Arte, mito e rito na modernidade. A dimensão mítica em Piet Mondrian e Kasimir Malevitch, a dimensão ritual em Kurt Schwitters e Marcel Duchamp [Tese de doutorado]

June 19, 2017 | Autor: Veronica Stigger | Categoria: Marcel Duchamp, Piet Mondrian, Kasimir Malevich, Arte Moderna, Kurt Schwitters
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Arte, mito e rito na modernidade A dimensão mítica em Piet Mondrian e Kasimir Malevitch, a dimensão ritual em Kurt Schwitters e Marcel Duchamp

Veronica Stigger

Para a avó Helena (em memória) e para minha mãe

AGRADECIMENTOS São tantas as instituições e as pessoas a que devo agradecer por terem me ajudado a realizar esta pesquisa que temo esquecer alguma ou alguém. Em primeiro lugar, agradeço à Profa. Dra. Lisbeth Rebollo Gonçalves, que me acolheu neste Programa de Pós-Graduação, auxiliando-me sempre em tudo o que foi preciso. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que me concedeu bolsa de estudo, sem a qual não poderia realizar esta tese. À Fundação Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que me concedeu bolsa de estudo para realizar estágio de doutoranda na Itália, onde tive acesso a boa parte da bibliografia deste trabalho. Ao Prof. Dr. Mario Perniola, que me recebeu em Roma. Aos membros da banca de defesa, os professores João Augusto Frayse-Pereira, Annateresa Fabris, Elza Ajzenberg e Cristina Freire por suas leituras e pertinentes observações. Às equipes das bibliotecas da Escola de Comunicações e Artes, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Museu de Arqueologia e Etnologia, todas da Universidade de São Paulo, da Biblioteca e Centro de Documentação Lourival Gomes Machado do Museu de Arte Contemporânea, da Biblioteca da Fundação Armando Álvares Penteado, da Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Biblioteca do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Agradeço também às equipes da Biblioteca Giulio Carlo Argan, da Biblioteca Angelo Monteverdi, da Biblioteca di Studi Storico-Religiosi e da Biblioteca di Filosofia, todas da Università degli Studi di Roma, da Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuelle, da Biblioteca di Archeologia e Storia dell’Arte, da Biblioteca dell’Istituto dell’Enciclopedia Italiana Giovanni Treccani, todas em Roma, e da Bibliothéque Nationale, em Paris. Aos sempre atenciosos Marcelo Laier, Daniel e Anike, da Livraria Cultura, que se esforçaram para conseguir os livros que me faltavam para a pesquisa.

À diretoria da Associação Brasileira de Críticos de Arte, em especial, a Carlos Soulié do Amaral, que assumiu minha função de tesoureiro durante os meses de escrita e finalização da tese. Ao João Batista Neto, que foi sempre prestativo. Aos meus pais e à minha irmã, que compreenderam que eu teria de ler e escrever mesmo no Natal e no Ano-Novo. Aos queridos companheiros de Itália Andrea Vicino e Gislaine Silva Marins e Andréa Portolomeos, por terem tornado a estada em Roma tão mais prazerosa. Aos meus queridos amigos Tarso de Melo e Marli Mendes, Eliane Rivero Jover e Jerônimo Teixeira, Fabio Weintraub e Antonio de Pádua Fernandes, Priscila Figueiredo, Luiz Sérgio Repa, Tércio Redondo, Cárlida Emerim Jacintho Pereira, Dirceu Alves Junior, que, com dedicação e carinho a toda prova, me deram apoio nas situações mais difíceis que enfrentei ao longo da realização deste trabalho. Por fim, ao Eduardo Sterzi, pela paciência, pela dedicação, pelo incomensurável carinho, por se dispor a discutir conceitos, por preciosas sugestões teóricas e estruturais e por ter lido tão atentamente as últimas versões deste estudo.

SUMÁRIO LISTA DAS ILUSTRAÇÕES

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INTRODUÇÃO (EU E MEUS OBJETIVOS)

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PARTE I – PERCURSO INICIAL

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1 ARTE MODERNA ENTRE MITO E RITO a. Manifestos e manifestações b. Primitividade c. Mito e rito PARTE II – DIMENSÃO MÍTICA

21 21 46 56 71

2 PIET MONDRIAN a. Rumo a um método b. Repetição c. Auto-referencialidade d. Ordem e. Texto e obra f. Retorno à «figuração» g. Para além da dimensão mítica

72 72 82 91 93 98 104 107

3 KASIMIR MALEVITCH a. Rumo a um método b. Repetição c. Auto-referencialidade d. Ordem e. Texto e obra f. Para além da dimensão mítica g. Retorno à figuração

112 112 122 126 130 133 140 143

PARTE III – DIMENSÃO RITUAL

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4 KURT SCHWITTERS a. Rumo à Merzbau b. Obra sem fim c. Artista-oficiante d. Texto e obra e. Ordem f. Templo g. Mistério

147 147 154 163 168 171 174 181

5 MARCEL DUCHAMP a. Rumo a La mariée mise à nu par ses célibataires, même b. Obra sem fim c. Texto e obra

190 190 200 202

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d. Artista-oficiante e. Ordem f. «Templo» g. Mistério

212 216 217 222

CONCLUSÃO

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BIBLIOGRAFIA SOBRE MITO E RITO SOBRE ARTE E ESTÉTICA SOBRE E DE PIET MONDRIAN SOBRE E DE KASIMIR MALEVITCH SOBRE E DE KURT SCHWITTERS SOBRE E DE MARCEL DUCHAMP OUTROS

242 242 246 253 254 257 258 262

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LISTA DAS ILUSTRAÇÕES As reproduções dos trabalhos de cada artista estudado encontram-se ao final de cada capítulo correspondente.

PIET MONDRIAN Fig. 1: O mar (1912) Fig. 2: Oceano 1 (1914) Fig. 3: Oceano 2 (1914) Fig. 4: Oceano 3 (1914) Fig. 5: Oceano 4 (1914) Fig. 6: Oceano 5 (1914) Fig. 7: Píer e oceano 1 (1914) Fig. 8: Píer e oceano 3 (1914) Fig. 9: Píer e oceano 4 (1914) Fig. 10: Composição nº 3 com planos de cor (1917) Fig. 11: Composição A (1920) Fig. 12: Composição com largo plano vermelho, amarelo, azul, cinza e preto (1921) Fig. 13: Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza (1920) Fig. 14: Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza (1922) Fig. 15: Composição com azul, amarelo, vermelho, preto e cinza (1922) Fig. 16: Composição com vermelho, preto, amarelo, azul e cinza (1921) Fig. 17: Composição com azul, amarelo, preto e vermelho (1922) Fig. 18: Quadro nº IV: Losango piramidal com vermelho, azul, amarelo e preto (192425) Fig. 19: Composição em losango, com vermelho, preto, azul e amarelo (1925) Fig. 20: Composição com três linhas e azul, cinza e amarelo (1925) Fig. 21: Losango com duas linhas e azul (1926) Fig. 22: Losango com quatro linhas e cinza (1926) Fig. 23: Composição nº 1 (1930) Fig. 24: Losango: Composição com quatro linhas amarelas (1933)

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Fig. 25: estúdio em Amsterdã, em 1908 Fig. 26: estúdio em Paris, em 1926 Fig. 27: estúdio em Nova York, em 1943

KASIMIR MALEVITCH Fig. 28: figurinos para Lutador do Futuro e Nero e cenário para a ópera Vitória sobre o sol (1913) Fig. 29: Fotografia da sala de Malevitch na exposição 0,10 (1915) Fig. 30: Quadrado negro (1915) Fig. 31: Quadrado vermelho (1915) Fig. 32: Branco sobre branco (1918) Fig. 33: Cruz hierática (1920-1921) Fig. 34: Cruz branca (1920-1921) Fig. 35: Cruz negra (1915) Fig. 36: Suprematismo místico (1920-1922) Fig. 37: Supremus nº 55 (1916) Fig. 38: Amarelo e preto (Supremus nº 58) (1916) Fig. 39: Plano amarelo em dissolução (1917-1918) Fig. 40: Jovens no campo (1912-1928/29)

KURT SCHWITTERS Fig. 41: O primeiro dia (1918-19) Fig. 42: Casa Merz (1920) Fig. 43: Castelo e catedral com fonte no quintal (1923) Fig. 44: Merzsäule, primeira versão (c. 1920) Fig. 45: Merzsäule, segunda versão (c. 1923) Fig. 46: Detalhe da Merzbau Fig. 47: Merzbau, vista do conjunto Janela azul Fig. 48: Merzbau, vista do Grande grupo ou Gruta do ouro Fig. 49: Detalhe da redoma em que se acha uma cabeça de boneco Fig. 50: Detalhe da Merzbau com Madona Fig. 51: Detalhe da Gruta com corno de vaca, mostrando cabeça de boneco

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MARCEL DUCHAMP Fig. 52: La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou Grande vidro (1915-23) Fig. 53: Élevage de poussière (1920) Fig. 54: Grande vidro na exposição do Museu do Brooklin, em 1926, antes de ser quebrado. Ao fundo, há três quadros de Mondrian Fig. 55 e 56: Étant donnés. 1º la chute d’eau. 2º le gaz d’éclairage (1946-1966)

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Comme les rites, les mythes sont in-terminables. Et, en voulant imiter le mouvement spontané de la pensée mythique, notre entreprise, elle aussi trop brève et trop longue, a dû se plier à ses exigences et respecter son rythme. Ainsi ce livre sur les mythes est-il, à sa façon, un mythe. A supposeer qu’il possède une unité, celle-ci n’apparaîtra qu’en retrait ou au delà du texte. En mettant les choses au mieux, elle s’établira dans l’esprit du lecteur. Claude Lévi-Strauss

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INTRODUÇÃO (EU E MEUS OBJETIVOS) Dois dias depois do Natal de 1930, no auge de sua carreira, Kurt Schwitters escreveu um texto em que expunha com clareza, mas não com muita objetividade, o como e o porquê de produzir uma arte tão singular como a sua. Este texto se chamava Ich und meine Ziele (Eu e meus objetivos). Desde que tomei conhecimento de tal escrito no decorrer da pesquisa que resultou neste livro, pensei em me apropriar de seu título para a introdução de meu trabalho. Isso porque este título fez-me perceber que também uma introdução a um estudo crítico ou a uma pesquisa científica no campo das ciências humanas não deveria – ou não poderia – se restringir à enunciação de um objetivo seguida de uma descrição fria do conteúdo de cada capítulo. Não que não se deva passar por isso, mas talvez fosse mais interessante – e mesmo mais esclarecedor – se o pesquisador aproveitasse este espaço, quiçá o único apropriado para isso num texto do gênero, para falar um pouco de si e do que o levou a investigar tal tema. Afinal, uma primeira idéia, um insight, uma intuição – sem o que não há trabalho intelectual algum – são fundamentalmente subjetivos. Partem sempre de uma visão pessoal e única. A esse momento primordial, a esse mythos privado de seu próprio auto-reconhecimento como estudioso de determinado assunto, o pesquisador, creio, deve, em alguma medida, manter-se fiel, ainda que em segredo, e mesmo quando aspira àquela relativa impessoalidade das hipóteses e das conclusões sem as quais não há conhecimento. É em razão dessa fidelidade que deixo de lado o pudor usualmente exigido de uma pesquisadora e confesso que meu interesse pelos mitos remonta à minha infância, quando ouvia encantada ora minha avó, ora minha mãe lerem para mim os Doze trabalhos de Hércules e O minotauro, de Monteiro Lobato. De todos os personagens da mitologia grega com os quais Emília, Narizinho e Pedrinho tiveram contato, a figura imponente, ao mesmo tempo triste e assustadora, do Minotauro foi sempre a que mais me impressionou. Com vinte e poucos anos, repórter da área de cultura de um jornal em Porto Alegre, já interessada em artes visuais, experimentei o mesmo fascínio infantil ao redescobrir este personagem nas gravuras de Picasso quando de uma visita ao museu devotado ao artista em Paris. Foi aí que tudo começou. Deixei de vez as redações e fui

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dedicar-me à pesquisa acadêmica. O tema, então, não poderia ser outro: a representação da mitologia grega na obra de Picasso, com o devido realce à Minotauromaquia e a outras representações do Minotauro. Nesta primeira pesquisa, realizada como mestrado e ainda não-publicada, portanto, comecei a trabalhar a confluência entre estas duas formas de produção simbólica, a arte e o mito. Porém, naquele momento, compreendia o mito como fonte de temas e personagens para a figuração. Interessava-me entender por que Picasso, depois de ter posto em questão os padrões tradicionais de representação com suas experiências cubistas, se apropriara destes temas e personagens em sua obra, reconduzindo a mitologia novamente para dentro do universo artístico. Neste livro, parto da mesma idéia de retomada do mito pela arte. Contudo, de um ponto de vista bastante diferente. Percebi que era possível aprofundar e complexificar o entendimento da relação entre arte e mito na mesma época em que se achava Picasso. Em Picasso, de certa maneira, a recuperação do mito se dava de modo mais convencional: o mito era apropriado como tema, levando em consideração sua matriz narrativa. Desta maneira, retomava-se – não sem uma boa dose de ironia – o tratamento tradicional dispensado ao mito e à mitologia depois da secularização da arte a partir do Renascimento e antes de o Iluminismo e a autonomia da arte os banir, ao que parecia definitivamente, do horizonte artístico. Observando obras de Mondrian, de Malevitch, lembrando-me das manifestações vanguardistas, das ações individuais e coletivas, dos readymades de Duchamp, da monumental Merzbau de Schwitters, senti que havia em tudo isso algo não só de mítico, mas, desta vez, também de ritualístico (e por isso incluí o rito nesta nova pesquisa), para além mesmo do declarado esoterismo e espiritualismo de alguns destes artistas. Parecia-me que a estrutura de seus trabalhos apresentava correspondências com a estruturação dos mitos e dos ritos. Se isso de fato ocorresse (conforme eu supunha), operava-se, num plano paralelo àquele da reabilitação da mitologia grega por Picasso, uma verdadeira renovação da relação entre arte, mito e rito. Antes de prosseguir, não posso deixar de dizer que tanto a pesquisa sobre Picasso quanto esta que agora apresento partiram da convicção pessoal de que a relação entre arte e mito, ao longo da história, tem-se mostrado tão constante e fundamental quanto aquela outra, sintetizada no conceito de mímesis, entre arte e realidade, ou,

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melhor dito, entre arte e cognição da realidade. É sabido que as primeiras obras de arte surgiram associadas a um ritual mágico ou religioso.1 Uma estátua de uma deusa da antigüidade, por exemplo, era tida em sua época como objeto de veneração, da mesma forma como, voltando ainda mais no tempo, as rudimentares representações de animais nas cavernas paleolíticas provavelmente serviam a um propósito mágico: acredita-se que aqueles desenhos poderiam ajudar a se ter êxito na caça, no pastoreio ou na lavoura. Nos processos artísticos dos povos ditos «primitivos» – termo que peca pela imprecisão, pois pesquisas mostram ser a forma de pensamento de muitos desses povos tão complexa quanto à do homem «civilizado»2 –, interessa a força que uma imagem (seja ela desenhada, pintada ou esculpida) pode gerar. Os totens, por exemplo, são tidos como o clã em si, a própria personificação do sagrado. Em Arte como antiarte, Ernesto Grassi demonstra que, até o Medievo, a pintura era uma representação terrena do além, um objeto sacro subordinado ao culto e à igreja. «Os mosaicos bizantinos e os vitrais góticos», observa Grassi, «transformavam as próprias paredes numa representação imediata do extraterreno».3 Podemos lembrar que os poetas, para Platão, não faziam seus poemas por efeito da techné, mas por serem inspirados por um deus que os

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No campo da arqueologia, ver os escritos de Denis Valiou, «Un sanctuaire des chasseurs préhistoriques», Actuel, 1991, p. 123 e ss., «Lascaux et l’art magdalenien», Histoire et archeologie – Les dossiers, 87 (oct. 1984); o estudo L’art et la religion des hommes fossiles, de Georges Henri Luquet, p. 109 e ss.; As religiões da pré-história, de André Leroi-Gourhan, pp. 125-126. No campo da antropologia, sobre a relação da arte com o mito e o rito, ver Franz BOAS, Arte primitiva; Lucien Lévy-Bruhl, La mythologie primitive, pp. 133 e 143-148; Claude Lévi-Strauss, «O desdobramento da representação nas artes da Ásia e da América», Antropologia estrutural, pp. 279-304; Roy Sieber, «Masks as Agents of Social Control», compilado por Douglas Fraser, The Many Faces of Primitive Art, p. 261; Peter Buck, «Material representatives of Tongan and Samoan Gods», também compilado por Douglas Fraser, The Many Faces of Primitive Art, p. 103; William Fagg, El arte del África Occidental, p. 14 e ss.; Raymond Firth, «O contexto social da arte primitiva», Elementos de organização social, p. 186 (principalmente sobre as restrições impostas aos artesãos); Robert Layton, A antropologia da arte, pp. 17 e 88. Sobre a relação entre o mito e a arte de gregos e egípcios, ver Arpag Mekhitarian, La peinture égyptienne, p. 17; Herbert Hoffmann, «Dulce et decorum est pro patria mori: the imagery of heroic immortality on Athenian painted vases», compilado por Simon Goldhill e Robin Osborne, Art and Text in Ancient Greek Culture, p. 31 e ss.; T. H. Carpenter, Art and Myth in Ancient Greece; David W. J. Gill. «Expressions of Wealth: Greek Art and Society», Antiquity, 62 (1988), p. 741; David W. J. Gill e Michael Vickers, «Reflected Glory: Pottery and Precious Metal in Classical Greece», Jahrbuch des deutschen archäologischen Instituts, 105 (1990), p. 11 e ss. No campo da história, estética e teoria da arte, ver sobretudo os livros de Herbert Read, Arte y sociedad, pp. 53-54, e Origens da forma nas artes plásticas, p. 78; os estudos de Arnold Hauser, História social da arte e da literatura, p. 5 e ss., e de E. H. Gombrich, Story of Art, p. 40; «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica», de Walter Benjamin; Arte e mito e Arte como anti-arte, de Ernesto Grassi. 2 Ver Claude Lévi-Strauss, «A noção de arcaísmo em etnologia», Antropologia estrutural, pp. 121-123; Mito e significado, pp. 30-32; O pensamento selvagem, pp. 24-38. 3 Ernesto Grassi, Arte como anti-arte, p. 36.

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possuía.4 Assim, as obras não eram tratadas como representações dos deuses, mas como a própria intervenção ou materialização destes. Dentro desta concepção, os artistas exerciam a função de mediadores entre mundo terrestre e mundo divino, não sendo muito mais do que porta-vozes da divindade. Sumariamente, pode-se dizer que, com a gradual secularização da arte, a partir do Renascimento, a produção artística, que, anteriormente, tivera como finalidade representar a própria divindade, passou a ser concebida como o resultado de um trabalho subjetivo, com a intenção última de dar à realidade uma interpretação possível.5 O mito aí se transformou em fábula, num provedor de personagens e narrativas para a arte.6 Assim, despiu-se de seu caráter religioso e transmutou-se em ficção. Por ser também uma forma de figuração, uma vez que transforma a realidade exterior em imagens, e uma forma de figuração, em certa medida, anterior àquela da arte, o mito antecipa o trabalho artístico de apreensão e compreensão da realidade por meio da representação. É conseqüente, portanto, que ele continue a se relacionar com a arte mesmo depois de sua dessacralização, oferecendo a esta temas para a representação.7 George Steiner observa que, no Rococó, no Iluminismo e em certos usos do mito no século XIX, quando «se dá a supressão do numinoso, da concessão sobrenatural», «o símbolo é reduzido à forma» e, assim, «o mito sobrevive a seu conteúdo».8 Em concomitância com os crescentes e cada vez mais veementes movimentos de Esclarecimento (Lumières, Aufklärung), a arte foi gradualmente se tornando mais autônoma. Enquanto aqueles procuravam erradicar os mitos por julgarem-nos contrários à razão e, portanto, incapazes de auxiliar na busca pelo entendimento, a arte se afastava dos mitos como se afastava dos grandes temas. Ela voltava-se agora para o cotidiano, o 4

Ver Platão, Íon; Fedro. Ver Ernesto Grassi, Arte e mito, pp. 86-90. 6 Aristóteles, em sua Poética, já se utilizava da palavra grega mythos – «a alma da tragédia» – para designar tanto a ação a imitar quanto a ação imitativa (ver Eudoro de Sousa, «Introdução», Aristóteles, Poética, p. 57). A primeira acepção conserva o teor de relato de feitos divinos ou fenômenos sobrenaturais característico dos mitos. Mythos, neste sentido, é, portanto, a matéria-prima trabalhada pelo poeta. Na segunda acepção, mythos não é mais do que um enredo, uma fábula – diga-se de passagem, a tradução mais comum para este termo aristotélico – inspirada nos feitos divinos. Criado pelo poeta, o mito passa a obedecer não mais às leis divinas, mas às leis da necessidade e da verossimilhança. Seu mundo não é mais um outro mundo em oposição a este mundo, o mundo terreno, mas simplesmente um mundo possível. 7 Walter Benjamin, como veremos no primeiro capítulo deste estudo, supõe ainda que se mantém um vínculo também entre arte e rito, quando o culto ritual é substituído pelo culto à beleza e ao artista. 8 George Steiner, Presencias reales, p. 267. 5

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trivial, o mundano. Os artistas não se interessavam mais por homens (ou deuses) e feitos que lhes eram superiores, mas por seus iguais. A partir de meados do século XIX, na modernidade tão bem caracterizada por Baudelaire,9 novas realidades foram aos poucos se descortinando e colocando em dúvida as certezas adquiridas até então. Frente a estas novas realidades, a própria percepção do mundo exterior foi alterada. Impôs-se a noção de que a realidade não era dada diretamente, mas que ela se escondia, que havia mais coisas por trás daquilo que se dava à visão – e teorias nesse sentido passaram a surgir e a tomar força, tais como a do inconsciente, de Freud, e a da alienação, de Marx. Frente a isso, uma arte que pretendia imitar a natureza era uma arte que estava em desarmonia com seu tempo porque incapaz de assimilar esta realidade não mais apreensível diretamente. No campo filosófico, sem encontrar parâmetros para compreender esta realidade fugidia, foi preciso criar novas linguagens, novos termos capazes de defini-la. Talvez não seja de se espantar que os três grandes inventores do pensamento moderno, Marx, Nietzsche e Freud, recorreram justamente ao mito e à mitologia – até mesmo identificando-se com certos personagens mitológicos – na tentativa de explicar, cada um à sua maneira, esta nova realidade. Para Marx, «Prometeu é o primeiro santo, o primeiro mártir do calendário filosófico». Em Prometeu, Marx encontra a afirmação da supremacia da consciência humana, «divindade suprema, divindade que não suporta rivais».10 Freud, como bem se sabe, dispôs a figura de Édipo no centro de sua teoria psicanalítica.11 Gostava de chamar a filha Anna, irônica mas afetuosamente, de sua Antígona.12 Nietzsche valeu-se das figuras de Dioniso e Apolo para designar aquelas que, para ele, eram as duas pulsões originárias da arte.13 De Turim, enviou algumas cartas assinadas como «Dioniso» – sobretudo uma célebre a Jacob Burckhardt, datada de 4 de janeiro de 1889.14 A mitologia greco-romana era o vocabulário figurativo básico da Bildung, da educação na Alemanha e na Áustria.

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Charles Baudelaire, «Le peintre de la vie moderne», Critique d’art, p. 355. Karl Marx, «Diferença entre a filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro», compilado em Marx e Engels, Sobre literatura e arte, pp. 13-14. 11 Um estudo sobre a leitura do mito de Édipo por Freud e as implicações dessa leitura para o pensamento europeu posterior encontra-se em Peter L. Rudnytsky, Freud e Édipo, São Paulo: Perspectiva, 2002. 12 Ver Peter Gay, Freud: uma vida para o nosso tempo, pp. 403-404. 13 Ver Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo, pp. 27 e ss. 14 Ver Roberto Calasso, La letteratura e gli dèi, p. 34. 10

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Foi assim que, no final do século XIX e no começo do XX, precisamente em meio a essa crise da tradição de pensamento iluminista e racionalista, cresceu o interesse pelo mito. Vários autores procuraram estabelecer novas significações para velhas narrativas míticas e novas funções para o mito. Poderíamos lembrar, além dos já citados Nietzsche e Freud (em Marx, o mito permanece apenas em filigrana e, sobretudo, enquanto objeto de crítica por seu suposto anacronismo15), os trabalhos de James G. Frazer, E. B. Tylor, Lucien Lévy-Bruhl, Franz Boas, A. Radcliffe-Brown, só para mencionarmos alguns. Na arte, uma quantidade expressiva de artistas – Gauguin, Picasso, Matisse, Stravinsky, Cocteau, Joyce, Rilke, Ernst, Janco etc. – retomou temas da mitologia ou se voltou para culturas primitivas em busca de modelos formais e de inspiração. É neste contexto que se situa este estudo. Ao longo deste livro, dedico-me a mostrar que é possível verificar uma nova relação entre arte, mito e rito para além da apropriação do mito pela arte como motivo a ser representado. Procuro demonstrar como certas obras ou certos conjuntos de obras se constituem de modo análogo à do mito e à do rito, como suas estruturas e lógicas internas se conformam à estruturação dos mitos e dos ritos, sendo possível identificar uma relação mais funda entre estas três formas de produção simbólica. Para tal, divido este estudo em três partes. Na primeira delas, chamada Percurso inicial, como seu título geral indica, procedo a uma abordagem mais ampla a fim de demarcar um contexto para o posterior exame de obras específicas. Penso oferecer, assim, uma visão mais geral da mudança de comportamento que se verifica nas chamadas vanguardas históricas européias, ressaltando como, nos manifestos e nas manifestações artísticas, já se pode observar um certo caráter de fundo ritualístico e primitivo. No final desta parte, defino mito e rito como princípios intelectivos que nos servirão de modelos interpretativos para tentar compreender o processo subjacente a determinadas produções artísticas desta

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«Quem é Vulcano ao lado de Roberts & Cia., Júpiter em comparação com o pára-raios e Hermes em face do Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, governa e modela as forças da natureza na imaginação e pela imaginação, portanto, desaparece quando essas forças são dominadas efetivamente. O que seria da Fama ao lado de Printing House Square?», indaga Marx na «Introdução à Crítica da Economia Política», em Para a crítica da economia política. Do Capital. O rendimento e suas fontes, pp. 47-48. Vale a pena citar o comentário de Carlo Ginzburg: «Essas perguntas [...] pressupunham uma resposta negativa: as formas expressivas do passado, a começar pelas antigualhas mitológicas, eram destinadas a ser varridas do mapa. Sabemos que não foi assim: a mitologia greco-romana e as mercadorias capitalistas revelaramse perfeitamente compatíveis, por exemplo, na propaganda» («Mito: distância e mentira», Olhos de madeira, pp. 73-74).

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época. Noto que, a partir do que foi delineado, podemos reconhecer duas dimensões na arte moderna, as quais proponho chamar dimensão mítica e dimensão ritual. Na segunda e na terceira partes, examino os trabalhos de quatro artistas. Na parte denominada Dimensão mítica, a qual se acha ainda atrelada à noção de obra, estudo a maneira como se institui o processo de constituição das pinturas neoplásticas de Mondrian e suprematistas de Malevitch, orientada por categorias (repetição, autoreferencialidade, ordem, relação entre texto e obra) extraídas da definição de mito exposta no final da primeira parte. Na terceira parte, dedicada à Dimensão ritual, na qual se percebe o estabelecimento de uma nova relação do artista com sua obra e da obra com o espaço circundante e com o espectador, procuro ver como se processam dois trabalhos particulares (a Merzbau, de Schwitters, e La mariée mise à nu par ses célibataires, même, de Duchamp), ressaltando determinados aspectos, enfeixados em categorias (obra sem fim, artista-oficiante, ordem, templo, mistério), comuns às duas peças e condizente com minha compreensão de rito. Antes de terminar esta introdução, cabe salientar o motivo que me levou a escolher quatro artistas e não um, dois ou três, e a trabalhar com estes quatro artistas especificamente. Primeiro, porque queria demonstrar que a minha hipótese de pesquisa não se restringia a um só movimento artístico ou a um só tipo de pintura ou de suporte. Intentava mostrar que uma dimensão mítica e uma dimensão ritual poderiam ser encontradas em mais de um artista. Assim, uma vez que reconhecera a existência de duas dimensões paralelas e desejava, em cada uma delas, comparar produções de artistas diferentes, parece-me que não poderia trabalhar com menos de quatro artistas: no mínimo, dois para cada dimensão. Queria chamar a atenção ainda para que, num mesmo momento, em lugares diferentes da Europa, se produziam formas de arte que, se diversas em superfície (e mesmo nisso, como veremos, não tão diversas assim), se apresentavam, no entanto, similares em seus processos constitutivos. Em função disso, precisava não só de quatro artistas, mas de artistas que estivessem produzindo em diferentes lugares. Acabaram impondo-se, quase, diria, logicamente, os nomes de Mondrian, Malevitch, Schwitters e Duchamp. Com isso, temos coberto um território que abrange Holanda, França, Inglaterra, Alemanha, Noruega e, fora da Europa, também Estados Unidos. Por último, e o mais importante, acredito que Mondrian e Malevitch, por um lado, e Schwitters e Duchamp, por outro, são aqueles que, com suas

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experiências, levaram ao extremo as características que perfazem as dimensões mítica e ritual deste estudo. Além de tudo isso, notei que havia interessantes pontos de contato entre estes artistas, contatos estes que revelavam curiosas relações entre eles. Ao que consta, Schwitters não conheceu pessoalmente nenhum dos outros três,16 mas dedicou, em sua Merzbau, uma gruta a Mondrian e outra a Malevitch. No número 6 de sua revista Merz, publicou O neoplasticismo, de Mondrian, e no número duplo 8-9, reproduziu o Quadrado negro, de Malevitch. Em 1927, Malevitch, que vinha há anos acompanhando as publicações de Schwitters, enviou-lhe uma carta para comentar certas considerações suas sobre arte. Cinco anos antes, escrevera aos «camaradas inovadores da Holanda», cujas publicações lia com regularidade. Em 1922, dois números da revista De Stijl, de responsabilidade, entre outros, de Theo van Doesburg e Mondrian, foram dedicados a Malevitch. Van Doesburg, que era amigo de Mondrian, promoveu com Schwitters uma série de soirées no início da década de 1920. Nos Estados Unidos, a Société Anonyme, organização artística presidida por Duchamp, financiada por Katherine S. Dreier e secretariada por Man Ray, organizou exposições de Mondrian e de Schwitters, entre muitos outros artistas modernos. Em 1926, Dreier conheceu Schwitters pessoalmente em Hannover. O catálogo da exposição de colagens de Schwitters, em Nova York, em 1952, escrito em francês por Tristan Tzara, foi traduzido para o inglês por Duchamp. Mondrian e Duchamp se encontravam freqüentemente na casa de Peggy Guggenheim, quando ambos se achavam em Nova York. Há até mesmo uma foto, de 1942, em que Mondrian e Duchamp aparecem lado a lado.17 A primeira exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo deveria contar com obras escolhidas por Duchamp e Sidney Janis. Nesta seleção, figuravam trabalhos de Schwitters, Malevitch e Mondrian, entre outros. Mas, por falta de verbas, foram excluídos da exibição.18 Estas relações entre eles ajudaram-me a confirmar a noção de um direcionamento mais geral, em alguma proporção integrado, no rumo do que chamo mito e rito. 16

Embora Calvin Tomkins garanta que Duchamp acompanhara Katherine S. Dreier a Hanover, em 1926 (Duchamp: A Biography, p. 287), não se acha outro registro deste possível encontro. Jennifer GoughCooper e Jacques Caumont afirmam, ao contrário, que Duchamp ficara em Paris, enquanto Dreier seguia para Hanover, Dessau, Berlim, Dresden, Praga e Viena (Effemeridi su e intorno a Marcel Duchamp e Rrose Sélavy). 17 Ver Calvin Tomkins, op. cit., p. 336. 18 Aracy Amaral (org.), Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Perfil de um acervo, pp. 18-19.

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Antes de acabar (ou, melhor, começar), peço ao leitor que não leve os termos «mito», «rito» e «ritual» e suas derivações «mítico» e «ritualístico» ao pé da letra. Poderia grafá-los sempre entre aspas, mas achei que seria excessivo. Para mim, tratamse de aportes metodológicos, teóricos e críticos que me servem de modelo interpretativo para tentar compreender o processo artístico de certa arte do início do século XX.

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PARTE I PERCURSO INICIAL

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1 ARTE MODERNA ENTRE MITO E RITO a. Manifestos e manifestações É curioso, e desafiador para o intérprete atual, que a tradição pós-iluminista de crítica da cultura, precisamente aquela que melhor compreendeu certos aspectos da modernidade e da arte moderna, tenha deixado escapar, por uma espécie de preconceito conceitual, uma das articulações fundamentais desta arte. Do ponto de vista desta crítica, as chamadas vanguardas históricas européias são compreendidas como o momento em que a arte se afasta em definitivo de suas origens rituais e míticas. O presente estudo se contrapõe a esta concepção. Um dos principais expoentes desta crítica, Walter Benjamin,19 em seu célebre ensaio sobre as profundas mudanças sofridas pela arte em virtude das novas possibilidades de reprodução técnica,20 afirma que os meios mecânicos evidenciam, pela

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Em geral, Benjamin não considera o mito de forma positiva, principalmente por este se apresentar como a-histórico e, assim, servir à preservação de valores conservadores. Em Das Passagen-Werk, encontra-se aquela que talvez seja sua mais veemente crítica ao mito. Neste livro, defende a idéia de que o mito deveria ser extirpado e substituído pela razão: «Avançar decididamente com o machado afiado da razão, não olhando nem para a direita nem para esquerda de modo a não sucumbir ao horror que acena do fundo da floresta primeva. Cada solo deve em algum momento ter sido feito arável pela razão, deve ter sido limpo das macegas do engano e do mito» («On the Theory of Knowledge, Theory of Progress», The Arcades Project, pp. 456-457). Mesmo quando trata do surrealismo, cuja aproximação com o mito e com a mitologia se revela mais explicitamente em seus temas e em suas figurações, Benjamin, como bem observa Franco Rella, «resiste (...) à tentação do recurso ao mito (...), que, apelando a uma origem divina e extra-histórica, se propõe como uma verdade subtraída precisamente da constrição dos contextos históricos e, portanto, como uma espécie de simplex sigillum veri» (Franco Rella, «Benjamin e l’avanguardia», compilado por Lucio Belloi e Lorenzina Lotti, Walter Benjamin: tempo storia linguaggio, p. 145). No tocante à relação entre arte e mito na modernidade, Theodor W. Adorno, outro expoente desta tradição pós-iluminista, de um modo geral, como podemos observar em boa parte de sua Teoria estética, procura determinar um distanciamento entre imagens estéticas e imagens cultuais, entre arte e práticas mágicas, inserindo a arte no campo da racionalidade («A arte é alérgica à recaída na magia», op. cit., p. 69). Porém, nos Paralipômenos do mesmo livro, Adorno admite que se pode encontrar preservado um resquício de magia na arte depois da ruptura desta com suas origens cultuais: «Se o comportamento estético, antes de toda a objetivação, se separou das práticas mágicas, mesmo de maneira muito vaga, desde então conserva um resquício, como se a mimese remontando ao estrato biológico e tendo perdido toda a função tivesse sido conservada, enquanto impressa na alma, prelúdio à fórmula segundo a qual a superstrutura se revoluciona mais lentamente do que a infra-estrutura. Nos traços do que foi ultrapassado pela evolução geral, toda a arte está maculada de uma hipoteca suspeita como tudo o que não foi bem seguido e é regressivo» (Teoria estética, p. 362). 20 Há duas versões conhecidas do ensaio «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica»: a primeira foi escrita em 1935 (publicada no Brasil pela editora Brasiliense, em Magia e técnica, arte e política, traduzida por Sergio Paulo Rouanet), e a segunda, retomada da primeira, foi preparada em 1936 e só foi publicada postumamente em 1955 (no Brasil, foi traduzida por José Lino Grünewald, com o título «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», e editada pela Abril Cultural, em Os pensadores, e pela Civilização Brasileira, na coletânea de ensaios A idéia do cinema). Neste estudo, depois de cotejar as duas versões, optei por citar, quando o trecho é comum às duas, a tradução da

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primeira vez na história, a emancipação da obra de arte de sua «existência parasitária», a qual «lhe era imposta por seu papel ritualístico».21 Benjamin vincula – e é importante frisar este ponto – o «papel ritualístico» da arte a uma de suas noções mais citadas, a de aura. Definida metaforicamente como «a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja»,22 a aura consiste na existência única da obra de arte, naquilo que é dado apenas uma vez. E é esta unicidade da obra de arte aurática que lhe confere autoridade e que a insere «nesse conjunto de afinidades que se denomina tradição».23 Numa pertinente reavaliação deste conceito, Georges Didi-Huberman atenta para o «poder da distância» que a enigmática definição benjaminiana de aura suscita: O que nos diz esta fórmula célebre, senão que a distância aparece, no acontecimento da aura, como uma distância já desdobrada? Se a lonjura nos aparece, essa aparição não é já um modo de aproximar-se ao dar-se à nossa vista? Mas esse dom de visibilidade, Benjamin insiste, permanecerá sob a autoridade da lonjura, que só se mostra aí para se mostrar distante, ainda e sempre, por mais próxima que seja sua aparição. Próximo e distante ao mesmo tempo, mas distante em sua proximidade mesma: o objeto aurático supõe assim uma forma de varredura ou de ir e vir incessante, uma forma de heurística na qual as distâncias – as distâncias contraditórias – se experimentariam umas às outras, dialeticamente.24

É negado ao espectador a possibilidade de uma aproximação ao objeto aurático que não seja meramente espacial. A aura produz sempre um afastamento. E é justamente a idéia de aura como afastamento, como lonjura, como «fenômeno irrepetível de uma distância», que deixa transparecer o seu caráter cultual. Numa nota de rodapé, que consta somente da segunda versão de «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica», Benjamin precisa a associação entre a noção de aura e a noção de culto: Ao definir a aura como «a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que ela esteja», nós simplesmente fizemos a transposição para as categorias do espaço e do tempo da fórmula que designa o valor do culto da obra de arte. Longínquo opõe-se a próximo. O que está essencialmente longe é inatingível. De fato, a qualidade principal de uma imagem que serve para o culto é de ser inatingível.25

segunda, por ser esta mais completa e revista pelo autor, apesar de apresentar algumas diferenças em relação à primeira. 21 Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino Grünewald, A idéia do cinema, p. 68. 22 Walter Benjamin, op. cit., p. 65. 23 Walter Benjamin, op. cit., p. 66. 24 Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, p. 148. 25 Walter Benjamin, op. cit., p. 67. No ensaio «Sobre alguns temas em Baudelaire», Benjamin repete a mesma idéia ao evocar o conceito de aura: «O que é essencialmente distância é inacessível em sua essência: de fato, a inacessibilidade é uma qualidade fundamental da imagem do culto» (Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, p. 140).

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Benjamin lembra que, em suas origens, a arte era concebida como instrumento mágico. Em função disso, tinha seu valor determinado pelo suporte ritual: era o culto o responsável por incorporar a obra de arte num conjunto de relações tradicionais. «Em outras palavras», explica, «o valor de unicidade, típico da obra de arte autêntica, fundase sobre esse ritual que, de início, foi o suporte de seu velho valor utilitário.»26 Segundo Benjamin, o modo de ser aurático da obra de arte nunca se desvincula totalmente de sua função cultual. Há nela, sempre, pelo menos um resíduo de fundamento teológico. Mesmo a partir do Renascimento, no momento em que a arte começa a se secularizar, subsiste uma essência aurática, «tal qual um ritual secularizado», no «culto dedicado à beleza».27 Assim, nas representações renascentistas de personagens e temas mitológicos e religiosos, verificamos a substituição do antigo caráter mítico-religioso pelo caráter puramente estético. À medida que as próprias obras deixam de estar atreladas a um ritual, transfere-se para a figura do artista a adoração cultual: Cada vez mais, o espectador se inclina a substituir a unicidade dos fenômenos dominantes na imagem de culto pela unicidade empírica do artista e de sua atividade criadora. A substituição nunca é integral, sem dúvida: a noção de autenticidade jamais cessa de se remeter a algo mais do que à simples garantia de originalidade (o exemplo mais significativo é aquele do colecionador, que se parece sempre com um adorador de fetiches e que, mediante a própria posse da obra de arte, participa de seu poder de culto).28

Deste modo, com a secularização da arte, a preocupação com a autenticidade da obra substitui o antigo valor de culto. Na modernidade, com a perda da idéia de obra de arte original em decorrência das mudanças sofridas pela arte em função dos processos reprodutivos, as noções de aura e autenticidade deixam de fazer sentido. Por conseqüência, dentro da lógica benjaminiana, a arte perde a sua histórica e tradicional vinculação com o ritual: deixa de ser contemplada e passa a ser recebida distraidamente. Ao subordinar – e restringir – a noção de ritual à de aura e, com ela, a uma idéia de distanciamento, de recepção contemplativa, Benjamin não permite perceber outra possível forma de manifestação do ritual na arte moderna: uma forma não mais atrelada a uma espécie de adoração cultual distanciada, mas, sim, vinculada, prioritariamente, a uma idéia de proximidade por meio da participação e da ação. O que Benjamin deixa de 26

Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino Grünewald, op. cit., p. 67. 27 Idem. 28 Idem, p. 67n.

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contemplar (até porque seu modo de pensar não o aceitaria) é que, nos movimentos artísticos do início do século XX, o caráter ritualístico, assim como o mítico, da arte volta – ou continua – a se manifestar e, como na compulsão à repetição de um afeto ou de um trauma que havia sido conscientemente reprimido (no caso em questão, pela crítica iluminista), retorna com uma força tão ou mais intensa do que na sua primeira manifestação.29 Se examinarmos com atenção os vários relatos das mais diferentes ações dos artistas do início do século passado, se observarmos as próprias obras e se atentarmos para os manifestos, veremos que a arte desta época parece recuperar, em alguma medida, suas origens míticas e ritualísticas, porém de uma maneira renovada: ela não é mais simples suporte para figuração de personagens e temas mitológicos, mas uma forma mítica em si; ela não é mais um objeto no ritual, mas o ritual em si; ela não é mais motivo de contemplação, de adoração, mas aquilo que instaura o culto; ela não é mais somente distância, mas também aproximação. Não é por acaso que Jean Crotti, no «Manifesto tabu», se refere à arte que está sendo produzida na década de 1920 como «uma Religião nova»,30 da mesma forma que Tristan Tzara declara no «Dadá manifesto sobre o amor débil e o amor amargo»: «prefiro acreditar que dada é apenas uma divindade de segunda ordem que deve ser simplesmente colocada ao lado das outras formas do novo mecanismo das religiões de interregno».31 E Georges Bataille já observara em seu livro sobre Manet: As diversas pinturas depois de Manet são os diversos encontros possíveis nesta região nova, onde o silêncio reina profundamente, onde a arte é o valor supremo: a arte em geral, isto quer dizer o homem individual, autônomo, desligado de todo empenho, de todo sistema dado (e do individualismo mesmo). A obra de arte toma aqui o lugar de tudo o que, no passado – no passado mais distante –, foi sagrado, foi majestoso.32 29

Em «Além do princípio do prazer», Sigmund Freud demonstra que possuímos a tendência a repetir simbolicamente (por meio de sonhos, de brincadeiras, de jogos etc.) um trauma ou afeto reprimido. Quando isto acontece, este trauma costuma ser revivido, por meio da repetição, de forma mais violenta do que em sua primeira vez. Explica Freud: «Nos jogos infantis, cremos compreender que a criança repete também o sucesso desagradável, porque com ele consegue dominar a violenta impressão, experimentada muito mais completamente do que o foi possível ao recebê-la» (Obras completas de Sigmund Freud – Tomo III, p. 2524). Em «O estranho», Freud fala do impulso à repetição como uma manifestação por vezes demoníaca: «a atividade psíquica inconsciente está dominada por um automatismo ou impulso de repetição (repetição compulsiva), inerente, com toda probabilidade, à essência mesma dos instintos, munida de poderio suficiente para sobrepor-se ao princípio do prazer; um impulso que confere a certas manifestações da vida psíquica um caráter demoníaco, que ainda se manifesta com grande nitidez nas tendências da criança pequena, e que domina parte do curso que segue à psicanálise do neurótico» (Obras completas de Sigmund Freud – Tomo III, p. 2496. Grifo meu). 30 Jean Crotti, «Manifesto tabu», reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco dada, p. 305. 31 Tristan Tzara, «Dada manifesto sobre o amor débil e o amor amargo», coligido em Sete manifestos dada, p. 39. 32 Georges Bataille, Manet, p. 64.

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Proponho que, antes de passarmos à análise de como se constitui o que identifico como, de um lado, uma dimensão mítica e, de outro, uma dimensão ritual em quatro artistas (Piet Mondrian, Kasimir Malevitch, Kurt Schwitters e Marcel Duchamp), notemos como é possível vislumbrar a instauração de uma certa ritualização dentro de um quadro artístico mais amplo da época em que se encontram os artistas a serem estudados. Acredito que a construção desta visão mais geral do que estava em curso no ambiente artístico europeu ajudará a mostrar como os trabalhos dos artistas escolhidos não se apresentam como casos isolados. As famosas soirées dadaístas e futuristas (nas quais, com exceção de Mondrian,33 os artistas cujas obras examinarei, tomaram parte) e outras manifestações públicas das primeiras décadas do século passado explicitam uma mudança de comportamento tanto na recepção quanto na produção da arte, mudança esta que, como veremos, se acha implícita em determinadas obras particulares. Como bem nota Peter Bürger em sua Teoria da vanguarda,34 os movimentos artísticos de então promovem uma transformação nas características da arte autônoma, que são: a separação da arte em relação à práxis vital, a produção individual e a conseqüente recepção também individual. Quanto a esta última, os movimentos de vanguarda fazem face à recepção solitária, à contemplação silenciosa. Suas manifestações provocam respostas do público. Esclarece Bürger: «As reações do público irritado perante a provocação de um ato dadá, que vão desde os apupos até à violência física, são decididamente de natureza coletiva».35 E os artistas estavam conscientes do que faziam, como atesta Hans Richter 33

Mas, conforme relata Harry Holtzman, Mondrian e Theo van Doesburg se deliciavam assistindo a algumas soirées, em Paris, depois das quais chegaram a assinar as cartas que trocavam como Dada-Does e Dada-Piet (ver Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 124). Marcel Duchamp não chegou a tomar parte ativa das manifestações parisienses, porém, em Nova York, realizou ações – como inscrever um urinol para uma exposição de arte e afixar balões vermelhos, brancos e azuis no arco da Washington Square –de caráter similar àquelas que descreverei nas páginas seguintes (ver Calvin Tomkins, Duchamp: A Biography, p. 193). 34 Para Bürger, na noção de vanguarda, enquadram-se o dadaísmo, o primeiro surrealismo e a vanguarda russa posterior à Revolução de Outubro, sendo algumas características também aplicadas ao futurismo italiano e ao expressionismo alemão. Segundo Bürger, estes movimentos possuem um ponto em comum, embora difiram em outros aspectos: «não se limitam a rejeitar um determinado processo artístico, mas a arte do seu tempo na sua totalidade, realizando, portanto, uma ruptura com a tradição. As suas manifestações extremas dirigem-se especialmente contra a instituição arte, tal como se formou no seio da sociedade burguesa» (Teoria da vanguarda, p. 67n). Quanto aos outros movimentos artísticos do início do século XX, Bürger salienta: «No que toca ao cubismo, este não perseguiu o mesmo objetivo, mas questionou o sistema de representação da perspectiva central vigente na pintura desde o Renascimento. Nesta medida, pode ser integrado entre os movimentos históricos de vanguarda, embora não partilhe a sua tendência fundamental para a superação da arte na práxis vital» (Idem). 35 Peter Bürger, Teoria da vanguarda, p. 95.

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nesta passagem do livro em que conta a história do Dadá – o mais radical e revolucionário movimento artístico europeu da época, porque era o único a propor a superação da própria idéia de arte: Campainhas, tambores, chocalhos, batidas na mesa ou em caixas vazias animavam as exigências selvagens da nova linguagem, na nova forma, e excitavam, a partir do físico, um público que inicialmente quedava atordoado atrás dos seus copos de cerveja. Pouco a pouco eram sacudidos e despertados de seu estado de letargia a tal ponto que irrompiam num verdadeiro frenesi de participação. ISTO era arte, isto era vida, e era isto o que se QUERIA.36

Quanto à produção, em suas manifestações extremas, «a vanguarda não propõe uma criação coletiva, mas chega a negar radicalmente a categoria de produção individual».37 É o caso dos readymades de Duchamp e das receitas de Tzara e André Breton para se produzir um poema.38 Ao sugerir uma fórmula, o artista reconhece em qualquer indivíduo a faculdade de escrever poemas. Ao assinar objetos produzidos em série, ele contraria e critica a produção individual e a noção corrente desde o Romantismo do artista como gênio criador: A assinatura, que precisamente conserva a individualidade da obra, é o objeto do desprezo do artista, quando lança produtos anônimos, fabricados em série, contra toda a pretensão de criação individual. A provocação de Duchamp não só revela que o mercado da arte, ao 36

Hans Richter, Dadá: arte e antiarte, p. 17. Peter Bürger, op. cit., p. 93. 38 Ensina Breton: «Instale-se confortavelmente no lugar mais favorável à concentração de sua mente e faça com que lhe tragam material de escrita. Ponha-se no estado mais passivo ou receptivo possível. Abstraia de seu gênio, de seu talento, e também do gênio e do talento dos outros. Diga a si mesmo que a literatura é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo. Escreva rápido, sem qualquer assunto preconcebido, rápido bastante para não reter na memória o que está escrevendo e para não se reler. A primeira frase surgirá por si mesma, a tal ponto e verdade que, a cada segundo, ocorre uma frase estranha ao nosso pensamento consciente, que mais não quer do que se exteriorizar. É muito difícil pronunciar-se sobre o caso da frase seguinte; ao que tudo indica, ela participa, ao mesmo tempo, de nossa atividade consciente e da outra, se admitirmos que o fato de ter escrito a primeira implica um mínimo de percepção. Isto, aliás, deve importar-lhe pouco: é nessas coisas que reside a maior parte do interesse suscitado pelo jogo surrealista. É sempre verdade que a pontuação certamente se opõe à continuidade absoluta do fluxo de que nos ocupamos, embora ela pareça tão necessária quanto a distribuição de nós numa corda em vibração. Prossiga enquanto sentir vontade de fazê-lo. Confie no caráter inesgotável do murmúrio. Se o silêncio ameaça estabelecer-se em virtude de um erro seu, minúsculo que seja – um erro, por exemplo, de desatenção – interrompa, sem hesitar, uma linha demasiado clara. Logo depois da palavra cuja origem lhe pareça suspeita escreva uma letra qualquer, a letra l, por exemplo, sempre a letra l, e traga de volta o arbitrário impondo esta letra como inicial à palavra seguinte» («Manifesto do surrealismo (1924)», Manifestos do surrealismo, pp. 44-45). E Tzara, em «Para fazer um poema dadaísta»: «Pegue num jornal. / Pegue numa tesoura. / Escolha no jornal um artigo que tenha o tamanho que pensa dar ao seu poema. / Recorte o artigo. / Recorte seguidamente com cuidado as palavras que formam o artigo e meta-as num saco. / Agite com cuidado. / Seguidamente, retire os recortes um por um. / Copie conscienciosamente / segundo a ordem pela qual foram saindo do saco. / O poema parecer-se-á consigo. / E você tornou-se um escritor infinitamente original e duma sensibilidade encantadora, ainda que incompreendida pelo vulgo» (Sete manifestos dada, p. 42). 37

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atribuir mais valor à assinatura do que à obra, é uma instituição controversa, como ainda faz vacilar o próprio princípio da arte na sociedade burguesa, segundo o qual o indivíduo é o criador das obras de arte.39

Se levarmos um pouco mais adiante as considerações de Bürger, podemos observar que os artistas dos movimentos artísticos do início do século XX se valem ainda de um outro expediente na tentativa – frustrada, porque sempre se reconhece a autoria dos trabalhos – de suprimir as marcas de individualidade: mesmo tendo produzido suas obras sozinhos, eles as apresentam em grupo, forjando um sujeito coletivo.40 Não há lugar em que este sujeito coletivo se constitua de maneira mais evidente que na própria enunciação de seus discursos, isto é, nos manifestos das mais diversas correntes vanguardistas: não me refiro apenas às várias assinaturas apostas a muitos destes, mas, em especial, ao uso freqüente da primeira pessoa do plural – e aqui aludo a um uso do nós para além de sua utilização retórica, para um uso mais literal, no qual o nós não compreende apenas uma voz individual, mas mais de uma voz que fala ao mesmo tempo e em conjunto. Kasimir Malevitch intitulou «Nós queremos...» o manifesto, de 1920, que atribuiu ao Comitê de Criação de Unovis, escola artística 39

Peter Bürger, op. cit., p. 93. Annabelle Melzer salienta a importância do grupo para os membros do Dadá. Ela chama a atenção para o fato de que eles andavam sempre juntos, escreviam alguns poemas em conjunto, iam para os cafés em grupos: «A importância do “grupo” era suprema. No “Café de la Terasse”, primeiro ponto de encontro deles em Zurique, Tzara, Serner e Arp juntos escreveram um ciclo de poemas intitulado “A hipérbole do cabeleireiro do crocodilo e a vara ambulante”. O ponto de encontro foi logo transferido para o “Odéon” (em simpatia com uma greve de garçons no “Terasse”) onde duas ou três mesas não eram suficientes para abarcar o barulhento grupo de amigos dadá. Eles terminariam reservando metade da esquina Rami-Strasse do “Odéon”. (...) Quando Zurique adormecia sob a pálida lua em forma de foice, Hennings ia para casa com Ball; Richter e Tzara, para os quartos adjacentes no Hotel Louisatquai. Só Janco e Arp iam para suas respectivas casas; Janco com sua esposa francesa, seu filho e seus dois irmãos mais jovens no enclave familiar de um apartamento burguês, e Arp, para sua reclusão com Sophie Taeuber no subúrbio de Zurique. Mesmo à noite, o grupo mal se separava» (Dada and Surrealist Performance, pp. 65-66). Mario Perniola reconhece que alguns dos grupos de artistas formados nas vanguardas apresentam um caráter sectário: «Para Tzara, Picabia, Duchamp e boa parte dos dadaístas, a participação no grupo dadaísta não implica outra coisa que a adesão a uma perspectiva comum, a intervenção solidária em ações coletivas e eventualmente uma relação de amizade afetuosa. Ao contrário, os dadaístas berlinenses (Huelsenbeck, Hausmann...) e Breton tendem a atribuir ao grupo um significado e um alcance muito mais solenes e exclusivos. Para eles, as relações correntes entre os dadaístas assumem um caráter privilegiado e eminentemente histórico, que os colocam acima das relações humanas comuns. O conceito de grupo que daí deriva é similar à seita, a uma microssociedade de perfeitos que exclui de si mesma todo o resto da humanidade: a sua ambição fundamental é de constituir em si mesma a realização prática e coletiva da arte. No grupo dadaísta berlinense, já estão implícitos muitos aspectos sectários: uma tendência a transformar as teses sustentadas numa propriedade a ser defendida possessivamente, um estado de suspeita recíproca oculto atrás de uma ideologia comunitária, uma seriedade de propósitos estranha à ironia do Cabaret Voltaire de Zurique, um movimento de fechamento e de suspeita aos estranhos (demonstrado, por exemplo, na recusa em aceitar no grupo Kurt Schwitters, que conduzia em Hanover experiências a pleno título dadaístas), um processo de institucionalização com a conseguinte luta pelo poder entre Huelsenbeck e Hausmann» (L’alienazione artistica, pp. 216-217). 40

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estatal, que ele dirigia na época. Neste manifesto, estabeleceu uma subjetividade coletiva por meio da reafirmação, a cada frase, do pronome pessoal nós. Primeiro, valeu-se deste pronome não apenas como uma maneira de determinar um enunciador coletivo no discurso, mas também para, por meio da reiteração de um desejo comum, demonstrar a força desta coletividade: Que a destruição do velho mundo artístico seja traçada sobre a palma de suas mãos. NÓS QUEREMOS NÓS QUEREMOS NÓS QUEREMOS NÓS QUEREMOS

Depois, utilizou o nós como uma maneira de caracterizar e identificar o grupo com os tempos modernos: Que a face da época atual se transforme na nossa face. Nós somos jovens, nós somos aqueles nos quais reside a resposta à juventude eterna do mundo. (...) Nós somos a supremacia do novo, nós só podemos criar, somos jovens e puros, graças a nós se desenvolverá a arte nova; não depositaremos nossa sombra sobre o novo, seremos o fogo e transmitiremos a força ao novo.41

Um ano antes, no manifesto cujo título também indicava a pluralidade, «Nossas tarefas», Malevitch não só lançava mão de um nós, mas também exigia «a criação de um coletivo mundial para os negócios artísticos».42 A mesma vontade de se fundar um coletivo artístico era encontrada no artigo «Rumo a uma construção coletiva», publicado no número 6 da revista De Stijl e assinado por Theo van Doesburg e C. van Eesteren. Neste, a instituição de um coletivo de artistas era compreendida como elemento essencial para aproximar vida e arte: Devemos compreender que arte e vida não constituem mais campos distintos. E para isto devemos eliminar a idéia de «arte» como uma ilusão avulsa da vida real. O termo «arte» não tem mais para nós algum significado. Em seu lugar, exigimos a construção do nosso ambiente segundo leis criativas derivadas de um princípio constante. Estas leis, análogas àquelas econômicas, matemáticas, técnicas, higiênicas, conduzem a uma nova unidade plástica. Para definir as relações recíprocas que se põem entre estas, é necessário compreendê-las e determiná-las. Até hoje ninguém examinou cientificamente as leis construtivas da criação humana. É impossível considerá-las imaginárias. Estas existem; mas se podem definir somente através de uma obra coletiva e com base na experiência...43 41

Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», Écrits, pp. 261 e 262 respectivamente. Kasimir Malevitch, «Nos Tâches», op. cit., p. 273. 43 Theo van Doesburg e C. van Eesteren, «Rumo a uma construção coletiva», citado por Hans L. C. Jaffé, Per un’arte nuova: De Stijl 1917-1923, p. 247. 42

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Em outro lugar da Europa, F. T. Marinetti, mesmo assinando sozinho o primeiro manifesto futurista, definiu as vontades e as características de um grupo, ao utilizar-se do nós e do possessivo nosso(a) em nove de suas onze famosas assertivas: 1. Noi vogliamo cantare l’amor del pericolo, l’abitudine all’energia e alla temerità. 2. Il coraggio, l’audacia, la ribelione, saranno elementi essenziali della nostra poesia. 3. La letteratura esaltò, fino ad oggi, l’immobilità pensosa, l’estasi e il sonno. Noi vogliamo esaltare il movimento aggressivo, l’insonnia febbrile, il passo di corsa, il salto mortale, lo schiaffo ed il pugno. 4. Noi affermiamo che la magnificenza del mondo si è arricchita di una bellezza nuova: la bellezza della velocità. Un automobile da corsa, col suo cofano adorno di grossi tubi simili a serpenti dall’alito esplosivo... un automobile ruggente, che sembra correre sulla mitraglia, è più bello della Vittoria di Samotracia. 5. Noi vogliamo inneggiare all’uomo che tiene il volante, la cui asta ideale attraversa la Terra, lanciata a corsa, essa pure, sul circuito della sua orbita. (...) 8. Noi siamo sul promontorio estremo dei secoli!... Perché dovremmo guardarci alle spalle, se vogliamo sfondare le misteriose porte dell’Impossibile? Il Tempo e lo Spazio morirono ieri. Noi viviamo già nell’assoluto, poiché abbiamo già creata l’eterna velocità onnipresente. 9. Noi vogliamo glorificare la guerra – sola igiene del mondo – il militarismo, il patriottismo, il gesto distruttore dei libertarii, le belle idee per cui si muore e il disprezzo della donna. 10. Noi vogliamo distruggere i musei, le biblioteche, le accademie d’ogni specie, e combattere contro il moralismo, il femminismo e contro ogni viltà opportunistica o utilitaria. 11. Noi cantaremo le grandi folle agitate dal lavoro, dal piacere o dalla sommossa; cantaremo il vibrante fervore notturno degli arsenali e dei cantieri incendiati da violente lune elettriche; le stazioni ingorde, divoratrici di serpi che fumano; le officine appese alle nuvole pei contorti fili dei loro fumi; i ponti simili a ginnasti giganti che scavalcano i fiumi, balenanti al sole con un luccichio di coltelli; i piroscafi avventurosi che fiutano l’orizzonte, le locomotive dall’ampio petto, che scalpitano sulle rotaie, come enormi cavalli d’acciaio imbrigliati di tubi, e il volo scivolante degli aeroplani, la cui elica garrisce al vento come una bandiera e sembra applaudire come una folla entusiasta.44

Schwitters, ao saudar o Dadá holandês, representado pelo seu amigo Theo van Doesburg, no primeiro número de sua revista Merz, serviu-se do nós para falar em nome de um grupo: «Nós despertamos o dadaísmo adormecido da massa. Nós somos profetas. Nós levamos à multidão de ouvintes, como se fosse uma flauta, sons de beleza dadaísta».45 44

F. T. Marinetti, «Fondazione e manifesto del futurismo», citado por Claudia Salaris, Marinetti: arte e vita futurista, pp. 59-60. Marjorie Perloff chama a atenção para a subordinação da individualidade ao nós nas primeiras frases deste mesmo manifesto, nas quais Marinetti narra uma excursão de carro com seus amigos: «essas imagens não apontam para o eu; elas não refletem a luta interior nem os contornos de uma consciência individual. Pelo contrário, a individualidade de Marinetti é subordinada ao “nós” comunal (a primeira palavra do manifesto), dirigindo-se ao “você” da multidão, à massa que ele espera provocar, deliciar» (O momento futurista, p. 163). 45 Kurt Schwitters, «Dadaismo in Olanda», reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco dada, p. 514.

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Como em qualquer ato comunicacional, os manifestos dos artistas pressupunham um receptor.46 Porém, estes pareciam não visar um receptor individual. O fato de se apresentarem como uma coletividade podia ser visto como um indício da necessidade de atingir uma outra coletividade.47 Muitas vezes, esta outra coletividade vinha marcada no próprio discurso. Na «Declaração de 27 de janeiro de 1925», os surrealistas, reunidos sob um nós coletivo, dialogavam primeiro com os críticos: Eu égard à une fausse interprétation de notre tentative stupidement répandue dans le public, Nous tenons à déclarer ce qui suit à toute l’ânonante critique littéraire, dramatique, philosophique, exégétique et même théologique contemporaine: 1º Nous n’avons rien à voir avec la littérature, Mais nous sommes très capables, au besoin, de nous en servir comme tout le monde.

Mais adiante, voltavam sua fala à sociedade: 6º Nous lançons à la Société cet avertissement solennel: Qu’elle fasse attention à ses écarts, à chacun des faux-pas de son esprit nous ne la raterons pas. 7º A chacun des tournants de sa pensée, la Sociéte nous retrouvera.

E, por fim, a todo o mundo ocidental: 9º Nous disons plus spécialment au monde occidental: le SURRÉALISME existe – Mais qu’est-ce donc que ce nouvel isme qui s’accroche maintenant à nous? – Le SURRÉALISME n’est pas une forme poétique. Il est un cri de l’esprit qui retourne vers lui-même et est bien décidé à broyer désespérément ses entraves,

46

Para Émile Benveniste, o tu está pressuposto no discurso do eu: «O ato individual pelo qual se utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições necessárias da enunciação. (...) Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância do discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno» (Problemas de lingüística geral II, pp. 83-84). 47 A idéia de um receptor coletivo pressuposto pelo discurso do enunciador igualmente coletivo, que sugiro existir nos manifestos acima citados, poderia ser descrita pela noção de leitor fictício, desenvolvida por Wolfgang Iser para tentar dar conta do diálogo entre narrador e leitor que começa a se verificar nos romances a partir do século XVIII. Segundo Iser, «o leitor fictício indica menos o leitor intencionado do que aquela disposição do público de leitores sobre a qual o texto quer agir. Pois não se pode esquecer que o leitor fictício incorpora na prosa narrativa apenas uma perspectiva de apresentação que é entrelaçada com a do narrador, a dos protagonistas e a da trama. Em conseqüência, as disposições do público, tais como evocadas pelo leitor fictício, são intercaladas no jogo interativo; tal tipo de jogo se realiza entre as perspectivas de apresentação do texto e se desenrola durante a leitura. Se por isso o leitor fictício se refere a determinados dados e expectativas históricas do público visado, isso ocorre geralmente com o fito de fazer as disposições assim marcadas interagirem com as demais perspectivas de apresentação. Nesse sentido, o leitor fictício evidencia as preferências do público; estas sofrem constantes modificações por parte do texto e lhe servem como base – questionável – para a comunicação» (O ato da leitura, p. 84).

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et au besoin par des marteaux matériels.48

No manifesto «Bofetada no gosto do público», de 1912, os futuristas russos, reunidos sob um nós que se identificava aos novos tempos, se dirigiam a um você, compreendido como um coletivo rival: Você que lê nossa nova, primeira, inesperada. Nós somos somente a face do nosso Tempo. Para retermos o coração do tempo na arte das palavras.49

Como o próprio título do manifesto dos futuristas russos já indicava, o receptor coletivo pressuposto pelos discursos não era outro que o público em geral. Comentando os manifestos do futurismo italiano, Marjorie Perloff observa que Marinetti «usa a indagação, a exortação, a repetição, a digressão, tropos e figuras retóricas para puxar o público para dentro do raio do discurso».50 É deste modo que Francis Picabia constrói a sua relação com o público em «Manifesto canibal dadá», lido por André Breton na noite de 6 de março de 1920, em Paris.51 Neste, o diálogo com o espectador se estabelecia desde o início, quando o orador convocava-o a praticar uma ação: Vous étes tous accusés: levez-vous. L’orateur ne peut vous parler que si vous étes debout. Debout comme pour la Marseillaise, debout comme pour l’hymne russe, debout comme pour le God save the king, debout comme devant le drapeau. Enfin debout devant DADA qui représente la vie et qui vous accuse de tout aimer par snobisme, du moment que cela coùte cher. Vous vous étes tous rassis? Tant mieux, comme cela vous allez m’écouter avec plus d’attention. Que faites vous ici, parqués comme des huitres sérieuses – car vous étes sérieux n’est-cepas? Sérieux, sérieux, sérieux jusqu’à la mort.52

A presença não apenas discursiva, mas também física de um receptor coletivo era esperada pelos artistas. Freqüentemente, os manifestos eram lidos em locais 48

Déclaration du 27 Janvier 1925, publicada na revista La Révolution Surréaliste. Esta declaração foi assinada por Louis Aragon, Antonin Artaud, Jacques Baron, Joe Bousquet, J.-A. Boiffard, André Breton, Jean Carrive, René Crevel, Robert Desnos, Paul Éluard, Max Ernst, T. Fraenkel, Francis Gérard, Michel Leiris, Georges Limbour, Mathias Lübec, Georges Malkine, André Masson, Max Morise, Pierre Naville, Marcel Noll, Benjamin Péret, Raymond Quéneau, Philippe Soupault, Dédé Sunbeam, Roland Tual. Grifos meus. 49 David Burliuk, A. Krutchonik, Vladimir Maiakovsky e V. Khlebnikov, «Bofetada no gosto do público», citado por Valentine Marcadé, Le Renouveau de l’art pictural russe, p. 210. 50 Marjorie Perloff, O momento futurista, p. 164. 51 Conforme conta Michel Sanouillet, Dada à Paris, p. 164. 52 Francis Picabia, «Manifeste cannibale dada», publicado em Dadaphone, 7 (mar. 1920), p. 4.

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públicos. Por isso a predileção pelas grandes soirées – e lembremos que, nestas noitadas, os artistas se constituíam como um sujeito coletivo não só por meio do discurso, mas também por apresentarem seus manifestos, poemas, pinturas e esculturas como um grupo unido. Realizadas em bares, casas de espetáculo ou salas de teatro, as soirées exigiam, pelo seu formato, a presença de uma platéia. No entanto, não bastava que apenas existisse uma platéia: era preciso que esta platéia fosse ativa e, mais do que isso, que respondesse como um corpo único. E a maneira de fazer com que os espectadores respondessem como um corpo único era provocá-los, ofendê-los até que as reações negativas não se dessem isoladamente, mas que se unificassem numa só oposição. «Et toujours vous serez contre nous. Car étant pour nous vous serez contre nous», desafiava Georges Ribemont-Dessaignes.53 A idéia era trazer o público para dentro do espetáculo. Comentam os críticos italianos Gian Rizzo Morteo e Ippolito Simons, na introdução a uma antologia de peças dadaístas: O espetáculo representado sobre o palco assume então a função de isca, de pavio, destinado a desencadear uma reação reversível platéia-palco; mas sobretudo ajuda a criar uma «situação» teatral coletiva, além da situação dramática contingente (isto é, aquela que se dá sobre o palco e aquela que se verifica na platéia).54

Em geral, era com desprezo e agressividade que os artistas se dirigiam aos espectadores, como no manifesto Ao público, escrito e lido por Ribemont-Dessaignes na matinê de 5 de fevereiro de 1920, durante uma manifestação, na sala do Grand-Palais. Notemos que, neste manifesto, o sujeito coletivo, o nós dos artistas, se instituía como um grupo numa posição superior e diametralmente oposta à audiência inferior, que era sumariamente ofendida: Avant de descendre parmi vous afin d’arracher vos dents gâtés, vos oreilles gourmeuses, votre langue pleine de chancres. Avant de briser vos os pourris – D’ouvrir votre ventre cholérique, et d’en retirer, à l’usage des engrais pour l’agriculture, votre foie trop gras, votre rate ignoble et vos rognons à diabète – Avant d’arracher votre vilain sexe incontinent et glaireux – Avant d’éteindre ainsi votre appétit de beauté, d’extases, de sucre, de philosophie, de poivre et de concombres métaphysiques, mathématiques et poétiques – Avant de vous désinfecter au vitriol et de vous rendre ainsi propres et de vous répoliner avec passion – avant tout cela – Nous allons prendre un grand bain antiseptique – 53

Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce qu’il ne faut pas dire sur l’art», Dada: manifestes, poemes, articles, projets (1915-1930), p. 30. 54 Gian Renzo Morteo e Ippolito Simons, Teatro Dada, p. 13.

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Et nous vous avertissons – C’est nous les assassins – De tous vos petits nouveaux-nés – Et pour finir il y a une chanson – Ki Ki Ki Ki Ki Ki Ki Voici Dieu à cheval sur un rossignol – Il est beau, il est laid – Madame, ta gueule elle sent la laitance de souteneur. Le matin – Car le soir on dirait le cul d’un ange amoureux d’un lis – C’est joli, n’est-ce pas? Adieu, mon ami.55

Ao se colocar numa posição superior, da qual deveria descer se quisesse chegar ao público, o artista garantia uma separação entre o seu grupo e o grupo composto pela audiência, como se houvesse necessidade de se estabelecer uma diferença irredutível entre o enunciador e o receptor. Estes dois grupos deveriam ser vistos como opostos, como dois pólos impossibilitados de dialogar porque incapazes de compreender uns aos outros, tal como mostra o final do «Manifesto do movimento DADA», publicado no Bulletin Dada, o número 6 da revista Dada: Vous ne comprenez pas n’est-ce que nous faisons. Eh bien chers amis nous le comprenons encore moins. Quel bonheur hein vous avez raison.56

As ofensas ao público tinham uma intenção imediata: fazê-lo sair de sua apatia. Referindo-se às manifestações dadaístas, Benjamin observa que «a diversão tornou-se um exercício de comportamento social», em contraposição à postura anti-social de concentração frente a uma obra de arte – seja ela uma pintura, uma escultura, um

55

Georges Ribemont-Dessaignes, «Au public», Dada: manifestes, poemes, articles, projets (1915-1930), pp. 11-12. 56 Francis Picabia, «Manifeste du mouvement DADA», Bulletin Dada, 6 (fev. 1920), p. 2. É interessante destacar que, depois de constituído o grupo pela repetição da primeira pessoal do plural, o nós coletivo se transforma, neste mesmo manifesto, num eu (moi): «J’aimerais coucher encore une fois avec le pape, vous ne comprenez pas? Moi non plus comme c’est triste» (Idem). Em outros manifestos, verifica-se a mesma transformação do nós num eu, porém somente após a repetição enfática do coletivo. Em outro «Manifeste du mouvement Dada», este assinado por Louis Aragon e impresso na edição da revista Littérature dedicada à publicação de vinte e três manifestos dadaístas, o nós também se torna um eu coletivo que, da mesma forma que o reiterado uso da palavra Dadá, parece designar o movimento como um todo: «nous espérons que la nouveauté qui sera la même chose que ce que nous ne voulons plus, s’imposera moins pourrie, moins égoïste, moins mercantile, moins obtuse, moins immensement grotesque. / Vivent les concubines et les concubistes. Tous les membres du Mouvement DADA sont présidents. / MOI / Tout ce qui n’est pas moi est incompréhensible. / Que je l’aille chercher aux rivages du Pacifique ou que je le ramasse dans les contrées de mon existence, le coquillage que j’appliquerai à mon oreille retentira de la même voix que je prendrai pour celle de la mer et qui ne sera que le bruit de moi-même» (Littérature, 13 (mai 1920), pp. 1-2).

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poema, um romance –, típica da «burguesia degenerada»57; e esta observação benjaminiana poderia ser estendida a outras manifestações artísticas do período que se constituíam a partir da resposta do público a uma ação ou uma série de ações dos artistas. Na primeira versão de «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica», Benjamin complementa: O comportamento social provocado pelo dadaísmo foi o escândalo. Na realidade, as manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas de reconstrução histórica.58

Para Benjamin, «o intento era, antes de tudo, de chocar a opinião pública»: «De espetáculo atraente para o olho e de sonoridade sedutora para o ouvido, a obra de arte, mediante o dadaísmo transformou-se em choque».59 E o choque aqui deve ser compreendido no sentido freudiano do termo: a obra ou, mais precisamente, a manifestação artística deveria ferir o espectador ou ouvinte: ela «adquiriu poder traumatizante».60 Bürger, reelaborando o conceito de Benjamin e desdobrando-o para abarcar toda a arte de vanguarda, escreve que o choque «procura-se como estímulo para

57

Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino Grünewald, A idéia do cinema, p. 89. 58 Walter Benjamin, «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica», Magia e técnica, arte e política, p. 191. Morteo e Simons, ao estudar o teatro dadá, falam em algo parecido à «qualidade tátil»: «a atitude dos dadaístas nos confrontos do teatro, compreendido como instrumento de ruptura e complexo de comunicação; ruptura sobre o plano da lógica da linguagem e da lógica da inteligência, até fazer o público perder cada noção pré-constituída de bom e de belo (...) com o propósito de obter uma participação sobre o plano puramente sensorial. A operação consiste portanto no destruir os esquemas críticos préconstituídos, anulando em conseqüência cada forma de resistência lógica até ultrapassar a soleira sobre a qual se cria uma corrente recíproca entre palco e platéia, e o espectador, de sujeito puramente passivo, torna-se ativo» (Teatro Dada, p. 8. Grifo meu). 59 Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino Grünewald, A idéia do cinema, p. 89. No ensaio «Sobre alguns temas em Baudelaire», Benjamin, a partir da leitura de «Além do princípio do prazer», de Freud, desenvolveu a idéia de que a própria percepção da realidade se revela como choque, em especial daquela realidade moderna descrita por Baudelaire: «O mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada indivíduo» (Op. cit., Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, p. 124). Na estrutura dos poemas de Baudelaire, «a experiência do choque é uma das que se tornaram determinantes» (Idem, p. 112): «Ele determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a desintegração da aura na vivência do choque» (Idem, p. 145). Já neste ensaio, Benjamin menciona o que desenvolverá mais em «A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica», a saber: que, no filme, «a percepção sob a forma de choque se impõe como princípio formal» (Idem, p. 125). 60 Walter Benjamin, «A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução», compilado por José Lino Grünewald, A idéia do cinema, p. 89.

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uma alteração de comportamento; é o meio indicado para acabar com a imanência estética e iniciar uma transformação da práxis vital dos receptores».61 Quanto mais próximos os artistas estivessem de seus receptores, quanto maior fosse a interferência no cotidiano de seu público, maior era o choque e o escândalo causados. Era uma necessidade de interferência direta na realidade que parecia mover atitudes como a dos futuristas Marinetti, Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, os quais, em 1910, não se contentaram em simplesmente publicar um violento manifesto contra Veneza, mas o imprimiram em oitocentos mil folhetinhos, que foram lançados do alto do campanário da Piazza di San Marco sobre as cabeças dos transeuntes desavisados. Ao lançamento dos folhetos, seguiu-se o «Discurso Futurista aos Venezianos», que desencadeou vaias dos passantes. Conforme R. W. Flint, «Os pintores futuristas Boccioni, Russolo e Carrà pontuaram esse discurso com bofetadas ressonantes. Os punhos de Armando Mazza, um poeta futurista que era também um atleta, deixaram uma impressão inesquecível».62 Na Rússia, ainda na década de 1910, os artistas também promoviam suas intervenções públicas. Foi registrado pela imprensa local o dia (8 de fevereiro de 1914) em que os amigos Malevitch e Alexei Morgunov atravessaram a ponte Kouznetsky, em Moscou, com uma grande colher de madeira, pintada de vermelho, presa na lapela, como uma forma de provocação. Esta colher se tornou o símbolo do movimento futurista russo: na abertura da primeira exposição futurista, Tramway V,

em Petrogrado, os onze participantes portavam uma colher

semelhante.63 Ao suscitar o choque e a indignação do público, os artistas convocavam-no a participar de suas manifestações. Parecia ser preciso que todos juntos – artistas e público – tomassem parte naquela espécie de ritual que os artistas, por suas ações, colocavam em curso. Nas soirées, procurava-se excitar os mais diversos sentidos e, de preferência, todos ao mesmo tempo. Até mesmo o olfato era aguçado, conforme a descrição negativa do crítico Francesco Flora de uma soirée nos Estados Unidos:

61

Peter Bürger, op. cit., p. 131. Cabe salientar que, para Bürger, a reinserção da arte na práxis vital é uma das características mais evidentes da arte vanguardista. Contudo, ressalta que a integração à práxis vital promovida pelos vanguardistas não significa uma inserção da arte na práxis vital da sociedade burguesa; a vanguarda quer organizar uma nova práxis vital. 62 R. W. Flint, Sellected writings, de F. T. Marinetti, citado por Marjorie Perloff, Momento futurista, p. 190. 63 Conforme conta Linda S. Boersma, 0,10: la dernière exposition futuriste, pp. 26-28.

