Arte e Política em Walter Benjamin

July 4, 2017 | Autor: Clayton Marinho | Categoria: Filosofia Da Arte
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Aceito para publicação nos Anais do IV Diálogos Internacionais em Artes Visuais e I Encontro Regional da ANPAP NE – Arte e Política, apresentação: ago 2015.

ARTE E POLÍTICA EM WALTER BENJAMIN

Clayton Rodrigo da Fonsêca Marinho (UFOP) RESUMO Este trabalho tem como objetivo oferecer algumas reflexões acerca da relação entre “arte” e “política” na filosofia do filósofo judeu-alemão Walter Benjamin. Sem esgotar as complexas e múltiplas relações entre ambas, gostaríamos de propor alguns tópicos que abordam a profícua relação que atravessa, de certa forma, a filosofia de Benjamin. No seu ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1935/6), o filósofo clama a uma politização da arte em revelia a estetização da política. Procuramos compreender essa “politização da arte”, refletindo sobre as maneiras possíveis, apresentadas por Benjamin. PALAVRAS-CHAVE: Arte. Política. Walter Benjamin. Jogo. Tatibilidade.

ABSTRACT This paper aims to offer some reflections on the relationship between "art" and "politics" in the philosophy of German-Jewish philosopher Walter Benjamin. Without exhausting the complex and multiple relationships between them, we would like to propose some topics that address the fruitful relationship that goes through, in a way, the philosophy of Benjamin. In his essay "The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction" (1935/6), the philosopher claims to a politicization of art in absentia to aestheticization of politics. We try to understand this "politicization of art", reflecting on the possible ways, presented by Benjamin. KEYWORDS: Art. Politics. Walter Benjamin. Play. Tactfulness.

Politização da arte Na última linha de seu mais conhecido texto, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (1935-1936), Benjamin diz que a resposta ao fascismo, aquele que esteticiza a política, é a politização da estética. Nossa proposta de pesquisa aqui é refletir sucintamente sobre o que significa isso. Porque, um problema a que o filósofo não chega a se deter claramente, é a da separação dessas duas instâncias. Mas, é preciso ressaltar, intuindo-o ele nos apresenta desvios. Primeiro, é preciso levar em consideração o que significa a “esteticização da política”, uso atribuído ao fascismo, e certamente ao nazismo. Como exemplo, gostaria de lembrar o filme “Arquitetura da Destruição” (Undergängens arkitektur, 1989, direção de Peter Cohen). Aí, o diretor nos apresenta uma tese que corrobora a problemática da transformação da política à partir da confusão com a esfera estética, sendo essa o fundamento das decisões tomadas na segunda. – O que certamente não é difícil de encontrar na nossa conjuntura atual política, naquilo que Guy Debord chamou de “sociedade do espetáculo”. – Na Alemanha nazista, Hitler é um artista frustrado que

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deseja realizar seu ideal de mundo. Seu fundamento é a arte, a arte grega mais especificamente. Todavia, antes disso, ele encontra em Wagner o ideal de uma nação alemã, baseada fortemente nas relações de emoção que a arte pode suscitar. Hitler perverte todo o Romantismo naquilo que ele construirá como o Terceiro Reich. A noção de beleza clássica transforma-se no fundamento das ações políticas. Hitler encarrega-se da idealização e projetos dos prédios, incuta sua visão nas manifestações, faz uso do rádio para propagandear sua visão, dá uma “forma” à massa. A catástrofe começa quando esses mesmos ideais começam a serem convertidos em objetivos das políticas públicas. Seus cidadãos começam a passar por avaliações médicas. Aqueles que são considerados incapazes (deficientes físicos e mentais) são logo internados em casa de custódia e hospícios. Inicia-se o processo de “higienização” do povo, pois eles não respondem ao ideal de beleza de um povo. É a primeira vez, diz o narrador da obra, que uma política de saúde satisfaz um modelo idealizado e não a realidade do organismo do paciente. Daí para a prisão de ciganos e eliminação dos judeus, converte-se em um passo lógico dessa perversão. Qual o potencial libertador da arte nesse momento? No momento em que ela é o fundamento da política? A reprodutibilidade da obra de arte mostra, segundo Benjamin, que a arte “abandonou a esfera da ‘bela aparência’, longe da qual, como se acreditou muito tempo, nenhuma arte teria condições de florescer” (BENJAMIN, 2012, p. 196). Podemos, na linha do filósofo, pensar em dois caminhos diferentes para essa saída: uma recusa da arte, tornando-se aquilo que ele denominou “teologia da arte”, a arte-pela-arte, “sob a forma de uma arte pura, que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva” (idem, p.185), ou o seu uso político, à partir da emancipação da sua “existência parasitária no ritual” (ibidem, p.186), suscitando muito mais “a indignação pública”, atingindo o espectador, transformando-se num “tiro”, como fizera o dadaísmo (ibidem, p.206), à partir do aumento de sua exposição. Benjamin tentará engendrar pelo segundo. Até por que, mesmo a arte-pela-arte tratase, para ele, como escreve em “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia” (1929), de uma “bandeira, sob a qual circula uma mercadoria que não pode ser declarada, por não ter ainda um nome” (ibidem, p.27). Isto é, para libertar-se do seu potencial fascista, a arte precisa ser “profanada”, no sentido de realizar-se uma re-ligação com a própria realidade, servindo ao homem como forma de mostrar e mostrar-se. Isso só é possível, na medida em que ela

