ARTE DE RUA: MANIFESTAÇÕES E CONFLITOS NA CIDADE

June 6, 2017 | Autor: G. Pimentel | Categoria: Conflitos Urbanos, Arte de Rua, Movimentos Cultlurais
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ARTE DE RUA EXPRESSÃO E CONFLITO NA CIDADE

Há muitos anos que convivemos com escrituras pelas cidades. Em umas mais, outras menos e, em algumas delas, cada vez mais. São Paulo é uma dessas cidades que, a cada dia fornece mais e novos riscos, imagens, cores, escritos ilegíveis, outros identificáveis, de grande diversidade que causam surpresa ao passarmos por um simples trajeto cotidiano. Pensar sobre esse fenômeno provou-se inadiável, pois ele tornou-se assunto das conversas de bar, definindo decisões de curadores dos grandes museus, passando por galeristas, comerciantes e os próprios „artistas de rua‟. Este, com seus argumentos e percepções sobre as modificações constantes desses cenários, antes tidos e esperados como privados, assépticos e serenos, sob uma ótica que está longe de ser homogênea ou, muito menos, canônica. E ainda há muitos que rechaçam frontalmente toda essa “mutação” da paisagem, acompanhando tudo com pesar e certa angústia, por assistirem a uma cidade „dominada e desfigurada‟ por gangues de desocupados. O surpreendente é que esse debate ocorre enquanto essas mesmas imagens ganham valor de mercado, provocando manchetes de jornais e uma corrida de colecionadores que aguardam a capitalização de seus investimentos. Para o início deste estudo, um retorno às inscrições rupestres pareceu inevitável, lembrando as impactantes cavernas da França (Lascaux) e Espanha (Altamira) e, mais recentemente, o enorme e magnífico sítio da Serra da Capivara, no Piauí. Estas tomam o imaginário com marcas silenciosas deixadas como mensagens a outros tempos e povos. Acompanhar o percurso e expansão do grafite, da pré-história ao atual da cidade de S.Paulo é condição sinequa non para tentar buscar instrumentos teóricos que dêem conta desse fenômeno tão pouco estudado. Quando vamos a uma livraria buscar bibliografia, encontramos longas prateleiras com livros sobre o assunto, ricamente ilustrados, porém, sem a discussão sob re esse fazer, essa ação pública, esse fenômeno de mercado, artístico, político, sociológico entre outras facetas inerente ao assunto. Essa escassez torna o estudo uma busca quase solitária e incerta em dar conta dos tantos aspectos mencionados.

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Figura1: Caverna de Altamira – Espanha – Grafites rupestres

Na era contemporânea é importante especificar o recorte e instrumental aplicados, dada a necessidade de se identificar as diversas linguagens e grupos atuantes. Para isso, é fundamental levantar uma genealogia para além da mera história diacrônica. Na verdade, apesar de todos os estudos sobre grafite apresentarem um “histórico”, parece que certo hiato omite a grande transformação da sociedade que dá ensejo às linguagens de rua, alterando significados, focos, expectativas e ingerência na “res-publica” – a coisa pública. Devido a essa falta de articulação entre fenômenos e condições históricas, o presente estudo se propõe a tentar reconstituir algumas condições socioculturais que ensejaram tais guinadas formais e comportamentais. Outra ausência bastante perceptível em todas as publicações está relacionada ao aspecto iconográfico em si. Noventa por cento do material impresso contenta-se em registrar e elogiar as imagens, e outro tanto classifica o fenômeno de forma rígida, o que, pelo menos neste contexto histórico, está intimamente ligado a uma tradição que foi transgressiva no Pós- Guerra, o Estruturalismo. Adorar e classificar são atitudes que nos legaram um corpus colorido, porém restrito. Depois de pontuar a diferença desses tempos, que interferirão diretamente com a visualidade dessa escritura, será preciso especificar o “caso de São Paulo”, que vem se destacando no cenário mundial. Para tanto, cerquei-me de outras vozes e visões que servirão de apoio para pensar o fenômeno que recobre a face desta metrópole, buscando depoimentos obtidos entre transeuntes, artistas plásticos, curadores-diretores de museus, galeristas, além de claro, vários grafitistas (ou grafiteiros) e pichadores.

