Arte (e acontecimento) nos anos 60 e 70: pública e comum

May 24, 2017 | Autor: Sheila Geraldo | Categoria: Arte Contemporanea, Arte Pública
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Arte (e acontecimento) nos anos 60 e 70: pública e comum





Sheila Cabo Geraldo



As ações aqui abordadas são as que envolveram lugares e habitantes das
cidades do Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Pamplona, Barcelona e Rosário
nos eventos e projetos de Apocalipopótese, Do corpo à terra, Encontros de
Pamplona, Grup de Treball e Tucumán Arde.

Apocalipopótese, como escreveu Wally Salomão, quando da morte de Torquato
Neto,[1]



foi o nome inventado pelo designer-esotérico Rogério Duarte para o
espírito daquela época. A sôfrega ânsia por um juízo final que
suspendesse o curso das coisas banais dos dias e o anúncio contínuo de
que todo dia é dia D, um carpe diem negativo...
Suspender o curso das coisas banais se refere aqui também, e sobretudo, a
suspender os modos e usos dos espaços de arte, como espaços "dentro-
determinados", segundo Hélio Oiticica no texto de 1969 em que avalia sua
experiência Whitechapel.[2]

Apocalipopótese, que acontecera em julho de 1968, ainda nas palavras de
Hélio,[3] teve origem nos ovos, de Lygia Pape, assim como em sua bólide-
cama. Hélio diz:



Rogério Duarte formulou tudo, numa conversa comigo, em minha casa, em
maio de 68: a ideia de probjeto, que engloba tudo (...) os ovos de
Lygia Pape seriam o exemplo clássico de algo puramente experimental,
por isso diretamente eficaz: estar, furar, sair o contínuo "reviver" e
"refazer" (...) Tudo explodido naquela tarde – John Cage estava lá,
trazido por Esther Stockler (...) as pessoas participavam diretamente,
obliquamente, sei lá mais como – mas o importante é o sei lá mais
como, o indefinido que se exprime pela inteligência clara de Lygia
Pape ou pela turbulência de Antônio Manuel, ou pela perplexo-
participação das pessoas ou...[4]



Embora efetivamente tivesse acontecido no Pavilhão Japonês, no meio dos
jardins de Burle Marx, em torno do Museu de Arte Moderna,[5] mais do que
pensar critica e diretamente o museu, como fará mais tarde toda uma leva de
artistas que denominarão esse processo crítica institucional,[6] o que ali
ocorreu como parte da ânsia de suspender o curso das coisas banais foi
também a suspensão do curso do banal da arte em si, o que, de acordo com
Hélio, determinou a experiência realizada um ano mais tarde na galeria
Whitechapel, um acontecimento importante não só na trajetória de Hélio como
artista, mas também na da própria instituição londrina, segundo Guy
Brett,[7] que nos anos 80 fez uma avaliação da experiência.

No texto A obra, seu caráter objetal, o comportamento, publicado no número
18 da revista GAM, de 1969, Hélio escreve: "A insuficiência das estruturas
de museus e galerias de arte, por mais avançados que sejam, é hoje em dia
flagrante e traem, em muitos casos, o sentido profundo, a intenção
renovadora do artista".[8] Continuando, depois de fazer um paralelo entre
suas proposições em Londres e as propostas de Mondrian e Schwitters no
sentido de aproximar a arte da vida, diz ainda:

Há, então (...) a passagem desta posição de querer criar em um mundo
estético, mundo-arte, superposição de uma estrutura sobre o cotidiano
para descobrir os elementos do cotidiano, do comportamento humano, e
transformá-lo por suas próprias leis, por proposições abertas, não
condicionadas, único meio possível como ponto de partida para isso.[9]

E prossegue: "E os museus? E a arte das galerias? Prefiro a das galeras,
que eram lindas e percorriam os sete mares, de sul a norte..."[10]

Especificamente escrevendo sobre o evento Apocalipopótese, e fazendo uma
avaliação da transformação provocada não só no circuito de arte do Brasil,
como no próprio sentido de trabalho, enquanto obra, que deixaria de ser
fruto de uma vontade individual a serviço das instituições, escreve em
outubro de 1969, quando estava na Universidade de Sussex, em Brighton:



