações, modos perceptivos, maneiras e arranjos originais dos objetos” (Canclini, 1981, p.36), lançam interrogações, provocam outros olhares sobre o mundo. Fora do campo da arte, podemos dizer que são produções, na maioria das vezes, artefatos funcionais que foram criados para atender necessidades de todas as ordens, das ciências, ao pensamento intelectual e cotidiano, às tecnologias. Leonardo Da Vinci (1452 -1519) é um exemplo de um criador de obras e artefatos, no entanto, celebra-se mais a produção artística do que os inúmeros e avançados inventos criados por ele. Salienta-se que a divisão entre produções artísticas e todas as outras produções foi engendrada em determinado período histórico, no final da

Idade Média, início do Renascimento, por um determinado grupo social, com o intuito de estabelecer uma hierarquia e de atribuir um poder simbólico aos produtores (artistas), aos seus produtos (obras) e seus patrocinadores (igreja e realeza). A associação entre processos de criação, criatividade e arte é uma concepção histórica-cultural ultrapassada que deveria ser desconstruída nos contextos escolares. Segundo o pensador Domenico De Masi (2000), a criatividade seria a atividade intelectual mais valorizada em nosso século, nessa perspectiva, a instituição escolar deveria repensar todos os componentes curriculares enfatizando os processos de criação. Arte, criatividade e o novo Quando pensamos em arte, logo associamos à criatividade ao novo, como se fossem sinônimos. No entanto, tais conceitos nem sempre andaram lado a lado, eles foram sendo modificados conforme as concepções vigentes sobre arte e os contextos sócio-culturais. Tatarkiewics (2002) dedica uma grande discussão sobre como o conceito de criatividade na arte foi sendo transformado ao longo dos diferentes períodos, a partir desse autor, serão tecidas estas relações. Segundo o autor, na Grécia antiga, os artistas clássicos não criavam, mas imitavam as formas naturais e seguiam leis e normas da constituição das formas. A liberdade do artista estava restrita as proporções e aos cânones estabelecidos por Policleto (460 – 420 AC). As palavras criar, criador, criatividade não eram utilizada para a arte e sim a palavra fabricar e fazer. No período cristão, a palavra criação estava restrita à criação divina, apenas Deus tinha esta capacidade e a arte deveria imitar a natureza, o artista reproduzir os arquétipos da beleza. Na Idade Média o grande valor da arte era a destreza ao reproduzir a natureza. No Renascimento é utilizada a palavra inventar ao se referirem aos processos de elaboração das obras e pela primeira vez os artistas tem licença para criar um mundo novo e não mais uma cópia. Também é neste período que surge a figura do artista como

um ser individual que marca sua produção com seu nome. Mesmo que os artistas renascentistas seguissem padrões de composição, cores, luz e sombra, perspectiva, temáticas, eles se diferenciavam entre si no uso da linguagem visual, dos materiais e das narrativas, ou seja, havia uma busca de soluções diferenciada, criativa, onde cada artista tinha seus próprios marcadores estéticos. Somente no século XIX o termo criador e criatividade se incorporou a linguagem da arte e se converteu em propriedade exclusiva da arte e em sinônimo de artista. E no século XX “a palavra criador começou a aplicar-se a toda a cultura humana, começamos a falar na criatividade das ciências, da política e das tecnologias.” (TATARKIEWICZ, 2002 p. 286). As concepções de arte do Impressionismo, final século XIX e das Vanguardas Artísticas do início do século XX, rompem com as tradições do passado e inauguram a ideia do “novo”, concretizada em arranjos estéticos e composicionais singulares, na diversificação do uso dos materiais, na perspectiva, entre outras inovações. No entanto, mesmo com todas as rupturas com a herança do passado, a concepção de criação, criatividade e do novo ainda permanecia vinculada a concepção do passado, do artista como um criador diferenciado e suas produções como fruto de uma “inspiração” e não conseqüência de um trabalho árduo com as materialidades, estudos compositivos e colorísticos, embates, cópias, imitações, até finalmente chegarem a suas obras “novas”. Compreende-se que a história da Arte constrói uma história de “novidades”, como se os artistas sempre estivessem reapresentando de outros modos suas produções e assim, na maioria das vezes, vincula-se arte ao novo, aquilo nunca visto anteriormente na arte. No entanto, assim como os conceitos de arte e criatividade foram transformados, o conceito do novo, de originalidade, sofre um abalo quando Marcel Duchamp apresenta um objeto utilitário, um mictório, como uma obra de arte “A Fonte” (1917).

