Arte e criação na economia dos bens abundantes

Share Embed


Descrição do Produto

ARTE E CRIAÇÃO NA ECONOMIA DOS BENS ABUNDANTES Sharine Machado Cabral Melo1

RESUMO: Grande parte da bibliografia acadêmica sobre temas como a economia criativa ou a economia da cultura, especialmente de tradição britânica e australiana, ressalta as especificidades da exploração da atividade criativa, principalmente nas indústrias culturais. Este artigo propõe uma leitura desse conjunto de enunciados a partir das pesquisas sobre o trabalho imaterial e o neoliberalismo. Dessa perspectiva, o capitalismo, que não cessa de explorar os recursos naturais, também se volta aos elementos predominantemente intangíveis, como a imaginação, o afeto e o pensamento. Por ser um campo em que a criatividade é bastante visível, as artes são diretamente afetadas pelos discursos e pelas práticas que emergem dessa abordagem.

PALAVRAS-CHAVE: economia criativa, economia imaterial, artes, políticas culturais.

INTRODUÇÃO Em 1994, o primeiro ministro da Austrália batizou seu país de “nação criativa”. Poucos anos mais tarde, em 1997, foi a vez de Tony Blair formar uma equipe incumbida da tarefa de mapear as “indústrias criativas” do Reino Unido. Desde então, diversos governos e iniciativas privadas têm apostado em conceitos como “economia criativa”, “economia da cultura” ou “economia das artes”. Esses termos variam conforme a orientação política em voga. Na prática, as estratégias ora tendem a um maior financiamento público, que sofre cortes em períodos de crise financeira, ora buscam a sustentabilidade de atividades empreendedoras, artísticas ou culturais. Além disso, diversas cidades já foram declaradas “criativas”: Bilbao (Espanha), Londres (Inglaterra), Helsinki (Finlândia), Rio de Janeiro (Brasil). Inspiradas por autores como Richard Florida (2012), nos Estados Unidos, Charles Leadbeater (1999), na Inglaterra, ou Ana Carla Reis (2012), no Brasil, pelas análises de economistas como David Throsby (2011) ou John Howkins (2007), ou por relatórios de organizações como a UNESCO (2010), 1

Mestre (2010) e doutora (2015) em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, com período de bolsa sanduíche, financiada pela CAPES, na University of Leeds – Reino Unido (2014/2015). Bacharel em Comunicação Social pela ESPM – SP. Trabalha como administradora cultural na Fundação Nacional de Artes – Funarte SP. E-mail: [email protected].

1

a hipótese que sustenta essas iniciativas é a de que a criatividade é o elemento que impulsiona a economia local e que permite o fluxo internacional de pessoas, de ideias e de dinheiro. De fato, desde o final dos anos 1990, há uma espécie de ritornelo sobre um enunciado que não cessa de enfatizar o valor econômico e social que pode ser extraído do pensamento e da imaginação. Nesse discurso, a capacidade de criar nunca aparece como exclusividade de alguns grupos sociais (como os artistas, por exemplo), mas se ressalta que é preciso preservar e incentivar a diversidade, que se manifesta na música e na dança, na literatura e nas artes populares, nos artesanatos e nas artes visuais, mas também nas pequenas e grandes empresas, nas organizações financeiras, nas mais diferentes ocupações – do ator ao designer, do professor ao engenheiro. Por mais democrático que possa parecer, esse discurso não é, de maneira alguma, ingênuo. Em primeiro lugar, ele toma o ato de criar (que, no simbolismo romântico, é visto como um produto do gênio, um dom inato e muitas vezes raro) como uma característica comum a todas as pessoas. Em seguida, ele busca extrair valor econômico de algo tão intangível como o pensamento – e não há nada aparentemente mais distante da imagem do chão de fábrica, que se formou no capitalismo industrial, com suas ações repetitivas, a produção em massa de bens de consumo, a extração de valor da força física e dos recursos naturais. Por um lado, a cultura se torna ordinária, como Raymond Williams (1967) já havia previsto nos anos 1960 – ela não se restringe mais a uma tradição estética, mas remete aos mais diversos domínios da vida. Por outro, a criação torna-se fonte de riquezas. O que esses movimentos podem dizer sobre nossa época? Para Justin O’Connor (2011), a cultura tornou-se um campo de interesses para a sociedade ocidental no momento em que as indústrias culturais começavam a ser adotadas como estratégia política e mercadológica, por volta dos anos 1970. Os Ministérios da Cultura, que haviam sido criados a partir da segunda metade do século XX, seguindo, em grande medida, o modelo francês, agora voltavam sua atenção para a cultura comercial, que ocupava parte do lugar antes reservado à preservação e à democratização das Belas Artes. Já nos anos 1980, o Ministério da Cultura da França passou a enfatizar o “multiculturalismo”. O então ministro Jack Lang propunha ações que abrangiam gêneros como o rock e o hip-hop, antes invisíveis às políticas públicas (POIRRIER, 2012). Na Inglaterra, pesquisadores como Garnham (2006) e Miège (1979) sugeriam que as indústrias culturais fossem integradas às estratégias de governo, uma vez que as formas “comerciais” de cultura também influenciavam