A manifestação Apocalipopótese marca a etapa definitiva, nova,
nas sequências vanguardescas brasileiras; para mim foi um marco
pois nela novas possibilidades de manifestações coletivas, da
relação "obra individual-improvisação coletiva", surgem e
propõem coisas radicais: a definitiva inconsistência da "obra de
arte", do objeto, etc.; superação do conteúdo de exposições,
"happenings", etc. A necessidade de uma reforma geral dos grupos
culturais que "dirigem" as promoções de "arte" ou de qualquer
coisa ligada às experiências criativas.[11]



Embora Apocalipopótese, cujas "...estruturas tornavam-se gerais, dadas,
abertas ao comportamento coletivo-casual-momentâneo", tenha gerado, um ano
mais tarde, a experiência de Londres, nesta última, como o artista
descreve, havia ainda "uma autoabsorção no útero do espaço construído"
(institucional), que o leva ao Suprassensorial. Mais do que expor em uma
galeria londrina, Hélio estava abrindo ali, a partir da proposição do Éden,
esse espaço de abrigo e absorção um espaço que já estava nas camas-
bólides e que mais tarde chamaria de Crelazer[12] em que a participação é
do nível em que o "participador irá elaborar dentro de si mesmo suas
próprias sensações, as quais foram despertadas por sensações".[13]

Paula Braga, analisando o texto The Senses Pointing Towards a New
Transformation, que Oiticica enviou depois da experiência na galeria de
Londres, no final de 1969, para a revista Studio International, identifica
com clareza a reflexão de Hélio sobre a dificuldade de continuar suas
experiências Crelazer em espaços de museus e galerias. Referindo-se à
Whitechapel escreve:



Para mim, aquilo foi mais um experimento do que uma exposição (eu
propus coisas ao invés de expô-las). Mas toda a evolução que
apresentei lá leva a essa condição: a impossibilidade de experimentos
em galerias ou museus – os ao ar-livre ainda poderiam valer,
dependendo de suas relações e razões.[14]



Assim é que se poderia entender que Apocalipopótese tem, efetivamente, esse
caráter de reviravolta não só na produção de HO, que a partir daí aponta
para a condição aberta da experiência Suprassensorial, como escreveu, mas
também para o que Acconci percebera como ativação de um espaço público nos
Ninhos, que Oiticica apresentara na exposição Information, no Moma de Nova
York, em 1970. Ainda segundo Acconci,[15] os Ninhos seriam uma maneira
antecipadora na trajetória histórica das condições de arte na segunda
metade do século XX, uma composição de lugares para estar, uma junção em
que os espaços de experiência individual ganham conotação pública já que
formam um composto, formam as "células comunitárias", diferenciando-se de
um espaço para experiências performáticas de grupo.

A proposição, organização e participação no evento Apocalipopótese, então,
não seria senão uma confirmação da vontade ou da aspiração a um sentido
público, ou melhor, a configuração de um novo sentido para a arte que
inclui sua condição pública. Seria, como no título do livro póstumo[16]
elaborado por Luciano de Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão, aspiração a
certo espaço na e da arte, que se dá enquanto "grande labirinto", o que nos
faz entender Apocalipopótese não como elemento de uma cartografia dos
espaços urbanos, mas como uma proposta de grande diagrama labiríntico,
coletivo e público para a arte.

Nos anos seguintes, vários acontecimentos têm a condição pública enquanto
deflagradora de ações, como o trabalho DEFL....SITUAÇÃO...+S+....RUAS,[17]
de Artur Barrio, assim como Inserções em circuitos ideológicos. Projeto
cédula (Quem Matou Herzog?),[18] de Cildo Meireles, e Clandestinas, de
Antonio Manuel. Essas proposições são, certamente, dobras desse diagrama
labiríntico em que o sentido da arte se dá quando a experiência individual
ganha conotação pública.[19]