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abandona seu “valor de culto”, e se orienta pela sua possibilidade de reprodutibilidade, ou seja, como forma que, ao adquirir valor pela sua exposição, massifica-se e passa a servir às massas para dar um rosto à própria massa. Pois, como diz Benjamin, “a reprodução em massa corresponde de perto à reprodução das massas” (ibidem, p. 210), o que significa que a técnica, especialmente a cinematográfica, permite a apresentação da massa em sua vida, por mais ordinária que seja, e ao mesmo tempo é uma forma que demanda uma massa para ser realizada e se manter. Ou seja, é a construção de uma tradição (cultural) que apresenta esse novo movimento social. O que, segundo Benjamin, não permitiu a “inteligência revolucionária” a possibilidade de responder aos anseios da massa foi a sua incapacidade de estabelecer contanto com a própria massa. O filósofo se deparará com algumas possibilidades em autores tão díspares como André Breton, Bertold Brecht, Franz Kafka e Marcel Proust. Para responder à pergunta feita alguns parágrafos acima, sobre a arte ser uma espécie de fundamento da política, ao mesmo tempo em que se torna libertadora, seguiremos dois tópicos de formação-uso da arte: o estranhamento e o jogo.

Estranhamento Na segunda versão de “A origem da obra de arte...”, Gagnebin nota uma forte influência de Bertold Brecht, amigo próximo de Benjamin. A discussão da autora gira em torno da ideia de “identificação”, assaz afetiva, na confusão que se estabeleceria entre o político e o estético, da massa com o líder do partido, o qual não poupa esforços em fazer uso da “catarse” como força que opera a identificação. Então, ela propõe um tipo de aprofundamento no uso da catarse que ultrapassa as intenções de Brecht, que opera com o “sistema” de gerar estranhamento com os objetos/discursos, passando à análise crítica desses, com o intuito de criar propostas de soluções. Segundo a autora, a intenção do dramaturgo é a de criar uma relação de empatia e estranhamento, com vistas ao esclarecimento do espectador. Pois, entender o mecanismo de identificação afetiva, nesse sentido, ajudaria a distanciar-se dos discursos teatrais do Führer. No entanto, Gagnebin (2014, p.141-154) mostra que a noção de kátharsis brechitiana não é inteiramente aristotélica e apresenta duas outras formas, aos quais Benjamin não deixou de recorrer para empreender um uso político, mas que era rejeitado pelo seu amigo Brecht por não “retornar do estranhamento e não propor soluções”: Kafka e os surrealistas. Tanto Kafka, quanto os surrealistas, utilizam o estranhamento como