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2 - Ditadura militar – Foto s/ autoria – início anos ‟60

A grande cidade, fenômeno recente e onipresente na história da Cultura Ocidental, trouxe à tona, desde meados do século XIX, não apenas aglomeração e tensão permanente, mas um grande desdobrar de conflitos concernentes ao modelo capitalista pós-industrial, no qual grandes esforços e competitividade, romperam com a ideia de solidariedade que, até então, construía a ética primordial do convívio cidadão. Não apenas a cidade de São Paulo produziu (vem produzindo) escrituras constantes, inquietas e renovadas, mas o próprio fenômeno chamado cidade, em sua crise atual, reverbera inquietações longínquas – tanto geográfica como historicamente falando. O que me leva a tentar lê-las e compreendê-las. Para isso, apoio-me na análise de discurso de Bakhtin, com sua leitura rica, múltipla e polifônica; em Marshall Berman, e seu olhar sobre paisagens hierarquizadas e ideia de progresso relativa às cidades; em MassimoCanevacci que, estrangeiro, nos auxilia a ver em São Paulo os ângulos anestesiados que os viajantes percebem tão bem; em Foucault, no auxílio de uma leitura sobre tantos textos, sejam grafados, sejam projetados; em Felix Guatari, que observa com agudeza os potenciais dos rizomas ainda invisíveis sob as pulsões criativas e na Análise das Culturas Híbridas, de Canclini. Tendo iniciado os estudos pelos grafitistas mais evidentes na mídia, Osgêmeos, ficou clara a especificidade e variedade do material local. O que ampliou o interesse pelo fenômeno em geral, inclui a obra da dupla de irmãos, por

sua originalidade e talento evidentes. Mas

originalidade e talento nos artistas de rua não são exclusivamente deles, já que suas características mais marcantes, como narrativas míticas de raízes medievais, combinadas às histórias de cordel, somam outras referências culturais decorrentes de correntes migratórias poderosas

que alteraram as características da cidade dos anos sessenta até hoje. Tais

características provaram-se recorrentes nos grafites paulistanos, com características próprias, 3

mas trazendo à pele dos caminhos, as referências rurais, às vezes orientais, quase sempre míticas, insistentemente ingênuas. Em sua maioria, com humor crítico, dispostas numa explosão de cores que passaram a agradar a população circundante, muito por não terem de lidar com agressões de nenhuma espécie. Com certa suavidade, os murais ou bombs (explosões de nomes ou figuras indecifráveis e submersas em muitas cores e traços) trouxeram certos questionamentos, sensibilidades místicas e também diversificaram diálogos que ora são humorísticos, ora críticos, como também as técnicas, abordagens e nichos estéticos, éticos, tribais.... numa variedade que confirma o comentário do grafiteiro de Berkeley na Califórnia sobre a riqueza e especificidade do grafite desenvolvido em São Paulo. Concluindo, a ampliação da abordagem do objeto (d‟Osgemeos para todo o fenômeno grafite da cidade de São Paulo), deu-se pela percepção, logo no início das pesquisas, de que a especificidade da dupla de irmãos se reproduzia por uma riqueza (ou dolorosa carência) produzida pela própria cidade, em seu fluxo asfixiante e indiferente aos habitantes que a compõem. O espelhamento dos diálogos murais deu-se numa conjuntura que lhe era própria – para o bem e para o mal. Como um efeito colateral da crise da Cidade (tanto maior quanto pior sob certos aspectos) fez surgir um rebento confuso e voraz, entre odiado e admirado, que diferindo frontalmente do Grafite, confunde-se com ele constantemente: a Pichação, tida por uns como sua prima pobre, e é considerada, por outros, seu lado épico. Para abordar todas estas considerações, “achismos‟ e ponderações técnicas e teóricas, servi-me de alguns textos e de várias entrevistas. Tais entrevistas trouxeram versões e visões variadas sobre esse mesmo debate: as inscrições sobre os caminhos da cidade.