Assim também serão muitos dos trabalhos apresentados no evento Do corpo à
terra, em Belo Horizonte, organizado por Frederico Morais, em 1970.[20] Sua
concepção estava associada ao Palácio das Artes, que fica dentro do Parque
Municipal, no coração da cidade. Estrategicamente foram programadas duas
exposições:[21] Objeto e Participação, dentro do espaço expositivo, e outra
externa, concebida de performances e intervenções. O evento coincidia com a
data de comemoração de Tiradentes, ídolo mineiro independentista, e durou
três dias. Frederico diz que os artistas, em plena ditadura militar,
tiveram garantida toda liberdade de criação, o que permitiu a intervenção
Tiradentes: Totem-monumento ao preso político, em que Cildo Meireles
queimou galinhas vivas amarradas a um poste em pleno Parque. Participaram,
ainda, Thereza Simões, que preparara carimbos com textos de Luther King e
outros de caráter político, como FRAGILE, que, como relatou,[22]
demonstrava a fragilidade dos sistemas sociais da época; Umberto Costa
Barros, que montou estruturas com o material encontrado no Palácio das
Artes, ainda em construção; Eduardo Ângelo, que rasgou jornais e jogou os
pedaços ao vento; Luciano Gusmão, que fez um mapeamento do Parque,
dividindo-o em áreas livres e de repressão. Duas outras intervenções também
polêmicas foram as que fizeram Luiz Alphonsus, que queimou uma faixa de
pano de 30 metros e chamou de Napalm, e Barrio, que, em Situação T/T. I,
durante a noite, depositou inúmeras trouxas de carne e ossos de boi no
riacho que corta o Parque, criando, pela manhã, um clima de excitação e
terror que dali se espalhou pela cidade através da mídia.



Do corpo à terra acaba sendo, assim, uma forma de revelar em arte os
sintomas da cidade que o acolhe, pois aciona e coloca em evidência, pelas
repercussões, a própria trama de aprisionamentos que os cidadãos começam a
vivenciar depois de 1968. Algumas experiências, como a de Barrio, que
mobilizou os serviços da polícia e do corpo de bombeiros, despertaram na
população recordações de um grupo de extermínio, que agia dentro da própria
polícia, mas também o trauma dos desaparecimentos de ativistas políticos.

No início dos anos 70, que no Brasil são os mais truculentos, também
chamados de "anos da última vanguarda", os artistas que aqui permaneceram,
que não se exilaram, desenvolveram diversas intervenções nos perímetros
urbanos, requerendo-os enquanto lugares públicos de expressão livre,
coincidindo com um desejo internacional de problematização conceitual dos
espaços institucionais (Buren, Broodthaers, Fraser, etc.). Na Espanha, que
vivia desde o final da Guerra Civil sob a ditadura sanguinolenta de Franco,
responsável, entre muitos outros, pelo assassinato do poeta Garcia Lorca,
identificam-se nesse período dois importantes acontecimentos. O de maior
ressonância foi, sem dúvida, o Encontros de Artes, de 1972, conhecido como
Encontros de Pamplona, e que representou, no contexto repressivo franquista
espanhol marca explosiva de liberação, "uma expressão da cultura não
oficial, um ataque contra a hierarquia de valores, uma reivindicação do
corpo",[23] de acordo com José Cuyás e Carmen Pardo.

Na cena artística espanhola, o circuito institucional teve dificuldades
para absorver o que se apresentou em Pamplona. Organizado pelos artistas
Luis de Pablo e José Luis Alexanco, começa com a instalação das 11 cúpulas
infladas unidas por túneis cilíndricos, que tinham 12m de altura e 25m de
diâmetro cada. O projeto de José Miguel Prada Poole foi montado em uma
praça da cidade e teve como função abrigar as diversas instalações, além de
projeção de vídeos e alguns colóquios, que constavam da programação.[24]
Dos Encontros faziam parte, ainda, as mostras: Arte Basca Atual; Geração
Automática de Formas Plásticas e Sonoras; Alguns Aportes da Crítica à Arte
nos Últimos Anos, além de diversas apresentações de música e cinema. John
Cage, que também estivera em Apocalipopótese, foi o convidado da abertura,
e durante os dias dos Encontros aconteceram várias intervenções no espaço
da cidade, fora das cúpulas, tanto performáticas quanto de instalações site-
specific. Como ações performáticas, as que mais de perto pensaram o sentido
da arte no espaço público foram Denotación de una ciudad, do artista
argentino Carlos Ginzburg, integrante do Grupo de los Trece (1971),
patrocinado pelo Cayc, de Buenos Aires, e Corredores, de Robert Llimós, que
efetivamente derivam no perímetro urbano acionando o que Oiticica chamou de
"comportamento coletivo-casual-momentâneo".[25] Diversa, mas equivalente,
havia ainda, a experiência ativada pelos trabalhos do próprio Hélio, que
nesse momento morava em Nova York e enviou alguns Parangolés pelo artista
argentino Leandro Katz que também morava em NY e que foram vestidos
pelo público.[26]