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forma de construção de seus trabalhos, esses que não retornam. Eles permanecem nesse lugar, que é estrangeiro. A uma crítica do conceito clássico de identidade, diz Gagnebin (2014, p. 154), o que falta hoje, ela propõe a opção de “correr o risco de não-retorno ao domínio do entendimento e de permanecer no estrangeiro por tempo indeterminado”. Ou seja, abrir espaços nesses lugares em que o estranho/estrangeiro habita e fazer desses espaços, o espaço da crítica e da reflexão. Poderíamos dizer dessa forma: instalar a verdadeira política significa habitar uma zona de estranhamento, habitar o estrangeiro, um espaço de indiferenciação, em que nem há “dentro” ou “fora”, nem “superior” ou “inferior”, nem “divino” ou “profano”. Um espaço, contudo, que não visa misturá-los até sermos incapazes de percebê-los. Mas, um espaço em que todos são abolidos, justamente porque todos são/estão estrangeiros. Nesse sentido, Kafka é um limiar da proposta catártica de Brecht, porque no estranhamento gerado pelo primeiro, não há retorno, mas a sua habitação, o que é assaz criticado pelo dramaturgo. Todavia, na manutenção do espaço de estranhamento, aquele que lá está adquire uma posição muito peculiar em relação à arte, ao pensamento, à história e à política. Essa posição apresenta-se, na verdade, como uma espaço muito rico para Benjamin, não por ser somente um contraponto ao discurso oficial, ao senso comum, aos espaços de identidade – o que é prejudicial – mas também por ser o espaço de vitalização e transformação da realidade, da arte, do pensamento e da política, pois escapa às possibilidades de absorção pelo “discurso dos vencedores”. A figura da prostituta, do mendigo, do estrangeiro, do exilado, do oprimido, como das ruínas e dos objetos fora de moda apresentam-se como as miniaturas do mundo que nos apresentam cruamente a nossa realidade, incessantemente maquiada, ciosa de possessão e de diluição na identidade e inscrição no contínuo da história. Na obra kafkaniana, temos de um lado o sujeito que não consegue entrar no espaço da lei, pois a própria lei não lhe permite, permanecendo até o fim de sua vida nesse lugar. Se a ele foi destinado a porta pela qual não pode passar, a qual será fechada logo após sua morte, esse mesmo homem, que viveu no limiar, no espaço de estranhamento, conseguiu apreender cada centímetro, conheceu até as pulgas de seu guarda. Mesmo que “tarde demais” ele tenha notado que nunca outra pessoa havia tentado passar por ali, é preciso considerar que seu momento último foi de iluminação. Ele não entrou, mas nos deu a chave da possibilidade de interpretação desse enigma sem resposta, ao servir-nos como exemplo. Da mesma forma, em “Na colônia penal”,

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não é nem o estrangeiro, nem o oficial que o acompanha e opera a máquina, as figuras de importância, mas aqueles que estão à espera da condenação, que não compreendem o que se passa, mas se esforçam por compreender. Eles, nesse espaço, quase animalesco, de estranhamento, revela-nos a vacuidade de sentido que sustenta justamente a nossa sociedade. A máquina é uma “obra-prima”, capaz de escrever a sentença, cujo conhecimento da condenação, o indivíduo só a terá depois de horas de concentração, como se a ouvisse, diz-nos o soldado, ao sentir em seu corpo o que se escreve, precisamente no momento em que o atravessa. Ela leva também o condenado à “iluminação”, ao conhecimento, ainda que também tarde demais. Mas, como diz o oficial, os condenados morrem tranquilos – o que não é o caso do oficial que é morto brutalmente pela máquina ao final. Por fim, em “Mensagem Imperial”, vemos um narrador que se dirige aos solitários, lastimáveis e sombras ínfimas. É a esse tipo de gente a que se dirige a mensagem, gente que está longe do “centro do mundo”. Mesmo que a mensagem seja enviada pelo imperador, cujo destino jamais se cumprirá, ela é enviada àquele que está à janela, longe, sombra ínfima do sol, a quem é dado o direito de imaginar. São todos estranhos, indivíduos fora dos centros, marginalizados, como K. ao deparar-se com seu processo que desencadeará sua morte, e que jamais retornarão. São esses indivíduos que se prestam ao papel de procriar um espaço de estranhamento, espaço que exige a possibilidade de imaginar, visto que nem a mensagem de um morto chegará, nem um deus qualquer salvará, nem o guarda permitirá passagem. A possibilidade é a de imaginar, isto é, criar imagens. Segundo Benjamin, é, também, o Surrealismo que se impõe essa tarefa. Ele escreve que a “mais importante tarefa” do Surrealismo é “mobilizar para a revolução as energias da embriaguez” (BENJAMIN, 2012, p.33). Essa mobilização ocorre em contrapartida ao “programa de partidos burgueses” formado por uma “péssima poesia primaveril, saturada de metáforas”, a qual tem como “arcabouço imagético”, o “otimismo”. Afirma o filósofo (2012, p. 34):

O socialista vê ‘o futuro e mais belo de nossos filhos e netos’ no fato de que todos agem ‘como se fossem anjos’, todos possuem tanto ‘quanto se fossem ricos’ e todos vivem ‘como se fossem livres’. Em parte alguma vê sequer um vestígio de anjos, de riqueza, de liberdade. Apenas imagens.