2

os gostos do público. No Brasil, era criada a primeira versão da lei de incentivo fiscal (a Lei Sarney2), que mais tarde seria substituída pela Lei Rouanet3. Mas a noção de economia criativa não é uma simples evolução desses modelos, como, à primeira vista, pode parecer. Há uma inversão. No primeiro momento, havia uma preocupação com as questões econômicas inerentes à cultura, fosse ela entendida pelo viés da estética romântica, das experimentações artísticas ou de obras de cunho predominantemente comercial, e, por isso, gestores e teóricos apropriavam-se de conceitos como os de diversidade ou multiculturalismo. Já o discurso sobre a economia criativa faz da própria criatividade uma fonte de desenvolvimento social e econômico, com potencial para melhorar as condições de cidades e de países inteiros. Um dos efeitos é que as artes (domínio em que a criatividade, sem dúvida, é mais visível) acaba por integrar-se aos processos produtivos em geral. É por isso que essas questões não escapam de uma crítica aguda, que pode vir de acadêmicos ou dos próprios artistas. Além da exploração do trabalho criativo, o principal receio é que as artes percam “autonomia” e, com isso, percam também seu caráter de transgressão ou de resistência. Essa análise deixa entrever uma discussão mais antiga: será que a arte pode ser uma atividade economicamente interessada? Ou, pelo contrário, é o avesso do sistema produtivo com sua fabricação em série de bens de consumo? Embora seja um tema atual, com especificidades de nossa época, quando formulado dessa maneira, o debate remete à transição entre a idade clássica e a moderna, época em que nasciam tanto a estética quanto o liberalismo econômico.

SOBRE ARTE, ECONOMIA E LIBERDADE No livro As palavras e as Coisas, o filósofo Michel Foucault (2007) fez uma leitura bastante original da passagem do século XVIII para o XIX. Segundo ele, o liberalismo surgia não apenas ancorado na livre troca de mercadorias, mas principalmente no modo como se entendia o trabalho. Com a divisão de tarefas nas fábricas, proposta por economistas como Adam Smith e, em seguida, David Ricardo, a força dos empregados era transformada em uma unidade de medida, que gerava o “valor” de um produto ou serviço. Ao ser tomado, dessa maneira, como algo que pode ser medido e fragmentado, o trabalho também passava a ser

2

Lei no 7.505, de 2 de julho de 1986. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015. 3 Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991. Disponível em: . Acesso em: 20 out. 2015.

3

visto como um investimento de tempo e esforço, sem que houvesse uma recompensa imediata, o que colocava o ser humano em contato com sua própria finitude:

A equivalência dos objetos do desejo não é mais estabelecida por intermédio de outros objetos e de outros desejos, mas por uma passagem ao que lhes é radicalmente heterogêneo; se há uma ordem nas riquezas, se isto pode comprar aquilo, se o ouro vale duas vezes mais que a prata, não é porque através de seu corpo eles experimentam a mesma fome ou porque o coração de todos obedece às mesmas seduções; é porque todos eles são submetidos ao tempo, ao esforço, à fadiga e, indo ao extremo, à própria morte. (FOUCAULT, 2007, pp. 308-309)

A vida “dobrava-se sobre si mesma”, assim como a economia e as linguagens. Mais do que a invenção de uma técnica de produção, Foucault viu neste movimento, que se expandia por toda a Europa, um exemplo de mudança epistemológica, o que, segundo ele, inaugurava a modernidade.