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o visitante entra por um corredor tomado pelos mais imprevistos odores, atravessa trechos perigosos nos quais experimenta a volúpia do medo e aquela da subseqüente raiva: se lhe preparava enfim um espectáculo no qual o cretinismo é tão agudo e tão sensível a ponto de suscitar os mais comoventes vitupérios e clamores.64

Nas soirées, os poemas e manifestos não eram apenas lidos: eles eram cantados, falados, declamados de maneira não-tradicional. Os artistas se vestiam com roupas estranhas, usavam máscaras, maquiavam-se ou simplesmente se apresentavam de fraque. De gênios criadores, eles se transformavam em algo como oficiantes. Nas conferências que os futuristas russos promoviam pelo seu país, costumavam aparecer em trajes nem um pouco convencionais. O poeta e pintor Vladimir Maiakovsky vestia uma blusa amarela e um chapéu. O poeta Benedikt Livchits substituía a gravata clássica por um jabô negro. O poeta, pintor e aviador Vassili Kamensky se apresentava de camisa vermelho vivo, com um cigarro na boca e um aeroplano – seu emblema – pintado no rosto. Krutchonik, por sua vez, enrolava uma almofada em torno do pescoço.65 David Burliuk, Mikhail Larionov, Natalia Goncharova e Livchits saíam às ruas com os rostos pintados como uma forma de provocação: queriam instigar o público e fazer com que sua arte tomasse parte na vida real.66 Em Paris, para ler o diálogo «Você me esquecerá», de André Breton e Philippe Soupault, Paul Éluard apareceu com uma peruca de lã na cabeça e encerrado num saco de tarlatana amarela. Vestido deste modo, fingia brigar com Breton, de calças vermelhas.67 Na soirée de 23 de junho de 1916, no Cabaret Voltaire, em Zurique, Hugo Ball vestiu-se com uma roupa feita por ele mesmo, com papelão colorido, para ler o poema abstrato-fonético Gadji Beri Bimba, composto por uma série de sílabas que, juntas, não faziam sentido. Cada detalhe era um estímulo para o público reagir, de preferência, negativamente.68

64

Francesco Flora, «Dadaismo», publicado originalmente na Cronache d’attualité, de novembrodezembro de 1921, e reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco Dada, p. 310. 65 Conforme contam Valentine Marcadé, Le renouveau de l’art pictural russe, pp. 217-218; e Frédéric Valabrègue, Kazimir Sévérinovitch Malévitch, p. 54. 66 Assim, pelo menos, se explicaram Larionov e seu amigo Ilya Zdanévitch na proclamação «Por que nós nos pintamos»: «Nós associamos a arte à vida. Depois de um longo isolamento, chamamos a vida à alta voz, e a vida invadiu a arte; faz tempo que a arte invadiu a vida. A pintura do rosto foi o começo desta invasão... Não visamos mais do que a estética. Retemos melhor a caligrafia que as informações. A síntese da decoração e da ilustração – eis a base de nossa pintura do rosto. Nós embelezamos a vida e anunciamos, é por isso que nos pintamos. A pintura do rosto é o novo tesouro popular, como tudo aquilo que existe nos nossos dias» (citado por Valentine Marcadé, Le renouveau de l’art pictural russe, p. 218). 67 Conforme Michel Sanouillet, Dada à Paris, pp. 176-177. 68 Ver relato de Hugo Ball acerca de sua apresentação na noite do dia 23 de junho de 1916 em Flight Out of Time, pp. 70-71.

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Em 10 de janeiro de 1923, Schwitters e Van Doesburg – que excursionavam pela Holanda – movimentaram a noite no Círculo Artístico de Haia. Enquanto Van Doesburg, vestido com dinner jacket, camisa preta e gravata branca, com o rosto empoado de branco e um monóculo sobre o olho, fazia uma explanação sobre o Dadaísmo, Schwitters, que não sabia uma única palavra em holandês, decidiu interferir latindo alto do meio da platéia. Na segunda apresentação da dupla, Schwitters, contrariando as expectativas, não latiu. Esta excursão foi lembrada pelo artista num texto de 1931 sobre o então recém-falecido Van Doesburg: Desta vez, conforme a sugestão de Doesburg, eu não lati. Foi isto que nos valeu a terceira soirée em Amsterdã, no curso da qual foi preciso evacuar da sala as pessoas desmaiadas, ao passo que uma mulher, tomada de uma crise de riso histérico, atraiu sobre si a atenção do público durante aproximadamente um quarto de hora, enquanto um senhor fanático em casaco de lã tratava o público de «imbecis» com entonações proféticas.69

Era uma reação irracional como esta que os artistas esperavam do público. Quanto mais os espectadores protestassem, mais satisfeitos os artistas ficavam. «A partir deste momento, a campanha dadaísta de Van Doesburg foi um sucesso decisivo»,70 arrematava Schwitters. O público não deveria simplesmente entrar no local para assistir ao espetáculo, mas submergir nele, penetrar numa nova realidade, totalmente diversa da realidade do mundo exterior. Para tal, cada pedacinho do ambiente era aproveitado e trabalhado pelos artistas. Na última soirée em Zurique, por exemplo, realizada em 9 de abril de 1919, no salão do Kaufleuten, Richter e Hans Arp decoraram a sala com grandes tiras de papel sobre as quais pintaram, em preto, formas semelhantes a pepinos. Nas cimalhas do pátio da cervejaria Winter, em Colônia, em abril de 1920, Arp, Johannes Baargeld e Max Ernst, os organizadores da noitada, penduraram uma série de objetos, como colagens, fotomontagens, construções pré-surrealistas. Dentre estas, destacava-se o Fluidoskeptric, cujo nome completo era Fluidoskeptric der Rotzwitha van Gandersheim e consistia num «aquário cheio de água tingida de vermelho, com um despertador no fundo, um bela cabeça provida de cabeleira flutuando em cima, e a mão de um boneco de madeira saindo para fora, do lado».71 Nesta mesma soirée, para chegar ao pátio onde acontecia o evento, o público era obrigado a passar por cima de um vaso sanitário 69

Kurt Schwitters, «Van Doesburg», Merz: écrits, p. 174. Kurt Schwitters, op. cit., idem. 71 Ver Michel Sanouillet, Dada et Surréalisme, p. 108, e Dawn Ades, O dadá e o surrealismo, p. 24. 70

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largado bem no meio da passagem. Intimavam-se assim os espectadores à ação e à participação. Annabelle Melzer, em seu livro sobre as performances dadaístas e surrealistas, chama a atenção para dois aspectos destas manifestações artísticas. Em primeiro lugar, no momento em que salienta que, «ao colocar a si mesmo e à sua criação no centro do evento artístico, o performer dadá explorava as fronteiras entre a exaltação primitiva e o excesso maníaco»,72 Melzer aponta para dois fatores. Por um lado, para o fato de o artista se apresentar como o núcleo central a partir do qual se institui o evento. Como já vimos, é a partir dele que se desencadeiam as ações que têm como finalidade incitar o público a se incorporar à manifestação. Por outro, Melzer sugere que, ao atribuir a si mesmo o papel de núcleo central, o artista não o desempenha como um simples mestrede-cerimônias, mas como um possesso, remetendo suas ações a um universo diferenciado daquele do público, um universo que, na falta de termo melhor, talvez se possa qualificar de «primitivo» ou «bárbaro». Poderíamos lembrar aqui a passagem do diário de Ball em que o artista relata como ele e seus companheiros reagiram quando receberam de Marcel Janco algumas máscaras em papelão, inspiradas nas máscaras dos antigos teatros grego e japonês: Estávamos todos lá quando Janco chegou com suas máscaras, e todos imediatamente as pusemos. Então alguma coisa estranha aconteceu. Não só a máscara imediatamente pediu uma roupa; mas também demandou uma gesticulação bastante definida e apaixonada, beirando a loucura. Embora não pudéssemos ter imaginado isto cinco minutos antes, estávamos caminhando ao redor com os mais bizarros movimentos, com objetos impossíveis presos na cabeça e na roupa, cada um de nós tentando superar o outro em inventividade. A força motriz destas máscaras foi transmitida irresistivelmente a nós. (...) As máscaras simplesmente demandavam que aqueles que as vestiam começassem a se mover numa dança trágico-absurda.73

72

Annabelle Melzer, Dada and Surrealist Performance, p. 59. Hugo Ball, Flight Out of Time, p. 64. É curioso notar como este procedimento de sair de si, de se tornar um outro ao vestir a máscara reproduz o procedimento desempenhado pelos gregos em suas celebrações dionisíacas. E. R. Dodds chama a atenção para a possibilidade de se transformar num outro e, com isso, de se atingir a liberdade irrestrita que esta forma dionisíaca do que chama de «loucura» oferece aos homens: «Como os Citas em Heródoto o colocam, “Dioniso leva as pessoas a se comportarem insanamente” – o que poderia significar qualquer coisa desde “deixar-se ir” até ficar “possesso”. O objetivo de seu culto era a ecstasis – a qual novamente poderia significar algo desde “tomar você de si mesmo” até uma profunda alteração da personalidade» (The Greeks and the Irrational, p. 77). E lembremos ainda que, para Lucien Lévy-Bruhl, colocar uma máscara é a maneira mais fácil de suprimir a própria identidade (ver Le surnaturel et la nature dans la mentalité primitive, pp. 124 e 125). Sobre a relação dos cultos dionisíacos com o êxtase, ver ainda Karl Kérenyi, Dioniso, pp. 176 e ss.; Walter Otto, Dioniso, pp. 52 e ss; Junito de Souza Brandão, Mitologia grega, v. 2, pp. 130 e ss.). 73

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Em segundo lugar, Melzer observa: «Esta combinação de anti-arte, anti-história, anti-permanência e pró-espontaneidade faz disso uma simples etapa para

uma

compreensão da valorização dadá do “processo” (a maneira pela qual o trabalho é realizado) sobre o “produto” (o trabalho em si)».74 De fato, o que se pode verificar, desde estas manifestações artísticas até a constituição mesma dos trabalhos das primeiras décadas do século XX (como veremos mais detidamente nas partes seguintes deste estudo), é uma ênfase no processo. O que parece passar a interessar ao artista não é tanto o produto, o resultado de suas ações e de seus gestos, mas as ações e os gestos em si. Giorgio Agamben, ao tratar de poesia, percebe: A emergência em primeiro plano do processo criativo na poesia moderna e o seu impor-se como valor autônomo independentemente da obra produzida (Valéry: pourquoi ne concevrait-on pas la production d’une oeuvre d’art comme une oeuvre d’art elle-même?) é, antes de tudo, uma tentativa de reificar o não-reificável.75

Isso faz com que se desloque o foco da atenção do produto final para o processo que o engendrou. Em função disso, pretendo mostrar como é a partir do estabelecimento de um processo que se constituem tanto o que chamo de dimensão mítica quanto o que chamo de dimensão ritual da arte moderna. Mas como poderíamos compreender o funcionamento deste processo encetado pelos artistas das décadas de 1910 e 1920? Renato Poggioli talvez nos ajude a começar a entendê-lo. Em sua Teoria da arte da vanguarda, Poggioli associa as produções artísticas do início do século XX a uma idéia de ação, enfeixada em sua noção de «movimento» – que opõe à de «escola». Para ele, o movimento se constitui «por agir, parcialmente ou principalmente, contra qualquer coisa ou contra qualquer um».76 Esta «qualquer coisa» pode ser a academia ou a tradição, e este «qualquer um», um mestre, cujos ensinamentos podem ser reconhecidos como errôneos, «ou, mais freqüentemente,

74

Annabelle Melzer, op. cit., p. 59. Giorgio Agamben, Stanze: la parola e il fantasma nella cultura occidentale, p. 59. Em nota, comenta ainda: «[Gottfried] Benn observa justamente, no seu ensaio sobre Problemas do lirismo (1951), que todos os poetas modernos, de Poe a Mallarmé até Valéry e Pound, parecem conferir ao processo criativo o mesmo interesse que esses conferem à obra mesma». E mais adiante, na mesma nota, completa: «É interessante observar que a reificação do processo criativo nasce justamente da recusa da reificação implícita em cada obra de arte. Assim, Dadá, que procura constantemente negar o objeto artístico e abolir a idéia mesma de “obra”, termina com transformar em mercadoria paradoxalmente a mesma atividade espiritual» (Idem, p. 63n). 76 Renato Poggioli, Teoria dell’arte d’avanguardia, p. 40. 75

39

aquele indivíduo coletivo a que se dá o nome de público».77 Da noção de movimento como uma ação opositiva e hostil, deriva quatro atitudes vanguardistas: ativismo (ou momento ativista), antagonismo (ou momento antagonístico), niilismo e agonismo (ou momento agônico). A primeira se reveste de um espírito de guerrilha e se revela como aquele posicionamento de certos indivíduos, reunidos em grupos, de agirem e de operarem a partir de qualquer método, não excluindo o terrorismo e a ação direta. O antagonismo, por sua vez, se traduz naquela atitude de revolta anárquica contra o público e a tradição, estabelecida por meio da provocação e da delinqüência, ao modo da maioria das manifestações que vimos anteriormente. As outras duas atitudes partem do mesmo conceito, mas, segundo Poggioli, o superam. Assim, define o niilismo como «um antagonismo transcendental». Neste, O gosto do agir pelo agir, o dinamismo inerente à mesma idéia de movimento podem de fato induzir a não se dar conta, no curso da ação, de alguma convenção ou reserva, escrúpulo ou limite: mais, que na embriaguez do movimento se pode experimentar felicidade no ato de derrubar barreiras, deitar obstáculos ao solo, destruir quanto se encontre sobre o próprio caminho.78

Por fim, o agonismo ou momento agônico ocorre quando, na ânsia de ser sempre mais feroz e mais violento, «o movimento e as unidades humanas que o compõem podem chegar até o ponto de não se conseguir imaginar não só as ruínas e as perdas dos outros, mas mesmo a própria catástrofe ou perdição».79 Nesta auto-aniquilação, Poggioli, partindo de uma consideração de Massimo Bontempelli,80 reconhece uma certa forma de sacrifício: um sacrifício do próprio artista à glória futura, um sacrifício que deve ser entendido «não só como sacrifício anônimo e coletivo, mas também como autoimolação da personalidade criadora isolada».81 Em outras palavras, Poggioli percebe o artista de vanguarda como aquele que concebe a própria arte e aquela da sua geração como se fosse uma fase preparatória, um estudo ou prelúdio, a uma revolução artística futura.82

77

Idem. Idem, pp. 42, 45 e 40 respectivamente. 79 Idem, p. 40. 80 Massimo Bontempelli teria dito, conforme cita Poggioli, que o «espírito dos movimentos de vanguarda é de auto-sacrifício e de autoconsagração àqueles que virão» (Teoria dell’arte d’avanguardia, p. 83). 81 Renato Poggioli, op. cit., p. 83. 82 Ver Renato Poggioli, op. cit., p. 88. 78

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Sugiro que retenhamos esta analogia com o sacrifício – «o rito mais ordinário»83 – e que a levemos adiante. Creio ser possível iluminar certos aspectos ainda obscurecidos no que diz respeito ao encadeamento do processo artístico, que se estabelece a partir de uma nova relação entre artista e público e de um novo comportamento derivado desta relação, se nos valermos da teoria do sacrifício de René Girard como um modelo interpretativo. Na visão de Girard, a violência é a base de todo o sacrifício. Há violência no próprio ato sacrificial – «O sacrifício é simultaneamente um assassinato e uma ação extremamente santa»84 – e no que motiva este ato: o sacrifício serve como uma forma de canalização da violência, ao transferir para uma vítima sacrificial as violências e tensões internas de uma sociedade. Assim, a função do sacrifício é apaziguar as violências e impedir a explosão de conflitos. Associado às idéias de expulsão, purgação e purificação, o sacrifício pressupõe o extermínio de uma vítima pela coletividade dos membros da sociedade. Poggioli sugere que esta vítima seja o próprio artista. De minha parte, proponho que esmiucemos isso um pouco mais essa questão. Se aceitarmos a estratificação das tendências da vanguarda proposta por Poggioli e tivermos como modelo interpretativo a teoria do sacrifício de Girard, poderíamos dizer que os artistas de vanguarda, como oficiantes de um rito sacrificial, voltam a sua violência contra duas vítimas: a tradição e o público. Como vimos, os artistas instigam o público até que este tome parte na manifestação ao responder como um corpo único às provocações. Portanto, num primeiro instante, poderíamos identificar dois momentos nesta ação: primeiro, os artistas, constituídos como um sujeito coletivo («A exigência de participação coletiva deve ser satisfeita, ainda que sob uma forma simbólica»85), se voltam contra o público por seus atos e por suas palavras; segundo, o público, como um corpo único, responde violentamente às provocações, acabando por se integrar à manifestação. No entanto, creio que ainda poderíamos reconhecer um terceiro momento: ao se integrar à manifestação, a oposição do público se anula, uma vez que era prevista e esperada desde o início. Ao descrever, de maneira concisa, o modo como se dão os rituais entre os dincas, povo de pastores do sul do Sudão, Girard pode nos auxiliar a ir adiante: 83

René Girard, A violência e o sagrado, p. 376. René Girard, Le sacrifice, p. 14. 85 René Girard, A violência e o sagrado, p. 130. 84

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Encantações entoadas em coro tornam pouco a pouco atenta uma multidão que inicialmente se encontrava distraída e espalhada. Os assistentes executam simulacros de combate. Por vezes, indivíduos isolados batem em outros, mas sem hostilidade real. Portanto, no curso dos estágios preparatórios, a violência já está presente, sem dúvida sob uma forma ritual, mas ainda recíproca; inicialmente a imitação ritual refere-se à própria crise sacrificial, aos antecedentes caóticos da resolução unânime. De vez em quando, alguém se afasta do grupo para ir insultar o animal, uma vaca ou um veado, amarrado a um tronco. O rito não tem nada de estático ou rígido; ele introduz um mecanismo coletivo que domina gradualmente as forças de dispersão e desagregação, fazendo convergir a violência para a vítima ritual.86

O que vemos nesta descrição de Girard é, como ele mesmo diz, «a metamorfose da violência recíproca em violência unilateral».87 A partir desta idéia, poderíamos supor que, nesta espécie de rito sacrificial encenado nas soirées e em outras manifestações públicas, os artistas buscam, em primeiro lugar, uma resposta – sempre negativa – dos espectadores. Ao responder, os espectadores transformam o que era inicialmente uma violência contra eles numa violência recíproca. Porém, o jogo não pára aí. No momento em que o público toma parte do espetáculo, isto é, em que ele se integra ao jogo da vanguarda, a sua oposição deixa ter efeito recíproco. É preciso, portanto, que o público se oponha e que sua oposição se desintegre na manifestação para que a violência se torne novamente unilateral. (Afinal, «Todos os participantes, sem exceção, devem participar do abate».88) A violência recíproca é apenas uma primeira etapa de um ritual no qual a verdadeira vítima sacrificial não é o público, nem aquele sujeito coletivo – formado pelos artistas – que finge se entregar ao sacrifício. Os artistas parecem convidar o público a se tornar cúmplice na eliminação sacrificial daquilo que se lhes apresenta como um incômodo, como um obstáculo para se ir adiante e erigir uma arte absolutamente nova: a arte do passado. Em síntese, a vítima sacrificial é a própria arte, mas mais especificamente, a arte produzida por gerações e gerações anteriores.89 Mesmo não vendo nestas manifestações – tão contrárias ao bom gosto burguês da época – qualquer vestígio do que compreende por arte, o público é levado a desempenhar papel ativo no ritual oficiado pelos artistas, cuja meta é a liquidação da arte. 86

Idem, p. 127. Idem, p. 127. 88 Idem, p. 130. 89 Vale salientar que uma das duas teses da Teoria da vanguarda de Bürger caminha um pouco nesta direção. A sua segunda tese diz que «o subsistema artístico atinge, com os movimentos da vanguarda européia, o estágio da autocrítica». Isto significa que a arte passa a criticar a própria instituição, isto é, os meios de produção, recepção e circulação da arte. Assim, a vanguarda se dirige « contra o aparelho de submissão a que está submetida a obra de arte e contra o status da arte na sociedade burguesa descrito pelo conceito de autonomia» (Op. cit., pp. 51-52). 87

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«Exterminação. Sim, claro», afirmava Tristan Tzara.90 Ao que RibemontDessaignes fazia coro: «Nos heures publiques sont des destructions publiques» e também «Détruire ce que vous construisez. Au besoin si vous construisez».91 E muitas vezes, quadros e objetos artísticos eram efetivamente destruídos no decorrer de uma soirée. Em Paris, Picabia fez um desenho num quadro negro que foi apagado no instante seguinte por Breton. Numa noite em Colônia, Max Ernst produziu uma peça em madeira em que afixou um machado e um convite para destruí-la. Nesta mesma soirée, o Fluidoskeptric foi exterminado ao longo da noite. No «Manifesto realista», Naum Gabo e Antoine Pevsner eram categóricos: «Deixamos o passado para trás como um cadáver».92 «Noi non vogliamo più saperne del passato, noi giovanni e forti futuristi!», exclamava Marinetti no mesmo manifesto de 1909 em que conclamava ao extermínio dos museus («Musei: cimiteri!», «Musei: assurdi macelli di pittori e scultori»), das bibliotecas e das academias («cimiteri di sforzi vani, calvari di sogni crocifissi, registri di slanci troncati!») e invocava a libertação da Itália, que vinha se tornando «un mercato di rigattieri».93 Também Arp, em seus escritos, referia-se negativamente ao passado: «As pirâmides, os templos, as catedrais, as pinturas dos homens de gênio, tudo isso se transformou em belas múmias».94 Mesmo Duchamp, falando de Nova York, em depoimento de 1915, exaltava a idéia futurista de extinção do passado: E estou convencido de que a idéia de vocês de destruir os edifícios velhos e as velhas recordações seja uma idéia belíssima, de acordo com aquele manifesto dos Futuristas, incompreendido porque pego à letra, que pedia a destruição dos museus e das bibliotecas. É preciso que os vivos sejam mais fortes que os mortos, e que aprendam a viver no próprio tempo, esquecendo o passado.95

90

Tristan Tzara, «O senhor AA e o antifilósofo envia-nos este manifesto», Sete manifestos dada, p. 33. Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce qu’il ne faut pas dire sur l’art», Dada: manifestes, poemes, articles, projets (1915-1930), p. 29 e 28 respectivamente. 92 Naum Gabo, «O manifesto realista», reproduzido por H. B. Chipp, Teorias da arte moderna, p. 333. 93 F. T. Marinetti, «Fondazione e manifesto del futurismo», compilado por Pontus Hulten, Futurismo & futurismi, pp. 512. 94 Hans Arp, «Arte abstrata, arte concreta», citado por H. B. Chipp, Teorias da arte moderna, p. 395. No curtíssimo ensaio «De plus en plus je m’éloignais de l’esthétique», Arp faz uma afirmação similar: «La fragilité de la vie et des oeuvres humaines se convertissait chez les dadaistes en humour noir. A peine une construction, un édifice, un monument est-il terminé que déja commence sa décrépitude, sa désagrégation, sa décomposition, son émiettement. Les pyramides, les temples, les cathédrales, les tableaux de maître en sont des documents convaincants» (On my Way, p. 91). 95 Marcel Duchamp, «Ribaltati i valori tradizionali da Marcel Duchamp, iconoclasta», publicado originalmente no número 11 da revista Arts and Decorations, de setembro de 1915, reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco Dada, pp. 37-38. 91

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Os futuristas russos Burliuk, Krutchonik, Maiakovsky e Khlebnikov, já em 1912, atacavam seus autores clássicos: O passado é limitado. A Academia e Puchkin são mais incompreensíveis que os hieróglifos. É preciso jogar Puchkin, Dostoievsky, Tolstoi e cia. de cima da borda do Navio da Época contemporânea.96

Em 1916, em carta endereçada a Alexander Benois, Malevitch declarava a morte das culturas tradicionais: «Mas os deuses estão mortos e não ressuscitarão! Do mesmo modo estão mortos os elefantes que carregam nas costas as civilizações artísticas indiana, egípcia, grega e romana». Na mesma carta, anunciava: «Minha filosofia: destruir, a cada cinqüenta anos, velhas cidades e povoados, banir a natureza dos limites da arte, suprimir o amor e a sinceridade da arte».97 A intenção expressa nos manifestos era fazer tabula rasa do cenário artístico, considerando até mesmo, como neste protesto de Ribemont-Dessaignes, a auto-aniquilação: «Dada détruira Dada».98 Porém, como liquidar esta arte do passado, esta arte do mundo burguês? Apesar da violência verbal contra a arte do passado e os locais de preservação desta, os artistas desta época, ao que consta, não chegaram a atear fogo aos museus ou a danificar qualquer obra dos grandes mestres. A arte do passado era destruída simbolicamente no presente. Malevitch, em Eclipse parcial, de 1914, apôs dois X em cima de uma pequena reprodução da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, embaixo da qual colou ainda um recorte dizendo: «apartamento à venda». Cinco anos depois, Duchamp se valeu da mesma imagem, emblemática de certa arte pictórica tradicional, e foi ainda mais iconoclasta: deu-lhe bigode, cavanhaque e uma legenda, L. H. O. O. Q. Se lidas em voz alta em francês, estas letras formam a frase «elle a chaud au cul»; em português, algo como «ela tem fogo no rabo». No Tableau vivant, de Picabia, apresentado na soirée de 27 de março de 1920, na Sala Berlioz, em Paris, vemos um macaco de pelúcia afixado sobre uma madeira, circundado pelas inscrições: «Portrait de Rembrandt – Portrait de Cézanne – Portrait de Renoir – Natures mortes». Com esta peça, Picabia ridicularizava toda uma tradição de pintura fundamentada na macaqueação da natureza, incluindo em sua crítica até mesmo os artistas modernos Renoir e Cézanne. 96

David Burliuk, A. Krutchonik, Vladimir Maiakovski e V. Khlebnikov, «Bofetada no gosto do público», reproduzido por Valentine Marcadé, Le renouveau de l’art pictural russe, p. 210. 97 Carta reproduzida por Marc Dachy, Kasimir Malevitch, Écrits, p. 164. 98 Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce qu’il ne faut pas dire sur l’art», op. cit., p. 28.

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Destruir a arte do passado significava destruir uma concepção muito precisa de arte, uma arte que ainda preservava uma afinidade, baseada sobretudo na mimese, entre sujeito humano e mundo exterior. E destruir esta concepção de arte implicava até mesmo, nos casos mais limites, senão na destruição, pelo menos no questionamento daquilo que comumente se compreendia por obra de arte: uma pintura, uma escultura, um poema. Os objets trouvés dos surrealistas, os readymades de Duchamp, as colagens Merz de Schwitters, os poemas fonéticos de Ball são alguns dos exemplos mais radicais desta tendência. Bürger, contudo, ressaltaria que, ao invés de querer aniquilar simplesmente a categoria de obra de arte, a vanguarda, «mesmo nas suas manifestações mais extremas», se refere negativamente a ela: Os readymades de Duchamp, por exemplo, só têm sentido se os relacionarmos com a categoria de obra. Quando Duchamp assina um objeto produzido em série e o envia a uma exposição, a sua provocação à arte implica um determinado conceito de arte. E o fato de que assine os readymades pressupõe uma referência clara à categoria de obra. A assinatura, que torna a obra individual e irrepetível, é aposta precisamente sobre o produto fabricado em série. Deste modo, questiona-se provocatoriamente o conceito de essência da arte, tal como tem sido entendido desde o Renascimento, isto é, como criação individual de obras singulares: o próprio ato de provocação ocupa o lugar da obra.99

Recuperando a comparação entre as manifestações artísticas e os ritos sacrificiais, poderíamos nos indagar, por fim, se haveria algum sentido neste sacrifício da arte do passado; e, se sim, que sentido é esse? Retomemos Poggioli. Este observa ainda que o momento agônico (aquele que – não esqueçamos – redunda numa forma de sacrifício) «não é um estado de ânimo passivo, dominado exclusivamente pelo sentido de uma iminente catástrofe, mas, ao contrário, é a tentativa de transformar em milagre aquela mesma catástrofe»: «No curso da ação, através do fracasso, se tende a um resultado que lhe justifique e lhe transcenda».100 Dentro da lógica de Poggioli, a morte simbólica do artista, seu auto-sacrifício, abriria a possibilidade de surgimento de uma nova geração. Se seguirmos a linha de raciocínio desenvolvida até aqui, poderíamos compreender o sacrifício da arte de um modo que, à primeira vista, pode soar como paradoxal: a morte da arte, a necessidade de sua destruição, parece condizer com uma 99

Peter Bürger, op. cit., p. 103. Bürger afirma ainda que «o que é referido pela categoria de obra de arte não só é restaurado a partir do fracasso da intenção vanguardista de reintegrar a arte na práxis vital, como ainda se amplia. O objet trouvé, a coisa, que não resulta de um processo de produção individual, mas é o encontro fortuito em que se materializa a intenção vanguardista de unir a arte à práxis vital, é hoje reconhecido como obra de arte. O objet trouvé perdeu o seu caráter antiartístico, transformou-se numa obra autônoma com lugar reservado, como as outras, nos museus» (pp. 103-104). 100 Rentato Poggioli, op. cit., p. 81.

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necessidade maior e mais forte de preservá-la. Schlegel já dizia: «O sentido secreto do sacrifício é o aniquilamento do finito, porque é finito».101 Em alguns povos, sacrificavase o rei, antes que adoecesse e perdesse seu vigor, para garantir a eternidade do reinado, transferindo seus poderes a um sucessor.102 Nas vanguardas, mata-se a arte a fim de lhe assegurar sobrevida numa outra forma.103 Para Malevitch, não seria possível produzir uma arte nova sem antes se desfazer do passado: «a edificação de um sistema passa obrigatoriamente pelo crime, a destruição do sistema precedente e a edificação do novo sistema».104

b. Primitividade Não deixa de haver nesta tentativa de destruição total uma força purificadora. «Nós somos o violento furacão e nós devemos nos empenhar em destruir o antigo e criar o novo», proclamava Malevitch.105 Hans Richter, avaliando retrospectivamente o movimento dadá na década de 1960, observou: «Dadá não significou um movimento artístico no sentido tradicional: foi uma tempestade que desabou sobre a arte daquela época como uma guerra se abate sobre os povos. Esta tempestade descarregou sem aviso prévio, numa atmosfera abafada de saciedade... e deixou atrás de si um dia novo».106 Era uma forma simbólica de, na terra arrasada, poder estabelecer um novo começo. Para Ribemont-Dessaignes, era preciso: «Détruire un monde pour mettre un autre à sa place».107 Para Mondrian, a «mutação», isto é, uma verdadeira mudança no sistema artístico, «ocorre somente quando uma outra vida se torna possível».108 É justamente para uma idéia de princípio que se volta Rosalind E. Krauss quando avalia o que chama de «originalidade da vanguarda». Para ela, esta 101

Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos, p. 161. Ver James G. Frazer, The Golden Bough: The Roots of Religion and Folklore, pp. 213-217. 103 Aqui seria novamente possível fazermos uma analogia com uma outra forma de ritual. Refiro-me ao potlatch – e vale lembrar que George Bataille, em La part maudit, já havia estabelecido uma aproximação deste ritual aos sacrifícios entre os astecas (ver «Les Donnés historiques I. “La société de consumation”», op. cit., p. 83 e ss.). Nas manifestações mais violentas do potlatch, ciclicamente os membros de um dado clã reúnem todas as riquezas acumuladas e as destroem (ver Marcel Mauss, Ensaio sobre a dádiva). 104 Kasimir Malevitch, «Dieu n’est pas déchu», Écrits, p. 385. 105 Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», op. cit., p. 263. 106 Hans Richter, Dadá: arte e antiarte, p. 3. 107 Georges Ribemont-Dessaignes, Déja jadis, p. 81. 108 Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: Its Realization in Music and in Future Theater», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 160. 102

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originalidade deveria ser entendida não como uma simples revolta contra a tradição ou uma tentativa de dissolução do passado, mas, sim, como «uma origem literal, um começo do grau zero, um nascimento».109 Marinetti, arremessando-se com seu carro num fosso cheio de lama e emergindo deste como de um fluido amniótico, no início de «Fundação e manifesto do futurismo»,110 é, do ponto de vista de Krauss, «uma parábola da autocriação absoluta», que «funciona como um modelo para o que significa originalidade nos primeiros anos da vanguarda do século XX»: A originalidade torna-se uma metáfora organicista referindo-se não tanto à invenção formal quanto a fontes de vida. O eu como origem está salvo da contaminação pela tradição porque possui um tipo de ingenuidade originária. Daí o dito de Brancusi, «Quando não somos mais crianças, já estamos mortos». Ou novamente, o eu como origem tem o potencial para atos contínuos de regeneração, uma perpetuação do autonascimento. Daí o pronunciamento de Malevitch, «Somente está vivo quem rejeita as convicções de ontem». O eu como origem é o modo como uma distinção absoluta pode ser feita entre a experiência presente do novo e um passado tradicional e carregado. As reivindicações da vanguarda são precisamente essas reivindicações da originalidade.111

109

Falando da vanguarda, ainda na primeira metade do século passado, Massimo Bontempelli, artista e crítico italiano citado por Poggioli, já havia chegado a uma formulação parecida a esta desenvolvida por Krauss, ao afirmar que: «em suma, as vanguardas tiveram a função de criar aquela condição de primitividade, ou melhor, de primordialidade, da qual depois nasce o criador que se encontra no princípio da nova série» (citado por Renato Poggioli, Teoria dell’arte d’avanguardia, p. 85). Franco Rella, num pequeno artigo sobre o dadaísmo, faz uma observação semelhante a de Krauss, ao dizer que «a desestruturação dadá colheria um motivo originário, oculto sob as formas tradicionais da arte, para restituí-lo à sua plenitude originária» («“Tzara! Tzara! Tzara!... Thustra”», compilado por Silvia Danesi, Il dadaismo, p. 52). Ernst H. Gombrich não se encontra distante destas concepções ao afirmar que a preferência pelo primitivo se manifesta no culto à regressão: «O que eles [os artistas do século XX] visavam era deixar para trás as convenções que eles adquiriram na escola de arte e regressar à espontaneidade despreocupada da recordação de seus dias de infância, ou ainda aos estados delirantes do insano que pode manifestar extremos de regressão» (The Preference for the Primitive, p. 263). 110 Rosalind E. Krauss refere-se a esta passagem do «Fundação e manifesto do futurismo»: «– Usciamo dalla saggezza come da un orribile guscio, e gettiamoci, come frutti pimentati d’orgoglio, entro la bocca immensa e torta del vento!... Diamoci in pasto all’Ignoto, non già per disperazione, ma soltanto per colmare i profondi pozzi dell’Assurdo! – Avevo appena pronunciate queste parole, quando girai bruscamente su me stesso, con la stessa ebrietà folle dei cani che voglion mordersi la coda, ed ecco ad un tratto venirmi incontro due ciclisti, che mi diedero torto, titubando davanti a me come due ragionamenti, entrambi persuasivi e nondimeno contradittorii. Il loro stupido dilemma discuteva sul mio terreno... Che noia! Auff!... Tagliai corto, e, pel disgusto, mi scaraventai colle ruote all’aria in un fossato... Oh! materno fossato, quasi pieno di un’acqua fangosa! Bel fossato d’officina! Io gustai avidamente, la tua melma fortificante, che mi ricordò la santa mammella nera della mia nutrice sudanese... Quando mi sollevai – cencio sozzo e puzzolente – di sotto la macchina capovolta, io mi sentii attraversare il cuore, deliziosamente, dal ferro arroventato della gioia!» (reproduzido por Pontus Hulten, Futurismo & futurismi, pp. 289-290). 111 Rosalind E. Krauss, «The Originality of Avant-Garde», The Originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, p. 157.

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Foi desta maneira que Malevitch qualificou seu quadrado como «um recém-nascido vivo e majestoso»,112 e André Breton, no primeiro «Manifesto do surrealismo», de 1924, identificou o homem atual com um recém-nascido: O homem, esse sonhador definitivo, cada dia mais descontente com seu destino, passa penosamente em revista os objetos que foi levado a utilizar, objetos que lhe vieram ter às mãos por obra de sua indolência ou de seu esforço, quase sempre de seu esforço, visto que ele consentiu em trabalhar ou, quando menos, não lhe repugnou tentar a sorte (aquilo que ele chama de sorte!). Seu quinhão atual é uma grande modéstia: ele sabe que mulheres possui, em que aventuras ridículas se meteu; pouco se lhe dá de sua riqueza ou pobreza, no que a elas diz respeito, ele é como um recém-nascido; e pelo que toca à aprovação de sua consciência moral, estou pronto a admitir que ele a dispensa sem qualquer problema. Se alguma lucidez lhe resta, a única coisa que ele pode fazer é voltar-se para a própria infância, que, embora trucidada pelo zelo de seus domesticadores, nem por isso lhe parece menos rica em sortilégios.113

Estes artistas acreditavam que, num campo pretensamente tornado virgem – « Nous avons encore un champ vierge»114 –, poder-se-ia principiar do zero. A morte sacrificial da arte era o caminho para o renascimento. «A arte adormece para o nascimento do mundo novo», declarava Tzara.115 Na visão de Malevitch, seu quadrado «não pode ser confundido com qualquer artista nem com qualquer época»: «Eu não escuto mais meus pais e eu não me pareço mais com eles. Eu sou assim um degrau».116 A recusa em se parecer com os pais, tomados aqui como uma metáfora para a herança tradicional e cultural, é repetida em mais de um texto do artista. No manifesto «Nós queremos...», ele retornou à questão já tratada anteriormente na carta a Benois: Não queremos parecer nossos pais e, se essa semelhança subsistir entre um de nós, arrancaremos de nossos rostos tudo o que pareça com eles; que os rostos dos jovens sejam mil vezes mais belos e majestosos, nos recusamos a instalar nosso sentimento novo em seus palácios, a vestir suas togas e suas túnicas; construiremos qualquer coisa de novo, criaremos assim nossa própria face, nós não a faremos à imagem da dos nossos pais, mas à nossa própria imagem, porque seremos ainda jovens. Não seremos os porta-vozes das artes da Grécia, de Roma e de alhures, não seremos os enfermeiros das lojas de antigüidades.117

O que o artista almejava – pelo menos, proclamava isso em seus escritos – era alcançar um grau zero: «Eu me metamorfoseei no zero das formas e eu me retirei do turbilhão de

112

Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural», Écrits, p. 198. 113 André Breton, «Manifesto surrealista», Manifestos do surrealismo, p 15. Grifos meus. 114 Georges Ribemont-Dessaignes, «Ce Qu’il ne faut pas dire sur l’art», op. cit., p. 30. 115 Tristan Tzara, «Proclamação sem pretensão», op. cit., p. 21. 116 Kasimir Malevitch em carta a Alexandre Benois, Ëcrits, p. 163. 117 Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», op. cit., p. 262.

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lixos da Arte acadêmica».118 Ao atingir este grau zero, poder-se-ia iniciar uma nova fase. Em Aspectos do mito, Mircea Eliade já notava a respeito dos artistas desta época: «a sua atitude assemelha-se à dos “primitivos”: eles contribuíram para a destruição do Mundo – quer dizer, para a destruição do Mundo deles, do Universo artístico deles – a fim de criarem um outro».119 Umberto Boccioni, em «Fundamento plástico da pintura e escultura futurista», indicava que esta nova fase da arte poderia se espelhar no exemplo dos primitivos: Per quello che riguarda la nostra azione per un rinnovamento della coscienza plastica in Italia, il compito che ci siamo prefisso è quello di distruggere quattro secoli di tradizione italiana che hanno assopito ogni ricerca e ogni audacia, lasciandoci indietro sul progresso pittorico europeo. Vogliamo immettere nel vuoto che ne risulta tutti i germi di potenza che sono negli esempi dei primitivi, dei barbari d’ogni paese e nei rudimenti di nuovissima sensibilità che appaiono in tutte le manifestazioni antiartistiche della nostra epoca.120

Não por acaso, os futuristas italianos se autodesignavam os primitivos deste novo começo da arte: Noi iniziamo una nuova epoca della pittura. Noi siamo ormai sicuri di realizzare concezioni della più alta importanza e della più assoluta originalità. Altri ci seguiranno, che con altrettanta audacia e altrettanto accanimento conquisteranno le cime da noi soltanto intraviste. Ecco perchè ci siamo proclamati i primitivi di una sensibilità completamente rinnovata.121

E foi precisamente num pretenso «primitivismo» – um tipo de «primitivismo» que poderia derivar dos universos das crianças, dos povos ditos «selvagens» ou dos loucos – que boa parte dos artistas dos movimentos artísticos do início do século XX se apoiaram para atingir o grau zero.122 Não foi à toa que Tzara apresentou traduções de 118

Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural», op. cit., p. 179. 119 Mircea Eliade, Aspects du mythe, pp. 96-97 120 Umberto Boccioni, «Fondamento plastico della pittura e scultura futuriste», Pittura e scultura futuriste, p. 79. 121 Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla e Gino Severini, em «Prefazione al Catalogo delle Esposizioni di Parigi, Londra, Berlino, Bruxelles, Monaco, Amburgo, Vienna, ecc.», de 1912, reproduzido no CD-Rom I manifesti futuristi. Dois anos antes, em «La pittura futurista – manifesto tecnico», os mesmos artistas já se autodenominavam primitivos: «Voi ci credete pazzi. Noi siamo invece i Primitivi di una nuova sensibilità completamente trasformata» (Idem). 122 Apesar de os termos «primitivo» e «primitivismo» pecarem por sua imprecisão, adoto-os aqui, devidamente grafados entre aspas, por não encontrar melhores termos que os substituam. Por «primitivo», compreendo, como já ressaltei acima, o universo tanto dos povos ditos «primitivos», como das crianças e dos loucos. «Primitivismo», por sua vez, o entendo em concordância com William Rubin, como um aspecto da arte moderna. Justifica Rubin: « No curso dos dois decênios anteriores, certos autores contestaram as palavras primitivo e primitivismo, julgadas etnocêntricas e pejorativas. Mas nenhum dos termos genéricos propostos para substituir “primitivo” recebeu aprovação, e não houve nada proposto

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poemas negros nas revistas Dada,123 e que os dadaístas alemães afirmavam no manifesto «Dada na Europa», publicado originalmente no número 3 da revista Der Dada, em 1920: «DADA foi uma profissão de fé no primitivismo incondicionado».124 Até mesmo em seus gestos, como pudemos ver anteriormente, os artistas pareciam querer forjar uma espécie de «primitividade». É possível observar a manifestação de uma «primitividade» tanto nos meios e nos modos de encenação das manifestações, quanto nas formas de representação – como naqueles trabalhos que lembram os desenhos infantis ou as máscaras e as estátuas tribais –, como também no próprio modo de constituição tanto de seus discursos – expressos nos manifestos e nas declarações – quanto de suas obras, como veremos nos capítulos seguintes. Nos manifestos do movimento dadaísta e do futurismo italiano, por exemplo, vemos claramente uma tentativa de mimetizar o que os artistas consideravam «primitivo»: o vocabulário se simplifica, a voz se torna coletiva, abundam repetições e contradições internas. Os poemas sonoros de Ball, a sonata de sons primordiais de Schwitters e as palavras em liberdade de Marinetti podem ser citados como exemplos mais evidentes desta «primitivização». As palavras são feitas de sílabas escolhidas ao acaso e que, juntas, não produzem um sentido lógico. Os quadros de Klee e de Miró, por outro lado, nos fazem lembrar as representações feitas por crianças. Numa outra vertente, a «primitividade» extrema leva à simplificação total da forma, resultando na arte abstrata (e Robert Goldwater, o pioneiro nos estudos do «primitivismo» da arte moderna, inclui até mesmo o suprematismo e o neoplasticismo entre estas formas125). Nas manifestações artísticas e nas ações que engendram um determinado trabalho – como estudaremos mais adiante nos casos de Schwitters e Duchamp –, também se pode reconhecer um certo comportamento «primitivo». Melzer, comentando a caracterização para o lugar de “primitivismo”. A palavra derivada primitivismo é certamente etnocêntrica, e é bem lógico, porque não remete às artes tribais em si, mas ao interesse e à reação que elas suscitaram entre os ocidentais. O primitivismo é portanto um aspecto da história da arte moderna e não da arte tribal» («Le Primitivisme moderne: une introduction», Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, p. 5). Quase cinqüenta anos antes de Rubin, Robert Goldwater já havia esclarecido que dava ao termo «primitivismo» o mesmo tratamento que legava a «romantismo»: compreendia ambos como «uma atitude produtiva da arte» (Primitivism in Modern Art, p. xxiv). 123 Em Dada, 1 (jul. 1917), Tzara traz a público «Chanson du Cacadou», a qual, segundo ele, era oriunda da tribo Aranda (p. 9). Em Dada, 2 (dec. 1917), publica 2 Poèmes nègres, os quais diz pertencerem à tribo loritja (pp. 15-17). 124 Este manifesto foi assinado por George Grosz, Heartfield, Richard Huelsenbeck, Raoul Haussmann, Bloomfeld, Francis Picabia, Guttmann, Hans Arp, Tristan Tzara, Walter Serner, Kurt Schwitters, Max Ernst, Kobbe, Herzfield, Archipenko, Giorgio De Chirico, Hustaedt, Noldan e Piscator. 125 Ver Robert Goldwater, Primitivism in Modern Art, pp. 164-175.

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dos artistas em suas manifestações, observa que os figurinos evocavam «o sentimento de uma peça de escola, de uma festa de máscaras ou de uma festa de aniversário: algo de infantil, de amador e de precipitado eram colocados juntos».126 Para Melzer, esta atração pelo universo infantil está conectada às manifestações artísticas em muitos sentidos: A algaravia e a cacofonia fonéticas de som natural que o performer dadá revelou são tão sugestivas de um movimento rumo à infância como o nome «dadá» em si. Ball escreveu que a finalidade do dadaísta era «exceder-se em ingenuidade e infantilidade», e ele descreveu em termos nem um tanto incertos sua atração constante pela infância: «infância como um novo mundo, e tudo infantil e fantástico, tudo infantil e direto, tudo infantil e simbólico em oposição às senilidades do mundo dos adultos».127

Talvez valha a pena recordar aqui que o fascínio pelo universo «primitivo» já era corrente na arte moderna desde o final do século XIX, quando, coincidentemente ou não, começavam a ser fundados os museus etnológicos na Europa.128 Paul Gauguin talvez tenha sido o primeiro artista moderno a se interessar profundamente pelo «primitivo», chegando até mesmo a viver entre os «selvagens» do Taiti. Como se sabe, o artista francês esforçou-se para absorver o mais que pudesse daquela cultura tão diversa da sua. Não só levou para suas pinturas e esculturas os personagens, as formas e as cores de uma «primitividade» encontrada na colônia francesa, como aprendeu a língua e traduziu os mitos locais para o francês.129 No entanto, por mais que desejasse tornar-se um «bárbaro» – termo empregado pelo próprio Gauguin em suas cartas, para se referir aos maoris –, sempre esteve longe de lográ-lo. Como se pode observar em seus quadros e esculturas, é ainda um olhar que – talvez mesmo não querendo – mantém uma distância daquela espécie de «paraíso terrestre». Goldwater repara que, nos escritos de Gauguin, nos quais se percebe um tom de revolta contra o mundo «civilizado», é impossível para o artista descrever o seu cotidiano no Taiti sem se referir à sua vida

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Annabelle Melzer, op. cit., p. 64. Idem, p. 64. 128 Robert Goldwater dedica ao tema da criação e do desenvolvimento dos museus etnológicos na Europa o primeiro capítulo, intitulado «Primitive Art in Europe: The Accessibility of the Material, The Development of Ethnological Museums», de seu Primitivism in Modern Art. William Rubin, na introdução ao volume Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, lembra que as exposições universais de Paris, de 1889 e 1900, ofereciam informações didáticas sobre a cultura tribal e apresentavam reconstituições de tribos inteiras. Afora isso, ainda se podiam ver diversas esculturas africanas e da Oceania nas lojas francesas de curiosidades (Op. cit., p. 11). 129 Estas traduções foram publicadas com o título Ancien culte mahorie. 127

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burguesa em Paris. Será sempre a partir deste ponto de vista europeu que ele representará os «selvagens». Não obstante, é esta civilização que determina seu padrão de julgamento e à qual todos os outros modos de existência devem ser submetidos (...). Tal comparação contínua significa que Gauguin era dependente de Paris para além de seu simples sustento e por mais que tentasse assimilar o modo de vida nativo, o centro de sua atenção era ainda o mundo artístico de Paris.130

O tratamento dado por Gauguin a este mundo «primitivo» guardava um resquício de uma certa idealização romântica, daquela idealização calcada na concepção do bon sauvage, de Rousseau. Como bem observa William Rubin, na introdução do volume monumental que organizou sobre o «primitivismo» na arte moderna, esta «atitude positiva» frente ao universo dos povos ditos «primitivos» «tende a idealizar a vida primitiva, em construir em torno dele [de Gauguin] uma imagem de paraíso terrestre inspirada sobretudo por uma visão idílica da Polinésia e, em particular, do Taiti».131 Nesta idealização de um mundo primordial, Rubin detecta uma recusa do artista à sua própria sociedade, isto é, à «civilizada» sociedade européia: Se demarcarmos esta atitude na literatura a partir de sua origem no ensaio de Montaigne «Des cannibales», veremos que, depois da estréia, os escritores utilizam o primitivo antes de tudo como um pretexto para criticar sua própria sociedade, acusada de transformar o espírito forçosamente admirável da humanidade que, segundo eles, restou intacta nos paraísos insulares.132

É o repúdio em ser parte de uma civilização cada vez mais racionalista e em franco desenvolvimento técnico e tecnológico que faz com que Gauguin se identifique com o «selvagem», como no final de sua vida, nesta carta endereçada a Charles Morice: «Décidément le sauvage est meilleur que nous. Tu t’es trompé un jour en disant que j’avais tort de dire que je suis un sauvage. Cela est cependant vrai: je suis un sauvage».133 Segundo Goldwater, o «primitivismo» de Gauguin mantém algo do «luxe

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Robert Goldwater, op. cit., p. 65. William Rubin, Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, p. 6. 132 William Rubin, op. cit., p. 6. 133 Carta datada de abril de 1903, reproduzido por Maurice Malingue, Lettres de Gauguin à sa femme et a ses amis, pp. 318-319. Em carta de 5 de fevereiro de 1895 (quando o artista estava de passagem por Paris), a August Strindberg, Gauguin recorda o dia em que o dramaturgo visitava seu ateliê e olhava atentamente suas pinturas realizadas no Taiti: «J’eus comme le pressentiment d’une révolte: tout un choc entre votre civilisation et ma barbarie. Civilisation dont vous souffrez. Barbarie qui est pour moi un rajeunissement» (Op. cit., pp. 262-263). 131

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barbare»,134 remanescente daquela visão ainda corrente no século XIX do «primitivo» como o exótico e o natural.135 Percebe-se que algo deste idealismo romântico subsiste nas representações primitivistas tanto do expressionismo alemão quanto do fauvismo. Há nelas ainda esperança de que um mundo «primitivo», visto como um mundo mais próximo da natureza, sirva como um contraponto à «civilização». Na opinião de Rubin, estes dois movimentos seriam «mais uma síntese das idéias do fim do século XIX do que uma ruptura radical».136 São os cubistas que empreendem uma mudança no modo de perceber o «primitivo». Com eles, «as obras refletem a atenção dada aos aspectos expressivos e plásticos dos objetos tribais particulares», e assim, continua Rubin, «o primitivismo entrou na sua fase do século XX».137 Gombrich, por sua vez, diagnostica na pintura do século XX «uma reação contra a arte meretriz de sucesso virtuoso»: «tendemos a mobilizar nossas defesas contra o que é obviamente sedutivo».138 Seguindo na trilha aberta por Rubin e Gombrich, poderíamos dizer que, com o cubismo e, em especial com Picasso, o sentimento frente ao «primitivo» se altera: as formas que, anteriormente, davam a idéia de um mundo equilibrado e pacífico, agora transmitem estranheza e agressividade. Parece-me sintomático que, ao ver Les demoiselles d’Avignon, André Derain, artista que incentivou o companheiro espanhol a visitar os museus antropológicos, mas que possuía uma visão diversa desta arte, tenha dito que 134

Robert Goldwater, op. cit., p. 68. Rubin concordaria com Goldwater ao afirmar que: «não é impossível de ver nas evocações visuais de seu “paraíso insular” que nos deixou Gauguin um exemplo de vida tão desesperadamente calcado na literatura, na verdade uma reconstituição artificial do “mito do primitivo”» («Le Primitivisme moderne: une introduction», Le Primitivisme dans l’art du 20e siècle, p. 6). Esta visão correspondia às pesquisas antropológicas de então. Ao fazer uma revisão dos métodos e das abordagens da antropologia, Frédéric Rognon comenta que, por muito tempo, se conservou o que chama de «o mito primitivo»: costumava-se investir o «selvagem» das «angústias mais profundas e das utopias mais loucas do Ocidente moderno» (Os primitivos, nossos contemporâneos, p. 12). A antropologia, isto é, o voltar-se para o «radicalmente outro», servia como uma medida de escape da sociedade «civilizada». Dizia Margaret Mead: «Quando não se está satisfeito consigo próprio, torna-se psicólogo. Quando não se está satisfeito com a própria sociedade, torna-se sociólogo; e quando não se está satisfeito nem consigo nem com a sociedade, torna-se antropólogo» (citado por Rognon, Os primitivos, nossos contemporâneos, pp. 97-98). Rognon lembra também que, quando foi lançado Coming of Age in Samoa, de Mead, o livro logo se transformou num best-seller em função da visão idílica que a cultura samoana oferecia: «Os leitores americanos em busca de exotismo nela encontravam, preto no branco, o pequeno paraíso terrestre que apenas imaginavam até então: uma sociedade harmoniosa que não conhecia os males e os conflitos do mundo moderno; sociedade sem pobreza nem criminalidade, em que as crianças se tornavam adultos sem passar pelo que se convencionou chamar a “crise da adolescência”; e, sobretudo, sociedade permissiva, de promiscuidade sexual e de amor livre» (Op. cit., p. 145). 136 William Rubin, op. cit., p. 7. 137 Idem, p. 7. 138 Ernst H. Gombrich, The Preference for the Primitive, p. 203. 135

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um dia encontrariam Picasso enforcado atrás de seu quadro, «tal era o desespero que a pintura representava».139 Não era à toa que Picasso compreendia a gênese de Les demoiselles d’Avignon como uma forma de exorcizar a sensação de terror e repulsa sentida no primeiro contato com a chamada «arte negra»: Quando eu fui ao velho Trocadéro, foi repugnante. O Mercado de Pulgas. O cheiro. Eu estava sozinho. Eu queria ir embora. Mas eu não saí. Eu fiquei. Eu fiquei. Eu entendi que aquilo era muito importante: alguma coisa estava acontecendo comigo, certo? As máscaras não eram como quaisquer outras peças de escultura. Não mesmo. Elas eram coisas mágicas. Mas por que não as eram as peças egípcias ou as caldéias? Nós não tínhamos compreendido isso. Estas eram primitivas, não mágicas. As peças negras eram intercesseurs, mediadoras; desde lá então conheci a palavra em francês. Elas eram contra tudo – contra o desconhecido, contra espíritos ameaçadores. Eu sempre olhei para os fetiches. Eu entendi; eu também era contra tudo. Eu também acreditava que tudo é desconhecido, que tudo é um inimigo! Tudo! Não os detalhes – mulheres, crianças, bebês, tabaco, diversão –, mas tudo isso! Eu entendi para que os negros usam suas esculturas. Por que esculpir desta forma e não de outra maneira? Afinal, eles não eram cubistas! Até porque o cubismo não existia. Está claro que alguns indivíduos inventaram os modelos e outros os imitaram, certo? Não é isto que nós chamamos tradição? Mas todos os fetiches foram usados para a mesma coisa. Eles eram armas. Para ajudar as pessoas a impedir que ficassem sob a influência de espíritos de novo, para ajudá-las a se tornarem independentes. Eles eram ferramentas. Se damos forma aos espíritos, nos tornamos independentes. Espíritos, o inconsciente (as pessoas ainda não estavam falando muito dele), emoção – tudo a mesma coisa. Eu entendi por que era um pintor. Completamente sozinho naquele estranho museu, com máscaras, bonecas feitas por peles-vermelhas, manequins empoeirados. Les demoiselles d’Avignon deve ter vindo a mim naquele mesmo dia, mas não tanto por causa das formas, mas porque esta foi a minha primeira pintura-exorcismo – sim, absolutamente!140

Ressalte-se que, em sua declaração, Picasso estabelece uma relação entre a matéria «primitiva» e o exorcismo. Não é mais a busca por uma pureza primordial ou por um mundo idílico que guia o artista em direção a alguma forma de «primitivismo». Parece se tratar de uma tentativa, nem um tanto pacífica ou pacificadora, de colocar os demônios para fora, de expulsar um incômodo. Para John Richardson, Picasso exorciza, naquele quadro, os «conceitos tradicionais de beleza ideal».141 O encontro com os objetos «primitivos», (até então) estranhos à cultura européia, é revelador para Picasso. Ele percebe nas máscaras e nas esculturas negras uma forma alternativa de fazer frente à realidade e de se contrapor à arte do passado. Ele sente emanar destas peças do Museu

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André Derain teria feito esta declaração ao marchand Daniel-Henry Kahnweiler, segundo relata este último em Minhas galerias e meus pintores, p. 44. 140 Depoimento de Picasso reproduzido por André Malraux, Picasso’s Mask, pp. 10-11. No capítulo «Além do exotismo: Picasso e Warburg», de Relações de força, Carlo Ginzburg observa que «foi a própria dimensão mágica que sensibilizou Picasso no momento em que se encontrou diante das máscaras africanas do Museu do Trocadéro» (Op. cit., p. 133). 141 John Richardson, A life of Picasso: 1907-1917: The Painter of Modern Life, p. 32.

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do Trocadéro uma força agressiva que não se encontrava na arte dita «civilizada». Ele vê nos objetos sempre uma oposição a algo; na verdade, uma oposição a tudo. E é com esta oposição que Picasso se identifica, e é por meio dela que ele entende seu papel como pintor.142 A busca por uma «primitividade» passa então a se associar a alguma forma de reação negativa. Talvez se possa encontrar um impulso similar em direção a um exorcismo no fundamento daquele tipo de «primitividade» encontrada nas manifestações e nas produções dos artistas das primeiras décadas do século XX. Vimos como, nas manifestações, a tentativa de destruição do velho e de reconstrução do novo se exprimia como uma oposição a tudo, uma oposição que poderia ser vista como contrária não só àquela forma de arte que os artistas conheciam até então, mas também como uma revolta contra a própria sociedade (contra a qual, lembremos, eles também se opunham, metonimicamente, ao dirigirem suas provocações ao público). Em seu diário, Ball comenta que as máscaras de Janco tornavam visível «o horror do nosso tempo, o pano de fundo paralisante dos acontecimentos».143 O que mais o atraía nestas máscaras era o fato de elas representarem «não caráteres e paixões humanas, mas caráteres e paixões que são maiores que a vida».144 A partir de Picasso, o «primitivismo» parece não ser mais símbolo de esperança num mundo primordial, mas de desespero. E é justamente este sentimento de desespero – e recordemos que desesperar significa anular a esperança – que parece fazer com que os artistas desta geração se movam em direção a um «primitivo» ou primordial. A irracionalidade achada neste outro mundo poderia servir para afrontar a irracionalidade de um mundo que se encaminhava e, depois, entrava numa guerra mundial.145 Uma certa «primitividade» que, por vezes, como

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William Rubin faz notar que Picasso e os cubistas não mudaram sua orientação artística em função da descoberta das máscaras e esculturas africanas, mas a descoberta desta nova forma de arte primitiva veio ao encontro das pesquisas que já estavam em curso: «Está fora de dúvida que a arte tribal exerceu uma influência notável sobre Picasso e em bom número de seus confrades. Mas é também verdadeiro que esta arte não provocou uma mudança fundamental na orientação seguida pela arte moderna. (...) A exemplo das estampas japonesas que fascinaram Manet e Degas, os objetos primitivos contribuíram menos a reorientar a história da pintura que a reforçar e confirmar uma evolução já em curso» (op. cit., p. 17). 143 Hugo Ball, op. cit., p. 65. 144 Idem, pp. 64-65. 145 No entanto, não podemos confundir uma tentativa de forjar uma primitividade ou ações e produções irracionais com uma primitividade efetiva. Seria ingênuo tomar as palavras e as atitudes dos artistas à letra: suas manifestações e seus manifestos podem revelar um caráter aspirante ao primitivo, mas jamais de fato primitivos. Gombrich chama a atenção para isto ao afirmar que «quanto mais você prefere o primitivo, menos você pode se tornar primitivo»: «Paul Klee (...) realmente fez valer sua intenção de aprender com a arte das crianças, sem nunca tornar-se infantil» (Op. cit., p. 297). Se atentarmos não tanto

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veremos mais detalhadamente adiante, se revelava na própria obra ou num conjunto de obras, cujos processos constitutivos se conformam ao modo de estruturação dos mitos e dos ritos, parecia servir como um modo de dar sentido ao que parecia não ter sentido. T. S. Eliot, ao comentar o romance Ulisses, de James Joyce, já observava: Ao usar o mito, ao manipular um contínuo paralelo entre contemporaneidade e antigüidade, o Sr. Joyce está perseguindo um método que outros devem perseguir depois dele. (...) É simplesmente um modo de controlar, de ordenar, de dar uma forma e uma significação ao imenso panorama de futilidade e anarquia que é a história contemporânea. Em vez de um método narrativo, nós podemos agora usar o método mítico.146

Acredito que seja possível verificar no processo mesmo de criação e elaboração de certos trabalhos uma certa «primitividade». Para observarmos tais casos, proponho que voltemos nossa atenção agora a exemplos particulares. Creio provável vislumbrar dois processos diversos de criação e elaboração de certos trabalhos artísticos, derivados de um mesmo ímpeto, que poderiam ser separados em duas dimensões, as quais sugiro que designemos como dimensão mítica e dimensão ritual. À primeira, acham-se associados os trabalhos de Mondrian e de Malevitch; à segunda, aqueles de Schwitters e Duchamp.

c. Mito e rito Antes de passarmos às dimensões mítica e ritual, nas partes subseqüentes deste estudo, proponho esclarecer o que entendo por mito e rito e como pretendo trabalhá-los neste estudo. Northrop Frye, no início de seu Mito e metáfora, já chamava a atenção para a necessidade de uma tomada de posição imediata sobre o mito: «a palavra mito é usada numa variedade tão atordoante de contextos que qualquer um que falar sobre isso tem que dizer antes de tudo qual o seu contexto escolhido».147 Neste livro, lanço mão do mito e do rito como parâmetros críticos a fim de tentar compreender o processo para as manifestações, mas especialmente para os trabalhos dos artistas, pode-se reparar que aquilo que há de irracional e de ilógico neles se constrói por meio de uma extrema racionalização. Ao falar das formas de «primitivismo» do Dadá e do Surrealismo, Goldwater nota que «ao invés de ignorar a arte que eles querem destruir, eles referem-se a ela através de surpreendentes justaposições de forma ou conteúdo e, em conseqüência, suas criações são de uma sofisticação extrema e têm um mínimo de integridade e simplicidade» (Op. cit., p. 219). 146 T. S. Eliot, «Myth and Literature Classicism», compilado por Richard Ellmann e Charles Feidelson Jr., The Modern Tradition, p. 681. 147 Northrop Frye, «The Koine of Myth: Myth as a Universally Intelligible Language», Myth and Metaphor, p. 3.

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constitutivo que subjaz tanto a uma série de obras (Mondrian e Malevitch) quanto a certos trabalhos particulares (Schwitters e Duchamp). Utilizo estas noções porque, como já comentei na Introdução, acredito que seja possível observar uma constância na relação entre arte, mito e rito, mesmo quando esta não se acha explícita e, também, porque creio que, a partir de uma aproximação da arte ao mito e ao rito, certos aspectos ainda obscurecidos na elaboração e realização das obras podem ser mais facilmente esclarecidos. Não entenderei o mito como uma matriz narrativa, mas como uma forma, ou mais especificamente, tomando emprestada uma expressão de Wladimir Krysinski, como um «princípio intelectivo».148 Porém, isto que se apresenta para o crítico como princípio intelectivo parece existir antes para o artista, conscientemente ou não, como uma espécie de secreto princípio formal (ou formalizador) dos processos constitutivos da obra de arte. Gianni Carchia, num artigo sobre a persistência do mito na modernidade, apreendeu muito bem esta passagem da mitologia como repertório figurativo, isto é, como motivo a ser representado, para a noção de mito como forma: Paralelamente ao reconhecimento do mito como profundidade do pensamento, precisaria ao contrário reconhecer no mito, do ponto de vista da arte, não mais uma arquetipicidade a reproduzir, uma forma de qualquer modo já dada, mas, sim, a vida mesma da forma, a sua energia, o trajeto que a põe no ser.149

Paul Ricoeur, nesta mesma trilha, foi muito preciso ao flagrar a emergência, na modernidade, do «mito como mito»: precisamente por que nós vivemos e pensamos depois da separação do mito e da história, a demitização de nossa história pode se tornar o inverso de uma compreensão do mito como mito e a conquista, pela primeira vez na história da cultura, da dimensão mítica.150

Conforme Ricoeur, o que se perdeu do mito no processo crescente de racionalismo e iluminismo foi o seu pseudo-saber, o seu falso logos, aquilo que vemos expresso em seu caráter etiológico, tal qual descrito, por exemplo, por Eliade.151 Contudo, completa 148

Wladimir Krysinski, «I miti “di” avanguardia e i miti “nell’”avanguardia», compilado por F. Bartoli, R. Dalmonte e C. Donati, Visioni e archetipi: il mito nell’arte sperimentale e di avanguardia del primo novecento, p. 16. 149 Gianni Carchia, «Il senso delle parole», Aut Aut, 243-244 (mag.-ago. 1991), p. 8. 150 Paul Ricoeur, «La fonction symbolique des mythes», Finitude et culpabilité II: la symbolique du mal, p. 154. 151 Segundo Eliade, os mitos servem para explicar não só os fenômenos do mundo como também o próprio homem. Por serem histórias significativas e exemplares, além de fornecerem uma significação ao mundo e à existência, assentam padrões de comportamento e fixam modelos para todos os ritos e para todas as atividades humanas. Nisto reside a importância das narrativas míticas: elas mostram ao homem o

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Ricoeur, «perder o mito como logos imediato é reencontrá-lo como mito». Assim, «pelo subterfúgio da exegese e da compreensão filosófica, o mythos pode suscitar uma nova peripécia do logos».152 Não tenho a intenção aqui de passar em revista as mais diferentes acepções que a palavra mito recebeu e ainda recebe.153 Porém, acredito ser importante observar que suas diferentes acepções, mesmo possuindo abordagens ora negativas ora positivas, acabam por se erigir sobre uma base comum: o mito parece ser sempre compreendido como uma forma de tentar apreender a realidade exterior, não importando se esta forma se reveste de um caráter mentiroso, de uma verdade absoluta ou de algo extraordinário. Portanto, essa forma mítica de que falo, ou este mito como forma, se manifesta, em primeiro lugar, como uma tentativa, muito peculiar, de compreender e abarcar a natureza. Conforme Claude Lévi-Strauss, o mito «dá ao homem a ilusão, extremamente importante, de que ele pode entender o universo e de que ele entende, de fato, o universo».154 Assim, nas palavras de Gusdorf, «o mito tem por função tornar a vida possível».155 Carlo Ginzburg nos ajuda a ir um pouco adiante. Depois de fazer um longo percurso que vai do entedimento de mito por Platão e Aristóteles até seu correlato fictio na tradução latina, conclui que, no fim das contas, estes termos – mito e fictio – podem ser interpretados para além de simples formas em que se conjugam verdade e mentira. Para ele, «a elaboração de conceitos como mythos, fictio, signum é tão-somente um aspecto da tentativa de manipular a realidade de maneira cada vez mais eficaz».156 Deste modo, se aceitarmos a proposição de Ginzburg, podemos dizer que o mito se constitui não apenas como uma tentativa de apreender a realidade, mas também de reelaborá-la, com o intuito de dominá-la e de manipulá-la, a partir de um desejo de sistematização do real frente a um mundo aparentemente em desordem – um anseio que me parece ser da mesma espécie daquele que levou os artistas a recorrerem a alguma forma de primitividade (e Besançon acredita que, quando o primitivismo se junta ao esoterismo, que o levou a ser como é: um ente mortal, sexual, organizado em sociedade, obrigado a trabalhar para viver e trabalhando de acordo com determinadas regras (ver Aspects du mythe, pp. 16-17; O sagrado e o profano, p. 87; O mito do eterno retorno, pp. 103-104). 152 Paul Ricoeur, op. cit., p. 154. 153 Roberto Calasso faz um breve, mas preciso, levantamento das diferentes acepções com que a palavra mito chegou até nós (ver «Terror das fábulas», Os 49 degraus, p. 180). 154 Claude Lévi-Strauss, Mito e significado, p. 32. 155 Georges Gusdorf, Mythe et métaphysique, p. 19. 156 Carlo Ginzburg, «Mito: distância e mentira», Olhos de madeira, p. 57.

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resulta na abstração de Malevitch e de Kandinsky, as quais decorrem de uma necessidade do religioso157). Explica Gusdorf: De fato, desde as origens humanas, a harmonia foi já rompida. O ato de nascimento da humanidade corresponde a uma ruptura com o horizonte imediato. O homem jamais conheceu a inocência de uma vida sem fratura. Há um pecado original da existência. O mito guardará sempre o sentido de uma visada à integridade perdida, e como de uma intenção restitutiva.158

Assim, «o mito se afirma como uma conduta de retorno à ordem»: «Ele intervém como um protótipo de equilíbrio do universo, como um formulário de reintegração».159 E, ao se apresentar como um elemento sistematizador, o mito proporciona ao homem a ilusão de estar protegido e de ter encontrado seu lugar no mundo. No entanto, a tentativa de compreender e ordenar a realidade típica do mito não se dá de modo similar à da ciência ou ao do pensamento teórico, os quais também derivam de um mesmo ímpeto sistematizador. Enquanto a ciência ou o pensamento teórico procuram «libertar os conteúdos dados ao nível sensível ou intuitivo do isolamento em que se nos apresentam imediatamente»,160 associando-os a outros conteúdos, comparando-os entre si e concatenando-os numa ordem definida e num contexto abrangente, o mito ou pensamento mítico busca a totalidade sem efetuar uma separação de uma representação global em seus elementos individuais.161 Assim, o mito resulta, ao contrário da ciência, numa totalidade indivisa (o Quadrado negro de Malevitch impõe-se, dentre as produções artísticas modernas sobre as quais me detenho na segunda parte deste estudo, como o exemplo máximo dessa abordagem). Ao tentar apreender e reelaborar a realidade, o mito funda uma outra realidade, uma realidade alternativa àquela que chamamos de real. E estas formas alternativas de conhecimento que pretendem ser os mitos se instituem de modo bastante particular, fundamentadas em determinados

elementos

que

poderíamos

resumir

numa

tendência

à

auto-

referencialidade e à repetição e numa busca por uma espécie de transcendência. Schelling talvez tenha sido o primeiro a chamar a atenção para a autoreferencialidade dos mitos. Para ele, a característica semântica do mito se acha no pensamento tautegórico, aquele pensamento que não reenvia a outra coisa que a ele 157

Ver Alain Besançon, A imagem proibida, p. 498. Georges Gusdorf, op. cit., p. 12. 159 Idem, p. 12. 160 Ernst Cassirer, Linguagem e mito, p. 52. 161 Ver Filosofia de las formas simbólicas II: el pensamiento mítico, p. 72. 158

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mesmo: «A mitologia não é alegórica: ela é tautegórica. Para ela, os deuses são seres que existem realmente, que não são uma outra coisa, que não significam outra coisa, mas que significam somente aquilo que eles são».162 O pensamento tautegórico não busca fora de si uma explicação para os fenômenos porque ele contém em si mesmo seu começo e seu fim, sua pergunta e sua resposta. Assim, «a mitologia nasce de uma vez só tal como ela é e não com outro sentido que aquele que ela exprime».163 Numa tentativa de diferenciar o mito de outras formas de tradição oral, como a saga, o conto, a legenda, André Jolles chega a conclusão semelhante quando observa que o mito se dá a conhecer a partir de si mesmo, que ele se auto-significa, por conter, simultaneamente, sua dúvida e sua elucidação: O homem quer compreender o universo, quer entendê-lo como um todo, mas também em seus pormenores, como a Lua ou o Sol. O que não significa que observe o universo com timidez e vacilação; o que não quer dizer que deseje enveredar por uma investigação tateante e conhecê-lo a partir de si mesmo; significa, outrossim, que o homem está diante do universo e que o interroga. (...) O homem pede ao universo e aos seus fenômenos que se lhe tornem conhecidos; recebe então uma resposta, recebe-a como responso, isto é, em palavras que vêm ao encontro das suas. O universo e seus fenômenos fazem-se conhecer. Quando o universo se cria assim para o homem, por pergunta e resposta, tem lugar a Forma a que chamamos Mito.164

Não distante desta lógica, Ernst Cassirer – cuja teoria parte, em certa medida, de um reexame da filosofia da mitologia de Schelling – entende o mito (assim como a arte e a própria linguagem) como um «protofenômeno do espírito», que traz em si sua verdade e significação.165 Para ele, os mitos podem ser compreendidos como uma forma simbólica, «não no sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real existente, mas, sim, no sentido de que cada uma delas gera e partilha seu próprio mundo significativo».166 É em função disso, dessa constante referência a si mesmo, que «o mito se converte num mistério»: sua autêntica significação e profundidade não residem no que manifesta em suas próprias figuras, mas no que oculta. A consciência mítica se equipara a uma escritura cifrada que só resulta legível e compreensível para aquele que possui a sua chave, isto é, para aquele para quem os conteúdos particulares desta consciência fundamentalmente não são senão signos convencionais de «algo mais» que não está contido neles.167

162

F. W. Schelling, Introduction a la philosophie de la mythologie, t. I, p. 238. Idem, p. 237. 164 André Jolles, «Mito», Formas simples, p. 87. 165 Ernst Cassirer, Linguagem e mito, p. 25. 166 Idem, p. 22. 167 Ernst Cassirer, Filosofia de las formas simbolicas II: el pensamiento mítico, p. 62. 163

60

Poggioli já sugerira se pensar a arte deste período como uma mitologia, justamente porque estabelece «os métodos e os fins da ação».168 Do mesmo modo, décadas depois de Poggioli, Krysinski aproximou a categoria de auto-referencialidade do mito à natureza característica dos discursos da vanguarda – e sugiro que entendamos as imagens plásticas também como um texto discursivo: «Os mitos de vanguarda constituem então uma base ideológica na qual se realiza o estabelecer-se de uma específica formação discursiva que se auto-representa como visão coerente e unificadora

do

mundo».169

Em

função

desta

auto-referencialidade

e

auto-

regulamentação, observa Schelling que «a significação da mitologia não pode ser outra que aquela do processo à continuação do qual ela nasce»170 – e talvez seja possível estender esta observação às obras que iremos analisar nos capítulos subseqüentes. Além de se distinguir como uma totalidade indivisível e auto-referencial, a forma mítica revela uma tendência à repetição, que pode ser abordada a partir de dois pontos de vista. Por um lado, seguindo as proposições de Lévi-Strauss, as várias versões de um mesmo mito costumam compor-se pela recorrência de um número restrito de invariáveis. Em decorrência disso, a repetição assume uma função própria, que é de tornar manifesta a estrutura do mito: «Todo mito possui, pois, uma estrutura folheada que transparece na superfície, se é lícito dizer, no e pelo processo de repetição».171 É por isto que Lévi-Strauss dirá que não existe, no mito, uma versão «verdadeira», «da qual todas as outras seriam cópias ou ecos deformados».172 O que se torna realmente significativo na análise do mito não é tentar compreender uma ou outra narrativa mítica isolada, mas buscar desvelar a estrutura subjacente a ela. «O mito», esclarece LéviStrauss, «propõe um quadro de mensagens cifradas, somente definíveis através de suas regras de construção.»173 Assim, «todas as versões pertencem ao mito».174 Mesmo que 168

Porém a sugestão de Poggioli era ainda discreta e derivava de uma observação que dizia respeito apenas às duas primeiras tendências opositivas e hostis que reconhecia na vanguarda – ativismo e antagonismo. Para ele, ambas tendências podem aparecer como elementos ou fatores racionais em suas formas ou causas últimas, «do mesmo modo que podem apresentar-se racionais, na relação entre meio e fim, a guerra e o esporte, o duelo e o jogo». E ainda: «porque estabelecem os métodos e os fins da ação», podem ser compreendidas como a ideologia da vanguarda, «assim como o conceito mais geral de movimento e a idéia mesma de vanguarda parecem representar a mitologia» (Op. cit., p. 41). Em outras palavras, a vanguarda se avizinha da mitologia porque, como esta última, se auto-regula. 169 Wladimir Krysinski, op. cit., p. 25. 170 F. W. Schelling, op. cit., p. 236. 171 Claude Lévi-Strauss, «A estrutura dos mitos», Antropologia estrutural, p. 264. 172 Idem, p. 252 173 Claude Lévi-Strauss em entrevista a Didier Eribon, De perto e de longe: relatos e reflexões do mais importante antropólogo de nosso século, p. 182.