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Em resposta a tal postura, Benjamin diz “respirar” já outra atmosfera na obra dos Surrealistas, que põe na ordem do dia a “organização do pessimismo” (idem). Essa perspectiva permite não apenas, ao Surrealismo, uma maior aproximação de uma “resposta comunista” como também foram, conforme o filósofo, os “únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto nos transmite hoje” (ibidem, p.36).

E isto significa: pessimismo absoluto. Sim, e sem exceção. Desconfiança acerca do destino da literatura, desconfiança acerca do destino da liberdade, desconfiança acerca do destino da humanidade europeia, e principalmente desconfiança, desconfiança, desconfiança com relação a qualquer forma de entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos (ibidem, p.34).

A organização desse pessimismo está naquilo que Benjamin denomina “extirpar a metáfora moral da esfera da política”, metáfora que, como se lê na tese onze das “Teses sobre o conceito de História” (1940), corrompe as forças do operariado. Em substituição a tais metáforas, o filósofo demanda a descoberta “no espaço da ação política o espaço completo da imagem” (ibidem). Todavia, a imagem que deverá surgir do espaço da ação não deve ser “medido de forma contemplativa”. Nesse sentido, a arte um papel importante. Para ele, a “grande maioria” reclama a necessidade de “artistas proletários”, quando, na realidade a tarefa deveria ser interromper a “carreira artística” do artista de origem burguesa, para “fazê-lo funcionar, mesmo à custa de sua eficácia artística, em lugares importantes desse espaço de imagens” (ibidem), o que ele considera uma “parte essencial”. O artista de origem burguesa, nessa interrupção, poderia transformar sua própria condição em matéria de “pilhérias”. Isso possibilitaria, segundo o filósofo, a abertura de “espaço de imagens”:

Pois também na pilhéria, no insulto, no mal-entendido, em toda parte em que uma ação produz a imagem a partir de si mesmo e é essa imagem, em que a incorpora e devora, em que se perde a própria proximidade de vista – aí abre-se esse espaço de imagens que procuramos, o mundo em sua atualidade completa e multifacetada, no qual não há lugar para qualquer ‘sala confortável’, o espaço, em uma palavra, no qual o materialismo político e a criatura física partilham entre si o homem interior, a psique, o indivíduo ou o que quer que seja que desejemos opor-lhes, segundo uma justiça dialética, de modo que nenhum dos seus membros deixe de ser despedaçado. No entanto, e justamente em consequência dessa destruição dialética, esse espaço

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continuará sendo espaços de imagens, e de algo mais concreto ainda: espaço de corpos (ibidem, p.35).