3 - Osgemeos in Viaduto na Zona Leste – SP – nos anos 1990

As entrevistas cobriram inúmeros transeuntes desavisados em várias avenidas e ruas de Pinheiros, bem como passantes da Rua Mourato Coelho entre Pinheiros e Vila Madalena, que possui metros e metros de paredes e muros recobertos, além da Fradique Coutinho e Teodoro 4

Sampaio. Também habitués de determinados lugares no centro, como da Praça Roosevelt, Viaduto Jaceguai, 24 de Maio na República, e também alguns convidados diretamente envolvidos com a cena dos grafitistas e muralistas como Paulo Ito, Boleta, Binho, Nick e Crânio. Ainda concederam entrevistas quatro dos mais conhecidos diretores de museus e curadores da cidade como Tadeu Chiarelli, Agnaldo Farias, Felipe Chaimovich e Ivo Mesquita. Para este estudo, foi ouvido ainda o artista plástico Carlos Fajardo, hoje conhecido mais como escultor e professor, mas que veio de um longo percurso onde pintura e outras técnicas foram exploradas, e cujas colocações fortes e apaixonadas produziram uma das mais interessantes entrevistas para coleta de percepções e conhecimentos sobre o assunto. E, por fim, os galeristas da Choque Cultural, a primeira e mais famosa galeria ligada às Artes de Rua, deram testemunho e trouxeram dados relevantes. Outros galeristas, também ligados às Artes de Rua, declinaram de prestar depoimentos sobre o assunto. Para além das contradições e atritos, a absorção da linguagem pública pelo mercado, que em sua ânsia por novidades acaba por justificar ideologicamente a aceitação do que outrora era desprezado, vem alçando alguns dos felizardos escritores aos píncaros do cânone mundial, ao lado de expositores e criadores conceituais aos quais o mercado já havia se acostumado nas últimas três décadas. Ao lado de um viés pueril de certas linguagens, o grafite sente-se confortável para discutir mangás japoneses, mágicos de Oz e outras referências pop, junto a mundos míticos e místicos, somando outras iconografias, dentre inofensivas até as enjoadamente adocicadas, demonstrando, às vezes, franco talento que se mistura a grupos variados, forçando o olhar a se fazer minerador e se surpreender com algumas jóias, que estamos todos aprendendo a descobrir.

4 - Highraff ,FSE, Nina, Boleta e Vitché

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Como se vê, para um percurso consequente, a pesquisa, além de acompanhar expressões reconhecidas na história das inscrições públicas, necessita compreender sobre o que estamos falando, discorrendo sobre as novas técnicas, suportes e novidades que as linguagens impõem ou surgem, dependendo de algumas inquietações recentes. De movimentos clássicos geracionais ao hip hop internacional, muitas correntes éticas e estéticas foram responsáveis pela formação de um cenário plástico irregular, mas notoriamente vibrante. Forçoso apontar a base sobre a qual todas essas linguagens surgem e discutem, a cidade em si, onde as formas de crises expressam e conformam discursos agônicos sobre um movimento que vem assolando a polis moderna desde quando Baudelaire se defrontou com o impacto fáustico das megalópoles autofágicas. Na atualidade, certas características agudizadas deram ensejo e ferramentas às escrituras públicas que nos rodeiam. E, no ponto extremo, antagonista do Grafite, estão as Pichações ou Pixações1, que não podem ser ignoradas. Por fim, há a questão do mercado, novos status para novas linguagens, debates e ataques. Além das figuras e imagens, na área das letras, tags, bombs, assinaturas, símbolos, nomes, palavrões e até poemas, ainda recobrem grandes áreas da cidade. E nesse grande cenário que é a cidade em si, aberta e exposta às interferências e inscrições, sejam raivosas, espirituosas ou sonhadoras, um alerta utópico é a grande constante no tocante ao grafite ou pichação ou poetização de suas paredes e muros, conforme encontramos entre os entrevistados, transeuntes ou artistas de rua, ingenuamente ou não: a visão nítida de que a grande capital de São Paulo precisa incluir seus cidadãos de forma mais pessoal. Ponto em que turistas e observadores internacionais, concordam, quando percebem a novidade de cobertura que ganha a arquitetura básica do território, numa característica gritante em relação a outras cidades mundiais, não apenas pela quantidade, mas pela diversidade dos testemunhos. Um documentário sobre o grafite brasileiro foi feito pelo, autodenominado „globetrotter grafitista JulienMalland‟, na série Global Painter: Tropical Spray, de 2011. Com produção francesa, em 60 minutos, são apresentados alguns dos grafiteiros de S.Paulo (Osgêmeos, Zezão) e também do Recife e do Rio. Na capital paulista, a presença massiva das inscrições é, de fato, impressionante, e esta é a tônica do trabalho que apresenta o grafite brasileiro ao mundo, dada a distribuição do material fílmico, via TVs a cabo. E, por mais esse trabalho, sabemos que não se trata de uma percepção ilusória, mas de uma constatação que nos força a um posicionamento,

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Embora o termo correto seja Pichação, a palavra Pixação tem sido usada pelos próprios agentes desta prática transgressiva como marca de sua atitude fora da norma.