Uma historicidade profunda penetra no coração das coisas, isola-as e as define na sua coerência própria, impõem-lhes formas de ordem que são implicadas pela continuidade do tempo; a análise das trocas e da moeda cede lugar aos estudos da produção, a do organismo toma dianteira sobre a pesquisa dos caracteres taxinômicos; e, sobretudo, a linguagem perde seu lugar privilegiado e torna-se, por sua vez, uma figura da história coerente com a espessura de seu passado (FOUCAULT, 2007, p. XX)

Mais tarde, nos cursos dados, no final da década de 1970, no Collège de France, Foucault (2008) voltou à passagem do século XVIII para o XIX, desta vez para analisar a biopolítica, ou o poder que se exerce sobre a vida. Novamente, o filósofo se deparou com a questão da liberdade: se a economia se tornava um campo específico de conhecimento, que seguia uma lógica própria, era preciso conhecer seus mecanismos. E a melhor forma, segundo os pensadores da época – de Smith a Kant, cada um em sua área de estudos – era deixar que ela funcionasse “naturalmente” a fim de que suas “verdades” se manifestassem. Para isso, seria necessário criar um “campo de liberdades”. A própria sociedade, que, até então, havia sido um domínio de poder dos reis absolutistas, emergia como um conjunto de cidadãos livres e heterogêneos. O principal exemplo era o mercado, em que se trançava uma rede de interesses. Mas essa liberdade deveria ser exercida dentro de certos limites: para que todos pudessem conviver “livremente”, era preciso que as pessoas seguissem determinados padrões

4

de conduta, que soubessem “governar” a si mesmas. O governo, por sua vez, teria a tarefa de “conduzir as condutas dos indivíduos”, de forma que eles se adaptassem à “normalidade”:

O liberalismo, no sentido que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação de produção/destruição com a liberdade. É necessário, de um lado, produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças, etc. (FOUCAULT, 2008, p. 87)

Nesse contexto, apresentado aqui de modo bastante esquemático, a arte também emergia, por um lado, como um campo autônomo, com uma organicidade própria, e por outro, como um exercício de governo de si. Basta percorrer os tratados de estética para verificar a busca por verdades que emergem da subjetividade dos artistas ou da própria obra, além da procura por uma liberdade que ora se relaciona à razão e à moral (a liberdade do pensamento em relação aos desejos do corpo), ora aponta para a transgressão dos valores tradicionais. Só que, ao contrário do trabalho, a arte não era entendida como algo extraído da força física, mas como um produto do “gênio”, um dom inato, natural ou espontâneo. Kant (2012), por exemplo, diferenciava a arte do trabalho justamente a partir do conceito de desinteresse. Para ele, o artista é aquele que cria sem receber nenhuma recompensa material em troca. Schiller (2011), por sua vez, via na arte uma forma de restituir a harmonia que havia sido rompida pela divisão do trabalho. A arte passava a ser entendida como uma linguagem universal, capaz de proporcionar a comunicação entre diversos povos, de criar uma comunidade, um acordo comum entre os cidadãos. Ocorre que foi justamente o desenvolvimento do mercado que possibilitou à arte emergir como algo à margem do trabalho “produtivo” ou economicamente “interessado”. Ao desvincularem-se das encomendas da nobreza e dos líderes religiosos, os artistas passavam por uma transformação no modo como criavam: em vez de cumprirem um pedido específico, como faziam na época dos grandes mecenas, eles deveriam produzir as obras antes de oferecê-las ao público, que agora percorria museus, teatros e galerias “desinteressadamente”, em busca apenas de “novidades” ou de “prazer”. Além disso, os artistas precisavam encontrar uma fonte de inspiração em temas de seu interesse, recorrendo, muitas vezes, à sua própria subjetividade. (GOMBRICH, 1981) É claro que alguns princípios do mecenato permanecem até hoje, da mesma forma que os artistas medievais ou renascentistas também compunham suas obras de um modo singular,

5

mesmo que a atividade fosse coletiva em grande parte das vezes. Mas fatores como o estilo e o talento dos artistas foram iluminados a partir do século XVIII tanto pela Estética e pela filosofia quanto pela própria organização do mercado. E, dessa forma, criou-se uma ruptura imaginária entre o trabalho e a atividade do gênio, entre a força física e a criação, apesar da lida diária dos artistas, que se viam também envolvidos em uma rede formada por galeristas, publicitários, produtores, entre outros profissionais. Nesse ambiente, eram os elementos intangíveis da arte – a criação, a capacidade de imaginar e de se relacionar com os outros, o gênio dos artistas e a raridade de suas obras – que já apontavam para uma nova forma de compreender a economia e que, mais tarde, iriam se revelar em mudanças no próprio conceito de trabalho.