Somente a “organização do pessimismo” e toda a sua força de desconfiança permite a destruição da “sala confortável” onde ocorre o entendimento mútuo, entre o materialismo político e a criatura física, que deseja a partilha do “homem interior”. O despedaçamento desse espaço, o qual permitiria a criação de imagens atuais e multifacetadas, lembra que “[t]ambém, o coletivo é corpóreo”, que é um espaço de enfrentamento de corpos, os quais sofrem. Nessa ótica, é preciso estar ciente de que as imagens que aí surgem são efêmeras, e historicamente determinadas, mesmo que não sejam capazes de serem lidas nesse tempo. E, ao mesmo tempo, sua conjunção constelar, se assim é-nos lícito dizer, aparece apenas aí, nesse tempo, nesse coletivo. Aquilo que poderá tornar familiar esse espaço é, de acordo com Benjamin, a “iluminação profana”. Ela possibilita, “graças a uma ótica dialética” ver o “cotidiano como impenetrável e o impenetrável como cotidiano” (ibidem, p.33). Ou seja, ela afasta as situações mais cotidianas e nos apresenta uma série de outras relações possíveis, inclusive enigmáticas, que nos revela uma potência adormecida, esquecida, tal como as rememorações proustianas. O próprio filósofo nos dá um exemplo: em visita a Moscou, encontra-se num hotel que recebia um grupo de monges tibetanos, os quais haviam feito um voto de jamais estarem em locais fechados. O que parecia a Benjamin uma situação curiosa, porém banal, revelou-se com uma potência que o chocou, pois, ele era “um leitor de Nadja”, obra de Breton. O encontro, pelo acaso, dessas possibilidades de correspondências, faz explodir uma série de imagens que podem permitir àquele que as cria, a descoberta da força e do uso dessas imagens para ação política. E, ao contrário, do que se pode pensar, tais encontros podem ocorrer em qualquer espaço, em espaços de contato, em espaços de tato, mais do que somente pela contemplação: “o homem que lê, que pensa, que espera, o flâneur, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados. E são iluminados mais profanos” (ibidem, p.33). Se Proust dá ao “semblante da existência” a forma surrealista, conforme ele diz no texto sobre o autor de Em busca do tempo perdido, isso ocorre pela presentificação, através do velamento da “feérie satânica”, pela qual se dissimula no esnobismo, e numa imitação de um “feudalismo sem significação econômica” (ibidem, p.46), toda uma classe. O “rosto” se revela justamente no despedaçamento desses espaços

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burgueses, o que lhe permite, nas interrupções, construir suas imagens multifacetadas. A “memória involuntária” é o meio que lhe permite construir tais imagens, essas que são ricas mas frágeis, podendo escapulir a qualquer instante. Enquanto surgem do esquecimento, possibilitam infinitas leituras, podem-se converter no espaço de ação política como a tarefa de rememoração integral no passado que permite àqueles que tiveram/têm a história negada (a exemplo dos argélios que completaram 115 anos do massacre, sem ainda, o reconhecimento do ocorrido, inclusive pelo Brasil, e ainda pode-se citar a ditadura civil-militar brasileira que não permite o reconhecimento das suas vítimas, de modo que os familiares não têm acesso aos documentos que mostrem o paradeiro e toda a história das mortes, desaparecimentos e torturas dessas vítimas), ou daqueles que foram/são oprimidos e não tem a oportunidade e o direito de testemunharem.

Jogo A famosa questão do “declínio da aura” em Benjamin, a qual teria se enfraquecido com a possibilidade de reprodução de uma obra, não somente encerra um tipo de relação entre o indivíduo e a obra – a do culto – como coloca para a arte, daí surgida, novas questões que exigem novas técnicas – a fotografia e o cinema, por exemplo, que resolvem com extrema facilidade resoluções estéticas a que se lançaram as pinturas dos dadaístas (BENJAMIN, 2012, p.206). Como resposta à desauratização, Benjamin sugeriria a possibilidade de jogo com a obra moderna, admissível somente com a “profanação” das obras de arte. Eliminando a relação de distância com a obra, resta ao homem moderno o espaço do jogo como via de uso da arte. Se a “dispersão” é uma questão pertinente do cinema como potência de transformação para o proletariado, o jogo é a possibilidade em que, o indivíduo e a obra, entram em relação transformadora. Já dizia Benjamin em “A doutrina das semelhanças” (1933), que o jogo tem para a criança não somente a possibilidade mimética da vivência da vida adulta numa “miniatura”, como outra mais importante ainda: o entendimento da criança de que aquele objeto com o qual joga pode significar qualquer coisa. Isto é, uma pedra não é somente uma pedra: ela pode ser um cristal, um olho, um mundo em miniatura, um carrinho, um avião etc. E ainda, diz Benjamin (2012, p.117): “os jogos infantis são impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo algum à imitação de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante ou professor, mas também moinho de vento e trem”. Se na sua reflexão sobre a