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detalhes ou partes das narrativas se percam ao longo do tempo, pode-se recuperar delas suas características estruturais essenciais. Por outro lado, os mitos não só se repetem (repetem seus elementos constitutivos, digamos mais precisamente), revelando uma mesma estrutura, como também repetem, no sentido de que reatualizam, uma verdade que, supostamente, se perdeu, ou, numa leitura iluminista ou crítica, que talvez nunca tenha existido de fato, sendo sugerida apenas pela própria reiteração de sua espectral presença. Gusdorf observa que, pela sua repetição, «o mito, como estrutura ontológica, perpetua uma realidade dada».175 Assim, garante, o mito dá à vida «a sanção da eternidade».176 É por isso que «o mundo da repetição é o mundo da criação continuada».177 O mito, portanto, jamais é completo. Salienta Lévi-Strauss: «O pensamento mítico, totalmente alheio à preocupação com pontos de partida ou de chegada bem definidos, não efetua percursos completos: sempre lhe resta algo a perfazer».178 Nisso, o mito se aproxima do rito: «Como os ritos, os mitos são in-termináveis».179 Independentemente de saber se o rito originou-se do mito ou vice-versa – não pretendo entrar nesta discussão ainda não resolvida pela antropologia180 –, o certo é que rito e mito acham-se associados. Quanto a isto, observa Girard: «Não se trata mais de ajustar o ritual ao mito e nem mesmo o mito ao ritual. Com certeza aqui há um círculo, no qual o pensamento permanecia aprisionado e do qual sempre pensava escapar privilegiando um ponto qualquer do percurso».181 De um modo geral, pode-se dizer que o rito é o mito colocado em prática, enquanto o mito é da ordem do legomenon (o que é dito), o rito é dromenon (o que é atuado). O rito seria como a gestualização do mito, a sua mise en acte. Assim, quando falar em rito ou ritual, estarei me referindo aos gestos e às ações que procuram produzir, como o mito, uma fratura na continuidade e, por meio dela, uma ilusão de extensão do tempo ao infinito. Como o mito, o rito também evoca uma realidade de outra ordem. Como observa Aldo Natale Terrin, 174

Claude Lévi-Strauss, «A estrutura dos mitos», op. cit., p. 252. Georges Gusdorf, op. cit., p. 24. 176 Idem, p. 35. 177 Idem, p. 28. 178 Claude Lévi-Strauss, O cru e o cozido, p. 24. 179 Idem, p. 24. 180 Para um resumo deste debate ver Clyde Kluckhohn, «Myths and Rituals: A General Theory», Harvard Theological Review, 35 (1942); K. K. Ruthven, O mito, pp. 49-52; Marcel Detienne, «Mito/Rito»; G. S. Kirk, Myth: Its Meaning and Functions in Ancient and Other Cultures, pp. 12-31; René Girard, A violência e o sagrado, pp. 117-118. 181 Idem, p. 119. 175

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há, de fato, algo de insuportável no rito, enquanto ele parece querer dizer sempre algo «a mais», algo que vai além da tradução, da decodificação, da comunicação mesma, algo que a própria contextualidade não consegue dominar inteiramente e, por isso, parece que o rito, para o estudioso, dá sempre e inexoravelmente a idéia de algo incompleto.182

É esta tentativa do mito e do rito de estabelecer uma permanência por meio da repetição, associada ao mistério derivado da sua auto-referencialidade, que faz com que a realidade criada pelos ritos e mitos pareça ser não apenas uma realidade de outra ordem, mas uma realidade de uma ordem superior. O indivíduo goza assim da ilusão de aceder a uma supra-realidade que «o transfigura e transfigura os limites de sua vida».183 Em suma, arremata Gusdorf, o caráter essencial da consciência mítica «será sem dúvida que ela situa e orienta o homem rumo ao absoluto».184 No entanto, por voltar-se a si mesmo e por forjar um absoluto que deveria ser alcançado não pela verdade filosófica, mas pela constituição de uma realidade de uma ordem superior e, principalmente, por se revelar como uma forma incompleta, o mito termina por se apresentar como um modo falhado de apreensão do mundo exterior. De uma certa maneira, seu fracasso como um modo de conhecimento já estava dado na crítica de Platão aos mitos185 – crítica esta que determinou toda uma tradição de abordagem do mito e da mitologia. Contrapondo-se a Homero, em particular, e aos poetas de um modo geral (não esqueçamos que eram estes os propagadores dos mitos), Platão opunha-se a toda uma forma de conhecimento, um conhecimento que se dava por meio de simulacros – e o mito não deixava de ser um deles –, que nasciam na imagem (eidolon) e terminavam em outra imagem, três graus afastada da Idéia ou Forma (eidos).186 O perigo residia, segundo Platão, na ilusão de verdade transmitida pelo canto 182

Aldo Natale Terrin, O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade, pp. 32-33. Georges Gusdorf, op. cit., p. 23. 184 Idem, p. 36 185 Ver a este respeito, principalmente, os livros II e X da República. 186 Para Platão, há apenas uma Idéia ou Forma (eidos) para cada grupo de objetos múltiplos. É esta Idéia ou Forma de cada uma das coisas do universo que compõe o mundo das Idéias ou das Formas, o único mundo real ou verdadeiro. Por exemplo: há um sem-número de camas e mesas, mas para estes dois móveis há apenas duas Formas, uma de cama, outra de mesa. A estas Formas recorrerá o fabricante que pretende construir um destes dois artigos, e o que produzir não será verdadeiro, pois não será uma cama ou uma mesa ideais – ou seja, a essência de uma cama ou mesa –, será uma cópia da Forma de cama ou mesa – ou seja, sua aparência. Se o fabricante não faz o que é a cama, mas uma cama qualquer, aparente, não faz o objeto real, mas um objeto que se assemelha à Forma deste, sem ter a sua realidade. E a Forma de cama ou mesa já estava dada, foi elaborada por alguém (o Demiurgo) que «não é apenas capaz de fazer todas as espécies de móveis, mas também produz tudo o que brota da terra, modela todos os seres vivos, incluindo ele próprio, e, além disso, fabrica a terra, o céu, os deuses e tudo o que há no céu e tudo o que há sobre a terra» (Platão, A República. Consultei a edição italiana de suas obras completas. Nesta edição, Tutti gli scritti, o trecho citado se acha na pp. 1306-1308). 183

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dos poetas – e esta forma de transmissão não deixa de ter algo de ritualístico em sua propagação pela repetição oral. Um ouvinte ingênuo poderia não saber discernir o que era fábula do que era autêntico. Para Platão, não havia nada digno de se chamar conhecimento que derivasse exclusivamente dos sentidos, porque nenhum órgão da percepção é capaz de nos dizer se tal coisa existe verdadeiramente e, portanto, ser capaz de nos encaminhar à verdade. O conhecimento consistia no juízo da percepção e não em impressões. Desta maneira, para nada serviam as narrativas míticas àqueles que procuravam a compreensão, porque esta se referia a uma inteligibilidade que o mito não portava, e que somente possuía o discurso explicativo. Com Platão, o mito se constituiu como um modo de conhecimento distinto e inferior àquele derivado do logos. À crítica de Platão seguiu-se uma longa tradição de oposição entre o pensamento científico (ou teórico) e o mítico (ou mágico) em que este último encontrava-se em desvantagem.187 Lévi-Strauss, no primeiro capítulo de O pensamento selvagem, realiza a mais consistente tentativa de proceder a uma distinção entre estes dois modos de conhecimento sem qualquer caráter negativo, identificando no pensamento que chama de «mágico ou mítico» um rigor e uma precisão equiparáveis a do pensamento científico. Ele demonstra que o pensamento mítico pode fazer – e faz –, de um modo bastante particular, generalizações, classificações e análises, como se fosse uma «ciência ainda por nascer».188 Os resultados obtidos por meio dos recursos do pensamento mítico – que ele chama de «ciência do concreto»189 – podem ser vistos como antecipações à própria ciência e aos métodos e resultados que a ciência assimilará somente num estágio mais avançado. Não obstante ter encetado suas observações despido de preconceito e de qualquer ranço de um eurocentrismo, Lévi-Strauss não deixa de apontar como, de um certo modo, o pensamento mítico acaba por se constituir de maneira mais restrita – falhada – em relação ao pensamento científico.190 Embora 187

No século XX, Lucien Lévy-Bruhl talvez seja o caso mais exemplar deste modo de compreensão. Para ele, o mundo primitivo e a sua forma de pensamento está completamente desvinculada da nossa. Em oposição à racionalidade do mundo civilizado, o pensamento pré-lógico do primitivo se daria por meio da afetividade e da participação (ver La mythologie primitive. Le monde mythique des Australien et des Papous, p. xi). 188 Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 26. 189 Esta expressão, citada na p. 31, é também título deste capítulo de O pensamento selvagem. 190 Em Mito e significado, Lévi-Strauss fala explicitamente do «fracasso» do mito em relação à ciência: «nós, por meio do pensamento científico, somos capazes de alcançar o domínio sobre a Natureza – creio que não há necessidade de desenvolver este ponto em concreto, já que isto é suficientemente evidente para todos –, enquanto o mito fracassa em dar ao homem mais poder material sobre o meio» (Op. cit., pp. 31-32).

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estes dois modos de conhecimento possam ser comparáveis quanto ao tipo de operações mentais que supõem, eles se mostram desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos: «pois, desse ponto de vista, é verdade que a ciência se sai melhor que a magia», considerando que, algumas vezes, a magia «também tem êxito».191 Feitas estas observações iniciais, Lévi-Strauss procede a uma comparação entre o modo de constituição do pensamento mítico ou mágico e a prática do bricoleur, por ambos elaborarem conjuntos estruturados a partir da utilização de matéria-prima feita de resíduos e fragmentos de fatos, sendo que cada um desses resíduos adquire um significado apenas em relação aos outros resíduos do conjunto. A característica do pensamento mítico é, portanto, «a expressão auxiliada por um repertório cuja composição é heteróclita e que, mesmo sendo extenso, permanece limitado; entretanto, é necessário que o utilize, qualquer que seja a tarefa proposta, pois nada mais tem à mão».192 Assim, o pensamento mítico, como o bricolage, se compõe por meio do recolhimento de materiais já existentes, extraindo-os de seus contextos originais e reorganizando-os dentro de uma nova realidade: seu instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os «meioslimites», isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções de destruições anteriores.193

Disso, conclui que «os elementos da reflexão mítica estão sempre situados a meio-caminho entre perceptos e conceitos», em outras palavras, entre o sensível e o inteligível: «Seria impossível extrair os primeiros da situação concreta onde apareceram, enquanto que recorrer aos segundos exigiria que o pensamento pudesse, pelo menos provisoriamente, colocar seus projetos entre parênteses».194 E como elemento intermediário entre imagem e conceito, prossegue Lévi-Strauss, acha-se o signo. Como o conceito – resultado da abstração filosófico-teórica –, o signo dispõe também de um poder referencial: não diz respeito apenas a si mesmo; signo e conceito podem servir para substituir alguma coisa. Contudo, salienta Lévi-Strauss, «nesse sentido, o conceito possui uma capacidade ilimitada, enquanto que a do signo é 191

Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 28. Idem, p. 32. 193 Idem, p. 33. 194 Idem, p. 33. 192

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limitada».195 Assim, por se organizar por meio de signos e não de conceitos, o pensamento mítico resulta mais limitado que o científico. E isso decorre da própria história de suas matérias-primas, uma vez que as possibilidades de combinação são sempre limitadas pela história particular de cada peça e por aquilo que nela subsiste de predeterminado, devido ao uso original para o qual foi concebida ou pelas adaptações que sofreu em virtude de outros empregos. Assim como as unidades constitutivas do mito, cujas combinações possíveis são limitadas pelo fato de serem tomadas de empréstimo à língua, onde já possuem um sentido que restringe sua liberdade de ação, os elementos que o bricoleur coleciona e utiliza são «pré-limitados».196

A diferença entre o bricoleur e o engenheiro estaria em que o segundo interroga o universo (um objeto virtualmente ilimitado) e o primeiro «se volta para uma coleção de resíduos de obras humanas, ou seja, para um subconjunto da cultura»197 (um objeto limitado). Poder-se-ia, portanto, dizer que tanto o cientista quanto o bricoleur estão à espreita de mensagens, mas, para o bricoleur, trata-se de mensagens de alguma forma prétransmitidas e que ele coleciona (...); já o homem de ciência, engenheiro ou físico, antecipa sempre a outra mensagem que poderia ser arrancada a um interlocutor, apesar de sua relutância em se pronunciar a respeito de questões cujas respostas não foram dadas anteriormente. O conceito aparece assim como o operador de uma abertura do conjunto com o qual se trabalha, sendo a significação o operador de sua reorganização: ela não o aumenta nem o renova, limitando-se a obter o grupo de suas transformações.198

Disso, resulta que o engenheiro situa-se além, enquanto o bricoleur permanece aquém, porque um trabalha por meio de conceitos, o outro, de signos. E ressalta ainda LéviStrauss que o conceito «se pretende integralmente transparente em relação à realidade», ao passo que o signo «aceita, exige mesmo, que uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real».199 A característica fundamental da construção de cada um destes dois modos de pensamento reside em que o mítico elabora estruturas organizando os fatos e os resíduos dos fatos, ao passo que o cientista ou engenheiro percorre a via inversa, cria fatos a partir e através de estruturas. Se pensarmos nos artistas que estudarei nos capítulos seguintes à luz destas diferenciações propostas por Lévi-Strauss, poderíamos dizer que Schwitters e Duchamp, de uma certa maneira, penderiam mais para o bricoleur, uma vez que, como veremos, se 195

Idem, p. 34. Idem, p. 34. 197 Idem, p. 34-35. 198 Idem, pp. 35-36. 199 Idem, p. 35. 196

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valem daquilo que está à mão para a construção de suas obras;200 ao passo que Mondrian e Malevitch tenderiam, à primeira vista, mais para aquela figura de engenheiro evocada por Lévi-Strauss, porque criam seus quadros a partir de uma estrutura fundamental em certa medida preexistente. No entanto, embora pareçam proceder segundo o modelo científico, tanto suas estruturas quanto os fatos (as pinturas) que resultam destas estruturas nada expressam de realmente científico. Primeiro, compõem-se a partir de um número limitado de elementos: o repertório com que Mondrian e Malevitch trabalham não é virtualmente infinito como o científico. Segundo, seus quadros apresentam-se como totalidades indivisas, não sendo, portanto, decomponíveis em partes. Mas esta distinção entre ciência e mito não é estanque. No ponto intermediário entre um pólo e outro destes dois modos de conhecimento, Lévi-Strauss situa a arte. Encerrando sua argumentação, ele procura encontrar um lugar para a arte dentro do sistema que construiu. Para ele, a arte se acharia a meio caminho entre o pensamento mítico e o científico, pois, garante, «todo mundo sabe que o artista tem, ao mesmo tempo, algo do cientista e do bricoleur: com meios artesanais, ele elabora um objeto material que é também um objeto de conhecimento».201 Enquanto o mito busca um conhecimento total, a ciência, para apreender dado objeto em sua totalidade, procede por partes: divide o problema em quantas partes forem necessárias para conhecê-lo.202 Na arte, uma vez que esta opera, segundo Lévi-Strauss, sempre por modelo reduzido,203 a tendência é que o conhecimento do todo preceda ao das partes: «quanto menor o objeto, menos temível parece sua totalidade; por ser quantitativamente diminuído, ele

200

E Lévi-Strauss não deixa de observar, mesmo que num tom negativo, que «a voga intermitente das “colagens” (...) poderia ser, por seu lado, apenas uma transposição do bricolage para o terreno dos fins contemplativos» (Op. cit., p. 46). 201 Claude Lévi-Strauss, op. cit., p. 38. 202 Ver Claude Lévi-Strauss, Mito e significado, pp. 31-32. 203 Lévi-Strauss defende que até trabalhos monumentais e em grande escala não deixam de ser modelos reduzidos: «as pinturas da Capela Sixtina são um modelo reduzido, a despeito de suas dimensões imponentes, pois o tema que ilustram é o do fim dos tempos. Ocorre o mesmo com o simbolismo cósmico dos monumentos religiosos. Por outro lado, pode-se perguntar se o efeito estético de uma estátua eqüestre maior que o natural provém do fato de ela elevar um homem às dimensões de um rochedo e não de reduzir às proporções de um homem o que, no início, é percebido de longe como um rochedo. Enfim, mesmo o “tamanho natural” supõe o modelo reduzido, pois que a transposição gráfica ou plástica implica sempre uma renúncia a certas dimensões do objeto: em pintura, o volume; as cores, os cheiros, as impressões táteis, até na escultura; e, nos dois casos, a dimensão temporal, pois a totalidade da obra figurada é apreendida num instante» (O pensamento selvagem, p. 39).

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nos parece qualitativamente simplificado».204 Retomando a distinção entre ciência e mito a partir de suas relações com a estrutura e os fatos, Lévi-Strauss observa que mesmo quanto a isto a arte se acha entre estes dois modos de conhecimento. A arte parte de um meio-termo entre a estrutura e o fato, entre o esquema e a anedota. Ela não procede por diagramas, mas «realiza a síntese das propriedades intrínsecas e das que dependem de um contexto espacial e temporal»205 de determinado objeto a ser representado. Deste modo, ela sai do fato e do objeto a ser representado para descobrir uma estrutura. Embora seus comentários sobre a arte em geral se acomodem mal à arte mais moderna e digam respeito sobretudo a uma arte mais tradicional (o exemplo que ele mobiliza neste ponto é o da representação de um colarinho de renda de um retrato de mulher de Clouet), fundamentada ainda numa preocupação de representação fiel da natureza,206 eles servem para clarificar e ampliar a sua compreensão do mito. E são justamente estas explicações posteriores sobre o mito, em comparação com a arte, que nos permitirão ver mais claramente o que ocorre principalmente nas pinturas de Mondrian e Malevitch. Para Lévi-Strauss, a análise da arte como ponto intermediário entre mito e ciência «permite compreender melhor por que os mitos nos aparecem simultaneamente como sistemas de relações abstratas e como objetos de contemplação estética».207 Na arte, precisa, parte-se de um conjunto formado por um ou vários objetos e por um ou vários fatos, ao qual a criação estética confere um caráter de totalidade, por colocar em evidência uma estrutura comum. O mito percorre o mesmo caminho mas num outro sentido: ele usa uma estrutura para produzir um objeto absoluto que ofereça um aspecto de um conjunto de fatos (pois que todo mito conta uma história). A arte procede, então, a partir de um conjunto (objeto + fato) e vai à descoberta de sua estrutura; o mito parte de uma estrutura por meio da qual empreende a construção de um conjunto (objeto + fato).208

O que em princípio pode parecer uma contradição (aqui, Lévi-Strauss parece dizer o contrário do que afirmara anteriormente) se explica se entendermos o mito como 204

Idem, p. 39. Idem, p. 41. 206 É conhecida a aversão de Lévi-Strauss a boa parte da arte das chamadas vanguardas históricas. Sobre isso, ver o capítulo «A un jeune peintre», Le regard éloigné. Para Lévi-Strauss, até mesmo a pintura nãofigurativa seria uma espécie de mimese: «não cria, como acredita, obras tão reais – ou mais – quanto os objetos do mundo físico mas imitações realistas de modelos não-existentes» (O pensamento selvagem, p. 45n). 207 Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, p. 41. 208 Idem, p. 41. 205

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constituído a partir de um processo em dois níveis: primeiro, parte de fatos e resíduos de fatos para chegar a uma estrutura; no momento seguinte, parte desta estrutura prémoldada para atingir um «objeto absoluto». Considerando-o desta forma, fica mais fácil compreender o que se dá em Mondrian e Malevitch: como veremos na parte seguinte, ambos criam estruturas com a finalidade de se alcançar um absoluto. Talvez fosse mais proveitoso se se pensasse a arte, dentro do sistema de LéviStrauss, como ora pendendo para o científico, ora para o mítico em função de sua composição interna e dos resultados alcançados. Por ainda se achar preso a padrões artísticos mais tradicionais, Lévi-Strauss deixou de perceber como a estrutura constitutiva desta arte mais moderna e os resultados a que chega se inclinam mais para o mítico. Mas é curioso como, ao comentar a pintura de Manet, talvez o primeiro artista verdadeiramente moderno, utiliza termos que poderiam ser empregados numa descrição do mito como um conhecimento imperfeito: «Manet foi um grande pintor; nele encontramos fragmentos deslumbrantes. E, ao mesmo tempo, percebemos em suas telas uma espécie de desassossego, como se elas não atingissem plenamente seu objetivo. De qualquer modo, Manet marca o fim de uma época, o início de outra».209 Nas partes seguintes, como já anunciei anteriormente, proponho-me examinar os trabalhos de Mondrian, Malevitch, Schwitters e Duchamp, prestando atenção ao processo que os engendram. Para tal, separei os artistas e suas obras em duas dimensões extraídas desta compreensão do mito como forma, como princípio intelectivo. Procedi deste modo por acreditar que se podem identificar dois movimentos suscitados por um mesmo impulso. Por um lado, observarei como se institui uma dimensão que sugiro chamar de mítica em que se pode verificar a constituição, a partir da observação de uma série de quadros, de um processo de repetição de uma mesma estrutura que se manifesta como auto-referencial, ordenada e com pretensão – e frise-se que se trata de uma pretensão – de atingir alguma espécie de transcendência. A peculiaridade desta dimensão é tratar com obras que ainda podem ser chamadas de obras porque dizem respeito a suportes tradicionais: o quadro ainda é reconhecido como um quadro e ainda se pode falar de pintura. Por isso que aqui me deterei nos trabalhos de Mondrian e de Malevitch. Por outro lado, na dimensão ritual, em que analisarei dois trabalhos específicos, um de Schwitters (Merzbau), outro de Duchamp (La mariée mise à nu par 209

Claude Lévi-Strauss em entrevista a Didier Eribon, De perto e de longe: relatos e reflexões do mais importante antropólogo de nosso século, p. 219.

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ses célibataires, même), procurarei demonstrar como uma estrutura mítica se associa a gestos e a ações e que, partindo justamente disso, extrapola a categoria de obra e se institui como uma espécie de evento (em moldes mais próximos das manifestações que estudamos neste capítulo). Além de perceber como estas obras se mobilizam também por um ímpeto de organização e como se constituem em si mesmas como um processo, veremos como o artista deixa de ser apenas um produtor e se torna também um oficiante, um oficiante de um ritual que se organiza em torno de um único trabalho e não em torno de um acontecimento, um espetáculo, como vimos neste capítulo. Nesta dimensão, à diferença da dimensão mítica, a obra passa a se relacionar mais estreitamente com seus observadores e com o espaço circundante assumindo os ares de um templo não mais profano, embora também não sagrado.210

210

Ver Mario Perniola, Più-che-sacro, più-che-profano, p. 13 e ss. As considerações de Perniola sobre as possibilidades de se reconhecer espaços intermediários entre as esferas sagrada e profana serão mais desenvolvidas no capítulo relativo a Kurt Schwitters, na Parte III deste estudo, em relação ao modo de constituição da Merzbau.

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PARTE II DIMENSÃO MÍTICA

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2 PIET MONDRIAN a. Rumo a um método Na abertura de seu livro sobre Mondrian, Bernard-Henri Lévy sugere que tentemos imaginá-lo deixando de pintar aos quarenta anos. «Ele poderia se calar, como Duchamp. Ou morrer, como Van Gogh. Ele poderia ser um verdadeiro grande artista, bem-sucedido no meio de sua vida e, por uma razão ou outra, interromper sua aventura.» Mondrian já seria um pintor consagrado. Ele teria vinte anos de pintura atrás de si. Exposições. Uma glória. Ele teria levantado polêmicas. Suscitado entusiasmos. Haveria telas dele que circulariam. Outras, nos museus. Seria um pintor importante. Em plena posse de seu ofício. Ele teria o sentimento, legítimo, de haver conquistado seu lugar na história da pintura.211

No entanto, em nenhum dos trabalhos produzidos até sua quinta década, encontra-se sequer um vestígio daquela estrutura pictórica que nos permite reconhecer facilmente um Mondrian até mesmo na estampa de um vestido Yves-Saint Laurent. Mas Piet Mondrian tem quarenta anos. Ele pintou dezenas de flores e de pequenos cachorros. E eu observo que, na massa, nesta longa série de quadros dos quais ele se orgulha então, não há um – friso: nem um – que, de perto ou de longe, prefigure a maneira à qual nós sabemos que seu nome está ligado.212

Mondrian completou quarenta anos em 1912. Chegara há pouco a Paris e apenas começava a tomar conhecimento do que estava sendo produzido de novo na cidade. Até então, dedicara-se totalmente à pintura figurativa, representando paisagens, flores, fachadas de igrejas e de moinhos e imagens simbolistas com alusões à doutrina teosófica, como o famoso tríptico Evolução (1910-1911),213 no qual vemos uma mulher em três estágios diferentes de elevação espiritual. Na capital francesa, impressionou-se com o cubismo de Braque e Picasso e, influenciado por ambos, realizou uma série de pinturas de árvores se valendo do contorno preto em seus quadros – detalhe que iria ser 211

Bernard-Henri Lévy, Piet Mondrian, pp. 11-12. John Milner também salienta que Mondrian, aos 28 anos, já era «um compositor de pinturas inventivo e original. Até mesmo seus estudos menores, muito provavelmente resultado de observação direta, mostram sua preocupação com as condições contraditórias da pintura para organizar uma imagem espacial na superfície plana da tela. Mondrian enfatizava a tensão entre profundidade e planura» (Mondrian, p. 14). 212 Bernard-Henri Lévy, op. cit., p. 12. 213 Optei por apresentar aqui as traduções dos títulos originais e as datas dos trabalhos de Mondrian em conformidade com o que foi estabelecido mais recentemente por Robert Welsh e Joop M. Joosten no último e mais completo Catalogue raisonné dos trabalhos do artista.

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a base de suas telas posteriores. Pintou também nus, naturezas-mortas e paisagens baseadas em formas arquitetônicas, além de lançar mão de temas já trabalhados anteriormente, como flores, dunas e cenas marítimas, transformando-os em composições mais tendentes à abstração. Nos primeiros anos sob o influxo cubista, os tons de suas telas repetiam aqueles dos colegas que viviam em Paris: viam-se o cinza, o marrom, o ocre, o verde, o preto. De volta à Holanda, em 1914, onde permaneceria até o final da Primeira Guerra Mundial, Mondrian iluminou sua paleta, predizendo o neoplasticismo de suas futuras composições ao decidir-se pelo rosa, azul, amarelo e vermelho. «A calorosa adesão de Mondrian ao cubismo», comenta Meyer Schapiro, «foi surpreendente, uma vez que ele tinha então quarenta anos, com uma prática longa e madura que pareceria desencorajar a mudança para um estilo de princípios tão diferentes dos seus.»214 Ao assimilar a abordagem cubista, completa Schapiro, Mondrian se afastou para sempre do pathos expressionista e da intensidade fauve, bem como do simbolismo e de sua retórica de posturas demonstrativas, emblemas e dualidades espirituais, embora mantivesse por um breve período temas carregados de emoção, como a alta fachada da igreja e a árvore esquelética intrincada e esbugalhada. Se, como foi suposto, o dogma do exclusivo equilíbrio vertical e horizontal dos trabalhos tardios era baseado numa convicção teosófica formada em seus anos de juventude, sua aplicação estrita teve que esperar pela sua experiência do cubismo, uma arte que o libertou da patente imagética simbólica, bem como de interpretações líricas da natureza, e voltou sua mente para uma concepção da sua arte como, em essência, uma operação construtiva com formas elementares não-miméticas.215

Com efeito, algumas das pinturas desta fase – como O mar (1912, fig. 1), Árvores florescendo (1912) e A árvore A (1913) – fazem referência ao mundo exterior apenas por seus títulos. Se não fossem estes, talvez demorássemos a perceber que o jogo entre linhas angulosas e retas sob um fundo cinza sugere o movimento das ondas em O mar. Em Árvores florescendo, a mesma relação que encontramos em O mar, entre linhas curvas, semicírculos e retas, leva a uma quase abstração do objeto. A árvore A, por sua vez, «esconde-se» atrás de linhas em sua maioria retas nos sentidos horizontal e vertical e umas poucas oblíquas. Em certas telas de 1913 e 1914, que passam significativamente a ser denominadas pelo pintor simplesmente de Quadro ou Composição, as linhas curvas e os ângulos obtusos desaparecem, restando apenas uma

214 215

Meyer Schapiro, Mondrian: Order and Randomness in Abstract Painting, p. 27. Idem, pp. 52-53.

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grade de linhas horizontais e verticais, ainda quebradas, aqui e ali, por diagonais, atingindo uma abstração completa do objeto, embora o ponto de partida do pintor ainda pareça ser a natureza ou a vida na metrópole, como propõem Hans Janssen e Joop M. Joosten: Uma vez bem integrado a Paris, Mondrian se pôs a ver na metrópole a vida abstrata posta em formas, realmente bem mais próxima do artista moderno do que a natureza, e no qual, mais que a natureza, ele procurará o arrebatamento estético, porque na metrópole o natural já foi trabalhado, ordenado pelo espírito humano. As relações que ritmam a distribuição das superfícies e das linhas na arquitetura falarão a ele mais diretamente do que os caprichos da natureza. Na metrópole, o belo se exprime de maneira mais matemática.216

No entanto, embora já fundamentadas numa relação de tensão entre linhas horizontais e verticais, as pinturas deste período ainda não se parecem com a estrutura gradeada dos anos posteriores, que fez de Mondrian um artista singular. Mas já são um primeiro grande passo nesse sentido. O próprio Mondrian explicou suas futuras intenções a partir das últimas obras que realizou nesta época, em carta de 29 de janeiro de 1914, endereçada ao professor e crítico de arte H. P. Bremmer: Eu construo linhas e combinações de cor numa superfície plana com a intenção de expressar a beleza geral com a máxima consciência. Natureza (ou, aquilo que vejo) me inspira, me põe, como a qualquer pintor, no estado emocional para que um estímulo surja a fim de produzir algo, mas eu quero chegar tão perto quanto seja possível da verdade e abstrair tudo dela até alcançar a essência (ainda que somente uma essência externa!) das coisas. (...) Acredito que é possível, através de linhas horizontais e verticais construídas com consciência, mas com cálculo, e guiadas por uma grande intuição e reduzidas ao ritmo e à harmonia, que essas formas básicas de beleza, suplementadas se necessário por outras linhas vetores ou curvas, possam tornar-se uma obra de arte, tão poderosa quanto é a verdade.217

Em 1914, portanto, Mondrian já dava mostras de uma vontade de abstrair totalmente a natureza de suas pinturas, por meio de uma construção baseada em linhas e combinações de cor. Se não fosse por alguns detalhes, como a referência às linhas vetores e curvas, o trecho acima citado poderia dizer respeito a suas composições neoplásticas, as quais, anos mais tarde, resultariam do refinamento destas recentes descobertas formais. Para chegar ao neoplasticismo, a passagem pelo cubismo lhe foi 216

Hans Janssen e Joop M. Joosten, Mondrian de 1892 a 1914: les chemins de l’abstraction, p. 194. Os autores comentam ainda que «na sucessão deixada por Mondrian figura um grande número de esboços diversos, conservados num pequeno caderno de desenho, representando as fachadas ou os fundos dos imóveis parisienses e nos quais se nota esta distribuição rítmica, matemática, de superfícies e linhas» (Op. cit., p. 194). 217 Citado por Joop M. Joosten, Catalogue Raisonné of the Work of 1911-1944, p. 105.

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fundamental. Hans L. Jaffé salienta que foi no cubismo que Mondrian «subitamente encontrou uma linguagem, uma gramática, um método com o qual domar e subjugar a natureza, enquanto ainda expressando sua grandeza».218 Na visão de Jaffé, a transição para o cubismo não pode ser reduzida a uma simples motivação externa, mas se trata de «um desenvolvimento lógico interno». Os fundamentos para este novo rumo que toma sua arte já estavam previstos nos trabalhos anteriores. O objetivo estrito do cubismo, sua lúcida e clássica simplicidade, satisfizeram a aspiração de Mondrian. Nesse novo estilo, ele deve ter enxergado potencialidades que tinham estado previamente latentes nele mesmo: a mestria lógica de uma simples e rigorosa metodologia.219

Creio que Jaffé toca num ponto fundamental: aos quarenta anos, Mondrian descobriu um novo método de trabalho, derivado – mas não copiado – dos novos recursos formais introduzidos pelo cubismo. Talvez valha ressaltar que acredito ser um erro considerar que Mondrian tenha sido um pintor cubista, mesmo que por um curto período, ou que haja em sua obra uma fase cubista. O seu «cubismo» difere bastante daquele praticado por Braque e Picasso – e mesmo por Gleizes, Metzinger e Gris. Enquanto estes buscavam, por meio de um facetamento das formas,220 um estilhaçamento da perspectiva central, oferecendo, em seu lugar, um equilíbrio em duas dimensões de objetos em planos diferentes em três dimensões, a partir da sobreposição de imagens de um mesmo objeto representado simultaneamente de frente e de perfil ou, quando se tratava de uma figura humana, de pé e sentado, Mondrian parecia mais interessado em explorar não os diversos pontos de vista de um mesmo motivo, mas a própria estrutura geométrica a fim de obter uma planificação do espaço.221 Do cubismo, 218

Hans L. C. Jaffé, Piet Mondrian, p. 21. Idem, p. 21. 220 J. M. Nash acredita que a chave do cubismo não é o cubo, mas a faceta, composta por uma pequena área limitada por linhas retas ou curvas, duas bordas opostas com um tom escuro e uma área intermediária modulando os dois extremos. Esclarece ele: «As facetas são compostas de acordo com três princípios. Primeiro, são quase sempre pintadas como se estivessem em um ângulo ligeiro com a superfície vertical da tela; isto é, são como as persianas de uma janela que estão normalmente abertas mas nunca em ângulo reto. Segundo, embora as facetas se sobreponham e lancem sombras umas sobre as outras, as sombras e as sobreposições são inconsistentes; seria impossível construir um modelo em relevo de um quadro cubista. Terceiro, as bordas das facetas dissolvem-se, permitindo que o seu conteúdo se derrame de umas para as outras como os cubistas aprenderam com Cézanne» (O cubismo, o futurismo e o construtivismo, p. 19). 221 Em sua monografia sobre o pintor, Filiberto Menna analisa mais detidamente as diferenças entre os cubismos de Picasso, Braque, Gris e Mondrian. Em linhas gerais, destaca o crítico italiano: «enquanto Picasso parece partir do objeto (ou dos seus fragmentos) para reconstruir com esses o espaço da tela, Braque, ao contrário, move-se do espaço e, só num momento sucessivo, obtém o objeto nos modos 219

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Mondrian extraiu um método, ou uma gramática, ou simplesmente uma forma ideal para dar corpo a sua intenção de «expressar a beleza geral com a máxima consciência». Contudo, da revelação de um método à estrutura gradeada pela qual reconhecemos um Mondrian à distância, foi preciso passar ainda por algumas fases intermediárias. Em 1914, paralelamente a telas abstratas de inspiração cubista, Mondrian começou a produzir, inteiramente com linhas verticais e horizontais e em preto e branco, desenhos em papel em que toma como motivos o píer, o oceano e as fachadas de igrejas. O motivo representado já não era facilmente reconhecido. A ênfase recaía sobre a forma e o ritmo da composição. Nos anos seguintes, até 1917, desenvolveu pinturas, também em preto e branco, similares a estes desenhos, porém cada vez mais abstratas. Se tomarmos como exemplo a série realizada em papel sobre o tema do oceano – Oceano 1, 2, 3, 4 e 5 (fig. 2 a 6) –, as quatro primeiras de 1914 e a última de 1915, e a compararmos com o já citado quadro O mar, realizado dois anos antes, podemos observar o refinamento do método mondriânico. Para começar, a tela preserva o formato quadrado, ao passo que os desenhos adotam o formato oval. A pintura em cinza do fundo dá volume e profundidade ao que é representado; as linhas pretas sobre o fundo branco dos desenhos achatam e planificam o espaço – e saliente-se que este efeito não ocorre por se tratar de um desenho: no óleo sobre tela Composição 10 em preto e branco, a mesma planificação é obtida em função da estrutura das verticais e horizontais. Em O mar, predominam ainda as linhas curvas, formando uma série de semicírculos que atuam como o movimento da água. Nos desenhos, as linhas curvas se reduzem ao máximo, concentrando-se na parte superior, e desaparecem totalmente as linhas retas oblíquas. Em Oceano 3, apenas duas linhas curvas são vistas no centro superior do desenho. Em Oceano 4, uma única linha curva se sobressai em meio a retas horizontais e verticais. Em Oceano 5, por seu turno, não caberia mais falar de uma linha curva, mas talvez, salvo o paradoxo, de uma linha reta levemente abaulada. Aliás, uma seqüência muito maior de linhas verticais curtas que cruzam as horizontais, mais longas, ditados pela pintura. (...) De tudo isto deriva que as obras cubistas de Picasso revelam mais uma força centrífuga, uma carga explosiva e desintegradora, lá onde as obras de Braque apresentam-se como um férreo agregado, uma solidíssima concreção. (...) Em Gris, ao invés, existe um procedimento dedutivo e centrípeto como em Braque mas com esta diferença, que Gris parte não tanto do espaço quanto do objeto, porém não do objeto singular, mas, sim, da sua idéia abstrata, uma sorte de arquétipo do objeto. (...) Em Mondrian, ao invés, é possível observar, ao menos neste momento, um proceder do objeto rumo ao espaço, do lado sensível rumo ao abstrato. O que interessa Mondrian é sobretudo o espaço, como vimos em Braque: com esta diferença todavia, que neste último o espaço é o ponto de partida, enquanto no holandês é o ponto de chegada» (Mondrian, pp. 92-93).

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pode ser observada nos desenhos. Na pintura, as linhas verticais aparecem timidamente na parte inferior do quadro. Comenta John Golding: A realidade percebida – o píer, o mar, o céu – pode estar atrás das configurações transmitidas pelas linhas, mas são as linhas em si e suas relações com o fundo branco no qual elas estão impressas e incrustradas que se tornou o assunto da pintura: seu pulso, seu ritmo tornaram-se a imagem pictórica.222

Acompanhando-se o desenvolvimento da série Píer e oceano, percebe-se como os traços que ainda definem os motivos – o píer e o oceano – vão aos poucos esmaecendo até se transformarem em simples linhas. Em Píer e oceano 1 (fig. 7) e Píer e oceano 2, ambos de 1914, o píer é facilmente reconhecido, uma vez que é figurado a partir de uma série de traçados e não somente por meio de poucas linhas horizontais e verticais. Em Píer e oceano 3 (fig. 8), de 1914, um traço vertical mais grosso na parte central e inferior do desenho sugere o píer. Em Píer e oceano 4 (fig. 9) e Píer e oceano 5, as linhas do píer não se diferenciam das do oceano pela grossura do traço, mas pelo comprimento: duas linhas paralelas verticais mais longas que as outras delimitam o píer na parte central e inferior do desenho. O que parece passar a interessar a partir desta série não é aquilo que é representado, mas a estrutura em si. Para Kermit Swiler Champa, seguramente «Mondrian determinava a estrutura primeiro e então considerava o incidente»: «Ao escolher o formato oval para começar, Mondrian reivindicava uma origem pictórica, em vez de uma incidental ou “natural”, para semear a estrutura».223 Mas Mondrian experimentaria seu método mais um pouco antes de chegar à sua famosa estrutura gradeada. Depois dos desenhos e das pinturas em preto e branco das séries conhecidas como Píer e oceano e Mais-e-menos, em 1917 (ano em que é publicado o primeiro número da revista De Stijl, com o artigo de Mondrian intitulado «O neoplástico na pintura»), ele realizou duas telas absolutamente abstratas – Composição em cor A e Composição em cor B –, subtraindo qualquer referência que fosse à natureza. Nestas, sobre um fundo branco, pintou uma série de pequenos quadrados e retângulos em azul, rosa e ocre, sobre e ao lado dos quais aplicou pequeníssimos retângulos – alguns quase linhas – em preto, que dão um certo dinamismo à composição. No mesmo ano, produziu outras quatro telas em que dispôs lado a lado quadrados e retângulos, de dimensões parecidas – sem sobrepor uns aos 222 223

John Golding, «Mondrian and the Architecture of the Future», Paths to the Absolute, p. 26. Kermit Swiler Champa, Mondrian Studies, pp. 39-40.

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outros, como fez nas composições citadas anteriormente –, sempre em três cores: azul, rosa e amarelo (Composição com planos de cor 2 e Composição nº 3 com planos de cor224 [fig. 10]), azul, vermelho e amarelo (Composição com planos de cor 4), e cinza, rosa e amarelo (Composição nº 5, com cor). Nestas, o preto é eliminado. Como atesta este trecho de uma carta datada de 5 de setembro de 1917, Mondrian estava contente com seu trabalho e achava que tinha dado início à sua «grande busca»: Eu estou mais satisfeito com a aquarela, que é um grande conforto agora que tenho que diminuir o meu trabalho: a grande busca está acabada agora, pelo menos por estes tempos, o que significa que eu posso agora trabalhar regularmente em algumas telas em meio a todas as outras coisas.225

Três meses depois, declarava a Theo van Doesburg: «Eu estou conseguindo mais unidade nas minhas coisas, e o equilíbrio que estou procurando».226 Sobre estas composições com planos de cor, Champa observa que Mondrian abandona de uma vez por todas a possibilidade de considerar uma percepção de fora da pintura para estabelecer uma estrutura da pintura. Píer e oceano foi a última estrutura a ser abstraída de uma percepção de fora da pintura. Doravante, somente aquelas relações que recordam, por assim dizer, a natureza e já de uma maneira ou de outra definitivamente transformadas em pinturas do seu trabalho passado permanecem disponíveis para gerar e guiar o novo trabalho. Neste momento da sua pintura, Mondrian evidentemente decidiu que a experiência da pintura, além de ser mais forte, é mais fidedigna e, nestes termos, mais objetiva que qualquer outra. Esta decisão tanto determina quanto posteriormente sustenta a sua prática subseqüente e exclusiva de abstração geométrica plana.227

As pinturas de Mondrian continuam a representar relações plásticas, porém, a partir de então, a origem dessas relações não é encontrada na realidade visível, mas dizem respeito a si mesmas, a seus recursos pictóricos internos. Como objetos de visão autogerados, as pinturas abstratas de Mondrian, ao invés de esforçar-se mais para alcançar as relações mais básicas apresentadas via visão natural, contrói o que se pretende como as essencialmente básicas, aquelas originadas e condicionadas somente pelas condições puras extremamente simples, para a mente de Mondrian, do meio da pintura em si. Pintura como o retângulo primevo que gera uma sucessão sem fim na sua superfície de outras relações retangulares mais ou menos complexas que, através de tipo e número, refletem toda sorte possível de relações puras.228 224

Para Serge Fauchereau, o neoplasticismo nasce com esta composição (Mondrian and the Neoplastic Utopia, p. 22). 225 Carta escrita a seu amigo Van Assendelft e citada por Joop M. Joosten, Catalogue Raisonné of the Work of 1911-1944, p. 260. 226 Citada por Joop M. Joosten, op. cit., p. 260. 227 Kermit Swiler Champa, op. cit., p. 54. 228 Idem, pp. 54-55.

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A partir do ano seguinte, Mondrian reintroduziu as linhas pretas verticais e horizontais e as combinou com linhas cinza. Desta vez, porém, construiu com estas linhas uma grade regular, mas com variações assimétricas obtidas por meio da justaposição de quadrados e retângulos coloridos de tamanhos variados. Estas obras – tal qual Composição A (fig. 11), de 1920 – já contêm todos os elementos dos trabalhos futuros do artista. Por um curto período, entre os anos de 1918 e 1919, paralelamente a esta pesquisa, Mondrian realizou duas outras séries de pinturas partindo de abordagens um tanto diversas. Por um lado, experimentou a estrutura gradeada crua, numa interseção de linhas verticais, horizontais e diagonais, todas pretas, sobre um fundo branco e com a tela em formato de losango. Refiro-me ao exemplar único desta experimentação: Composição com grade 3: losango (1918). No mesmo formato de tela, reproduziu a estrutura gradeada de linhas cinza e pretas, a partir da relação entre quadrados e retângulos coloridos e assimétricos. Por outro lado, criou duas telas que causam um certo estranhamento. Tratam-se de Composição com grade 8: composiçãotabuleiro com cores escuras e Composição com grade 9: composição-tabuleiro com cores claras, ambas de 1919. Nestas, a regularidade da estrutura resulta da disposição na tela de dezesseis linhas pretas em sentido horizontal e outras dezesseis, na vertical. O estranhamento decorre, principalmente, da disposição aparentemente desordenada das cores, por meio da qual se estabelece uma tensão entre a extrema ordenação (as linhas formando pequenos retângulos iguais) e a tentativa de sabotá-la pela uso irregular da cor. Foi somente quando estava quase chegando aos cinqüenta anos que Mondrian cristalizou seu método de trabalho. O retorno a Paris, depois da Primeira Guerra Mundial, em junho de 1919, foi novamente definitivo. A partir de então, procurou trabalhar no que considerava ter «mais do que aquele algo mais».229 No início do ano seguinte, concluiu seu primeiro trabalho desta segunda fase em Paris e talvez também o primeiro que indicava o amadurecimento daquele método que Mondrian perseguia desde meados da década de 1910: Composição A. Esta se constitui de uma grade assimétrica de linhas cinza e pretas, formando quadrados e retângulos nas cores 229

Piet Mondrian em carta a Theo van Doesburg, datada de 21 de agosto de 1919, citada por Joop M. Joosten, op. cit., p. 116. Para Joosten, Mondrian provavelmente se referia às Composição nº II e Composição A.

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primárias e em branco e cinza. A esta composição, seguiu-se uma série de outras, realizadas nos anos seguintes, as quais operam segundo uma mesma lógica interna: estreitas linhas pretas verticais e horizontais cruzam o quadro formando quadrados e retângulos, os quais, por sua vez, recebem as cores amarelo, vermelho, azul, preto, branco e cinza. Estava criado o neoplasticismo. Vale recordar que o termo holandês beelding – que em francês, inglês, italiano e português foi traduzido respectivamente como plastique, plastic, plastico e plástico – comporta em si os significados de «aquilo que dá forma», de «criação» e, por extensão, de «imagem», de «plástica».230 Assim, o neoplasticismo de Mondrian deveria ser entendido também como um neoformativismo, uma neoestruturação. Desde então até o seu desembarque em Nova York, em 1940, a realização de suas pinturas se fundamentou sobre um vocabulário pictórico que, na opinião de Joop M. Joosten e Angelica Zander Rudenstine, se limitou a pouquíssimos elementos: planos de cores primárias puras, planos de «não-cor» e linhas pretas.231 Dessa série de telas abstratas que Mondrian passou a criar a partir da década de 1920 – ou mesmo das quase abstratas (como Píer e oceano e Mais-e-menos) que vimos anteriormente –, poderíamos ainda dizer o que Champa afirmou acerca das pinturas de 1913-1914: «Os trabalhos não são em nenhum sentido todos o mesmo, no entanto eles são bastante conversíveis uns nos outros».232 De fato, parece reinar uma equivalência quase integral entre as obras concebidas por Mondrian depois da descoberta do cubismo – embora nunca sejam exatamente iguais. O que passa a interessar não é mais o motivo representado ou os elementos em relação em cada obra singular, mas o processo que subjaz a todas elas. Carlo Ludovico Ragghianti, em seu monumental estudo sobre Mondrian, ainda no início da década de 1960, já chamava a atenção para o fato de que, se quiséssemos fazer crítica, deveríamos nos deter no processo artístico. Escrevia ele:

230

Ver Nancy J. Troy, Mondrian and the Neo-Plasticism in America, p. 5; e Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 27. Holtzman e James ressaltam que os termos plastic, do inglês, e plastique, do francês (e poderíamos acrescentar o plástico, do português), provêm do grego plassein, que significa formar ou moldar, «mas que não encerram inteiramente a significação criativa e estrutural de beelding». 231 Joop M. Joosten e Angelica Zander Rudenstine, «Catalogo», Piet Mondrian: 1872-1944, p. 193. A expressão «não-cor» é empregada pelo próprio Mondrian em seus escritos para se referir ao branco e ao preto. O primeiro artigo em que utiliza o termo é «A manifestação do neoplasticismo em música e os Bruiters futuristas italianos», de 1921. 232 Kermit Swiler Champa, op. cit., p. 31.

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não podemos mais nos contentar em asseverar que o quadro é feito de certos elementos abstratos e gerais do discurso pictórico (plano, linhas, ângulos, cruzes), mas devemos procurar explicá-lo, esclarecê-lo na sua singularidade e na qualificação de seu processo mesmo. Constatar a presença dos elementos representativos é gramática, estudar e procurar reconstruir exatamente o processo construtivo ou criativo é crítica.233

E o que pretendo aqui é justamente tentar revelar os meandros deste processo, uma vez que acredito somente ser possível começar a compreender a obra de Mondrian se formos, pelo menos, um passo além daquele tipo de análise que se detém somente na descrição do quadro e no estabelecimento de relações internas entre as linhas e os planos de cor. Um exame da obra de Mondrian tal qual o proposto por Anthony Hill, por exemplo, nos mostra apenas que é possível sintetizar uma centena de pinturas numa meia dúzia de poliedros.234 O próprio Ragghianti, que recusa uma explicação fácil por meio de uma aproximação com a teosofia e que sugere que se atente ao processo, acaba por apontar as relações e o ritmo geral dos quadros e por examinar a obra do artista em função da simetria e da assimetria.235 E estes dois autores não são casos isolados, a maioria das abordagens sérias da obra de Mondrian recai seja num exame imanente por meio do qual se tenta matematizar a estrutura gradeada e/ou se busca descrever as relações entre os elementos constitutivos da pintura, seja, por outro lado, numa análise que busca explicações para suas pinturas e desenhos em fatores exteriores às obras. Parece-me que a riqueza da arte tanto de Mondrian quanto de outros artistas do século XX já não reside mais unicamente no objeto (quadro, escultura, instalação etc.), mas também e talvez principalmente no processo de constituição deste. Sugiro, portanto, que prestemos atenção ao processo. É a partir dele que começa a se intituir aquilo que chamo de dimensão mítica. Antes de prosseguirmos, porém, cabe esclarecer o que entendo por processo e qual sua diferença em relação à técnica. Compreendo a técnica como a instrumentalização que permite ao artista realizar sua obra de uma determinada forma. Para mim, ela tem, portanto, um sentido utilitário. Ela indica, conforme Gillo Dorfles, o «domínio do homem sobre a natureza» e se define como «um “esquema operativo” (...),

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Carlo Ludovico Ragghianti, Mondrian e l’arte del XX secolo, p. 278. Ver Anthony Hill, «Art and Mathesis: Mondrian’s Structures», Leonardo, I, 3 (1968), pp. 233-242. 235 Ver Carlo Ludovico Ragghianti, op. cit., pp. 278-279 (para a análise de Composição com linhas, de 1916), p. 290 (para Composição A e Composição B), pp. 294-295 (para as Composições-tabuleiros, as quais analisa a partir do tema da partição regular do plano e da superfície), p. 332 e ss. (para uma série de composições da década de 1920). 234

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inventado ou encontrado para a realização de qualquer atividade».236 O processo, por sua vez, designa aquilo que, na técnica, ainda não é técnica ou já não o é. A concepção moderna de técnica é de que ela é um meio para a realização de um fim; o processo, por seu turno, já participa deste fim. Minha distinção, em alguma medida, quer corresponder àquela, vigente na Grécia antiga, entre poiesis e techné.237 Atentar para o processo é atentar para a dinâmica volitiva que está por trás e perpassa os modos de constituição de um trabalho específico ou de uma série de trabalhos; é, em outras palavras, prestar atenção para a ação ou as ações primárias, em certa proporção anteriores mesmo a qualquer gesto produtor efetivo, que subjazem à criação de uma obra. Mas é preciso frisar: a técnica está sempre a serviço do processo e não o contrário. Paul Valéry, em sua aula inaugural do curso de Poética no Collège de France, em dezembro de 1937, cunha uma bela definição: «É a execução do poema que é o poema».238

b. Repetição Sugiro que comecemos examinando alguns conjuntos de telas, todas realizadas depois da década de 1920, quando o método de trabalho de Mondrian já havia se cristalizado. Observemos primeiro Composição com largo plano vermelho, amarelo, azul, cinza e preto (fig. 12), de 1921, Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza (fig. 13), de 1920, e Composição com vermelho, preto, amarelo, azul e cinza (fig. 16), de 1921. Se fôssemos descrevê-las, de um modo geral, poderíamos dizer que elas se compõem de linhas pretas horizontais e verticais, de mesmas dimensões, que se cruzam formando uma grade irregular. Estas linhas delimitam planos de cor no formato de 236

Gillo Dorfles, Nuovi riti, nuovi miti, p. 25. Aqui, vou na contramão da assimilação que Heidegger faz do termo techné, no seu significado originário, ao termo poiesis «Outrora, não apenas a técnica trazia o nome de τέχνη. Outrora, chama-se também de τέχνη o desencobrimento que levava a verdade a fulgurar em seu próprio brilho. Outrora, chama-se também de τέχνη a pro-dução da verdade na beleza. Τέχνη designava também a ποίησις das belas-artes» (Martin Heidegger, «A questão da técnica», Ensaios e conferências, p. 36). 238 Paul Valéry, «Primeira aula do curso de poética», Variedades, p. 194. Mais adiante, neste mesmo texto, Valéry chama a atenção para a possível falibilidade deste processo, para o seu virtual fracasso em não atingir o que se propunha de início: «No artista acontece realmente – é o caso mais favorável – de o mesmo movimento interno de produção dar-lhe ao mesmo tempo e indistintamente o impulso, o objetivo exterior imediato e os meios ou os dispositivos técnicos da ação. Geralmente estabelece-se um regime de execução durante o qual há uma troca mais ou menos viva entre as exigências, ou conhecimentos, as intenções, os meios, todo o mental e o instrumental, todos os elementos de ação – de uma ação cujo excitante não está situado no mundo em que estão situados os objetivos da ação comum e, conseqüentemente, não pode dar ensejo a uma previsão que determine a fórmula dos atos a serem realizados para atingi-la com segurança» (Op. cit., p. 199). 237

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quadrados e retângulos de tamanhos diversos. Na primeira, um grande plano quadrado pintado de vermelho, localizado na parte superior do quadro, induz a um movimento centrípeto da percepção: o vivo da cor atrai o olhar do espectador para o interior da tela. Reforçam ainda mais esta impressão a disposição do pequeno quadrado negro logo abaixo do largo quadrado vermelho e do retângulo alongado também preto e de outro, azul escuro – todos os três situados na parte inferior do quadro –, contrastando com uma expressiva predominância de planos retangulares verticais em branco e cinza em torno da tela (as exceções são dois planos amarelos e um vermelho). Em Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza, o movimento parece se dirigir para um sentido oposto: para fora do quadro. O grande quadrado branco, posicionado quase ao centro da tela, sugere uma irradiação centrífuga. Abaixo, um plano retangular de cor azul escuro delimita o grande quadrado branco; à esquerda, está um retângulo preto, e à direita, outro retângulo menor preto e um, amarelo; por fim, acima, vemos um retângulo amarelo. Apesar de Composição com vermelho, preto, amarelo, azul e cinza ter um formato retangular vertical, em contraste com as outras duas, que possuem formas quadradas ou quase, a sua organização interna conforma-se à mesma lógica das outras composições: nela, também visualizamos linhas negras de dimensões iguais que delimitam planos de cor quadrados e retangulares, formando uma armação assimétrica. Uma segunda série de telas poderia se constituir por Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza (fig. 14) e Composição com azul, amarelo, preto e vermelho (fig. 17), ambas de 1922. Nas duas, um imenso quadrado branco ocupa quase toda a superfície do quadro, em torno do qual estão distribuídos pequenos e estreitos planos de cor. A estrutura aqui se simplifica, organizando-se em torno do grande plano branco. Um outro grupo poderia ainda ser composto por Quadro nº IV: Losango piramidal com vermelho, azul, amarelo e preto (fig. 18), de 1924-1925, e Composição em losango, com vermelho, preto, azul e amarelo (fig. 19), de 1925. Nestas, o mesmo esquema das composições anteriormente descritas parece ter sido transposto para uma tela em formato de losango. Nas duas composições, domina a estrutura gradeada irregular, que, por meio de linhas pretas (desta vez, não nas mesmas dimensões), determina planos de cor. Contudo, por ter a tela o formato de um losango, as linhas verticais e horizontais negras não determinam planos retangulares ou quadrados (com exceção do pequeno quadrado negro do lado esquerdo em Quadro nº IV e do quadrado

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central em Composição em losango, com vermelho, preto, azul e amarelo), mas triângulos e quadriláteros irregulares, como os que resultam do cruzamento das linhas nos dois planos brancos centrais e no plano azul, à direita. Tendo em vista os outros quadros de Mondrian, a impressão que se tem aqui é que a tela em forma de losango e a pintura inscrita nela resultaram de um recorte de uma tela maior, cujo formato original teria sido quadrado ou retangular. Sobre as pinturas desta época, comenta Milner: «Mondrian não mistura suas cores ou curva suas linhas. Ele pára subitamente para revelar a estrutura em si, o ritmo das linhas, o potencial de complexidade, a criatividade pega no processo da ação».239 «Cada pintura», para nos valermos de mais uma observação de Milner, «tinha com efeito sua própria narrativa, na qual as cores primárias eram as protagonistas, com novos papéis em cada trabalho».240 No entanto, apesar de cada pintura ser uma pintura diferente mesmo que circunscrita a uma mesma série (conforme as delimitamos aqui), apesar de as telas apresentarem formatos diversos, elas denunciam uma mesma armação formal e, por meio desta, um mesmo processo de construção. Mesmo quando, nos anos posteriores, Mondrian simplificou ainda mais sua grade, ou quando acrescentou a linha preta dupla, no início da década de 1930, ou uma série de linhas, acentuando o ritmo da composição, ainda podíamos reconhecer uma lei similar de construção interna. Lembremos de Composição com três linhas e azul, cinza e amarelo (fig. 20), de 1925, e de Losango com duas linhas e azul (fig. 21), de 1926. Nestas, o número de linhas se reduz, respectivamente, a três e a duas e estas se cruzam em apenas um ponto: na parte inferior direita em Composição com três linhas e azul, cinza e amarelo e na parte inferior esquerda em Losango com duas linhas e azul. Os planos de cor se transformam em triângulos: um amarelo e outro azul, na primeira delas; e um azul, na segunda. Nesta última, ainda aparece um plano cinza, não mais dentro de um quadrado ou de um retângulo, mas de um trapézio. Carel Blotkamp chama a atenção para o implícito movimento diagonal que se cria a partir da interseção das duas linhas próximas ao centro do quadro nas pinturas em forma de losango realizadas entre os anos de 1925-1926: «as linhas são como duas lâminas de um par de tesouras que – quando fechadas – formam uma linha que corre diagonalmente através do centro do plano do

239 240

John Milner, Mondrian, p. 164. Idem, p. 163.

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quadro».241 Quando se observam estas duas pinturas em forma de losango, tendo em vista os outros trabalhos de Mondrian, tais quais os que vimos acima, fica-se com a sensação de que as linhas se encontrarão para além dos limites do quadro e que, fora dele, se formarão os planos retangulares e quadrados de cor. Parece que estamos diante de um detalhe ampliado dos quadros produzidos em anos anteriores. Nesta mesma época, Mondrian produziu Losango com quatro linhas e cinza (fig. 22), de 1926, no qual se opera uma redução ainda mais notável: nele, divisamos apenas quatro linhas pretas, todas de dimensões diferentes, sobre um fundo totalmente branco. Somente duas destas quatro linhas se cruzam num único ponto, na parte superior esquerda, formando um ínfimo triângulo branco. As outras linhas pretas não se tocam, como se fossem restos de um quadrado fracionado. Como nota Schapiro, «o todo aparece então como uma representação podada de um objeto num espaço tridimensional».242 Além disso, continua Schapiro, «a superfície branca da tela parece recuar como um fundo da grade preta saliente»: «Tendemos a reforçar na percepção a separação entre a superfície da tela e a grade, e a vermos o campo branco central, demarcado pelas linhas pretas e pelos limites intermediários da tela, como um quadrado, em vez de como a figura irregular que realmente é».243 E, em outro trecho, no mesmo texto, completa: Somos levados a imaginar um observador tão próximo do plano da grade que ele possa ver somente um segmento incompleto de uma unidade retangular e um canto de uma segunda. O losango que o rodeia pode ser comparado ao olho ou ao globo ocular do espectador, que isola e enquadra um campo visual; este também consiste de elementos retilíneos, como o objeto visto, mas com eixos contrastantes. (...) Mas não interessa quão intensamente resolvamos ver as barras pretas somente como marcas pintadas separadas nesse plano limitado – completas em si mesmas, desiguais e irregulares –, não podemos deixar de visualizar um quadrado quando as olhamos como um todo. As linhas geométricas juntas aparecem então como partes de um objeto virtual num espaço maior e mais profundo.244

Quatro anos depois, em Composição nº 1 (fig. 23), de 1930, cujo subtítulo reproduz o título da tela de 1926, Losango com quatro linhas, Mondrian novamente 241

Carel Blotkamp, Mondrian: The Art of Destruction, p. 198. É interessante lembrar que Mondrian passou a produzir esta nova série de quadros em formato de losango, a partir do ano (1925) em que rompeu com o De Stijl por achar que, com a inserção das diagonais, Theo van Doesburg se afastara dos princípios do grupo. 242 Meyer Schapiro, Mondrian: On the Humanity of Abstract Painting, p. 29. 243 Idem, p. 31. 244 Idem, pp. 32-33.

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apresentou quatro linhas negras sobre uma superfície branca, dispostas de forma a sugerir um quadrado. Desta vez, a linha horizontal da parte inferior da tela toca nas duas linhas verticais. Porém, ressalte-se, elas não se cruzam, apenas se tocam, limitando uma base de uma figura geométrica que poderia formar um quadrado se as linhas verticais se encontrassem com a horizontal que se acha na parte superior do quadro. Como a pintura de 1926, somente a imaginação do observador pode completar este quadrado além dos limites da tela. Em Losango: Composição com quatro linhas amarelas (fig. 24), de 1933, Mondrian introduziu duas inovações: as linhas são amarelas (e não mais pretas) e não se tocam em nenhum ponto. Novamente sobre um fundo branco, as linhas, todas de tamanhos diversos, formam triângulos iguais nas quatro pontas do losango. O grande centro branco parece ampliar o espaço e dá a impressão de continuidade para fora das fronteiras do quadro. Também aqui, o espectador fica com a sensação de que as linhas se encontrarão além da tela, concluindo a figura geométrica insinuada – neste caso, não um quadrado, mas um retângulo. Podemos observar, portanto, que, por mais diversos em sua aparência, os trabalhos neoplásticos de Mondrian repetem sempre um mesmo processo de construção, que pode ser resumido numa estrutura gradeada formada por linhas negras (somente em alguns poucos casos, coloridas) e por planos de cor e de «não-cor». Mesmo quando a simplificação chega a extremos, como nestas últimas composições em losango que citamos, o mesmo processo se acha implícito tanto na sugestão de uma continuidade desta estrutura num além-obra, quanto na impressão de a representação ser um detalhe recortado de uma obra maior, justamente por guardar características básicas do método mondriânico. O que vemos nos trabalhos de Mondrian realizados a partir da década de 1920 (e, em alguma proporção, até mesmo em certas séries daqueles quadros produzidos em anos anteriores, a partir da influência do cubismo) é a reprodução incansável de um mesmo processo. Como na música – e não é por acaso que Mondrian se interessava por música245 –, a partir de um número limitado de elementos (linhas 245

E principalmente por jazz, no qual a técnica de variação é elemento fundamental. Na primeira cena do seu famoso triálogo, «Realidade natural e realidade abstrata», X, personagem que representa um pintor naturalista, comenta acerca das pinturas de Z, um pintor real-abstrato, alter ego de Mondrian: «Tenho chamado as suas composições “sinfonias”; Eu posso ver música nelas...» (The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 83). Filiberto Menna, comentando a Composição com amarelo, vermelho e azul (1921), faz uma aproximação entre esta e a música: «Nesta obra, de fato, a modulação dos cinzas, escandida pelas pausas das linhas negras, recorda o desenvolvimento de um tema musical: um tema elegíaco, modulado a partir da luz, que transpassa pacatamente de uma para outra cor e

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pretas e planos em cores primárias), o pintor construiu uma série de variações em composições cujos títulos reforçam ainda mais este caráter repetitivo. É justamente o processo de constituição, em Mondrian, de composições realizadas a partir destas variações e os aspectos decorrentes de sua formação rígida e abstrata que perfazem o que proponho chamar de dimensão mítica. No fim da década de 1970, Rosalind E. Krauss já propusera uma aproximação entre o mito e a estrutura que denominou grade246 – termo que descreve perfeitamente a forma que assumem as composições de Mondrian, às quais, entre outras, Krauss se refere. Esta estrutura começou a surgir em princípios do século XX, primeiro na França e, depois, na Holanda e na Rússia, e terminou por se tornar «emblemática da ambição modernista».247 Na grade, Krauss identifica dois planos coordenados. Por um lado, por não ser resultado de imitação, mas de um «decreto estético» que culmina em relações puras, a grade chama a atenção para o seu lado físico, para aquilo que Krauss denomina de «materialismo»,248 isto é, a tela, o pigmento, o grafite etc. Por outro, salienta, não era desta maneira que os artistas a compreendiam e utilizavam. Do ponto de vista de pintores como Mondrian e Malevitch, a grade «é uma escada para o Universal, e eles não estão interessados no que acontece embaixo, no Concreto».249 A peculiaridade da grade está exatamente em permitir a coexistência dos pólos físico (a matéria pictórica pura) e metafísico (o espírito), mascarando e revelando ao mesmo tempo esta coexistência. Assim, a grade oferece uma tentativa de solução para o que Krauss considera o drama do artista moderno: dado o corte absoluto entre o sagrado e o secular, ele deveria necessariamente optar entre um ou outro; hoje, no século XX, «achamos indescritivelmente embaraçoso mencionar arte e espírito na mesma frase».250 A grade não se decide por um ou outro, mas os concilia em sua malha.

as funde numa única tonalidade dominante, obtida sobre registros baixos da escala cromática» (Mondrian, p. 102). Não posso deixar de lembrar que, para Lévi-Strauss, música e mito respondem a um mesmo princípio lógico: em linhas muito gerais, ambos funcionam como «máquinas de suprimir o tempo» a partir da repetição e da variação de certos temas produzindo reações em seus ouvintes (para mais detalhes, ver Le cru et le cruit, pp. 22-26; L’homme nu, pp. 575-596; e Mito e signfiicado, pp. 67-77). 246 Optei por traduzir o termo inglês grid por grade, por considerá-lo mais condizente com a estrutura que Krauss descreveu no ensaio «Grids» (The Originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, pp. 922). 247 Rosalind E. Krauss, «Grids», op. cit., p. 9. 248 Idem, p. 10. 249 Idem, p. 10. 250 Idem, p. 10.

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Por mascarar e revelar ao mesmo tempo, a grade se apresenta para Krauss como um mito. Como todos os mitos, a grade lida com paradoxos e contradições (ser uma estrutura voltada para o estritamente pictórico, isto é, para o material, e, simultaneamente, para um além-matéria, para o absoluto), «não dissolvendo o paradoxo ou resolvendo a contradição, mas encobrindo-os de modo que eles pareçam (mas só pareçam) ter desaparecido».251 «O poder mítico da grade», explica Krauss, «está em que ela nos faz capazes de pensar que estamos lidando com materialismo (ou, algumas vezes, ciência, ou lógica) enquanto, ao mesmo tempo, nos provê uma permissão para a crença (ou ilusão, ou ficção).»252 Cabe salientar aqui que a noção de mito adotada por Krauss depende do método de análise estruturalista dos mitos proposto por Claude Lévi-Strauss.253 Conforme este método, as sucessões de acontecimentos da narrativa mítica são reordenadas de modo a formar uma organização espacial que permita a leitura da esquerda para a direita e, simultaneamente, de cima para baixo, como numa partitura de orquestra. O que interessa a Krauss é o motivo de os estruturalistas procederem desta forma. Eles se valem desta organização espacial a fim de demonstrar, com suas colunas verticais e horizontais, as artimanhas realizadas pelo mito na tentativa de encobrir as contradições de sua narrativa. Por meio deste tipo de análise, fica evidente que a função do mito é permitir que as contradições sejam mantidas pelo discurso. Tanto no mito, como na grade, as contradições não se dissolvem, elas se reprimem. Creio que podemos tomar estas considerações de Krauss como um ponto de partida. De fato, parece-me que o modo de constituição das pinturas do artista termina por comportar e por mesclar dois aspectos: um que se volta para a fisicalidade da matéria, para aquilo que é estritamente pictórico, e outro (que abordarei quando falar acerca da relação entre texto e obra em Mondrian), para um horizonte espiritual. A meu ver, a dimensão mítica das pinturas de Mondrian começa por esta relação e pode ser examinada em alguns outros detalhes complementares. Outros elementos colaboram para que o processo de construção da arte madura de Mondrian possa ser analisado analogamente ao processo de estruturação dos mitos. Lembrando rapidamente o que expus no final da primeira parte deste estudo, a forma mítica decorre do ímpeto de 251

Idem, p. 12. Idem, p. 12. 253 Ver Claude Lévi-Strauss, «A estrutura dos mitos», Antropologia estrutural, p. 237 e ss. 252

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tentar apreender o mundo exterior, sistematizando-o. No afã de reordená-lo a fim de lhe dar um sentido, esta forma termina por criar uma realidade à parte, que quer se apresentar como superior à realidade do mundo externo. Esta realidade à parte tenta recuperar um momento auroral, originário, anterior àquele presente,254 em outras palavras, ela quer repetir uma verdade perdida. Assim, aparta-se do mundo exterior e, ao proceder deste modo, acaba construindo um mundo absolutamente seu, com regras e lógica próprias, que termina, em função disso, se fechando em si mesmo e contendo no próprio seio suas dúvidas e suas explicações, seu princípio e seu fim. Em Mondrian, o recurso a uma estrutura como a grade passa por aquele anseio de começar do zero, de buscar um primordial, conforme vimos na Parte I deste estudo. Como bem ressalta Krauss, a grade, por sua própria constituição, refuta a projeção da fala em seu domínio por ser este puramente visual e impermeável ao desenvolvimento no tempo (como requer a linguagem)255 e impede a intrusão de elementos provindos do mundo exterior por ser «antinatural, antimimética, anti-real».256 Assim, induz ao silêncio, um silêncio que aos artistas pareceu como um grau zero. No entanto, como pudemos ver nas pinturas neoplásticas de Mondrian citadas anteriormente, esta estrutura, que promete uma primordialidade, se revela rígida e fechada e, por isso, não muito propícia a variações, o que determina a sua repetição incessante. Desta forma, a realidade à parte que Mondrian parece querer construir com suas pinturas começa, termina e sempre se atualiza no processo de repetição de um número limitado de elementos invariáveis. A repetição se apresenta, portanto, como outro aspecto do que chamo de dimensão mítica. Como já notamos na primeira parte deste estudo, para Lévi-Strauss, a repetição assume uma função própria, que é de tornar manifesta a estrutura do mito. Todas as versões de um mito, já vimos, pertencem ao mito: o Édipo de Freud é tão relevante quanto o de Sófocles para a análise estrutural deste mito. Parafraseando Lévi-Strauss, poderíamos dizer que, em Mondrian, todos os quadros pertencem ao processo. Se observarmos novamente as telas examinadas, notaremos que elas jamais são iguais. E suas variações oscilam desde o mais diferente (Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza em relação a Losango com duas linhas e azul) ao quase igual. 254

Ver Mircea Eliade, Aspects du mythe, p. 16 e ss. Ver Rosalind E. Krauss, «The Originality of Avant-Garde», op. cit., p. 158. 256 Rosalind E. Krauss, «Grids», op. cit., p. 9. 255

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Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza e Composição com azul, amarelo, vermelho, preto e cinza (fig. 15) apresentam uma organização quase idêntica dos elementos básicos (planos de cor e linhas pretas), porém com pequeníssimas diferenças. A maior diferença, mas talvez não a mais evidente, está na margem direita. Em Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza, ela se divide em dois planos alongados: branco na parte superior e azul na parte inferior. Na outra composição, trata-se de um só plano amarelo espichadíssimo. As outras diferenças estão nas cores dos planos. Enquanto numa o retângulo da parte superior da tela é vermelho; na outra, é azul. Enquanto naquela os dois planos inferiores se dividem em amarelo e preto; na outra, eles são vermelho e preto. De resto, a organização interna das linhas e dos planos das duas pinturas se repete. Lembrando outra expressão de Lévi-Strauss, desta feita não relativa aos mitos, mas ao totemismo, que, segundo ele, coloca em questão problemas análogos, «não são as semelhanças, mas sim as diferenças, que se assemelham».257 Apesar de parecer estar bastante interessado na dinâmica deste processo constante de repetição de uma mesma estrutura, Mondrian ainda busca fixar versões do seu «mito», cada uma (levemente) diferente da outra. Assim, o resultado da repetição nunca é o mesmo. Neste sentido, a sua ação de repetir se coaduna com a noção de repetição que Gilles Deleuze forma a partir da reelaboração da idéia de eterno retorno de Friedrich Nietzsche. Para Deleuze, o eterno retorno não pode significar o retorno do idêntico, em que todas as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Retornar é «a única identidade», mas «a identidade como potência segunda, a identidade da diferença». E a repetição que dimana desta identidade produzida pela diferença «consiste em pensar o mesmo a partir do diferente».258 É algo semelhante que o processo de Mondrian põe a nu. Cada repetição parece ser uma tentativa de retorno ao primordial, mas uma tentativa que não se dá do mesmo modo. Cada uma de suas telas se revela como diferente sem deixar de partilhar de uma estruturação comum, até porque o que passa a realmente importar – não sei se conscientemente para Mondrian, mas deveria sê-lo para a sua crítica – não é tanto o resultado, mas o processo que engendra este resultado.

257 258

Claude Lévi-Strauss, Totemismo hoje, p. 83. Gilles Deleuze, Repetição e diferença, p. 83.

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c. Auto-referencialidade Não é só o processo de repetição incessante que faz com que certas obras se enquadrem no que chamo de dimensão mítica. Se o processo por si só bastasse para determinar tal dimensão, teria necessariamente de considerar, por exemplo, as célebres reiterações da Catedral de Rouen, da Estação Saint-Lazare ou do monte de feno, realizadas por Monet, a partir do final do século XIX. No entanto, estas não respondem a um mesmo impulso – a preocupação de Monet era registrar diferentes luzes incidindo sobre um mesmo objeto –, nem partilham de outras características compositivas que permitem compará-las à estrutura do mito. No caso das séries de Monet, além de estas não terem a pretensão de se constituírem como mundos à parte, seria mais adequado falar de uma repetição de uma mesma figura, mas não de uma estrutura. Mesmo porque o que se acha representado em Monet são objetos identificáveis, ao passo que, em Mondrian, o que vemos nas telas são apenas linhas e planos de cor e de «não-cor». Em outras palavras, as telas de Mondrian, por meio da repetição de uma estrutura moldada a partir de elementos primários concernentes apenas à própria pintura, recusam-se em fazer qualquer referência à natureza – e natureza entendida aqui, valendo-se das palavras do próprio pintor, como «aquilo que vejo».259 Assim, um outro aspecto dessa dimensão mítica da pintura de Mondrian é a sua tendência à auto-referencialidade. A pintura de Mondrian se exime de aludir ao mundo exterior. «A arte tem que libertar a sua expressão plástica do indeterminado (o natural), de modo a atingir a pura expressão plástica do determinado». Assim, a pintura pode se tornar «puramente plástica», e para se alcançar isso, «deve-se usar meios plásticos», o que «também justifica o uso de planos retangulares coloridos», justifica Mondrian.260 Em função disso, dessa abstenção de se referir à natureza, a pintura produz um curto-circuito no entendimento do observador. Segundo Maurício Puls, «o quadro abstrato constitui um enigma para o contemplador»: «o que limita a compreensão da obra abstrata é a incapacidade em identificar o tema do quadro, o sujeito da expressão semiótica».261 Numa obra figurativa, o sentido mais elementar do que está sendo representado pode ser apreendido se comparado com a realidade à qual diz respeito. Pode-se não compreender 259

Ver nota 7 deste capítulo. Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 74, e «Dialogue on the New Plastic», op. cit., p. 78. 261 Maurício Puls, O significado da pintura abstrata, p. xvii. 260

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a significação – que está além de uma correspondência entre significante e significado – de determinado quadro figurativo, mas é possível reconhecer uma maçã como uma maçã e uma mulher como uma mulher e, por vezes, até mesmo imaginar (ou recuperar, no caso de pinturas de temas históricos ou míticos) uma narrativa a partir do que é visto. Todavia, quando a obra não faz referência a algo externo, mas à própria arte, à própria pintura ou, no caso específico de Mondrian, à sua própria estrutura, mesmo o sentido mais elementar é escamoteado. Traduzindo em termos semiológicos, poderíamos dizer que o significante, compreendido aqui como os elementos materiais da pintura, se sobrepõe ao significado. Nas palavras de Lévi-Strauss, a pintura abstrata renuncia ao primeiro nível de articulação do real, ou seja, àquele nível em que o artista extrai da natureza as formas e as cores para a sua pintura.262 Nos trabalhos de Mondrian, há linhas e planos de cor. Identificamos apenas figuras geométricas e podemos falar da relação entre estes elementos constitutivos. Porém, não encontramos na natureza um aporte que nos ajude a interpretá-los. Num ensaio da década de 1950, Giulio Carlo Argan já asseverava: Um quadro de Mondrian não representa nada: não é mais que uma superfície acuradamente subdividida, por meio de freqüentes linhas verticais e horizontais, num certo número de quadrados e retângulos de grandezas diversas, preenchidos de tintas aplanadas; algumas vezes, as cores são apenas duas, aquela da linha e aquela do fundo.263

Destituída de referentes externos, a pintura passa a se referir a si própria. Como a figura do oroboro, serpente que morde o próprio rabo, os quadros de Mondrian se fecham em si mesmos. Como um mito, a obra constrói um mundo particular, com uma linguagem própria, em que suas referências se acham em seu próprio interior. Enquanto o mito se auto-referencia por constituir-se como uma realidade segunda que se distancia da realidade do mundo exterior, o mesmo se processa nas estruturas gradeadas de Mondrian: elas trazem em si sua própria significação, não dependendo de referentes

262

Segundo Lévi-Strauss, no primeiro nível de articulação, a pintura «encontra na natureza a sua matéria: as cores são dadas antes de serem utilizadas e o vocabulário atesta seu caráter derivado até na designação das nuanças mais sutis: azul-marinho, azul-pavão ou azul-petróleo; verde-água, verde-esmeralda; amarelo-palha, amarelo-ovo; vermelho-cereja, etc. Ou seja, só há cores na pintura porque já existem seres e objetos coloridos, e é apenas por abstração que as cores podem ser descoladas desses substratos naturais e tratadas como termos de um sistema separado». O segundo nível de articulação, por sua vez, «consiste na escolha e disposição das unidades e em sua interpretação em conformidade com os imperativos de uma técnica, de um estilo e de uma maneira: isto é, transpondo-as segundo as regras de um código, características de um artista ou de uma sociedade» (O cru e o cozido, p. 39). 263 Giulio Carlo Argan, «Mondrian», Salvezza e caduta nell’arte moderna, p. 122.