DO LIVRE COMÉRCIO DE OBRAS DE ARTE À ECONOMIA CRIATIVA Por questões históricas, como o mercantilismo e o liberalismo, a exploração do trabalho nas fábricas e a movimentação do mercado de artes foram bastante evidentes na Inglaterra. Um exemplo foi a época Vitoriana, o auge da Revolução Industrial no país. Durante este período, havia um intenso debate em torno do livre comércio de arte. Enquanto algumas pessoas criticavam o Estado por não adquirir obras que “honrassem a nação”, outras culpavam a Academia por agir contra o livre mercado (CODELL, 2010, p. 27). Os artistas, por sua vez, passaram a fazer parte do censo, integrando a categoria dos “profissionais”, embora não exatamente por realizarem um “trabalho”, mas por sua “contribuição geral à sociedade” (SHINER, 2001, p.201). John Ruskin (2004, p. 28; 39), um dos primeiros a tratar, sistematicamente, da relação entre arte, política e economia, refletia bem os problemas dessa época. Preso a uma noção romântica da arte e a uma visão paternalista do Estado, ele se perguntava como gerar o “homem genial”, como empregá-lo e como distribuir suas obras para toda a população. Nesse esquema, os artistas eram vistos como um “recurso da nação”, algo raro a ser preservado, assim como o ouro. O autor também era contra os “excessos” na composição e os gostos “frívolos” do público. Por isso, ele pensava em estratégias para incentivar a produção de “obras do gênio”, sem desvalorizá-las. Uma de suas ideias era aumentar o preço de alguns trabalhos, de forma que as pessoas tivessem “poucos objetos para olhar”, mas oferecer obras baratas ou gratuitas para que a população mais pobre também tivesse acesso. Apesar da visão familiar de economia, a obra de Ruskin é um exemplo claro de governo das condutas. Por isso, embora sua análise se referisse especificamente às questões

6

de sua época, há, segundo o economista David Throsby (2011), alguns pontos que podem ser facilmente transportados para a atualidade, especialmente as discussões sobre os valores estéticos, financeiros e sociais da arte, e a necessidade de apoio do Estado, uma vez que a atividade dos artistas não seria “economicamente sustentável” (ou não poderia sustentar-se sozinha sem se perder em “modismos”, afastando-se dos padrões morais ou estéticos). Análises como essa, de viés kantiano, nunca foram um consenso. Bourdieu (1986), por exemplo, mostrou que, ao contrário do que pensava grande parte dos filósofos românticos, o campo artístico apresenta certa estrutura de interesses, velada, mas que contribui para a distinção entre as classes sociais – a cultura, para o sociólogo, já era entendida como um “capital”, como um investimento em um elemento intangível, mas que poderia se converter em um resultado econômico e social. Contudo, o simbolismo da exploração dos trabalhadores nas fábricas, as noções de governo de si e dos outros e as metáforas da liberdade e da comunicação universal proporcionadas pela arte persistiram. E, de formas muitas vezes paradoxais, é justamente esse imaginário, visível na figura dos “gênios”, ou daqueles que se afastam das questões materiais para se dedicarem à sua vocação, que até hoje impulsiona uma boa parte do mercado de artes. Ao contrário das linhas de produção, que lançam bens de consumo padronizados, é por causa da escassez, da raridade ou da “aura”, que as obras-primas têm valor. E esse valor, de fato, destaca-se do esforço físico quando se multiplica por meio do investimento, da especulação e do risco dos mercados financeiros. No século XIX, um elemento fundamental para que essa organização se sustentasse foi a imprensa, que hoje se expande para os meios de comunicação de massa e digitais. À medida que se desenvolviam, jornais e revistas, e mais tarde programas de rádio e televisão, tornavam-se responsáveis não somente por divulgar as artes, mas também por formar o público, que se estabelece em torno de correntes estéticas, artistas, galeristas e críticos. Nesse sistema, as relações interpessoais, a troca de conhecimentos e a difusão dos signos são fontes fundamentais de riquezas. O campo tornou-se ainda mais complexo a partir da segunda metade do século XX, marcada pela expansão das indústrias culturais, que não somente comentam e difundem as obras de arte, mas também criam suas próprias obras. Nesse mesmo período, essas características começavam a afetar diretamente a economia de países como os Estados Unidos, que exportavam conteúdos audiovisuais para diversos locais do mundo. Tanto nas políticas de governo quanto nas pesquisas acadêmicas, percebia-se uma mudança na ênfase da