No que diz respeito às instalações em espaços públicos, destacaram-se as
Estruturas Tubulares, de Isidoro Valcárcel Medina, assim como as de Luis
Lugán, com telefones espalhados pela cidade, que o artista intitulou
Comunicação Humana.[27]

No início dos anos 70 também aconteceu na Catalunha a Mostra de Arte de
Grenollers[28] (1971-1972), que simultaneamente ao lançamento do livro Da
arte objetual à arte do conceito, de Simón Marchán Fiz, reforça não só a
criação conceitual-experimental, como o debate sobre a relação entre arte e
sociedade. Ainda na Catalunha surge, entre o final de 1972 e o princípio de
1973, o Grup de Treball (Grupo de Trabalho), que era formado por, entre
outros, Francesc Abad, Jordi Benito, Antonio Muntadas, Antoni Mercader e
Àngels Ribé. O coletivo formou-se como grupo de criação, opinião e ação,
tendo-se rebelado contra o sistema artístico estabelecido e reivindicado
uma função social para a arte. Segundo Antoni Mercader,[29] alguns dos
ideais do grupo poderiam ser traduzidos em: "a arte para a rua", a "arte
para todos". Nesse caso, a "arte para a rua" tinha como tática o impacto da
ação midiática, que coincidia com as discussões conceituais, o que fez com
que toda e qualquer aproximação de certo realismo social, referência
histórica da relação entre arte e sociedade, fosse descartada. Em suas
ações havia uma dosagem inteligente de autorreflexão e comunicação, o que
tanto os distanciava da arte panfletária quanto os aproximava de uma nova
equação, que coordenava a arte conceitual, as mídias e a transformação
social.

Suas primeiras manifestações foram: a veiculação do Cartaz para a
solidariedade com o Movimento de Trabalhadores, de abril 1973, e
Anunciamos, de junho e julho de 1973. Nesse período, o Grupo concentra-se
no uso do discurso e da informação. Em uma segunda etapa, mais centrada no
debate cultural, coloca em prática o Serviço de Resposta à Imprensa, cuja
tática era enviar artigos a jornais e revistas avaliando mostras de arte,
assim como as políticas de ocupação dos espaços públicos. Paralelamente, o
Grupo mantinha cursos para a discussão da relação entre a arte e o contexto
social, prática que acabou gerando a redação de comunicados em conjunto com
outros setores culturais e que foram apresentados em eventos da Catalunha
(Novas tendências na arte, de maio de 1974), mas também de Madri (Novos
Comportamentos artísticos, de março de 1974). Em 1975, apresenta na Bienal
de Paris o trabalho Campo de Atração: Documento, divulgando a imprensa
clandestina da Catalunha, considerada ilegal.