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externos. O processo mondriânico diz respeito somente a si mesmo. Por dizer respeito somente a si mesmo e se apresentar como refratário ao significado, a obra madura de Mondrian termina por se articular como uma escritura cifrada, como se fosse uma linguagem apenas permitida para iniciados. O que significa esta estrutura? Qual a função das linhas negras e dos planos de cor? O que tudo isso quer dizer? BernardHenri Lévy proporia ainda uma outra pergunta: «como, quando uma pintura não diz nada, evitar que ela seja vazia, insignificante, fútil?».264 Puls afirma que «o objeto da pintura abstrata é o mesmo de toda a pintura: a relação do homem com seu mundo».265 Mas qual seria a relação que Mondrian estabelece entre a sua pintura e o mundo? Ou melhor, como Mondrian estabelece a relação entre a sua pintura e o mundo? E talvez ainda caiba mais uma indagação: e como podemos identificar esta relação entre sua pintura e o mundo, uma vez que sua pintura nega a representação do mundo tal qual este se nos dá a ver?

d. Ordem Vimos, na Parte I, que o mito, em seu ímpeto de fazer frente à realidade exterior, se afirma, para relembrarmos alguns termos de Gusdorf, como «uma conduta de retorno à ordem», como «um protótipo de equilíbrio do universo», como «um formulário de reintegração» do homem à sua harmonia original perdida.266 O mito derivaria, portanto, de um sentimento de angústia do homem em face ao mundo que o rodeia. Em Abstraktion und Einfühlung, de 1908 (anterior, portanto, àquele que é considerado o primeiro quadro abstrato267), Wilhelm Worringer sugere que a tendência à abstração na arte decorre de um sentimento que podemos perceber como análogo, de um sentimento de «uma enorme ansiedade espiritual»268 frente ao real. Situada no pólo oposto à tendência que Worringer chama de Einfühlung (termo alemão intraduzível para o português, cujo significado se aproxima de «empatia»), a qual se realiza na condição de felicidade total entre o homem e os fenômenos naturais, a abstração – que se verifica

264

Bernard-Henri Lévy, op. cit., p. 109. Maurício Puls, op. cit., p. xvii. 266 Georges Gusdorf, Mythe et métaphysique, p. 12. 267 Considera-se que o primeiro quadro seja uma aquarela de Wassily Kandinsky, datada de 1910 e hoje no acervo do Museu Nacional de Arte Moderna Centro Georges Pompidou, em Paris. 268 Wilhelm Worringer, Abstraction et Einfülung, p. 52. 265

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nas origens da arte, em alguma produção dos povos ditos «primitivos» e em certa arte do Oriente – «é a conseqüência de uma profunda perturbação interior do homem, causada pelos fenômenos do mundo exterior».269 Em Mondrian, talvez seja possível constatar um sentimento similar. Recordemos que o artista começou a depurar seu trabalho, a partir da descoberta do cubismo, e a se encaminhar cada vez mais em direção à abstração durante os anos que precederam e, depois, naqueles em que se deu a Primeira Guerra Mundial, e que a chegada a um estilo maduro ocorreu entre as duas grandes guerras. Mondrian notara, e seus escritos dão provas disso, de que não era mais possível produzir arte nos moldes tradicionais nos dias conturbados em que vivia. Segundo Herbert Read, Mondrian «se apercebeu de que o conceito tradicional de artista (...) não era mais válido numa época de fissão nuclear».270 A arte figurativa não lhe parecia mais capaz de fazer frente à realidade exterior, a essa realidade fragmentada e aparentemente inapreensível. Assim, conforme observa Alain Bonfand, Mondrian «submete os motivos do mundo (aquilo que no mundo é movimento) à sua grade, à dialética vertical/horizontal».271 A sua idéia não era repetir a realidade,272 mas produzir uma nova, uma realidade capaz de afrontar a terrível realidade exterior. «Ultimamente», defende o alter ego do artista, o pintor real-abstrato Z, no seu triálogo «Realidade natural e realidade abstrata», «o artista não precisa mais de um ponto de partida particular na natureza a fim de obter uma imagem da beleza»: «Em pintura, é sempre o ritmo da cor e da linha que nos faz experimentar a realidade».273 No artigo de 1920, intitulado «Neoplasticismo: o princípio geral da equivalência plástica», afirmava ainda que a característica essencial da pintura neoplástica é ser «uma composição de planos de cor retangulares que expressam a mais

269

Wilhelm Worringer, op. cit., p. 52. Herbert Read, Icon and Idea, p. 133. 271 Alain Bonfand, Arte abstrata, p. 31. 272 Cabe ressaltar que Mondrian utiliza o termo repetição num sentido bem diverso de como o compreendo neste livro. Para ele, a noção de repetição combina as noções de cópia (da natureza) e de replicação desta cópia. Reproduzir a partir da natureza, segundo ele, pode levar a ver a vida e a arte como uma constante recorrência da mesma coisa, como uma contínua repetição – e isto impede o desenvolvimento (ver «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 47, e «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country to the City», op. cit., p. 114). Malevitch, o artista que estudaremos no capítulo seguinte, utiliza repetição num sentido similar ao usado por Mondrian em seu «Do cubismo e do futurismo ao suprematismo: o novo realismo pictórico» (ver Kasimir Malevitch, Écrits, p. 180) 273 Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country to the City», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., pp. 108 e 87 respectivamente. 270

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profunda realidade».274 Com a pintura neoplástica, acreditava, o homem poderia criar uma nova beleza e não mais descrever aquela que via na natureza.275 «Na nossa sociedade desequilibrada, com seu ambiente antiquado, tudo nos leva a procurar por aquele equilíbrio puro que engendra a joie de vivre», escrevia Mondrian.276 E como encontrar essa alegria de viver? Worringer dizia que a possibilidade de bondade que o homem procuraria na arte, não consistiria em mergulhar nas coisas exteriores para encontrar a sua fruição, mas ao contrário em arrancar a coisa singular do mundo exterior de sua arbitrariedade e de sua contingência aparente, em lhe fazer eterna ao aproximá-la de formas abstratas e, assim, em obter um ponto de paragem no seio da fuga das aparências. Sua tendência mais forte está, por assim dizer, em arrancar o objeto do mundo exterior do contexto da natureza, do jogo de alternância sem fim do ser, de o purificar de tudo o que existe em si de dependência no que tange à vida, quer dizer, contingência, de lhe fazer necessário e imutável, de o aproximar de seu valor absoluto.277

O comentário de Worringer poderia perfeitamente dizer respeito a Mondrian. Para o artista, a melhor maneira de suplantar a angústia face à realidade e de buscar a harmonia e o equilíbrio perdidos era se afastando progressivamente da representação da natureza: «Não há outra possibilidade para uma verdadeira renascença em pintura do que por meio da abstração da cor e da forma natural».278 Mondrian acreditava que a abstração poderia ser a verdadeira face da realidade, e que não só a arte, mas a própria vida estava cada vez mais se encaminhando rumo a esta abstração. Para Bernard-Henri Lévy, «não a negação, mas a extenuação do mundo» foi o que conduziu o artista à abstração.279 Foi da seguinte forma que Mondrian iniciou o primeiro de seus artigos sobre arte, escrito em 1917 e publicado na revista De Stijl: A vida do homem moderno culto está gradualmente se desviando do natural: a vida está se tornando mais e mais abstrata. Conforme o natural (o exterior) se torna mais e mais «automático», vemos o interesse vital fixado mais e mais no interior. A vida do homem verdadeiramente moderno não está dirigida nem para o material pelo material, nem para o predominantemente emocional: antes, toma a forma da vida autônoma do espírito humano tornando-se consciente.

274

Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, p. 137. Ver Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, p. 147. 276 Piet Mondrian, «Purely Abstract Art», idem, p. 200. 277 Wilhelm Worringer, op. cit., p. 53. 278 Piet Mondrian, «The Evolution of Humanity Is the Evolution of Art», idem, p. 194. 279 Bernard-Henri Lévy, op. cit., p. 56. 275

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O homem moderno – ainda que uma união de corpo, alma e mente – manifesta uma consciência mudada: todas as expressões da vida assumem uma aparência diferente, uma aparência mais determinada e abstrata.280

A estrutura gradeada de Mondrian poderia, pois, ser entendida como um instrumento de ordenação do real. Lembremos que, concomitante ao desenvolvimento de seu neoplasticismo, logo após a Primeira Guerra Mundial, estava em voga, na Europa, um forte movimento de retorno à ordem. Como uma espécie de reação à barbárie e à desumanidade da guerra, muitos artistas – como Picasso – retomaram, em suas obras, formas de representação mais «clássicas». E, não por acaso, assistiu-se simultaneamente a um renascimento de temas e personagens da mitologia greco-romana nos mais diversos gêneros artísticos – e poderíamos citar como exemplos, além de Picasso, Jean Cocteau, André Gide, James Joyce, Paul Valéry, Giorgio de Chirico, Igor Stranvinsky, entre outros. No entanto, a meu ver, o ímpeto de Mondrian – e de outros artistas, como Malevitch, tal qual veremos no capítulo seguinte – em busca de uma ordem não poderia, ou não deveria, ser compreendido dentro desta tendência. E Mondrian manifestou tanto em cartas quanto no último texto que publicou na revista De Stijl a sua repulsa a este movimento de retorno à ordem, o qual via como um «retorno ao naturalismo»: Qualquer um familiarizado com o vigoroso movimento de renovação em pintura e escultura em Paris antes da guerra ficará duplamente ofendido – se tiver alguma simpatia em relação ao novo – com a atual estagnação e retraimento. A ação de romper com o velho e preparar o novo tem diminuído, exceto entre alguns remanescentes.281

Parece-me que havia na época duas vertentes paralelas, operando ao mesmo tempo, movidas por impulsos diversamente orientados de ordenação, o que resultaria em abordagens completamente diferentes do mito – e, de uma certa forma, Richard Ellmann e Charles Feidelson Jr., na seção dedicada ao mito do volumoso The Modern 280

Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», op cit., p. 28. Piet Mondrian, «Blown by the Wind», idem, p. 180. Para Van Doesburg, em carta não-datada, mas escrita provavelmente entre junho e julho de 1922, Mondrian relatou uma visita que fez à galeria de Léonce Rosenberg, marchand que vinha adquirindo e expondo os trabalhos do artista por aquela época, quando tomou conhecimento da preferência pelo naturalismo por parte dos compradores: «Hoje pus meu bom terno e fui ver Rosenberg... ele estava bastante amigável. Ele me contou que os compradores agora tendem a querer naturalismo, mas ele espera que a situação melhore dentro de um ano». Nesta mesma carta, Mondrian chegava a desculpar Rosenberg: «Ele parece ainda favorecer o abstrato para si mesmo, e estar envolvido com naturalismo por razões de sobrevivência». Em outra carta, também não-datada, mas que se cogita que tenha sido escrita em agosto de 1922, comenta ainda: «[Rosenberg] agora prevê vender somente “clássicos”. Bom, ninguém pode culpar um negociador por isto» (cartas citadas por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 180). 281

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Tradition, uma compilação de textos essenciais sobre temas da modernidade, vislumbram isso ao observar que esse «moderno retorno às formas míticas» leva a cabo «um esforço de se reconstituir o desvalorizado ambiente natural que a ciência física tem tendido a desacreditar», ao mesmo tempo que se consagra como uma «retomada de posse da herança cultural».282 Por um lado, artistas como Picasso promoveram um retorno à ordem, ou seja, eles a retomaram como arché, como algo do passado, como uma forma já consagrada. Por outro, Mondrian – bem como Malevitch – buscava uma ordem nova, buscava-a como outopos (utopia), como um não-lugar, no sentido de um lugar ainda não inventado, de um lugar por existir. O primeiro movimento, portanto, acenava para o passado; ao passo que o segundo, apontava para o futuro ou, mais precisamente, para o presente liberto do passado. Os dois eram como a popa e a proa de uma mesma embarcação. O primeiro, por seu mover-se em marcha-ré, recuperava o mito ao modo antigo: recuperava-o como figuração, como motivo a ser representado.283 Já o segundo, em seu avançar sempre à frente, se concordarmos que podemos encontrar nele uma apropriação do mito, esta não se dava nos moldes tradicionais: o mito aqui ressurgia, tal qual propomos na primeira parte deste estudo, como princípio formal ou – para usarmos um termo desgastado mas que vimos aplicando em referência à grade de Mondrian – como estrutura.284 E o mito não poderia se manifestar aqui do modo como se manifestou lá, como uma narrativa, uma vez que a base da dimensão mítica de Mondrian está na repetição de uma estrutura abstrata, distinta e distante da natureza e de qualquer forma de representação mimética. Nesta dimensão mítica que busco descrever aqui como uma das formas de constituição de uma vertente da arte moderna a partir do século XX, o mito não retorna como narrativa, isto é, como fonte de histórias e personagens, como o tinha sido até então, mas pode ser identificado como um princípio ordenador na própria constituição da obra de arte, em seu próprio processo artístico. Se o artista estava totalmente consciente ou não do resultado a que chegava seu trabalho, o

282

Richard Ellmann e Charles Feidelson Jr., «Myth», The Modern Tradition, p. 617. E quanto a esta retomada do mito como figuração, vista especialmente nos trabalhos de Picasso das décadas de 20 e 30 do século passado, já a examinei longamente na dissertação de mestrado, ainda inédita, intitulada Mitomorfose: a mitologia greco-romana na obra de Picasso. 284 Em conversa com Eduardo Sterzi, este me chamou a atenção para uma relação análoga na moderna poesia brasileira, entre a chamada geração de 45 e seu contemporâneo João Cabral de Melo Neto. Em ambos, percebe-se uma busca de uma ordem: na primeira, esta se dá como um retorno a formas tradicionais da vesificação; a segunda, a de Cabral, como a criação de uma nova ordem a partir do verso livre modernista. Não por acaso, Cabral sempre teve em Mondrian um de seus mestres. 283

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fato é que o modo de ordenação de que Mondrian lança mão em suas pinturas conforma-se ao modo de estruturação próprio do mito.

e. Texto e obra Mondrian, como boa parte dos artistas de seu tempo, tinha uma concepção própria de arte, quase uma filosofia. De uma certa forma, seus textos, a maior parte deles artigos publicados em revistas de arte de sua época, fazem parte de sua obra; podem ser vistos como uma prática paralela a suas conquistas no campo pictórico. De um modo geral, os textos de Mondrian também servem para justificar – em seu sentido mais fundo, de tornar justo, de legitimar – seus trabalhos. É em seus escritos que Mondrian explicita a pretensão de, por meio da estrutura gradeada, que se manifesta como uma realidade própria, auto-referencial e à parte da realidade exterior, atingir um plano superior, aquele plano que Krauss denominara metafísico. Em seus textos, encontra-se clara a aspiração em fazer da arte, mais especificamente, da sua arte uma forma de religião. Desde pequeno, Mondrian esteve, de um modo ou de outro, associado a alguma religiosidade. Seu pai, diretor de uma escola cristã, era um calvinista devotado. Juntos, desenvolveram uma série de litografias devocionais para a igreja. Quando contava 20 anos, em 1892, Mondrian foi estudar na Academia de Arte de Amsterdã, onde se juntou a uma congregação protestante radical, a Gereformeed Kerk (Igreja reformista), para a qual ele continuou a produzir ilustrações religiosas. Em 1909, filiou-se à Sociedade Teosófica da Holanda, rompendo definitivamente com seu passado protestante. Por volta deste ano, o teósofo Rudolf Steiner ministrava palestras em diversos lugares da Holanda, incluindo Amsterdã. Em algumas das pinturas que Mondrian realizou nesta época, principalmente numa série de representações de mulheres em tons pastel, encontram-se realmente símbolos que remetem às doutrinas teosóficas, como triângulos, flores, a própria posição da figura no quadro etc. No entanto, partir desta constatação para uma leitura de seus quadros dependente exclusivamente da explicação por meio da teosofia pode ser redutora. Creio que seja um erro acreditar, a priori, que a ligação do artista com a religião tenha determinado uma obra de caráter necessariamente religioso,

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principalmente no que concerne às suas pinturas neoplásticas. Ragghianti já chamava a atenção: Aquilo que (...) mais se prejudica, diremos pela ingenuidade estética, é como não se perceba que vincular a obra de Mondrian a uma especialíssima condição de mente, ou melhor, de fé, condicioná-la ao domínio de uma chave esotérica, reduz ou anula a declarada universalidade, digamos melhor, humanidade de significado, mesmo se este significado devesse equivaler a um problema, em vez de a uma contemplação ou a um ímpeto lírico.285

Não é preciso ser tão radical quanto o crítico italiano e recusar qualquer investigação nesse sentido, mesmo porque o próprio nome que o artista atribuiu a sua nova arte – neoplasticismo (beldeeing, em holandês) – é, muito provavelmente, derivado dos escritos do teósofo e matemático Dr. M. H. J. Schoenmaekers, com quem Mondrian passou a se relacionar em 1915. Porém, antes de aceitar uma interpretação fácil das verticais e das horizontais da grade mondriânica amparadas na teosofia, talvez fosse proveitoso considerar o que o próprio Mondrian pensava a respeito. Golding lembra de uma carta que o artista teria escrito a Israel Querido em 1909, em que recusava uma vinculação da sua obra ao oculto: «meu trabalho permanece inteiramente fora do reino do oculto, embora eu tente alcançar o conhecimento oculto para mim mesmo a fim de obter um maior entendimento das coisas».286 Em outra carta, desta vez a Van Doesburg, em 1918, expressava seu desgosto com o conceito de arte desenvolvido por Schoenmakers em palestra proferida naquele ano: «É como se a arte não fosse mais a dos sentimentos individuais – como se a emoção não tivesse nada a ver com isso, mesmo se não tivesse um pensamento artístico envolvido».287 Em seus escritos, Mondrian se referiu explicitamente à teosofia somente em dois momentos, sendo que, em ambos, distinguiu entre arte e teosofia. Na primeira ocorrência, em seu artigo de 1917, «O neoplástico na pintura», a partir de uma citação de Kandinsky, em nota de rodapé, pôs teosofia e arte em planos diferentes, porém análogos: a teosofia «é uma outra expressão do mesmo movimento espiritual» que se vê em pintura.288 Em «A realização do neoplasticismo no futuro distante e na arquitetura hoje», de 1922, negava que a religião, em geral, e a teosofia e a antroposofia, em particular, pudessem atingir a harmonia que tanto perseguia em sua arte: 285

Carlo Ludovico Ragghianti, op. cit., p. 271. Piet Mondrian citado em Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 14. 287 Trecho de carta reproduzido por Joop M. Joosten, op. cit., p. 113. 288 Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 44n. Grifo meu. 286

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O conteúdo básico da religião era transformar o natural, na prática, no entanto, a religião sempre procurou harmonizar o homem com a natureza, isto é, com a natureza nãotransformada. Da mesma maneira, em geral, a teosofia e a antroposofia – embora elas já conhecessem o símbolo básico da equivalência – nunca poderiam atingir a experiência da relação equivalente, atingir a harmonia real e completamente humana.289

E, finalmente, em 1923, Mondrian deixa ainda mais explícito seu afastamento de qualquer doutrina que seja, ao escrever, no pequeno texto «Nenhum axioma mas o princípio plástico», uma de suas últimas contribuições à revista De Stijl: «Nós não queremos mais construir sobre doutrinas ou mesmo sobre a lógica».290 Yve-Alain Bois observa que «ao ler os escritos torrenciais de Blavatsky [Helena Blavatsky, uma das fundadoras da moderna teosofia], se poderia até mesmo sustentar que o neoplasticismo seja sintomático de uma profunda resistência, da parte de Mondrian, à teosofia e ao simbolismo». E arremata: «Até a famosa oposição entre masculino-vertical e femininohorizontal, que se diz extraída por Mondrian da sua conversão à teosofia, vem mencionada só um par de vezes em Blavatsky, quando discute o símbolo da cruz, um símbolo de que o pintor zombará».291 Possivelmente Alberto Busignani seja quem exprima em melhores termos a relação entre a teosofia e o neoplasticismo. Diz ele: «a enunciação neoplástica é a teosofia pessoal de Mondrian, o seu esclarecimento dos problemas da alma e do mundo».292 Talvez seja, portanto, mais proveitoso prestar atenção ao que Mondrian realmente diz em seus escritos e tentar estabelecer a relação destes com as pinturas do que tentar encontrar neles vestígios de uma adaptação de crenças e doutrinas preexistentes. De seus primeiros a seus últimos artigos, Mondrian defendia uma mesma concepção de arte. Para ele, esta devia ser uma ponte para o universal, para o absoluto, para a verdade. «Em arte, temos direta expressão plástica do universal (a plástica equilibrada das relações), não-corporal em suas manifestações e, portanto, livre do temporal que obscurece o eterno», escreve em «O neoplástico na pintura».293 No mesmo texto, afirmava também que «a nova era se diferenciará da antiga pela sua percepção

289

Piet Mondrian, «The Realization of Neo-Plasticism in the Distant Future and in Architecture Today (Architecture Understood as our Total Nonnatural Environment)», idem, p. 169. 290 Piet Mondrian, «No Axiom but the Plastic Principle», idem, p. 178. 291 Yve-Alain Bois, «Iconoclasta», no catálogo Piet Mondrian 1872-1944, p. 330. Grifo meu. 292 Alberto Busignani, Mondrian, p. 23. 293 Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 49.

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consciente, que se realizará espontaneamente por toda parte como o universal». Assim, concluía, «se a arte manifesta claramente o universal, então ela se estabelecerá como arte universal».294 Em «Diálogo sobre o neoplástico», de 1919, reiterava: «O universal é o que toda arte procura expressar».295 No panfleto «Neoplasticismo», asseverava que a arte tinha que ser «a expressão direta do universal em nós».296 Em «Arte puramente abstrata», 1926: «A tarefa hoje, então, é criar uma expressão direta da beleza – clara e, na medida do possível, “universal”».297 E este universal só poderia ser atingido por meio da pureza das formas, de uma arte equilibrada, harmônica e abstraída da natureza. «Em todas as artes, é através da composição (como oposta ao ritmo) que alguma medida do universal é plasticamente manifestada e o individual é também mais ou menos abolido.»298 Ou ainda: «O verdadeiro artista moderno percebe conscientemente a abstração da emoção da beleza; ele reconhece conscientemente a emoção estética como cósmica, universal. Esse reconhecimento consciente resulta numa plástica abstrata – limita-o ao puramente universal».299 É por meio do universal que se conseguia chegar a um absoluto em arte: Embora o universal expresse a si próprio através da natureza como o absoluto, o absoluto na natureza é plasticamente expresso somente através da cor natural escondida ou velada pela forma. Embora o universal seja plasticamente expresso como o absoluto – na linha pela reta, na cor pela planeza e pureza e na relação pelo equilíbrio –, ele é revelado na natureza só como uma tendência rumo ao absoluto – uma tendência rumo à reta, ao plano, ao puro, ao equilibrado: através da tensão da forma (linha), planeza, intensidade, pureza da cor natural e da harmonia natural.300

Com um certo acento hegeliano – e Mondrian tomou conhecimento das teorias de Hegel por meio de Rudolf Steiner, de G. J. O. J. Bolland (que cita nominalmente em seu primeiro artigo) e do seu contato com os membros do De Stijl –,301 o artista compreendia a arte «como uma das manifestações da verdade» por meio da busca pelo universal: «A verdade, que é manifestada subjetivamente na arte, é universal».302 No 294

Idem, p. 61. Piet Mondrian, «Dialogue on the New Plastic», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 78. 296 Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, p. 134. 297 Piet Mondrian, «Purely Abstract Art», idem, p. 199. 298 Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», idem, p. 39. 299 Idem, p. 28. 300 Idem, pp. 31-32. 301 Ver Yve-Alain Bois, «Iconoclasta», op. cit., p. 340, e John Golding, op. cit., p. 37. 302 Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., pp. 44 e 51 respectivamente. 295

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triálogo, Z é categórico: «Ver plasticamente é perceber conscientemente, ou mais precisamente, ver profundamente. É distinguir, é ver a verdade».303 Em termos bastante hegelianos, afirmava: «O neoplástico não quer mais o plástico trágico mas a plástica expressão da beleza – da beleza como verdade».304 No entanto, para Hegel, as noções de verdade, de absoluto e de belo achavam-se associadas a uma idéia de Deus ou de divino. Recordemos que, segundo ele, na religião cristã, Deus foi revelado como verdade e como espírito. E a arte é o terceiro estágio – os outros dois são a religião e a filosofia – para se atingir o espírito absoluto; isto é, em termos muitos gerais, o espírito que, consciente de sua condição finita e limitada, intenta e consegue superá-la, atingindo, desta forma, a infinitude, o que o eleva a um patamar superior, onde se situa a verdade e a universalidade – uma noção muito próxima à de Deus. Portanto, conforme a concepção hegeliana da arte, esta proporcionaria sempre uma transcendência e estaria relacionada a uma teologia. Em Mondrian, a situação se complica um tanto. Para este, a arte substituiu a religião e humanizou Deus: «hoje, a imagem de Deus não mais se situa fora do homem»,305 mas neste – e esta é uma das poucas menções que o artista faz a Deus em seus escritos. Num pequeno texto, extraído de um caderno de notas do artista por Harry Holtzman e escrito em inglês, provavelmente entre 1938 e 1940, Mondrian primeiro questionava: «Nestes tempos de predominante materialismo, homens de boa vontade e pensamento puro estão perguntando a si mesmos se a humanidade não precisa de uma nova religião». Depois, pontificava: A nova religião sem igrejas é a velha religião livre de toda opressão. A nova arte é a velha arte livre de toda opressão. Edifícios modernos que evocam o sentido de beleza substituem as igrejas. Neste sentido, arte se torna religião. A nova religião é a fé na vida.306

De uma certa forma, a nova plasticidade quer se estabelecer como uma nova forma de religião. Para Michel Seuphor, «a religião encontra um refúgio na arte, a qual se livra de sua aparência e se torna plástica pura ou pura imagem do absoluto, será ela

303

Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country to the City», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 97. 304 Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», idem, pp. 146-147. 305 Piet Mondrian, «The New Plastic in Paiting», idem, p. 61. 306 Piet Mondrian, «A New Religion», idem, p. 318.

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mesma idêntica a toda religião».307 Contudo, o neoplasticismo se manifesta como uma teologia sem theos, uma religião sem Deus. Por isso, falamos de uma dimensão mítica e não de uma dimensão religiosa ou sagrada. O mito não precisa de deuses, ele existe com ou sem eles, e não depende necessariamente de uma forma de religião. Mas, por outro lado, o neoplasticismo quer-se diferenciar do que é ordinário, em outro termo, do que é profano. Marc Le Bot, num pequeno artigo em que trata do ressurgimento da imagem religiosa na arte contemporânea, dentro do entendimento mais amplo do pensamento sagrado como sendo um traço da modernidade (como aquilo que há de secreto e enigmático no real), observa que arte e religião pensam o mesmo pensamento e chega à conclusão de que «a arte é um pensamento irreligioso do sagrado».308 Sua afirmação não poderia ser mais verdadeira se pensarmos no neoplasticismo de Mondrian. Em Mondrian, os termos «absoluto», «universal», «verdade» expressam uma vontade de atingir uma transcendência, de fazer com que sua arte ultrapasse o plano físico e se diferencie do profano. No entanto, se há uma transcendência em Mondrian, esta é vazia. E aqui tomamos emprestada uma expressão de Hugo Friedrich, cujo comentário sobre a poesia de Baudelaire poderia ser estendido a Mondrian: «A meta da ascensão não só está distante, como vazia, uma idealidade sem conteúdo. Esta é um simples pólo de tensão, hiperbolicamente ambicionado, mas jamais atingido».309 Para Décio Pignatari, a resposta de Mondrian à transcendência proposta por Hegel é um mergulho: Mondrian é o mais hegeliano de todos os artistas, mas não o é segundo uma determinação passiva, de sua causa e efeito. Ao contrário, radicalizando as idéias de Hegel, acaba por negá-lo em suas obras plásticas. Frente às afirmações de Hegel, de que «a arte tem em si os seus limites e deve, por isso, ceder lugar a formas de consciência mais elevadas», e de que «todos os povos que atingem um avançado estádio de civilização chegam, em geral, a um momento em que a arte alcança uma coisa que a ultrapassa», Mondrian vai aceitar o desafio da ciência, da filosofia e da religião, incorporando as propostas destas às suas propostas artísticas, para concluir que a superação e a negação da arte não desaguam nas formas superiores prescritas por Hegel, mas em mergulho, nas próprias raízes da arte e do pensamento icônico, para, através de uma não-arte, apontar para uma nova arte.310

307

Michel Seuphor, Piet Mondrian: sa vie, son oeuvre, p. 58. Marc Le Bot, «L’art et le sacré», Colóquio-Artes, 100 (mar. 1994), p. 38. 309 Hugo Friedrich, Estrutura da lírica moderna, p. 48. 310 Décio Pignatari, Semiótica da arte e da arquitetura, pp. 53-54 308

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f. Retorno à «figuração» Acredito que tenha ficado claro que, em Mondrian, a busca de uma transcendência – que não existe de fato porque vazia – está associada a um distanciamento da realidade e a uma imersão no estritamente pictórico, o que dá forma à auto-referencialidade da pintura (e o que perfaz a dimensão mítica). Sem amparo na realidade ou na transcendência, resta à pintura voltar-se para si própria. Hugo Friedrich chama de «dialética da modernidade» o movimento em que, a partir do instante em que a realidade é vivenciada «na sua insuficiência frente à transcendência – mesmo se vazia –, a paixão pela transcendência torna-se uma destruição cega da realidade. Esta realidade destruída constitui agora o sinal caótico da insuficiência do real em geral, como também da inacessibilidade do “desconhecido”».311 Em Mondrian, como vimos, esta «destruição cega da realidade» se traduz na abstração das formas. Contudo, essa arte totalmente abstraída da natureza talvez lhe tenha parecido demasiado falha, demasiado imperfeita ou insuficiente para fazer frente à realidade. Na precisa observação de Pignatari, «essa negação da arte enquanto realismo face à natureza, de uma arte entendida como realismo do espírito, será por sua vez negada, numa síntese que Mondrian vai tentar realizar “à beira do abismo”, precisamente nas telas finais de sua vida, a última das quais inacabada».312 De fato, em seus últimos anos, Mondrian voltou-se para uma forma muito singular de mimese ou «figuração». A primeira transformação nesse sentido se verifica nos títulos: os quadros deixam de se chamar abstratamente só Composição ou Quadro ou Losango para se referirem deliberadamente a lugares – com exceção de seu inacabado Victory Boogie-Woogie, uma tela em forma de losango que concebeu pensando não num lugar, mas num evento: a vitória dos aliados, a que não assistiu, na Segunda Guerra Mundial.313 Composição: Place de La Concorde (1938-1943) e Trafalgar Square (1939-1943) talvez sejam os primeiros trabalhos de Mondrian, depois da criação de seu neoplasticismo, que trazem no título uma referência a algo de concreto. Ao lado desta inovação, o pintor apresentou outras: além de pequenos blocos de cor sem contorno negro, dispôs pequenas linhas em

311

Hugo Friedrich, op. cit., p. 76. Décio Pignatari, op. cit., p. 55. 313 Ver Hans L. C. Jaffé, Piet Mondrian, p. 126. Comenta Jaffé: «A Victory Boogie-Woogie de Mondrian me parece ser não o reflexo de algo oticamente percebido, mas a pintura de um sentimento pela vida, de um estilo de vida: a alegre expectativa, a esperança certa da vitória contra a tirania, o mau governo e a glorificação pessoal – uma vitória que Mondrian vinha esperando desde 1917». 312

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azul, vermelho e amarelo ao lado das tradicionais pretas. Para Pignatari, as pinturas desta nova série se voltam para uma natureza particular, uma natureza criada pelo próprio homem: a cidade: Mondrian pintou as pinturas murais das cavernas da Primeira Revolução Industrial, de natureza mecânica («Paleolítico»), anunciando, ao mesmo tempo, as pinturas murais das cavernas da Segunda Revolução Industrial, de natureza eletro-eletrônica («Neolítico»), nisto que, negando a natureza «natural», não criada pelo homem, veio a negar a negação de sua obra mais marcadamente neoplasticista, para criar, da Composição Londres (1940-42) em diante, o ícone-diagrama de uma natureza artificial, criada pelo homem e que se chama «cidade». Um estranho, surpreendente e extraordinário «abstracionismo figurativo», que assinala o fim daquilo que pode ser entendido por «pintura». Trata-se, em verdade, de um figurativismo estrutural – o signo modelar das cidades possíveis. Mondrian foi o primeiro a caligrafar – ou a «datilografar» – em escrita geométrica, a visão aérea e planetária da cidade, coisa que muito se viu depois dele, geométrica e «informalmente».314

Blotkamp poderia concordar com Pignatari quanto à relação entre a cidade e o neoplasticismo, porém discordaria que estas novas telas possuam um laivo que seja de figurativismo, ao afirmar que: é claro que este uso renovado de títulos referenciais em suas pinturas de Nova York não sinaliza um afastamento da abstração. É mais como se isso tivesse sido projetado como uma expressão do vínculo entre o neoplasticismo e a cultura da metrópole, em particular de Nova York. Como tal, esses trabalhos são um tributo à cidade que lhe garantiu a liberdade de desenvolver e expandir sua arte e sua teoria.315

Já em seu primeiro escrito, de 1917, Mondrian dizia que «a vida social e cultural encontra a sua mais completa expressão exterior na metrópole». Em nota de rodapé a esta afirmação, o pintor ainda redundava, o que poderia ser uma glosa a Pignatari: «O verdadeiro artista moderno vê a metrópole como uma vida abstrata tomando forma: é mais próxima dele do que a natureza e será mais fácil despertar emoção estética nele. Porque na metrópole a natureza é já enrijecida, ordenada pelo espírito humano».316 No entanto, embora pareça que esta tendência tenha mostrado suas primeiras manifestações ainda em Londres (apesar de a data dupla destas telas indicar uma finalização posterior, quando, talvez, Mondrian tenha lhes dado os títulos), não é qualquer cidade que poderia, para usar um termo da antiga teoria da arte, inspirar estas telas. Se estas pinturas realmente celebram a associação do neoplasticismo com a

314

Décio Pignatari, op. cit., pp. 80-81. Carel Blotkamp, op. cit., p. 226. 316 Piet Mondrian, «The New Plastic in Painting», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., p. 59. 315

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cidade, Blotkamp fez muito bem em salientar que esta cidade seria, em particular, Nova York. Não poderia ser outra. Do alto do Empire State, que já existia na época, Mondrian poderia ter visto a «reprodução» na planta da cidade da mesma lógica subjacente a um quadro seu: o cruzamento incessante de verticais e horizontais. Não é por acaso que, depois de sua mudança para esta cidade, em 1940, aos 68 anos, a tendência em direção a uma «abstração figurativa» – para nos valermos da expressão de Pignatari – se acirrou. Hans Locher não tem dúvidas: «A intensidade do amarelo, do vermelho e do azul e a fragmentação dos campos e das linhas indubitavelmente reflete aspectos da vida dinâmica de Nova York».317 As luzes da cidade talvez tenham induzido Mondrian a abandonar, progressivamente, a sua já tradicional linha preta. Primeiro, o artista acrescentou linhas coloridas na sua grade de linhas negras, como em New York (1941), no qual três longas linhas vermelhas (duas horizontais e uma vertical) cruzam cinco longas linhas negras (três horizontais e duas verticais). No mesmo ano, no inacabado New York City 1, Mondrian compôs uma grade inteiramente constituída de linhas coloridas vermelhas, azuis e amarelas. O mesmo procedimento repetiu em New York City (1942). Era o fim do preto em suas composições. Yve-Alain Bois atenta para outro aspecto que indica um movimento em direção à «abstração figurativa»: segundo ele, o neoplasticismo de Mondrian nasceu de duas negações, da profundidade (oposição entre figura e fundo) e da replicação do dado natural, e, em New York City, ele retorna a estes dois recursos formais.318 Muito antes de Yve-Alain Bois, Clement Greenberg já dizia que a planeza era uma ilusão e que os traços feitos na tela «por um artista como Mondrian é ainda uma espécie de ilusão que sugere uma espécie de terceira dimensão».319 Em 1943, Mondrian trabalhou em seus últimos quadros: Broadway BoogieWoogie e Victory Boogie-Woogie. Em ambos, acentuou ainda mais a sensação de uma profundidade de campo. Comenta Nancy J. Troy: Embora Mondrian tenha incluído retângulos mais largos de cor em Broadway Boogie-Woogie, a natureza desses planos é diferente da de qualquer uma que ele tenha realizado previamente, mesmo nos quadros feitos com fitas como New York – New York City. Em Broadway Boogie-Woogie, os blocos de cor não são limitados por linhas e muitos 317

Hans Locher, Piet Mondrian, p. 79. Yve-Alain Bois, «“New York City 1”, 1942, de Piet Mondrian», Cahiers du Musée National d’Art Moderne, 15 (1985), p. 61. 319 Clement Greenberg, «Modernist Painting», The Collected Essays and Criticism: Modernism with a Vengeance, 1957-1969, p. 90. 318

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deles contêm um plano de cor contrastante dentro de seus limites. Isso introduz um efeito espacial alternativo de ida e vinda que contribui mais ainda para os ritmos sincopados pelos quais a pintura foi nomeada.320

Em Broadway Boogie-Woogie, as linhas são amarelas e interrompidas por pequenos blocos de cor. Outros blocos maiores de cor acham-se entremeados na grade formada pelo conjunto de linhas amarelas, sendo que boa parte destes blocos maiores coloridos são sobrepostos por outros blocos menores e igualmente em cor – disso resulta um ritmo sincopado que parece mimetizar o ritmo da dança citada no título. No inacabado Victory Boogie-Woogie, em formato de losango, o pintor repetiu a inserção de blocos menores contidos em blocos maiores de cor entre as linhas. Entretanto, as linhas aqui, ao contrário de suas telas anteriores, são formadas por pequenos blocos coloridos dispostos um ao lado do outro. O que talvez tenha impulsionado a produção destas últimas «abstrações figurativas» de Mondrian foi, por um lado, uma súbita vontade de representar a cidade, aquela natureza já trabalhada pelo homem, em função de esta se revelar a seus olhos de modo tão similar a tudo o que vinha produzindo. Por outro, por talvez notar que a abstração pura poderia ter se mostrado falha na tentativa de fazer frente à realidade, uma vez que, em seu distanciamento da realidade e, portanto, fechada em si mesma, acabou por só fazer referência a si própria.

g. Para além da dimensão mítica Creio que vale destacar, neste final de capítulo, que, no momento mesmo em que amadureceu suas pesquisas formais e definiu o que chamaria de neoplasticismo, entre os anos de 1919 e 1920, Mondrian começou a transformar também o seu estúdio num ambiente que parecia diretamente extraído de um quadro neoplástico – prática que manteria até o final de sua vida, em todos os estúdios por onde passou. Pelas fotografias que foram tiradas de seus diferentes apartamentos, podemos ver afixados nas paredes cartões de papel nas cores primárias e também móveis e cadeiras pintados em vermelho, azul, branco e amarelo. Em carta a Theo van Doesburg, de dezembro de 1919,

320

Nancy J. Troy, op. cit., p. 15.

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Mondrian explicou como havia expandido a sua experimentação pictórica para seu estúdio (fig. 26): Eu não podia pintar na parede, então tive que me limitar a pendurar alguns cartões pintados. Mas vi claramente agora que é absolutamente possível neoplasticismo na sala, simplesmente isto. É claro, tive de pintar também a mobília. Não me arrependi de meus esforços; teve um bom efeito no meu trabalho.321

Nesta mesma carta, Mondrian também comentava que, a partir de suas experiências no próprio estúdio da rua Coulmiers, em Paris,322 já sabia como encerraria o seu «triálogo», texto que vinha publicando em partes na revista De Stijl. As conversas finais deste texto se passam no estúdio do personagem Z (como já vimos, alter ego do artista), que explica a Y, um leigo, por que escolheu organizar o espaço daquela forma: Y. (...) Você disse que a própria estrutura do espaço contribui para a sua cromoplástica? Z. Até certo ponto, sim. O sótão, a lareira que se projeta e o pequeno armário já provêm uma divisão do espaço interior e de seus planos. Estes planos estão articulados arquiteturalmente pela ampla clarabóia no teto, pela janela do estúdio na parede da frente, dividida em ogivas, e estas novamente divididas em pequenas facetas, pela porta e pelo sótão na parede dos fundos, pela lareira e pela janela, de um lado, e pelo armário na outra parede. Sobre esta divisão estrutural estava baseada a articulação das paredes, a disposição da mobília e da aparelhagem doméstica, e assim por diante. Y. Sim, eu vejo como todas estas coisas ajudam a articular o ambiente, e também o fazem as cortinas marfim que estão agora abertas. Z. As cortinas formam um plano retangular que divide a parede ao redor da janela. Para continuar a divisão, eu acrescentei aqueles planos vermelhos, cinza e brancos na parede. Mesmo a estante branca com a caixa cinza e o jarro cilíndrico branco também contribuem para isto.323

Harry Holtzman, herdeiro do artista e autor da última foto do estúdio de Nova York, tirada logo após a morte de Mondrian, descreve este derradeiro estúdio do artista, no qual ele morou de setembro de 1943 até sua morte, em fevereiro de 1944 (fig. 27): A única pintura exposta no estúdio era Victory Boogie-Woogie, no seu cavalete (...). Os Trabalhos de Parede 1943-44 eram compostos com cartões retangulares vermelhos, amarelos, azuis, cinza e brancos, afixados nas paredes brancas com pequenos pregos. A escrivaninha para seu quarto de dormir e de estudo era construída de segmentos de caixotes pintados, o banco, de uma caixa de maçã. O tamborete e as prateleiras para suas pinturas, livros e papéis eram feitos de dois caixotes de laranja amarrados com tiras horizontais. A mesa de trabalho para sua cozinha, um espaço que ele não viveu o bastante para desenvolvê-lo plasticamente, era construída a partir de telas, e os pés eram parte de uma 321

Carta datada de 4 de dezembro de 1919, citada por Joop M. Joosten, op. cit., p. 116. Os estúdios de Mondrian que ficaram mais famosos foram o do número 26 da Rue du Départ, em Paris, no qual ele morou em sua primeira e em sua segunda estada na capital francesa, e seu último, em Nova York, no número 15 da 59th Street. 323 Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country to the City)», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, op. cit., pp. 111-112. 322

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cadeira espreguiçadeira, e parte de uma caixa empacotada. Estes objets trouvés, estes elementos «readymade», se conformavam utilmente à sua concepção plástica.324

Em pouco tempo, onde os montasse, os estúdios de Mondrian se tornavam famosos e, embora não os considerasse obras à parte, o artista deixava que os fotografassem e os visitassem. Golding conta que estranhos, em sua maioria estrangeiros, batiam à porta de Mondrian e pediam para dar uma olhada.325 Em 1920, um jornalista, um correspondente não-identificado do jornal Het Vaderland, lembra a sensação que experimentou, quando foi entrevistar o pintor, de contraste entre a harmonia no interior do estúdio de Mondrian em contraposição à desarmonia do mundo exterior: «No interior, o aspecto opressivo da modernidade foi domesticado, a ordem substituiu o caos, enquanto a simplicidade das formas e das cores, e de suas relações, engendra uma atmosfera de paz apolínea».326 Holtzman garante que estes ambientes foram «influências vitais» para gerações de artistas e arquitetos. Diz ele que Alexander Calder falava do efeito que uma visita ao estúdio de Mondrian, em Paris, teve para a criação de seus móbiles e que Willem de Kooning, que viu apenas o último estúdio de Nova York, comentou que estar lá era «como andar dentro de uma pintura de Mondrian».327 O mesmo Holtzman, depois da morte do artista, abriu as portas do estúdio deste para visitação pública, durante seis meses. Além disso, preservou os cartões coloridos, os quais expôs em 1983 no Museu de Arte Moderna de Nova York, e realizou uma série de fotos documentais e um filme em 16mm. Esta transformação do estúdio, isto é, do lugar onde o artista morava e trabalhava, numa extensão de sua obra pictórica – apesar de não considerá-la uma obra em si – parece-nos indicar uma passagem para algo além dos limites do quadro, para além disto que venho denominando dimensão mítica. Notamos neste gesto de Mondrian uma preocupação com o espaço e uma tentativa de produzir uma interferência real da arte na própria vida – e muitos escritos de Mondrian, como os de seus companheiros do De Stijl, deixam explícita esta intenção. Creio que podemos observar nesta preocupação com o ambiente, com a espacialização, uma centelha daquilo que proponho chamar dimensão ritual – talvez não seja por acaso que mais de um crítico e biógrafo de 324

Harry Holtzman, «Piet Mondrian: The Man and his Work», The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 5. 325 John Golding, op. cit., p. 31. 326 Citado por Herbert Henkels, Piet Mondrian: de la figuration à l’abstraction, p. 80. 327 Harry Holtzman, op. cit., p. 4.

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Mondrian tenha se referido ao estúdio deste como um «santuário»328 – e que veremos mais detida e nitidamente na parte seguinte, quando examinarei a Merzbau, de Schwitters, e o La Mariée mise à nu par ses célibataires, même, de Duchamp. E aqui poderia aproveitar para fazer uma distinção entre a dimensão mítica e a dimensão ritual. A primeira, como podemos depreender do que estudamos até este ponto, se circunscreve aos limites estritos da obra, isto é, a seus limites espaciais. Ela pode ser verificada onde ainda se preservam os suportes tradicionais; no caso de Mondrian e Malevitch, o quadro. Na dimensão ritual, por sua vez, estabelece-se uma relação entre o objeto (já é difícil aqui falar em «obra») e o espaço em torno; há uma interação entre estes. No entanto, cabe ressaltar que estas duas categorias não se contrapõem uma à outra: penso na dimensão ritual como complementar em relação à dimensão mítica: aquela engloba esta e lhe acrescenta alguns elementos a mais, que decorrem de uma nova relação que o artista estabelece com a sua obra e que esta, por sua vez, estabelece com o espaço circundante. Voltando a Mondrian, outro indício de uma possível passagem da dimensão mítica para a dimensão ritual poderia ser detectado na própria disposição de suas pinturas nas exposições, uma preocupação que se verifica também em Malevitch. Uma fotografia tirada por Van Doesburg na exposição do Círculo Holandês de Pintura, de 1917, mostra como Mondrian escolheu exibir três de suas telas do período em forma de um tríptico. No centro, achava-se a maior delas: Composição com linhas. De cada um de seus lados, pôs as telas irmãs, Composição em cor A e Composição em cor B. Assim, as pinturas deixavam de existir por si só e passavam a se relacionar umas com as outras. Blotkamp intuía esta necessidade de expansão ao observar que As pinturas de Mondrian dos últimos anos da década de 20 têm uma presença mais forte do que as anteriores. As imagens algo introvertidas tornaram-se objetos que, sem demandar imperiosamente uma atenção a sua presença material, não obstante formam uma força radiante com o ambiente, sua radiância se dirige para além, para o observador, mas também para todos os lados da parede em que está pendurada. Não tem sido fácil para os colegas ter seus trabalhos colocados próximos aos dele nas paredes freqüentemente cheias de uma sala de exibição. Uma pintura de Mondrian demandava espaço, e criava aquele espaço à sua volta, não importando o que estava pendurado a seu lado.329

328

Ver Jean Leymarie, na apresentação do catálogo Mondrian, de 1969, p. 11. No mesmo catálogo, p. 18, Michel Seuphor também se refere ao estúdio da Rue du Départ como «atelier sanctuaire». E BernardHenri Lévy, Piet Mondrian, p. 131. 329 Carel Blotkamp, op. cit., pp. 206-207.

110

Lembremos ainda, para concluir, que algumas pinturas de Mondrian, como Losango com duas linhas e azul e Losango com quatro linhas, sugerem um encontro dos elementos que as constituem fora dos limites do quadro. Diz muito certeiramente Alain Besançon: «Se a pintura de Mondrian, expandindo-se além dos limites do cavalete, invadiu nossas ruas e nossas cidades, é porque, com seus meios deliberadamente “minimalistas”, ele atingiu, como bem imaginava, alguma estrutura essencial de nosso estado presente».330

330

Alain Besançon, A imagem proibida, p. 606.

111

Fig. 1: O mar

Fig. 2: Oceano 1

Fig. 3: Oceano 2

Fig. 4: Oceano 3

Fig. 5: Oceano 4

Fig. 6: Oceano 5

Fig. 7: Píer e oceano 1

Fig. 9: Pier e oceano 4

112

Fig. 10: Composição n° 3 com planos de cor

Fig. 11: Composição A

Fig. 12: Composição com largo plano vermelho, amarelo, azul, cinza e preto

Fig. 13: Composição com amarelo, vermelho, preto, azul e cinza

Fig. 14: Composição com vermelho, azul, amarelo, preto e cinza

Fig. 15: Composição com azul, amarelo, vermelho, preto e cinza

Fig. 16: Composição com vermelho, preto, amarelo, azul e cinza

Fig. 17: Composição com azul, amarelo, preto e vermelho

113

J> '7 Figo 18: Quadro n" IV Losango

Figo 19: Composição em losango,

piramidal com vermelho, azul, amarelo e preto

com vermelho, preto, azul e amarelo

/

/

/

Figo 20: Composição com três linhas

Figo 21: Losango com duas

e azul, cinza e amarelo

linhas e azul

I Figo 22: Losango com quatro

Figo 23: Composição n" 1

linhas e cinza

Figo 24: Losango: Composição com quatro linhas amarelas

114

Fig. 25: estúdio em Amsterdã, em 1908

I

Fig. 26: estúdio em Paris, em 1926

I I

I



I



Fig. 27: estúdio em Nova York, em 1943

115

3 KASIMIR MALEVITCH a. Rumo a um método Como Mondrian, Kasimir Malevitch encontrou no cubismo de Braque e de Picasso a revelação de uma nova forma. Como Mondrian, a sua interpretação das conquistas empreendidas pelo cubismo foi bastante pessoal. No entanto, ao contrário de Mondrian, Malevitch não teve oportunidade de viajar a Paris.331 Sua única viagem ao exterior foi realizada somente em 1927 à Polônia e à Alemanha, onde permaneceu por cerca de dois meses. Seu conhecimento da arte que estava sendo produzida na Europa e, em especial, na França, se deveu a visitas às exposições que eram organizadas na Rússia e às coleções particulares. A partir de 1908, pôde ver os fauvistas franceses e o Grande nu, de Braque (primeira obra cubista a ser exibida na Rússia), nas mostras promovidas pela revista O Tosão de Ouro. A primeira destas exposições, realizada entre abril e maio de 1908, incluiu desde trabalhos de conterrâneos russos – como Natalia Goncharova e seu companheiro Mikhail Larionov – até artistas franceses – como Bonnard, Braque, Cézanne, Derain, Gauguin, Gleizes, Le Fauconnier, Matisse, Metzinger, Redon, Signac e Vuillard. Por esta época, também era possível se informar sobre o que estava sendo produzido no Ocidente a partir de reproduções e artigos em revistas sobre arte moderna publicadas na Rússia. Afora isso, talvez o contato mais importante com a produção francesa tenha se dado nas freqüentes idas às coleções particulares, em especial, a de três ricos marchands moscovitas: Sergei Chtchukin e os irmãos Ivan e Mikhail Morosov. Foram eles que puseram os artistas russos a par do impressionismo, ao adquirir no Salão dos Independentes e no Salão de Outono, ambos de Paris, por volta de 1904, obras de Degas, Manet, Monet, Fantin-Latour, Pissaro, Renoir e também de Van Gogh, Rousseau e Derain. Conforme os salões e as mais vanguardistas galerias francesas revelavam novos estilos e nomes, os três marchands atualizavam suas coleções. Assim, com o passar dos anos, foram montando um acervo excepcional com o que havia de mais revolucionário na Europa. Só para se ter uma idéia, Chtchukin tinha em suas paredes duas das mais conhecidas telas de Matisse, A música e A dança. Por 331

Embora Giovanni Caradente fale de uma «provável viagem» de Malevitch a Paris, em 1912 («Casimir Malevic e il “suprematismo”», Arte antica e moderna, 6 (1959), p. 173), e John Golding diga que acredita que o artista tenha estado em Paris («Malevich and the Ascent into Ether», Path to the Absolute, p. 233n), não há nada que comprove tal viagem.

116

volta de 1908 e 1909, ao lado de Matisse, podiam-se apreciar trabalhos de Cézanne, Picasso, Braque, Gauguin, entre outros. Graças a esses colecionadores, os museus de Moscou e São Petersburgo possuem hoje um arsenal de obras de inegável riqueza.332 E o mais fabuloso é que tanto Chtchukin quanto Morosov se compraziam em abrir as portas de suas casas para que os jovens artistas russos pudessem estudar os quadros. Depois de tomar conhecimento do que estava sendo produzido na Europa, Malevitch mudou substancialmente sua pintura: o artista assimilou o que viu e começou a produzir telas de inspiração pós-impressionista, primitivista e cézanniana. Porém, como bem observa Dora Vallier, «este homem não tinha nascido para imitar os outros»,333 e, nos anos seguintes, a partir de experiências motivadas pelo cubismo, Malevitch começaria a perseguir um estilo próprio, ao qual chegaria em pouquíssimo tempo – ao contrário de Mondrian, que demorou anos aprimorando e testando formas. Em 1912, no mesmo ano em que Mondrian conheceu e começou a se interessar pelas pesquisas formais de Braque e Picasso, percebem-se traços de influência cubista nas representações de camponeses de Malevitch. Nestas, a anterior experimentação com cores fortes – a qual sugere que o pintor tivesse estudado Gauguin, os nabis e os fauves –, que marcava quadros como No Boulevard (1911), é substituída por uma mistura de tons «metálicos», com detalhes em amarelo, laranja e verde, sustentados por estruturas tubulares ao modo de Léger, como em Lenhador e Camponesa com baldes, ambas de 1912.334 Nestas, notamos o uso particular que Malevitch fez das experiências cubistas. Tal qual Mondrian, Malevitch não se interessou em explorar a representação de objetos e figuras humanas a partir de diferentes pontos de vista, como o fez Picasso. Mas, e desta vez seguindo um caminho totalmente oposto ao de Mondrian, o qual, como estudamos no capítulo anterior, viu no cubismo a possibilidade de explorar o aspecto planiforme da superfície da tela, Malevitch extraiu das mesmas fontes um resultado contrário: em seus quadros deste ano, ressaltou o caráter escultórico das construções cubistas. Golding faz notar que, enquanto Mondrian «respondeu à transparência e à qualidade cristalina do cubismo analítico de Picasso, Malevitch respondeu às suas propriedades físicas, escultóricas; a imagem de Malevitch parece ter sido moldada a 332

Ver Linda S. Boersma, 0,10: La dernière exposition futuriste, p. 14. Dora Vallier, A arte abstrata, pp. 111-112. 334 Optei por apresentar aqui as traduções dos títulos originais e as datas dos trabalhos de Malevitch em conformidade com o que foi estabelecido recentemente por Andrei Nakov em Kazimir Malewicz: catalogue raisonné. 333

117

partir de folhas de metal, curvadas e torcidas por um punho forte».335 A este caráter escultórico, entre o final de 1912 e, principalmente, em 1913, Malevitch acrescentou o movimento, em resposta a sua recente descoberta dos trabalhos dos futuristas italianos Umberto Boccioni e Gino Severini,336 em obras que denominou de cubo-futuristas, como O afiador (1912-1913). No entanto, foi em 1913, inspirado formalmente pelo cubismo sintético337 e teoricamente pelas idéias dos futuristas russos (os quais não devem ser confundidos com os futuristas italianos), que Malevitch ensaiou os primeiros passos a caminho da abstração. Foi naquele ano que o artista se aliou ao grupo de pintores e poetas de David Burliuk, Krutchonik e Khlebnikov. Estes dois últimos haviam publicado, um ano antes, com Maiakovsky, o manifesto «Bofetada no gosto público». Através dos poetas, Malevitch compartilhou das experiências relativas ao zaum, poesia que propunha uma noção do artista como profeta e a prática de uma língua transmental e arbitrária, despojada por completo de significados. Disto, derivou o que ficou conhecido como alogismo. Estas experiências formais foram transpostas por Malevitch do universo da linguagem verbal para o da linguagem visual, uma transposição, em boa parte, auxiliada pelas inovações formais introduzidas pelo cubismo sintético. Segundo uma composição alógica, à construção cubo-futurista da pintura se somam objetos com os quais se estabelecem relações absurdas – como no surrealismo –, numa versão radical da colagem cubista. Para Golding, a originalidade que Malevitch fez derivar do cubismo não se deveu a um proficiente aprendizado, mas justamente a seu oposto, a uma «total falta de compreensão das intenções e da gramática do cubismo sintético», e foi ainda esta má compreensão que «o habilitou a produzir resultados tão surpreendentes e originais».338 Retrato aperfeiçoado de Ivan Vassilevitch Kliun talvez seja o primeiro quadro organizado segundo o denominado «realismo transmental».339 Vaca e violino

335

John Golding, «Malevich and the Ascent into Ether», Paths to the Absolute, p. 56. Ver Charlotte Douglas, Malevich, p. 72. 337 Em 1913, Sergei Chtchukin comprou 35 telas de Picasso, entre as quais figuravam Violino, instrumento musical e Violino e janela (ver Charlotte Douglas, op. cit., p. 10, e W. Sherwin Simmons, «Kasimir Malevich’s “Black Square”: The Transformed Self – Part One: Cubism and the Illusionistic Portrait», Arts Magazine, LIII, 2 (oct. 1978), p. 116. 338 John Golding, op. cit., p. 58. 339 Ver Jean-Claude Marcadé, «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913) au “Blanc sur blanc” (1917). De l’éclipse des objets à la libération de l’espace», Cahier I: Recueil d’essais sur l’oeuvre et la pensée de K. S.Malévitch, p. 112. 336

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(1913-1914)340 e Um inglês em Moscou (1914) são melhores exemplos de composições alógicas ou transmentais. Na primeira, a imagem de uma vaca é sobreposta à imagem de um violino, a qual, por sua vez, sobrepõe-se a um espaço decomposto em diferentes planos de cores, criando uma relação arbitrária entre seus elementos. No verso deste quadro, lê-se a seguinte inscrição: «justaposição alógica de duas formas, vaca e violino, enquanto momento de luta com a lógica do natural, do sentido e dos preconceitos pequeno-burgueses».341 Numa litografia sobre o mesmo tema, finalizada em 1919, mas cujo motivo retrocede aos anos de 1913-1914, Malevitch explicitou mais a sua luta pela libertação de preconceitos e de velhas formas no texto que acompanha a imagem: «A lógica tem sempre erigido barreiras contra os novos movimentos subconscientes. Para se libertar dos preconceitos, foi criado o movimento do alogismo. O desenho acima representa um momento de luta: a justaposição de duas formas – uma vaca e um violino numa construção cubista».342 Um inglês em Moscou segue um modo de disposição formal de elementos muito parecido ao de Vaca e violino. Naquele, várias figuras se sobrepõem umas às outras: vemos uma espada, que cruza o quadro de lado a lado, na horizontal, dividindo-o em duas metades, sobre uma vela, que, por seu turno, está sobre um peixe, que tapa parte do rosto de um homem. Identificam-se ainda uma grande colher vermelha na parte superior do quadro, uma igreja, uma escada, uma seta, uma tesoura e uma série de palavras. Em cima da tesoura, está escrito skakovoe obshchestvo (sociedade galopante), o que parece fazer eco à crítica à pequeno-burguesia inscrita no verso de Vaca e violino. No alto, lê-se zatmenie (eclipse) e, abaixo, chastichnoe (parcial). Para Charlotte Douglas, estas duas palavras fazem referência ao rosto parcialmente coberto pelo peixe.343 Veremos mais adiante como estas mesmas palavras podem estar em relação com trabalhos posteriores de Malevitch, incluindo o Quadrado negro. Cabe salientar que, nos quadros citados, Malevitch não lançou mão da colagem propriamente dita, ou seja, ele não chegou a proceder como Picasso apondo à tela pedaços de tecido ou de papel, mas poderíamos dizer que a disposição (ou talvez fosse 340

Andrei Nakov observa que provavelmente a obra tenha sido concebida em 1913, durante ou imediatamente depois de seu trabalho para os cenários e os figurinos da ópera Vitória sobre o sol, porém, por razões materiais, deve-se situar sua realização em 1914 (Kazimir Malewicz: catalogue raisonné, p. 154). 341 Kasimir Malevitch citado por Andrei Nakov, op. cit., p. 154. 342 Idem, p. 154. 343 Charlotte Douglas, op. cit., p. 82.

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melhor falar em sobreposição?) das figuras e dos planos de cor do quadro se vale do resultado formal alcançado pela colagem, porém utilizando-se sempre da tinta como matéria-prima. É interessante ainda observar como alguns críticos encontraram semelhanças formais entre estas obras cubo-futuristas e transmentais de Malevitch e as que seriam produzidas anos depois pelos artistas do dadaísmo. Camila Gray sugere que se poderia supor que Um inglês em Moscou, composição que resulta de uma aglutinação de elementos sem qualquer identificação lógica entre eles, fosse uma «peça prematura do Dadá».344 Susan Compton não titubeia em afirmar que estes trabalhos do artista antecipam tanto o dadá quanto o surrealismo.345 Segundo Dora Vallier, «o caráter mais notável destas obras é o fato de prefigurarem, em certos níveis, o movimento Dadá, e de anunciarem os quadros Merz de Schwitters».346 O grande passo rumo a um método e a uma gramática totalmente próprios seria dado neste mesmo ano de 1913 quando Malevitch preparou os figurinos e os cenários para a ópera Vitória sobre o sol, uma associação entre ele, Matiushin, que fez a música, Khlebnikov, que escreveu o libreto, e Krutchonik, que se encarregou do prólogo. Os quatro haviam participado em julho daquele ano de um congresso de «poetas do futuro», na Finlândia, e de lá saíram com um projeto para esta ópera e um manifesto, o qual, entre outras coisas, conclamava à destruição da «clara, limpa, honesta e ressonante língua russa», do «antiquado movimento de pensamento baseado nas leis da causalidade» e da «elegância, frivolidade e beleza de artistas e escritores baratos, que constantemente publicam cada vez mais novos trabalhos em palavras, livros, telas e papel».347 Encenada em 3 e 5 (16 e 18)348 de dezembro, no Teatro Luna Park, em São Petersburgo, a ópera dividia-se em dois atos ou movimentos. No primeiro deles, subdividido em quatro cenas, os homens do futuro saíam à cata e capturavam o Sol, símbolo das velhas tradições artísticas e culturais. No segundo ato, a ação se passava numa localidade do futuro, depois do aprisionamento do inimigo Sol numa casa de concreto, sinalizando o fim do passado. Charlotte Douglas comenta o libreto da ópera: 344

Camila Gray, The Russian Experiment in Avant-Garde, p. 155. Susan Compton, «Malevich’s Suprematism: The Higher Intuition», Burlington, CXVIII, 8 (1976), p. 582. 346 Dora Vallier, op. cit., p. 112. 347 Citado por Joop M. Joosten, Kazimir Malevich: 1878-1935, p. 9. 348 Antes de 1914, a Rússia adotava calendário diferente do calendário ocidental. Em função disso, quando for o caso, apresentarei duas datas neste capítulo: a que aparece entre parênteses corresponde ao calendário usado no Ocidente. 345

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Os personagens são personificações de qualidades em uma dimensão, do tipo daquelas encontradas em peças morais. Seus monólogos são, em geral, completamente indiferentes uns aos outros, sendo dirigidos primariamente à audiência, em vez de produzir ações motivadas. A captura do Sol acontece fora do palco; a audiência testemunha apenas uma série de vinhetas que transmitem violência ambiente e a fria irracionalidade do evento.349

Se a intenção desses artistas, ou melhor desses «homens do futuro», tal qual se auto-intitulavam era, como sinaliza Andrei Nakov, um dos organizadores dos escritos de Malevitch e responsável pelo seu Catalogue raisonné, romper com «a velha ordem cultural» e descrever o que deveria ser posto em seu lugar, «uma nova concepção de arte e vida»,350 os figurinos e os cenários projetados por Malevitch não poderiam estar mais de acordo. Com estes, o artista parecia se encaminhar, pela primeira vez, para uma abstração total. Os desenhos das roupas dos dezessete personagens da ópera partiam nitidamente das figuras de camponeses de seus quadros cubo-futuristas, porém já indicavam uma nova percepção do espaço e do volume e apontavam para uma concepção renovada da realidade. O personagem sem rosto que aparecia estampado na capa da antologia de poesia Árvore (Troe), realizada entre julho e agosto daquele ano, podia ser visto como uma figura intermediária entre os camponeses cubo-futuristas e os desenhos dos figurinos de Vitória sobre o sol: o pouco que ainda definia uma figura humana – as curvas do corpo, as feições do rosto, as mãos e os pés – nas figuras«tubos» cubo-futuristas cedia lugar a constituições puramente geométricas na capa da antologia. O mesmo ocorria nos desenhos dos costumes: todos se construíam a partir de formas geométricas definidas. Se elas foram levadas a efeito tal qual planejadas por Malevitch, não há como se ter certeza, uma vez que só existem duas fotos das apresentações. Contudo, garante Douglas, «podemos supor, a partir de comentários contemporâneos e do fato de o próprio Malevitch ter pintado o cenário, que eles [os figurinos] eram do mesmo desenho geral dos seus esboços preparatórios».351 A roupa projetada para o Inimigo e aquela para o Lutador do Futuro (fig. 28), por exemplo, eram feitas basicamente a partir da combinação de triângulos de diferentes tamanhos. O traje de Nero (fig. 28), por sua vez, combinava triângulos e uma semi-esfera. O Atleta era composto por um misto de diferentes figuras geométricas: retângulos, quadrados, 349

Charlotte Douglas, op. cit., p. 18. Andrei Nakov, «Malevich’s Transrational Trip to the “10th Land”», Kasimir Malevich, p. 17. 351 Charlotte Douglas, Swans of Other Worlds: Kazimir Malevich and the Origins of Abstraction in Russia, p. 43. 350

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trapézios, triângulos, entre outros. A impressão que estes figurinos causavam no palco foi descrita, na época, por Livchits: «os corpos eram fragmentados pelos fachos de luz, eles perdiam alternativamente braços, pernas, cabeças, porque, para Malevitch, eles eram apenas corpos geométricos produzindo não apenas a decomposição em elementos, mas também a completa desintegração do espaço pictórico».352 Contudo, a mais completa desintegração do espaço pictórico produzida por Malevitch em seus trabalhos para esta ópera não estava em qualquer um dos figurinos, mas nos projetos e na realização dos cenários, mais especificamente, do cenário da primeira cena do segundo ato (fig. 28). Neste, toda a elaboração visual dos cenários anteriores e posteriores à derrota do sol, feitos a partir da sobreposição de formas geométricas associadas a partes de objetos reconhecíveis (como um fragmento de um instrumento musical e a representação parcial de um sol), a letras, números, símbolos lingüísticos, compostos de uma mescla de cubo-futurismo e realismo transmental, reduzia-se a um simples quadrado dividido em dois triângulos, um negro e um branco. O mesmo cenário foi repetido nas segunda e terceira cenas do segundo ato. Na quinta cena, via-se ao fundo um puro quadrado negro pendurado em diagonal no palco.353 Douglas acredita que não se trata de um quadrado dividido em dois triângulos. Para ela, A linha divisória entre o preto e o branco está na verdade curvada ligeiramente para baixo de modo que ela intersecta o pequeno quadrado em sua margem mais baixa, cerca de um décimo do comprimento ao longo da extensão total do quadrado. Assim, o quadrado interno pode estar destinado a mostrar uma pequena porção de um sol enorme. Desde que o sol é o motivo dominante da ópera, sua presença brumosa na primeira cena de cada ato, seu grande volume maciço parecendo maior ainda pela sua inabilidade de conter tudo de si no nosso campo de visão, é plausível. A visão parcial do sol nos dá uma posição relativa a ele diferente da nossa real: uma proximidade ambígua que sugere tanto que o sol foi confinado perto de nós na Terra, quanto que nós nos afastamos em direção ao espaço.354

Para Jean-Claude Marcadé, esta primeira aparição eclipsada do Quadrado negro assinala «o eclipse dos objetos», porém um eclipse parcial, uma vez que este se apresentava dividido em dois triângulos.355 Assim, como Mondrian, Malevitch se dirigia à abstração, ao encontro de uma gramática e um método próprios, por meio do 352

Benedikt Livchits citado por Susan Compton, op. cit., p. 580. Ver Evgenii Kovtun, «Kazimir Malevich: His Creative Path», Malevich, p. 155, e Joseph Kiblisky, «Concerning the Question of the Black Square in the Opera Victory Over the Sun», Kazimir Malevich in State Russian Museum, pp. 37-38. O Catalogue raisonné organizado por Andrei Nakov traz os desenhos para todos os cenários do primeiro ato e apenas para a primeira e a sexta cenas do segundo ato. 354 Charlotte Douglas, Swans of Other Worlds..., p. 45. 355 Jean-Claude Marcadé, Malévitch, p. 17. 353

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progressivo eclipse dos objetos, ou seja, seu caminho rumo a uma abstração, como parece sugerir o cenário da ópera, partiu da gradual redução das formas na representação da realidade exterior. Talvez pudéssemos pensar o eclipse do sol como uma tentativa de eclipsar, de cobrir simbolicamente os valores do passado. O próprio Marcadé lembra que, no ano subseqüente, em 1914, Malevitch realizaria uma composição alógica chamada Eclipse parcial, na qual a única imagem figurativa é uma reprodução da Mona Lisa, riscada por dois X coloridos – e lembremos que o célebre quadro de Leonardo da Vinci havia sido roubado em 21 de agosto de 1911 e que este roubo suscitou uma onda de elogios rasgados não só ao quadro em si, mas a todo um modo de representação simbolizado por ele.356 Abaixo da pequena reprodução, lê-se: «apartamento à venda». Tal qual Duchamp no readymade L.H.O.O.Q, como salientei na primeira parte deste estudo, Malevitch, neste quadro, se apropriava de uma das imagens emblemáticas da tradição pictórica ocidental e a ridicularizava ao oferecê-la como um espaço à venda. O eclipse parcial provavelmente se refere, aqui, à arte do passado. A mesma referência podia ser encontrada, de maneira mais ou menos cifrada, no citado cenário de Vitória sobre o sol e em Um inglês em Moscou. Como já vimos, somente aniquilando o passado parecia ser possível produzir uma arte verdadeiramente nova. Esta surgiria nos anos seguintes com as composições suprematistas e, principalmente, com o Quadrado negro, o qual poderíamos chamar, seguindo esta linha de pensamento, de eclipse total da arte do Ocidente. Com o cenário e os figurinos geométricos de Vitória sobre o sol, Malevitch havia formado o embrião de seus futuros trabalhos suprematistas. Porém, por mais estranho que possa parecer, quando realizou esses projetos em 1913, ele não havia se dado conta da grande mudança que estes desenhos representavam, como atesta esse comentário que fez em carta dirigida a Matiushin em 27 de maio de 1915: Krutchonik me contou que você editará Vitória sobre o sol e que você gostaria de incluir meus desenhos para o cenário. Eu lhe serei bastante grato se você incluir somente o meu 356

Na época, André Salmon escreveu um artigo no Paris Journal dizendo: «O fato é que, aos olhos do público, mesmo dos não-educados, a Mona Lisa ocupa uma posição privilegiada que não é para ser estimada pelos seus valores apenas. Para muitos, a Mona Lisa é o Louvre. A Mona Lisa é sempre referida como o verdadeiro modelo de beleza; é a Mona Lisa que os garotos de segundo grau vão ver aos domingos; é ela, também aos domingos, que é o objetivo dos jovens intelectuais das províncias, que fazem o serviço militar em Paris; finalmente, o povo comum escolhe a Mona Lisa para dar uma espécie de bênção a suas festas de casamento» (citado por W. Sherwin Simmons, «Kasimir Malevich’s “Black Square”: The Transformed Self – Part One: Cubism end the Illusionistic Portrait», Arts Magazine, LIII, 2 (oct. 1978), p. 122).

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desenho do pano de fundo no ato em que se dá a vitória. Achei na minha casa um projeto e achei-o agora bem a propósito para ser publicado no livro. (...) Este desenho terá uma grande importância em pintura. Este, que foi feito inconscientemente, dá atualmente frutos extraordinários.357

Na época em que enviou esta carta a Matiushin, Malevitch estava trabalhando em segredo numa grande série de telas que viriam a ser chamadas suprematistas e que seriam expostas em dezembro de 1915, na mostra 0,10, subtitulada A última exposição futurista. Cada um dos dois numerais do título enigmático parecia ter um significado preciso – a crítica da época se enfureceu por não conseguir compreendê-lo e apenas foi capaz de dizer que o nome estava «aritmeticamente incorreto».358 Possivelmente, o 0 (zero) inicial declarava uma vontade de começar do princípio, de deitar por terra toda a tradição. Se esta hipótese é cabível, o título se devia a Malevitch, pois foi ele quem escreveu a brochura, uma primeira versão do ensaio «Do cubismo ao suprematismo: o novo realismo pictórico», que circulou durante a exposição e anunciava: «Eu me transformei no zero das formas e fui além do 0-1».359 Afora isso, para reforçar esta interpretação, podemos lembrar que o artista havia pensado em lançar uma revista em 1915, que se chamaria Zero. O próprio Malevitch explica: «Dado que nós temos a intenção de reduzir tudo a zero, nós decidimos chamá-la Zero. E nós mesmos, depois, passaremos para além do zero».360 E a hipótese mais aceita entre os estudiosos de Malevitch é de que o 10 referia-se ao número original de participantes da exposição – no final, foram quatorze os artistas que expuseram na mostra.361 A realização das telas para a exposição representou um tremendo salto na carreira de Malevitch, ainda mais se considerarmos que durante todo o ano de 1914 ainda pintou seguindo os padrões formais de seus quadros anteriores a Vitória sobre o sol e que, dois meses antes de escrever a carta a Matiushin, havia enviado para a mostra Tramway V – Primeira exposição futurista somente obras cubo-futuristas e

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Carta reproduzida por Jean-Claude Marcadé, Malévitch 1878-1978: Actes du Colloque international tenu au Centre Pompidou, Musée national d’Art moderne, les 4 et 5 mai 1978, p. 181. Grifo meu. 358 Ver Evgenii Kovtun, op. cit., p. 157. 359 Kasimir Malevitch citado por Evgenii Kovtun, op. cit., p. 157. 360 Kasimir Malevitch, em carta de 29 de maio de 1915, a Mikhail Vassilevitch Matiushin, reproduzida em Malevitch 1878-1978: Actes du Colloque international tenu au Centre George Pompidou, Musée national d’Art moderne, p. 181. 361 Ivan Kliun, em carta a Malevitch, de junho de 1915, ao comentar os preparativos para a 0,10, fala do número de participantes: «Nós temos que pintar muito agora. (...) e se todos nós 10 pintarmos vinte e cinco quadros cada um, então, mesmo assim, dificilmente será ainda suficiente». Citado por Evgenii Kovton, «Kazimir Malevich», Art Journal, XLI, 3 (1981), p. 235. Grifo meu.

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transmentais. Velhos camaradas seus, como Puni e Kliun, se entusiasmaram com sua nova pintura, cujos fundamentos foram expostos por Malevitch em «Do cubismo ao suprematismo: o novo realismo pictórico». Eles viram no Quadrado negro o fim definitivo da arte do passado: «O corpo da Arte da Pintura, a arte da natureza com acréscimo de maquiagem, foi colocada em seu caixão e marcada com o Quadrado negro. O ataúde está agora em exibição no novo cemitério das artes, o Museu da Cultura Pictórica», proferiu Ivan Kliun na época.362 O público reagiu com estupor frente a trinta e nove quadros – entre eles, o Quadrado negro, classificado no catálogo como Quadrângulo – que se afastavam por completo de qualquer forma de figuração. E também com revolta, como mostra este trecho do artigo do crítico de arte e pintor Alexander Benois, publicado no jornal Retch, em janeiro de 1916: O sr. Malevitch (e ele não está sozinho nisto, mas é um representante do seu tempo, de sua «legião») alegra-se que tenha transformado a si mesmo no «nada» das formas (...). O sr. Malevitch promete nos trazer o fim e a destruição, e então ele se apossa de orgulho e aspira a uma espécie de honra divina... (...) Isto, então, é o «domínio sobre as formas da natureza» em direção a que, com a completa força da lógica, encaminha não apenas a obra dos Futuristas com suas confusas desordens e suas rupturas com as «coisas», com seus experimentos engenhosos, insensíveis e racionais, mas também tudo da «nova cultura», com seus modos de destruição, e com seus ainda mais terríveis modos de «restauração» mecânica, com seu «americanismo» e com seu reino do «rústico», não no futuro, mas no aqui e agora. Um quadrado negro dentro dos limites de um branco é não só uma piada ou um desafio, não é um episódio casual de pequena importância numa casa no Campo de Marte; é um ato de auto-afirmação pelo princípio cujo nome é «impertinência da desolação» que adquire orgulho através da arrogância e de um sentido de auto-importância e pela difamação de tudo o que é amável e dócil, o que pode levar qualquer um à morte e à destruição...363

Com alguns anos de vantagem em relação a Mondrian, Malevitch havia encetado um processo. Quando este o pôs um pouco de lado, por volta de 1920, aquele estava apenas começando.

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Ivan Kliun citado por Larissa A. Zhadova, Malevich: Suprematism and Revolution in Russian Art 1910-1930, p. 43. 363 Alexander Benois, «The Last Futurist Exhibition», reproduzido por Matthew Drutt, Kazimir Malevich: Suprematism, pp. 253-254.

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b. Repetição O que chamo de dimensão mítica se instaura de forma similar – mas não totalmente igual – em Mondrian e em Malevitch. Em ambos, o achado de uma gramática própria (em Mondrian, o neoplasticismo; em Malevitch, o suprematismo) coincide com o desencadeamento de um processo fundamentado na repetição de uma mesma estrutura, constituída pela variação de poucos elementos recorrentes. Em ambos, estes elementos recorrentes são combinados entre si de modo a formar uma composição que rejeita a representação da natureza. Mondrian encontrou a melhor expressão de suas intenções na grade, armação construída a partir da relação entre o cruzamento de verticais e horizontais e os planos de cor delimitados por estas. Malevitch optou por organizar figuras geométricas pretas, brancas ou coloridas sobre a superfície plana e alva da tela. Enquanto Mondrian exacerbou o aspecto planiforme da pintura, Malevitch explorou a tensão entre dinamismo e estaticidade. Embora se use o termo grade para definir as estruturas dos quadros suprematistas de Malevitch,364 não o considero o mais adequado. Uma grade, segundo David Summers, no recente Real Spaces, em que propõe uma revisão da história da arte ocidental a partir da noção de espaço, se define basicamente como «um sistema de linhas perpendiculares».365 E, em Malevitch, não encontramos um sistema do tipo. Sua abstração toma como base a figura geométrica pura, preta ou colorida, em contraposição ao fundo branco, sem ser formada por meio de linhas. Observemos algumas de suas primeiras pinturas suprematistas. Pela fotografia incansavelmente reproduzida da sala dedicada a Malevitch na 0,10 (fig. 29), podemos ter uma idéia das primeiras produções do artista sob o epíteto suprematista. Nela, vemos vinte e uma das trinta e nove telas enviadas para a exposição, todas elas compostas a partir de figuras geométricas. (Sobre a posição do Quadrado negro, falarei mais para o fim deste capítulo.) Sete delas apresentavam uma figura geométrica simples: três quadrados, um retângulo, uma cruz e dois trapézios. Ao lado destas, achavam-se outros quadros que poderíamos dividir em dois grupos. Um primeiro grupo seria composto por aqueles que mostravam poucas figuras em relação, como as duas pequenas telas perdidas Terceiro estado do quadrado, em que Malevitch dispôs 364

Rosalind E. Krauss fala de grade a respeito tanto de Mondrian quanto de Malevitch (ver «Grids», The Originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, p. 10). 365 David Summers, Real Spaces, p. 411.