7

produção de bens de consumo de massa para a criação de imagens e de ideologias (MILLER, 2009). Em resposta a essas transformações, muitos departamentos de pesquisa ingleses e australianos, além dos norte-americanos, interessavam-se pelas indústrias culturais. Os estudos culturais discutiam a divisão entre a “alta” e a “baixa cultura”, entre as “belas artes” ou as obras do gênio - e a cultura “comercial”. Ao contrário da teoria crítica de Adorno e Horkheimer, Williams, Hall, Hoggart, entre outros, mostravam a importância das manifestações culturais diversas e a resistência das classes trabalhadoras por meio da cultura. Já na década de 1970, surgia mais uma corrente teórica, que inseria a política no cerne dos estudos culturais. Os principais pesquisadores australianos e ingleses, entre eles, Tony Bennett, usavam métodos de pesquisa qualitativa e um certo viés da arqueologia foucaultiana para analisar objetos como os meios de comunicação de massa, os museus e os direitos autorais. A ênfase recaía sobre os problemas de governo e a criação da liberdade individual (MILLER, 2009). Ora, quando a Austrália e o Reino Unido adotaram, oficialmente, a economia criativa como estratégia política, já havia uma consistente base teórica para que os pesquisadores desses países se debruçassem sobre o novo tema.

A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO CRIATIVO Quando surgiu na Inglaterra e na Austrália, o discurso sobre a Economia Criativa ressaltava o potencial transformador da cultura, que seria capaz de revitalizar cidades e países, atraindo investimentos e turistas. Além disso, havia uma ênfase, característica dos anos 1990, na “economia cognitiva”, que dizia que a troca de conhecimentos seria a principal fonte de recursos econômicos. Com isso, as relações empregatícias também mudariam: horários de trabalho mais flexíveis, relacionamentos mais informais entre colegas e entre empregados e empregadores, mais períodos de lazer. Essas características estariam presentes em todos os setores, das indústrias de base à produção cultural. No plano internacional, a economia se tornaria globalizada, com a ajuda de ferramentas digitais e das redes. Já nos anos 2000, essa retórica expandiu-se para os países emergentes. Nesse segundo momento, instituições internacionais como a UNESCO (2010) mostravam as melhorias sociais que poderiam ser obtidas por meio do investimento em atividades criativas, artísticas e culturais, uma estratégia relativamente barata para alavancar a economia de países africanos, orientais e latino-americanos. Todos esses enunciados ressaltavam uma inversão no

8

pensamento econômico, que já não se restringia à extração de valor da força física dos corpos, tampouco tinha como base a escassez de recursos. A própria criatividade deixava de ser algo raro para transformar-se em um bem abundante – e, portanto, acessível a todos. Contudo, para Gil e Pratt (2008), apesar de o discurso sobre a economia criativa parecer democrático, a exploração do trabalho resiste, embora mude de aparência. Por trás da atividade de criação de artistas, designers, publicitários, entre outros profissionais, há a imposição dos empregadores em busca de objetivos mercadológicos. As horas de trabalho confundem-se com períodos de lazer, mas não deixam de atender às exigências capitalistas. Além disso, quando a criatividade se estende aos mais diversos domínios, as artes passam a ser apenas uma das fontes de ideias criativas. Para David Hesmondhalgh (2013), as indústrias culturais difundem signos (ou textos, como prefere o autor), porém, em grande parte das vezes, a motivação não vem da autonomia dos artistas, mas da estrutura das indústrias de comunicação de massa e digitais, com fins claramente comerciais. Oakley (2009), por sua vez, ressalta que as distinções sociais, de gênero e de classe também persistem e que, apesar da questão social ser sempre ressaltada nos discursos sobre economia criativa, os ganhos econômicos se sobrepõem aos outros objetivos, o que, por um lado, dá visibilidade às atividades artísticas e culturais, mas, por outro, ofusca seu caráter de resistência. No Brasil, a discussão crítica ainda é incipiente, uma vez que a Secretaria de Economia Criativa, nos moldes da instituição britânica, foi criada somente em 2012 e fechada em 2015. Mas o enunciado sobre as possibilidades de capturar os valores sociais e econômicos que emergem da criação se espalha por iniciativas privadas e órgãos públicos, como o Ministério e as Secretarias de Cultura. A demanda se manifesta nas metas de profissionalização do setor, nas contrapartidas, nos orçamentos e nos cronogramas de prêmios e editais, no discurso sobre a “economia da cultura” ou a “economia das artes”, entre outros exemplos. A diferença em relação ao estudo do tema pelos pesquisadores de origem anglosaxônica é que a ênfase sobre a produção em série dos bens artísticos e culturais tende a ser menor. A proposta do governo brasileiro tem sido a de ressaltar a diversidade, que pode estar presente em um trabalho artesanal realizado em um pequeno povoado, nas linguagens que surgem na periferia, na tradição indígena ou nos diferentes gêneros artísticos (BRASIL, 2011). Essa abordagem abre a possibilidade de olhar para a questão de outro ponto de vista. A denúncia da exploração da força física ou mental dos trabalhadores, a luta de classes, e o ideal iluminista, que ainda ressoa na busca por autonomia artística em meio à banalização da