As ações do Grup de Treball, que encerra suas atividades em 1975, tiveram
grande impacto nos debates sobre arte na cidade de Barcelona, espalhando-se
para vários centros produtores de arte na Espanha e na Europa, mas foram
menos violentas, se comparadas ao que fez o Grupo de Artistas de Vanguarda,
de Rosário, no final dos anos 60. Ligados até então ao Instituto Di Tella,
postulam uma "nova estética", que implicava a dissolução das fronteiras
entre ação artística e ação política. Para esse grupo, a violência, que
nesse momento já era aterradora na Argentina, se transformava em material
de arte. Apropriando-se de procedimentos próprios das organizações de
esquerda, que estavam, então, radicalizadas em ações extremadas, o grupo
promove verdadeiras ações táticas de guerrilha, boicotando inaugurações de
exposições com apedrejamento; lançando bombas de impacto sonoro e panfletos
na entrega de um prêmio do Museu Nacional Belas Artes; tingindo de vermelho
as águas das fontes mais importantes de Buenos Aires; sequestrando, durante
uma conferência em Rosário, o diretor do Centro de Artes Visuais do Di
Tella, o renomado crítico Jorge Romero Brest.[30] O que, entretanto, acabou
definindo a ação desses artistas, enquanto coletivo, foi o evento Tucumán
Arde, um processo de contrainformação sobre as causas da crise de uma
província no norte da Argentina. Participaram dos acontecimentos Eduardo
Favario, León Ferrari, Juan Pablo Renzi, Roberto Jacoby, Graciela
Carnevale, Maria Teresa Gramuglio, Nicolá Rosa[31] e outros. No manifesto
distribuído em Rosário postulam a ação estética como "ação coletiva e
violenta", destruindo o "mito burguês da individualidade do artista e o
caráter passivo da arte". Eliminando a separação entre artistas,
intelectuais e técnicos, organizam ações unitárias.

Eles escrevem:



A obra coletiva que se realiza se apoia na atual situação da
Argentina, radicalizando-se em uma das províncias mais pobres,
Tucumán, submetida a uma longa tradição de subdesenvolvimento e
opressão econômica. Um "Operativo Tucumán" elaborado pelos economistas
do governo tenta mascarar essa agressão à classe trabalhadora, com um
falso desenvolvimento econômico baseado na criação de novas e
hipotéticas indústrias financiadas pelo capital norte-americano.[32]



Entendendo que o Operativo Tucumán é, na verdade, um Operativo
Silêncio, os artistas reagem com o Tucumán Arde, que, como escrevem,
consiste na criação de um circuito "sobreinformacional" para denunciar a
deformação que os fatos sofrem através dos meios de informação e
comunicação dominados pela classe burguesa. O Artistas de Vanguarda viajam
a Tucumán com uma ampla documentação sobre os problemas econômicos e
sociais da província e, acompanhados de técnicos e especialistas, procedem
ali a uma verificação da realidade social. O processo de ação culminou com
uma conferência para a imprensa em Rosário e depois em Buenos Aires, quando
tornaram pública, e de maneira violenta, a atuação das autoridades
oficiais, assim como a cumplicidade dos meios culturais e de comunicação.
Embora diversas na maneira de agenciar as ações artísticas como
acontecimentos públicos, são propostas que, lidas do ponto de vista da
história, abrem para o pensamento e escrita sobre a arte do presente, e
certamente do futuro, o debate que Miwon Kwon havia identificado se
delineando naquelas décadas, ou seja, o debate sobre o lugar determinado
discursivamente e que é constituído como campo de conhecimento, troca
intelectual ou debate cultural e, no caso específico desses acontecimentos,
debate político.

Ao levarem a arte para fora do sistema museu/galeria, constituíram um
conceito mais amplo de lugar, tradicionalmente referenciado na prática
artística. Infiltrando-se na mídia, garantiram a discussão no espaço
público, mas esses cinco eventos lançam ainda, próximo de uma "invenção do
cotidiano", descrito por Michel de Certeau, a utópica vontade de fazer da
arte um lugar-comum, infiltrando-se e se infiltrando do saber ordinário,
como escrevera Hélio Oiticica.[33] São táticas que mesmo diante de sistemas
reguladores, assim como a linguagem diante de uma sintaxe prescrita, ou
diante das instituições de arte, como galerias e museus, são capazes de
realizar "as astúcias de interesses outros e de desejos que não são nem
determinados nem captados pelos sistemas onde se desenvolveram".[34] São,
em arte, acontecimentos no nível não transfigurado, que, segundo De
Certeau, desvelam o quanto a "inteligência é indissociável dos combates e
dos prazeres cotidianos que articula".[35]