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dois retângulos iguais lado a lado, e Composição suprematista, arranjada a partir de dois quadrados colocados um ao lado do outro na parte superior do quadro, sobre um retângulo alongado que, por sua vez, se encontrava sobre um círculo. Como a fotografia é em preto e branco, não se pode ter certeza quanto à cor destas figuras geométricas, mas parecem ser pretas. Este grupo, e também aquele formado por telas com somente uma figura geométrica, poderiam ser subdivididos ainda em telas que preservavam a estaticidade da superfície plana em duas dimensões (algumas delas subtituladas por Malevitch Massas de cor em estado de quietude) e telas que sugeriam um dinamismo. No primeiro subgrupo, a partir da visão da foto, incluiríamos as duas pinturas acima citadas e mais as três que representavam um quadrado centralizado sobre o fundo branco, a da cruz e a do retângulo alongado. Para o outro subgrupo, poderíamos separar tanto aquelas duas que exibiam apenas um trapézio – Plano não-objetivo em projeção dinâmica e Plano não-objetivo em projeção –, quanto Composição suprematista com volume não-objetiva, Composição 2 c e Realismo pictórico de um menino com um saco às costas. Nestas, o que induz à idéia de movimento é a disposição enviesada da única (Plano não-objetivo em projeção dinâmica e Plano não-objetivo em projeção), de uma (Realismo pictórico de um menino com um saco às costas) ou de todas as figuras geométricas representadas (Composição suprematista com volume não-objetiva e Composição 2 c). Um segundo grupo seria constituído de telas que traziam várias figuras geométricas combinadas e que, por seu excesso de elementos e pela disposição usualmente oblíqua destes no espaço, davam sempre uma sensação de movimento. Neste grupo, encontram-se as telas que aparecem na fotografia e ainda não foram mencionadas aqui. Somente por esta fotografia de uma parte dos quadros que enviou para a 0,10, já é possível perceber como Malevitch, tal qual Mondrian, depois de encontrar um método, partindo de poucos elementos-chave, repetiu ao infinito uma mesma lógica de organização da superfície pictórica. A própria quantidade exagerada de telas (trinta e nove) que produziu em tão pouco tempo (provavelmente durante o ano de 1915) já dá mostras do caráter repetitivo de um processo em desenvolvimento. Suas variações se processavam a partir de figuras geométricas sozinhas ou em relação, sendo que nunca se cansou de reproduzir algumas destas figuras. O próprio quadrado foi realizado também em vermelho (fig. 31) e, depois, em branco (fig. 32). Do Quadrado negro (fig. 30),

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Malevitch fez onze versões ao longo da vida, todas seguindo o mesmo formato daquele exposto na 0,10: quatro em óleo sobre tela (1915, 1924, 1929 e 1930 ou 1932), uma em guache e tinta da China (1920), três litografias (duas em 1919 e uma em 1920) e três em lápis sobre papel (1915, 1920 e 1927). E nestas onze versões não estão elencados aqueles quadrados sobre fundo branco que se acham descentralizados, aparecendo ou no canto ou mais para a parte superior do quadro. Produziu também várias composições com a cruz, o círculo, o retângulo. Aliás, todas as suas figuras podem ser compreendidas como derivações do quadrado, figura que Malevitch tomava como «o embrião de todos os potenciais (...), o pai do cubo e da esfera» e dizia que, «em pintura, as suas dissociações produzem uma cultura maravilhosa».366 Nos anos subseqüentes, continuou a produzir quadros que podem ser compreendidos também como variações destes primeiros trabalhos suprematistas. O próprio artista dividiu o suprematismo em três fases distintas, cada uma delas associada a uma cor de quadrado: período negro, período colorido e período branco. «Na comunidade, estes quadrados receberam uma outra significação: o quadrado negro é o signo da economia, o vermelho, o sinal da revolução». E o que diz do branco enfatiza o aspecto processual de sua obra: «e o branco simboliza a ação pura».367 Em todos os períodos, trabalhou com fundo branco, reservando as cores e o preto para as figuras. Elaborou quadros prioritariamente derivados do quadrado, do retângulo e do círculo em composições estáticas e dinâmicas. Uma destas derivações é a cruz: sobreposição de dois retângulos ou, como queria Malevitch, de «dois planos suprematistas em relação». A Cruz suprematista pode ser vista em versão hierática (1920-1921, fig. 33), negra (1915, fig. 35), branca (1920-1921, fig. 34) e mística (1920-1922, fig. 36). Pelo exame das variações em desenho e em tela que realizou a partir do quadrado e da cruz, já se teria uma ampla amostra de como o artista passou a se interessar pela repetição e recombinação de certos elementos mínimos, criando um sistema e se dedicando a reproduzir incansavelmente este sistema. Depois da exposição de 1915, continuou a elaborar obras com uma única figura geométrica e também variações a partir de duas ou de uma série de figuras geométricas em relação. Começou a produzir figuras singulares, derivadas de figuras geométricas 366

Kasimir Malevitch citado por Jean-Claude Marcadé, «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913) au “Blanc sur blanc” (1917). De l’éclipse des objets à la libération de l’espace», op. cit., p. 114. 367 Kasimir Malevitch, «Introduction à l’album lithographique: Suprématime – 34 dessins», Écrits, p. 237.

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tradicionais: distorceu o plano e fez dele uma estranha figura esférica, alongou o círculo e o transformou numa gota. Em Supremus nº 55 (fig. 37), de 1916, sobrepôs uma série de retângulos coloridos, a maior parte deles dispostos na diagonal, a um círculo rosa. Como detalhe, sobre o maior dos retângulos, acrescentou uma figura negra em forma de gota. Embora apresente esta estranha figura, a disposição geral do quadro segue o mesmo princípio das composições dinâmicas expostas na 0,10. No mesmo ano, produziu outras telas seguindo esta mesma lógica: sobre uma figura geométrica maior em cor mais clara (por vezes cinza, por vezes rosa), estabeleceu relações entre figuras geométricas de tamanhos menores – geralmente retângulos – do que o da figura central, que forjam certo dinamismo. É este o caso, por exemplo, de Amarelo e preto (Supremus nº 58) (fig. 38): sobre uma «esfera estendida» (é assim que Malevitch qualifica a figura central deste quadro), relacionou uma série de retângulos, alguns quase linhas, a maioria deles nas cores amarelo, preto e branco e alguns poucos, em verde e azul. No ano da Revolução Russa, durante sua fase colorida, começou a se interessar pelas possibilidades que ofereciam os tons mesclados e as variações de textura. Plano amarelo em dissolução (1917-1918, fig. 39) resulta de um experimento deste gênero: consiste numa composição em que o amarelo da figura geométrica central – um trapézio – degrada-se em tons mais claros até se misturar ao fundo branco, dando a impressão de existir um plano perpendicular que se funde na tela. Este mesmo esmaecimento pode ser notado em alguns exemplares da série em branco sobre fundo branco, como Planos brancos em dissolução (1918) e Construção em dissolução (1918). Enquanto em Mondrian a redução ao que acreditava serem as formas verdadeiras se realizava por meio da construção de uma grade de relações entre linhas verticais e horizontais e destas com o fundo branco e com planos de cor, em Malevitch esta redução parecia ser ainda mais enfática. O mínimo de elementos com que Mondrian trabalhou foram duas linhas negras contra um fundo branco. Com alguns de seus quadros, Malevitch conseguiu ser ainda mais econômico: apôs apenas um elemento – um quadrado ou uma cruz ou um círculo ou um trapézio – contra o fundo branco. Na série de brancos sobre brancos, como a sua própria designação indica, reduziu todos os elementos pictóricos a uma só cor. Em quadros como Quadrado branco, Planos brancos em dissolução e Construção em dissolução, todos de 1918, parece que a figura geométrica se esconde atrás de uma espessa nuvem branca, que teria o efeito de mesclar

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esta figura ao fundo, fazendo com que ambos de confundam. Com estas telas, Malevitch chegou mais próximo do que proclamava como o «zero das formas». Por suas extremas concisões, estas se apresentam como totalidades absolutas, cada uma manifesta-se como um todo incapacitado de ser dividido em partes. Nas telas suprematistas de Malevitch, como precisamente salienta Troels Andersen: «não é a pintura nua e crua que assume significação dominante, mas um sistema que transforma a tela num evento pictórico».368 De fato, as pinturas de Malevitch podem ser compreendidas não só dentro de um sistema, mas a partir deste. Como em Mondrian, o que também passa a interessar aqui não é apenas cada uma das telas isoladas (cada uma das versões do mito em si, para nos valermos da mesma analogia usada em relação ao neoplasticismo de Mondrian), mas igualmente o processo que as engendra a partir da repetição de certos elementos fundamentais (no caso de Malevitch, de figuras geométricas). Parece-me sintomático deste movimento processual o fato de que o próprio artista tenha se referido a seu conjunto de pinturas como «o aparelho suprematista» e que tenha observado que o suprematismo «contém a idéia da nova máquina, quer dizer, do novo motor do organismo que funciona sem vapor, nem essência, nem rodas».369 E notemos como, ao comparar suas telas com aparelhos, máquinas e motores, o artista ressalta nestes justamente aquilo que os põem em movimento, isto é, o que faz das máquinas mecanismos de produção incessante de um mesmo produto – um funcionamento que poderia servir de metáfora a seu processo criativo. Para Vassily Rakitine, segundo o qual «o suprematismo começa sem cessar a construção de um sistema sempre mais novo», «Malevitch inventou, pode-se dizer, uma espécie de motor criador eterno».370

c. Auto-referencialidade Apesar de algumas das primeiras telas suprematistas de Malevitch portarem títulos que diziam respeito à realidade exterior, elas – como as pinturas neoplásticas de Mondrian – não veiculavam um conteúdo visualmente identificável. Das trinta e nove pinturas apresentadas na 0,10, sete delas traziam títulos com referência a algo de 368

Troels Andersen, Malevich, p. 31. Kasimir Malevitch, op. cit., pp. 234 e 237 respectivamente. 370 Vassily Rakitine, «L’art populaire et l’art de Malévitch», Cahier Malévitch nº 1, p. 20. 369

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concreto: Realismo pictórico de um jogador de futebol, Realismo pictórico de um menino com um saco às costas, Realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões, Automóvel e mulher, Mulher, Avião e Auto-retrato em duas dimensões. Em nenhuma destas composições, feitas inteiramente a partir de figuras geométricas em relação, pode-se reconhecer um vestígio que seja de um avião, de um automóvel, de uma mulher, de um jogador de futebol, de um menino. A camponesa em duas dimensões a que o título faz referência trata-se do quadro que ficou conhecido posteriormente como Quadrado vermelho.371 Particularmente, não creio que podemos entender os nomes destas pinturas como constitutivos de uma espécie de «abstracionismo figurativo», tal qual parece ocorrer nos trabalhos dos últimos anos de Mondrian. Em Malevitch, talvez estes títulos funcionem para assinalar a passagem definitiva de obras que ainda guardavam uma relação mínima que fosse com a realidade exterior – refiro-me aos quadros alógicos e transmentais em que se verifica uma subversão, mas não uma anulação da natureza – para uma nova produção, ou seja, de um realismo ainda inserido numa tradição de mimese, no sentido aristotélico da palavra, para um realismo outro, um realismo à parte do mundo real, um «novo realismo pictórico», para usarmos os termos do próprio Malevitch. Talvez pudéssemos compreendê-los ainda como uma espécie de denúncia – ainda mais se levarmos em consideração que um deles era um «auto-retrato»: ao criarem uma falsa relação entre o que se representa na tela (figuras geométricas) e a realidade exterior (pessoas, aviões, automóveis etc.), parecem demonstrar como podem ser arbitrárias e vazias as relações entre o que se representa e o que é representado, em outras palavras, como não deixa de existir um certo grau de arbitrariedade até mesmo na relação entre uma pintura realizada conforme a natureza e a própria natureza que esta pintura pretende expressar. Assim, estes títulos não fariam referência real à realidade exterior, mas acabariam revertendo-a para a pintura mesma, para o que esta, com suas figuras abstratas, coloca em jogo. Mesmo quando os títulos fingem designar algo de «real», o suprematismo de Malevitch, como o neoplasticismo de Mondrian, também se volta para si mesmo. Como nas abstrações do holandês, a auto-referencialidade (essa outra propriedade da dimensão 371

Em relação especificamente a esta pintura, Evgenii Kovtun atribui o título «figurativo» a uma tentativa de preservar uma conexão com as imagens de camponeses, trabalhadas pelo artista entre os anos de 1908 a 1912 (ver «Kazimir Malevich», Art Journal, XLI, 3 (1981), p. 240).

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mítica) das pinturas de Malevitch decorre prioritariamente da evasão da natureza: sem referentes externos, a pintura não tem outra saída do que aludir a si mesma. Dizia Malevitch: «Para a nova cultura artística, as coisas se esvaeceram como fumaça, e a arte anda rumo a um fim em si mesma, a criação, rumo à dominação das formas da natureza».372 Tanto em Mondrian quanto em Malevitch, a fuga da natureza se faz necessária por duas razões: somente por meio dela eles imaginam ser ainda possível atingir um absoluto, alguma forma de transcendência, e só com a purificação das formas, com a redução da pintura a seus elementos constitutivos, lhes parece cabível conceber uma arte realmente nova. «Na arte, é preciso a verdade e não a sinceridade», proclamava Malevitch, em termos muito parecidos com os de Mondrian. «A representação sobre a tela de coisas reais é a arte da reprodução hábil e nada mais que isso». Num outro excerto do mesmo texto, afirmava ainda que as novas formas «não serão a repetição das coisas vivas na vida, elas serão a coisa viva. Uma superfície plana colorida é uma forma viva e real».373 Recordemos que ambos viviam aquele momento, descrito na primeira parte deste estudo e do qual Malevitch, como vimos, participou ativamente, em que os artistas de diversos movimentos encetados no início da década de 1920 promoveram o que acreditavam ser uma destruição ou um rompimento definitivo com a arte do passado. Para Mondrian e Malevitch, romper com a arte do passado significava negar uma longa tradição de representação que poderíamos denominar antropomórfica e antropocêntrica, isto é, uma representação em que, por um lado, o motivo se realizava por meio da figura humana (cenas históricas, mitológicas, religiosas ou cotidianas) ou em que o homem era o próprio motivo da pintura (retratos em geral) e, por outro, uma representação em que o olhar do homem sobre a natureza determinava o que devia ser figurado (paisagens, naturezas-mortas). Nas pinturas de Malevitch e de Mondrian, a figura do homem, em qualquer dos sentidos que mencionei, foi abolida. Nenhum vestígio de natureza devia ser preservado. É por esta razão que ambos fizeram ressalvas às conquistas do futurismo e procuraram ultrapassá-las. Asseverou Malevitch: os esforços dos futuristas em produzir uma plástica puramente pictórica fracassaram. Eles não puderam se libertar da objetividade, o que lhes teria facilitado a tarefa. Depois de terem 372

Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural», Écrits, p. 180. 373 Idem, pp. 184 e 193 respectivamente.

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mais ou menos expulsado a razão do campo do quadro, esta velha calosidade que é a prática de todo o ver natural, eles erigiram o quadro da vida nova, o quadro das coisas e nada mais.374

Mondrian foi mais radical, e sua ressalva incluiu uma crítica também ao cubismo e ao dadaísmo, movimentos que antes, no mesmo artigo, elogiou por seus aspectos destruidores: «Nós nunca podemos apreciar suficientemente a obra e a realização dos movimentos cubista, futurista ou dadá; já que eles continuam a usar a morfoplástica, mesmo se refinada ou estilizada, eles nunca alcançarão a nova mentalidade ou demolirão completamente o velho».375 Malevitch justificaria: «Quando a consciência tiver perdido o hábito de ver num quadro a representação de recantos da natureza, de madonas e de vênus impudentes, nós veremos a obra puramente pictórica».376 O Quadrado negro talvez tenha se tornado a figura mais exemplar da busca do artista russo pelo puramente pictórico. O próprio Malevitch, em 1927, declarou: «O quadrado negro sobre um fundo branco foi a primeira forma usada para comunicar a ausência de um objeto».377 Para Jean-Claude Marcadé, este quadro «revela uma nova face, não humanista e não naturalista, ele faz do pictórico o seu meio de realização».378 O próprio Malevitch se referia a ele como a criação pura da arte: O quadrado não é uma forma subconsciente. É a criação da razão intuitiva. A face da arte nova! O quadrado é um recém-nascido vivo e majestoso. O primeiro passo da criação pura na arte.379

O verdadeiro pintor, o pintor suprematista, devia, em síntese, buscar o não-objetivo, aquilo que dispensava o objeto, e se dirigir às formas verdadeiras, rumo à «criação absoluta»: «As formas suprematistas, ou o novo realismo pictórico, provam que as formas encontradas pela razão intuitiva foram constituídas a partir do nada».380

374

Idem, p.189. Piet Mondrian, «Neo-Plasticism: The General Principle of Plastic Equivalence», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 144. 376 Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural», Écrits, p.179. 377 Kasimir Malevitch citado por Larissa A. Zhadova, op. cit., p. 50. 378 Jean-Claude Marcadé, Malévitch, p. 135. 379 Kasimir Malevitch, op. cit., p.198. 380 Idem, p.194. 375

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Porém, por serem constituídas a partir do nada, estas formas corriam o risco de nada significarem – o que Argan dizia de Mondrian poderia muito bem ser aplicado a Malevitch.381 Observa Zhadova: Alguém pode olhar para uma pintura suprematista por um longo tempo, porque ela não transmite um conteúdo plástico infinitamente desdobrado. Ela é destituída de emoção. Alguém pode compreendê-la ou não, aceitá-la ou rejeitá-la, sentir seu impacto ou não, mas não há nada nela que o envolva, e nenhuma profundidade para explorar.382

E, no entanto, ressalta ela, a pintura suprematista pode, por outro lado, nos levar a refletir: «ela incita a imaginação, estimula o pensamento e até mesmo provoca a ação».383 Mas um pensamento e uma ação que, como o quadro suprematista, se voltam para a interrogação da pintura em si. Uma pintura desta ordem, com seu movimento de auto-referencialidade, apresenta-se, portanto, como um enigma para o espectador; como uma Esfinge, ela o indaga e espera dele uma resposta. E é também a aura de mistério que deriva desta situação que colabora para constituir o que denomino dimensão mítica e que dota estas pinturas se não de significação, pelo menos de função: forjar uma transcendência.

d. Ordem No capítulo anterior, mostramos como o sentimento de angústia diante do mundo pode estar no fundamento da abstração de Mondrian e de sua busca por uma ordem; um sentimento análogo pode ser encontrado também em Malevitch. Em Malévitch et la Philosophie, uma substanciosa abordagem heideggeriana dos escritos de Malevitch, Emmanuel Martineau lembra a seguinte passagem dos textos do artista, extraída do Bauhausbuch: Quando, em 1913, em meu esforço desesperado em libertar a arte do peso inútil da objetividade, eu me refugiei na forma do quadrado e expus um ícone que representava apenas um quadrado negro sobre um fundo branco, a crítica suspirou e, com ela, a sociedade: «Tudo o que amamos pereceu: estamos num deserto... Diante de nós, um quadrado negro sobre um fundo branco!». (...) Mais «réplicas da realidade» – períodos de representações ideais –, nada mais que um deserto. Mas o deserto está repleto do espírito da sensibilidade não-objetiva, que penetra tudo. 381

Ver nota 53 do capítulo Piet Mondrian deste estudo. Larrisa A. Zhadova, op. cit., p. 59. 383 Idem, p. 59. 382

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Em mim também, uma espécie de reserva levada até a angústia me preenche, quando se trata de deixar o «mundo da vontade e da representação» onde eu vivi e me criei, e a fatuidade em que acreditei.384

Com base neste extrato, Martineau conclui que a ansiedade – na tradução alemã do texto, a palavra é Angst – é a «tonalidade fundamental da experiência que comanda a passagem à Abstração artística».385 Malevitch foi claro no que disse: foi uma sensação de angústia que o fez abandonar o «mundo da representação» e substituí-lo por outro, por um mundo alheio àquele que lhe foi dado conhecer. No lugar do mundo real, aquele que chama de «objetivo», dever-se-ia erigir um «mundo não-objetivo», onde imperaria um novo tipo de realismo: «o novo realismo pictórico».386 Suas novas formas suprematistas nasciam como criaturas vivas, «realidades em si próprias mais do que imagens da realidade».387 Para Zhadova: «As telas suprematistas de Malevitch poderiam mais acuradamente ser descritas como “modelos vivos” da nova concepção e sentido de espaço, como “projeções na arte” do novo entendimento do homem acerca do seu ambiente e do mundo em que vive».388 Seguindo por esta trilha, talvez pudéssemos compreender a sua caminhada em direção a este novo realismo como uma tentativa de fornecer uma significação para um mundo não mais facilmente apreensível – recordemos que Malevitch inventou e desenvolveu o suprematismo antes da Revolução Russa e durante a constituição de um Estado comunista num país que ainda vivia sob bases feudais. Para Malevitch: «Os instrumentos da nossa inteligência ficam estilhaçados sempre que os utilizamos para apreender os objetos do mundo material; o que na inteligência há de mais elevado, mais profundo, mais vasto, mais aberto, é precisamente esse estilhaçamento».389 Assim, nas justas palavras de Vassily Rakitine, «na arte do suprematismo, a experiência do mundo que o artista possui enquanto pessoa aparece mediatizada, como parte de um certo sistema».390 Já é quase lugar-comum referir-se aos trabalhos suprematistas de Malevitch como constitutivos «de uma natureza cosmológica», querendo, com isto, dizer que «eles 384

Kasimir Malevitch citado por Emmanuel Martineau, Malévitch et la philosophie, p. 200. Emmanuel Martineau, op. cit., p. 199. 386 Este é o subtítulo do já citado «Do cubismo e do futurismo ao suprematismo» e a expressão com a qual Malevitch se refere ao modo de pintura que busca atingir. 387 Charlotte Douglas, Swans of Other Worlds..., p. 59. 388 Larissa A. Zhadova, op. cit., p. 50. 389 Kasimir Malevitch citado por Dora Vallier, op. cit., p. 107. 390 Vassily Rakitine, op. cit., p. 20. 385

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têm a ver com viagens interplanetárias extraterrestres num mundo futuro onde conceitos aceitos de espaço e tempo não têm mais lugar».391 Tenho dúvida se é possível ver qualquer espécie de «naturalismo» em suas composições abstratas ou estabelecer uma relação entre as figuras geométricas dispostas no espaço plano da superfície da tela com figuras soltas no espaço celeste. É certo que Malevitch nutria uma fascinação por viagens espaciais e por aeronaves em vôo – fascinação plenamente compreensível, uma vez que eram estas as grandes invenções da época e a menina-dos-olhos dos futuristas – e que ainda comparou sua produção suprematista aos sputniks e afirmou que se podia examinar e estudar as formas suprematistas «como não importa que planeta ou sistema planetário».392 No entanto, parece-me serem estas apenas analogias. Ao sugerir que se proceda a uma análise de sua obra suprematista de modo similar ao exame do sistema planetário, parece-me que Malevitch diz mais sobre o seu suprematismo se instituir como um sistema do que sobre se constituir como uma representação de planetas, estrelas, cometas etc. Talvez alguns críticos tenham feito uma leitura muito ligeira dos textos de Malevitch e tenham também se deixado influenciar por demais pelos títulos de obras que se referem a aviões e a vôos. O próprio Malevitch é bastante transparente quando afirma: Nós somos o plano o sistema a organização.393

A meu ver, se há uma natureza cosmológica na obra de Malevitch, esta está mais próxima do sentido etimológico da palavra «cosmos»: originária do grego kósmos, significa «ordem», «disciplina», «organização». Para Kovtun, Malevitch tinha «uma visão do mundo como uma criação falhada e imperfeita que deveria ser refeita».394 Deste ponto de vista, o suprematismo parece originar-se de uma tentativa de corrigir a criação divina. Malevitch «via toda a sua obra, especialmente suas pinturas produzidas durante os períodos suprematistas e pós-suprematistas, como uma “emenda” à Criação Bíblica», garante Kovtun. E, em outro texto, o crítico afirma ainda: «o artista começou a 391

A citação é de John Golding, op. cit., p. 67. Ver ainda Troels Andersen, Malevich, p. 30, e Evgenii Kovtun, «Kazimir Malevich: His Creative Path», Malevich, p. 159. 392 Ver Kasimir Malevitch, «Introduction à l’album lithographique – Suprématisme – 34 dessins», Écrits, p. 235. 393 Kasimir Malevitch, «Nous voulons...», op. cit., p. 261. 394 Evgenii Kovtun, The Avant-Garde in Russia, p. 110.

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criar novos mundos, como um demiurgo».395 Em «O mundo enquanto nãoobjetividade», Malevitch proclamava que a finalidade da pintura, como de todas as ciências, deveria ser elucidar «a tenebrosa realidade do mundo».396 E elucidar a realidade do mundo se traduzia na restauração de uma nova ordem, uma ordem que proviria, como em Mondrian, não de uma recuperação de formas e imagens passadas, mas de formas absolutamente novas. Por isso, «o suprematismo é a construção de uma nova realidade», tendo como objetivo final «transformar o mundo na imagem do suprematismo». Em carta aos artistas holandeses, de 12 de fevereiro de 1922, Malevitch falava de sua intenção: «Nós queremos construir o mundo de acordo com um sistema não-objetivo, afastando-nos mais e mais do objeto, como o cosmos da criação da natureza».397

e. Texto e obra Como Mondrian, Malevitch também tentou embasar sua nova arte num fundamento teórico-«teológico». Como o colega holandês, acreditava que a nova realidade que criava, este novo mundo não-objetivo, deveria se revelar como um mundo verdadeiro e absoluto, ou seja, de ordem superior ao mundo externo. Como nos escritos de Mondrian, também nos de Malevitch, a arte era apresentada – ou tinha a pretensão de se apresentar – como uma religião de outra ordem. Não se sabe ao certo se Malevitch acreditava ou não em alguma religião. Em sua autobiografia, escrita em 1933, dois anos antes de sua morte, não falava de suas próprias crenças, mas contava que seus pais não eram particularmente religiosos e que «sempre tinham um pretexto para evitar a igreja». Relatava ainda que, nas paredes de sua casa, havia ícones, porém «mais pela tradição e pelas convenções sociais do que por sentimentos religiosos».398 Se Malevitch continuou a cultivar estas «convenções sociais», é uma incógnita. Porém, podemos imaginar que não devia ser fácil para um jovem artista, engajado nas causas revolucionárias (em 1905, pegou em armas na 395

Evgenii Kovtun, «The Beginning of Suprematism», compilado por Evgeniya Petrova, Malevich: Artist and Theoretician, p. 105. 396 Kasimir Malevitch, «Le Monde en tant qu’inobjectivité», reproduzido em Dossier Kazimir Malevic, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, 3 (jan.-mar., 1980), p. 136. 397 Carta citada por Troels Andersen, Essays on Art: 1915-1933, p. 186. 398 Kasimir Malevitch, «From 1/42: Autobiographical Notes, 1923-1925», reproduzido no catálogo Kazimir Malevich: 1878-1935, p. 169.

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Batalha das Barricadas; durante a Primeira Guerra Mundial, produziu cartazes de propaganda para o governo; e, em 1916, aliou-se ao Exército e foi para o front lutar pela Revolução Russa), seguir uma religião num meio que defendia e lutaria pela adoção do materialismo comunista. No entanto, os escritos de Malevitch exalam um certo tom religioso. A própria denominação que dá a suas obras já indica se não uma feição religiosa, pelo menos uma vontade de se atingir uma transcendência. Suprematismo vem do latim Supremus, que, freqüentemente associado à idéia de Deus, significa «aquilo que está acima de tudo». Andrei Nakov, na introdução a uma das traduções francesas dos escritos de Malevitch, comenta que a palavra suprematismo não existia em russo antes de o artista a utilizar em 1915. Mas se achavam os termos supremat e supremacja, bem como o adjetivo supremacyjny, no Dicionário da língua polonesa, publicado em 1919. Disso, conclui Nakov: A sua conotação filosófico-religiosa e a sua utilização prática pela Igreja católica dentro da sua jurisprudência estão muito próximas, sobre este plano, da lógica funcional do emprego «hierárquico» que fará Malevitch, isto é o que nos permite concluir, sem grande risco de erros, que a palavra «suprematismo» é, da parte de Malevitch, um empréstimo do polonês.399

Como Mondrian o faria anos depois, Malevitch, com seus artigos e manifestos, publicados a partir de 1915, se esforçou em tentar legar à sua nova produção não apenas uma justificativa mas uma transcendência – e seria por isto que os textos assumiriam uma postura «teológica». É sintomático que tanto Mondrian quanto Malevitch comecem a escrever sobre o caráter de seus próprios trabalhos no momento em que descobrem um novo método de criação e que esse novo método de criação resulte em obras autoreferenciais. Parece-me que seus escritos decorrem de um desejo de se forjar uma inalcançabilidade, de tencionar atingir um algo mais que, por si mesmas, tanto a pintura suprematista quanto a neoplástica talvez não tivessem condições de lograr. Como para Mondrian, a arte para Malevitch era uma espécie de filosofia. Escreveu ele, em 1919, em «Suprematismo», publicado no catálogo da décima exposição do Estado, realizada em Moscou: «É preciso construir no tempo e no espaço um sistema que não dependa de qualquer beleza, de qualquer emoção, de qualquer 399

Andrei Nakov, na introdução aos Écrits, de Kasimir Malevitch, p. 174. A outra tradução dos escritos de Malevitch foi organizada por Jean-Claude Marcadé e publicada em quatro volumes.

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estado de espírito estético e que seja, de preferência, o sistema filosófico da cor onde se acham

realizados os novos progressos de nossas representações, enquanto

conhecimento». E completou: «Em seu primeiro estado, o suprematismo possui um movimento puramente filosófico e instrutivo que passa pela cor; em seu segundo estado, ele é a forma que pode ser aplicada, constituindo então o novo estilo de ornamento suprematista».400 Em «Criação não-objetiva e suprematismo», reiterou: «Num de seus estágios, o suprematismo possui, através da cor, um movimento filosófico, e num segundo, como uma forma que pode ser aplicada, formou um novo estilo de decoração suprematista».401 Como Mondrian, Malevitch perseguiu a arte pura, aquela, segundo eles, capaz de conduzir, em termos hegelianos, o espírito ao absoluto. Para Alain Besançon, «a escolha iconoclasta explica-se claramente pela idéia do divino»: «Deus supera toda a representação» e só pode ser alcançado por meio da não-figuração.402 No vocabulário do sistema malevitchiano, o absoluto hegeliano ou o universal mondriânico converteu-se no zero (ou no infinito): «A ciência e a arte não têm fronteiras, porque o objeto do conhecimento é infinito e inominável, e o infinito e o inominável se igualam a zero».403 No início deste mesmo texto, uma pequena declaração publicada em 1923, chamada «O espelho suprematista (manifesto do conhecimento absoluto)», o artista listou uma série de «fenômenos» e os igualou todos a zero: em ordem, apareciam Deus, a alma, o espírito, a vida, a religião, a tecnologia, a arte, a ciência, o intelecto, a Weltanschaung, o trabalho, o movimento, o espaço e o tempo. Na continuação, declarava: 2. Se tudo foi criado nos caminhos do Senhor, e «esses caminhos são impenetráveis», o Senhor e esses caminhos se igualam a zero. 3. Se o mundo foi criado pela ciência, pelo saber e pelo trabalho, e sua criação é infinita, ele se iguala a zero. 4. Se a religião conhece Deus, ela conheceu o zero. 5. Se a ciência conhece a natureza, ela conheceu o zero. 6. Se a arte conhece a harmonia, o ritmo e a beleza, ela conheceu o zero. 7. Se qualquer um conhece o absoluto, conheceu o zero.404

400

Kasimir Malevitch, «Suprématisme», Écrits, p. 226. Grifos meus. Kasimir Malevitch, «Non-Objective Creation and Suprematism», Essays on Art, p. 121. Grifo meu. 402 Alain Besançon, A imagem proibida, p. 598. 403 Kasimir Malevitch, «Le Miroir suprématiste (Manifeste de la connaissance absolue)», Écrits, p. 245. Grifo meu. 404 Idem, p. 246. 401

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Num outro artigo, aproximou novamente o zero ao infinito e defendeu que estes eram os únicos fatos existentes: «A análise provará que as coisas não existem mas que, ao mesmo tempo, existem seus infinitos, o “nada” e, por sua vez, “alguma coisa”».405 Segundo ele, a realidade se manifestava como o infinito: «aquilo a que damos o nome de realidade é o infinito que não conhece nem peso, nem medida, nem tempo, nem espaço, nem absoluto, nem relativo, que jamais foi traçado numa forma».406 A arte verdadeiramente revolucionária era concebida por Malevitch como uma espécie de religião, mas uma religião, como em Mondrian, de todo particular, que produzia, para nos valermos de uma expressão precisa de Vallier, um «sagrado às avessas».407 Em «Do cubismo e do futurismo ao suprematismo: o novo realismo pictórico», Malevitch referia-se à criação artística como uma criação divina: Eis porque as formas da razão utilitária são superiores a qualquer representação oferecida nos quadros. Superiores porque vivas, porque saídas da matéria que as deu um novo aspecto para uma vida nova. Aqui está a Divindade que ordena aos cristais que passem a uma outra forma de existência. Aqui está o milagre... Deve-se também ver milagre na criação artística.408

E, em «O mundo enquanto não-objetividade», estabeleceu uma relação muito clara entre o sopro da criação e Deus: «O homem espiritualiza a coisa pelo processo da criação – só é viva a coisa na qual o homem insuflou a vida (não seria isto Deus?)».409 Ao contrário de Mondrian, que quase não menciona Deus nominalmente, Malevitch recorria seguidamente à esta figura. Num de seus primeiros manuscritos, encontrado por W. Sherwin Simmons no Museu Stedelijk, de Amsterdã, para onde foi boa parte das obras que Malevitch levou consigo em sua viagem à Alemanha,410 observava: 405

Kasimir Malevitch, «Dieu n’est pas déchu», Écrits, p. 380. Idem, p. 381. 407 Dora Vallier, op. cit., p. 123. 408 Kasimir Malevitch, «Du cubisme et du futurisme au suprématisme: le nouveau réalisme pictural», Écrits, p. 192. 409 Kasimir Malevitch, «Le Monde en tant qu’inobjectivité», reproduzido em Dossier Kazimir Malevic, Cahiers du Musée National d’Art Moderne, 3 (jan.-mar. 1980), p. 139. 410 Quando viajou à Alemanha, em 1927, levou consigo mais de cem pinturas, desenhos e diagramas. Ao ser chamado de volta, não titubeou em deixar suas obras com dois de seus amigos: Gustav von Riesen e Hugo Häring. Para o primeiro, confiou um pacote com a seguinte advertência: se não fosse possível voltar à Alemanha no ano seguinte, ou se fosse morto, ou ainda se não tivessem mais notícias dele nos próximos 25 anos, Riesen poderia dispor de seus trabalhos do modo que bem entendesse. Em 1934, o pacote foi 406

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Eu procuro por Deus, eu procuro por mim em mim mesmo. Deus é onividente, onisciente e onipotente. Uma futura perfeição da intuição como o mundo ecumênico da supra-razão. Eu procuro por Deus, eu procuro pela minha face, eu já delineei seu perfil e me esforcei para encarnar em mim mesmo. E minha razão me serve como um meio rumo àquilo que é delineado pela intuição.411

É justamente por meio da razão, de uma arte primordialmente racional que o artista acredita poder atingir Deus, como bem salienta Besançon: «O universo, considerado como perfeição, é Deus (...). Mas o universo, ou melhor, Deus, não pensa. Somente o homem pensa e é pelo pensamento que vai identificar-se com o universo, a saber: Deus».412 Depois de ter declarado que «os deuses estão mortos e não ressuscitarão mais»,

413

Malevitch reavivou uma nova figura de Deus, um Deus único e próprio, que

assumia a imagem da perfeição. Para ele, «Deus, como imagem, não foi destronado».414 E, para a Sua eterna presença, buscou uma metáfora no poussah, figura que lembra um macaquinho, comum no Extremo Oriente, a qual, se empurrada, volta à sua posição normal, nunca sendo derrubada, como os nossos joões-balões. Ao passo que Mondrian dizia que Deus não deveria ser procurado fora, nas coisas, mas no homem, Malevitch investia os próprios homens, os artistas em especial, de poderes divinos e capacidades criadoras, humanizando, assim, a divindade. Em «Da poesia», artigo escrito em 1918, apresentava os poetas, estes «cantores do extraterrestre», como «deuses», mas ressalte-se que deuses entre aspas: «Esses são os homens que dirigem seu olhar para um mundo diferente, os “deuses” que atribuem a si a

escondido num porão por razões de segurança. No final da Segunda Guerra Mundial, a casa recebeu alguns impactos, e o porão ficou soterrado pelos destroços. Oito anos depois, em 1953, iniciaram-se os trabalhos de recuperação, e descobriu-se o pacote intacto. Nele, estavam manuscritos, livros de anotações, desenhos e fotos do artista. As obras que foram entregues a Häring – pinturas cubo-futuristas e suprematistas – também tiveram que ser escondidas num porão durante o nazismo. Passaram por diversos donos, algumas foram vendidas, outras emprestadas para exposições, umas perdidas para sempre. Por fim, voltaram para o poder de Häring. Em 1943, a escola onde trabalhava incendiou, e Häring fugiu com os quadros de Malevitch para Berlim. Em 1957, estas obras, finalmente, encontraram um lugar para ficar: o Museu Stedelijk, de Amsterdã, onde estão até hoje. 411 Kasimir Malevitch citado por W. Sherwin Simmons, Kasimir Malevich’s Black Square and the Genesis of Suprematism, 1907-1915, p. 230. 412 Alain Besançon, op. cit., p. 595. 413 Kasimir Malevitch em carta a Alexander Benois, reproduzida em Écrits, p. 162. 414 Kasimir Malevitch, «Le poussah», compilado por Jean-Claude Marcadé, De Cézanne au Suprématisme: Tous les traites parus de 1915 à 1922, p. 99.

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posse de um universo maior e mais sobre-humano que a natureza e a terra». E comparava a criação destes a uma «grande liturgia»: Pode-se estar no bonde, na rua, na praça, no rio ou na montanha; lá ele assistirá à dança de seu Deus, à sua própria dança. Ele não poderá lembrar-se deste lugar se não houver nem tinta nem papel, porque a razão e a memória lhe farão falta no momento desejado. Nele começará a grande liturgia. E também o espírito, o espírito religioso.415

No mesmo texto, comparava a nova arte a uma igreja, cuja imagem «muda a cada segundo»: «A Igreja é o movimento; o ritmo e o tempo são os seus fundamentos». Não se trata de uma igreja tradicional, mas de um outra forma de igreja: «A nova Igreja, viva, corrente, substituirá a Igreja atual, transformada em depósito para as bagagens dos caminhos da escravidão». Esta igreja se enformava pelas palavras do poeta: «Quando brilha a chama no interior do poeta, ele se endireita, eleva os braços, flexiona o corpo e a conduz à forma que, aos olhos do espectador, se torna a Igreja viva, nova, real».416 No famoso «Deus não foi destronado», seu mais explícito «tratado teológico», Malevitch retornou ao tema da igreja, desta vez associado não só à arte, mas também à fábrica, estabelecendo três caminhos em direção a Deus. O homem dividiu sua vida em três caminhos, os caminhos espiritual, religioso e científico, ou a fábrica e as artes. Que estes significam? Significam a perfeição. É sobre eles que o homem progride, ele progride como um princípio sagrado rumo à sua representatividade final, isto é, rumo ao absoluto. Este são os três caminhos sobre os quais marcha o homem que vai em direção a Deus. Em matéria de arte, Deus é conhecido como a beleza, pela única razão que Deus está na beleza. A religião e a fábrica pedem à arte para as embrulhar no manto da beleza, como se elas não acreditassem na própria perfeição. É com igual majestade que se dirige para a arte, a religião e a fábrica. Mas, a despeito de suas relações recíprocas, cada caminho não estima menos desempenhar o primeiro papel, ser o único caminho a conduzir a Deus, à doutrina autônoma e ao conhecimento de Deus.417

Neste tratado, dizia ainda que a «humanidade se encaminha rumo ao pensamento absoluto pelas suas produções».418 Se o homem conseguisse atingir este absoluto, ele poderia afirmar com orgulho: «eu conquistei todas as perfeições, “eu sou Deus”».419 Entre a religião e a fábica, Malevitch estabelecia uma diferenciação: «A religião

415

Kasimir Malevitch, «De la poésie», Écrits, pp. 289 e 290 respectivamente. Idem, pp. 291-292 417 Kasimir Malevitch, «Dieu n’est pas déchu. L’art, l’Église, la fabrique», Écrits, p. 403. 418 Idem, p. 384. 419 Idem, p. 399. 416

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promove a leitura dos livros da Santa Escritura que descrevem a perfeição dos santos, enquanto que a fábrica promove a leitura das obras científicas consagradas às perfeições. A primeira explica pelas Santas Escrituras como atingir a perfeição religiosa e se tornar um santo; a escola da fábrica ensina como se tornar um sábio».420 E precisou ainda esta relação: «Pela sua religião, a Igreja visa conduzir a consciência do homem a Deus, considerado como a perfeição. O materialismo se esforça para atingir a perfeição na máquina, (...) uns acreditando se alimentar com Deus, os outros, com a máquina».421 E a arte, segundo Malevitch, era essencial e mostrava ao homem a beleza e «talvez algo de mais elevado, de mais perfeito que a beleza».422 A arte possuía em si «a harmonia de Deus».423 No fim de seu artigo, observava ainda que a fábrica pretendia refazer o mundo e modificar não só a consciência do homem, como também seu corpo, tornando-o um modelo perfeito:424 «Assim, a fábrica e a usina propõem conduzir o homem ao novo reino mecânico encerrando seu corpo, bem como sua alma, numa nova vestimenta ou transformando-o em instrumento; o homem poderá ser representado neste reino do mesmo modo que a forma da alma é hoje representável no homem».425 No entanto, no momento em que coloca no mesmo nível a fábrica, a arte e a igreja e, principalmente, em que compara o seu sistema artístico a uma máquina,426 a sua «teologia» se desfaz. Por meio destas comparações, Malevitch demonstra a falta de bases religiosas verdadeiras no fundamento de sua nova arte. Seu Deus se constitui mais como uma figura retórica, como uma metáfora da perfeição e da inatingibilidade, como, resumindo, uma esperança de se atingir um algo mais, uma forma de superioridade. Porém, como salienta Besançon: «A versão religiosa pode assumir a estatura de uma espécie de teologia mística da morte de Deus».427 Se havia em seu suprematismo uma espécie de religião ou de teologia, esta se instituía como um tipo de parábola da transcendência. Ao modo de Mondrian, Malevitch parecia querer, com seu sistema de ares teológicos e com o engendramento de uma arte de dimensões míticas, alcançar

420

Idem, p. 391. Idem, p. 398. 422 Idem, p. 404. 423 Idem, p. 404. 424 Idem, p. 405. 425 Idem, p. 408. 426 Ver nota 39 deste mesmo capítulo. 427 Alain Besançon, op. cit., p. 584. 421

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alguma forma de transcendência. Contudo, tanto aqui como em Mondrian, esta transcendência se revela vazia.

f. Para além da dimensão mítica Num de seus artigos em que faz uma interessante aproximação entre a arte popular russa e o suprematismo de Malevitch, Rakitine assevera que o artista «leva à perfeição o princípio de ação hipnótica da forma» e que, nesse sentido, o ritmo da construção suprematista é ritual: «Ele inspira um ritmo novo, uma sensação. A superfície plana não é somente portadora da cor. Ela aparece em seu conjunto como um potencial de possibilidades artísticas e extra-artísticas diversas».428 De fato, se considerarmos que um ritual supõe sempre mais do que aquilo que está sendo representado,429 poderíamos concordar com Rakitine e observar que os trabalhos de Malevitch, como os de Mondrian, apontam – mas apenas apontam – para uma dimensão situada além desta que chamo mítica. Em alguns poucos casos, suas composições parecem querer estabelecer um contato mais estreito com o espaço circundante; em outras palavras, elas indicam uma disposição em se tornarem mais do que meras pinturas. Larissa Zhadova já indicara que poderia haver uma relação entre o quadro suprematista e a parede na qual este se achava: A composição de uma pintura suprematista é governada pela união do ambiente espacial representado na sua superfície e em torno dela, e não pela distribuição harmônica de seus elementos em relação ao formato e pelas dimensões da pintura. Esta é uma nova concepção de composição espacial, por meio da qual cada representação suprematista se torna um componente orgânico de seu ambiente como um todo. A pintura suprematista, por exemplo, vai muito bem sem moldura, simplesmente pendurada numa parede branca que serve como uma espécie de extensão espacial do fundo branco, não-colorido, da pintura em si.430

Em Malevitch, esta tendência rumo a um extra-artístico aparece mais claramente na própria disposição do Quadrado negro nas paredes da exposição 0,10. Para a mostra, o artista escolheu pendurar seu quadro no alto do ângulo formado por duas paredes. Ao proceder desta forma, atribuiu à sua pintura propriedades extra-pictóricas; ele fez dela

428

Vassily Rakitine, «Le “réaliste” et le “non objectif”. Quelques observations sur “l’art paysan” de Malévitch», Malévitch 1878-1978: Actes du Colloque international tenu au Centre Pompidou, Musée national d’Art moderne, les 4 et 5 mai 1978, p. 49. Grifo meu. 429 Em termos antropológicos, o ritual representa em geral uma comunicação entre o mundo terreno e extra-terreno (ver Edmund Leach, Cultura e comunicação, p. 116). 430 Larissa A. Zhadova, op. cit., p. 51.

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um objeto, chamando a atenção não só para o que era representado na tela, mas também para a posição que o quadro recebeu no espaço e para a relação que estabeleceu com este. E não se trata de uma relação qualquer esta que o artista criou entre o quadro e o espaço. Malevitch dispôs o Quadrado negro exatamente no mesmo lugar reservado ao ícone Belo Canto (Krasny Ongol) nas casas ortodoxas russas, ícone que figurava geralmente a imagem de Jesus Cristo ou da Virgem Maria. A provocação de Malevitch não passou despercebida na época, como podemos constatar neste trecho daquela ácida crítica de Benois à exposição: no alto, no ângulo logo abaixo do teto, no espaço santificado, lá está uma «obra» sem número, indubitavelmente do mesmo sr. Malevitch, representando um quadrado negro delimitado em branco. Não há dúvida de que este é o «ícone» que os srs. Futuristas estão propondo no lugar das Madonas e das Vênus desavergonhadas.431

A evidente correspondência que Malevitch traçava entre os ícones e o Quadrado negro e, por tabela, entre a tradicional arte popular russa e a sua nova arte – lembremos que esta era a primeira vez que expunha obras totalmente abstratas – parece não deixar dúvidas entre os críticos que esta reforça a concepção de Malevitch da arte como uma forma de teologia. O próprio Malevitch, em carta de 20 de março de 1920, escreveu que «talvez o quadrado negro seja a imagem de Deus como a essência da Sua perfeição num novo encaminhamento para o fresco começo dos dias de hoje».432 E não podemos deixar de assinalar que o artista acreditava que «o canto simboliza que não há outro caminho à perfeição exceto pelo caminho do canto».433 Deborah Haynes e Jean-Claude Marcadé atentam para as inúmeras vezes que o artista se referiu a seu quadrado como uma face ou um rosto.434 Como os tradicionais ícones russos representavam sempre o rosto de Cristo e da Virgem Maria, estas comparações de Malevitch indicariam, segundo eles, uma prova do caráter 431

Alexander Benois, «The Last Futurist Exhibition», reproduzido por Matthew Drutt, Kazimir Malevich: Suprematism, pp. 253-254 432 Carta a Mikhail Gershenzon, citada por Yevgenia Petrova, «Malevich’s Suprematism and Religion», compilado por Matthew Drutt, op. cit., p. 91. 433 Kasimir Malevitch citado por W. Sherwin Simmons, Kasimir Malevich’s Black Square and the Genesis of Suprematism, 1907-1915, p. 233. 434 Só para citarmos dois exemplos, Malevitch, na carta a Alexander Benois, falou no «rosto do meu quadrado» e, em «Do cubismo e do suprematismo ao novo realismo pictórico», referiu-se a seu quadro como «a face da arte nova» (ver Kasimir Malevitch, Écrits, pp. 163 e 198 respectivamente). Sobre os comentários de Deborah Haynes e de Jean-Claude Marcadé, ver Bakhtin and the Visual Arts, pp. 148 e ss. e «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913) au “Blanc sur blanc” (1917). De l’éclipse des objets à la libération de l’espace», op. cit., pp. 114-115.

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profundamente «icônico»435 do quadro em questão. Conforme Marcadé, o Quadrado negro é, para Malevitch, «a essência do divino», porém, «não como símbolo, mas como ser pictórico absoluto».436 Haynes vai ainda mais longe e julga que o Quadrado negro «comunica um obscuro conteúdo teológico», que diz respeito a uma nova espécie de religiosidade.437 Tomando as referências a Deus nos escritos de Malevitch como evidências, Haynes observa que estas «poderiam ser tomadas como mais uma afirmação de seu entendimento do Quadrado negro como um símbolo para o divino».438 Ela reverte a resposta que Malevitch dá a Benois – «De minha época, não tenho mais que um ícone nu, sem moldura (como meu bolso) e me é difícil combatê-lo» –439 e a interpreta como mais uma demonstração de um certo caráter religioso: «É seu ícone nu, sem moldura» que oferece a experiência de, e talvez a tendência para, confrontar o vazio, isto é, Deus».440 Yevgenia Petrova talvez concordasse com Haynes ao fazer notar que Malevitch estava criando um novo tipo de ícone: «Ao colocar um quadrado, círculos ou cruzes contra um fundo branco ou cinza, Malevitch estava retornando aos cânones da antiga arte russa, reinterpretando-os em sua própria maneira original». E complementa: «Nos ícones russos, o fundo branco tradicionalmente simbolizava pureza, santidade e eternidade, enquanto o preto representa o abismo, o inferno e a escuridão».441 Dmitrii Sarabianov não se encontra muito distante desta mesma concepção. Afirma ele: «O Quadrado negro não só desafiou o público que perdeu o interesse em inovações artísticas, mas também testificou uma distinta forma de “busca por Deus”, o símbolo de uma nova religião».442 E Meyer Schapiro recorda que Walt Whitman descreveu Deus como um quadrado no poema «Chanting the square deific» e que Tolstói se utilizou desta mesma figura geométrica, em Memórias de um louco, como uma imagem da angústia religiosa.443 Disso, conclui: «Eu não devo concluir que o círculo ou o quadrado 435

Expressão de Jean-Claude Marcadé, «K. S. Malévitch, du “Quadrilatère noir” (1913) au “Blanc sur blanc” (1917). De l’éclipse des objets à la libération de l’espace», op. cit., p. 115. 436 Jean-Claude Marcadé, «Préface», Kazimir S. Malévitch, De Cézanne au Suprématisme: Tous les traites parus de 1915 à 1922, p. 10. 437 Deborah Haynes, Bakhtin and the Visual Arts, pp. 131-132. 438 Idem, p. 152. 439 Carta a Alexander Benois, reproduzida por Andrei Nakov, Kasimir Malevitch, Écrits, p. 164. 440 Deborah Haynes, op. cit., p. 153. 441 Yevgenia Petrova, op. cit., p. 91. 442 Dmitrii Sarabianov, «Kazimir Malevich and His Art, 1900-1930», compilad por Matthew Drutt, Kazimir Malevich: Suprematism, p. 70. 443 Meyer Schapiro, On the Humanity of Abstract Painting, p. 13.

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na tela é, em algum sentido oculto, um símbolo religioso, mas ao invés: a capacidade destas formas geométricas servirem como metáforas do divino surgem de sua qualidade viva, freqüentemente momentânea, para o olho sensitivo».444 De minha parte, tendo a compreender o gesto de Malevitch mais como uma provocação do que como uma tentativa de simbolizar o divino. Parece-me haver aí uma outra demonstração da sua «teologia» entre aspas. Creio que se pode, sim, imaginar este gesto como mais uma tentativa de legar à sua obra uma realidade para além daquela que ela apresenta. Ao dispor sua pintura no mesmo local em que se dispunham os ícones, Malevitch está, certamente, estabelecendo uma relação entre seu quadrado secular e as imagens sagradas. Tenho dúvidas se a intenção última seria representar o divino, até porque, não esqueçamos, o artista estava, nesta época, se evadindo de qualquer representação. Mas talvez seja possível acreditar que a disposição de sua pintura no espaço consagrado seja uma maneira de fornecer a ela uma forma de transcendência, no entanto, mais uma vez, uma transcendência que se revela vazia. Como nota Luciano Ponzio, o Quadrado negro é «o ícone que salva da idolatria, que não se transforma por sua vez em ídolo».445

g. Retorno à figuração No capítulo anterior, vimos que Mondrian, no final de sua vida, não chegou a abandonar a abstração, mas passou a produzir o que Pignatari qualificou de «abstracionismo figurativo». Malevitch, por seu turno, voltou efetivamente à representação figurativa. Depois de passar, na década de 1920, por uma experiência que resultou em seus planits e arquitetons (plantas e maquetes, respectivamente, que não chegam a ser projetos arquitetônicos, mas são propostas experimentais de elaboração em três dimensões da linguagem suprematista), o artista voltou a se dedicar a pinturas figurativas. Em alguns casos, Malevitch recuperou telas antigas (geralmente aquelas que representavam camponeses em formas tubulares), produzidas antes de seus quadros suprematistas, e retrabalhou-as. Por esta razão, muitas delas portam duas datas de realização: uma da década de 1910 e outra da década de 1920 ou 1930. Este é o caso, por exemplo, de Camponesa de rosto negro (1911/12-1928/29) e Jovens no campo (1912-1928/29, fig. 40). Outras apresentam figuras estáticas sem rosto contra uma 444 445

Idem, p. 14. Luciano Ponzio, Icona e raffigurazione: Bachtin, Malevic, Chagall, p. 55.

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paisagem desolada, lembrando bastante as figuras-manequins e as ruas desertas e ensolaradas, produzidas na década de 1910 por Giorgio De Chirico. Nestas figuras sem face de Malevitch, Alain Bonfand vê uma continuação do Quadrado negro: Somos (...) obrigados a ler esse quadrângulo preto como um rosto sem rosto, ainda mais se considerarmos a continuação da obra de Malevitch, quando ele retorna à figuração, que (...) é povoada de rostos – Cristo camponês e, principalmente, Cabeça sem rosto, 1918-1932, no qual, emoldurada como um retrato, uma cabeça marcada por uma barba está sem rosto, sem olhos, sem nariz, sem boca.446

Outras ainda, em menor número, exibem apenas um homem – normalmente o seu rosto somente –, em frente ou ao lado de uma cruz, instituindo uma nova espécie de espiritualidade. Poderíamos imaginar – seguindo a linha de pensamento que desenvolvi quando tratei da «figuração» de Mondrian – que esse retorno ao figurativismo talvez proviesse de uma sensação de insuficiência da abstração tanto para fazer frente ao mundo exterior quanto para incorporar uma certa espiritualidade em si. É possível que o artista tivesse sentido como poderia ser falha, para dar conta da realidade exterior e para construir uma nova realidade, uma arte que termina por se voltar para si mesma. Por outro lado, não podemos perder de vista que seu retorno ao figurativismo pode estar relacionado a questões sociais e políticas. Nos primeiros anos de 1920, Lênin, cujas noções estéticas eram bastante limitadas, percebeu que era preciso criar uma arte que agitasse as massas. Queria apresentar ao povo imagens reais de acontecimentos, e não imagens abstratas. Mesmo ocupando cargos públicos e tendo sido um fiel colaborador da revolução socialista, Malevitch passou a ser perseguido pelo Estado. O suprematismo era, antes de tudo, considerado idealista e espiritual, e o partido não se interessava por abstrações, mas por coisas palpáveis, materiais: eles queriam propagandear o governo e esta propaganda não poderia ser realizada em bases abstratas. Embora não fosse de todo contra as vanguadas, Anatoli Lunatcharski, o comissário do povo para o ensino das artes, proclamou no início dos anos 20: Não tenho nenhum tipo de dúvidas de que, ao proletariado e aos camponeses, se lhes oferece muito mais com a plenitude de vida de umas obras de uma arte rica e cheia de idéias, a qual pertence às melhores épocas do passado, do que com uma arte que nos indica desde um princípio não ter conteúdo, a qual é puramente formal, e finalmente chega a ter uma impessoalidade de conteúdo completamente vazio.447 446 447

Alain Bonfand, A arte abstrata, pp. 26-27. Anatoli Lunatcharski citado por Heiner Stachelhaus, Kasimir Malewich: un conflicto trágico, p. 45.

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Foi nesta época que surgiu a Associação dos Artistas da Rússia Revolucionária, uma organização de artistas que defendia o monopólio de um estilo realista derivado do século XIX como a única arte genuinamente proletária. Assim, quando Lênin morreu, em 1924, estava aberto o caminho para Stálin implantar o chamado «realismo socialista», o último passo no retrocesso estético promovido pelo governo soviético. O realismo socialista consistia numa doutrina obrigatória que tinha por objetivo reger, por mais paradoxal que parecesse, a criatividade de cada um dos artistas. O partido deveria tornar-se, definitivamente, a única fonte de inspiração para os artistas. Malevitch estava entre os mais visados, e a escola em que trabalhava como professor e coordenador de um dos laboratórios de arte foi colocada sob suspeita. Apesar de tudo, o artista não deixou de expor, nem de exercer cargos públicos. No princípio, a perseguição que sofreu foi muito mais psicológica do que efetiva. Malevitch não precisou se esconder ou fugir, mas teve de suportar inúmeras críticas a suas obras, a seus escritos e a seus projetos de estudo. Num texto de 1924, Malevitch dizia aceitar que o considerassem e a seus colegas «estúpidos», mas repudiava, veementemente, que lhes impusessem formas antigas, porque, afinal, para os artistas verdadeiramente revolucionários, estava encerrada a fase das representações tradicionais. «Queremos criar novas relações com o conteúdo atual, relações que não se movam no nível da antigüidade, senão no presente, na atualidade», afirmou.448 Em final de 1926, ele perdeu seu cargo, e sua escola foi fechada. Talvez o retorno de Malevitch ao figurativismo tenha se originado como uma resposta a este estado de coisas. E, se o foi, cabe ressaltar como ele não se dobrou totalmente às determinações do Estado. Sua arte não deixou nunca de ser contestadora. Lembremos sempre que suas criaturas apresentavam-se desfiguradas, sem identidade pessoal, portanto, e o mais importante, cegas e mudas. No final de sua vida, em 1933, quando já estava acamado com câncer (ele morreu em 1935), terminou por retratar a si mesmo, a sua mulher e a seus amigos em estilo renascentista, assinando estes quadros, ironicamente, com um discreto quadrado negro, na margem direita inferior da tela. Ele, enfim, se metamorfoseara no zero das formas.

448

Kasimir Malevitch citado por Heiner Stachelhaus, op. cit., pp. 96-97.

149

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Fig. 28: figurinos para Lutador do Futuro e Nero e cenário da ópera Vitória sobre o sol

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Fig. 29: Fotografia da sala de Malevitch na exposição 0,10 Sempre da esquerda para a direita, de cima para baixo: Realismo pictórico de um jogador de futebol, Composição suprematista com volume não-objetiva (perdida), Terceiro estado do quadrado, Quadrado negro, Plano não-objetivo em projeção dinâmica (perdida), Automóvel e mulher (perdida), Auto-retrato em duas dimensões, Massas pictóricas em duas dimensões em estado de quietude (perdida), Dois planos suprematistas em relação ortogonal (dito Cruz negra), Composição 2c: massas pictóricas em movimento (perdida), Composição suprematista: massas pictóricas em movimento, Mulher, Plano em extensão, Quadrado vermelho, Composição suprematista: massas pictóricas em movimento (perdida), Composição suprematista: massas de cor em duas dimensões em estado de quietude (perdida), Composição suprematista: massas pictóricas em quatro dimensões, Realismo pictórico de um menino com um saco às costas, Plano não-objetivo em projeção (perdida), Avião em vôo e Composição suprematista: massas pictóricas em movimento

150

Fig. 31: Quadrado vermelho

Fig. 30: Quadrado negro

Figura 32: Branco sobre branco

Fig. 33: Cruz hierática

Fig. 34: Cruz branca

Fig. 35: Cruz negra

Fig. 36: Suprematismo místico

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Figo 37: Supremus n° 55

Figo 38: Amarelo e preto (Supremus n° 58)

Figo 39: Plano amarelo

Figo 40: Jovens no campo

em dissolução

152

PARTE III DIMENSÃO RITUAL

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4 KURT SCHWITTERS a. Rumo à Merzbau Mondrian pintava quadros. Malevitch pintava quadros e, mais tarde, realizava maquetes arquiteturais. A produção de ambos, portanto, condiz com uma concepção tradicional de obra de arte. Aliás é ainda possível referir-se a seus trabalhos, sem problemas, como «obras de arte». Em ambos os casos, suas obras obedecem à definição dada do que é pintar por Kurt Schwitters: «Pintar consiste em preencher de cor uma forma delimitada. (...) Tudo o que se encontra no interior desta forma, faz parte do quadro, o que está no exterior, não».449 O Kurt Schwitters desta definição é o mesmo que, com suas construções Merz, em especial com a Merzbau, extrapolou os limites estritos da obra e colocou em xeque o seu próprio conceito. Com ele e com Marcel Duchamp, os dois artistas que proponho examinar nesta terceira parte deste estudo, as experimentações não se restringiram à forma, mesmo tendo eles partido da mesma fonte de Mondrian e Malevitch – o cubismo de Braque e Picasso –, e passado igualmente por uma fase de pesquisa formal. Com Schwitters e Duchamp, operou-se uma mudança significativa em relação a Mondrian e Malevitch. Enquanto os primeiros apenas esboçavam uma vontade de estabelecer uma relação entre a obra e o espaço à sua volta, Schwitters e Duchamp a efetivavam, provocando uma participação mais ativa do espectador. Por isso, sugeri chamar àquela dimensão mítica e a esta, dimensão ritual. E, no entanto, como bem expressou o poeta Augusto de Campos, Mondrian e Malevitch, de um lado, e Duchamp (Schwitters não é lembrado, mas poderia sê-lo), de outro, constituem «verso e reverso da mesma moeda».450 Comecemos, pois, com Schwitters. Dos quatro artistas que nos propomos estudar aqui, Schwitters foi o que mais tardou a assimilar as inovações empreendidas pelos movimentos artísticos do início do século XX. Enquanto, em 1914, Mondrian já principiava a elaborar um método próprio a partir de experimentações formais derivadas do cubismo, e Malevitch já dera um passo ainda mais largo e trabalhava em segredo numa série de pinturas totalmente abstratas que viriam a ser chamadas de suprematistas,

449 450

Kurt Schwitters, «Peinture (peinture pure)», compilado por Marc Dachy, Merz: écrits, p. 235. Augusto de Campos, «Duchamp: o lance de dadá», Anticrítico, p. 195.

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Schwitters apenas passava de um estilo acadêmico para outro impressionista.451 Somente em 1917, se tornou visível em suas pinturas a influência de um movimento desenvolvido no século XX, o expressionismo. Todavia, embora laivos de um caráter expressionista pudesse ser percebido nos trabalhos posteriores a 1917, não seria por meio deste que ele encontraria um caminho próprio, mas, sim, através do cubismo. Dizia Schwitters no final de sua vida: «Desde meu nascimento, em 20 de junho de 1887, Picasso influenciou a minha maneira de criar. Quando atingi a idade de caminhar e de falar, eu permanecia sob a influência de Picasso (...)».452 Como Mondrian e Malevitch, também Schwitters fez uma leitura – e um uso – bastante pessoal das conquistas do cubismo. A partir de 1918, viam-se, entre sua produção, desenhos e telas em que se fundiam as cores fortes do expressionismo aliadas a um modo cubista de facetamento da representação, que já levava a uma abstração completa da figura. No entanto, das experimentações cubistas, o que mais contribuiu para a evolução de seus trabalhos e, conseqüentemente, o auxiliou a encontrar um método particular não foi a possibilidade de representar um objeto ou uma pessoa a partir de uma série de pontos de vistas superpostos, mas o expediente ao qual Braque e Picasso recorreram numa segunda fase do cubismo, a colagem. Vale recordar que também Malevitch já mostrara mais interesse pelos quadros produzidos por Braque e Picasso no período que se convencionou chamar de cubismo sintético, quando os dois artistas começaram a agregar papéis, pedaços de madeira e tecidos a seus trabalhos, do que pelo anterior, o dito cubismo analítico. No entanto, recapitulando, Malevitch extraiu da colagem não um método de representação mas uma possibilidade formal: a superposição de papel, tecido e outros fragmentos na superfície da tela deu-lhe a idéia de trabalhar com figuras sobrepostas a planos de cor, como em Vaca e violino e Eclipse parcial. Todavia, em Malevitch, tudo era pintura e não resultava, portanto, da colagem propriamente dita de elementos reais no quadro. Schwitters, por seu turno, tomou emprestado o que havia de mais revolucionário na colagem cubista, a incorporação ao quadro de dados da realidade, e imediatamente, sem despender muito tempo em experimentações

451

O próprio Schwitters dividiu sua evolução artística segundo períodos: 1909-1914: pintura acadêmica. 1914-1917: Impressionismo. 1917: Expressionismo. 1917-1918: Abstração. 1918-1919: Merz. 19191936: De MERZ a MERZ (citado por François Bazzoli, Kurt Schwitters: «l’art m’amuse beaucoup» – biographie 1887-1948, pp. 33 e 40). 452 Kurt Schwitters, «Mon art et ma vie», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 269. Este texto foi escrito em 1944, quatro anos antes da morte do artista.

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preliminares como Mondrian ou mesmo Malevitch, pôs-se a produzir uma arte de características próprias. Ao contrário de Picasso e de Braque, que trabalharam com retalhos de tecidos, papéis e madeira, Schwitters saiu às ruas à cata dos mais diferentes tipos de objetos: bilhetes de trem, botões, latas, invólucros, pedaços de brinquedos, pentes etc. No inverno de 1918 e 1919, começou a realizar colagens e assemblagens. Nas colagens, sobrepôs pedaços de papéis e tecidos, unidos por zonas de tintas coloridas. Nas assemblagens, operou com pedaços de madeira, fragmentos de redes, barbantes, tampas de latas, pregos e tintas, formando figuras geométricas harmonizadas em composições abstratas. Por esta época, o artista se apresentava assim: «Meu nome é Schwitters, Kurt Schwitters. (...) Eu sou pintor, eu prego meus quadros».453 Em 1918, encantado com as manifestações e as realizações do grupo de dadaístas de Berlim, formado por Richard Huelsenbeck, Raoul Hausmann, George Grosz, Hannah Höch, Johannes Baader, procurou associar-se a eles, mas foi rejeitado por Huelsenbeck, que o considerava idealista demais, «o Caspar David Friedrich da revolução dadaísta» e não via com bons olhos as ligações de Schwitters com a galeria e a revista Der Sturm, de Herwarth Walden, as quais Huelsenbeck tachava de reacionárias.454 Em vista desta recusa, Schwitters tornou-se um artista independente que ora se auto-intitulava dadaísta, ora repelia terminantemente esta designação: Esclarecerei aqui um mal-entendido que pode nascer de meu afeto por alguns Kerndadaístas. Poder-se-ia pensar que eu qualifico a mim mesmo dadaísta, visto que na capa da minha compilação de poemas Anna Blume, edição Paul Steegemann, figura a palavra «dadá». Sobre a mesma capa, estão desenhados um moinho de vento, uma cabeça, uma locomotiva andando de recuo e um homem suspenso no ar. Isto não significa nada no mundo de Anna Blume, onde as pessoas caminham sobre a cabeça, onde os moinhos de vento giram e onde as locomotivas vão de recuo, dadá também existe. Para evitar todo engano, escrevi sobre a capa de minha Catedral: «Antidada». Isto não significa que sou contra o dadaísmo.455

No início da década de 1920, promoveu, com os amigos Theo van Doesburg, Raoul Hausmann e Hannah Höch, algumas manifestações de caráter dadaísta na Alemanha, na Holanda e no que é hoje a República Tcheca. Porém, seu caminho deveria ser mesmo

453

Conforme lembra Raoul Haussmann de seu primeiro encontro com Schwitters no Café des Westens, em Berlim, em 1918. Raoul Hausmann, Courrier dada, p 107. 454 Ver François Bazzoli, op. cit., p. 36. 455 Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 58.

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trilhado sozinho. Ao criar, em 1918, um modo todo seu de trabalhar com a colagem, Schwitters inventava uma nova maneira de fazer arte. Restava apenas dar-lhe um nome. O batismo ocorreu logo em seguida, em 1919. Na exposição de suas mais recentes produções, na galeria Der Sturm, de Berlim, em julho daquele ano, decidiu chamá-las Merz, palavra sem significado na língua alemã, que aparecera – por puro acaso, como atesta o filho do artista, Ernst Schwitters456 – numa de suas primeiras assemblagens (as quais se tornavam mais freqüentes que as simples colagens), O quadro Merz.457 Segundo Schwitters, Merz – que é escrita ora com todas as letras em maiúscula, ora com todas em minúscula, ora só com a primeira em maiúscula – é a segunda sílaba de Kommerz [comércio em alemão]. Ela surgiu num quadro onde eu havia colado, entre as formas abstratas, um fragmento recortado de um anúncio do KOMMERZ UND PRIVATBANK [Banco Privado e de Comércio]. Situando-se em relação às outras partes do quadro, a palavra MERZ se tornou parte integrante dele e lá deveria ficar.458

Em outro texto, entretanto, garantia que Merz se originava de auszmerzen, «retirar», «extirpar», em alemão.459 Para complicar ainda mais, afirmou num terceiro artigo: «A palavra Merz não tinha qualquer significado quando a inventei. Agora ela tem o significado que lhe dei. O significado do conceito Merz muda à medida que muda o conhecimento daqueles que continuam a trabalhar com ele».460 Porém, poderíamos pensá-lo como uma derivação da raiz indo-européia *mer-, cujo primeiro significado é «atrair por meio de força mágica». Esta mesma raiz é encontrada nos vocábulos «comércio», «Mercúrio» (deus do comércio), «meretriz», «merecer», entre outros, muitos deles associados à troca comercial. Na edição de julho de 1919 da revista Der Sturm, o próprio Schwitters explicava sua mais nova criação no pequeno artigo intitulado «A pintura Merz», um de seus principais textos sobre sua arte: Os quadros de pintura Merz são obras de arte abstrata. A palavra Merz significa, em sua essência, a assemblagem de todos os materiais imagináveis e, por princípio, a igual 456

Ver Ernst Schwitters, «Non si sa mai», no catálogo Schwitters, p. 6. Optei por apresentar aqui as traduções dos títulos originais e as datas dos trabalhos de Schwitters em conformidade com o que foi estabelecido no recente Kurt Schwitters – Catalogue raisonné, editado por Karin Orchard e Isabel Schulz. 458 Kurt Schwitters, «Kurt Schwitters Katalog», publicado no número 20 da revista Merz, em 1927, pp. 99-100. 459 Ver Kurt Schwitters, «Tran 35 – Dada est une hypothèse», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 94. 460 Kurt Schwitters, «Merz», reproduzido por H. B. Chipp, Teorias da arte moderna, p. 389. 457

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valorização de cada um desses materiais sobre o plano técnico. A pintura Merz se serve não somente da cor e da tela, do pincel e da paleta, mas de todos os materiais que o olho pode ver e de todos os instrumentos que podem ser úteis. Deste ponto de vista, importa pouco que, em sua origem, os materiais utilizados fossem ou não fossem concebidos para outros fins.

Pelo princípio Merz, Schwitters utilizava os materiais que recolhia como matériasprimas para seus quadros: A roda de um carrinho de criança, uma tela metálica, o barbante ou o algodão são elementos de valor igual à cor. (...) Na pintura Merz, a tampa de uma caixa, uma carta de jogo, um recorte de jornal são transformados em superfície, um barbante, uma pincelada ou um traço de lápis transformam-se em linha, a tela metálica se transforma em retoque, um papel de embalagem, em gelo; o algodão, em doçura. A pintura Merz visa a uma expressão imediata ao reduzir a distância entre intuição e visualização da obra de arte.461

Agindo desta maneira, esclarecia Schwitters, em outro texto fundamental para se compreender seu pensamento e sua produção, intitulado «Merz», escrito em 1920 e publicado no ano seguinte no número 1 da revista Der Ararat: «Conciliando tipos diferentes de material, levo uma vantagem sobre a pintura feita exclusivamente com tinta a óleo, pois posso opor não apenas cor contra cor, linha contra linha, forma contra forma etc., mas também material contra material: por exemplo, madeira e estopa».462 Schwitters ainda: «No final de 1918, eu me dei conta de que todos os valores existiam apenas em relação uns com os outros e que a restrição a um só material era parcial e tacanha. Desta percepção, eu formei Merz».463 Em relação aos trabalhos de Mondrian e de Malevitch, as composições Merz eram revolucionárias no tocante à utilização da matéria-prima. Enquanto Mondrian e Malevitch ainda se valiam de meios tradicionais, a tinta e o pincel, Schwitters servia-se de material inusual para a realização de um quadro. Todavia, como nas pinturas daqueles dois artistas, as colagens e assemblagens Merz ainda se moldavam sob a busca de um equilíbrio formal, isto é, sua preocupação ainda girava em torno da forma. E este equilíbrio, como em Mondrian e Malevitch, deveria ser obtido por meio do ritmo oriundo das relações entre os elementos dispostos na composição: Um quadro MERZ parte do material, de todo material possível em pintura, e o utiliza como pintura. O quadro MERZ combina este material segundo o ritmo do esquema composicional e não se perturba com o fato de que certos materiais pelos quais começa 461

Kurt Schwitters, «La peinture Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 45. Kurt Schwitters, «Merz», reproduzido por H. B. Chipp, op. cit., pp. 388-389. 463 Kurt Schwitters citado por John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 49. 462

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foram concebidos para outros fins. Um bilhete de ônibus foi impresso para controlar os viajantes. O quadro MERZ o utiliza somente como cor. Ele não é para ser lido no quadro. O 3, por exemplo, é só uma linha feita de dois arcos. Se necessário, esta será recoberta em parte por pintura ou por qualquer outra coisa; o que decide a composição é o ritmo.464

Depois de 1919, Schwitters passou a aplicar o termo Merz não só em referência a seus quadros, mas a tudo mais que ele produzia – poesia, escultura, modelos arquiteturais, textos dramáticos, peças musicais etc. –, e, com isso, sua concepção de arte começou gradativamente a mudar. Criou até mesmo uma revista com este nome, que circulou de 1923 a 1932. Em pouco tempo, Merz tornou-se uma espécie de marca registrada do artista. Ele chegou a assinar algumas de suas publicações como «Kurt Merz Schwitters». Em sua monografia sobre a maior obra de Schwitters, a Merzbau, Elizabeth Burns Gamard ressalta que o princípio Merz «não é um movimento no sentido tradicional (ele era tanto o genitor quanto o único membro), mas uma metodologia, ou, para expor de forma mais clara, um modo de viver».465 Embora em suas primeiras colagens e assemblagens haja alguns indícios que apontem para uma dimensão ritual (principalmente, uma certa ritualização no recolhimento de detritos, como veremos mais adiante), estas ainda se restringem ao suporte quadro e condizem com a descrição que fizemos da dimensão mítica na parte anterior deste estudo, por meio da observação de um processo que se repete, resultando numa obra abstrata, ordenada, auto-referencial, com vistas a um absoluto. A passagem de uma dimensão mítica para uma dimensão ritual começou a se esboçar quando, ainda em 1919, Schwitters voltou-se para a concepção de uma obra de arte total, provavelmente evocando a noção wagneriana – bastante conhecida dos artistas alemães da época – de uma obra de arte total (Gesamtkunstwerk) que se realizaria na ópera, e também, talvez principalmente, a proposta de uma Bühnenkomposition, uma composição cênica imaginada por Wassily Kandinsky nos escritos do Der Blaue Reiter (Cavaleiro azul). Em «Da composição cênica», escrito no final de 1911, Kandinsky sugeria a criação de uma composição teatral em que os elementos a ela subordinados (ação, música, movimento) tivessem uma ligação intrínseca, que proviessem de uma mesma fonte, mais precisamente, «do interior» do artista, e que não fossem como os dramas, as óperas e os balés existentes até então – os quais criticava duramente –, que

464 465

Kurt Schwitters, «Art abstrait», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 267. Elizabeth Burns Gamard, Kurt Schwitters’ Merzbau: The Cathedral of Erotic Misery, p. 11.