9

criatividade, são caminhos válidos e já bastante aprofundados, mas eles referem-se principalmente à herança industrial, que é forte na Europa. Será que essa busca incessante pela criatividade não tem algo mais a dizer sobre a singularidade dos processos capitalistas da época atual? Será que eles ainda seguem os mesmos padrões do liberalismo econômico, como surgiu no século XVIII?

EMPREENDEDORISMO E CAPITAL HUMANO Novamente, foi Foucault (2008), no final da década de 1970, que teve uma das primeiras percepções sobre uma mudança no sistema capitalista. Segundo o filósofo, quando o liberalismo econômico surgiu na Inglaterra, ele era uma forma de limitar o poder do Estado. Mas, após a segunda metade do século XX, principalmente a partir da ascensão do modelo norte-americano, o que funda o Estado passa a ser o próprio princípio econômico. A lógica predominante já não é a da livre troca de mercadorias, tampouco a do consumo ou do espetáculo, mas principalmente aquela do mundo empresarial, da concorrência. Analisando, então, a obra de economistas como Gary Becker, Foucault enfatizou a noção de “capital humano”: o trabalho é novamente inserido nas questões da economia, porém, não mais como algo fragmentado, a partir do qual se gera o valor de um bem ou serviço. O ponto de vista passa a ser o do empregado, que se transforma em um “sujeito ativo”: quais recursos ele tem a oferecer? Assim, o trabalho passa a ser também um capital, porque é um investimento em si mesmo, que gera uma renda ou salário, ao mesmo tempo em que é parte do processo produtivo. Como a organização do mercado de artes, desde o século XIX, já insinuava, esse trabalho não é somente o da força física, empregada nas fábricas, uma vez que o investimento é feito, cada vez mais, na forma de educação e cultura, e as riquezas emergem das relações interpessoais, da confiança e do risco. Por abordar o dessa maneira o “capital humano”, para Rogério da Costa (2008), o texto de Foucault apresenta uma das primeiras percepções sobre o capitalismo imaterial, aquele que, sem cessar de explorar os recursos naturais, volta-se para também para o conhecimento, a imaginação e o afeto. Com isso, para além da aparente contradição entre a força física e a atividade mental (que, de fato, não ocorre, uma vez que não há separação possível entre essas duas instâncias)4, o trabalho ultrapassa as paredes das fábricas e dos

4

Segundo a filosofia de Spinoza (2009, p. 100), na qual boa parte da discussão sobre o capitalismo imaterial está fundamentada, mente e corpo são a mesma coisa, “concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão”