Assim, o “novo” de Duchamp é uma ressignificação dos objetos, um objeto comum é transformado em obra de arte. Além de transformar o ordinário em extraordinário, o novo não está mais centrado na obra em si, mas nos pensamentos que poderão desencadear nos espectadores. A “novidade” da Arte Contemporânea é colocar os sujeitos que antes eram expectadores passivos em sujeitos criativos, ativos, que participam e expandem seus pensamentos a partir das obras. Nadin Ospina, Cuenca, Lia Menna Barreto, Nelson Leiner, Enrique Chagoya, Gottfried Helnwein, Regina Silveira, Sandro Ka, Joana Vasconcelos, Léon Ferrari, entre tantos outros artistas, utilizaram em suas obras artefatos culturais, ícones da cultura popular1, imagens e composições canônicas da arte, cópias, acontecimentos políticos, sociais, culturais, conflitos bélicos, sociais, raciais, religiosos como mote para colocar as certezas de quem as vê em suspensão. Os artistas de hoje são generosos e democráticos no sentido que estendem aos diferentes públicos a possibilidade de serem criativos. Arte Contemporânea, criatividade e ensino de arte Atualmente, os desafios e impasses apresentados a nós professoras de arte são imensos, tendo em vista as rápidas transformações sócio-culturais que vivemos nas últimas décadas e às práticas culturais infantis e juvenis geradas nas mediações com as infinitas produções e artefatos culturais. Observa-se que aquilo que está instituído socialmente como Arte continua sendo algo muito distante para a maioria dos alunos/as e professoras, sendo que as produções televisivas, fílmicas, publicitárias, da web, entre outras produções culturais, participam ativamente da vida dos alunos/as, de seus imaginários, mobilizando-os, agrupando-os em tribos, criando práticas culturais, estilos e modos de ser. Desde muito cedo as crianças convivem

1

Na perspectiva dos Estudos Culturais, a cultura popular é constituída pelos artefatos produzidos em grande escala industrial e de fácil aceitação pelos consumidores, por isso popular, comum, que todos têm acesso, como: filmes, músicas, programas televisivos, revistas, roupas, objetos utilitários, produções midiáticas e de entretenimento

com imagens televisivas, virtuais e impressas, com o ato de colecioná-las, produzi-las, manipulá-las, editá-las e narrar suas vivências por meio delas. Hoje é comum o acesso ao mundo visual, porém cada vez mais nota-se uma diminuição na capacidade das crianças e jovens em ressignificar as imagens de modo singular, ou criativo. Entende-se que a Escola poderia ser um dos locais onde os processos criativos deveriam ser desencadeados de maneira crítica, lúdica e poética. No que se refere ao ensino de Arte, observa-se uma presença tênue da Arte Contemporânea bem como uma escassa discussão sobre os modos como os artistas pensam, criam e fazem a arte na atualidade. As temáticas e materiais da arte de nosso tempo são muito próximas das vivências de crianças e jovens, assim, postula-se que a Escola paute o trabalho em arte aliando os universos, conhecimentos, saberes dos estudantes ao pensamento da Arte Contemporânea, tendo em vista que muitas vezes a arte expõe, critica, ironiza, reforça práticas sócio-culturais vivenciadas pelos estudantes. Onde está o ponto de interseção entre as experiências dos estudantes e o ensino de arte? Será que as coleções de brinquedos nas instalações de Nelson Leiner, as vídeo-instalações de Diana Domingues, os céus de Sandra Cinto não possibilitariam links com os imaginários de nossos alunos/as? Para além disso, nota-se, nos contextos escolares, um pensamento sobre arte, logo de criatividade, fundado em concepções de outras épocas e não da arte dos últimos 100 anos. Entendemos e olhamos a Arte como se nosso olhar fosse anterior ao século XX. Para Cauquelin (2005, p.18) “(...) a arte do passado nos impede de captar a arte de nosso tempo.” Assim, muitas vezes, há uma nostalgia da arte do passado nos ambientes escolares, impedindo um olhar atento e compreensível para o que se produz hoje. No entanto, nossos/as alunos/as são crianças e jovens videns que consomem e

interagem com produtos e imagens que muitas vezes são a matéria prima da Arte Contemporânea. As provocações da arte contemporânea não poderiam sugerir pedagogias em artes sintonizada com as experiências das crianças e jovens? Os modos como os artistas contemporâneos pensam e elaboram seus trabalhos, seus processos, poderiam ser utilizados como referências para pensarmos o ensino de arte na contemporaneidade, tendo em vista os questionamentos que eles vêm fazendo sobre problemáticas que atravessam nosso cotidiano. Então é urgente refletirmos sobre o que é criatividade hoje no mundo da arte para assim elaboramos o trabalho pedagógico. Acredita-se que a função da Arte na educação é de provocar questionamentos e desencadear outra educação do olhar, uma educação que rompa com o estabelecido, com as normas e convenções sobre o próprio mundo. Uma educação em arte que faça com que as pessoas continuem buscando e dando sentido poético à vida. Referências: OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis: Vozes, 1987, 19ª. Edição CANCLINI, Nestor Garcia. Teoria e Prática na América Latina: A Socialização da Arte. São Paulo: Editora Cultrix,1981. DE MASI, Domenico. O Ócio Criativo: entrevista a Maria Serena Palieri. Tradução de Lea Manzi. Rio de Janeiro: Sextante, 2000. TATARKIEWICZ, Wladislaw. Historia de seis ideas. Arte, belleza, forma, creatividad, mimesis, experiencia estetica. Madrid: Editorial Tecnos, 2002. CAUQUELIN, Anna. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Ed. Martins, 1ª Edição, 2005.

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