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decorriam de uma relação exterior, portanto forçada, entre seus elementos.466 Para Schwitters, em 1919, todos os gêneros artísticos deveriam ser concatenados no que chamava de Merzbühne, a cena Merz, a qual compreendia como uma obra de arte total abstrata, ao modo de um quadro Merz: A Merzbühne serve para a representação da obra de teatro Merz. A obra de teatro Merz é uma obra de arte abstrata. O drama e a ópera procedem, em regra geral, de uma forma escrita, que se basta a si mesma, sem colocá-la em cena, e, enquanto texto escrito, é uma obra acabada. O cenário, a música e a representação servem apenas para ilustrar este texto que já é em si ilustração da ação. Ao contrário do drama ou da ópera, todas as partes da obra de teatro Merz estão inseparavelmente ligadas. Ela não pode ser escrita, nem lida, nem escutada, só pode ser experimentada no teatro. (...) A Merzbühne só conhece a fusão de todos os elementos numa obra total.467

A Merzbühne nunca foi levada a efeito pelo artista. Sua obra de arte total não proviria do teatro, mas de outro gênero artístico, de uma certa forma também ligado ao teatro (ao cenário, mais precisamente): a arquitetura, a qual estudou entre os anos de 1918 e 1919 na Escola Politécnica de Hannover. Algumas pequenas peças em três dimensões produzidas por Schwitters no início da década de 1920 – boa parte das quais se perderam, sobrando delas apenas algumas fotografias – podem ser vistas como um meio termo entre cenário teatral e projeto arquitetural, que desembocam na grande obra do artista, a Merzbau (construção Merz), no exame da qual pretendo me centrar. Em A forca do prazer (Die Lustgalgen), de 1919, em cima do que parece ser uma caixa de madeira achatada, o artista erigiu uma coluna em torno da qual se encontram outros pedaços de madeira que fazem as vezes de muretas. No alto da coluna, vê-se uma roda, à qual se acha preso um fio, provavelmente a forca a que se refere o título. Ao lado da mureta, Schwitters dispôs alguns pedaços de tecidos que formam um pequeno monte. Gamard garante que, na base da coluna, há uma minúscula reprodução de uma pintura mostrando uma visão oblíqua de Cristo na Cruz.468 Casa Merz (Haus Merz) (fig. 42), de 1920, representa, sem sombra de dúvida, uma igreja. Sua torre é feita de blocos de madeira de criança encimados por um potinho de tinta. Um botão atua como um relógio. A nave da «igreja» encontra-se preenchida por engrenagens. Castelo e catedral com poço no quintal (Schloss und Kathedrale mit Hofbrunnen) (fig. 43), de 1923, também se 466

Wassily Kandinsky, «Da composição cênica», Olhar sobre o passado, pp. 137 e ss. Kurt Schwitters, «Le théâtre Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 41. Cabe recordar que os artistas russos Matiushin, Khlebnikov e Malevitch, com a montagem e a excecução da ópera Vitória sobre o sol, chegaram muito próximo da concepção de uma obra de arte total tal qual sugerida por Schwitters. 468 Ver Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 72. 467

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apóia sobre uma caixa de madeira achatada e apresenta duas «construções». Numa, um pedaço de madeira mais alongado sugere uma torre, fazendo-nos imaginar ser esta «construção» a citada catedral. Outro pedaço de madeira atua como o castelo, e o que parece ser uma rolha está para o poço. Todas as três lembram pequenos cenários, fragmentos do dia-a-dia de uma cidadezinha desconhecida. Seus temas e a tímida relação que começam a estabelecer com o espaço em volta são o germe da grande obra que Schwitters principiou em 1923, a primeira de suas quatro Merzbau (figs. 46 a 51), a verdadeira realização de seu sonho de uma Merzgesamtkunstwerke.

b. Obra sem fim Nos dois capítulos anteriores, vimos que, em Mondrian e Malevitch, o que convencionamos chamar de dimensão mítica se constituía a partir de um processo fundamentado na repetição de uma mesma estrutura composta de um número reduzido de elementos variáveis (fundo branco, planos de cor, linhas, figuras geométricas). Desta repetição de uma mesma estrutura, resultava uma série de obras parecidas entre si, mas nunca iguais. Nesta parte deste estudo, no que propomos denominar dimensão ritual, o processo permanece aberto não por meio da repetição de uma mesma estrutura, mas pela infinitude própria a um determinado trabalho. A dimensão ritual, portanto, se verifica em torno da constituição de uma peça. É por esta razão que vou me deter, aqui, numa obra particular, e não num conjunto delas, como fiz quando tratei dos processos nos quadros de Mondrian e Malevitch. Tanto a Merzbau, de Schwitters, quanto La mariée mise à nu par ses célibataires, même, de Duchamp, são obras inconclusas: a primeira, como veremos a seguir, pela própria impossibilidade de concluí-la; a segunda, por exaustão. Em ambas, o processo se constitui pelo não-encerramento, porque, ao escolher não terminá-la, o artista deixa-a em aberto, em constante fluxo e, em conseqüência, dota-a de – senão uma verdadeira, pelo menos uma virtual – capacidade permanente de mutação. Na Merzbau, esta capacidade de mutação é real. Em La mariée..., ela acha-se apenas em latência, como mostrarei no capítulo seguinte. Vejamos, agora, o caso Schwitters. Nas colagens e assemblagens Merz, o fim estava previsto pelo próprio artista: «O quadro está terminado quando você não puder tirar ou juntar qualquer coisa sem

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desarranjar o ritmo presente».469 A Merzbau, por outro lado, era, para Schwitters, «inacabada, e por princípio».470 Este é um dos motivos que faz com que as primeiras se circunscrevam a uma dimensão ainda mítica, como já fiz notar anteriormente, e a última possa ser tratada dentro de uma dimensão ritual. Porém, antes de prosseguirmos, convém esclarecer o que, afinal, é a Merzbau. Em alemão, bau significa «construção», «edifício», «prédio». Merzbau pode ser compreendida, portanto, dentro de uma lógica arquitetônica, como «construção Merz» – mas aqui optei por preservar sua denominação alemã. No entanto, esta não pode ser reduzida a uma peça arquitetônica ou de decoração. «Para que não haja mal-entendido, eu lhe direi francamente que meu mundo de trabalho não tem nada a ver com a decoração, e que eu não realizo, de modo algum, um interior onde as pessoas possam morar, porque os novos arquitetos chegam a isso muito melhor que eu. Eu construí uma escultura abstrata (cubista) em que se pode ir e vir».471 Na própria definição que Schwitters dá de sua realização: A Merzbau é a construção de um espaço interior de formas plásticas e de cores. Nas grutas envidraçadas, as composições merz formam um volume cúbico e reúnem formas cúbicas brancas para formar uma arquitetura interior. Cada parte interior serve de elemento à parte seguinte. Não há detalhes que formam em si uma unidade, uma composição parcial. Um grande número de formas diferentes servem de intermediárias entre o cubo e as formas indefinidas.472

Erigida no próprio estúdio de Schwitters, a Merzbau se constituía, grosso modo, como uma grande construção feita a partir do acúmulo dos mais diversos fragmentos de detritos e partes de objetos encontrados nas ruas. Enquanto não se cessasse de agregar elementos a ela, ela não parava de crescer e, conseqüentemente, nunca era dada por encerrada. Schwitters realizou quatro construções Merz ao longo de sua vida, cada uma num dos lugares onde morou ou, pelo menos, onde passou algum tempo: em Hannover (1923-1937), em Lysaker (1937-1938), em Hjertoy (1934-1939) e em Ambleside (19471948). Destas, a de Hannover foi destruída pelos bombardeios em 1943, e a de Lysaker foi totalmente incendiada, sem intenção, em 1951, por crianças que brincavam nas 469

Kurt Schwitters, «Art abstrait», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 267. Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 250. 471 Kurt Schwitters em carta a Alfred H. Barr, então diretor do Museu de Arte Moderna de Nova York, datada de 1933, citada por Dietmar Elger, «L’oeuvre d’une vie: les Merzbau», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 140. 472 Kurt Schwitters, «Le grand Groupe et la Caverne d’or», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 181. 470

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proximidades. A de Hjertoy só foi descoberta em 1993, e restaram apenas fragmentos de uma construção Merz em suas paredes.473 A última delas, a de Ambleside, como apenas começava a ser feita, pouca coisa havia sido agregada a ela e este pouco foi transferido, em 1965, a pedido do Departamento de Belas Artes da Universidade de Newcastle, para a Galeria Hatton desta universidade. Por que chegaram a nossos dias basicamente apenas fotografias de época e relatos – nem sempre confiáveis – de quem visitou as construções, torna-se difícil tentar remontar e compreender estes trabalhos de Schwitters.474 Como a mais trabalhada delas foi a de Hannover e sobre a qual maior número de documentos e relatos foi compilado e guardado, centrar-me-ei nela. A outra Merzbau que poderia ter atingido uma mesma amplitude era a de Lysaker, mas, como foi realizada em pleno início da guerra, pouco foi visitada e não sobrou dela nenhuma fotografia. Voltemos, portanto, nossa atenção à Merzbau de Hannover, cidade natal de Schwitters. Tudo começou no início da década de 1920 com uma coluna, a Merzsäule (fig. 44), construída na casa onde Schwitters morava com a família no número 5 da Waldhausenstrasse. Tratava-se de uma coluna toda forrada de recortes de jornais e revistas. Em seu topo, o artista depôs o busto de sua esposa Helma, produzido em 1917. Por volta de 1923, ano que pode ser considerado como o início da Merzbau,475 em virtude de problemas financeiros, Schwitters foi obrigado a vagar duas peças de sua casa – uma delas era o quarto em que estava a coluna – para alugá-la a uma outra família. Assim, sua coluna foi reconstruída em outro aposento do mesmo prédio, dando início à segunda versão da Merzsäule (fig. 45). Só que, desta vez, o busto de Helma foi substituído por um molde em gesso de uma cabeça de menino, além de ter uma série de colagens acrescentadas a seu exterior, boa parte delas oriundas de recortes de revistas de vanguarda com artigos do próprio artista. Afora isso, ainda acrescentou à sua nova coluna uma colagem, de 1918-1919, intitulada O primeiro dia (fig. 41), na qual aparecem, em torno de uma reprodução de uma coluna clássica, uma série de fragmentos, representando anjos. Supondo-se que, na época da construção desta coluna,

473

Ver Dietmar Elger, op. cit., p. 143. No início da década de 1980, foi reconstruída, a partir de fotografias, uma das salas, a Sala da Janela Azul (Das Blaue Fenster), da Merzbau de Hannover, no Museu Sprengel da mesma cidade. 475 No texto «Eu e meus objetivos», de 1930, Schwitters diz que vinha trabalhando na Merzbau há sete anos, o que remonta seu início a 1923. Ver Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 250. 474

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Schwitters já imaginava que faria dela o princípio e o centro de uma grande construção que tomaria vários andares e aposentos de sua casa, talvez pudéssemos interpretar o título desta colagem ao mesmo tempo como denotativo – o dia em que foi realizada a coluna foi o primeiro dia da Merzbau – e como conotativo – o primeiro dia a que se refere o título como o primeiro dia da Criação, e, assim, estabelecendo-se uma equiparação entre a Criação divina e a criação do artista. Logo esta segunda coluna foi cercada por outras esculturas Merz, como a já citada A forca do prazer e ainda A santa aflição (Die heilige Bekümmernis) e O culto da bomba (Die Kultpump), de 1919.476 A primeira se compõe de um torso de um manequim sem cabeça, em torno do pescoço do qual Schwitters dependurou uma placa e uma caixa toda forrada de colagens. Esta caixa aparece aberta, como a de vendedores ambulantes, portando num dos lados uma manivela e em cima dela, uma vela. No lugar de um dos braços do manequim, está uma bola de Natal; e no lugar da cabeça, uma lâmpada. A bomba do culto, por sua vez, lembra mais o formato de A forca do prazer, sendo, no entanto, mais abstrata. Como esta última, aquela também se acha sobre uma caixa de madeira, sobre a qual Schwitters organizou algumas bugigangas numa composição em que relaciona objetos dispostos vertical e horizontalmente, tendo como elemento central um disco pintado. Esta composição parece-se muito com suas colagens e assemblagens desta época. Voltando à evolução da Merzbau, no princípio, recorda Ernst Schwitters, estas esculturas dispunham de um largo espaço em torno delas, sendo acessíveis por qualquer um dos lados. Porém não por muito tempo, porque seu número aumentou continuamente, multiplicandose ao infinito e, ao mesmo tempo, surgiam de arcas profundas a forma de relevo das MERZbilder [pinturas Merz] e das Grutas, como uma espécie de estrutura de cenário. Tudo isto necessitava lugar e, assim, o espaço no estúdio de Kurt Schwitters se tornou mais limitado, a distância entre a obra particular sempre mais exígua. Ao mesmo tempo, criaramse também relações entre as obras particulares, e era só questão de tempo para chegar à inevitável conseqüência. Um dia, duas obras, até então livres no espaço, cresceram juntas, e este marcou o início!477

Aos poucos, como em suas colagens, Schwitters ia somando mais e mais resíduos do lixo urbano à sua construção. Seu princípio era a aglutinação: ele construía sem jamais destruir as partes anteriores. Com o tempo, fabricou grandes armações em gesso e madeira, a maior parte delas pintadas de branco, que ligavam as inúmeras colagens, 476 477

Ver Ernst Schwitters, «Non se sa mai», op. cit., p. 9. Idem, p. 9.

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produzindo um estranho e absolutamente irreal ambiente interior. Käte T. Steinitz, artista, amiga e colaboradora de Schwitters, que freqüentava regularmente a casa dele, recorda como surgiu a coluna e como esta foi progressivamente se ampliando: Um dia, uma coisa, que parecia uma cruz, apareceu no estúdio, entre um cilindro ou um barril de madeira e uma mesa alta de cepo com a casca crescendo desordenadamente. Esta se desenvolveu a partir de um monte caótico de vários materiais: madeira, papelão, ferro, sucata, móveis quebrados e moldura de quadros. Rapidamente, no entanto, o objeto perdeu toda sua relação com qualquer coisa feita pelo homem ou pela natureza. Kurt chamou-a de «coluna».478

Em 1927, já não se podia mais utilizar como estúdio a sala de 4,4m x 5,4m, com 4m de pé direito, em que havia montado sua segunda coluna: estava tudo tomado por sua nova construção. Restava partir para outros espaços. Foi em março daquele ano que o pintor Rudolf Jahns visitou a casa de Schwitters por ocasião do encontro dos Abstratos de Hannover e descreveu a gigantesca construção nestes termos: Mesmo o caminho que levava a ela, ao longo de um estreito corredor, revelava algumas coisas interessantes. Eu me lembro de um busto, de cerca de 50 cm de altura: as costas escondidas pela metade por uma tábua, a frente coberta com uma tela de arame. Duas estranhas criaturas com corpos brancos, grandes e sujos estavam deitadas no feno. Cada uma delas tinha só uma perna preta, grossa, torta, em forma de S. O peito estava preenchido com uma misteriosa meia-luz, o que significava que se sentia mais do se via estas criaturas. Elas eram dois largos isoladores de porcelana, como aqueles que se vêem nos postes telegráficos ao lado dos trilhos do trem. Suas aparências foram inteiramente transformadas. Em seguida, nós entramos na coluna em si através de um estreito corredor, que estava mais para uma gruta: uma construção em gesso pendia do revestimento da porta (...). Schwitters me pediu para entrar na gruta sozinho. Então eu entrei na construção que, com todas suas voltas, parecia, ao mesmo tempo, uma concha de caracol e uma gruta. O caminho pelo qual se chegava ao meio era muito estreito porque novas estruturas e assemblagens, bem como as grutas e os relevos Merz existentes, pendiam de todos os lados da parte do ambiente ainda não ocupada. Lá no fundo, à esquerda da entrada, pendia uma garrafa contendo a urina de Schwitters, na qual flores sempre-vivas estavam flutuando. Havia então grutas de vários tipos e formas, cujas entradas não estavam sempre no mesmo nível.479

Segundo Schwitters, a Merzbau ou Coluna (Die Säule) ou Catedral da miséria erótica (Kathedrale des erotischen Eledens) ou ainda simplesmente K d e E, «porque vivemos na época das abreviações», «crescia ao acaso segundo o princípio de uma grande cidade, em qualquer parte uma nova casa será construída, e o escritório de urbanismo deve velar para que esta nova casa não venha a estragar a imagem da cidade em seu

478 479

Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from Life, p. 90. Rudolf Jahns citado por John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 153.

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conjunto».480 Aos poucos, iam se formando espaços interiores dentro de sua «cidade». Schwitters observa: O aumento da armadura produz vales, cavidades, grutas que traçam em seguida suas próprias vidas no interior do conjunto. O cruzamento das linhas com as superfícies produz formas torcidas helicoidais. Um sistema de cubos na forma geométrica mais estrita acompanha o conjunto, passa por cima das formas tortas e desfaz-se até a completa decomposição.481

Muitos amigos do artista descreveram esta intrigante construção artística. A maior parte deles com um misto de assombro e entusiasmo. Käte T. Steinitz recorda: A estrutura em forma de coluna era oca. Mais tarde, quando ela começou a crescer como uma torre, algumas divisões irregulares ou plataformas dividiram-na em setores. As paredes internas foram perfuradas com entradas para as cavernas – mais ou menos escuras, dependendo se a eletricidade estava ou não funcionando. As entradas da caverna estavam em níveis diferentes e nunca diretamente uma acima da outra. Se alguém queria visitar todas as cavernas, tinha que percorrer todo o caminho em torno da coluna. (...) As cavernas foram emparedadas e não se podia mais entrar nelas. Elas foram igualmente fechadas com figuras de madeira coloridas e retangulares, ou elas simplesmente desapareceram nas profundezas da coluna, que gradualmente se tornou uma catedral. Algumas partes da Catedral da miséria erótica estavam neste estágio de transição quando eu as vi e fotografei pela última vez. Um pequeno porquinho-da-índia estava sentado numa das partes projetadas para fora.482

Hans Arp, por sua vez, em texto dedicado a Schwitters no ano da morte deste, em 1948, não deixou de comentar a espantosa realização do amigo: Sua casa em Hannover foi perfurada de fio a pavio por passagens como galerias de mina, por fendas artificialmente criadas através dos andares, por túneis em caracol religando o porão ao teto. A influência do estilo do Rei Sol não era evidentemente preponderante na casa. Por um esforço intenso e mantido durante os anos, ele teve êxito em «merzar» completamente seu imóvel. Por suas cavernas, antros, abismos, fendas despontam as monumentais colunas «Merz», colunas artisticamente revestidas por meio de tábuas, ferros velhos enferrujados, espelhos, rodas, retratos de família, molas, jornais, tijolos, cimento, cromos, gesso, cola, muita cola, muita cola.483

E Hans Richter também se lembra da primeira vez em que viu a Merzbau, ainda na década de 1925:

480

Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 250. Interessante notar que Mondrian e Schwitters parecem exemplificar as duas atitudes modernas perante a metrópole: o ímpeto de ordená-la por meio do planejamento urbano geometrizante e, por outro lado, o fascínio com sua desordem constitutiva. 481 Kurt Schwitters, op. cit., p. 250. 482 Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from Life, pp. 90-91. 483 Hans Arp, «Kurt Schwitters», compilado por Marc Dachy, Merz: écrits, p. 331.

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Esta sua obra principal era uma criação pura, que não se destinava à venda. Ela não podia ser transportada, e tampouco era passível de ser definida na sua configuração. Construída no (e nos) aposento(s) de sua residência, esta coluna passava permanentemente por transformações protéicas, nas quais, a cada vez, uma nova camada cobria, englobava e tornava invisível a forma anterior. No fim do corredor e no segundo andar da casa que Schwitters havia herdado, havia uma porta que levava a um aposento de tamanho médio. No centro deste aposento, encontravase uma escultura de gesso abstrata. Nesta época, por volta de 1925, ela ocupava aproximadamente um quarto do espaço, e chegava quase até o teto. Ela se assemelhava a esculturas mais antigas de Domela ou Vantongerloo, se é que qualquer coisa que Schwitters produzisse podia se assemelhar a qualquer outra produção. Mas aqui não se tratava apenas de uma escultura, e sim de um documento vivo de Schwitters e seus amigos, que se modificava a cada dia. Ele explicou-me a obra, e eu vi que a escultura, como um todo, era um complexo feito de cavernas. Uma estrutura de formas côncavas e convexas, que abriam cavidades na escultura e a dilatavam, formando saliências.484

Nestas cavidades que tomavam a forma de grutas e cavernas, Schwitters não dispunha apenas objetos achados na rua, mas também pequenas coisas que surrupiava dos amigos, como um sutiã de Sophie Taüber-Arp, uma mecha de cabelo de Richter, uma chave de Steinitz: «Eu não trabalhei ativamente na coluna, mas lembro que Kurt dispôs nela uma chave minha perdida, a qual estava procurando desesperadamente. Ele a colocou próxima a uma prescrição médica escrita pelo Dr. Steinitz e à caixa de pílulas que Schwitters comprou mas nunca tomou».485 Havia grutas e cavernas para seus amigos e para personalidades da história e da mitologia alemãs, bem como havia aquelas separadas por temas, como amor, assassinato etc. Até mesmo uma casinha para seus porquinhos-da-índia, uma paixão de Schwitters, num belo estilo Le Corbusier, construído com a ajuda de Mies van der Rohe, podia ser encontrada entre aquela enxurrada de coisas. Elderfield calcula, a partir de descrições de visitantes e do próprio Schwitters, que existissem cerca de quarenta grutas. Conta Richter: Lá havia, de fato, uma caverna de Mondrian, e cavernas de Arp, Gabo, Doesburg, Lissitzky, Malevitch, Mies van der Rohe, Richter. Uma caverna era para o seu filho, outra para a sua esposa. Cada caverna continha detalhes muito pessoais da vida de todas essas pessoas. Ele cortou uma mecha do meu cabelo, e colocou-a na minha caverna. Um lápis grosso, recolhido da mesa de desenho de Mies van der Rohe, encontrava-se no espaço a ele reservado. De outras pessoas, havia um pedaço de cordão de sapato, um cigarro fumado pela metade, uma unha cortada, um pedaço de gravata (Doesburg), uma pena quebrada. Mas também havia coisas muito estranhas, e mais do que estranhas, como por exemplo partes de uma dentadura com alguns dentes, e até mesmo um pequeno frasco de urina, com o nome do doador. Tudo isto estava colocado em buracos separados, reservados para cada pessoa. Alguns de nós ocupavam várias cavernas, o que dependia da disposição de espírito de Schwitters a cada momento... e a coluna crescia.486

484

Hans Richter, Dadá: arte e antiarte, p. 208. Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from Life, pp. 90-91. 486 Hans Richter, op. cit., pp. 208-209. 485

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Poucos foram os amigos – Raoul Hausmann e Hannah Höch entre eles – convidados a trabalhar em grutas específicas. As outras foram todas produzidas pelo próprio Schwitters. Num texto escrito em 1930 (mas só publicado no número 2 da revista Merz, em 1932), em que esclarecia suas intenções em relação à arte em geral e à Merzbau, em particular, o artista falava um pouco acerca de algumas grutas: Cada gruta tem objetos particulares que a caracteriza. Há lá a caverna dos Nibelungos com seu tesouro que brilha, o Kyffhäuser487 com sua mesa em pedra, a gruta de Göthe [sic] com um osso de Göthe como relíquia e seus numerosos lápis quase usados até a ponta, a liga rompida das cidades Brunswick-Lunebourg com as casas de Weimar por Feininger, uma propaganda de Persil e o projeto da cidade de Karlsruhe desenhado por mim, a gruta do assassinato com estupro com o cadáver odiosamente mutilado de uma lastimável adolescente, colorido com tomate e de inumeráveis oferendas, o fosso de Ruhr com seu carvão fóssil e seu carvão autêntico, a exposição artística com quadros e esculturas de Michelangelo e de mim, onde o único visitante é um cachorro com seu adestrador, a gaiola do cachorro e seu cachorro vermelho, o órgão que é preciso que seja virado ao contrário para que toque Stille Nacht, heilige Nacht e Ihr Kinderlein kommet, o mutilado de guerra pensionado a 10% com sua filha, a qual perdeu a cabeça, mas que agora se acha bem, a Monna Hausmann, que se compõe de uma cópia da Mona Lisa com um rosto sobrecolado por Raoul Hausmann, que lhe subtraiu completamente seu sorriso estereotipado, o bordel com uma mulher de três pernas, arrumada por Hannah Hoech, e a grande gruta do amor. A gruta do amor sozinha preenche ¼ da superfície interior da coluna (...). Eu forneci aqui apenas uma modesta parte do conteúdo literário da coluna. Algumas grutas desapareceram depois de um longo tempo sob a nova superfície, como, por exemplo, o canto de Lutero.488

Enquanto havia pessoas que se maravilhavam positivamente com esta obra de Schwitters, como Arp, que a via como uma obra tão grandiosa quanto qualquer peça do Louvre – «Este monumento sem igual no velho e no novo mundo não dá, entretanto, nunca a impressão de um passatempo de um sujeito cheio de caprichos e tolo. Bem ao contrário, a beleza do ritmo desta obra a aparenta às obras-primas do Louvre»489 –, outros duvidavam da sanidade mental do artista. Sophie Lissitzky-Küppers conta que ela e El Lissitzky ficaram estupefatos frente à Merzbau. Para ela, «o limite entre originalidade e loucura das criações, sejam plástica ou literária, de Schwitters não era mais claramente discernível».490 E Alexander Dorner, que foi crítico de arte e presidente da Kestner-Gesellschaft e do Niedersächsischas Landesmuseum, e considerava as composições Merz «experimentos positivos e pioneiros», disse que, na Merzbau, a 487

Nome do monte em que se acredita esteja enterrado o rei germânico Frederick I, o Barba Ruiva, cujo reinado durou de 1152-1190. 488 Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, pp. 250-251. 489 Hans Arp, «Kurt Schwitters», compilado por Marc Dachy, Merz: écrits, p. 331. 490 Sophie Lissitzky-Küppers, El Lisitskij, p. 26.

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«livre expressão do ser social incontrolável ultrapassou aqui o vão entre sanidade e loucura». Segundo ele, a Merzbau era «um tipo de mancha fecal – uma recaída doente e doentia na irresponsabilidade social do garoto que brinca com lixo e imundície».491 Quando o governo nazista qualificou sua arte, como toda a melhor arte moderna produzida na época, de degenerada e passou a queimar trabalhos seus na rua, Schwitters abandonou a Alemanha e a sua Merzbau e se instalou, com seu filho e sua nora, em Lysaker, uma pequena cidade na Noruega. Naquele ano, em 1937, sua construção ocupava três andares e quatro peças da casa de Hannover.492 Nenhuma das Merzbau que edificou posteriormente teve a amplitude de sua primeira. Em Lysaker, montou-a no jardim de sua casa durante três anos, ocupando um ambiente de 4,5m x 5m por 5m de altura. Como as visitas eram raras, pouco pôde acrescentar às também raras grutas e cavidades.493 Numa casinha de 14 metros quadrados em Hjertoy, pequena ilha norueguesa onde ia regularmente nas férias a partir de 1934, Schwitters acumulou uma série de materiais e chegou a pregar e colar alguns pedaços de revistas, jornais e reproduções de obras de arte nas paredes e na porta do único ambiente. Segundo Dietmar Elger, um dos críticos que estudou mais a fundo as Merzbau, o artista apenas se referiu a esta construção de maneira alusiva e nunca a chamou de Merzbau.494 No entanto, quando descoberta, verificou-se que tinha características semelhantes às outras. Elger descreve o que continha em seu interior: As divisões e as portas foram quase inteiramente recobertas de papéis e de fragmentos de colagens de proveniências variadas. As fotografias atuais da peça, muito estragadas pelo vento, permitem identificar algumas fontes. O material mais utilizado provém de jornais (Dagbladet), dos quais Schwitters utilizava ora páginas inteiras, ora títulos ou palavras cortadas. Depois, páginas isoladas de livros alemães ou noruegueses, fotografias, envelopes, páginas da coleção de contos Die Scheuche, publicada em 1925 com Theo van Doesburg e Käte Steinitz, mais ainda fragmentos de cartas manuscritas ou poemas.495

Com a chegada das tropas alemães à Noruega, em 1940, Schwitters, seu filho e sua nora foram obrigados a fugir mais uma vez. Desta feita, dirigiram-se para a Inglaterra. Lá, foi capturado e preso durante dezessete meses, sob a ridícula alegação de espionagem para 491

Alexander Dorner citado por John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 162. Ver François Bazzoli, Kurt Schwitters: «l’art m’amuse beaucoup» – biographie 1887-1948, p. 102. 493 Ver Dietmar Elger, op. cit., p. 143. 494 Elger cita duas cartas em que Schwitters faria referência a seu trabalho em Hjertoy: uma endereçada a Nelly van Doesburg, de 22 de maio de 1939, e outra a Henriette, Ernst e Esther Schwitters, de 16 de junho de 1939 (ver op. cit., p. 151). 495 Dietmar Elger, op. cit., p. 144. 492

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o governo alemão. Depois de liberto, já em 1943, se instalou em Ambleside, onde permaneceu até sua morte. Neste período final, suas crises de epilepsia se agravaram, um ataque do coração paralisou temporariamente metade de seu corpo e um outro ataque subseqüente o cegou por alguns meses. Afora isso, Schwitters ainda quebrou o fêmur. No verão de 1947, recebeu uma bolsa do Museu de Arte Moderna de Nova York para restaurar uma das Merzbau. Schwitters propôs fazer uma nova. Assim, mesmo condenado à cama – «Durmo vinte horas por dia e trabalho quatro. Eu estou todo o tempo sofrendo»496 –, iniciou a quarta e última de suas construções Merz, que denominou Merzbarn (celeiro Merz), por ser esta situada no celeiro emprestado pelo amigo Harry Pierce. Menos de seis meses depois de principiado seu trabalho derradeiro, Schwitters morreu, em 8 de janeiro de 1948, um dia depois de obter a cidadania inglesa. Qualquer uma das quatro Merzbau era realmente, por princípio, inacabável. Enquanto houvesse espaço, suas Merzbau continuariam se expandindo, não cessando nunca o processo de sua realização. E este é apenas um dos fatores de inovação deste trabalho. Além disso, a Merzbau criou um novo tipo de relação do artista com sua obra, da obra com o público e do artista com o público. À volta desta construção artística, estabeleceu-se uma nova espécie de ritual, comandado pelo artista e vivenciado por quem nela penetrou. São os elementos que identifico numa série de ações que estão no centro do processo criativo da Merzbau e que determinam essas novas relações – ações estas que podem ser vistas como análogas àquelas verificadas nos ritos de um modo geral – que proponho reunir sob a designação de dimensão ritual. Para François Bazzoli, «livre da encenação [mise en scène] e do espetáculo, ela [a Merzbau] se torna um dedo de luva: não é mais a História, é a história humana que está na obra, um viés entre a etnologia urbana e a mitologia cotidiana».497

c. Artista-oficiante Comecemos pelo novo papel desempenhado pelo artista na Merzbau. Em 1918, ao se apresentar a Raoul Hausmann como um pintor que pregava seus quadros, Schwitters já indicava uma mudança que, naquela época, apenas começava a se esboçar em sua relação como artista-produtor com sua obra. Com a realização não só 496 497

Kurt Schwitters em carta a Käte T. Steinitz, reproduzida por François Bazzoli, op. cit., p. 126 François Bazzoli, op. cit., p. 22.

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das colagens e das assemblagens como também de todo o universo Merz – poesia, tipografia, escultura, arquitetura, desenho gráfico etc. –, Schwitters concebia um novo modo de proceder na criação e execução de um trabalho. Gillo Dorfles, muito pertinentemente, em 1959, já chamava a atenção para a diferença existente entre as composições Merz e aquelas precedentes, que se serviam de técnicas análogas, como as produzidas por Arp, Sonia Delaunay e pelos cubistas: Não é só o caso de aproximar lascas de madeira, velhas cédulas de banco, recortes de jornais, pedaços de barbante, de fio de ferro, de penas, e não é só da desusada poesia que cada objeto do passado conserva que se constitui o fascínio destes trabalhos; seu significado profundo é aquele de uma arte que soube renunciar à preciosidade da matéria, do empaste, do pincel, para construir com o mais humilde material, salvo da poeira da estrada, do cesto de lixo, das derrotas de uma guerra perdida.498

De fato, a mudança em sua relação com a obra se iniciou com a abdicação do uso da matéria-prima tradicional da arte – e nisto começou a se diferenciar de artistas como Mondrian e Malevitch – e teve seguimento na substituição do pincel e da tinta pela cola, pelo prego, por fragmentos de objetos encontrados. De pintor, Schwitters, com suas composições Merz, transformou-se, num primeiro momento, no que John Elderfield chamou de «coletor de anomalias».499 Sua eterna procura por materiais, preferencialmente por pedaços e estilhaços de coisas do que por objetos inteiros, tornouse uma obsessão e uma compulsão.500 Schwitters ficou conhecido por viajar com uma pasta cheia de recortes e detritos recolhidos e de trabalhos em andamento.501 Ernst Schwitters conta que, enquanto andava e conversava com os amigos, seu pai volta e meia se abaixava para pegar um bilhete de trem ou qualquer outra tira de papel que vira no chão.502 Steinitz relata que «ele sempre descia da sua bicicleta para pegar alguns pedaços de papel colorido que alguém havia jogado fora. Ele pegava pequenas pedras e vidros quebrados e também coisas sem atrativos, como se elas fossem jóias».503 Richter recorda ainda de uma anedota engraçada a respeito desta mania de Schwitters:

498

Gillo Dorfles, Kurt Schwitters, pp. 3-4. John Elderfield, Kurt Schwitters, p. 57. 500 François Bazzoli faz um «inventário não-exaustivo», de quatro páginas, dos materiais utilizados por Schwitters em suas composições Merz, incluindo a Merzbau, de 1917 a 1947 (Op. cit., pp. 129-133). 501 Ver Richard Humphreys, «Kurt Schwitters: An Introduction», no catálogo Kurt Schwitters, de 1985, p. 19. 502 Ernst Schwitters, «Non si sa mai», op. cit., p. 7. 503 Käte T. Steinitz, op. cit., p. 68. 499

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Um dia, nós íamos de trem a meu ateliê de Grünewald, onde ele passava freqüentemente a noite quando estava em Berlim, eu vi Schwitters se ocupar, com as mãos atrás das costas, diante da porta que conduzia ao interior do vagão. Eu lhe perguntei o que ele fazia, mas ele fez um sinal irritado. Subitamente, nós não tínhamos nem chegado a nosso destino, ele saltou do trem. Era inútil tentar deter este homem de duzentas libras; eu saltei igualmente. Em princípio, ele não respondia a meus protestos irritados, depois, à guisa de explicação, ele me mostrou orgulhosamente a placa esmaltada «Proibido fumar» de vinte e cinco centímetros que ele desatarraxara da porta com uma pequena chave de parafuso que guardava sempre consigo. Para tais eventualidades, ele trazia sempre consigo um apetrecho artístico de ladrão. Ele utilizou a placa esmaltada num quadro Merz que ficava na parede de seu ateliê até minha partida da Alemanha.504

Na Parte I deste estudo, mencionara que a atitude de Schwitters aproximava-se da prática do bricoleur, conforme descrita por Lévi-Strauss.505 Só para lembrarmos, conforme Lévi-Strauss, o bricoleur está apto a executar um grande número de tarefas diversificadas porém, ao contrário do engenheiro, não subordina nenhuma delas à obtenção de matérias-primas e de utensílios concebidos e procurados na medida de seu projeto: seu universo instrumental é fechado, e a regra de seu jogo é sempre arranjar-se com os «meios-limites», isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos, porque a composição do conjunto não está em relação com o projeto do momento nem com nenhum projeto particular mas é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentaram para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construções e destruições anteriores.506

O trabalho do bricoleur, portanto, não depende de um projeto, ele se define pela sua instrumentalidade, ou seja, é governado pelo princípio de que certo objeto pode servir para determinado fim. Cada elemento é, assim, designado por sua utilidade dentro de um contexto definido. As palavras do próprio Schwitters, em relação à edificação de sua Merzbau, poderiam soar como as um bricoleur: «Eu encontro, então, um objeto qualquer, eu sei que ele se conciliará com a K d e E, tomo-o, colo-o, colo-o novamente, pinto-o no ritmo do efeito do conjunto, e um dia parece que é preciso criar numa nova direção que passa totalmente ou em parte sobre o corpo do objeto».507 No entanto, acredito que não podemos reduzir a busca obsessiva de Schwitters por frações de coisas a uma mera atividade de bricolagem. No meio do caminho entre a rua e a Merzbau, o artista realizou uma série de pequenas ações, as quais poderiam ser 504

Hans Richter, «Kurt Schwitters», reproduzido por Marc Dachy, op. cit., p. 338. John Elderfield já assinalara a semelhança entre estas duas práticas. Para ele, embora Lévi-Strauss não tenha citado Schwitters na famosa passagem do primeiro capítulo de O pensamento selvagem, para Elderfield, «Schwitters parece ser a mais apropriada personificação do bricoleur» (Op. cit., p. 394n). 506 Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, pp. 32-33. 507 Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 250. 505

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reunidas sob uma mesma palavra, a noção de Entformung, desenvolvida pelo próprio Schwitters para designar todo o trabalho de preparação dos fragmentos encontrados, desde a retirada da rua até a inclusão na construção. Formung, em alemão, tem o sentido de «formação», «moldagem», portanto, trata-se da ação de dar forma a alguma coisa. O prefixo ent-, por sua vez, corresponderia aos de- e des- do português. Assim, poderíamos traduzir Entformung como uma deformação, como uma ação que visa a dar uma nova forma a algo que já tinha uma forma prévia. O próprio Schwitters explica seu processo: «O artista cria escolhendo, repartindo e reformando os materiais. A deformação [Entformung] dos materiais pode ser produzida graças às suas repartições sobre a superfície do quadro. Essa é posteriormente reforçada pelo desmembramento, pela dobradura, pela cobertura ou pela nova pintura».508 Em outro texto, precisa: O que o material significa antes de seu uso numa obra de arte é uma questão de indiferença já que ele é propriamente valorizado e recebe significado na obra de arte. (...) [as coisas] perdem suas características individuais, seus próprios venenos [Eigengift], por serem valorizadas umas em relação às outras, por serem desmaterializadas [entmaterialisiert], elas se tornam material para o quadro.509

Como parte da Entformung dos materiais, muito do que Schwitters apanhava fora de casa, em suas viagens e em seus passeios, era primeiro submetido a uma limpeza profunda, antes de ser reformulado, organizado e disposto na Merzbau. Tanto Elderfield quanto Gamard deduzem desta prática do artista uma espécie de ritual de purificação, uma «limpeza estética», como se «os materiais e fragmentos que Schwitters utilizava precisassem ser purgados do que ele chamava de seus Eigengift: «Os objetos tirados do mundo tinham que ser purificados para se tornar parte da obra de arte, incluí-los e contê-los dentro da obra de arte era um ato de purificação».510 Porém Elderfield e Gamard esquecem-se que nem tudo o que Schwitters colocava em sua Merzbau passava por uma «purificação» – e refiro-me tanto aos objetos – ou partes deles – que roubava dos amigos quanto aos recortes das próprias publicações. Parece-me que se pode identificar aí dois movimentos paralelos: por um lado, o artista pegava o material na rua, levava-o para casa, limpava-o e retrabalhava-o cuidadosamente; por outro, tomava pequenas recordações suas, dos amigos e dos 508

Kurt Schwitters, «La peinture Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 45. Kurt Schwitters, «Die Bedeuntung des Merzgedankens in der Welt», citado por Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 27. 510 John Elderfield, op. cit., p. 237. 509

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familiares e simplesmente as agregava à Merzbau. Quanto ao primeiro movimento, concordo que podemos compreender a lavagem dos materiais como uma espécie de «ritual de purificação». Nesta necessidade não só de limpeza, mas de deformação do fragmento original encontrado, parece-me haver um intento de separar aquilo que faz parte do mundo ao nosso redor daquilo que pode fazer parte do mundo de Schwitters, o mundo que ele construiu, a sua Merzbau, talvez uma metáfora do mundo da arte (e lembremos que, para ele, Merz era sinônimo de arte). Residiria, portanto, no fundamento dessa ação, uma tentativa de estabelecer um limite preciso e uma diferenciação clara entre o mundo exterior e o mundo de Schwitters. Dizia o próprio artista: «um fragmento de natureza não se torna necessariamente uma obra de arte».511 E o artista buscava estabelecer esta diferenciação justamente por meio de uma contaminação que, em princípio, seria vetada: ele introduzia o «veneno», as coisas do mundo exterior, no seio de seu mundo, como uma vacina que inocula o vírus a fim de imunizar o indivíduo. Mas não sem antes ter o cuidado de retirar destas coisas qualquer resíduo do mundo exterior, esvaziando-as de realidade.512 Por outro lado, certos materiais eram dispensados da «purificação». Talvez não seja por acaso que estes fossem provenientes do próprio Schwitters, de sua família ou de seus amigos. Se a hipótese descrita acima for aceita, estes materiais não precisariam passar por uma lavagem porque eles, originalmente, já faziam parte do mundo de Schwitters: ou eram objetos de pessoas que lhe eram próximas ou fragmentos de revistas, jornais e livros seus. Eles não necessitavam, portanto, de uma «purificação» das máculas deixadas pelo mundo exterior. Bastava retrabalhá-los. Schwitters, assim, aliava à função do artista-produtor (aquele que produz seu trabalho com suas próprias mãos) aquela do artista-oficiante. Achava-se sob sua tutela a decisão única e suprema de, como um xamã secular, escolher o que, do lixo, deveria se tornar arte e o que deveria permanecer lixo. É esta figura do artista-oficiante que se acha no centro das ações que constituem a dimensão ritual em torno da Merzbau. 511

Kurt Schwitters, «i (un manifeste)», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 71. Poderíamos evocar aqui a diferenciação que Émile Durkheim estabelece entre os domínios sagrado e profano, como traços distintivos do mundo religioso. Durkheim observa que todo conjunto de rito tem por objeto realizar a separação entre o sagrado e o profano e ressalta que o homem só pode entrar em contato íntimo com as coisas sagradas quando se despoja das profanas (ver As formas elementares da vida religiosa, pp. 318-321). Edmund Leach, por outro lado, descreve como, nos ritos de passagem, livra-se o neófito de suas «impurezas» antes de fazê-lo penetrar no mundo dos iniciados (ver Comunicação e cultura, pp. 111-112). 512

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d. Texto e obra Antes de prosseguirmos, creio que podemos nos deter um instante na relação que se pode estabelecer entre os textos produzidos pelo artista e a sua obra. Tal qual Mondrian e Malevitch, Schwitters também começou a escrever artigos e manifestos sobre sua nova concepção de arte no momento mesmo em que chegou a ela. Nestes textos, os primeiros dos quais datados de 1919, o artista, como Mondrian e Malevitch, partia da renúncia de uma noção de arte como imitação da natureza e propunha, em seu lugar, uma arte que fosse fundamentada em elementos estritamente pictóricos e que, em conseqüência disso, resultasse abstrata. Em «Merz», depois de uma longa introdução em que descrevia como se processava na pintura acadêmica a reprodução fiel da natureza e reconhecia o seu débito com estes estudos,513 comentava: Toda a intenção de reproduzir as formas da natureza traz consigo um prejuízo à qualidade da elaboração conseqüente de uma expressão. Eu renunciei à reprodução de elementos naturais e utilizei apenas elementos pictóricos. Estes são minhas abstrações. Eu conciliava os elementos do quadro entre si, como na época da Academia, não mais com a finalidade de reproduzir a natureza, e sim de a exprimir.514

Mais de dez anos depois, em 1933, reafirmou a necessidade de um distanciamento da natureza para a construção de uma arte nova, num tom que lembrava muito os escritos de Mondrian e Malevitch: Eu faço uma grande diferença entre a lógica artística e a lógica científica, entre construir uma forma nova ou observar uma forma na natureza. Construindo uma forma nova, cria-se uma obra abstrata e artística. Observando uma forma na natureza, não se faz obra de arte, estuda-se somente a natureza.515

Para Schwitters, «arte significa criar e não imitar a natureza».516 Arte deveria ser «somente formação, criação»517 – e formação entendida aqui como aquilo que dá forma. «A arte não é nunca outra coisa além de estrutura, evidência criadora.» Assim, completa

513

Schwitters jamais deixou de pintar paisagens e retratos, principalmente durante o tempo do exílio na Noruega e na Inglaterra, quando seu sustento dependia destas pinturas figurativas. 514 Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 56. 515 Kurt Schwitters, «Le grand groupe et la Caverne d’or», compilado por Marc Dachy, op. cit., pp. 181182. 516 Kurt Schwitters, «Kurt Schwitters, Hannover, Waldhausenstr. 5», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 166. 517 Kurt Schwitters, «A mon sujet par moi-même», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 166.

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Schwitters, «Ela não difere em nada do crescimento de uma planta ou de um cristal, da vida das estrelas ou da construção de uma máquina».518 Mondrian e Malevitch preconizavam uma nova arte que se transformaria numa realidade em si; Schwitters imaginava uma arte que viria ela própria se tornar natureza: «A arte não é jamais uma imitação da natureza, ela é a própria natureza».519 O que Mondrian e Malevitch entendiam por uma nova realidade não deixa de ter uma função em comum com o que Schwitters propunha como uma nova natureza: ambas se manifestavam como fuga da representação do mundo exterior. Para Schwitters, «a arte é uma coisa que, no seu contexto, se forma naturalmente como uma árvore, um animal ou um cristal».520 Enquanto uma tela que se resume a uma tentativa de reprodução da natureza é essencialmente – e somente – imitação, «a nova arte naturalista se forma como a natureza mesma e ela lhe é, portanto, mais próxima que qualquer imitação jamais o será».521 E a definição do que queria dizer com natureza foi estampada, em caixa alta, na capa do número duplo 8-9 da revista Merz, subtitulada Nasci, a qual editou com El Lissitzky: «Natureza, do latim NASCI, isto é, tornar-se ou vir a ser, tudo o que através de sua própria força se desenvolve, se forma ou se move».522 A arte, para Schwitters, se torna, como bem observa Elderfield, análoga a um organismo natural,523 e Elger compara o crescimento da construção do artista ao de um organismo vivo.524 Por trás desta concepção da arte como uma natura naturans, uma natureza que se forma natureza, podemos vislumbrar o anseio de reconduzir a arte a um estágio liberto de qualquer espécie de artificialidade, fazendo-a, com isso, retroceder a um estado pré-artístico, verdadeiramente primitivo. A arte passa a ser concebida como um Urbegriff: «A arte é um conceito primordial, sublime como a divindade, inexplicável como a vida, indefinível e sem propósito».525

518

Kurt Schwitters, «[L’art d’aujourd’hui est une chose bizarre]», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 171. 519 Kurt Schwitters, «Le rythme dans l’oeuvre d’art», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 147. Grifo meu. 520 Idem, p. 147. Grifo meu. 521 Kurt Schwitters, «Art et temps», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 143. Grifo meu. 522 Kurt Schwitters e El Lissitzky, na capa da revista Merz, número 8-9, reproduzida no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 138. 523 John Elderfield, op. cit., p. 116. 524 Dietmar Elger, op. cit., p. 141. 525 Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 56. Publicado originalmente no número 1 da revista Der Ararat, 1921.

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Nos escritos de Schwitters, é possível ouvir um eco daquele ímpeto romântico de retorno à natureza e evasão da vida cotidiana associados, por um lado, a uma tênue espiritualidade de caráter expressionista e, por outro, a uma busca pela forma pura provavelmente derivada de seu contato com os artistas e as obras construtivistas, suprematistas e daquelas produzidas pelo grupo De Stijl («fui influenciado por Moholy, Mondrian e Malevitch, porque nós vivemos na época dos M, cf. Merz»526). Assim expressava-se Schwitters em «Eu e meus objetivos», de 1930, de seus textos, aquele que melhor ajuda a compreender sua produção e seu entendimento de arte: ... não há nada mais precioso para o homem que a imersão na estrita legitimidade da arte. Não interprete como uma blasfêmia o fato de que a noção de divindade, que, durante milênios, fez o homem feliz além de todos os limites nacionais e sociais, soe como parente próxima daquela da arte. A imersão na arte é comparável ao culto divino que liberta o homem das inquietações cotidianas.527

E no «Manifesto da arte proletária»: «A arte é uma função espiritual do homem e visa libertá-lo do caos da vida (do trágico)», em que se percebe claramente a influência das idéias de Theo van Doesburg, com quem assina este texto.528 No entanto, embora possa se perceber uma certa tendência a uma espiritualização nos escritos de Schwitters, não é possível extrair destes uma tentativa de forjar qualquer forma de teologia ou mesmo de filosofia, como verificamos anteriormente nos textos de Mondrian e Malevitch. A busca de Schwitters se volta ao que há de primordial ou de primitivo na natureza. Excetuando o tom revelatório final, poderiam ser do artista as palavras com que El Lissitzky categoriza a nova arte no número 8-9 da revista Merz: «Nossa obra não é nem filosofia, nem um sistema de conhecimento da natureza; é um membro da natureza e, por isso, não pode ela mesma ser outra que um objeto da revelação».529 Enquanto, como vimos na parte dedicada à dimensão mítica, os textos de Mondrian e Malevitch se relacionavam com as obras como uma forma de lhes prover uma transcendência, em Schwitters, os escritos trazem em si um desejo implícito de retorno, de recuperação do que foi perdido. Entretanto, talvez não se trate aqui de uma procura por um paraíso perdido. Se prestarmos atenção 526

Kurt Schwitters, «Mon Merz et mon monstre Merz», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 211. 527 Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit., p. 250. 528 Kurt Schwitters, «Manifeste Art Prolétarian», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 108. 529 El Lissitzky, Nasci, reproduzido por Sophie Küpers-Lissitzky, op. cit., p. 342.

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aos materiais recolhidos pelo artista, notaremos que seu interesse recai sobre dejetos que indiciam a vida urbana – como bilhetes de metrô, anúncios de periódicos, pedaços de brinquedos, avisos de não fumar, fragmentos de jornais, tampas de latas etc. –, ou, em outras palavras, que indiciam um mundo completamente controlado pelo homem e não um mundo da natureza. Assim, talvez possamos compreender sua busca por um momento anterior não necessariamente – ou somente – como uma busca por um momento original e próximo ao que há de mais natural, como o fez Gauguin no Taiti, mas como uma tentativa de recuperação também de uma civilidade perdida. Não podemos esquecer que ele começou a produzir a Merzbau no período do entre-guerras, quando a Alemanha enfrentava sua maior crise econômica e quando se criavam as condições mínimas para o surgimento do nazismo.

e. Ordem Parece-me que tanto este ímpeto rumo a um primordial quanto a compulsão ao recolhimento interior e ao anseio por agregar materiais se traduzem numa busca pela ordem. O próprio Schwitters compreendia sua Merzbau como um modo de organização particular, oriunda da atividade criativa: «Pode-se dizer que a K d e E é a organização criativa de todas as coisas numa forma pura, coisas que, à parte alguma exceção, tiveram, no curso dos últimos sete anos da minha vida, importância ou não; mas nas quais se insinuou uma certa forma literária».530 Desde suas primeiras colagens e assemblagens Merz, podemos sentir uma vontade latente de reordenação do mundo a partir de seus próprios fragmentos: é como se o artista tentasse recuperar ou restabeceler um estado anterior de equilíbrio que fosse capaz de fazer frente ao caos de uma Alemanha arrasada pela guerra. «Tudo estava em ruínas e era preciso construir o novo a partir dos escombros», afirmava o artista num pequeno texto autobiográfico de 1930.531 «Eu construía, e a construção me interessava mais que os escombros.»532 Em outro manifesto ainda: «O dever de Merz no mundo é: equilibrar os opostos e repartir os pontos de gravidade».533 530

Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 250. Grifo meu. Kurt Schwitters, «Kurt Schwitters. Hannover, Waldhausenstr. 5», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 169. 532 Idem, p. 169. 533 Kurt Schwtitters, «Dadaismo in Olanda», reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco dada, p. 517. 531

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A busca de Schwitters pela ordem se assentava num princípio equivalente à mesma busca encetada por Mondrian e Malevitch. Embora possamos identificar, em Schwitters, um desejo implícito de retorno, se não a um primordial, pelo menos a um estado anterior de equilíbrio e harmonia, este desejo não se realiza por meio de uma recuperação de imagens do passado (como no movimento de retorno à ordem que apontamos em Picasso, Matisse e outros), mas, tal qual em Mondrian e Malevitch, como uma procura por formas novas, que, paradoxalmente, termina por se realizar por meio de um princípio formal comparável àquele sobre o qual se estruturam os mitos e os ritos, formas tão antigas que, de um certo ponto de vista, deram origem à arte. Também como em Mondrian e Malevitch, em Schwitters o encaminhamento em direção à ordem se regia por uma declarada preocupação com a forma e o ritmo geral da composição: «aquilo que mais importa num quadro é o ritmo das linhas, das superfícies, das sombras, das luzes e das cores, em síntese o ritmo do conjunto dos componentes e dos materiais de uma obra de arte»;534 «todo meio e todo material podem encontrar seu valor e seu equilíbrio na obra de arte, mas o meio e o material não são o essencial, o que conta é a arte que nasce da valorização do ritmo».535 E parece que ouvimos aí ecos de Malevitch – «O quadro suprematista e as formas que dele procedem podem ser associadas às marcas primitivas (símbolos) do homem aborígene, as quais representavam, em suas combinações, não ornamento mas um sentimento de ritmo»536 – e Mondrian – «Em pintura, é sempre o ritmo da cor e da linha que nos faz experimentar a realidade».537 No entanto, enquanto estes dois últimos artistas procuravam reordenar o caos do mundo a partir de um distanciamento em relação a este e pela criação de uma outra realidade construída apenas com materiais e recursos estritamente pictóricos, Schwitters foi buscar no próprio mundo exterior a sua matéria-prima. A sua ação, neste sentido, é muito mais direta: ele coletava os cacos e os pedaços de uma civilização destroçada, retrabalhava-os a fim de lhes retirar as impurezas do estado em que foram encontrados e tentava re-significá-los no mundo ordenado de Merz. Schwitters talvez concordasse 534

Kurt Schwitters, «Le rythme dans l’oeuvre d’art», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit., p. 147. 535 Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit., p. 250. 536 Kasimir Malevitch citado por Robert Goldwater, Primitivism in Modern Art, p. 168. 537 Piet Mondrian, «Natural Reality and Abstract Reality: A Trialogue (While Strolling from the Country to the City)», compilado por Harry Holtzman e Martin S. James, The New Art – The New Life: The Collected Writings of Piet Mondrian, p. 87.

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com os amigos Richter e Arp que, em texto publicado na revista G, em 1923, afirmavam: «Não temos necessidade de beleza, que se liga ao nosso ser (verdadeiramente orientado) como um rabisco, mas de uma ordem interior de nossa realidade».538 Enquanto, em suas colagens e assemblagens Merz, a busca por ordem se circunscrevia aos limites de um quadro, na Merzbau este mesmo ímpeto de reordenação se concretizou no espaço, não como uma mera escultura, mas como uma grande composição arredia à redução a um único gênero artístico, que, como vimos, se espraiou para além dos confins do estúdio do artista. Não só era permitido como era necessário caminhar e circular entre as grutas e as cavidades da Merzbau para poder apreciá-la em toda a sua extensão. Aliás, operava-se aí uma mudança significativa na apreciação estética, na relação entre obra e público: com a Merzbau, a obra deixava definitivamente de ser contemplada e passava a ser experimentada, exigindo a participação ativa do público e proporcionando a este uma experiência estética mais próxima às raízes da palavra grega aisthésis, que designava «sensibilidade», «sensação». Schwitters construiu sua Merzbau como um pequeno cosmos – palavra compreendida aqui em seu duplo sentido de «ordem», «organização», por um lado, e «mundo», «universo», por outro. Neste seu pequeno mundo – e recordemos que ele comparou seu crescimento ao de uma cidade –, Schwitters era o centro e o grande criador: lembremos que a coluna em que estava afixada uma colagem com referência ao primeiro dia da Criação marcou o início de seu trabalho. Sobre o seu mundo, detinha o poder e o controle absoluto, uma vez que era ele – e somente ele – quem escolhia o que e quem penetrava na Merzbau. Desta forma, sua grande construção se tornou um «espaço controlado»,539 uma espécie de «porto seguro»,540 onde o artista «podia se fechar e se retirar do mundo».541 Ao criar um espaço controlado e, em função disso, proporcionar uma evasão do cotidiano, Schwitters, de uma determinada forma, estava, ao mesmo tempo, oferecendo uma certa proteção a quem na Merzbau entrasse. É eloqüente acerca desta vontade de proteção o fato de que Schwitters dispôs uma cama no interior de uma das menores e menos

538

Hans Richter e Hans Arp, «[Nuova figurazione e arte spirituale]», reproduzido por Arturo Schwarz, op. cit., p. 482. 539 Dorothea Dietrich, The Collages of Kurt Schwitters, p. 204. 540 Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 6. 541 Dietmar Elger, op. cit., p. 150.

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iluminadas salas de sua própria obra – este era o espaço, o seu casulo, no qual o artista freqüentemente se recolhia para descansar.

f. Templo Creio que chegou a hora de avaliarmos isoladamente o primeiro dos termos que compõem o nome de uma das partes da Merzbau de Hannover e com o qual Schwitters se referia também à sua construção como um todo: Catedral da miséria erótica. A palavra catedral parece lançar luz sobre o caráter que Schwitters intentava atribuir à sua construção. Em função dela, podemos supor que o mundo controlado de Schwitters não se constituía como um simples mundo à parte, mas assumia os ares de um templo muito particular. E não esqueçamos de que algumas de suas assemblagens em três dimensões faziam referência a um universo religioso: O culto da bomba e A santa aflição. Esta não era a primeira vez que o artista se valia da imagem da catedral em seus trabalhos. O ano de 1920 marcou o início de uma recorrência, na obra de Schwitters, desta forma específica de arquitetura (e de templo). Neste ano, publicou, pela editora de Paul Steemann, um pequeno livro contendo oito litografias sob o título A catedral (Die Kathedrale), na mesma coleção (O cavalo prateado) em que havia editado, no ano anterior, seu primeiro volume de poemas (Anna Blume). Originalmente, o pequeno livro chegava ao leitor fechado com uma tarja de papel em que se lia: «Lacrado por razões sanitárias. Advertência: Antidadá. Retorne se o selo estiver rompido».542 Nas oito litografias, não aparecia nenhuma catedral. De representação arquitetônica, via-se apenas um provável edifício de apartamentos na capa e na sétima página, onde também se encontrava um moinho de vento. Círculos, rodas e engrenagens, por outro lado, eram as figuras que reapareceriam em cada uma das litografias, fosse escancaradamente, como na segunda, ou discretamente, como na terceira. O mesmo esquema de rodas e engrenagens repetia-se em Casa Merz, também realizada em 1920 e considerada por Schwitters a sua «primeira arquitetura Merz».543 Esta forjava, a partir da justaposição de fragmentos de brinquedos e outros objetos, as formas exteriores de uma igreja cuja nave apresentava-se como o mecanismo interior de 542

Segundo observação de Karin Orchard e Isabel Schulz em Kurt Schwitters: Catalogue raisonné – 1905-1922, p. 369. 543 Ver Kurt Schwitters, «Merz», compilado por Marc Dachy, op. cit., p. 59.

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uma máquina. Foi o crítico Christof Spengeemann, num texto escrito ainda em 1920, que a comparou a uma catedral, e sua comparação foi citada pelo próprio Schwitters em seu artigo «Merz»: Eu vejo a casa Merz como uma catedral. A catedral: não uma arquitetura religiosa, não, mas a obra arquitetural enquanto expressão de uma verdadeira visão espiritual daquilo que nos eleva rumo ao infinito: a arte absoluta. Esta catedral é inutilizável. Seu espaço interior é tão repleto de rodas que ninguém pode conseguir lugar... Eis a arquitetura absoluta na qual o único sentido é artístico.544

Spengeemann parece ter visto realizado na Casa Merz de Schwitters os ideais da arquitetura expressionista correntes na época: a busca de uma nova espiritualidade que tomaria forma na «catedral do futuro», a única possibilidade de união de todas as artes. Era assim que se expressava Walter Gropius na carta endereçada aos estudantes da Bauhaus, por ocasião da exposição anual dos trabalhos estudantis, em julho de 1919: «a idéia religiosa surgirá novamente e finalmente deve encontrar sua expressão cristalina na grande obra de arte total [Gesamtkunstwerk]. E esta grande obra de arte total, esta catedral do futuro [Kathedrale der Zukunft], brilhará então com sua abundância de luz, refletindo nos menores objetos da vida cotidiana».545 Como ilustração, o primeiro manifesto da Bauhaus trazia em sua primeira página uma xilogravura de Lionel Feininger – para quem Schwitters dedicou uma das grutas de sua Merzbau –, intitulada A catedral do socialismo. Não se sabe ao certo se Schwitters conhecia o texto de Gropius ou tinha visto a ilustração do manifesto, mas não há porque duvidar de que ele tivesse conhecimento das concepções do grupo de arquitetos expressionistas de sua época, apesar de nunca ter se filiado a qualquer um deles. Em 1922, dois anos depois de sua Casa Merz e das litografias de A catedral, Schwitters publicou uma reprodução de um novo trabalho seu, novamente tendo a catedral como tema, Castelo e catedral com poço no quintal, na revista Frühlicht, dirigida pelo arquiteto Bruno Taut, o qual, com Gropius, Adolf Behne e outros, fundara, em 1918, o grupo Arbeitsrat für Kunst (Conselho de Trabalho pela Arte), cuja meta era difundir uma nova arquitetura. Esta nova arquitetura tinha como inspiração a imagem da catedral gótica, não tanto pelas suas formas, mas mais pela 544

Christof Spengeemann citado por Kurt Schwitters, «Merz», op. cit., p. 59. Walter Gropius, «Address to the Students of the Staatliche Bauhaus, Held on the Occasion of the Yearly Exhibition of Student Work in July 1919», reproduzido por Hans Maria Wingler, The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlim, Chicago, p. 36. 545

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concepção subjacente à sua ordenação geométrica: a idéia medieval da catedral construída como uma replicação do cosmos (da criação divina) e que, por sua perfeição, encaminharia os homens à verdade e à revelação. Explica Otto von Simson, provavelmente a maior autoridade quando o assunto é catedral gótica: «Se o arquiteto projetava seu santuário de acordo com as leis da proporção harmônica, ele não apenas imitava a ordem do mundo visível, mas transmitia uma sugestão, na medida em que isto era possível ao homem, da perfeição do mundo por vir».546 Esta noção da catedral como um mundo completo, paralelo à natureza e edificado à imagem e semelhança do mundo exterior foi recuperada pelos arquitetos expressionistas.547 Nas palavras de Gropius, o objetivo da Bauhaus era pôr em prática uma arquitetura moderna, mas que, «como a natureza humana, abrangesse a vida em sua totalidade».548 Cada uma à sua maneira, as catedrais de Schwitters pareciam achar-se em consonância com esse ímpeto de ordenar e reproduzir o sistema do mundo no sistema reduzido da catedral. Na série de litografias e na Casa Merz, as rodas dentadas e as engrenagens sugeriam um mundo (uma catedral) que se organizava e funcionava como uma máquina. Para seu amigo Van Doesburg, a máquina substituía o mito na modernidade como um análogo da criatividade humana;549 e para Schwitters e Lissitzky, ela deveria ser vista apenas como um instrumento primário, «nada mais que um pincel, e mesmo um dos mais primitivos, com o qual se pinta a tela do quadro do mundo».550 No entanto, poderíamos ainda arriscar uma outra comparação se pensássemos que a máquina, de uma certa forma, replica o modo de operação dos rituais de atualização do mito: seu bom funcionamento implica na repetição incessante de um mesmo movimento, que produz, a cada ação, sempre o mesmo resultado. Deste ponto

546

Otto von Simson, The Gothic Cathedral: The Origins of Gothic Architecture & The Medieval Concept of Order, p. 37. 547 Giulio Carlo Argan comenta que, para fazer frente a uma sociedade que «perdeu o sentido do sagrado e, com ele, o de criar», os arquitetos expressionistas voltaram-se para a construção das «catedrais laicas da sociedade ideal». Este movimento se desenrolou, segundo Argan, em duas fases: «na fase “utópica”, se pensa ainda numa comunidade similar à comunidade artesanal do Medievo evocada por Morris, isto é, a um conjunto harmônico de trabalhadores empenhados em exprimir uma espiritualidade ou religiosidade coletiva na construção-símbolo, a catedral; enquanto, na fase “racionalista”, se pensa numa verdadeira e própria “sociedade” empenhada numa produção sistematizada e, portanto, consciente, não tanto da própria estrutura funcional, mas dos problemas concretos suscitados pelos novos modos de produção» (Progetto e destino, pp. 221 e 225 respectivamente). 548 Walter Gropius, Bauhaus: Novarquitetura, p. 30. 549 Ver John Elderfield, op. cit., p. 135. 550 Kurt Schwitters e El Lissitzky, editoral de Nasci, publicado no número 8-9 da revista Merz, reproduzido por Sophie Lissitzky-Küppers, op. cit., p. 341.

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de vista, a máquina talvez possa ser compreendida tanto como uma metáfora de um processo sempre em aberto – e Schwitters concebia a arte como um fluxo constante551 – quanto como um mecanismo que promove uma mudança de estado. É precisamente nesta mudança de estado que se baseia a máquina produtora de «rodadistas»,552 imaginada por Schwitters em 1921, um ano depois de Casa Merz e das oito litografias: De que se compõe a máquina: engrenagens e cadáver. A máquina de fazer rodadistas foi feita para você. Ela compõe-se de uma excepcional combinação de engrenagens, eixos e cilindros, com cadáveres, ácido nítrico e MERZ e foi construída de tal forma que você entra nela em pleno gozo de suas faculdades mentais e sai completamente sem juízo. Tal efeito traz grandes vantagens para você. Invista o seu dinheiro em uma cura rodadista e você jamais se arrependerá; aliás, a sua capacidade de se arrepender será completamente inexistente após a cura. Não importa se você é rico ou pobre, a máquina de fazer rodadistas o libertará – inclusive – da necessidade do dinheiro em si. Se você é capitalista, passará primeiro por um funil, depois por vários cilindros, até mergulhar num banho de ácido. Depois, você entrará em contato físico com alguns defuntos. Vinagre gotejará cubismo dadá. Então você verá o grande Rodadá. (Não o presidente do globo terrestre, como muitos pensam.) Rodadá irradia astúcia e é revestido de cerca de 100.000 agulhas pontiagudas. Depois de ser chacoalhado para lá e para cá, alguém lerá para você meus novos poemas, até você cair inconsciente. Aí você será socado e rodadado, para depois, de repente, ser expelido para fora da máquina, transformado em um antiburguês com um novo penteado. Antes da cura, você tinha pavor até do buraco de uma agulha, depois da cura, nada mais o apavora. Você é um rodadista e reza diante da máquina com todo o fervor – Amém.553

Ressalte-se como, no final de sua descrição, Schwitters atribuiu ironicamente à sua máquina propriedades de templo, de um lugar diferenciado onde é possível se operar uma conversão e frente a qual o recém-convertido rodadista faz suas preces. Talvez seja interessante notar ainda que, num texto de 1923, o artista falava de um quarto mecânico para os porquinhos-da-índia que estaria construindo em sua casa como uma experiência, quiçá a primeira menção à sua construção de Hannover: posso já revelar que, em grande segredo, venho conduzindo experimentos com porquinhosda-índia que habitam quadros Merz construídos pela necessidade. Por ora, venho estudando as pegadas dos porquinhos-da-índia. Mas se acham em estaleiros também quadros Merz que balançam mecanicamente ao movimento dos porquinhos-da-índia. Alguns contatos acionam mecanicamente uma iluminação diversificada, em função do movimento dos 551

No editorial de Nasci, ao comparar a arte à ciência, Schwitters e El Lissitzky escreveram: «Cada forma é o instantâneo cristalizado de um processo, por isso, a obra é uma etapa do devir e não fim cristalizado» (reproduzido por Sophie Lissitzky-Küppers, op. cit., p. 342). 552 Tomei a liberdade de fazer uma pequena alteração na tradução de Fabiana Macchi para a palavra alemã raddadisten. Macchi havia convertido para o português como radadista. Contudo, tendo em vista que o radical alemão do termo inventado por Schwitters, rad-, significa «roda» em português, e que as representações em que sugere o funcionamento de uma máquina, como o interior da Casa Merz, são realizadas a partir da forma da roda, optei por utilizar rodadista em vez de radadista. 553 Kurt Schwitters, «Máquina de fazer radadistas», traduzido por Fabiana Macchi, Sibila, III, 4 (2003), p. 97.

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bichos. Mas o quarto mecânico é o único espaço coerente que é plasmado artisticamente e, ao mesmo tempo, é habitável.554

Contudo, foi com sua Merzbau que o artista realizou em três dimensões a ereção do que convencionou chamar de Catedral da miséria erótica. Embora ele tenha dito que «a expressão K d e E é somente uma designação» e que «ela não concerne em nada ao conteúdo»,555 seu nome parece-me iluminador. Até mesmo em suas formas, a Merzbau remetia à catedral. Se observarmos os poucos registros fotográficos que nos chegaram desta construção em Hannover, principalmente, se nos detivermos naqueles que reproduzem o conjunto da Janela azul (fig. 47) e o do Grande grupo (fig.48), verificamos como as formas da armação em gesso e madeira lembram, por vezes, os arcos e as intersecções internas do teto de uma catedral gótica. O próprio Schwitters via em sua construção traços de arquitetura gótica: «a impressão do conjunto lembra um pouco um quadro cubista ou uma arquitetura gótica».556 Além disso, é sintomático que a Merzbau tenha começado com uma coluna. Antes da cristianização, os germanos tinham o costume de erguer pilares sagrados no centro de seus templos.557 No item anterior, vimos que, na Merzbau, Schwitters buscava erguer um mundo à parte, ordenado segundo leis intrínsecas e particulares. E, ainda antes disso, vimos também que, ao limpar e retrabalhar os fragmentos recolhidos da rua, o artista parecia dedicar-se a uma espécie de «ritual de purificação», movido pela necessidade de separar aquilo que era do mundo exterior daquilo que poderia ser integrado ao mundo Merz. A noção de catedral engloba estes dois aspectos: como um templo, determina uma ruptura na homogeneidade do espaço profano, consagrando um território antes profano ao organizá-lo como um mundo cosmológico, e reiterando, assim, «a obra exemplar dos deuses»; ao se constituir deste modo, garante uma diferenciação entre o espaço profano da vida ordinária e o espaço sagrado da vida religiosa.558 Na Merzbau, é possível observar uma atitude similar. No entanto, quanto a esta, não me sinto à vontade 554

Kurt Schwitters, «Dadaismo in Olanda», reproduzido por Arturo Schwarz, op. cit., p. 518. Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit., p. 250. 556 Kurt Schwitters citado por Harald Szeemann, «“L’immortalité n’est pas l’affaire de tout le monde”. Propos sur l’oeuvre d’art totale de Kurt Schwitters», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit., p. 373. 557 Mircea Eliade fornece ainda exemplos de outras culturas que erguem seus lugares sagrados em torno de um axis mundi, que pode tomar a forma de um poste, de uma coluna, de um pilar etc. (ver O sagrado e o profano, pp. 36-37). 558 Mircea Eliade, op. cit., p. 35. Sobre este assunto, ver ainda, no mesmo livro, pp. 30 e ss. 555

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utilizando termos de significados tão precisos como sagrado e profano, ainda mais num tempo em que mesmo o sagrado já foi, por meio, sobretudo, da investigação antropológica, irremediavelmente profanado do ponto de vista do conhecimento. Prefiro pensar a catedral em relação à Merzbau como um modelo exemplar. Parece haver aí uma tentativa, sim, de «sacralizar» – e frisem-se as aspas – um espaço ordinário, de introduzir na própria casa do artista um território diferenciado. De fato, este território da Merzbau, que não é propriamente sagrado, mas também não quer ser puramente secular, mimetiza os principais aspectos de um espaço sacro. Além de ser uma interrupção no espaço profano da casa do artista e de ser realizada a partir de fragmentos de objetos cuidadosamente «purificados», a Merzbau se constituía a partir de uma série de interdições que reforçavam um sentimento de «sagrado» a seu redor.559 Em primeiro lugar, ela não podia ser transportada: como um templo, aqueles que queriam vê-la deveriam ir até ela. Em segundo, não era qualquer pessoa que podia visitá-la: os «iniciados» deveriam ser convidados pelo artista. Em terceiro, mesmo entre as pessoas que a visitavam, nem todas tinham acesso a todos os ambientes da Merzbau: «As grutas mais secretas provavelmente nunca foram vistas exceto por [Herwarth] Walden, [Sigfried] Giedion e [Hans] Arp».560 Em quarto, muitas das quinquilharias recolhidas por Schwitters – e principalmente os objetos tomados dos amigos – eram guardadas em redomas de vidro, como se fossem relíquias. Em quinto, seus espaços dividiam-se em grutas e, na arte cristã, as grutas eram consideradas lugares sagrados.561 Todos estes detalhes contribuíam para se criar uma certa aura em torno da construção como um todo e para fixar um espaço (e um tempo) que permitisse a fuga do mundo real. Lembremos mais uma vez o que dizia Schwitters: «A imersão na arte é comparável ao culto divino

559

Sobre interdições como constitutivas do sagrado, ver Émile Durkheim, op. cit., pp. 24 e 318-324; Roger Caillois, L’homme et le sacré, pp. 79-125. Sobre o tabu associado ao sagrado, ver A. R. RadcliffeBrown, Estrutura e função nas sociedades primitivas, pp. 195-222. 560 Käte T. Steinitz, op. cit., p. 90. Em alguns povos primitivos, costuma-se esconder os objetos sagrados para que as pessoas comuns não tenham acesso e contato com eles. Conta Roger Caillois: «Na Austrália, o lugar onde são depositados os objetos sagrados ou churingas não é conhecido de todos: os profanos, que são os não-iniciados nos mistérios do culto, no qual estes objetos constituem os instrumentos essenciais, ficam na ignorância da colocação exata do esconderijo. Eles só a situam muito aproximativamente e, se eles se acham a seu lado, se obrigam a um grande desvio para evitar que o acaso os faça descobri-los» (L’homme et le sacré, p. 26). 561 Ver Dorothea Dietrich, op. cit., p. 188.

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que liberta o homem das inquietações cotidianas».562 Hanne Bergius observa que, com a Merzbau, Schwitters filtra as «relações» entre o tempo e a vida, o jogo e a imaginação, realizando o vínculo entre a experiência subjetiva e a experiência coletiva – relações que as ciências, a política e a religião não foram mais capazes de fazer. Assim, o conceito Merz retoma a significação outrora atribuída aos cultos e aos mitos, na qual o presente, a recordação e a esperança se fundem sob a forma da revelação.563

Por propiciar, ao penetrar nela, um desligamento total da realidade, a Merzbau era capaz de fingir – no sentido de fingere, ligado a fictio – uma transcendência. Foi desta forma que se sentiu o pintor Rudolf Jahns quando entrou na construção: Se você andava por tudo, finalmente chegaria ao meio, onde eu encontrei um lugar para sentar, e me sentei. Experimentei então um sentimento estranho, arrebatador. Esse ambiente tinha uma vida própria muito especial. O som dos meus passos sumiram e havia um silêncio absoluto. Só havia a forma da gruta rodeando-me, e quando eu era capaz de encontrar palavras para descrever isso elas aludiam ao absoluto em arte.564

O absoluto que Mondrian e Malevitch buscavam atingir por meio das formas puras, na construção de Schwitters é forjado pelo recolhimento. Mas apenas forjado. O espaço construído por Schwitters, ao propiciar uma interrupção na vida e no tempo ordinários, cria a ilusão, para quem nele penetre, de que ali é possível restabelecer uma ligação – e não esqueçamos que religião vem do latim religare, que significa «ligar novamente» – com algo diferenciado do profano, mas que não se constitiui necessariamente como algo superior a este, até porque não se trata de um espaço sagrado em seu senso estrito. Também aqui parece haver uma promessa frustrada de transcendência.

562

Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, op. cit., p. 250. 563 Hannes Belgius, «Kurt Schwitters “Créer du nouveau à partir de débris”», compilado no catálogo do Centre Georges Pompidou, Kurt Schwitters, p. 39. 564 Rudolf Jahns citado por John Elderfield, op. cit., p. 153.

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g. Mistério Em «Eu e meus objetivos», Schwitters justifica-se por estar se estendendo tão longamente na descrição de sua Merzbau: «devido a sua ambigüidade, ela é bastante difícil de se compreender».565 Para ele, somente três pessoas seriam capazes de entender a sua construção por completo: Herwarth Walden, Sigfried Giedion e Hans Arp – aqueles três que, conforme Käte T. Steinitz, seriam os únicos autorizados a penetrar em todo e qualquer recanto da construção. Walden não só estava familiarizado com a arte de seu tempo como incentivava o que havia de mais revolucionário: responsável pela galeria Der Sturm, em Berlim, foi o primeiro a expor as composições Merz de Schwitters. Giedion, além de ser historiador da arquitetura e estar afinado com as novas correntes na área, estudava a arte «primitiva» em profundidade: na década de 1950, publicou um imenso volume, resultado de inúmeros anos de pesquisa exaustiva, abordando as mais diferentes formas de arte pré-histórica e dos povos ditos «primitivos».566 Arp, por fim, não só estava interessado como contribuía ativamente para erigir uma arte nova e, nisso, partilhava de preocupações similares às de Schwitters; queria recuperar o que julgava ser primordial: «Nós buscávamos uma arte elementar que deveria, pensávamos, salvar os homens da loucura furiosa destes tempos».567 Não foi à toa que destaquei os conhecimentos específicos das únicas três pessoas – segundo Schwitters – habilitadas a compreender totalmente a Merzbau. Estes me parecem ser elucidadores da bagagem cultural necessária para tentar situar esta construção artística em meio ao terreno acidentado da arte moderna e para tentar apreender aquilo que a obra coloca em jogo. A percepção aguçada de Walden e de Arp para o que havia de mais radical na arte de seu tempo permitia-os entender que a Merzbau não só propunha uma renovação nos modos de se produzir e conceber uma obra de arte, colocando em questão até mesmo a noção de «obra de arte», como também atenuava as fronteiras entre os gêneros artísticos numa tentativa de se erigir uma Gesamtkunstwerk: não se podia dizer que a Merzbau fosse uma peça de arquitetura ou

565

Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 250. O livro de Sigfried Giedion se chama The Eternal Present – The Beginnings of Art e se origina de um curso ministrado na National Gallery of Art, de Washington, em 1957. Sobre arquitetura, seu volume mais célebre é Raum, Zeit und Architektur, editado no Brasil pela Martins Fontes, com o título Espaço, tempo e arquitetura: o desenvolvimento de uma nova tradição (São Paulo, 2005). 567 Hans Arp, «Dadaland», On my Way, p. 86. 566

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de escultura ou de decoração, ela era tudo isso e, por tal razão, estaria além de tudo isso. De outra parte, os conhecimentos de Giedion acerca não só da nova concepção de arquitetura, mas principalmente acerca da arte dita «primitiva» capacitavam-no a reconhecer na própria concepção da Merzbau – erguida a partir da «purificação» das recusas do dia-a-dia e do armazenamento de recordações tomadas dos amigos – uma tentativa de resgatar uma pureza ou uma primordialidade análoga às práticas ritualísticas. Quanto às outras pessoas, garantia Schwitters, estas «não me compreenderão inteiramente». Porém, «não se pode exigir uma compreensão total quando se trata de coisas assim extraordinárias como estas. A K d e E é mesmo uma violeta típica que floresce na sombra».568 Neste último item, proponho, portanto, tentarmos decifrar os mistérios da construção de Schwitters. E ressalvo que não escolhi a palavra mistério por acaso. Poderia ter me valido de termos como enigma ou segredo. No entanto, tanto um quanto o outro já foram amplamente utilizados para ajudar a elucidar aspectos obscuros da arte e da literatura569 e, por isso, me obrigaria a uma revisão bibliográfica e conceitual que provavelmente me desviaria de meu argumento. A palavra mistério, por seu turno, além de abarcar os sentidos de enigma e segredo, acha-se originalmente associada a uma idéia de ritual. Walter Burkert, especialista em religião e cultos gregos, observa que a raiz verbal my(s)- designava, no grego micênico, a «iniciação de um funcionário». As palavras derivadas desta raiz, como o substantivo mystes e o verbo myeo, permaneciam no mesmo campo semântico, significando, respectivamente, «iniciado» e «iniciar». A 568

Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 251. Entre outros, valem-se do termo enigma Theodor W. Adorno e Mario Perniola. Este último, em Enigmas: O momento egípcio na sociedade e na arte, defende que encontramos na sociedade contemporânea um tipo de experiência a que dá o nome de enigma: «não nasce do retorno do que foi recalcado, nem do choque do futuro, mas sim do enigma da sua coincidência, do impor-se de uma condição em que o antigo e o futurível não só se assemelham, mas até se confundem. O “efeito egípcio” consiste nisso e tem, portanto, um sentido diferente do genérico interesse pela antiga cultura egípcia» (p. 10). Ao enigma, opõe o segredo, sendo que este último se acha fundamentado numa relação de poder, enquanto o outro, não (ver pp. 13 e ss.). Adorno, em sua Teoria estética, optou por utilizar a palavra enigma, em vez de mistério, para determinar o caráter da arte. Para Adorno, o enigmático da arte é o seu «estar-separado», isto é, o fato de a arte não se achar mais associada a algo de mágico ou cultual e, por conseqüência, de se encontrar desvinculada de uma promessa de transcendência: «Se a transcendência nelas estivesse presente, seriam mistérios, não enigmas; são-no porque enquanto separadas desmentem o que, no entanto, querem ser» (p. 147). De seu ponto de vista, portanto, o sentido da palavra mistério está vinculado justamente àquilo que ele pretende dissociar da sua noção de arte moderna: a magia, o culto, a religião. De minha parte, como acredito ainda ser possível reconhecer traços de uma dimensão mítica e de uma dimensão ritual na arte moderna, optei justamente por mistério, como explico acima. Quanto ao segredo e ao secreto, encontramos, entre tantos, os estudos de Pierre Boutang (Ontologie du secret. Paris: Presses Universitaires de France, 1973), de Paolo Fabbri (Tactica de los signos. Barcelona: Gedisa, 1995) e toda uma revista dedicada ao tema, a Sigila.