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mesmo que não seja no sentido de dar “respostas” ou “conceitos finais”, muito menos de conferir “valores” em assunto que ainda se desdobra frente a nossos olhos. Sob as inesperadas Letras, novas Formas, novas Cores, o Feio e o Sujo, o olhar pula, questiona, percebe e indaga. Podemos, com isso, afirmar, que não só os Grafiteiros e Pichadores ocupam a cidade, mas todos nós, testemunhas de um circular que se presentifica com tal pulsão que arrasta nossa atenção e nos coloca, ligados por afinidade ou rejeição, na mesma onda mental de se pensar e repensar nosso espaço público: usos, colaborações, ocupações, invasões visuais, captura de atenções, apropriações e transformações dos fluxos cotidianos dos cidadãos.

5 - Carlos Matuck – anos ‟80

6 – Alex Vlauri – 1983 – Rainha do Frango Frito

Das escrituras míticas e utópicas que expusemos desde o primeiro capítulo, passando por cavernas, lápides, testamentos, estelas solenes, até os xingamentos encontrados na cidade de Pompeia, observamos a irresistível necessidade de diálogo entre os seus iguais ou grupos, independentemente do tempo histórico, com um persistente desejo de dar testemunho ao futuro. Observamos que o olhar saudosista sobre o solo sagrado, firmado com a finalidade de se auto proteger, bem como a seus contemporâneos e seus antepassados, tornou-se um território, um espaço construído sobre o rito, num amálgama mítico. Argan, Campbell e mesmo Walter Benjamin apontam a degradação da grande arte urbana – construção desvirtuada para dar vazão ao fluxo de mercadoria que, das riquezas e surpresas de pequenas visões em ruelas, esquinas e becos, deram passagem à velocidade rasgada de vias padronizadas, muradas e fortemente resguardadas – impondo ameaça e distância ao que está fora – sejam veículos, árvores ou crianças. A secura do cimento moldou e entristeceu antigos povoados, restando os ruídos, os riscos e as regras.

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Apesar das restrições disciplinares, as vanguardas, ainda que “paramilitares” em seus manifestos raivosos e excludentes, produziram rompimentos relevantes, não apenas para as Artes Plásticas, mas, principalmente, produziram escândalos que migraram da estética para a ética, apresentando opções de olhar que alterariam comportamentos e leituras sobre o cotidiano. Mesmo sendo evidente que essas quebras de paradigmas sejam dialéticas, a manifestação política achou espaço junto à ousadia artística e vice-versa. E, se a arte rompe limites, também demonstra a morte de antigos sonhos, em tristes utopias. A passagem de um Dubuffet dos anos 40 aos 70, trilha um caminho muito próximo e indicativo do que as ruas estavam espreitando. Suas telas prolixas, caóticas e heterodoxas (figuras 6 e 7), apontavam para uma cumplicidade com os grafites que recém surgiam, dentro de um movimento hip hop incipiente. Esse debate entre o cânone e as ruas não é inocente ou desavisado. Prova que todos, que cada segmento social está, a seu modo, tempo e possibilidade, ligado aos desafios que o meio coloca à grande cidade monstruosa, com sua inevitável pulsão por expressão e pertencimento.

7 - L‟Hourloupe – 1963

8 - La Vie de Famille – 1963

As escrituras públicas tornam-se acintosamente politizadas, com a tomada do poder nacional pelas forças militares no Golpe de „64. Com a repressão virando slogan de governança, a resistência se organiza insidiosa e permanentemente. É quando o país passa a ter intimidade com os muros, buscando na transgressão, no deboche e na delação, a cumplicidade de uma clandestinidade que se aliou contra a tirania fardada – às vezes de forma armada, às vezes de forma “desbundada”, como foi designada a esquerda contracultural do pós „68 até início dos aos „70. Das palavras de ordem às figuras irreverentes de Matuck e Vallauri (figuras 5 e 6), as marcas sobre a face da cidade, assumem também a palavra poética, bem como a de humor e a „de ordem‟, surgindo com força uma conversa que toma a cidade entre assombros, sustos e risadas. 8

Por seus meandros sinuosos, frases surgindo, cercadas de pequenos símbolos e desenhos, como aquelas palmas de mãos pelas cavernas de Altamira. Esse novo fluxo, apesar da força dos grafites e pichações, jamais abandonou as ruas, jogando pequenas ideias de um cotidiano difuso, mas nem sempre desperdiçado. Nas figuras abaixo, doses anônimas de escrituras urbanas coladas por seus caminhos.