10

escritórios, e espalha-se pelos domínios da vida. Isso acontece porque não se pode parar de pensar ou de imaginar e porque as ocupações profissionais exigem cada vez mais o uso do afeto nos cuidados com os outros, nos serviços, nas comunicações, o que faz com que os processos de subjetivação também sejam cada vez mais requisitados. Se, na tradição estética, os artistas (ao contrário dos artesãos) são aqueles que se voltam à própria subjetividade para criar suas obras, quando cada pessoa se torna um empresário de si mesmo, um empreendedor, ou aquele que investe a própria vida em busca de riquezas, as distâncias entre o trabalho e a criação diminuem. As artes integram-se, em grande parte, aos processos produtivos em geral, de forma que os artistas passam a ser vistos também como potenciais empreendedores. E, desta vez, não se trata apenas de uma questão retórica. Na prática, o circuito brasileiro exige cada vez mais dos artistas conhecimentos de economia, resultados financeiros e sociais. Mesmo os editais públicos não cessam de avaliar projetos com base em retornos para a sociedade e em contrapartidas. Os discursos políticos não se cansam de ressaltar a importância de “profissionalização do setor” e de propor mapeamentos e indicadores. Por sua vez, na busca por atenção ou por recursos, as correntes artísticas correm o risco de se fecharem em ciclos de financiamento ou em linguagens cada vez mais específicas, que geram especializações também da crítica ou do público. É claro que circuitos assim sempre ocorreram, mas, atualmente, é necessário cuidado para que não se percam elos mais frágeis dessa cadeia, como a educação e a formação de público. E esse esforço é possível porque, apesar de um cenário cada vez mais tomado pelo pensamento empresarial, e das críticas mais pessimistas, a arte não pode perder por completo seu caráter de resistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A POTÊNCIA DA CRIAÇÃO Foucault dizia que há uma política que atua sobre a vida, sobre os corpos do regime industrial ou sobre o pensamento. É a biopolítica, que, com suas técnicas de governo e seus processos de subjetivação, busca conduzir as condutas individuais. Como visto, esse mecanismo já estava presente nos museus e teatros do século XIX. Mas um grupo de filósofos contemporâneos, formado por Negri, Hardt, Lazzarato, entre outros, propõe uma atualização nos conceitos lançados por Foucault. Os pesquisadores diferenciam a “biopolítica”, o poder que se exerce sobre a vida, do “biopoder”, ou a potência da vida em si mesma. De herança spinozista, eles ressaltam o poder de afetar e de ser afetado e a capacidade humana de se compor com as pessoas a sua volta, criando novas possibilidades (PELBART, 2002).

11

De fato, para Spinoza (2009, p. 105), todos os seres se esforçam para perseverar em sua existência, e é essa a própria essência da vida. Só que, ao contrário do que essa definição possa parecer à primeira leitura, o filósofo não entendia a “essência” como algo imutável, uma vez que o corpo e a mente são compostos de “muitos indivíduos”. Ou seja, as pessoas estão sempre em relação com outras pessoas e com os objetos que as rodeiam, compondo-se (ou, por vezes, “decompondo-se”). Essa potência da vida em perseverar por meio da composição é anterior a qualquer modelo econômico. Por isso, Negri ressalta que, quando um poder se exerce sobre ela, abre-se, por outro lado, a possibilidade de que sua força se manifeste. Como sugeria Tarde (1976), o ato de criar também promove composições entre ideias já existentes e, desses entrelaçamentos, produz algo novo, singular. É por meio de um processo chamado de “imitação” que a “criação” se espalha pela sociedade. Seus efeitos são infinitos, porque sempre levam a novas combinações, e abertos a todos, porque promovem novos “encontros”, novos “possíveis” (LAZZARATO, 2006, p. 47). Em uma entrevista concedida já no final de sua vida, Borges (2009; 2010) diz que o trabalho dos artistas consiste em transformar em signos, em linguagem verbal ou não, tudo o que há em sua volta. Como no Aleph, que contém em si todo o universo, a criação remete sempre a obras anteriores e futuras, mas também é aberta a novas leituras e se renova a cada instante. Essa é uma bela potência do ser humano: a capacidade de imaginar. E ela não é algo intangível, pelo contrário, é capaz de atualizar as coisas do mundo, promover modos de viver e de pensar, que afetam o dia a dia das pessoas. Ocorre que é também a potência da criação que faz com que o artista nunca descanse, “nem mesmo enquanto sonha” (idem, 2010). E é dessas duas características que o capitalismo atual busca se apropriar: a força da criação e seu trabalho permanente. Em suas diversas vertentes, os enunciados sobre economia criativa ou economia da cultura investem sobre essa potência que se espalha pela sociedade para extrair dela recursos sociais ou econômicos. Assim como a própria vida, a criação, que é multiplicidade, também pode ser capturada pelo sistema capitalista na forma de direitos autorais, das grandes corporações midiáticas, das obras com caráter predominantemente comercial. Porém, essa perspectiva não retoma, necessariamente, os debates sobre a autonomia artística e a exploração dos trabalhadores nos moldes fordistas, há outros caminhos. No caso específico dos artistas, pode-se pensar na apropriação, por parte do capitalismo, de uma riqueza que emerge do esforço diário em busca da realização das obras, por meio da