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[1] Salomão, Waly. O suicídio enquanto paráfrase ou Torquato Neto esqueceu
as aspas ou Torquato marginalia neto. In Armarinho de miudezas. Salvador:
Fundação Casa de Jorge Amado, 1993, p. 67.
[2] Oiticica, Hélio. Apocalipopótese. Manuscrito. Programa Hélio Oiticica.
Projeto Hélio Oiticica, Itaú Cultural. www.itaucultural.org.br. Acessado em
julho de 2010.
[3] Idem.
[4] Idem.
[5] No texto que Frederico Morais escreveu em 28 de julho de 1968 para o
Diário de Notícias, patrocinador do evento Arte no Aterro, de que
Apocalipopótese era parte, fica clara essa intenção de ampliação para um
sentido público das capas Parangolés, constituindo as experiências
sensoriais-ambientais. Não era, como bem havia entendido Hélio, uma
proposta de tornar o espaço urbano mais artístico ou apresentar arte para o
público da cidade, mas de dar à arte esse sentido. Morais, Frederico.
Parangolé de Oiticica: da Capa ao Urbanismo. Diário de Notícias, Rio de
Janeiro, 28 de julho de 1968.
[6] Fraser, Andrea. Da crítica às instituições a uma instituição da
crítica. Concinnitas, n.13, ano 9, v. 2. Rio de Janeiro, dezembro de 2008.
[7] Brett, Guy. Experimento Whitechapel II. In Brasil Experimental.
Arte/vida: proposições e paradoxos. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria,
2005.
[8] Oiticica, Hélio. A obra, seu caráter objetal, o comportamento. GAM, 18,
1969.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] Oiticica, Apocalipopótese, op. cit.
[12] Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. (Seleção de textos de
Luciano de Figueiredo, Ligia Pape e Waly Salomão). Rio de Janeiro: Rocco,
1986, p. 16.
[13] Idem.
[14] Apud Braga.
http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.painel/coletanea_ho/ho_p
braga. Consultado em 20/07/2010.
[15] Apud. Braga, op. cit.
[16] O livro, que é uma seleção de seus textos entre 1964 e 1969, reproduz
uma anotação de Hélio de 15 de janeiro de 1961 em que escrevera: Aspiro ao
grande labirinto. Oiticica, Aspiro ao grande labirinto, op. cit. p.26.
[17] Artur Barrio. Rio de Janeiro, abril de 1970.
[18] Cildo Meireles. Rio de Janeiro, 1970.
[19] A manchete de O Globo de 13 de dezembro de 1968, que anunciava o Ato
Institucional n. 5 estampava: 1) Congresso em recesso; 2) Confisco de bens;
3) Suspensos "habeas" políticos; 4) Restabelecidas as cassações; 5)
Liquidada a vitaliciedade. O ano de 1968 tinha sido de muita tensão na cena
artística carioca, assim como para a população como um todo. Com os
acontecimentos do mês de março no restaurante do Calabouço, quando o
estudante Edson Luís foi morto em uma manifestação reivindicatória, e as
manifestações estudantis, que ganham enormes proporções e culminam com a
Passeata dos cem mil em junho, o ano termina com o discurso de Márcio
Moreira Alves no Congresso, deflagrador do Ato 5, que impõe o fim dos
direitos civis e anunciava a época mais dura da repressão. Nesse período
sombrio, quando a exposição da representação do Brasil na Bienal de Jovens
de Paris (1968) é censurada e a X Bienal de São Paulo (1969) sofre boicote
internacional, o Salão da Bússola (1969), que tinha entre os jurados
Frederico Morais e Mário Schemberg, dá o primeiro prêmio a Cildo Meireles,
com o trabalho Arte Física: caixas de Brasília/clareira (1969),
desencadeando entre os críticos de arte uma polêmica singular contra as
novas linguagens. Nessa mostra Antonio Manuel apresenta o ambiente Soy loco
por ti América, e Artur Barrio, SITUAÇÃO.....ORHH....ou...5.000...T.E. Essa
foi a sua primeira T E, Trouxa Ensanguentada, que, em sua segunda fase,
como explica Barrio, após o término do Salão, teve seu conteúdo
transportado para o lado de fora do Museu, sendo colocada em uma base de
concreto do jardim destinada às esculturas consagradas.