Figura 9 - O impacto da Pichação

Figuras 10- Colagens na Av. Paulista - fotografia da autora

Na imagem acima, um lambe-lambe amarelo foi fotografado numa esquina da Rua Fradique Coutinho, em Pinheiros. Um segundo cartaz, colado sobre uma outra intervenção pintada, também sobre papel colado, foi fotografado na Av. Paulista, num tapume que encobria as obras de reforma do Sesc Paulista. Ambos já não estão mais lá. Mas o grafite não se restringe a cor e poesia. É também grito, gana, competição e desprezo, e nesse caso, vira a famigerada pichação, ou pixação, como preferem seus autores. Atordoante e assustador, a força de destruição, de acusação sobre as ruínas identificadas da cidade, delata as feridas que a indústria imobiliária, em conluio com o poder constituído, tentam deixar passar desapercebido, em seus jogos de abandono para valorização posterior, seus jogos de desvalorização para futuros repasses de propriedade - jogos sujos de poder econômico, jogos sujos sobre segmentos de sem-teto, rincões apodrecidos a céu aberto, indiferença e miséria. A pichação surge como gesto heroico, porém inútil, de uma geração destituída de participação efetiva sobre os rumos da cidade, mas que delata em suas andanças e subidas, os focos hediondos da jogatina oficial. Linguagem admirada por artistas e sociólogos de todo o mundo, são temidos e execrados no próprio lar, onde tentam deixar sua marca de beleza e vitalidade,

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sobre os escombros de uma cidade que os hostiliza. Novas famílias de letras são o que alegam fazer, quando marcam seus trajetos num grande manifesto criptografado. Sob todos esses cruzamentos de interesses e linguagens, o hip hop é simples coadjuvante. Às vezes lembrado como origem, às vezes refutado integralmente, mas no mais das vezes, ignorado. A pujança das manifestações se deu e se dá, exatamente, por sua influência ter ficado no passado, provocando um movimento para as ruas nos anos „80, quando toda uma geração se via abandonada na degradação de espaços urbanos, assolapados sob a incompetência de governos para conter uma inflação monstruosa, que comia perspectivas dos cidadãos mais jovens aos mais velhos, destruindo administrações públicas, equipamentos urbanos, principalmente os de lazer, deixando as cidades sem parques, sem árvores, sem quadras, sem bibliotecas, sem outra forma de lazer que não fosse o movimento falsamente transgressivo do hip hop importado. Nesse período, surgem Osgemeos, maiores expoentes desse movimento que, como os demais, aproveitaram o movimento hip hop para dar vazão a seus próprios talentos. Donos de uma invejável visão de „mundos paralelos‟ surgidos de longínquos brasis jamais habitados, misturam mundos míticos medievais com os sertões de graves e mudas inocências, de onde retiram penetráveis, quadros que se derramam e performances públicas de grande impacto urbano, como foi a „invasão‟ do Anhangabaú por um de seus personagens mais constantes, o Homem Amarelo, com colossais proporções que, caminhando por entre a multidão, alterou o centro da cidade, com inebriante mundo mágico 2. O marcante nesta trajetória foi a saída desses jovens de origem proletária, nascidos e criados num dos bairros periféricos da capital, o Cambuci. Eles misturaram seus talentos a essas referências históricas, amalgamando grande poesia com uma dose de pieguismo, somados a um inegável talento. E, do Cambuci, os jovens, na faixa dos trinta e cinco anos, distribuem obras por toda Europa e EUA, sem deixar de seguir marcando as ruas de São Paulo, tanto com seus bonecos amarelos, como com suas assinaturas coloridas, as tais tags. Da origem contemporânea da ousadia infantil empobrecida no velho Brooklin novaiorquino, na década de setenta do século passado, Osgemeos, reconhecidos pelo mais fechado circuito mercadológico internacional da atualidade, a linguagem grafite demarca um fazer que não garante qualidade, nem modus vivendi, nem se atrela aos elementos de um movimento hip hop. Este agoniza entre a periferia e o mercado de luxo, sustentando contradições que não são 2