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alegoria, que possui uma construção aleatória de seu sentido, impregnado pelo tempo histórico, O jogo revela, em sua multiplicidade de interpretações e usos dos objetos, a artificialidade de quaisquer significados constituídos. Se a verdade é aquilo que se constitui num tempo histórico por sujeitos históricos, não deixa de dizer Benjamin (2009, p.505), em Passagens, ela é também histórica. Logo, é possível que ela se altere conforme modifique-se a escrita da própria história. O que isso significa no projeto de uma “politização” e, principalmente, na relação com a arte? No jogo que se realiza no espaço estético, descobre-se que a construção (social, cultural e histórica) é determinada por uma série, nem sempre consciente, de decisões. Decisões essas políticas. Se o jogo é o espaço da “mimese”, ele não é necessariamente o espaço primeiro. Ele é o espaço no qual se reconhecem as “semelhanças”,

semelhanças

essas

que

são

marcadas,

na

compreensão

benjaminiana, por aqueles instantes, como o nascimento, que decidem tudo. É possível assim, não somente aprender a identificar esses instantes, como saber que sua perda é irremediável e não retorna. Outrossim, perceber que, na sua aparição “célere e furtiva”, o passado se apresenta incompleto e prenhe de imagens em busca de alguma cognoscibilidade. Isso, portanto, não é um trabalho próprio da arte, mas da política. Tal como fez Proust, no seu Em busca do tempo perdido, a obra de arte recobre com um “véu” a situação social, deixando à revolução política e à luta a possibilidade de transformação dessa realidade.

[...] Esse desiludido e implacável desmistificador do eu, do amor, da moral, como o próprio Proust se via, transforma toda a sua ilimitada arte num véu destinado a encobrir o mistério único e decisivo de sua classe: o econômico. Não como se, com isso estivesse a seu serviço. Ele está apenas a sua frente. O que ele vive começa a tornar-se compreensível graças a ele. Grande parte, porém, da grandeza dessa obra permanecerá oculta ou inexplorada até que essa classe, na luta final, tenha dado a conhecer suas características mais cortantes (BENJAMIN, 2012, p.45-46).

Por trás de graciosas e pudicas gesticulações, como uma linguagem acessível somente a quem integrasse os pequenos grupos dos salões, Proust apresenta sua classe em sua “dissimulação”, recoberta por um véu, que tem mais a função de presentificá-la, sem estar a seu serviço. Isso permite o reconhecimento das condições de produção, ainda que se tentem aliená-las. Todavia, suas “características mais cortantes” só se revelarão após a luta, toda essa parte inexplorada, cujo acesso só é

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permitido pela luta. De toda forma, a obra proustiana presta um serviço, ao colocar o “objeto” visível, porque velado. Isso se torna possível, pois, pela curiosidade do autor, que possuí “um elemento detetivesco” (ibidem, p.45), ele procura desfazer a “confusão” que mistura o esnobismo com as próprias condições produtivas do consumidor. Essa “feérie satânica” se desfaz pela implacável desmistificação da escrita proustiana. Ele revela a vacuidade das condições do esnobe que tentam dar um sentido a sua classe, a distinção que tentam empreender em relação ao “resto”. O escritor, ironicamente, não deixa de pontuar que mesmo a linguagem utilizada pelos aristocratas é o resultado de corrupções e erros. E, ao mesmo tempo, a revelação desses enganos e erros permite-lhe a experiência daqueles lugares que modificamse perante sua percepção; eles se recriam sobre esses novos significados. Da mesma forma que Proust transforma a experiência do lugar pelos nomes, que lhe aparecem como outro inteiramente diferente, as crianças, segundo Benjamin, também criam com seus enganos sobre as palavras. Ele não deixa de narrar, em “Infância em Berlim por volta de 1900”, um episódio em que confunde as palavras, o que lhe permite a criação de um mundo aparte da própria realidade. A linguagem simplesmente abre perante o homem um mundo de possibilidades, na mesma medida em que o encerra em outros tantos.

Assim quis o acaso que, certo dia, se falasse em minha presença a respeito de gravuras de cobre. No dia seguinte, colocando-me sob uma cadeira, estiquei para fora a cabeça (Kopffverstich) – a isto chamei de ‘gravura de cobre’ (Kupferstich). Mesmo tendo desse modo deturpado a mim e às palavras, não fiz senão o que devia, para tomar pés na vida. A tempo aprendi a me mascarar nas palavras, que, de fato, eram como nuvens. O dom de reconhecer semelhanças não é mais que um fraco resquício da velha coação de ser e se comportar semelhantemente. Exercia-se em mim por meio das palavras. Não aquelas que me faziam semelhante a modelos de civilidade, mas sim às casas, aos móveis, às roupas (BENJAMIN, 2011, p.92-93).