[20] Em 1970, Frederico de Morais já havia proposto os Domingos de Criação
no MAM do Rio de Janeiro. O vão livre do belo edifício projetado por
Affonso Eduardo Reidy transforma-se em ágora, em que artistas, não
artistas, anartistas e anarquistas, ou melhor, quem chegasse tinha
acolhimento para exercer a liberdade e a criação em Domingo por um fio; O
domingo do papel; O corpo a corpo no domingo. Segundo Frederico, esse foi o
começo do processo de pensar o lado de fora do Museu. "Enquanto estive no
MAM essa era minha máxima preocupação: o que é o lado de fora, como deve
ser ativado e utilizado, como pode participar o público, a arte e a rua, a
arte e a vida". Morais, Frederico. Frederico Morais, o crítico-criador. In
Portal de Literatura e Arte Cronópio. http://www.cronópios.com.br Acessado
em 15/07/2010.
[21] Ribeiro, Marília Andrés. Neovanguardas. Belo Horizonte: C/Arte, 1997.
[22] Simões, Thereza. Depoimento de uma geração: 1969-1970. Ciclo de
Exposições sobre Arte no Rio de Janeiro. Galeria de arte BANERJ. Rio de
Janeiro, julho de 1986, catálogo.
[23] Cuyás, José Días e Pardo, Carmen. La carnavalización de la vanguardia.
In Desacuerdos 1: Sobre arte, políticas y esfera pública en el Estado
español. Barcelona/ MACBA; UNIA; Arteleku,
[24] Rejeitados pela velha esquerda, que estava na clandestinidade, os
artistas de vanguarda identificavam-se com o movimento de contracultura, e
foi em Pamplona que se distribuiu gratuitamente parte da primeira edição
espanhola de Sociedade do espetáculo, de Guy Debord. Cf. Encuentros de
Pamplona 1972: Fin de fiesta del arte experimental. Madri: Museu Nacional
Centro de Arte Reina Sofia.
[25] Oiticica, Apocalipopótese, op.cit.
[26] Segundo o catálogo, En Pamplona, las capas Parangolés, un modo de
ativar el color en el espacio que su autor vincula con la tradición del
carnaval y de la samba, sufrieron un desvio en su uso performativo que las
llevó a convertirse, para buena parte de los asistentes, en festivas
banderas reivindicativas. Encuentros de Pamplona 1972, op. cit, p. 246.
[27]Ainda como parte dos Encontros, programou-se o que hoje é considerado o
primeiro ciclo de videoarte da Espanha. Antonio Muntadas mostrou o trabalho
Sensorial way, registro de uma experiência corporal-sensorial que fizera em
Nova York. Encuentros de Pamplona 1972.
[28] Pilar Parcerisas faz referência ainda ao evento Presentació
d'experiències d'art concepte, de fevereiro de 1973, em Bañoles. Sua
importância teria sido a de ter favorecido o início do debate sobre a arte
conceitual com uma tomada de posição crítica e ideológica de caráter
político, quando se questionou a prática artística, o objeto artístico e a
comercialização da arte. Também se impulsionou a participação do espectador
e se situou a arte no contexto da luta política e repressão cultural, que
se vivia na Espanha. Cf. Parcerisas, Pilar. Conceptualismo(s) poéticos,
políticos y periféricos. En torno al arte conceptual en España: 1964-1980.
Madri: Edições Akal, 2007, p. 236.
[29] Mercader, Antoni. Entrevista com Antoni Mercader. In Conceitualismos
do Sul/Sur. Freire, Cristina e Longoni, Ana (Orgs.). São Paulo:
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MAC/AECID, 2009.
[33] Cf. Longoni, Ana. "Vanguardia" y "revolución", ideas-fuerza en el arte
argentino de los 60/70. In Brumaria 8: Arte y Revolución. Madri: Brumaria.
A.C. Primavera 2007.
[34] Esses são os artistas citados no catálogo Heterotopías. Medio Siglo
Sin-lugar. 1918-1968. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía. 12/12/00-
27/2/01, p. 539.
[35] Tucumán Arde. Manifesto. Apud Heterotopías, op. cit.
[36] Oiticica, A obra, seu caráter objetal, o comportamento, op. cit.
[37] De Certeau, Michel. A Invenção do cotidiano. N. 1. Artes do fazer.
Petrópolis: Vozes, 2007, p. 45.
[38] Idem.
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