O grande boneco chamado O estrangeiro foi exposto em 2009 e atraiu milhares de pessoas. Para uma ideia do evento, acessar alguns dos endereços do youtube: http://www.youtube.com/watch?v=WFXl6ziY7lo, http://www.youtube.com/watch?v=0UgQHGVh1dA, http://www.youtube.com/watch?v=KFeCZ9HapfE

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generalizadas, uma vez que, no Brasil, o rap se mantém crítico, ao contrário do acontece em outros países (EUA, França etc), mais identificado com o funk brasileiro, que se atrelam ao jogo de poder da indústria fonográfica, na busca do luxo, da auto-promoção e da construção de uma hierarquia falaciosa, na qual a fama traz facilidades reservadas às celebridades – ícones construídos pela indústria cultural de massa. Caído no gosto do paulistano, circundado por um cinza persistente e monótono, o grafite (entre outras linguagens das Artes de Rua) se faz presente e, cada vez mais constante, ocupando espaços públicos onde os artistas reconhecidos institucionalmente, confortados pelo mercado tradicional, não tiveram a presteza, o interesse, ou a cumplicidade de ocupar. Mesmo com dezenas de monumentos e esculturas pelo circuito mais valorizado da cidade, a periferia é deixada na frieza e feiura que a caracteriza, como apontou Rudolph Giuliani numa Nova York saqueada e com baixos serviços públicos nos anos noventa. Mas a cidade não se faz com belezas distribuídas esparsamente, nem se satisfaz com monumentos suntuosos, altos e distantes que apontam e reafirmam um poder distante e indiferente. A cidade espera a diversão, a diversidade e a surpresa que muito poucos ousam produzir. Este é o caso de Eduardo Srur, com suas intervenções urbanas tão raras ou as superproduções do Arte-cidade distantes do envolvimento da mesma periferia que, identifica nas formas pueris e repetitivas do mundo-grafite uma marca que os projeta ao centro do fluxo produtivo, interligando linguagens e mensagens decodificadas.

Figura 11 - Mural coletivo com o tema floresta - Praça Kobayashi

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Embora o gosto médio de compradores e cidadãos assista com conforto aos desenhos que buscam agradar, a arte contemporânea ruma em outra direção, fugindo do que possa ser belo, previsível, confortável e inteligível. De certa forma, a arte contemporânea tem mais identificação com a pichação do que com o grafite, embora possa parecer o contrário. Nenhum dos dois busca a aprovação pública, nenhum dos dois busca “salvar‟ a cidade de sua sujidade ou decadência, ao contrário, aproveitam-se de suas ruínas para deixar uma marca que sabe ser fugaz ou, talvez duradoura... mas de todo modo, inútil. A grande diferença é que a Arte Contemporânea espera ter o reconhecimento do mercado, o que significa movimentar grande soma de dinheiro, enquanto a Pichação continua a fugir da polícia. Supostamente, a Arte discutiria questões que surgem, velada ou acintosamente, na vida atual, mas tais questões mantêm-se veladas a um público que só há pouco frequenta museus, convivendo entre excentricidades e agudas percepções. De um Basquiat que, com traços toscos, desmascarou uma paisagem crivada de interferências, como uma tradução alucinada de recentes não-interconexões, saltou da angústia pueril por reconhecimento, para a pulsão da solidão gritada. Quando encontramos outro colosso da Arte de Rua, como Banksy, percebemos que sua confiança e cinismo encontra eco num mundo sobrecarregado de informações que descortina suas críticas com humor blasè. Em nossa cidade, muitos nomes já se projetam fora desse cenário efêmero das ruas, e, nem por isso, deixam de ganhar importância seja para transeuntes, seja para colecionadores, passando por sociólogos, críticos de arte, e urbanistas. O certo é que, nessa enxurrada de ideias, talentos, belezas, ataques e posicionamentos, a cidade se exalta em focos, em linhas de fuga, em possibilidades, mas, acima de tudo, em um debate que não se esgota, escapando do binômio estelar: sexo e futebol. Discutir os caminhos da cidade, sua ocupação, formas e direitos, colabora com a formação, não apenas do espírito, mas de uma lucidez que obriga tanto a participação, a colocação de opiniões, como no olhar atento de todos nós.

Gláucia de Castro Pimentel [email protected]

Este artigo é parte do trabalho produzido para meu Pós-Doutorado pela ECA/USP.

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