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tradução latina para mysteria, myein, myesis como initia, initiare, initiatio, salienta Burkert, introduziu a palavra e o conceito de iniciação em nossa linguagem.570 Já o sufixo –teria, de mysteria, resultou da sobreposição da família terminológica de telein, «realizar», «celebrar», «iniciar», e telete, «festa», «ritual», «iniciação».571 Assim, compreendemos mistério aqui como algo enigmático e secreto que tem em sua base um quê de ritualístico. Observa Maria Amélia Bulhões, em texto que instiga à investigação mais funda das relações entre arte e sagrado, que o mistério atua como atração, fascínio que orienta um movimento em sua direção, excluindo toda imobilidade ou indiferença. O mistério funciona como aura, criando uma imensa espera, para corresponder a esta expectativa a arte não precisa sua natureza, ela sugere uma abertura para um plano superior, indefinido, a ser completado pela imaginação do público. Reatualiza assim o mito da magia (enquanto relato fabuloso) que tem origem remota em uma época que a arte fazia parte integrante das práticas religiosas.572

E não esqueçamos que Cassirer compreendia o mito como uma «escritura cifrada», convertida em mistério, cuja «autêntica significação» se acha justamente no oculto. Na Merzbau – e reitero mais uma vez que estamos nos detendo na construção de Hannover –, o mistério se formava por meio de uma série de fatores, muitos dos quais já estudamos até este ponto: pelas suas interdições e suas grutas secretas, por ter sido erigida na própria casa do artista, por ser um trabalho em eterno andamento, por não poder ser transportada, por incorporar fragmentos descartados do cotidiano e lembranças dos amigos. Até mesmo o fato de ter sido destruída na década de 1940 reforça ainda mais seu ar de mistério, uma vez que, sem acesso direto à construção original de Schwitters, torna-se mais difícil tentar decifrá-la, restando-nos apenas fazer conjecturas. E, no entanto, parece-me que o abandono da Merzbau inacabada e a sua própria destruição condizem com a sua natureza. Mas poderíamos nos perguntar se não há algo mais por detrás desses mistérios. Traduzindo em outros termos, talvez fosse preciso olhar a Merzbau mais de perto e buscar examinar como seus elementos se articulam para formar o que chamo de dimensão ritual. Para tal, talvez seja o momento de nos voltarmos para os termos finais da outra designação da Merzbau, a Catedral da miséria erótica. Poderíamos nos indagar a que tipo de miséria e a que tipo de erotismo Schwitters estaria se referindo aí. 570

Walter Burkert, Antigos cultos de mistério, pp. 20-21. Idem, p. 21. 572 Maria Amélia Bulhões, «Arte contemporânea, o pensamento irreligioso do sagrado», compilado em As questões do sagrado na arte contemporânea da América Latina, pp. 45-46. 571

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Costuma-se caracterizar esta construção como um «depósito autobiográfico», «um diário na maior das escalas», «um teatro doméstico»,573 em que se revelam temas como erotismo, amizade, misticismo, história e política alemãs. E ela parecia verdadeiramente se instituir como uma autobiografia: cada peça recolhida da rua ou cada lembrança subtraída dos amigos tinha uma história própria que, depois de ser processada pela Entformung, tornava-se elemento da história pessoal de Schwitters – ou talvez fosse mais preciso falar de mitologia pessoal. Assim, se aceitarmos essas proposições e destas partirmos, podemos, para começar, situar a miséria erótica dentro do âmbito privado. Lembremos que tudo principiou com uma coluna no topo da qual se encontrava uma cabeça em gesso de menino, coberta por um pano. Como já vimos anteriormente, esta cabeça substituía o busto de sua mulher, Helma, na remontagem desta coluna numa nova peça da casa. Sabe-se que esta cabeça em gesso não era uma escultura qualquer, mas a máscara mortuária do primeiro filho de Schwitters, Gerd, nascido em 1916 e morto antes do aparecimento do segundo e, depois, único filho do artista, Ernst, em 1918.574 Com este detalhe, podemos supor que seu «teatro doméstico» ou seu «diário» se iniciava por um acontecimento muito particular e triste: a morte de seu primogênito. Talvez resida aí a sua miséria: Elends, em alemão, significa «miséria», não no sentido de «pobreza», mas de «desgraça», «insatisfação», «infelicidade». Vale ressaltar ainda que o busto de Helma, datado de 1917 (talvez a data da morte do menino), chamava-se Sofrimento.575 Não podemos esquecer que era a partir desta coluna que se começava o passeio em torno da Merzbau: ela funcionava, portanto, como um axis mundi, isto é, como o centro de sua catedral. Em função disso, poderíamos imaginar que não era pouca a importância dada a esta máscara mortuária; ela era, muito pelo contrário, o princípio e, quiçá, o motivo da construção – e talvez seja significativo o fato de que Schwitters só começou realmente a erguer a Merzbau depois da troca dos bustos. Esta coluna com a cabeça do menino no alto se constituía como uma espécie de altar. Além dos recortes de 573

As duas primeiras expressões são de John Elderfield, op. cit., pp. 146 e 165 respectivamente. A última é de Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 177. É interessante como Lévi-Strauss ressalta que o trabalho do bricoleur sempre possui algo de pessoal: «a poesia do bricolage lhe advém, também e sobretudo, do fato de que não se limita a cumprir ou executar, ele não “fala” apenas com as coisas, como já demonstramos, mas também através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si» (O pensamento selvagem, pp. 36-37). 574 Ver Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 88. 575 Não se tem certeza quanto à data da morte do primeiro filho de Schwitters.

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revistas de vanguarda das quais Schwitters participou, fazendo as vezes de forro para o branco do pedestal, viam-se pequenos objetos dispostos entre a base da coluna e a coluna em si. Havia botões, um pedaço de pele, um ursinho de brinquedo, um pequeníssimo boneco, uma imagem de um menino subindo num coqueiro, um pedaço quebrado de um molde em gesso de uma cabeça de mulher, um candelabro usado como vaso de flores. Na parte de baixo, afixado aos fragmentos de revista, como já fizemos notar, reconhece-se a colagem O primeiro dia, a qual apresentava uma série de fragmentos de reproduções de anjos, dispostas em torno de um recorte mostrando uma coluna clássica, ao lado da qual jazia uma figura de mulher com asas, reiterando assim o tema da coluna como fundação de sua catedral. O conjunto central de anjos foi identificado como sendo parte do quadro Madona na sala rosa (c. 1448), de Stephen Lochner. Sabendo serem alguns dos anjos da colagem em destaque na primeira coluna da Merzbau extraídos de uma reprodução da madona com seu filho, será que poderíamos compreender estes anjos como uma representação da anunciação da chegada de um novo menino? Se sim, poderíamos tomar esta coluna como um altar ao filho morto e uma tímida celebração ao recém-nascido. «Como Merz, nasci em 1918 e cresci com Merz», orgulha-se Ernst Schwitters.576 E a referência velada à madona e direta ao filho morto não aparecem isoladamente. A imagem da madona podia ser vista em dois outros cantos da Merzbau: como uma Madona abstrata (fig. 50), localizada em frente à janela azul, conforme mostra a fotografia de 1930; e como uma madona e seu filho na coluna que deu origem ao nome alternativo da construção, a Catedral da miséria erótica. Quanto à máscara mortuária de seu primogênito, outras duas imagens pareciam dizer respeito ao tema. Em pelo menos dois outros pontos, repetia-se uma figura similar àquela. Na extensão de uma gruta conhecida como Gruta com corno de vaca, havia uma outra coluna, aparentemente sem colagens em sua extensão, encimada por um boneco de menino, cujas feições – com olhos fechados e boca ligeiramente aberta – lembravam as da máscara mortuária. Pela fotografia tirada desta coluna em 1925, vemos que este boneco assumia, na contraluz, um ar fantasmagórico (fig. 51). Numa das maiores grutas da construção de Schwitters, a grande Gruta do ouro, viam-se duas caixas de vidro repletas do que parecem ser brinquedos destroçados. Numa destas caixas, bem em seu centro, achava-se outra cabeça de boneco (fig. 49). 576

Ernst Schwitters, «Non si sa mai», op. cit., p. 14.

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Na visão de Gamard, «para Schwitters, o refrear e o avançar na elaboração da Merzbau constituíam um ritual sagrado».577 Se se apõem as devidas aspas na palavra «sagrado», posso estar de acordo com ela. Schwitters parecia intentar erguer um templo não-sagrado, secular, porque lá não se reverenciava qualquer divindade, mas também não-profano, porque na sua catedral havia uma tentativa de diferenciar claramente o que a ela podia pertencer do que pertencia ao mundo externo. Mario Perniola, num pequeno ensaio intitulado Mais-que-sagrado, mais-que-profano, esmiuça o intervalo entre a esfera do sagrado e aquela do profano. O âmbito intermediário que ele denomina maisque-profano pode servir para descrever o caráter da Merzbau: o mais-que-profano é a dimensão em que «o profano parece exatamente sagrado».578 Escreve Perniola: O mais-que-profano não pode emergir que de uma radicalização daquilo que a teoria clássica de Durkheim e de Otto considera como profano. Para o primeiro, o profano é o individual, a vida ordinária ocupada prevalentemente do trabalho e das ocupações de todos os dias associados com a necessidade da vida. Para o segundo, o profano é aquilo que é rotineiro, ordinário, usual, repetitivo. O mais-que-profano, portanto, é a experiência radicalizada da repetição.579

Assim, o mais-que-profano é a aparição da diferença no «humano, mais que humano», mas sem o redimir. A repetição a que dá margem pode vir a se consolidar no ritual: «a idéia estóica de um eterno retorno em virtude do qual tudo se repetirá do mesmo modo no qual veio por infinitas vezes constitui a mais radical e categórica afirmação de um sentir mundano mais-que-profano, que se estende ao inteiro universo».580 Partindo disso, podemos entender o ritual como a repetição simbólica de algo que se perdeu. Quer-se com o ritual trazer para o momento presente aquilo que é passado. A cada missa da igreja católica, por exemplo, revive-se a última ceia de Cristo e encenam-se a morte e a ressurreição; e, ao fazê-lo, reatualiza-se um momento bíblico. Durante a execução do ritual, o passado eterniza-se e se prolonga no presente. Voltando à Merzbau, creio ser possível visualizar uma espécie muito peculiar de uma organização ritualística em torno da coluna com a máscara mortuária. Parece-me que o «teatro doméstico» de Schwitters começava pela encenação de um luto ao filho morto. Talvez não seja por acaso que a Merzbau lembre a Maurizio Fagiolo dell’Arco o

577

Elizabeth Burns Gamard, op. cit., p. 104. Mario Perniola, Più-che-sacro, più-che-profano, p. 20. 579 Idem, pp. 20-21. 580 Idem, p. 46. 578

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monumento sepulcral, «quase uma catedral», construído por Max Taut em 1920581 e que Harald Szeemann se refira à construção de Schwitters como um mausoléu.582 O luto se organizaria aqui como uma tentativa de recuperar o que se perdeu, o filho, e de elaborar esta perda para, só então, ser possível superá-la. Todavia, como a Merzbau se constituía como um processo em permanente fluxo, ela mantinha em suspensão o trabalho do luto, impedindo de concluí-lo e, portanto, jamais permitindo que este fosse superado. No entanto, se nos contentarmos com esta leitura não daremos conta do erótico que qualifica a miséria. Haveria uma ligação entre a elaboração do luto do filho e o erotismo? Freud observa que o luto, tal qual a melancolia, promove paulatinamente «o desligamento da libido».583 Decorre, pois, disso, um impedimento da realização do desejo erótico. Schwitters, ao descrever, em «Eu e meus objetivos», a Gruta do amor, diz: uma larga escada exterior leva a ela; embaixo, a mulher do banheiro da vida num longo e estreito corredor, onde se acha igualmente uma propaganda de Camel. Duas crianças nos saúdam e tomam parte na vida; de uma mãe e do filho, resta, depois da deterioração, apenas uma parte. Objetos brilhantes e fissurados criam o ambiente. No centro, um casal de amantes se abraça: ele perdeu a cabeça, ela, os dois braços; ele tem entre suas pernas um imenso invólucro vazio. Acima do casal de amantes, a grande cabeça torcida da criança de olhos sifilíticos se erige contra uma grande precipitação. Em revanche, ela se reconcilia com a pequena garrafa redonda com a minha urina, na qual as sempre-vivas se decompõem.584

Neste trecho, que, por não se dispor de fotografias que forneçam uma imagem detalhada do conjunto, não se pode saber se corresponde ou não a uma descrição precisa da gruta em questão – tudo pode ser ficção, mas como, mesmo se for ficção, esta foi inventada pelo próprio criador da Merzbau; assim, pode nos servir para elucidá-la –, Schwitters menciona, primeiramente, a existência de duas crianças para, no momento seguinte, dizer que, da mãe e da criança, restaram somente uma parte, como se o grupo formado pela mãe e seus dois rebentos tivesse se estilhaçado. Talvez possamos depreender daí mais uma referência ao filho morto e ao terrível sentimento de perda que sobreveio ao infortúnio. O casal que ele descreve restou mutilado: ele não pode vê-la, ela não pode abraçá-lo. Não é mais possível amar. Para Dietrich, a Merzbau se revela

581

Maurizio Fagiolo dell’Arco, «“Merz” o dell’arte totale», L’Arte, 80 (1968), p. 25. Harald Szeemann, op. cit., p. 373. 583 Sigmund Freud, «Duelo y melancolia», Obras completas, vol. 2, p. 2098. 584 Kurt Schwitters, «Moi et mes objectifs», op. cit., p. 251. 582

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como «um monumento ao desejo interrompido».585 A morte do filho talvez seja o estopim de uma impossibilidade de realização do amor carnal e, ao mesmo tempo, o detonador de uma necessidade de se recorrer ao erotismo como uma forma de driblar a finitude do indivíduo, a morte, e garantir a sua continuidade. Para Georges Bataille, o que está sempre em questão no erotismo «é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda».586 Entretanto, esta busca por uma continuidade não se efetiva de modo tranqüilo: «O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas».587 O domínio do erotismo é, portanto, o domínio da violência. Na Merzbau, o erotismo se concretizava sempre próximo à morte e à destruição dos corpos, em especial dos corpos femininos. Mais uma vez Bataille: «É essencialmente a parte passiva, feminina, que é dissolvida enquanto ser constituído. Mas para um parceiro masculino a dissolução da parte passiva só tem um sentido: ela prepara uma fusão onde se misturam dois seres que ao final chegam juntos ao mesmo ponto de dissolução».588 E esta dissolução dos corpos assumia na Merzbau as feições de um circo de horrores, com sua pletora de aleijões. O casal da Gruta do amor estava mutilado. Os corpos brancos que Rudolf Jahns descrevia tinham apenas uma perna deformada («grossa, torta, em forma de S»589). Na Gruta do bordel, a suposta mulher representada (não há registros fotográficos desta) também se constituía como uma aberração, com suas três pernas. Até mesmo a Mona Lisa realizada por Hausmann teve o rosto deformado. Recordemos que havia ainda uma gruta dedicada ao assassinato por estupro (provavelmente uma referência a uma série de crimes do gênero ocorridos em Hannover em 1924), em que estranhas figuras de plástico estavam besuntadas com batom (segundo Käte T. Steinitz) ou molho de tomate (conforme Schwitters). Porém, como se coaduna o erotismo com o luto ao filho morto? Por um lado, a morte do filho não deixa de representar o fim da continuidade do ser: ao transmitir parte de sua carga genética ao filho, o indivíduo transmite, por tabela, uma parte de si, que continuará viva para além de sua morte (se a ordem natural das coisas – os pais morrerem depois dos filhos – não for alterada). Por outro, o erotismo proporciona a (ou 585

Dorothea Dietrich, op. cit., p. 205. Georges Bataille, O erotismo, p. 15. 587 Idem, p. 18. 588 Idem, O erotismo, p. 17. 589 Ver nota 31. 586

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pelo menos a ilusão de) continuidade: «o sentido fundamental da reprodução não constitui menos a chave do erotismo».590 O que parece se estabelecer na Merzbau é uma certa ritualização, por meio da qual se busca uma forma de permanência: uma suspensão no tempo presente de uma perda passada – por isso a necessidade de manter a obra em constante fluxo. É dentro desta lógica que poderíamos compreender também as outras grutas, que versam sobre a história, a política e a mitologia alemãs. Poderíamos entender o recolhimento, a limpeza e o armazenamento de detritos urbanos neste templo mais-que-profano como uma tentativa de legar a estas pequenas coisas – que representavam, de uma certa forma, uma civilização doente (lembremos sempre da situação alemã na época) – uma continuidade para além de sua descontinuidade intrínseca. Assim, no momento em que retirava os pedaços de uma civilização do seio do mundo exterior e os inseria no mundo diferenciado e atemporal da Merzbau, Schwitters estava promovendo uma espécie de salvação destes fragmentos; congelavaos num eterno presente. O mesmo mecanismo parecia orientar a constituição das grutas dos amigos: as recordações que tomava destes – como a parte que representa o todo – adquiriam, ao serem depositadas em espaços reservados de sua catedral, certa forma de eternidade. Por fim, os sítios dedicados a Goethe, a Frederick I, aos Nibelungos, à Adoração dos Heróis, ao Aposentado de Guerra, com suas pequenas «relíquias», seriam formas de tentar preservar uma identidade cultural alemã, mas sem cair no perigoso nacionalismo que se insurgia. A Merzbau se constituía, enfim, como uma tentativa de fornecer uma permanência a ela mesma. Destituída de Deus e sem esperança de se atingir uma transcendência, a arte aqui se ritualiza como uma maneira desesperada de buscar manter-se. No entanto, esta tentativa termina fracassada: a transcendência que proporciona também é, como em Mondrian e Malevitch, uma transcendência vazia. E não percamos de vista que a Merzbau se destrói no final. Para além do luto, talvez possamos pensá-la ainda como uma renovação bastante particular do potlatch, no qual o oficiante deste, Schwitters, passou a vida a acumular num lugar preservado a maior quantidade de «riquezas» que conseguiu angariar ao longo dos anos; riquezas estas que, ao fim, acabaram destruídas.

590

Georges Bataille, op. cit., p. 12.

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Fig. 41: O primeiro dia

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Fig. 42: Casa Merz

Fig. 44: Merzsãule, primeira versão

Fig. 43: Castelo e catedral com fonte no quintal

Fig. 45: Merzsâule, segunda versão

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Fig. 46: Detalhe da Merzbau

Fig. 47: Merzbau, vista do conjunto Janela azul

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Fig. 48: Merzbau, vista do Grande grupo ou Gruta do ouro

Fig. 49: Detalhe da redoma em que se acha urna cabeça de boneco

Fig. 50: Detalhe da Merzbau com Madona

Fig. 51: Detalhe da Gruta com corno de vaca, mostrando cabeça de boneco

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5 MARCEL DUCHAMP a. Rumo a La mariée mise à nu par ses célibataires, même591 De todos os artistas que estudamos aqui, Marcel Duchamp foi seguramente o que, com maior clareza, delimitou o fim de um modo de se pensar e produzir arte na modernidade e o início de um outro modo, que por vezes foi qualificado de antiarte. Esta proeminência, contudo, é melhor percebida se observarmos sua radicalidade em contraste com (mas ao mesmo tempo integrada a) aquela de Mondrian, Malevitch e Schwitters. Para Décio Pignatari, Duchamp e Mondrian, por caminhos diversos, acabaram por atingir um mesmo fim: «Pela via da destruição e do transbordamento dos códigos, Duchamp chegava ao mesmo ponto visado por Mondrian, que ia pela via da construção. Nos anos 60, a via Duchamp conduziria à pop art, enquanto a via Mondrian levaria à op art, uma paronomásia construtiva que, provavelmente, teria agradado a ambos».592 Segundo Andrei Nakov, a destruição consciente de uma convenção representativa, expressa em telas como o Quadrado negro de Malevitch, só pode ser comparada com o mesmo afã destrutivo encontrado na obra de Duchamp.593 Na introdução ao livro de Käte T. Steinitz sobre Schwitters, John Coplans e Walter Hopps – este último um estudioso também da obra de Duchamp – observam que estes dois artistas promoveram uma ruptura e expulsaram de vez do terreno da arte os materiais costumeiros e esperados: «Duchamp é o exemplo preeminente do revolucionário didático entre os artistas. Duchamp fez de cada um de seus trabalhos, passo a passo, uma lição especial. Nunca se repetindo, fez da inconsistência uma lei infringível. Antes de tudo, ele é um instigador de idéias essenciais na arte e é a fonte de muito o que veio depois».594 Como Mondrian, Malevitch e Schwitters, Duchamp foi propulsionado pelo cubismo. Talvez, em seu caso, não pudesse ter sido diferente. Primeiro, era francês de nascença, morava em seu país e, por isso, estava geograficamente mais próximo, em 591

Como creio ser o título parte integrante deste trabalho de Duchamp, como explicarei no item Texto e obra deste mesmo capítulo, e, por conter em si um trocadilho (o advérbio francês même, «mesmo» em português, soa como a frase m’aime, «me ama»), optei por mantê-lo em sua língua original. Uma possível tradução seria: A noiva posta a nu por seus celibatários, mesmo. 592 Décio Pignatari, Semiótica da arte e da arquitetura, p. 51. 593 Andrei Nakov, «Prologue», em Kasimir Malevitch, Écrits, p. 63. 594 John Coplans e Walter Hopps, «Introduction», em Käte T. Steinitz, Kurt Schwitters: A Portrait from Life, p. xiii.

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relação aos outros três artistas aqui estudados, às inovações artísticas que se operavam em Paris. Segundo, seus dois irmãos mais velhos, Jacques Villon e Raymond DuchampVillon, não demoraram a se tornar, respectivamente, pintor e escultor cubistas. Foi por meio deles e de seus amigos que Duchamp se familiarizou com as concepções do movimento. Entre 1910 e 1911, o artista freqüentava as reuniões de domingo promovidas por Jacques Villon em seu ateliê em Puteaux e as de terça-feira, na casa de Gleizes. Desses encontros, participavam, entre outros, La Fresnaye, Metzinger, Léger, Apollinaire, Henri-Martin Barzun, Ribemont-Dessaignes. Por estes anos, costumava passar ocasionalmente pela galeria Kahnweiler, conhecida por seu acervo cubista, e chegou a visitar o estúdio de Braque em Montmartre. Para completar o quadro da época, em 1911, o Salão dos Independentes, do qual participava desde 1909, lançou definitivamente o cubismo como um movimento. Duchamp não ficou insensível às novas motivações estilísticas, mas também não recebeu o cubismo como uma profecia: para o artista, este funcionou como uma espécie de degrau de onde lhe foi possível enxergar mais longe. Seu cubismo – se é que podemos tachá-lo desta forma – foi discreto e durou muito pouco, apenas alguns meses do ano de 1911. Talvez a tela deste período que mais evidencie um caráter cubista seja Retrato de jogadores de xadrez, na qual Duchamp superpôs as imagens facetadas de dois jogadores de xadrez às próprias peças do jogo. «Depois de Retrato de jogadores de xadrez, cada nova pintura de Duchamp é um passo numa progressão única. Ele não se repete e não presta muita atenção para o que seus contemporâneos estão fazendo. É neste ponto que Duchamp, emergindo da sombra de seus irmãos, torna-se uma figura significante na arte moderna», analisa Calvin Tomkins.595 Com Sonata (1911), realizada alguns meses antes de Retrato de jogadores de xadrez, Duchamp marcou uma mudança estilística em sua carreira. Nele, figuram suas três irmãs numa apresentação musical: Yvonne toca piano, Magdeleine, violino, e Suzanne encontra-se sentada em frente a elas, enquanto a mãe ouve a música em pé, ao fundo. As tonalidades pálidas e suaves da tela lembram as de seu irmão Jacques Villon. Pintada no mesmo ano que Sonata, Dulcinéia esboça uma nascente preocupação de Duchamp em representar o movimento. Neste quadro, vemos uma mesma mulher em cinco situações e posições diversas. O

595

Calvin Tomkins, Duchamp: A Biography, p. 75.

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objetivo desse experimento, segundo o próprio artista, era «desteorizar o cubismo, para dar a ele uma interpretação mais livre».596 Entre novembro de 1911 e janeiro de 1912, Duchamp, com quatro quadros, apontava para duas direções. Por um lado, Moinho de café, feito sob a encomenda de seu irmão Raymond Duchamp-Villon, que queria um quadro para pendurar na cozinha de sua nova casa, antecipava as representações de pequenas máquinas, que apareceriam em trabalhos de 1914 e na parte inferior do La mariée mise à nu par ses célibataires, même. Por outro, Jovem triste num trem e os dois Nu descendo uma escada – nº 1 e nº 2 encaminhavam o cubismo para o seu colapso ao inserir o movimento como um elemento central. Com Jovem triste num trem, pintado em dezembro de 1911, Duchamp queria provocar a ilusão de dois movimentos distintos: o do trem e o do jovem que se desloca pelos corredores. Esclarece o artista: Depois há a deformação do homem que eu chamei de «paralelismo elementar». Era uma decomposição formal, quer dizer, em lâminas lineares que se seguem como paralelas e deformam o objeto. O objeto é completamente distendido, como se fosse elástico. As linhas seguem paralelamente, enquanto mudam sutilmente para formar o movimento ou a forma em questão.597

Porém, o que vemos parece ser tão somente o deslocamento do jovem, depreendido da massa de traços que perfazem uma zona mais clara, ocupando o centro de um fundo escuro. O mesmo procedimento era empregado nos dois Nu descendo uma escada, um de dezembro de 1911 e o outro de 1912 (ainda houve um terceiro, realizado em 1916). Para Tomkins, «nenhuma pintura na história jamais foi tão ofuscada pelo seu título». E acrescenta: Por duzentos anos, o nu funcionou não somente como um assunto na arte, mas também como uma forma de arte, e como tal sempre seguiu convenções estabelecidas. Nus, se masculinos, posavam heroicamente, representavam proezas de força, mortos em combate e simbolizavam autoridade divina ou secular; se femininos, reclinavam-se, banhavam-se, dividiam líquidos em vasos e (como cariátides) sustentavam tetos. Eles não se moviam, e certamente não desciam degraus de escadas.598

596

Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, Marcel Duchamp: Engenheiro do tempo perdido, p. 45. 597 Idem, p. 47. 598 Calvin Tomkins, op. cit., pp. 79 e 80 respectivamente.

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Com o Nu..., Duchamp introduziu a ironia em sua arte. «Fazer um nu diferente do clássico, deitado, em pé, e colocá-lo em movimento. Havia ali alguma coisa de engraçado, que não era tão engraçado quando eu o fiz.»599 E era com ironia que passava a responder às perguntas que lhe dirigiam, conforme atesta Nixola Greeley-Smith, que o entrevistou em 1916: O autor me disse, na semana passada, que o Nu descendo uma escada não é uma mulher, e tampouco um homem. «É uma mulher?», repetiu, jovem mas já muito cansado da vida, o artista francês com um olhar de tédio indescritível que lhe invejei porque raramente tenho coragem de manifestar o tédio que experimento. «Não. É um homem? Não. Para dizer a verdade não havia pensado nisso. E por que deveria? As minhas pinturas não representam objetos mas abstrações».600

A partir dos dois Nu descendo uma escada, de Jovem triste num trem e de Moinho de café, Duchamp começava a demonstrar uma preocupação voltada para além da forma, para a idéia subjacente à pintura, ou, nas suas próprias palavras, para as «abstrações» expressas em seus quadros. O Nu descendo uma escada, conforme o próprio Duchamp, «é uma abstração do movimento».601 O artista criava aí uma imagem estática do movimento: «o movimento é uma abstração, uma dedução articulada no interior da pintura, sem que se saiba se uma personagem real desce ou não uma escada igualmente real. No fundo, o movimento é o olho do espectador que o incorpora ao quadro».602 Por inserir o movimento em seu quadro num momento em que já havia sido publicado o primeiro manifesto futurista, pode-se imaginar que Duchamp tenha sentido a influência deste grupo de artistas. No entanto, Duchamp negou, reiteradas vezes, que tivesse conhecimento do que os jovens pintores produziam na Itália. Conforme comentou anos mais tarde: Os futuristas montaram a sua exposição na Galeria Bernheim Jeune em janeiro de 1912. Eu estava pintando o Nu neste mesmo tempo. O esboço a óleo para ele, entretanto, já havia sido feito em 1911. É verdade que eu conhecia Severini. Mas eu estava trabalhando por mim mesmo naquela época – ou melhor, com os meus irmãos.603

599

Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 50. Marcel Duchamp em entrevista a Nixola Greeley-Smith, «Cubista rappresenta l’amore in rame e vetro», originalmente publicado no The Evening World, 4 abr. 1916, reproduzido por Arturo Schwarz, Almanacco Dada, p. 56. 601 Idem, p. 56. 602 Pierre Cabanne, op. cit., p. 50. 603 Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», reproduzido por Michel Sanouillet e Elmer Petersen, The Writings of Marcel Duchamp, p. 124. Sobre este assunto, ver ainda Pierre Cabanne, 600

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Segundo Robert Lebel, o primeiro a escrever uma alentada monografia sobre o artista, o Nu... não se parece com o futurismo nem em sua forma: Morfologicamente, todavia, o Nu não se aparenta ao futurismo com o qual Duchamp jamais teve contato. Ele se separa daqueles sem equívoco pela introdução de um elemento irônico e, substituindo o elã vitalista que caracteriza os italianos pela linha depreciativa da escada que deve descer o Nu cujo título somente, sabe-se, é, para um futurista, inadmissível.604

Se quer-se traçar uma ascendência para o Nu..., talvez fosse mais sensato recorrer às cronofotografias, tão em voga naquele período e com as quais Duchamp não só estava familiarizado como assumia a sua influência.605 O movimento de descida do nu, forjado a partir da representação de um mesmo corpo (quase uma máquina) em sucessivos momentos, lembra bastante os experimentos de Marey e Muybridge. É até mesmo curioso notar como Duchamp reproduziu no Nu..., em pintura portanto, uma mesma seqüência de pontos que se observa neste tipo de fotografia: o modelo costumava segurar tochas para que ficassem registrados, a partir da luz, os movimentos de seus braços.606 Outra fonte de inspiração confessa era o poeta Jules Laforgue, de quem alguns poemas foram ilustrados por Duchamp. Uma destas ilustrações, um desenho para Encore à ce astre, mostra uma figura nua subindo uma escada. Já neste desenho, as formas do nu deixavam de ser humanas e se tornavam algo muito próximo a uma máquina: seus membros e seu torso pareciam revestidos por uma armadura. Pela sua ousadia, o Nu... foi recusado no Salão dos Independentes: sua aparência chocou Gleizes e Metzinger, que pediram aos irmãos de Duchamp que conversassem com este para que retirasse o quadro. Indignado, Duchamp desligou-se da sociedade. Sua tela acabou exposta pela primeira vez na Galeria Dalmau, em Barcelona, entre obras cubistas. Depois, esteve presente na exposição da Seção de Ouro, da qual Villon era o promotor. Mas foi do outro lado do Atlântico, em Nova York, que seu quadro causou o maior escândalo, quando exposto no Armory Show em 1913. Filas de espectadores se aglomeraram em frente ao que talvez considerassem um ataque ao bom gosto. O American Art News ofereceu dez dólares à melhor explicação para a pintura, e op. cit., p. 46: «Neste momento não me ocupava dessas coisas. E mais, a Itália estava longe. A palavra “futurismo”, aliás, me atraía muito pouco». 604 Robert Lebel, Sur Marcel Duchamp, pp. 8-9. 605 Ver Pierre Cabanne, op. cit., p. 56; e Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 124. 606 Ver John Golding, Marcel Duchamp: The Bride Stripped Bare by her Bachelors, Even, p. 23.

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o Evening Sun publicou uma charge intitulada «Rude Descending a Staircase» (trocadilho com as palavras nude, «nu», e rude, «rude, grosseiro»). Em função de toda publicidade – mesmo negativa –, Duchamp se tornou famoso nos Estados Unidos, o que facilitou a sua chegada a este país dois anos depois, em 1915. Depois do Nu..., o artista decidiu que queria livrar-se «de todas as influências sob as quais estava»: «Eu fiz o que pude com o cubismo, mas agora era hora de mudar. Era sempre a idéia de mudar, de não me repetir. Eu poderia ter feito dez outros nus naquela época se quisesse. Mas o fato é que eu não queria».607 Ainda em 1912, depois do Nu..., Duchamp realizou três outras pinturas: O rei e a rainha cercados por nus velozes, de maio, A passagem da virgem para a noiva e Noiva. Estas duas últimas foram feitas entre julho e agosto, quando Duchamp estava morando em Munique. Todas elas levam ao extremo as experimentações formais do Nu; desta vez, não só abstraindo quase que por completo as figuras, como também transformando os personagens em máquinas. Com estas três telas quase abstratas e mais duas versões diferentes e bastante realistas para um Moedor de chocolate, uma de 1913 e a outra de 1914, Duchamp despedia-se da pintura de cavalete e preparava-se para começar um grande projeto que o manteria ocupado por oito anos: La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou Grande vidro (fig. 52). Como veremos a seguir, as figuras representadas no grupo de telas quase abstratas – principalmente A passagem da virgem para a noiva e Noiva – apareceriam na metade superior do vidro, enquanto a imagem do moedor de chocolate dominaria a metade inferior. A partir de então, Duchamp dedicava-se inteiramente a estudos preliminares para o Grande vidro, em desenho sobre papel e mesmo em vidro, no qual representava isoladamente elementos que deveriam pertencer posteriormente ao conjunto. Foi nesta época que desistiu da arte: Apenas o Grande vidro me interessava e não era o caso, evidentemente, de expor os primeiros ensaios. Queria me desligar de toda obrigação material e comecei uma carreira de bibliotecário, que era uma espécie de desculpa social para não ser mais obrigado a me

607

Marcel Duchamp em entrevista a James Johnson Sweeney, reproduzida por Michel Sanouillet e Elmer Petersen, op. cit., p. 130.

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manifestar. Deste ponto de vista, era uma decisão bem clara. Não queria fazer pintura, nem vendê-la, além disso, havia um trabalho diante de mim que levaria muitos anos.608

A firme determinação de não querer mais fazer pintura para vender conduziu Duchamp a dois caminhos que, à primeira vista, podem parecer diversos. Por um lado, como o artista mesmo declarou, começou a elaborar e erigir o Grande vidro, que consumiu seu tempo entre os anos de 1915 – quando trocou Paris por Nova York – e 1923, quando deixou seu trabalho propositalmente inacabado e foi se tornar jogador oficial de xadrez. Por outro, no dia do ano de 1913 em que virou uma roda de bicicleta em cima de um banquinho de madeira, em sua casa em Paris, simplesmente para observar o seu movimento, encontrou ainda uma outra forma de expressão: passou a se apropriar de objetos manufaturados, retirando-os de seus contextos originais e colocando-os, primeiro em sua casa, em contextos completamente diferentes, criando, com este procedimento, um abismo entre o significante e o significado do objeto, como bem observa Lévi-Strauss em entrevista a Georges Charbonnier: O escorredor na adega é com efeito um significante de um certo significado; dito de outra forma, é um aparelho que serve para escorrer as garrafas. Se colocá-lo sobre uma lareira na sala, é claro que você dissocia, que faz explodir, a relação significado e significante... (...) Você operou então, se me permite uma fórmula pretensiosa, um novo reajuste da relação entre significante e significado, um reajuste que estava no domínio do possível mas que não estava abertamente realizado na situação primitiva do objeto. Você faz então, em certo sentido, obra de conhecimento, descobre nesse objeto propriedades latentes, mas que não eram perceptíveis no contexto inicial; é o que faz o poeta cada vez que emprega uma palavra ou dá a uma frase uma conotação que foge do habitual.609

Com esta manobra de deslocamento do contexto original, o readymade acaba por assumir um significado autônomo, de tal maneira que os observadores são convidados a esquecer seu significado original – ou seja, seu uso e sua finalidade – e a consideraremno como uma realidade em si. À Roda de bicicleta, seguiram-se Porta-garrafas (1914), comprado no Bazar do Hotel de Ville, em Paris; Farmácia (1914), no qual pintou dois pontos sobre uma reprodução gráfica de uma paisagem; Na eminência de um braço quebrado (1915), pá adquirida numa loja em Nova York; Pente (1916), um velho artigo para cachorros; 608

Marcel Duchamp em conversa com Gianfranco Baruchello, artista italiano que teve a oportunidade de conviver com Duchamp na década de 1960. Ver Gianfranco Baruchello, Why Duchamp: An Essay on Aesthetic Impact, pp. 68-69. 609 Claude Lévi-Strauss em entrevista a Georges Charbonnier, Arte, linguagem, etnologia: entrevistas com Claude Lévi-Strauss, pp. 82-83.

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Porta-chapéus (1917), entre outros. Em 1916, dois de seus readymades foram expostos publicamente, pela primeira vez, na Galeria Bourgeois, figurando no catálogo como «esculturas». Um ano depois, em 1917, Duchamp desafiou o júri, do qual fazia parte, ao enviar para a exposição anual da Sociedade dos Artistas Independentes um mictório de porcelana, com a assinatura R. Mutt e o título Fonte. Esta exposição tinha como princípio aceitar qualquer obra de arte desde que seu autor se dispusesse a pagar a taxa de inscrição de seis dólares. Sua Fonte foi rejeitada, e o artista publicou anonimamente uma nota em defesa do suposto R. Mutt – Mott Works era o nome de uma empresa de artigos sanitários – na revista The Blind Man, que editava na época com Man Ray. Com seu gesto, Duchamp punha em discussão toda a forma de representação artística que havia rejeitado anos antes. Observa Jindrich Chalupecký: Ao apresentar a Fonte, Duchamp não procurava ser aceito pelo «mundo da arte». Sua Fonte era, ao contrário, uma manifestação aberta de desacordo com este «mundo da arte», desacordo que punha mesmo em causa esta parte do «mundo da arte» que, na época, estava a mais afastada das convenções estabelecidas. Fonte não tinha lugar em qualquer exposição, mesmo naquela dos Independentes radicais; não a expuseram. Mas o envio de Duchamp tinha apenas uma só e única significação: se distanciar do «mundo da arte».610

Embora estes dois rumos que toma a atividade artística de Duchamp tenham sido vistos como paradoxais,611 parece-me que ambos respondem a um mesmo impulso: afrontar os padrões tradicionais da arte, o que se traduz, em termos duchampianos, numa repulsa ao que denomina «pintura retiniana». Em 1946, declarou: Eu queria fugir do aspecto físico da pintura. Eu estava muito mais interessado em recriar idéias na pintura. (...) Eu estava interessado em fazer com que a pintura servisse a meu propósito, e em fugir da fisicalidade da pintura. Para mim, Courbet havia introduzido a ênfase física no século XIX. Eu estava interessado em idéias – não meramente em produtos visuais. Eu queria colocar a pintura, mais uma vez, a serviço da mente. (...) De fato, até os últimos cem anos, toda pintura era literária ou religiosa: toda ela estava a serviço da mente. Esta característica foi perdida pouco a pouco durante o último século.612

Sua meta era retomar, portanto, de uma forma nova, a antiga concepção de Da Vinci da pintura como cosa mentale. Talvez seu primeiro trabalho exemplar nesse sentido – quiçá o mais conceitual deles – tenha sido 3 Stoppages étalon (1913-1914): um misto de

610

Jindrich Chalupecký, «Art et transcendance», compilado por Jean Clair, Marcel Duchamp: tradition de la rupture ou rupture de la tradition?, p. 12. 611 Ver John Golding, op. cit., p. 55. 612 Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 125.

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readymade e produção artesanal.613 Nesta peça, Duchamp tomou três telas retangulares e pintou-as totalmente de azul. Depois, deixou cair um fio em cima de cada uma destas telas, conforme havia indicado numa nota manuscrita, posteriormente publicada: – Si un fil droit horizontal d’un mètre de longueur tombe d’un mètre de hauteur sur un plan horizontal en se déformant à son gré et donne une figure nouvelle de l’unité de longueur. – 3 exemplaires obtenus dans des conditions à peu près semblable: dans leur considération chacun à chacun sont une reconstitution approchée de l’unité de longueur. Les 3 stoppages étalon sont le mètre diminué.614

É interessante ressaltar como, para explicar o que tinha em mente, Duchamp recorre a um paralelo com a pintura religiosa, compreendendo esta como um tipo de pintura cujo princípio seria análogo à espécie de arte que estava colocando em curso. A diferença era óbvia: enquanto a pintura religiosa procurava expressar o divino, a arte mental que Duchamp proclamava não tinha esta finalidade. eu creio que há uma diferença entre a pintura que se dirige somente, em primeiro lugar, à retina e à impressão retiniana para chegar a um julgamento sobre esta pintura, e uma pintura que vai mais longe que a retina, que se serve do tubo de tinta como meio de ir mais longe, este seria o caso dos religiosos da Renascença. O tubo de tinta não lhes interessava, o que lhes interessava era exprimir suas idéias da divindade de um modo ou de outro, sob a forma de uma Virgem ou de outra. Então, sem refazer a mesma coisa, há esta idéia, minha em todo caso, de que a pintura pura por ela mesma, não é interessante, em si, como propósito. A pintura é um meio que justifica o fim. O fim é outro. Para mim, o fim é uma combinação ou, ao menos, uma expressão que só a matéria cinzenta pode chegar a dar. Você me dirá que a matéria cinzenta não quer dizer nada, é um pouco uma escolha de termos difíceis, mas é para fazer compreender minha idéia que eu não me detenho na pintura simplesmente física.615

Justifica ainda Duchamp: «quando eu fiz este Vidro, minha intenção era não fazer uma pintura para olhar, mas uma pintura onde eu me servia do tubo de tinta para exprimir

613

O próprio Duchamp considerava esta obra como pioneira nesta direção nova que perseguia: «Em si mesma [3 Stoppages étalon] não era uma obra de arte importante, mas para mim abriu o caminho – o caminho para escapar daqueles métodos tradicionais de expressão por muito tempo associados com arte. Eu não o percebi no momento exato que tinha topado com ela. Quando você dá uma batidinha em alguma coisa, nem sempre reconhece o som. (...) Para mim, 3 Stoppages étalon foi o primeiro gesto me liberando do passado» (relatado a Katherine Kuh e reproduzido por Arturo Schwarz, The Complete Works of Marcel Duchamp, pp. 128-129). 614 Marcel Duchamp, «La boîte de 1914», Duchamp du signe, p. 36. O início desta nota foi repetido ipsis litteris em «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 50. Possível tradução: – Se um fio reto horizontal de um metro de comprimento cai de um metro de altura sobre um plano horizontal deformando-se a seu bel-prazer e forma uma figura nova da unidade de comprimento. / – 3 exemplares obtidos em condições mais ou menos semelhantes: em consideração um ao outro são uma reconstituição aproximada da unidade de comprimento. / Os 3 stoppages padrão são o metro diminuído. 615 Marcel Duchamp em entrevista a Alain Jouffroy, Marcel Duchamp: rencontre, pp. 30-31.

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uma idéia».616 Assim, Duchamp decretava o fim da noção de contemplação de uma obra de arte. O readymade não deve ser olhado, no fundo. Ele está lá, simplesmente. Percebe-se pelos olhos que ele existe. Mas não o contemplamos como se contempla um quadro. A idéia de contemplação desaparece completamente. Simplesmente nota-se que é um porta-garrafas, ou que era um porta-garrafas que mudou de destinação.617

Desta forma, não é a questão visual do ready-made que conta, é o fato mesmo de que ele existe. Ele pode existir na sua memória. Você não precisaria olhá-lo para entrar no domínio do ready-made. (...) Não há mais questão de visualidade: o ready-made não é mais visível, por assim dizer. Ele é completamente matéria cinzenta.618

No momento em que seus trabalhos passam a se constituir como pura «matéria cinzenta», eles terminam por exigir uma igual carga de «matéria cinzenta» do espectador. Não se trata mais de contemplação mas de algo próximo à decifração. É desta maneira que Duchamp convoca o observador a participar de seus trabalhos. Vimos, na primeira parte deste livro, como as manifestações artísticas dos mais diversos movimentos do início do século XX não só contavam com a participação do público como o obrigavam a tomar parte ativa em suas atividades por meio da provocação. Em Duchamp, como, de uma certa forma, também em Mondrian e Malevitch – afinal, como espero ter demonstrado, a pintura de ambos não se esgota numa apreciação retiniana – ,619 o espectador se vê igualmente constrangido a participar e a reagir. No entanto, esta participação e esta reação, em Duchamp, não se dão apenas fisicamente, como exigem o Grande vidro e sua obra tardia Étant donnés, mas principalmente por meio de uma ação pura do pensamento. Na Merzbau de Schwitters, por outro lado, a participação é prioritariamente física. Na verdade, torna-se até mesmo estranho falar em espectador quando o que se constitui ali está mais próximo de um visitante, convidado a penetrar e experimentar uma estranha construção que não pode ser reduzida a uma peça de arquitetura. 616

Idem, p. 28. Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, realizada em 21 de junho de 1967, em Paris, reproduzida em Marcel Duchamp parle des ready-made, p. 14. 618 Idem, p. 18. 619 Alain Jouffroy lembra que, numa entrevista concedida em 1954, o próprio Duchamp teria isentado Mondrian e Seurat de sua crítica aos pintores fauves, cubistas e abstratos com preocupações puramente sensoriais (Op.cit., pp. 29-30). 617

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Não deixa de ser curioso que a extrema racionalidade que se acha no fundamento desta arte – tanto de Duchamp quanto de Schwitters – se manifeste como ilógica, casual e, por vezes, irracional, sendo esta manifestação resultado de uma série de ações associadas cuja estrutura se assemelha àquela dos rituais primitivos – e, lembro mais uma vez, é a isto que denomino dimensão ritual. Em Duchamp, esta dimensão se encontra de forma reduzida nas ações de escolha de um objeto e deslocamento deste de seu contexto original, no caso dos readymades, e de forma complexa na elaboração e exibição do Grande vidro. Em função disso, sugiro que nos detenhamos no exame mais fundo de La mariée mise à nu par ses célibataires, même, porém sem eliminarmos a possibilidade de relacionar sua lógica de construção – que é o que realmente nos importa aqui – à dos readymades. Partamos, então, ao vidro.

b. Obra sem fim La mariée mise à nu par ses célibataires, même faz jus a seu codinome, Grande vidro: compõe-se de duas placas de vidro duplo sobrepostas totalizando 2m75cm de altura por 1m73cm de largura. Em seu verso, nas costas do Moedor de chocolate, Duchamp escreveu: La mariée mise à nu par ses célibataires, même Marcel Duchamp 1915-1923 – inachevé – cassé 1931 – reparé 1936620

Ao contrário da Merzbau de Schwitters, que era por princípio inacabável, o Grande vidro foi propositalmente abandonado sem ter sido terminado, como outro grande quadro do século XX, Les demoiselles d’Avignon, de Picasso. Duchamp alegou tédio como motivo da sua desistência: «Você sabe como é continuar qualquer coisa depois de oito anos. É a monotonia... Você tem que ser muito forte».621 Porém, para além do tédio, o impulso que o levou a renunciar à finalização daquela que foi, sem dúvida, a sua maior obra – comparável apenas a Étant donnés. 1º la chute d’eau. 2º le gaz d’éclairage, exibida postumamente – talvez provenha de uma resistência em legar a seu 620 621

Ver Arturo Schwarz, op. cit., p. 701. Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 116.

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trabalho uma forma fixa. Nisto estamos de acordo com John Golding: «é como se ele também se sentisse relutante em congelá-lo num fim e sentisse que algo do mistério e da vitalidade da peça desapareceria (para ele, pelo menos) se realizasse o seu plano ao pé da letra».622 E o próprio Duchamp induziu a uma leitura como esta quando comentou com Walter Hopps: «algumas vezes, na coisa inacabada, há mais, há ainda mais calor, que você não muda ou que você não encerra ou aperfeiçoa no produto final».623 Ao permanecer inacabado, o vidro continua virtualmente em fluxo, não encerrando jamais o seu processo. É como se o seu não-encerramento permitisse que a obra se mantivesse sempre viva, sempre ativa, em caráter de eterna suspensão do tempo. Já dizia Maurizio Calvesi, num exaustivo volume sobre o Grande vidro, que este trabalho se projeta para fora de si, «se projeta e se prolonga no tempo, na vida e na obra de Marcel Duchamp».624 Pintadas a óleo e em folhas de cobre e de prata, as figuras que este trabalho apresenta não são imediatamente reconhecíveis. Boa parte de sua identificação se deve, principalmente, ao conjunto de notas e desenhos preliminares, publicado em 1934 (e sobre o qual falarei em seguida), com o mesmo título do vidro: La mariée mise à nu par ses célibataires, même. Quem, contudo, teve a oportunidade de ver a peça na exposição internacional de 1926 no Museu do Brooklin, quando não se dispunham das notas, deparou com um grupo de figuras estranhas, sobre as quais poderia ter aventado algumas hipóteses. Um visitante da exposição do Brooklin reconheceria, na parte de cima, uma nuvem sobre a qual foram afixadas três placas. No lado esquerdo, veria uma representação de um ser em forma de um animal-máquina, que parecia estar suspenso num canto da nuvem. Pelo título e, se estivesse familiarizado com a obra de Duchamp, pela semelhança de traços entre o vidro e quadros anteriores, como A passagem da virgem à noiva e A noiva, poderia supor que o animal-máquina fazia as vezes da noiva, uma noiva que parecia não ter braços, mas patas. Das suas pernas-patas, o visitante notaria que pendia algo comprido e pontudo – um véu? – em direção à parte inferior do vidro e que a noiva não estava voltada para baixo, onde ficavam os celibatários, mas para cima. Ainda na parte superior, no canto direito, poderia divisar nove pontos. Perceberia que a parte inferior é a que contém um maior número de elementos. 622

John Golding, op. cit., p. 79. Marcel Duchamp citado por Calvin Tomkins, The Bride and the Bachelors, p. 38. 624 Maurizio Calvesi, Duchamp invisibile: la costruzione del simbolo, p. 262. 623

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Deduziria que aquelas nove figuras incomuns fossem os celibatários a que se referia o título do trabalho. Notaria que estes se acham atrás de uma estrutura no meio da qual se encontra um moinho d’água. No centro desta parte inferior do vidro, levemente maior que a superior, nosso visitante imaginário, se acompanhasse o trabalho de Duchamp, reconheceria o moedor de chocolate, representado em duas telas entre 1913 e 1914. Observaria ainda que este está ligado, por uma haste vertical, a duas outras hastes horizontais dispostas em cruz, cujas extremidades encontram-se presas aos lados da estrutura. Em torno destas hastes, veria sete cones dispostos em semi-círculo. Do primeiro deles, se os considerarmos organizados no sentido horário, saem fios que se ligam ao que deveria ser a cabeça dos celibatários, como se estes estivessem pendurados num varal. Por fim, o visitante possivelmente ficaria ainda mais intrigado com os estranhos desenhos na extrema direita, tão parecidos com as figuras que se vêem em tratados de ótica. Se permanecesse mais um tempo frente ao misterioso trabalho de Duchamp, nosso visitante poderia ainda verificar que, apesar de estático, o vidro sugere um movimento interno por meio dos mecanismos apresentados – o moinho d’água e o moedor de chocolate – e pela disposição dos cones, que dão a impressão de estarem se movendo da esquerda para a direita. E, quando o visitante tivesse, oito anos depois, acesso às notas manuscritas, contendo mais detalhes sobre esta peça, que não é uma escultura, mas também não é mais somente uma pintura, constataria que La mariée... realmente foi pensada como um mecanismo – o que reforça ainda mais a impressão de que está sempre em processo.

c. Texto e obra Realmente, uma identificação completa dos elementos contidos no Grande vidro depende da leitura das notas que compõem La mariée mise à nu par ses célibataires, même, também chamada de Caixa verde. É nesta que as figuras adquirem nomes e funções. Entretanto, elas não se constituem como um simples manual de instrução. Seu conteúdo, por vezes, complica mais do que explica a estrutura em vidro, como, aliás, na maior parte das relações que Duchamp estabelece entre imagem e palavra em suas obras.

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Vimos que os textos de Mondrian e Malevitch explicitavam uma aspiração a se atingir o absoluto por meio das formas puras e que os de Schwitters expressavam um anseio de retornar a um estado primordial ou natural. Tanto aqueles quanto estes assumiam a forma de artigos ou manifestos, cuja finalidade não era outra que expor as intenções subjacentes a suas respectivas obras e as pretensões a se alcançar com elas. Em síntese, estes textos funcionavam como um aporte teórico-explicativo dos trabalhos. Em Duchamp, o texto e a obra não se relacionam da mesma maneira. E, de todos os quatro artistas aqui estudados, foi ele quem estreitou mais os vínculos entre a imagem e a palavra. Nem mesmo Schwitters, que era também poeta e escritor, construiu uma relação tão intrínseca – e tão dependente – entre o visual e o verbal. Quando incluía recortes de palavras ou frases extraídas dos jornais em suas obras, estas não fingiam ser uma legenda – como veremos ser o caso de alguns trabalhos de Duchamp –, mas pareciam estar a serviço da forma, da estrutura geral da composição, como se fossem mais uma ilustração. Em Duchamp, a relação se complexifica. Não por acaso a inspiração para o Nu descendo uma escada originou-se de um poema e a real virada na sua carreira, a passagem do «cubismo» ao Grande vidro e aos readymades, se deu por influência não de um artista plástico, mas de um escritor: «Eu achava que, como pintor, era muito melhor ser influenciado por um escritor do que por outro pintor».625 Em mais de uma entrevista e depoimento, Duchamp afirmou que devia a mudança na sua concepção artística à apresentação de Impression d’Afrique, peça de Raymond Roussel, que assistiu em 1912, na companhia de Apollinaire.626 Provavelmente inspirado no processo de escrita de Roussel – a quem passou a admirar pela sua «imaginação delirante»627 –, baseado no trocadilho oriundo da homofonia entre palavras de significados distintos, Duchamp aprendeu a conciliar o inconciliável a partir de um único traço em comum, como se pode ver tanto em suas brincadeiras verbais – por exemplo, a inscrição aposta a uma reprodução de uma Mona Lisa, sobre a qual acrescentou ainda bigode e barbicha, L.H.O.O.Q, em francês «elle a chaud au cul»; em português, algo como «ela tem fogo no rabo» –, quanto visuais – os pesados cubos de

625

Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 126. Declarou Duchamp, em 1946, em entrevista a James Johnson Sweeney: «Foi fundamentalmente Roussel o responsável pelo meu vidro, La mariée mise à nu par ses celibataires, même. Do seu Impression d’Afrique, eu tomei a abordagem geral. Esta sua peça, que eu vi com Apollinaire, me ajudou muito, por um lado, a minha expressão» («The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 126). 627 Marcel Duchamp, «The Great Trouble with Art in this Country», op. cit., p. 126 626

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mármore fingindo serem leves torrões de açúcar no curioso Why Not Sneeze Rose Sélavy? (1921). Além de Roussel, Duchamp constantemente citava outros escritores pelos quais declarava simpatia: «Minha biblioteca ideal conteria todos os escritos de Roussel – [Jean-Pierre] Brisset, talvez Lautréamont e Mallarmé».628 Na opinião de Golding, o artista «sentia uma maior afinidade com a literatura do que com a pintura».629 E talvez por isso seu Grande vidro tenha suscitado comparações com obras literárias: Octavio Paz, num dos melhores ensaios sobre o artista, relaciona o vidro a Un coup des dès, o mais longo e revolucionário poema de Mallarmé; e Tomkins o aproxima a Finnegans Wake, o último e mais original livro de James Joyce.630 Para Golding ainda, seria justo dizer que a suprema contribuição de Duchamp para a arte do primeiro quartel do século XX jaz no fato de que, numa maior proporção que seus colegas, ele manteve vivo o diálogo bastante frutuoso entre a literatura e as artes visuais que havia animado tanto a pintura do século XIX francês e a que a maioria de seus colegas fechara tacitamente a porta quando eles reconheceram a supremacia de Cézanne, o mais puramente visual dos maiores pós-impressionistas e o artista mais formalmente desafiador de todo o século XIX.631

O próprio Duchamp assumia que a relação entre a palavra e a imagem era «muito importante» para ele. Um título ou uma frase acrescentada a um readymade, por exemplo, era como um elemento a mais justaposto ao trabalho, como uma «cor verbal»: «o que se faz é acrescentar uma dimensão dada pelas palavras que são como uma paleta com as cores. Coloca-se uma cor a mais, as cores verbais».632 Muitos dos readymades 628

Idem, p. 126. Marc Décimo publicou um interessante volume em que lista os prováveis livros da biblioteca de Duchamp. Segundo a relação de Décimo, entre obras de arte, catálogos de exposição, encontrar-se-ia na biblioteca do artista um grande número de obras de literatura, de Dante a Mallarmé, de Dostoievsky a Nabokov, de Shakespeare a Jarry (ver La bibliothèque de Marcel Duchamp, peut-être, pp. 83-155). 629 John Golding, op. cit., p. 27. 630 Octavio Paz: «O antecedente direto de Duchamp não está na pintura, mas na poesia: Mallarmé. A obra gêmea do Grande vidro é Un coup de dés. (...) A parecença entre ambos artistas não provém de que os dois mostram preocupações intelectuais em suas obras, senão em seu radicalismo: um é o poeta e o outro o pintor da Idéia. Os dois enfrentam a mesma dificuldade: no mundo moderno, não há idéia senão crítica. Mas nenhum dos dois se refugia no ceticismo ou na negação. Para o poeta, o acaso absorve o absurdo; é um disparo ao absoluto e que, em suas mudanças e combinações, manifesta ou projeta o absoluto mesmo. É esse número em perpétuo movimento que roda desde o princípio até o fim do poema e que se resolve em quiçá uma constelação, inacabável cômpito total em formação. O papel que desempenha o acaso no universo de Mallarmé, o assume o humor, a meta-ironia, no de Duchamp. O tema do quadro e do poema é a crítica, a Idéia que sem cessar destrói a si mesma e sem cessar se renova» (Aparencia desnuda, compilado no volume 6 das obras completas, Los privilegios de la vista I: Arte moderno universal, p. 181). Calvin Tomkins: «O Grande vidro coloca-se em relação à pintura como Finnegans Wake o faz para a literatura, isolados e inimitáveis» (The Bride and the Bachelors, p. 28). 631 John Golding, op. cit., pp. 27-28. 632 Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., p. 19.

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de Duchamp vinham seguidos de um texto, em forma de título, inscrição, frase. Assim, o postal com a reprodução da Mona Lisa barbuda portava o já citado dito «L.H.O.O.Q.». O Pente (1916) trazia escrita em letras brancas, na sua lateral, a frase desconexa «3 ou 4 gouttes de hauteur n’ont rien a faire avec la sauvagerie», em tradução literal «3 ou 4 gotas de altura não têm nada a ver com selvageria». Em Apolinère enameled (1916-1917), tomando uma peça de propaganda como base, Duchamp alterou o nome da marca «Sapolin paints», retirando uma letra aqui e acrescentando outra acolá, e transformou-a em «Apolinère enameled», fazendo uma homenagem a seu amigo Apollinaire. No canto direito, ainda modificou, cobrindo letras com tinta preta e retificando outras, o nome do produtor da marca e sua procedência: «Gerstendorfer Bros. New York, U.S.A» virou «any act red by her ten or epergne. New York. U.S.A». Em Barulho secreto (Bruit secret, 1916), duas enigmáticas inscrições tornavam o readymade ainda mais misterioso. Na parte de cima, lê-se: P.G .ECIDES DÉBARRASSÉ. LE. D.SERT. F.URNIS ENT AS HOW.V.R COR.ESPONDS Convenablement choisie dans la même colonne

E, virando a peça de ponta-cabeça, encontra-se: .IR CAR.É LONGSEA→ F.NE, .HEA., .O.SQUE→ TE.U S.ARP BAR.AIN→ Remplacer chaque point par un lettre633

Em carta a Arturo Schwarz, Duchamp afirmou que estas letras não queriam dizer nada, que eram apenas «um exercício de ortografia comparativa (inglês-francês)», e precisou ainda: «Os pontos devem ser substituídos por uma das duas letras das outras duas linhas, mas na mesma vertical que o ponto. Francês e inglês estão misturados e não fazem “sentido”. As três flechas indicam a continuidade da linha da parte de baixo até a parte de cima, ainda sem sentido». Destas orientações, Schwarz constituiu a seguinte frase: Fire Carré Longsea; Peg decides débarrasse; Fine, Cheap, Lorsque; Les deserts fournissent; Tenu sharp bargain; As however corresponds. Até o Porta-garrafas tinha, originalmente, uma frase escrita em sua base. «E como a perdi na noite dos tempos, não recordo a frase que havia escrito. Assim, as novas [porta-garrafas] não a tem mais», 633

Reproduzido por Arturo Schwarz, op. cit., pp. 370 e 644 respectivamente.

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comentou o artista com Philippe Collin, em entrevista realizada em 1967, um ano antes de sua morte.634 Certa feita, comentando o uso destas frases em seus readymades, Duchamp pôs a nu a sua intenção: «Esta frase, em vez de descrever o objeto como um título, tinha como intenção conduzir a mente do espectador em direção a outras regiões mais verbais».635 O artista parecia estar adotando e ampliando aqui a regra ditada por Umberto Eco décadas depois: «Um título deve confundir as idéias, nunca disciplinálas».636 Em geral, o título, a frase ou a inscrição que acrescentava em seus trabalhos – e podemos considerar até mesmo o título do Grande vidro: La mariée mise à nu par ses célibataires, même – fornecem uma falsa explicação ou, com sua pseudo-explicação, dificultam ainda mais o entendimento da obra. Neste sentido, a relação entre texto e obra em Duchamp se institui de maneira muito semelhante àquela verificada nos antigos emblemas, nos quais um fragmento de prosa ou verso (que os emblemistas chamavam de «alma») aparecia sempre escoltando uma imagem (o «corpo»). Conforme Giorgio Agamben, nos emblemas, «o “corpo” e a “alma” estão entre si numa relação que é, ao mesmo tempo, de explicação e ocultamento (um “obscurecer [adombrare] explicando” e um “explicar obscurecendo [adombrando]”, nas palavras de um tratado seiscentista), sem que nenhuma das duas intenções prevaleça uma sobre a outra».637 As notas ao Grande vidro talvez sejam o melhor e o maior exemplo desse jogo de esconde-revela. Somente por meio delas é possível identificar e nomear cada um dos elementos vistos no vidro, mas, ao mesmo tempo, a indicação de seu funcionamento e algumas anotações esparsas contribuem – e muito – para seu mistério. Duchamp produziu três conjuntos de notas manuscritas que diziam respeito direta ou indiretamente a seu vidro. Para ele, as notas não só assumiam o mesmo valor que o vidro em si, como os dois deveriam ser indissociáveis: o vidro, no fim das contas, não foi feito para ser olhado (com os olhos «estéticos»); ele devia ser acompanhado de um texto de «literatura» tão amorfo quanto possível, que não tomasse forma; e os dois elementos, vidro para os olhos, texto para os ouvidos e o

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Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., p. 19. Marcel Duchamp, «Apropos of “Readymades”», reproduzido por Michel Sanouillet e Elmer Petersen, op. cit., p. 141. 636 Umberto Eco, Pós-escrito a O nome da rosa, p. 9. 637 Giorgio Agamben, Stanze: la parole e il fantasma nella cultura occidentale, pp. 177-178. 635

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entendimento, deviam se completar e sobretudo impedir que um ou outro tomasse uma forma estético-plástica ou literária.638

Numa de suas notas reunidas e publicadas postumamente por Paul Matisse, em 1980, Duchamp imaginava a forma que poderia adquirir este texto: la Mariée mise à nu... faire un livre rond c.à.d. sans commencement ni fin (soit que les feuilles soient détachées et mises en ordre par le dernier mot de la page répété à la page suivante (pas de pages numérotées) – soit que les dos soit fait de cercles autour desquels les pages tournent639

O primeiro de seus conjuntos de notas, conhecido como Caixa de 1914, é o mais raro de todos: foram realizados apenas cinco exemplares. O conhecimento de seu conteúdo só chegou a um público mais amplo em 1959, quando suas notas foram integradas por Michel Sanouillet à compilação dos escritos de Duchamp, Duchamp du sel. A Caixa de 1914, originalmente uma caixa de placas fotográficas, trazia fac-símiles fotográficos de quatorze notas em pedaços de papéis e duas imagens: um projeto para o 3 Stoppages étalon e um desenho sobre um papel de partitura musical de um homem de bicicleta subindo uma linha. Nestas notas, indicava: Faire une armoire à glace. Faire une armoire à glace pour le tain. Faire un tableau de fréquence :640

Sua segunda caixa, conhecida como Caixa verde, foi veiculada vinte anos depois da primeira e, desta vez, com uma tiragem bem maior: 320 exemplares, 20 dos quais em edição de luxo. Tratava-se de uma caixa recoberta com papel aveludado verde contendo 93 documentos soltos entre fotografias, desenhos e notas manuscritas, realizadas entre 1911 e 1915 em Munique, Paris e Nova York.641 Na tampa, portava a inscrição La 638

Marcel Duchamp em carta a Jean Suquet, datada de 25 de dezembro de 1949, reproduzida por Jean Suquet, Miroir de la mariée, p. 247. 639 Marcel Duchamp, Notes, p. 41. Como considero suas notas como parte integrante de sua obra, optei por preservá-las em sua língua original no corpo do texto, apresentando sua tradução na nota de rodapé. Eis uma possível tradução: a Noiva posta a nu... / fazer um livro redondo i.e. sem começo nem fim (ou que as folhas sejam destacadas e postas em ordem pela última palavra da página repetida na página seguinte (nada de páginas numeradas) – ou que o verso seja feito de círculos em torno dos quais as páginas girem. 640 A partir da reprodução fac-similar das notas da Caixa de 1914, feita por Arturo Schwarz, op. cit., p. 333. Possível tradução: Fazer um armário de vidro. / Fazer este armário de vidro prateado. / Fazer um quadro de freqüência:. 641 Craig E. Adcock coloca em dúvida o período de 1911 a 1915 como aquele em que teriam sido escritas as notas para o Grande vidro. Para ele, 1915 é «claramente muito cedo» para Duchamp ter terminado de produzir anotações para seu trabalho. «1923 como uma data de fechamento é certamente mais “lógica”

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mariée mise à nu par ses célibataires, même, grafada com furos. Embora se apresentasse como uma espécie de «catálogo explicativo do Grande vidro»,642 as notas desta caixa, muitas vezes, servem para confundir: em primeiro lugar, elas fazem referência também a elementos que não estão no vidro; segundo, versam abertamente sobre outros assuntos, como os readymades (o que nos faz supor que estes tivessem relação com o vidro); terceiro, algumas delas não deixam claro a que aludem, se ao vidro, se a outro trabalho ou se se trata apenas de considerações gerais. Octavio Paz é preciso quando afirma: «O mistério da Noiva não procede tanto da carência de notícias como de sua abundância».643 E Sanouillet, no fim da introdução às notas da Caixa verde, recomenda: «Aconselhamos o leitor que tome esta bebida intelectual com moderação. Uma frase por dia, manhã e tarde, nos parece constituir a dose conveniente. Senão, a embriaguez ou o desgosto se manifestarão desde a primeira hora».644 Ambíguas e muitas vezes cifradas, as notas da caixa nem sempre são esclarecedoras, como aquela longa nota, talvez a mais interessante delas por sua narratividade, que se originou de uma viagem de carro que o artista realizou, em 1912, com Picabia, sua mulher Gabrielle Buffet-Picabia e Apollinaire, da cidade de Jura de volta à Paris. Reproduzo um trecho: La machine à 5 coeurs, l’enfant pur, de nickel et de platine, doivent dominer la route Jura-Paris. D’un côté, le chef des 5 nus sera en avant des 4 autres nus vers cette route JuraParis. De l’autre côté, l’enfant-phare sera l’instrument vainqueur de cette route Jura-Paris. Cet enfant-phare pourra, graphiquement, être une comète, qui aurait sa queue en avant, cette queue étant appendice de l’enfant-phare, appendice qui absorbe en l’émiettant (poussière d’or, graphiquement) cette route Jura-Paris. La route Jura-Paris, devant être infinie seulement humainement, ne perdra rien de son caractère d’infinité en trouvant un terme d’un côté dans le chef des 5 nus, de l’autre dans l’enfant-phare. Le terme «indéfini» me semble plus juste qu’infini. Elle aura un commencement dans le chef des 5 nus, et n’aura pas de fin dans l’enfant-phare.645 mas ainda duvidosa», comenta. Embora não haja evidências de que Duchamp tenha escrito mais notas depois de 1923, Craig não descarta a possibilidade de o artista tê-lo feito (Marcel Duchamp's Notes from the Large Glass: an n-dimensional analysis, pp. 2-3) 642 Termo empregado por Michel Sanouillet para designar as notas da Caixa verde, Duchamp du signe, p. 40. O próprio Duchamp, nas notas publicadas postumamente, precisava: «Evitar todo o lirismo formal, que todo o texto seja um catálogo» (Notes, p. 45). 643 Octavio Paz, op. cit., p. 151. 644 Michel Sanouillet, Duchamp du signe, p. 40. 645 Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», Duchamp du signe, pp. 41-42. Possível tradução: A máquina a cinco corações, o infante puro, de níquel e de platina, devem dominar a rota Jura-Paris./ De um lado, o chefe dos 5 nus estará de frente aos 4 outros nus rumo esta rota Jura-Paris. Do outro lado, o infante-farol [enfant-phare] será o instrumento vencedor desta rota Jura-Paris. / Este infante-farol poderá, graficamente, ser um cometa, que terá sua cauda na frente, esta cauda sendo

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Mas a maior parte das notas assume o papel de uma espécie de modo de usar, de um manual de explicação dos elementos e do funcionamento do Grande vidro. É a partir deste grupo de anotações que aquele visitante que imaginamos no item anterior poderia confirmar algumas de suas observações. Na parte superior do vidro, a figura principal é, de fato, a Noiva, também referida como Vespa, Motor-Desejo, Fêmea Pendurada, Máquina Agrícola e Instrumento Aratório. Na sua frente, a nuvem acinzentada atende por Via-Láctea. Dentro desta, localizam-se os Letreiros de Cima, e, na extrema direita, acha-se a Zona de Pontos, isto é, os disparos dos celibatários. Na parte inferior, à esquerda, trata-se mesmo dos celibatários, também chamados Aparelho Solteiro, Nove Moldes Machos, Cemitério de Librés e Uniformes e Máquina de Eros. Pelas notas, somos informados de que eles representam nove famílias ou tribos masculinas e estão vestidos de acordo: padre, mensageiro de grande armazém, gendarme, couraceiro, policial, coveiro, lacaio, garçom, chefe de estação. Duchamp explica ainda que seus celibatários são apenas moldes, «trajes vazios inflados pelo fluido ou gás do desejo que a Noiva emite». Abaixo deles, a estrutura é identificada como a Carreta. O Moinho d’Água, em seu interior, é seu propulsor. Os sete cones recebem o nome de Coadores e se acham unidos aos Moldes Machos por um sistema de Tubos Capilares. Acima dos Cones, as duas hastes que se cruzam são as Tesouras. No centro da metade inferior, jaz o Moinho de Chocolate. Na extrema direita, aquelas figuras geométricas que lembram as de ótica são as Testemunhas Oculistas – e não oculares. Percebe-se que, pela simples observação destes personagens representados no Grande vidro, seria impossível chegar a esta descrição minuciosa. De posse das notas da Caixa verde, confirma-se também a suposição de que o vidro sugere um movimento interno. Na verdade, podemos concluir que, mais do que sugerir um movimento, ele foi pensado como um mecanismo. Repare-se como Duchamp se vale de metáforas mecânicas para designar seus personagens principais: a

apêndice do infante-farol, apêndice que absorve esmigalhando (poeira de ouro, graficamente) esta rota Jura-Paris. / A rota Jura-Paris, devendo ser infinita somente humanamente, não perderá nada de seu caráter de infinitude ao encontrar um termo de um lado no chefe dos 5 nus, do outro no infante-farol. / O termo «indefinido» me soa mais justo que infinito. Ela terá um começo no chefe dos 5 nus, e não terá fim no infante-farol. Quanto à expressão enfant-phare, esta é intraduzível para o português: «enfant-phare», em francês, além de significar literalmente a «criança-farol» ou «infante-farol», como preferi, soa como «une fanfare», «uma fanfarra» em português

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Noiva é também chamada de Motor-desejo («La Mariée à sa base est un moteur»646), Máquina Agrícola e Instrumento Aratório; e os celibatários, de Aparelho solteiro. Afora isso, nos escritos, abundam indicações sobre o modo de funcionamento de sua máquina, que deveria operar do seguinte modo: A Noiva, «um reservatório de essência do amor (ou potência tímida)»,647 transmite seus fluidos, em forma de descargas elétricas, aos Letreiros de Cima, os quais as reenviam aos celibatários. Estes, postos em ação pelas descargas elétricas, as recebem, inflam seus uniformes e começam a produzir, por sua vez, um gás que deve ser devolvido à Noiva, como resposta. Este gás, antes de chegar a seu destino, é cortado pelos Tubos Capilares e mandado para os sete Coadores. Transformadas em líquido por estes últimos, as emissões dos celibatários chegam finalmente às Tesouras que as espalham, fazendo com que algumas caiam e permaneçam no domínio dos celibatários e outras explodam e disparem para o alto, formando a Zona de Pontos. As Testemunhas Oculistas, também chamadas de Escultura de Gotas, formam os salpicos: «chaque goutte servant de point et renvoyée miroirquement dans la partie haute du verre en rencontre avec les 9 tirés».648 Enquanto todo este processo se dá, a Carreta, acionada pelo Moinho d’Água, recita suas litanias. O que vemos na estaticidade do Grande vidro, portanto, é a representação de um momento congelado no tempo deste ritual mecânico-amoroso. Já sugeri, no capítulo dedicado a Schwitters, que o funcionamento da máquina poderia ser comparado ao funcionamento dos rituais. Aqui o vidro como um todo se apresenta como uma máquina, um mecanismo virtual a partir do qual se organiza uma espécie de ritualização, no sentido de uma reatualização constante e repetitiva de uma mesma ação. O outro conjunto de notas, intitulado À l’infinitif e conhecido também como Caixa branca, se reveste de uma certa cientificidade que apenas ajuda a embaralhar ainda mais a compreensão da peça. De seus 76 textinhos, 36 tratam de geometria, com pequena ou nenhuma referência específica ao Grande vidro. Como esta caixa só foi publicado em 1966, mais de quarenta anos depois de ter abandonado o vidro inacabado, provavelmente não era a estas notas que Duchamp fazia referência quando propunha

646

Idem, p. 62. Idem, p. 65. 648 Idem, p. 93. Possível tradução: cada gota serve de ponto e reenvio espelhadamente da parte alta do vidro ao reencontrar com os 9 tiros. 647

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que se expusessem textos e obra lado a lado. Possivelmente, pensava na Caixa verde, mais próxima cronologicamente do Grande vidro. Poderíamos ainda propor uma última comparação. Considerando que Duchamp expressou sua vontade de ver texto e obra expostos juntos e indissociavelmente, as notas e o Grande vidro parecem se relacionar de maneira análoga àquela se pode verificar entre o mito e o rito – e lembremos que o artista não gostaria que seu texto e sua obra tomassem «uma forma estético-plástica ou literária».649 Parece-me que as notas – principalmente as da Caixa verde pela sua proximidade cronológica com o vidro – estariam para La mariée... como um mito estaria para o rito que o atualiza, ou talvez ainda, mais precisamente, como aqueles discursos pronunciados pelo oficiante do ritual durante a cerimônia. E as notas, segundo a vontade de Duchamp, deveriam ser lidas defronte ao vidro, quiçá como entoações, como as verdadeiras litanias desta máquina celibatária. Até mesmo uma linguagem secreta, tal qual a falada em alguns rituais específicos, parece ser forjada numa das notas da Caixa verde: Prendre un dictionnaire Larousse et copier tous les mots dits «abstraits», c’est-à-dire qui n’aient pas de référence concrète. Composer un signe schématique désignant chacun de ces mots (ce signe peut être composé avec les stoppages étalon). Ces signes doivent être considérés comme les lettres du nouvel alphabet. Un groupment de plusieurs signes déterminera (Utiliser les couleurs – pour différencier ce qui correspondrait dans cette [littérature] à substantif, verbe, adverbe, déclinaisons, conjugaisons, etc.) Nécessité de la continuité idéale c’est-à-dire : chaque groupement sera relié aux autres groupements par une signification rigoureuse (sorte de grammaire, n’exigeant plus une construction pédagogique de la phrase, mais, laissant de côté les différences des langages, et les «tournures» propres à chaque langage, pèse et mesure des abstractions de substantifs, de négations, de rapports de sujet à verbe etc., au moyen des signes-étalons, (représentant ces nouvelles relations : conjugaisons, déclinaisons, pluriel et singulier, adjectivation, inexprimables par les formes alphabétiques concrètes des langues vivantes présentes et à venir). Cet alphabet ne convient qu’à l’écriture de ce tableau très probablement.650 649

Marcel Duchamp em carta a Jean Suquet, op. cit., p. 247. Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 48. Possível tradução: Pegar um dicionário Larousse e copiar todas as palavras ditas «abstratas», isto é, que não tenham referência concreta. / Compor um signo esquemático designando cada uma destas palavras (este signo pode ser composto com os stoppages étalon. / Estes signos devem ser considerados como as letras de um novo alfabeto. / Um agrupamento de muitos signos determinará / (Utilizar as cores – para diferenciar aquilo que corresponderá nesta [literatura] a substantivo, verbo, advérbio, declinações, conjugações etc.) / Necessidade da continuidade ideal isto é: cada agrupamento será religado aos outros agrupamentos por uma significação rigorosa (espécie de gramática, não exigindo mais uma construção pedagógica da frase, mas, deixando de lado as diferenças das linguagens, e o «jeito» próprio a cada linguagem, pese e meça as abstrações de substantivos, de negações, de relações de sujeito e verbo etc., por meio de signos-padrão, (representando estas novas relações: conjugações, declinações, plural e singular, adjetivação, inexprimíveis pelas formas alfabéticas concretas das línguas vivas presentes e por vir). / Este alfabeto só convém à escritura deste quadro muito provavelmente. 650

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Em resumo, Duchamp forja uma relação de dependência entre o vidro e suas notas, como se cada uma destas partes restasse incompleta se dissociada da outra. Criase, assim, um jogo de espelhos em que um faz referência ao outro e vice-versa, produzindo – e reforçando – também aqui uma certa auto-referencialidade. d. Artista-oficiante Como nas composições Merz e na Merzbau de Schwitters, o que está no centro das realizações de Duchamp posteriores ao Nu descendo a escada é, sempre, uma ação. Em Schwitters, tratava-se de um conjunto associado de ações: escolher um fragmento de objeto, recolhê-lo, por vezes limpá-lo e, finalmente, integrá-lo a uma construção artística. Em Duchamp, a ação consistia, antes de tudo, numa escolha. «Não existe a arte», ele acreditava; «é uma escolha [c’est un choix], essencialmente».651 E não estamos falando aqui da opção por esta ou por aquela cor, por este ou por aquele suporte. A escolha de Duchamp se orientava por regras pré-determinadas por ele mesmo – não é à toa que ele denominou um conjunto de notas como «Leis, princípios, fenômenos».652 Como Schwitters, também Duchamp se apresentava em e com sua ação como o núcleo ordenador de sua obra. Era a partir de suas ações que as outras ações (como o funcionamento virtual do vidro) poderiam se concretizar. Mais do que planos e estudos preliminares, as notas da Caixa verde talvez também possam ser compreendidas como um rol de regras e princípios, um tipo de mandamentos, a serem observados no desenrolar da longa execução de La mariée... Notas como INSCRIPTION DU HAUT Obtenue avec les pistons de courant d’air. (Indiquer la manière de «préparer» ces pistons). Ensuite les «placer» pendant un certain temps, (2 à 3 mois) et les laisser donner leur empreinte en tant que 3 filets à travers lesquels passent les commandements du pendu femelle.

e POUSSIÈRE

651 652

Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., p. 10. Ver Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 46.