A possibilidade de enxergar a arte, à partir desse paradigma do jogo, implica não somente em construir as suas próprias normas, que variarão conforme as novas possibilidades de jogos, mas acentua uma outra característica própria da estética: a tatibilidade. Benjamin, em “A obra de arte na era...” retorna à arquitetura como uma forma artística que tem como princípio o tato e não o olho. Isso significa que, nessa perspectiva, a distração aparece como uma ferramenta imprescindível, visto que o

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morar só se faz possível quando há um certo “esquecimento” da condição artística da moradia. A arquitetura é uma forma de arte que se adequa ao hábito.

A recepção tátil se efetua menos pela atenção que pelo hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada. (idem, 2012, p.208).

A dispersão permite, portanto, uma imersão na obra. Imersão que tem uma função importante, pois, segundo Benjamin (2012, p.208-209) “as tarefas impostas ao aparelho perceptivo do homem, em momentos históricos decisivos, são insolúveis na perspectiva puramente ótica. [...] Elas se tornam realizáveis gradualmente, pela recepção tátil, através do hábito”. Para o filósofo, o hábito surgido da dispersão pode permitir à arte uma mobilização das massas, na realização de tarefas importantes. A tatibilidade da arte, que se renova no cinema, revelando “claramente as violentas tensões do nosso tempo que o fato de que essa dominante tátil prevalece no próprio universo da ótica” (ibidem, p.209), permitiria, através do “choque”, da forma que o homem moderno e contemporâneo encontram para lidar com a velocidade das tarefas exigidas, o despertar das massas de sua letargia, do sonho, tal como o “tiro” disparado pelos dadaístas, resultando em indignação. Ou, como nos resume Gagnebin (2014, p.163):

Contra a ‘arte burguesa’, contra uma arte-ilusão, uma arte-refúgio, uma arte que ‘fabrica’ aura para reencantar o mundo, ele advoga a destruição dos velhos clichês da estética do belo em prol dos espaços sóbrios, vazios e esvaziados, talvez em ruínas. Tais espaços seriam palco de exercícios de paródias e distanciamento do status quo e de experimentação de outros mundos, que deveriam preparar para outras práticas possíveis, desta vez, políticas.

A experimentação dessas possibilidades só se faz possível quando a arte torna-se parte da própria realidade, mas do que ser contemplada, ser experimentada corporalmente. Se é num “espaço de corpos” que a arte adquire uma tarefa revolucionária, a composição de suas imagens também modifica-se: não se trata somente de imagens fundadas na “estética da visão”, diz-nos ainda a autora, mas em “imagens mnêmicas” (idem, p.164). Esse tipo de imagem pauta-se no trabalho da

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memória, mais do que na visão. Isso significa que a “visão” é desabilitada como um centro sobre o qual se constitui a imagem. Expandindo-se, ela é invadida por qualquer sensação corporal. Não somente o olho, mas o tato, o olfato, a audição e o paladar passam a integrar a gama de possibilidades de construção de imagens. Aqui entram em cena duas outras questões: Não é apenas a memória, aquela da consciência dos atos praticados e da decisões tomadas, isto é, da lembrança, mas a da memória em sua relação com o esquecimento e o acaso. Paradigmático dessa relação é Proust, que segundo Benjamin, coloca a “memória involuntária” como o lugar de construção da memória, encontrando-se muito mais com o seu próprio processo de tessitura, e revelando o poder das memórias esquecidas. Aí descobre-se a potência do tempo entrecruzado, como tempo de explosão de múltiplas possibilidades, de demasiado valor pela a efemeridade com que podem desaparecer. O rememorado torna-se muito mais intenso e verdadeiro do que o simples vivido. Em Proust vemos um processo de descoberta que se dá muito mais pela desatenção, pela memória involuntária, isto é, por encontros inconscientes que se dão se que os percebemos, que absorvemos sem saber, e que, por um instante, aparecem-nos graças a um acaso. É o caso do bolinho que desperta, através do paladar, toda a torrente de memórias que o fará escrever sua extensa e inacabada obra Em busca do tempo perdido. São os desníveis nas pedras da calçada que o farão tropeçar e rememorar o batistério de São Marcos. É o tilintar do talher no prato que o lembra da guerra contra os flautistas do Sr. de Norpois, com a qual concordará. Todas essas sensações, surgidas inesperadamente, renovam sua percepção sobre o mundo e sobre a sua própria vida. Escrever sobre ela se torna a possibilidade de desvendar nos “dias esquecidos” todas as possibilidade do que poderia ter sido. Assim, o passado vem ao encontro do presente, imiscuem-se e transformam-se. Nem mesmo as faces dos seus velhos amigos são mais as mesmas quando dessa compreensão. Na construção de imagens mnêmicas somos convidados a enxergar a construção da arte como um processo de estranhamento e experimentações, envolvendo nossos próprios corpos, tal como o narrador benjaminiano faz ao narrar suas histórias, deixando sua marca, “como a mão do oleiro na argila do vaso” (BENJAMIN, 2012, p. 221). Elas criam “experiências”, isto é, construções culturais, sociais e políticas de comunidade e alteridade que se entrelaçam com a nossa própria cultura e a transformam. Todavia, ao mesmo tempo, essas imagens criadas são efêmeras, fugidias e céleres como um relâmpago. Com um conjunto de atenção, reflexão e