12

cooperação e das redes – entendidas aqui, não somente em sua dimensão virtual ou digital, mas também física, material, aquela dos encontros do cotidiano. Contudo, quando se pensa nas redes, é possível ver também que pequenos acontecimentos (uma peça encenada em um teatro pouco conhecido ou uma nova composição musical) tendem a se proliferar por meio dos laços e dos nós, das justaposições entre as linguagens, do crescimento dos signos. O desafio é abrir espaços para a emergência desses acontecimentos, de modo que se expanda plenamente a potência humana de criar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). Tradução A. F. Bernardini; J. P. Júnior; A. G. Júnior; H. S. Nazário; H. F. Andrade. 6ª ed. São Paulo: Hucitec, 2010. BORGES, J. L. O Aleph. Tradução Davi Arriguci Jr. São Paulo: Comanhia das Letras, 2009. ______. Borges explains the task of art. 04 de Agosto de 2010. Disponível em: . Acesso em: 23 mai. 2015. BOURDIEU, P. The forms of capital. In: J. E. RICHARDSON, Handbook of theory of research for the sociology of education. Tradução R. Nice. Nova York: Greenword Press, 1986. BRASIL. Ministério da Cultura. Metas do Plano Nacional de Cultura. Brasília, 2011. CODELL, J. F. The political economy of art. Making the nation of culture. J. F. Cranbury (Ed.). Cranbury: Associated University Press, 2010. FLORIDA, R. The rise of the creative class, revisited. 10th aniversary edition. Nova York: Basic Books, 2012. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Tradução S. T. Muchail. 9ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ______. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979).Tradução E. BRANDÃO. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GARNHAM, N. Contribution to a Political Economy of Mass-Communication. In: M. G. DURNHAM; D. KELLNER (Eds.), Media and Cultural Studies Key Works. Malden: Blackwell, 2006. GILL, R.; PRATT, A. In the social factory? Immaterial labour, precariousness and cultural work. In: Theory, Culture & Society, dezembro de 2008. V. 25, p. 1-30. Disponível em: . Acesso em: 25 nov. 2014. GOMBRICH, E. H. A história da arte. (Á. Cabral, Trad.) Rio de Janeiro: Zahar Editora, 1981. HESMONDHALGH, D. The Cultural Industries. 3ª ed. Londres: Sage, 2013. HOWKINS, J. The creative economy. How People Make Money from Ideas. Londres: Penguin; New Ed, 2007.

13

KANT. Crítica da faculdade do juízo. Tradução V. Rohden; A. Marques. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. LEADBEATER, C. Living on thin air: the new economy. Londres: Viking, 1999. MIÈGE, B. The cultural commodity. Media Culture Society, Thousand Oaks: Sage, 1979. V. 1, n. 297, p. 297-311. MILLER, T. Can natural luddites make things explode or travel faster? The new humanities, cultural policy studies, and creative industries. Media industries: history, theory, and method, West Sussex: Blackwell, 2009. p. 184-98. OAKLEY, K. The disappearing arts: creativity and innovation after the creative industries. International Journal of Cultural Policy, Londres: Routledge, novembro de 2009. V. 15, n. 4, p. 40313. O'CONNOR, J. The Cultural and Creative Industries: A Critical History. Ekonomiaz, San Sebastián, 2011. V. 78, n. 3. Disponível em: . Acesso em: 14 ago. 2014. PELBART, P. Biopolítica e biopotência no coração do império. Multitudes, Paris, maio-junho de 2002. POIRRIER, P. Introdução. In: G. GENTIL, P. POIRRIER; T. COELHO (Eds.), Cultura e Estado: a política cultural na França, 1955-2005. Tradução A. Geldberger. São Paulo: Iluminuras, 2012. REIS, A. F. Cidades criativas. São Paulo: SESI-SP, 2012. RUSKIN, J. A economia política da arte. Tradução R. Cardoso. Rio de Janeiro: Record, 2004. SANTOS, R. d. Inteligência coletiva: comunicação, capitalismo cognitivo e micropolítica. Revista Famecos, Porto Alegre, dezembro de 2008. p. 61-68. SCHILLER, F. A educação estética do homem. Tradução R. Schwarz; M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2011. SHINER, L. The invention of art: a cultural history. Chicago: University of Chicago Press, 2001. SPINOZA, B. Ética. Tradução T. Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. TARDE, G. As leis da imitação. Tradução C. F. Maia. Porto: Rès, 1976. THROSBY, D. The political economy of art: Ruskin and contemporary cultural economics. In: History of Political Economy, Durham: Duke University Press, 2011. v. 43, n. 2 UNITED NATIONS UNCTAD. Creative Economy Report 2010. Creative economy: a feasible development option. UNCTAD, 2010. WILLIAMS, R. Culture and Society. Londres: Chatto & Windus, 1967.

14

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.