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Élever de la poussière sur des verres. Poussière de 4 mois, 6 mois qu’on enferme ensuite hermétiquement = Transparence653

nos fazem lembrar as restrições impostas em certas comunidades «primitivas» quando da realização de peças que deveriam servir a determinados rituais.654 Não esqueçamos que o domínio do sagrado se constitui a partir de uma série de interditos e que é o ritual que prescreve a maneira como se deve agir em relação a um objeto.655 Com isto, não quero dizer que Duchamp buscava (e acreditava) investir-se de uma condição de celebrante consagrado e sacralizar literalmente seu vidro, apenas desejo apontar uma analogia possível entre as ações dos povos ditos «primitivos» em seus rituais e aquela do artista, analogia que, independentemente de o artista estar ciente ou não dela, talvez indique a persistência de uma comunicação mais funda entre estas duas produções simbólicas fundamentais, a arte e o rito, mesmo na modernidade. Neste sentido, a ação de Duchamp equiparava-se a de Schwitters: ambos faziam irromper o profano no seio do próprio profano, como se este fosse algo de «sagrado». Não é por acaso que Chalupecky comenta: «Os ready-mades de Duchamp vêm se enfileirar ao lado dos fetiches primitivos, seu Grande vidro ou Étant donnés juntam-se aos monumentos das civilizações antigas. Nós sentimos que eles tocam a mesma coisa».656 E Octavio Paz recorda que Roger Caillois conta que os artistas chineses do século XIX tinham o costume de escolher uma pedra, recolhê-la, dar-lhe um título e assiná-la. Assim, promoviam a pedra à condição de obra de arte. Nesta aproximação da ação de Duchamp à dos chineses e japoneses, Paz observa ainda: O chinês afirma sua identidade com a natureza; Duchamp, sua diferença irredutível. O ato do primeiro é uma elevação, um elogio; o do segundo, uma crítica. Para chineses, gregos, maias ou egípcios, a natureza era uma totalidade vivente, um ser criador. Por isso a arte, segundo Aristóteles, é imitação: o poeta imita o gesto criador da natureza. O chinês leva até sua última conseqüência esta idéia: escolhe uma pedra e a assina. Inscreve seu nome numa 653

Idem, pp. 55 e 77-78 respectivamente. Possíveis traduções: INSCRIÇÃO DO ALTO / Obtida com os pistões de corrente de ar. (Indicar a maneira de «preparar» estes pistões). / Em seguida os «colocar» durante um certo tempo, (2 a 3 meses) e os deixar dar sua impressão em 3 filetes através dos quais passam os comandos da fêmea pendurada (...). E: POEIRA / Elevar-se da poeira sobre o vidro. Poeira de 4 meses, 6 meses, que se fecha em seguida hermeticamente = Transparência. 654 Entre os maoris, por exemplo, os artefatos artísticos eram confeccionados como se fizessem parte de um ritual. Quando estava a trabalhar em alguma escultura que iria servir ao culto, nenhum entalhador maori poderia fazê-lo em presença de comida cozida (Ver Raymond Firth, «O contexto social da arte primitiva», Elementos de organização social, p. 186). Nos cultos ogboni, era obrigatório que o fundidor fosse um dos homens mais velhos. Dizia-se que sua tarefa lhe conferia um poder espiritual mas, ao mesmo tempo, o tornava menos fértil (ver Robert Layton, A antropologia da arte, p. 95). 655 Ver Émile Durkheim, As formas elementares da vida religiosa, p. 19 e ss. 656 Jindrich Chalupecky, op. cit., p. 29.

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criação e sua assinatura é um reconhecimento; Duchamp escolhe um objeto manufaturado: inscreve seu nome numa negação e seu gesto é um desafio.657

Em La mariée..., as escolhas não se restringem às restrições estabelecidas nas notas, como a que prevê a deposição de poeira sobre o vidro durante alguns meses, ato que foi registrado por Man Ray (fig. 53). Elas passam também pela própria determinação do vidro como suporte – detalhe bastante importante, como veremos em seguida. Além disso, deve-se ressaltar que foi o próprio Duchamp que determinou o lugar que deveria ocupar o Grande vidro na sala de exposições do Museu de Arte da Filadélfia, de onde este nunca mais saiu, em função de um interdito ditado pela fragilidade do material. Ao demarcar um lugar fixo para sua peça, Duchamp delimitou um território de atuação e, com isso, estabeleceu um locus que só poderia ser ocupado pelo seu vidro, determinando uma interrupção no espaço do museu, mais ou menos como Schwitters procedeu em sua casa, com a Merzbau. Todavia, era nas ações que constituíam os readymades que a questão da escolha aparecia de maneira mais evidente. Tal como em Schwitters, dependia da eleição do artista, esta espécie de «xamã», a elevação de um objeto qualquer à categoria de arte, como já bem expressava André Breton, em 1934, em sua definição de readymade: «objetos manufaturados promovidos à dignidade de objetos de arte pela escolha do artista».658 Ao contrário de Schwitters, que se interessava por fragmentos e os recolhia da rua, Duchamp importava-se com o todo do objeto, não apanhando na rua, mas, muitas vezes, simplesmente comprando-o em algum estabelecimento comercial. No ano em que entregou o mictório sob o título A fonte na exposição anual da Sociedade dos Artistas Independentes de Nova York, Duchamp publicou uma nota anônima, na revista que editou com Man Ray naquele ano, The Blind Man, em defesa do suposto autor do trabalho, R. Mutt, no fim da qual explicitava o modus operandi de seus readymades: «Se o sr. Mutt fez ou não a fonte com suas próprias mãos não tem importância. Ele a ESCOLHEU [He CHOSE it]. Ele pegou um artigo ordinário da vida, o dispôs de tal modo que sua significação utilitária desapareceu sob os novos título e ponto de vista – 657

Octavio Paz, op. cit., p. 144. O trecho de Roger Caillois a que Paz se refere é o seguinte: «Na China, em meados do século XIX, acontece que o artista escolhe uma placa de mármore cujas nódoas e veias agradam-lhe: ele delimita-a e emoldura-a, intitula-a e imprime seu selo. Desta maneira, ele toma posse e transforma-a em obra de arte, sobre a qual assume daí em diante a responsabilidade» (L’écriture des pierres, p. 47). 658 André Breton, «Marcel Duchamp: Phare de la Mariée», Surréalisme et peinture, p. 120.

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criou um novo pensamento para aquele objeto».659 E esta escolha, como as escolhas subjacentes ao Grande vidro, também se fundamentavam em certas interdições. A primeira delas dizia respeito ao gosto: um readymade jamais podia agradar àquele que o seleciona, e Duchamp reiterou esta restrição inúmeras vezes: Um ponto que eu gostaria muito de estabelecer é que a escolha destes «readymades» nunca foi ditada por deleite estético. Esta escolha foi baseada numa reação de indiferença visual, ao mesmo tempo, com uma total ausência de bom ou mal gosto... de fato, uma completa anestesia.660

Porém, entendia, não sem um certo pesar, que as pessoas pudessem terminar por apreciar seus readymades num sentido estético: «Mas, enfim, compreendo muito bem que as pessoas procurem freqüentemente um lado agradável, e elas o encontram por hábito. Se você olhar uma coisa vinte vezes, você começa a se habituar, a amá-la ou detestá-la, mesmo. Assim não resta jamais um tout à fait indiferente».661 E precisamente por temer acabar também ele gostando de seus objetos, por deixar de ser-lhes indiferente, Duchamp disse tê-los posto de lado passado algum tempo: «depois de muito tempo, não os fiz, você sabe, não os fiz mais porque justamente há o perigo de fazê-los muitos, porque não importa, você sabe, o quão hediondo seja, o quão indiferente seja, se tornará bonito e agradável depois de quarenta anos».662 Uma outra forma de interdição estava expressa numa das notas da Caixa verde, intitulada justamente Precisar os «readymades», em que estipulava: En projetant pour un moment à venir (tel jour, telle date, telle minute), «d’inscrire un readymade». – Le readymade pourra ensuite être cherché (avec tous délais). L’important alors est donc cet horlogisme, cet instantané, comme un discours prononcé à l’occasion de n’importe quoi mais à telle heure. C’est une sorte de rendez-vous. – Inscrire naturellement cette date, heure, minute, sur le readymade comme renseignements.663

659

Marcel Duchamp, «The Richard Mutt Case», publicado originalmente na revista The Blind Man, editada pelo próprio Duchamp em parceria com Man Ray, reproduzido por Walter Hopps, Ulf Linde e Arturo Schwarz, Marcel Duchamp: ready-mades, etc. (1913-1964), p. 62. 660 Marcel Duchamp, «Apropos of “Readymades”», compilado por Michel Sanouillet e Elmer Peterson, op. cit., p. 141. Este texto origina-se de uma conferência proferida por Duchamp no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 19 de outubro de 1961. Em outras entrevistas, Duchamp retomou o tema e repisou sua determinação (ver Pierre Cabanne, op. cit., p. 80 e Philippe Collin, op. cit., p. 11). 661 Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, op. cit., pp. 13-14. 662 Idem, p. 12. 663 Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 49. Possível tradução: Projetando para um momento a vir (tal dia, tal data, tal minuto), «de inscrever um readymade». – O readymade poderá em seguida ser procurado (com toda demora). / O importante então é pois este relogismo, esta instantaneidade, como um discurso pronunciado na ocasião de não importa o quê mas a

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Por fim, no final de outra nota subseqüente, determinava: «Limiter le nombre de readymades par année».664 Com estes procedimentos, Duchamp, como Schwitters, deixava de ser meramente um artista para se transformar também num oficiante de um ritual bastante particular.

e. Ordem Tenho dúvida se pode-se falar de ordem na obra de Duchamp, como o fizemos até aqui com os três outros artistas estudados. No entanto, não quero me esquivar simplesmente do assunto, mas tentar pensar se isto seria possível. Em Mondrian e Malevitch, a busca por uma ordem começava por uma negação da representação mimética e se convertia numa preocupação em encontrar uma forma pura, por meio do equilíbrio e da harmonia de elementos básicos extraídos do universo próprio da pintura: linhas, planos de cor e figuras geométricas. A composição decorrente da relação entre estes elementos estabeleceria uma nova realidade (alternativa à realidade exterior), uma realidade, segundo eles, mais verdadeira e capaz de conduzir a um absoluto. Em Schwitters, ainda se percebia uma certa preocupação formal. Sua busca pela ordem se traduzia, em suas colagens e assemblagens Merz, numa tentativa de alcançar o equilíbrio das formas por meio do ritmo geral da composição, mas não por meio de elementos provindos da pintura, porém com fragmentos de objetos extraídos do «mundo real». Na Merzbau, a ordem se manifestava como um verdadeiro cosmos. Em todos estes três artistas, esta busca pela ordem se achava proclamada em seus escritos. Duchamp, por sua vez, não parecia ser movido por um impulso ordenador – pelo menos, nunca declarou isso –, e não podemos dizer que sua maior preocupação recaía sobre a forma quando falamos de Grande vidro ou readymades. No entanto, creio que podemos isolar certos aspectos que nos permitem entrever um movimento se não no sentido de uma ordenação, pelo menos rumo a uma tímida construção de um mundo controlado. Ao passo que, em Mondrian e Malevitch, a tal hora. É uma espécie de encontro. / – Inscrever naturalmente esta data, hora, minuto sobre o readymade como esclarecimentos. 664 Idem, p. 50. Tradução: Limitar o número de readymades por ano.

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intenção era produzir uma nova realidade, separada da nossa, e, em Schwitters, o cosmos da Merzbau se realizava como um mundo à parte, totalmente separado do mundo exterior, embora contivesse em si parte deste último, em Duchamp, se é possível falar na construção de um mundo seu, este não se separava em nenhum momento do mundo exterior, mas, pelo contrário, se achava em permanente contato com a realidade, intervindo e se mesclando nela. La mariée..., como veremos a seguir, justamente por ser de vidro, isto é, por ser transparente, incorpora em si os elementos que a circundam (inclusive o espectador), estabelecendo assim uma relação constante e de promiscuidade com o mundo a sua volta. Pode-se ver claramente aí a influência da vitrine de loja que parece ter fascinado tanto Duchamp: La question des devantures∴ Subir l’interrogatoire des devantures∴ L’exigence de la devanture∴ La devanture preuve de l’existence du monde extérieur∴ Quando on subit l’interrogatoire des devantures, on prononce aussi sa propre Condamnation. En effet le choix est allé et retour. De la demande des devantures, de l’inévitable réponse aux devantures, se conclut l’arrêt du choix. Pas d’entêtement, pas l’absurde, à cacher le coït à travers une glace avec un ou plusieurs objets de la devanture. La peine consiste à couper la glace et à s’en mordre les pouces dès que la possession est consommée.665

Mas vejamos mais detalhadamente como o seu vidro se relaciona com o espaço.

f. «Templo» Se, ao tratar da Merzbau de Schwitters, tivemos o cuidado de enfatizar que, quando nos valíamos do termo templo, este não deveria ser levado ao pé-da-letra e compreendido em seu senso estrito, mas como um templo entre o não-sagrado e o nãoprofano, com Duchamp teremos que redobrar este cuidado e duplicar as aspas em torno daquela palavra. Enquanto em Schwitters a aproximação da Merzbau à noção de templo justificava-se pela designação alternativa que o próprio artista dera para sua construção

665

Marcel Duchamp, «À l’infinitif», Duchamp du signe, pp. 105-106. Possível tradução: A questão das vitrines∴/ Submeter-se à interrogação das vitrines∴ / A exigência da vitrine∴ / A vitrine prova a existência do mundo exterior∴ / Quando alguém se submete ao interrogatório das vitrines, pronuncia também sua própria Condenação. Com efeito, a escolha vai e volta. Da demanda das vitrines, da inevitável resposta às vitrines, se conclui o fim da escolha. Nada de encasquetamento, nada do absurdo, a esconder o coito através de um vidro com um ou mais objetos da vitrine. A pena consiste em cortar o vidro e em se arrepender assim que a posse é consumada.

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(Catedral da miséria erótica), em Duchamp uma mesma comparação não se acha tão evidente. Porém, também não é de todo descartável. É interessante notar como os trabalhos em vidro de Duchamp suscitam em Baruchello justamente a imagem da catedral: «Mais do que com qualquer coisa, parecia-se com os vitrais de uma igreja, uma catedral». Mais curioso ainda é que, na seqüência, Baruchello se espanta com o fato de estes trabalhos não lhe parecerem algo de novo, no sentido de recente, mas por lhe darem a impressão de pertencer a tempos remotos: «Olha-se para estas coisas e não se sente nada de moderno. Se se quiser admitir a verdade disso, estas coisas são antigas, algo da ordem das relíquias, coisas que deveriam ser de interesse para um arqueólogo. Todas elas parecem tão incrivelmente velhas».666 E Jean Clair poderia ter-lhe feito coro: «O Grande vidro é um vitral dos tempos modernos».667 Talvez não seja por acaso que Baruchello relacione as catedrais aos trabalhos de Duchamp precisamente por meio do vidro. A escolha deste material como suporte para La mariée... é um dos elementos-chave para a compreensão do modo como se organiza o que chamamos de dimensão ritual neste trabalho de Duchamp. Por sua própria composição, o vidro, além de proporcionar uma grande vantagem técnica – evita a oxidação se a tinta for aplicada entre duas placas deste material668 –, fornece o que é vetado à opacidade da tela: a transparência. Em entrevista a Pierre Cabanne, Duchamp contou que utilizava como paleta um pedaço de vidro espesso e que este permitia ver as cores do outro lado, o que sempre lhe agradou. «O vidro me interessava muito como suporte, por causa de sua transparência. Já era o bastante.»669 A transparência possibilitava-lhe desenvolver plenamente dois aspectos de seu trabalho. Por um lado, por eliminar a preocupação em criar um fundo, «podia se concentrar na figura».670 Golding já havia chamado a atenção para a pouca importância que Duchamp sempre deu ao plano de fundo de suas pinturas. Durante os anos em que Duchamp trabalhou com os materiais tradicionais de pintor, revelou-se um pintor de imagens, e de imagens cuja relação com seu fundo e o espaço à sua 666

Gianfranco Baruchello, op. cit., pp. 95-96. Jean Clair, Marcel Duchamp ou le grand fictif, p. 56. 668 Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, explica: «A pintura ficava sempre suja, amarelada ou velha, ao cabo de muito pouco tempo, por causa da oxidação; agora, minhas cores se encontravam completamente protegidas, pois o vidro era um meio de mantê-las, ao mesmo tempo puras e livres de alterações por um bom tempo» (Op. cit., p. 69). 669 Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 64. 670 Marcel Duchamp em entrevista a Francis Roberts, «“I Propose to Strain the Laws of Physics”». Art News, LXVII, 8 (dec. 1968), p. 46. 667

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volta era ocasionalmente irrelevante e sempre de importância secundária, um fator que desde o início separou suas preocupações daquelas dos cubistas, que estavam interessados na concepção de objetos incrustados num continuum espacial ou fluxo que era tão pictoricamente significante quanto os objetos em si.671

De fato, se observarmos novamente o Nu descendo uma escada e, principalmente, Jovem triste num trem, notaremos como o fundo deixa de ser um elemento que dialoga com o que está sendo representado. Em Jovem triste num trem, Duchamp escureceu completamente o plano de fundo, destacando, assim, as cores e os traços que sugerem os diversos momentos do jovem triste. No Nu..., a escada se dissolve na massa mais escura do fundo. Apenas uma parte desta pode ser vislumbrada no alto do canto direito. Desta forma, a atenção do espectador se volta para a figura central em movimento. Se retrocedermos ainda mais, verificaremos que um recurso similar é aplicado em Dulcinéia e mesmo em Sonata. Tanto numa quanto noutra, o fundo se constitui não como a parte mais escura da tela, mas como um borrão claro, que não se integra às figuras representadas. Para Duchamp, «A questão de pintar num fundo é degradante para um pintor. A coisa que você quer expressar não está no fundo».672 Com o vidro, o fundo não é fixo, ele se compõe da interferência exterior: passa a ser tudo o que possa ser visto em torno e através dele (fig. 54). Segundo o crítico italiano Janu, «Duchamp queria entrar numa dimensão toda nova, na transparência do espaço, que lhe consentisse assim atravessar toda a superfície, de andar na “outra” parte da sua obra, como Alice que entra no domínio do espelho encantado».673 Até mesmo o espectador acaba por se incorporar ao trabalho toda vez que pára em frente a ela e o observa. E Duchamp parecia querer fazer deliberadamente do espectador e do ambiente em torno outros elementos de seu vidro. Em 1921, ele levou a parte inferior do La mariée... para aplicar uma fina película de prata, transformando o vidro num espelho.674 Além de se tornar o fundo do vidro, o espectador também via a si mesmo e o ambiente à sua volta refletidos no aparelho celibatário, fazendo deste fundo «um ready-made continuamente em mudança».675

671

John Golding, op. cit., p. 68. Marcel Duchamp em entrevista a Francis Roberts, op. cit., p. 46. 673 Janu, Il grande vetro in Marcel Duchamp, anche, p. 5. 674 Ver Jean Suquet, Miroir de la mariée, p. 147. 675 Robert Lebel, Marcel Duchamp, p. 147. 672

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Por outro lado, «o vidro, sendo transparente, podia dar o máximo de eficácia à rigidez da perspectiva».676 Duchamp parecia estar levando ao pé da letra o entendimento de Albrecht Dürer da perspectiva como um «olhar através».677 E uma das grandes preocupações de Duchamp era justamente reabilitar a perspectiva clássica – talvez não seja coincidência o fato de seu irmão mais velho, Jacques Villon, estar lendo o Tratado da pintura, de Leonardo da Vinci, por volta do ano de 1912, quando Duchamp começava a produzir as notas e os desenhos preparatórios para o Grande vidro.678 Numa das notas da Caixa branca, Duchamp assinalava: Employer le verre transparent et la glace pour la perspective.679

E, em outro conjunto de notas, reunido precisamente sob o título Perspectiva, anotava: Perspective. Voir Catalogue de Bibliothèque Ste Geneviève toute la rubrique Perspective: Niceron (le Père J., Fr.) Thaumaturgus opticus [sur specimen papier Imperial – 90 lbs – Lisse] Perspective linéaire Vue plane D indique la distance de (point de vue)680

Não se pode determinar com certeza se Duchamp realmente lera ou não os tratados de Niceron e de outros teóricos tradicionais da perspectiva. Mas é seguro que ele tinha acesso fácil a estes volumes, uma vez que trabalhava na Biblioteca de Sainte Geneviève, onde se encontrava o corpus mais completo sobre o assunto. E mesmo que tivesse estudado cuidadosamente todos estes tratados,681 o que nos interessa sobremaneira aqui

676

Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 72. Segundo citação de Erwin Panofsky, La perspectiva como forma simbolica, p. 7. 678 Quanto ao que o próprio Duchamp comenta sobre a reabilitação da perspectiva, ver Pierre Cabanne, op. cit., pp. 64-65. Quanto à informação de que Jacques Villon estava lendo o tratado de Leonardo, ver Linda Dalrymple Henderson, The Fourth Dimension and Non-Euclidean Geometry in Modern Art, p. 145. 679 Marcel Duchamp, «À l’infinitif», op. cit., p. 125. Possível tradução: Empregar o vidro transparente e o espelho para a perspectiva. 680 Idem, p. 122. Possível tradução: Perspectiva. / Ver Catálogo da Biblioteca Sta Genevieve toda a rubrica / Perspectiva: / Niceron (o Padre J., Fr.) Thaumaturgus opticus / [sobre espécime papel Imperial – 90 lbs – Liso] / Perspectiva linear / Vista plana / D indica a distância / de (ponto de vista). 681 Jean Clair buscou uma série de correspondências que poderiam ser encontradas na relação entre o uso da perspectiva por Duchamp no vidro e as ilustrações de diversos tratados de perspectiva («Marcel 677

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não é o que possa ter extraído de cada um deles, mas o modo como trabalhou a perspectiva em seu Grande vidro. E, ao olhar este trabalho, percebe-se que todas as figuras da parte inferior, correspondente ao domínio dos celibatários, acham-se representadas de acordo com as leis da perspectiva clássica, segundo a qual se projeta um objeto em três dimensões na superfície bidimensional da tela por meio da criação de uma ilusão de profundidade de campo, obtida a partir de um ponto de vista e de um ponto de fuga simétricos. Poderíamos nos perguntar por que um artista que, ao decidir se afastar da pintura que chamava de «retiniana», e enveredar por caminhos bastante alternativos, recorre a um expediente tão tradicional como a perspectiva, ou melhor, retoma este recurso posto em questão desde certa arte produzida no final do século XIX? Qual a vantagem que a reabilitação da perspectiva poderia lhe trazer? Em primeiro lugar, não podemos esquecer que Duchamp recuperou a perspectiva somente em associação estreita com o suporte em vidro. Numa tela, o efeito produzido por uma representação em perspectiva não é o mesmo do que esta mesma representação vista num vidro. Na tela, por maior que seja o efeito de tromp l’oeil, ou seja, por maior que seja a ilusão de um espaço em profundidade, as figuras representadas se circunscrevem aos limites desta tela, somente relacionando-se entre si e com o plano de fundo. No vidro, como não existe plano de fundo definido em função da transparência do suporte, a ilusão de tridimensionalidade se acentua, fazendo com que as figuras representadas pareçam estar integradas ao espaço circundante. Jean Clair, que estudou profundamente a perspectiva no Grande vidro, recorda que um dos pontos de partida do trabalho foi a fascinação que petrificou Duchamp defronte ao espetáculo de um moedor de chocolate em funcionamento visto através de uma vitrine, num nível abaixo àquele da rua. Tomando este dado como base, Clair observa que, no vidro, «o ponto de fuga e o ponto de distância, imperiosamente fixados, restituem a fascinação do garoto olhando, imóvel, a maquinaria erótica que se desenrola atrás de uma vidraça».682 Em contraposição, não se pode dizer que o domínio da Noiva esteja representado conforme a perspectiva clássica. Na parte superior, as figuras não forjam uma profundidade de campo. Anotava Duchamp: Duchamp et la tradition des perspecteurs», Marcel Duchamp – Abécédaires: approches critiques, pp. 124-159). 682 Jean Clair, op. cit., p. 150.

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Le Pendu femelle est la forme en perspective ordinaire d’un Pendu femelle dont on pourrait peut-être essayer de retrouver la vraie forme –683

Por sua planeza, os elementos da parte superior do vidro parecem pairar sobre a «base arquitetônica»684 composta pelos celibatários, como se aqueles estivessem presos somente pelas extremidades superiores, sendo possível imaginá-los balançando no ar – não por acaso Duchamp denomina a Noiva de Pendu femelle. Talvez nesta relação entre o domínio de baixo em perspectiva e o domínio do alto em suspensão, resida o que Duchamp referia como uma quarta dimensão, que ocupou tanto e por tanto tempo os críticos do artista: Como achava que se podia fazer sombra projetada de uma coisa de três dimensões, um objeto qualquer – como a projeção do Sol sobre a Terra faz duas dimensões – por analogia simplesmente intelectual a quarta dimensão poderia projetar um objeto de três dimensões, em outras palavras, que todo objeto de três dimensões, que vemos com indiferença, é uma projeção de uma coisa de quatro dimensões que não conhecemos.685

Assim, o domínio dos celibatários talvez pudesse ser compreendido como a projeção em três dimensões (três dimensões forjadas pela utilização do vidro e da perspectiva) de um objeto em quatro dimensões. «Como se, no sistema representativo de Duchamp, a quarta dimensão ocupasse o lugar que ocupa, no sistema de representação clássica, por exemplo, no Las Meninas, o Rei.»686 A relação entre esta quarta dimensão e a tridimensionalidade do Grande vidro seria provavelmente o que Duchamp definia como «a aparição de uma aparência».687 Por meio do vidro, portanto, Duchamp era capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, uma nova relação de seu trabalho com o espaço em torno e de seu trabalho com o espectador. Ele consegue, por meio do recurso ao vidro como suporte, integrar tanto um quanto o outro à sua obra. Num jogo de reversões infinitas, Duchamp faz, simultaneamente, com que o espectador penetre no mundo do seu vidro e com que as figuras representadas se tornem parte do mundo do espectador, envolvendo ambas as esferas – obra e público – num mesmo espaço. 683

Ver Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 69. Possível tradução: A fêmea Pendurada é a forma em perspectiva ordinária de uma fêmea Pendurada em que se pode talvez tentar reencontrar a verdadeira forma –. 684 Ver idem, p. 58. 685 Marcel Duchamp em entrevista a Pierre Cabanne, op. cit., p. 67 686 Jean Clair, Marcel Duchamp ou le grand fictif, pp. 62-63. 687 Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 45.

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g. Mistério Para Octavio Paz, La mariée mise à nu par ses célibataires, même é uma das obras mais herméticas do século XX.688 Segundo Elizabeth Burns Gamard, na introdução a sua monografia sobre Schwitters, esta rivaliza apenas com a Merzbau em virtude de seu caráter enigmático.689 E são muitos os fatores que contribuem para acentuar o mistério que este trabalho funda: a escolha pelo vidro, sua divisão em duas partes, sua própria iconografia e, principalmente, as notas que deveriam lhe acompanhar, tão ou mais cifradas que aquilo que o Grande vidro dá a ver. Em função de seu acintoso hermetismo, por muito tempo proliferaram interpretações de caráter altamente mitificantes. Segundo Clair, «Entre todas as obras de arte feitas no século XX, não há, de fato, uma que tenha suscitado a imaginação dos críticos, tanto quanto posto à prova suas erudições e engenhosidades, quanto a obra de Marcel Duchamp intitulada La Mariée mise à nu par ses célibataires, même».690 Em 1959, em sua inaugural monografia sobre o artista, Lebel iniciou uma extensa tradição de leitura do Grande vidro a partir de uma aproximação ao esoterismo – aproximação esta que acabou se tornando um lugar-comum na tradição crítica de Duchamp –, ao observar que, uma vez que nas notas da Caixa verde se encontra «matéria para o labor obscuro de mais de uma vida», somente «os saltos bruscos de intuição podem levar a uma decriptação plausível, visto que aquela nos faz considerar por seu turno a hipótese do esoterismo».691 Lebel diz que é necessário estudar o papel dos metais nas operações do Grande vidro e sobretudo o emprego sistemático dos jogos de palavras e trocadilhos, «segundo o princípio mesmo da cabala fonética». Para ele, havia neste trabalho de Duchamp um arsenal inexaurível de referências tanto à alquimia quanto à cabala e ao tarô. E Lebel foi perguntar ao artista sobre a possibilidade de associação entre o vidro e estas fontes esotéricas. Ao que Duchamp retrucou: «Se eu fiz alquimia, é da única maneira que é admissível nos nossos dias, isto é, sem saber».692 Não contente, Lebel se convenceu – e convenceu muitos críticos depois dele – que esta 688

Octavio Paz, op. cit., p. 148. Elizabeth Burns Gamard, Kurt Schwitters’ Merzbau: The Cathedral of Erotic Misery, p. 3. 690 Jean Clair, op. cit., p. 15. 691 Robert Lebel, Sur Marcel Duchamp, p. 73. 692 Marcel Duchamp citado por Robert Lebel, op. cit., p. 73. 689

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resposta «não exclui em nada que Duchamp tenha descoberto a alquimia».693 E encerra seu texto reafirmando que «a elaboração e execução do Grande vidro podem evocar ao mesmo tempo uma ascese ou a Grande Obra dos alquimistas ou certos exercícios em aparência ociosos do Budismo Zen».694 Quase dez anos depois, por volta de 1968, Arturo Schwarz e Ulf Linde estavam chegando a conclusões muito semelhantes entre si sem um ter conhecimento da pesquisa do outro. Na Suécia, Linde, o tradutor das notas da Caixa verde para o sueco e o autor de uma das réplicas do Grande vidro,695 descobrira, totalmente por acaso, alguns anos antes, uma ilustração do tratado Alchimie, de Eugène Canseliet, que imediatamente lhe fez lembrar o desenho preparatório Première recherche pour: La mariée mise à nu par les célibataires, de 1912. A partir deste dado, se pôs a procurar toda uma documentação para encontrar outros indícios que lhe permitissem estabelecer que o vidro de Duchamp era, em essência, uma alegoria alquímica.696 Em Milão, Schwarz, organizador do catalogue raisonné do artista e responsável pela confecção, em 1964, de réplicas de readymades assinados por Duchamp, detalhou mais esta relação. Tendo como ponto de partida a tela juvenil de Duchamp intitulada Jovem e garota na primavera – quadro, para ele, exemplar da ligação de Duchamp com a alquimia –, criou uma série de associações das figuras do vidro e das referências das notas com elementos pertencentes ao universo alquímico. Com base nestas relações, chegou à conclusão de que o Grande vidro se resumia à descrição mítica de uma irrealizável relação entre irmãos, manifestando, portanto, o esquema de um dos mais difusos tabus no mundo: a proibição do incesto.697 Jack Burnham não só deu continuidade às comparações com a alquimia como ainda, temerariamente, associou esta ao tarô e à cabala, comparando Duchamp a um

693

Robert Lebel, op. cit., p. 73. Idem, p. 75. 695 A outra réplica do Grande vidro existente foi realizada por Richard Hamilton, na Inglaterra, por ocasião da mostra retrospectiva The Almost Complete Works of Marcel Duchamp, realizada em 1966. 696 Ulf Linde expôs suas idéias a respeito da relação do Grande vidro e da alquimia primeiramente num artigo compilado por Pontus Hulten no catálogo da exposição The Machine as Seen at the End of the Mechanical Age. Um resumo do que apresentou neste texto e do que estabeleceu ao longo dos anos pode ser encontrado no ensaio «L’Ésoterique», reproduzido por Jean Clair, Marcel Duchamp – Abécédaires: approches critiques, pp. 60-85. 697 Ver Arturo Schwarz, The Complete Works of Marcel Duchamp, pp. 97 e ss. Versões sintéticas do que apresenta neste volume podem ser encontradas também nos catálogos das exposições: La delicata scacchiera. Marcel Duchamp: 1902/1968, Marcel Duchamp, Marcel Duchamp, la Sposa ... e i Readymade, Marcel Duchamp: 66 Creative Years: From the First Paintingo to the Last Drawing. 694

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gnóstico. Ao contrário de Lebel, Linde e Schwarz, suas análises, muitas vezes, parecem se embasar em puros delírios, como neste trecho: A mensagem do Vidro está encerrada inteiramente no valor das cifras do título. A soma das letras até a primeira quebra, La mariée mise à nu par, é dezoito. Enquanto que a seção seguinte, ses célibataires, même, atinge dezenove. Dezoito reflete os dezoito Arcanos do Tarô, a Lua que governa o período de ruína completa. Dado que a Lua é feminina e controla a pulsão das forças d’ÁGUA, Duchamp liga este Arcano à Noiva. Dezenove, por outro lado, significa todos os primeiros começos da regeneração através do Sol masculino. Se os celibatários são a causa de todos os aborrecimentos, eles ajudarão também a triunfar. O même, que se adiciona ao fim do título e que é, em aparência, supérfluo, poderá significar idêntico, igual, eles mesmos, ou talvez, como Ulf Linde o sugere, ser um trocadilho transformando même em m’aime. (...) Même contém também quatro letras por combinação de duas, de um modo que não se pode deixar de pensar na repetição masculino-feminino que se encontra nas letras hebraicas do Tetragrammaton. Como princípio de cognição, même «completa» os Celibatários, elevando o seu número de quinze, a Chave do Demônio, a dezenove e à redenção.698

De todos os críticos citados, Maurizio Calvesi foi o que levou mais a fundo a pesquisa neste sentido. Lançando mão de um imenso arsenal iconográfico e bibliográfico, mostrou como cada um dos detalhes do Grande vidro e de suas notas podia estar vinculado aos elementos próprios da alquimia e como até mesmo o modo de funcionamento da máquina celibatária, conforme sugerido por Duchamp em seus manuscritos, correspondia aos processos alquímicos. Para além disso, propôs ainda uma interpretação do vidro dentro da histórica iconologia da ascensão da Virgem aos céus, a partir de uma releitura do título da obra, La marieé mise à nu par ses célibataires, même. Para começar, Calvesi faz notar que nu em francês soa como nue, nuvem. Mas toda a frase se presta a uma dupla leitura homófona, cabalisticamente ulterior e alquimisticamente equivalente. La mariée mise à nu, a noiva desnudada, contém em si a expressão: La Marie est mise à nue, isto é, a Maria é posta à nuvem, ou na nuvem. A Maria posta na nuvem não pode ser outra que a Virgem elevada ao céu e, de fato, na tradição hermética, o opus alquímico é investido algumas vezes da figura alegórica da Assunção. Esta é a chave secreta do Grande vidro.699 698

Jack Burnham, «La signification du Grand Verre», VH 101, 6 (1972), p. 71. Maurizio Calvesi, op. cit., p. 84. Jean Clair desmonta as principais evidências levantadas por Calvesi para uma aproximação do vidro à alquimia. Segundo Clair, estas evidências seriam: «1) A similitude, apontada por Ulf Linde, entre um desenho preparatório do vidro e a ilustração de um tratado de Solidonius, publicado pelo misterioso Canseliet em 1964. 2) O tema do Rei e da Rainha, que aparece nos quadros de 1912, realça a simbologia alquímica Enxofre/Mercúrio. 3) Em 1921, Duchamp se fez fotografar com um corte de cabelo em forma de estrela de cinco pontas, como um iniciado. 4) Duchamp pratica os trocadilhos que remontam à cabala fonética». Frente a estes argumentos, se posiciona: «4: Compatriota d’Alphonse Allais, freqüentador do Salão dos Humoristas, colaborador do Rire, leitor de Roussel e de Brisset, Duchamp não tinha necessidade de ser iniciado na “linguagem dos pássaros” para provar o gosto da língua. 3: A estrela, se vista de perto, é de fato um cometa cuja cauda vai em direção à frente, ao rosto do artista: é uma alusão explícita a uma nota de 1912: “Cet enfant-phare pourra, graphiquement, être une comète, qui aurait sa queue en avant...”. 2: Compreende-se mal que Duchamp, se 699

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Por fim, para citarmos mais um exemplo, Jean Suquet, mesmo tentando realizar um estudo sério e detalhado de descrição e compreensão do Grande vidro – e Suquet dispõe de vários títulos sobre o assunto –, por vezes recai no misticismo. Em algumas passagens do que talvez seja seu principal volume sobre esta obra, recorre à astrologia para buscar iluminar certos aspectos obscuros tanto da biografia de Duchamp quanto de elementos de La mariée..., como na passagem: Quando nasce Marcel Duchamp, Vênus está «em elevação», próxima ao Meio-do-Céu. Ela está, ao mesmo tempo, «em queda» no signo da Virgem. Entre o esplendor e a decadência, oscila esta Vênus em Virgem. Rainha mascarada, ela se esgueira na madrugada nas casas de má fama onde todas as noites ela limpava as piores manchas. Qualquer homem, sob pena de morte, não pôs a nu o rosto da besta ao prazer. Meio-dia culminante, Vênus voltou a ser pura como o dia. Ao sextil de Vênus, a Lua, no nascimento de Marcel Duchamp, conheceu igualmente uma hora ambígua...700

Para Duchamp, todas estas interpretações poderiam ter-lhe parecido esforços inúteis. Quando indagado por seu amigo George Heard Hamilton sobre o enigma de seu Grande vidro, respondeu simplesmente: «Não há solução porque não há problema».701 Golding sugere um desdobramento desta resposta: «e não há problema porque as adivinhas que estão embutidas no Grande vidro são de algum modo planejadas de tal maneira que elas nunca poderão ser respondidas».702 Ou, pelo menos, poderíamos acrescentar, não por meio de uma interpretação calcada em simbolismo. Nota Chalupecký: «Se nós lemos as interpretações simbólicas da obra de Duchamp, poderíamos ficar surpresos de como estas interpretações parecem absolutamente arbitrárias – qualquer coisa, no fim das contas, significa qualquer coisa». E acrescenta: «Uma interpretação racional de símbolos é impossível. O discurso simbólico tem um lugar precisamente onde o discurso racional deixa de ser possível. Uma obra de arte não

atento ao definir os tons os quais usar, não respeitou o simbolismo das cores que se associa, em alquimia, ao Rei e à Rainha. A mesma objeção vale para o Vidro: se o domínio superior, aquele da Noiva, é consagrado ao Mercúrio, por que ele não é verdadeiramente branco? 1: Há todas as chances de ser uma pura coincidência formal. Reconhecemos portanto que se trata de um só indício pouco convincente e que seu inventor, ao contrário daqueles que o seguem, sempre se manteve muito prudente nas suas interpretações. Se, para os outros, isso é a prova de que ele se propôs a fazê-la, que a misteriosa viagem de Duchamp a Munique, em 1912, foi para ele ocasião de visitar um museu de alquimia e de descobrir todo um sistema simbólico do qual ele teria necessidade para realizar o projeto do vidro, este indício poderia ser seriamente reconsiderado» («La fortune critique de Marcel Duchamp», Revue de l’art, 34 (1976), p. 97). 700 Jean Suquet, op. cit., p. 95. Suquet dedicou um pequeno livro inteiramente à relação entre a astrologia e Duchamp, que se chama Regarder l’heure: sur le ciel de Marcel Duchamp. 701 Marcel Duchamp citado por Calvin Tomkins, The Bride and the Bachelors, p. 57. 702 John Golding, op. cit., p. 13.

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pode ser decifrada como um rebus».703 Talvez o Grande vidro não devesse ser interpretado, pelo menos não nestes termos. Para Jean-François Lyotard: Interpretar é fútil. Igualmente querer circunscrever o verdadeiro efeito do Grande vidro, e, portanto, seu verdadeiro conteúdo; o Vidro é feito precisamente para não ter um efeito verdadeiro, nem mesmo qualquer efeito verdadeiro, se não uma lógica mono ou polivalente, mas de efeitos incontrolados; ou o verdadeiro só é o controlável, como o falso, então Duchamp visa um espaço para lá dos valores de verdade: impotência [impouvoir] e potência [puissance].704

Segundo ele ainda, no caso de Duchamp, seria preciso «não procurar compreender e mostrar o que se compreendeu, mas antes o contrário, procurar não compreender e não mostrar o que se compreendeu».705 Parece-me que o fato de o enigma posto pelo vidro em conjunção com suas notas ser, por natureza, irresolúvel contribui, de uma certa forma, para o nãoencerramento do trabalho. Assim, o Grande vidro permanece para sempre indagando o espectador. Seria como se, decifrado, perdesse parte do que o mantém aberto. O seu mistério talvez seja a sua alma. Poderia traçar um paralelo entre o mistério desta dimensão ritual com aquele aspecto da dimensão mítica que chamei de autoreferencialidade. Só para lembrar, em Mondrian e Malevitch, o afastamento da representação segundo a natureza e o ingresso, com isso, numa abstração das formas levava à auto-referencialidade de suas pinturas, isto é, elas não faziam mais referência ao mundo externo, mas a si próprias. Por agirem desta forma, acabavam parecendo códigos cifrados. Na Merzbau, de Schwitters, e em La mariée..., de Duchamp, o que denomino mistério funciona de um modo similar, mas não igual. Estas peças artísticas, por se apresentarem como um mistério sem solução, terminam por chamar a atenção para si mesmas, não tanto para as formas que trazem representadas, mas para suas próprias constituições. No entanto, apesar de podermos vislumbrar uma certa autoreferencialidade também nesta dimensão ritual, optei por chamá-la não deste modo, mas de mistério justamente para marcar a grande diferença entre as duas dimensões. O que denomino de auto-referencialidade diz, neste estudo, respeito àquelas obras que podem ser qualificadas de obras, porque se circunscrevem aos limites de um quadro; escolhi mistério como seu par análogo nesta outra dimensão por conter em si, como já salientei 703

Jindrich Chalupecký, «Nothing but an Artist», Studio International, CLXXXIX, 973 (1975), p. 34. Jean-François Lyotard, Les TRANSformateurs DUchamp, p. 61. 705 Idem, p. 20. 704

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no capítulo anterior, não só as idéias de segredo e de enigma, como aquelas de ritual e de iniciação. Mostramos ainda, na parte anterior, como alguns aspectos da produção de Mondrian e de Malevitch apontavam para um além da dimensão mítica, deixando entrever, mas somente entrever, um ímpeto de ir além daquilo que estavam produzindo, como se percebessem que suas obras não estariam aptas a fazer frente à realidade, como se pressentissem que deveriam ir além do quadro e das tintas mas ainda sem saber muito bem como. O Grande vidro e a Merzbau vão definitivamente além. Calvesi já observava: O processo criativo não «se esgota» no Grande vidro, mas continua através e além: o Grande vidro é de fato como uma seção sua. Não contam somente aquela forma, aquele signo, mas o seu significado e o pretexto para outros significados, não contam e não significam somente aquela forma, aquele signo, mas o gesto, o processo, o raciocínio que lhe produziu; não conta a forma sozinha, mas o seu ritual, e é em nível de ritual significante (quase de fato de magia) que a forma e o comportamento resultam signos complementares ou intercambiáveis.706

De fato, o Grande vidro, como a Merzbau, parece instaurar em torno de si um ritual. Octavio Paz já chamava a atenção para a indicação de uma ação de caráter ritualístico contida na expressão central do título em francês: «Em primeiro lugar, mise à nu não quer dizer exatamente desnudada ou desvestida; é uma expressão muito mais enérgica que nosso particípio: posta a nu, exposta. Impossível não associá-la com um ato público ou um rito: o teatro (mise en scène), a execução capital (mise à mort)».707 (Não esqueçamos que o teatro se originou do ritual.) E este trabalho de Duchamp organiza seu ritual justamente em torno desta ação de pôr a nu. É ela – e algumas notas da Caixa verde708 – que nos leva a constatar que aqui, do mesmo modo que na Merzbau, seu ponto de partida é também o erotismo – a única coisa que Duchamp declarou levar a sério.709 O desnudamento, para Bataille, constitui-se como a ação decisiva no erotismo. A nudez, segundo ele, «é um estado de comunicação que revela a busca de uma 706

Maurizio Calvesi, op. cit., p. 257. Jean Clair busca compreender o vidro como um ritual iniciático. Porém, considera como ritual a narrativa do mecanismo de funcionamento da máquina, distinguindo nesta três momentos de uma iniciação: a preparação do neófito (os celibatários), a sua perda de consciência no encaminhamento rumo à Noiva e a sua ressurreição final, quando se acopla à Noiva (ver Marcel Duchamp ou le grand fictif: essai de mythanalyse du grand verre, pp. 137-139). 707 Octavio Paz, op. cit., p. 149. 708 Numa nota desta caixa, observa que o erotismo «doit être un des grands rouages de la machinecélibataire» (deve ser uma das grandes engrenagens da máquina-celibatária) («La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 59). 709 Duchamp disse em entrevista a Alain Jouffroy: «a única coisa séria que poderia considerar ou que já tentei considerar é o erotismo» (op. cit., p. 40)

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continuidade possível do ser para além do voltar-se sobre si mesmo. Os corpos se abrem para a continuidade através desses canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade».710 No entanto, no vidro, como na Merzbau, o que é evidenciado é a impossibilidade de realização do amor carnal, impossibilidade esta que começa pela própria divisão da peça em duas metades: o domínio da Noiva não se encontra – nem se encontrará nunca – com o dos celibatários. É justamente em função desta separação infranqueável entre as duas metades que, segundo Paz, podemos ver no vidro uma encenação dos mitos relativos à virgem e à sociedade fechada dos homens – interessante notar que, década antes, Sidney e Harriet Janis já haviam feito uma aproximação entre a Noiva e a Virgem711 e que, numa nota, Duchamp descreve a noiva como «une sorte d’apothéose de la virginité».712 Paz chama a atenção para o caráter circular e ilusório da operação do vidro descrita nas notas: «tudo nasce da Virgem e tudo retorna a ela».713 Assim, a Noiva está condenada a sempre ser virgem. Portanto: «A maquinária erótica que [a Noiva] põe em marcha é inteiramente imaginária, tanto porque seus machos não têm realidade própria como porque a única realidade que ela conhece e que a conhece é reflexa: a projeção de seu próprio Motor-Desejo».714 Como resultado, os celibatários são obrigados a buscarem o prazer sozinhos: «Le célibataire broie son chocolat luimême».715 Desta forma, os disparos talvez possam ser vistos como respingos de esperma – é interessante lembrar que, em 1946, Duchamp presenteou Maria Martins com Paysage fautif, assemblagem feita com o esperma do artista (e talvez se pudesse compreender o próprio Grande vidro como um rito privado: como já observou Krauss, o nome do artista se acha contido no título, La MARiée mise à nu par ses CELibataires,

710

Georges Bataille, O erotismo, p. 17. Harriet e Sidney Janis, «Marcel Duchamp: Anti-Artist», compilado por Robert Motherwell, The Dada Painters and Poets: An Anthology, p. 312. Décadas depois, David Hopkins retoma esta relação em Marcel Duchamp and Max Ernst: The Bride Shared, pp. 66-71. 712 Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 58. 713 Octavio Paz, op. cit., p. 173. Paz, no final de seu ensaio sobre Duchamp, dirá que o Grande vidro, por fim: «É um mito crítico e uma crítica da crítica que assume a forma do mito cômico. No primeiro momento, traduz os elementos míticos em termos mecânicos e assim os nega; no segundo, translada os elementos mecânicos a um contexto mítico e os nega por sua vez. Nega o mito com a crítica e a crítica com o mito. Esta dupla negação produz uma afirmação nunca definitiva, em perpétuo equilíbrio sobre o vazio» (p. 177). 714 Octavio Paz, op. cit., p. 173. 715 Marcel Duchamp, «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 46. Possível tradução: O celibatário mói ele mesmo seu chocolate. 711

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même, sendo que cada uma das duas sílabas diz respeito a um dos domínios do vidro716). Não é à toa que uma das litanias da Carreta chama-se Onanismo. Parece haver em La mariée..., como o observamos na Merzbau, uma tentativa, por meio do erotismo e da instauração de uma dimensão ritual em torno deste, de recuperar uma perda (a perda da possibilidade de se amar, talvez) e de buscar alguma forma de permanência. Sintomático desta última é o subtítulo que Duchamp atribuiu a seu vidro: retard en verre, retardo ou atraso em vidro. Não posso deixar de mencionar que, para Aldo Natale Terrin, a realidade mais importante do rito consiste em «deter o tempo», «em fazê-lo fluir lentamente; onde a lentidão é diretamente proporcional à “indisponibilidade” do tempo ritual. O tempo do rito é um tempo “lento” porque não é “dependente de”, não tem o sentido de utilidade, não se empenha num resultado».717 Segundo Terrin, «Não se pode suspender o tempo, mas se pode “retardá-lo”».718 Retardar o tempo (atitude também implícita no fato de ser a obra inacabada), alongá-lo e distendê-lo a fim de obter uma continuidade, parece ser o ponto central do vidro e desta espécie ritualização que ele coloca em jogo. Um processo similar de instituição de uma certa ritualização também poderia ser observado em torno da última obra de Duchamp, a qual estabelece um diálogo bastante interessante com La mariée... Refiro-me a Étant donnés. 1º la chute d’eau. 2º le gaz d’éclairage (fig. 55 e 56). Realizada em segredo entre os anos de 1946 e 1966, só foi revelada, segundo o desejo do artista, depois de sua morte, em 1968. Étant Donnés estava montado numa pequena sala de um edifício comercial no número 80 da East 11th Street, em Nova York. Seguindo as instruções de Duchamp, depois de sua morte, Étant donnés foi desmontado e remontado no Museu de Arte de Filadélfia, num lugar preparado especialmente para recebê-lo. Em 7 de julho de 1969, a montagem na Filadélfia estava completa. Desde então, Étant donnés encontra-se numa sala pequena deste museu, junto a outros trabalhos seus, todos eles pertencentes à coleção de Walter e Louise Arensberg. Nesta sala, não há quadros, só uma porta espanhola de madeira com contorno de tijolo. Chegando-se perto, percebe-se que há dois furos. Se se espiar por estes furos, ver-se-á a imagem de uma mulher nua deitada numa relva, segurando uma

716

Ver Rosalind E. Krauss, «Notes on the Index: Part I», The Originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, p. 202. Krauss sugere ser esta peça um auto-retrato do artista. 717 Aldo Natale Terrin, O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade, p. 260. 718 Idem, p. 258.

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lâmpada de gás. O nu é uma construção em relevo, cujo modelo alega-se ser a escultora surrealista brasileira Maria Martins, que conhecera Duchamp na década de 1940, em Nova York. A paisagem é o resultado da manipulação sobre uma foto da queda d’água em Chexbres, na Suíça. A lâmpada é de verdade. A relação do Étant donnés com La mariée... não se restringe ao título – que foi retirado de uma das primeiras notas da Caixa verde.719 Podemos compreender o Étant donnés como uma espécie de continuação ou comentário ao La mariée... Também esta última obra versa sobre o erotismo e também se instaura em torno dela uma espécie de ritual. No Étant donnés, a Noiva aparece finalmente despida. Seus cabelos, loiros, estão jogados por sobre o rosto. E ela mostra desavergonhadamente, para quem espia pelos buracos da porta, a sua vulva. Sua posição, aliás, lembra muito a do torso de mulher que vemos em A origem do mundo, de Courbet (quem, para Duchamp, é culpado pela tradição de pintura retiniana720). Observa Lyotard: «o tempo do Grande vidro é aquele de um desnudamento que não foi ainda realizado, o tempo do Étant donnés... é aquele de um desnudamento que já foi realizado. O Vidro é o “atraso” do nu, Étant donnés seu avanço. É muito cedo para ver a mulher se pondo a nu no Vidro, e é muito tarde para a cena do Étant donnés...».721 Octavio Paz chama a atenção para uma relação que se pode traçar entre as duas obras a partir do jogo de correspondências e reflexos que ambas estabelecem. Nas duas, o simples ato de olhar uma obra se converte no ver-através-de. Num caso, há a porta; no outro, o próprio vidro, que dificulta a visão do que está representado. Porém, nas duas obras, olhamo-nos a olhar. Tanto num caso como no outro, assim como há muito tempo em Las meninas, de Velázquez, a circularidade das duas obras abarca também o espectador. Afirma Paz: O espectador, como as Testemunhas Oculistas, é um voyeur; como elas, é uma testemunha ocular, tanto no sentido judicial de achar-se presente no acontecimento quanto no religioso de que dá fé de uma paixão ou martírio. (...) as Testemunhas Oculistas são parte do Grande vidro e o observador da Conjugação [Étant donnés], pelo fato mesmo de espreitar, participa no rito duplo do voyeurismo e da contemplação estética. Melhor dizendo, sem ele, não se realizaria o rito.722 719

O título do Étant donnés é retirado da primeira frase da nota da Caixa verde, que se intitula Préface (ver «La mariée mise à nu par ses célibataires, même», op. cit., p. 43). 720 Diz Duchamp: «Eu estava interessado em fazer com que a pintura servisse a meu propósito, e em me afastar da fisicalidade da pintura. Para mim, Courbet introduziu a ênfase física no século XIX» («The Great Trouble with Art in This Country», op. cit., p. 125) 721 Jean-François Lyotard, op. cit., p. 39. 722 Octavio Paz. «Water Writes Aways in Plural», compilado no volume 6 das obras completas, Los privilegios de la vista I: Arte moderno universal, p. 201.

241

O Étant donnés se revela como um lugar «sagrado». Nisso, se aproxima mais da Merzbau que do próprio vidro. Como na obra de Schwitters, o Étant donnés não pode ser transportado: seu lugar é o lugar em que foi construído. Assim, instaura um lugar específico para si, como aquelas imagens de virgens que não podem ser transportadas para fora de seus nichos – o que dá margem para aumentar seu mistério e o que faz recobri-lo de um certo ar «sagrado». Afora isso, ainda poderíamos ressaltar que esta obra tem um detalhe a mais que deve ser levado em conta: não se pode chegar a ela, não se pode fotografá-la, não se pode transportá-la. Ela é repleta de interdições. Apesar de ser uma obra acabada, ela se mantém em suspenso, em eterno processo: afinal, ao forçar os espectadores a uma aproximação difícil e sempre relativamente distanciada pelo bloqueio oferecido pela porta, é como se ela se renovasse a cada espiadela. Comenta Chalupecký: «Por isto esta obra logra escapar inteiramente do contexto da arte; mesmo no meio da arte moderna, que tem tantos aspectos e facetas, ela permanece inteiramente única e sozinha. Ela se desviou tanto da nossa civilização que se desviou também daquilo que esta civilização chama arte, ou mesmo antiarte».723 Por meio da suspensão do tempo e desta produção de um espaço diferenciado, apartado do espaço exterior, tanto o Grande vidro como o Étant donnés acabam por se investir de certo caráter aurático. Mesmo nestas obras construídas a partir da mais alta racionalidade, por um dos artistas mais irônicos e céticos do século XX, ainda se pode vislumbrar, como nos trabalhos de Mondrian, de Malevitch e de Schwitters, uma tentativa de fingir (estamos, portanto, no campo da fictio, não da fides) um algo mais, ao qual, na falta de termo melhor, poderíamos denominar transcendência. O próprio Duchamp, certa feita, afirmou que o artista devia «manter as grandes tradições espirituais com as quais a religião parece ter perdido o contato». «O artista moderno», completou, «não é mais um artista. É uma espécie de missionário. A arte substituiu a religião e os homens dirigem a ela a mesma atitude respeitosa que dirigiam à religião».724 Em entrevista à rádio BBC, em 1959, Duchamp não deixou dúvidas ao explicar o termo mise à nu do título do vidro: «Você sabe, Cristo estava desnudo, e esta era uma maneira travessa de introduzir erotismo e religião».725 Não por acaso Jean Clair 723

Jindrich Chalupecký, «Nothing but an Artist», op. cit., p. 45. Marcel Duchamp citado por Jindrich Chalupecký, «Art et transcendance», op. cit., pp. 21-22. 725 Marcel Duchamp citado por Dawn Ades, Neil Cox e David Hopkins, Marcel Duchamp, p. 119. 724

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observa: «Sidney Janis tinha, de um certo modo, razão: o Grande vidro possui uma conotação religiosa, não por sua iconografia, mas por sua estrutura material e pela ideologia idealista que este suporta. A transparência do Grande vidro é a sombra carregada de uma realidade superior».726 No entanto, frise-se, esta realidade superior parece ser a da arte e, mais amplamente, a da cultura – «as grandes tradições espirituais» a que alude Duchamp. Torna-se assim, a arte, no Grande vidro, no Étant donnés, mas também na Merzbau, culto de si mesma, celebração infinita de sua própria diferença – sombra, para usarmos a palavra exata de Jean Clair.

726

Jean Clair, Marcel Duchamp ou le grand fictif, p. 56.

243

Fig. 52: La mariée mise à nu par ses célibataires, même ou Grande vidro

244

Fig. 53: Élevage de poussiêre

Fig. 54: La mariée mise à nu par ses célibataires,

même na exposição do Museu do Brooklin, em 1926, antes de ser quebrada. Ao fundo, há três quadros de Mondrians

245

!lSb

Fig. 5"ff,ant

donnés. 1° ia chute d'eau. 2° ie gaz d'éclairage

246

CONCLUSÃO O termo «conclusão» sempre me pareceu por demais categórico. Soa-me como se expressasse o encerramento definitivo do assunto tratado. E, quanto a isto, estou de pleno acordo com Jorge Luis Borges: «El concepto de texto definitivo no corresponde sino a la religión o al cansancio».727 Creio – e cá estou eu de novo expondo minhas convicções pessoais – que todo texto, pelo menos enquanto seu autor está vivo, é passível de contínua reelaboração (não por acaso me interessei por processos). Não é, pois, minha intenção, nestas palavras finais, embora as apresente sob o título Conclusão, marcar um fechamento absoluto para minha pesquisa. O que ainda tenho para dizer são antes algumas observações ou desdobramentos inevitavelmente, em alguma proporção, provisórios – finais somente na medida em que, em todo discurso escrito, um ponto final é necessário, para que o texto cumpra seu destino, o encontro com o leitor. Ao longo deste livro, espero ter conseguido demonstrar que se pode perceber uma nova articulação na relação entre arte, mito e rito na modernidade, uma articulação que está além da simples apropriação pela arte de motivos míticos. A nova relação que observamos em certos trabalhos – e mesmo nas manifestações artísticas – parece remontar à relação primordial da arte com o culto, quando aquela achava-se a serviço deste – em função disso, evitei utilizar-me impensadamente do termo «vanguarda» (que indica um estar à frente e implica uma idéia de progresso); acredito que este, embora consagrado, não é condizente com o processo que descrevi. No entanto, não se trata mais de cultos e de ritos stricto sensu. Na modernidade secularizada, o mito se dessacraliza e deixa de ser pano de fundo sagrado para subsistir como forma, como, por assim dizer, o princípio formal secreto dos processos constitutivos de determinadas produções artísticas. O mesmo ocorre com o rito. Se se pode reconhecer um novo culto em torno da arte – e vimos como, de uma forma ou de outra, os quatro artistas que estudamos chegaram a proposições análogas acerca de a arte ser um substituto para a religião –, este não diz respeito a qualquer culto existente ou mesmo, conforme elucidara Benjamin a respeito da arte secularizada produzida a partir da Renascença, a um culto à beleza ou ao artista, mas a um culto singular, destituído de crença num sentido tradicional e estabelecido pela própria arte. 727

Jorge Luis Borges, Obras completas, v. 1, p. 239.

247

Na Parte I, parte na qual tencionei apresentar um panorama geral das mudanças empreendidas pelos movimentos encetados no início do século XX, vimos como, a partir de uma nova relação que se estabelecia entre artista e público, se poderia identificar um certo caráter ritualístico, mais especificamente sacrificial, nos manifestos e nas manifestações artísticas da época, implícito nos gestos e nas ações dos artistas e na vontade de destruição da arte, de fazer tabula rasa do cenário artístico para começar de novo a partir do zero. Quis fazer notar que, para se atingir este grau zero, os artistas freqüentemente

recorreram

a

alguma

espécie

de

«primitividade»,

seja

se

autodenominando «primitivos», seja recuperando temas «primitivos» ou, o que me interessava sobremaneira, procurando uma forma constitutiva de caráter primitivista para suas obras, seus objetos, seus manifestos, suas declarações. Por um lado, esta «primitividade» encaminhava a pintura para um extremo de simplificação formal, chegando à abstração. Por outro, se manifestava no próprio comportamento dos artistas nas soirées e também nas ações empreendidas por eles no processo de elaboração de um determinado trabalho. Foi neste contexto que sugeri que, se nos voltássemos para casos particulares, poderíamos identificar – a partir da observação de certos tópicos comuns (repetição, auto-referencialidade, ordem e nexo entre texto e obra, num caso; obra sem fim, artistaoficiante, ordem, templo e mistério, noutro) – duas formas de retorno ao mito e ao rito, configurando duas dimensões distintas: uma dimensão mítica e uma dimensão ritual. Em ambas as dimensões, distingue-se um anseio em se instaurar uma realidade à parte do mundo exterior, realidade esta que promete, de modo diferente em cada uma das dimensões, uma transcendência que, de fato, não é mais possível na arte secularizada. Na dimensão mítica, encontram-se Mondrian e Malevitch. Na ritual, Schwitters e Duchamp. A primeira é mais concentrada. A segunda, mais expansiva. Na primeira, talvez precisamente devido a essa concentração, ainda estamos dentro da categoria de obra, até porque se pode verificar nas produções enfeixadas por esta dimensão uma preocupação especificamente artística com a forma. Na segunda, dada sua expansividade inerente, a categoria de obra se estilhaça: a ênfase na forma desloca-se para o gesto. Na primeira, nos textos escritos pelos artistas, percebe-se um fundamento «teológico» cuja meta é atingir alguma forma de absoluto. Na segunda, não há uma intenção declarada pelos artistas de se alcançar um absoluto, mas podemos perceber

248

uma tentativa de determinar um espaço diferenciado do espaço profano, uma irrupção no espaço e no tempo ordinários; e ressalte-se que é um espaço único e insubstituível: a Merzbau pertence somente ao estúdio do artista, como o Étant donnés, a uma pequena sala do Museu da Filadélfia, e o Grande vidro está impedido de ser transportado devido a sua fragilidade. Com isto, estes trabalhos parecem restituir ao campo da arte o mistério que circunda determinadas imagens cultuais, vistas somente em algumas ocasiões e lugares determinados ou impedidas de serem apreciadas por todos. Deste modo, parece se

restaurar,

nos

trabalhos

dos

quatro

artistas

estudados,

consciente

ou

inconscientemente, um certo (e novo) caráter aurático. Mas não seria contraditório, a propósito destes trabalhos, falar em aura secularizada, segundo as observações de DidiHuberman: É preciso secularizar a aura, é preciso assim refutar a anexação abusiva da aparição ao mundo religioso da epifania. A Erscheinung benjaminiana (...) faz da aparição um conceito de imanência visual e fantasmática dos fenômenos ou dos objetos, não um signo enviado desde sua fictícia região de transcendência.728

Na dimensão mítica, com Mondrian e Malevitch, chama-se ainda a atenção para a linguagem da pintura. Quer-ser forjar uma nova arte, um novo começo, por meio de uma nova forma. A diferença em relação à arte anterior é que esta forma se constrói não mais a partir de referentes externos, mas a partir de elementos que são próprios à pintura. É em função disso que a arte criada por Mondrian e Malevitch resulta abstrata e, como tal, incapaz de fazer referência a outra coisa que a ela mesma e, deste modo, as obras instituem-se como realidades diferenciadas, realidades que, sustentadas por um discurso «teologizante» de base, pretendem ser mais elevadas que a realidade do mundo exterior. Suas pinturas, organizadas por meio da combinação de um número restrito de elementos, terminam por se apresentar como totalidades indivisas e altamente concentradas. Quadros como Quadrado negro e Composição nº 1, por sua excessiva redução de elementos, produzem um efeito paralisante no espectador. «Somos submetidos ao olhar invisível da obra», já destacava Alain Bonfand em relação a Malevitch.729 Seu olhar é como o da Medusa: nos petrifica. Aqui, a remissão a

728 729

Georges Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha, pp. 157-158. Alain Bonfand, A arte abstrata, p. 26.

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Benjamin é esclarecedora: «Perceber a aura de uma coisa significa investi-la do poder de revidar o olhar».730 Schwitters, por sua vez, parte de uma preocupação não tanto com a linguagem própria da pintura, mas com a forma em sentido mais amplo. O que ainda orienta suas colagens e assemblagens Merz, que deixam de ser simplesmente pinturas, é a busca do equilíbrio formal a partir da combinação de seus elementos internos. Por isto, por reconhecer em suas produções uma certa preocupação formal (e, portanto, mantendo ainda uma ligação, mesmo que tênue, com Mondrian e Malevitch), optei por começar com este artista a parte deste estudo dedicada à dimensão ritual. Contudo, mesmo aí, em seus primeiros trabalhos Merz, em que se identifica esta preocupação formal, já começa a se estabelecer um distanciamento em relação às práticas de Mondrian e Malevitch. Primeiro, seus textos não pretendem e não resultam numa filosofia ou «teologia». Revelam apenas suas intenções para com sua arte. Segundo, Schwitters não se restringe mais à matéria-prima estritamente pictórica. Ele passa a incorporar em seus quadros, junto à massa de tinta, fragmentos de objetos recolhidos da rua. Terceiro, ele transforma as ações consecutivas de recolher, limpar e agregar os objetos às suas construções Merz em ações não só inerentes como determinantes de suas produções. Desta forma, o gesto do artista acaba também se tornando parte integrante do trabalho. (Em Mondrian e Malevitch, o processo de repetição incessante de uma mesma estrutura poderia ser visto como uma ação, de certa forma, pré-ritualística. Na repetição do mesmo princípio, da mesma forma, pode-se vislumbrar um movimento pré-gestual, contudo, este não chega a se manifestar como tal em cada pintura singular.) Na Merzbau, Schwitters vai ainda mais longe, e a preocupação formal acaba soterrada por outros elementos mais significativos. Em torno desta construção, se instaura uma série de novas relações: do artista com seu trabalho, do trabalho com o espaço circundante e do trabalho com o espectador. Quanto à primeira relação, o artista desempenha o papel de centro articulador de sua peça: é ele quem vai organizar este outro mundo tão particular, à parte do mundo exterior; cabe a ele decidir que material integrar à sua construção e quais destes materiais deve passar por «purificação»; assim como é ele que determina quem pode ou não visitar sua construção. Quanto à segunda, a Merzbau estabelece necessariamente uma relação com o espaço à sua volta – e esta me 730

Walter Benjamin, «Sobre alguns temas de Baudelaire», Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, p. 140.

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parece ser a diferença mais evidente entre a dimensão mítica e a ritual. Ou melhor, a Merzbau não existe sem se relacionar com o espaço: este é um quesito determinante. Ela toma o ambiente e cria uma relação de simbiose com este, por isto não pode ser transportada. E lembremos que não se trata de um ambiente qualquer: é a própria casa do artista que abriga em si uma estranha construção que mais parece um organismo vivo. Quanto à terceira relação, entre o trabalho e o espectador, gostaria, antes de tudo, de ressaltar mais uma vez como é estranho falar em espectador ou observador ou até mesmo público quando se está em questão um trabalho como a Merzbau. Talvez fosse mais adequado dizer visitante. Nesta, exigia-se a participação ativa do visitante, não em forma de resposta a uma provocação precedente como vimos, na Parte I, nas manifestações artísticas, mas efetiva: devia-se penetrar, caminhar, passear, em suma, experimentar a Merzbau com todos os sentidos. Com Duchamp, em muito pouco tempo, a preocupação formal cede posto à preocupação conceitual. Como em Schwitters, o gesto aqui acaba por suplantar a forma e, assim, o artista e suas ações – o centro e o princípio da dimensão ritual – terminam por se apresentar como núcleos ordenadores de suas produções. Também aqui o trabalho se orienta a partir das escolhas e das determinações do artista, escolhas e determinações que, como vimos, estão além da opção por esta ou aquela cor. Ao optar pelo suporte em vidro para La mariée mise à nu par ses célibataires, même, Duchamp definia a intervenção da sua peça no espaço e a interação do espectador com seu trabalho, criando assim uma necessária relação com o ambiente e uma nova relação com o público (mas de modo um tanto diverso do verificado na Merzbau): tanto um quanto outro são convocados a fazer parte da peça. Por fim, ainda em relação a Duchamp, salientei o caráter absolutamente diferenciado de seus textos, se comparados com os de Mondrian, Malevitch e mesmo Schwitters. Suas notas manuscritas, reunidas em três caixas diferentes, não fazem qualquer referência a um absoluto, a um universal ou a um primordial. Mesmo porque não é este o assunto de Duchamp: ele não se diz interessado em forjar uma transcendência exterior. Suas notas referem-se exclusivamente a suas produções. Ao invés de desempenharem o papel de uma «teologia», como em Mondrian e Malevitch, elas assumem as feições do mito de base com o qual se relaciona o rito em torno do vidro. Seus escritos não visam a um plano externo à obra, como em Mondrian e Malevitch, mas se voltam para seu trabalho mesmo: seu movimento não é para o

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exterior, para o que está fora da sua produção, mas para dentro, acentuando ainda mais o caráter auto-referencial e misterioso. Enfim, de tudo o que estudamos, podemos fazer algumas observações finais. Não podemos dizer que a dimensão mítica se opõe à ritual. Elas apenas manifestam de modos diversos o mesmo impulso: afastar-se da arte do passado, negando-a e rejeitando-a efusivamente, para, no momento seguinte, buscar construir uma arte (ou não-arte) nova. Nas pinturas de Mondrian e Malevitch, a resposta a este impulso adquire uma forma mítica: o processo de repetição de uma mesma lógica interna revela uma estrutura abstrata, auto-referencial e que pretende se apresentar como uma realidade à parte com vista a se atingir uma transcendência. Nos trabalhos de Schwitters e Duchamp, o mesmo impulso adota uma forma ritual, de mito posto em ato: tudo decorre de uma ação ou de um conjunto de ações do artista e termina com sua produção se constituindo como um mundo fechado em si mesmo, também à parte do mundo exterior. Ao manifestarem de modos diversos o mesmo impulso fundamental, as duas dimensões acabam por apontar para dois caminhos também distintos: enquanto a dimensão mítica parece se associar a uma arte mais tradicional, acenando para o passado; a dimensão ritual lança as bases para a arte da segunda metade do século XX, apontando para o futuro. No entanto, para tal, para propor uma arte nova, Mondrian e Malevitch ainda se valem de suportes tradicionais: é por meio da pintura e dos elementos próprios a ela que eles querem colocar a tradição em xeque. Schwitters e Duchamp vão além. Com a Merzbau, o Grande vidro, o Étant donnés e os readymades, começam por discutir os métodos e os suportes tradicionais da arte, fazendo com que a noção de obra tal como se conhecia até então caia por terra. Mondrian e Malevitch, de uma certa forma, compartilham ainda uma língua compreendida pela tradição. Schwitters e Duchamp criam um dialeto relativamente à parte, um patois altamente desestabilizador das práticas lingüísticas convencionais. Olhando retrospectivamente o século passado e levando em consideração a arte que se produziu depois dos movimentos das décadas de 1910 e 1920, parece-me que Mondrian e Malevitch, embora tenham questionado os modos de representação, põem fim a um longo ciclo, enquanto Schwitters e Duchamp inauguram um novo. Assim, essa dimensão mítica, concentrada na obra, vai ficando para trás, enquanto uma dimensão de

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feições rituais aparece mais fortemente marcada em muitas das produções artísticas posteriores à Segunda Guerra Mundial. Talvez se pudesse estudar se é possível reconhecer traços remanescentes da dimensão mítica nos trabalhos de Ad Reinhardt, Mark Rothko e Barnet Newmann, por exemplo, os quais ainda se prendem ao estritamente pictórico e almejam atingir uma transcendência. Por outro lado, com Jackson Pollock, embora confesso admirador de Mondrian, o trabalho começa pelo gesto e pela ação do artista, indicando um desdobramento ritual. Sua ação, como em Schwitters e Duchamp, se incorpora à obra. Já observava Robert Morris na década de 1960: «Dos expressionistas abstratos, só Pollock foi capaz de recuperar o processo e tomá-lo como parte da forma final do trabalho».731 E o próprio Pollock falava de sua preferência por modos não-tradicionais de trabalho: Minha pintura não sai do cavalete. Eu dificilmente estendo minha tela antes de pintar. Prefiro colocar a tela não-estendida na parede ou no chão duros. Necessito da resistência de uma superfície dura. No chão, sinto-me mais à vontade. Sinto-me mais perto, mais parte da pintura, uma vez que deste modo eu posso caminhar em volta dela, trabalhar a partir dos quatro lados e literalmente estar na pintura. É como os índios pintores de areia do oeste.732

Nos mecanismos autodestrutivos de Jean Tinguely, nas ações – quase cerimônias – de Yves Klein e nas performances de Joseph Beuys, para citarmos três outros exemplos, a dimensão ritual parece não só se manter mas se acentuar ainda mais. Nestes, a produção artística se transforma num evento, oficiado (e, em alguns casos, vivido) pelo artista e presenciado por um número determinado de espectadores. Estabelece-se uma relação mais explícita não só com o espaço circundante (há também aqui um espaço específico e delimitado, mesmo que dentro do museu733), mas também com o tempo: o tempo em que se destrói um mecanismo de Tinguely, o tempo em que as modelos nuas se tingem de azul e imprimem seus corpos pintados sobre uma superfície branca em Anthropométries et symphonie de Klein, o tempo em que Beuys se manteve junto a um coiote em I Like America and America Likes Me. E este recorte no tempo é, como o evento, único. O mistério aqui se constitui a partir da própria efemeridade da ação. 731

Robert Morris citado por Rosalind E. Krauss, The Optical Unconscious, p. 293. Jackson Pollock citado por Edward Lucie-Smith, Movements in Art Since 1945, p. 21. 733 Nos happenings da década de 1960 e seguinte, o artista ainda construía, mesmo que numa parte do museu, um ambiente especial e único para seu evento artístico. 732

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Porém, tenho dúvida se, na arte mais recente, ainda podemos de fato identificar um caráter ritual. Parece-me que as ações que esta arte engendra estão por demais voltadas para o mercado. No momento em que o artista projeta sua obra, sob encomenda, para qualquer espaço, permitindo que seja transportada, montada e remontada onde for preciso, perde, por mais que esta obra guarde características ritualísticas, um tanto do que poderia haver nela de «culto». Em Schwitters, Tinguely, Klein, Beuys, os trabalhos são por natureza invendíveis. Se de fato, são, de uma forma ou de outra, vendidos, isto é um dado contingente, que não participa do ser da obra, nem nele interfere. Duchamp, depois de ter decidido abandonar a arte como meio de sustento, não realizava suas peças e seus readymades com a intenção de comercializálos. Rauschenberg, por exemplo, adquiriu por sua conta um porta-garrafas e levou a Duchamp para que este o assinasse.734 Neles, portanto, ainda se preserva uma preocupação espiritual ou intelectual com a arte, e não, prioritariamente, com o mercado. Se suas «obras» estão hoje em museus, esta é uma grande ironia – e é a isto que Bürger se refere como o «fracasso da intenção vanguardista».735 Ao ser perguntado se não haveria uma contradição em ter seus readymades exibidos nos museus e nas exposições e consumidos como objetos de arte, Duchamp respondeu: «Há uma contradição absoluta, mas é isto que é prazeroso, não é?».736 Ironia e cinismo são atitudes às vezes muito parecidas perante uma vida percebida como «danificada»;737 mas o cinismo é hostil à arte, enquanto a ironia – ao menos na modernidade – parece ser a condição imprescindível para sua aparição.

734

Ver Calvin Tomkins, Duchamp: A Biography, p. 158. Peter Bürger assevera que, «uma vez que o urinol assinado é aceite nos museus, a provocação deixa de ter sentido e transforma-se no seu contrário. Quando um artista dos dias de hoje assina e exibe uma chaminé de fogão, já não está a denunciar o mercado da arte: está a submeter-se a ele; não destrói, mas antes confirma, o conceito da criação individual. Haverá que procurar a razão disto no fracasso da intenção vanguardista de superar a arte. Quando o protesto da vanguarda histórica contra a instituição arte chega a considerar-se como arte, a atitude de protesto da neo-vanguarda tem que ser falsa» (Teoria da vanguarda, pp. 94-95). 736 Marcel Duchamp em entrevista a Philippe Collin, Marcel Duchamp parle des ready-made, p. 16. 737 Penso em Adorno, no subtítulo de seu Minima moralia, «Reflexões a partir da vida danificada» (Reflexionen aus dem beschädigten Leben). 735

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