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preparação, somados ao acaso e à dispersão, diz-nos Gagnebin (2014, p. 111), nós adquirimos a possibilidade de identificar esses instantes e torná-las imagens: “uma estratégia impertinente de desatenção pelo caminho já traçado e de atenção por descaminhos”, isto é, de uma série de desvios pelas rotas estabelecidas, e pela torção das próprias noções de “(des)atenção”, as quais “permitiriam, quem sabe, vislumbrar outras viagens, ‘ouvir o inaudito’, ‘tocar o intocado’”, ao que a autora denomina “tática de desobediência” (idem). É imprescindível entender que o acaso, aqui, é concebido como “circunstâncias que nossa vontade não preparou, pelo menos em vista do resultado que terão”, ao que Gagnebin (2009) acrescentar em seguida,

o acaso é algo muito maior, ele é aquilo que não depende de nossa vontade ou de nossa inteligência, algo que surge e se impõe a nós e nos obriga, nos força a parar, a dar um tempo, a pensar [...] Ao mesmo tempo, ele só pode ser percebido se há como um treino, um exercício, uma ascese da disponibilidade, uma ‘seleção’, umas ‘provas’ que tornam o espírito mais flexível, mais apto a acolhê-lo, esse imprevisto, essa ocasião – kairós! – que, geralmente, não percebemos, jogamos fora, rechaçamos e recalcamos [...] Acaso, portanto, muito mais próximo das noções de atenção e kairós [...] que da ideia de uma coincidência exterior (p.153-154).

Na perspectiva proustiana, não se trata apenas de enveredar-se pelas errâncias, como se isso significasse tudo. Como a madeleine por si só não permite a rememoração do fatos, é preciso uma preparação e exercício de estranhamento e jogo com as outras possibilidades de vida, de pensamento, de política. Possibilidades essas que se perdem irremediavelmente para aqueles que não sabem ouvir, não sabem reconhecer e não sabem se perder. Parafraseando Benjamin, perder-se numa cidade é uma arte que poucos dominam. De certa forma, como resistência, a arte apresenta-se como uma forma possível, desde que ela esteja interessada em experimentar e permanecer “fora” das relações reificadas de vida. Ela prepara, fundamenta e aponta saídas à política. Mas, não é a política própria. Essa necessita perder-se em seus próprios caminhos e chegar a soluções que a arte somente intui e apresenta.

Referências

Aceito para publicação nos Anais do IV Diálogos Internacionais em Artes Visuais e I Encontro Regional da ANPAP NE – Arte e Política, apresentação: ago 2015.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. 8 ed. rev. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012. _______________. Obras Escolhidas: Rua de mão única. 3ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 2011. _______________. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. GAGNEBIN, Jeane Marie. Lembrar escrever esquecer. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2009. _______________. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: o tempo redescoberto (vol 7). 3 ed rev. São Paulo: Globo, 2013.

Clayton Rodrigo da Fonsêca Marinho Mestrando do Programa de Pós-graduação em estética e filosofia da arte da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Editor da Revista Raimunda. Graduado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

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