ARTE NA ATUALIDADE

May 21, 2017 | Autor: D. Stoeberl da Cunha | Categoria: Artes, Teatro, Arte Educação, Música, Dança, Artes Visuais
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Copyright © 2016 by Paco Editorial Direitos desta edição reservados à Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. Coordenação Editorial: Kátia Ayache Revisão: Ana D’Andrea Assistência Editorial: Augusto Pacheco Romano, Érica Cintra Capa: Daiane Solange Stoeberl da Cunha Projeto Gráfico: Marcio Arantes Santana de Carvalho Assistência Gráfica e Digital: Wendel de Almeida Edição em Versão Impressa: 2015 Edição em Versão Digital: 2015

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D1115 da Cunha, Daiane Solange Stoeberl; de Melo, Desirée Paschoal; Gomes, Érica Dias; Cebulski, Márcia Cristina. Arte na Atualidade//Daiane Solange Stoeberl da Cunha; Desirée Paschoal de Melo; Érica Dias Gomes; Márcia Cristina Cebulski (Orgs.). - 1. ed. - eBook - Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2016. Recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Multiplataforma ISBN 978-85-8148-557-7 1. Arte 2. Sociedade 3. Ensino 4. Intersecções. I. da Cunha, Daiane Solange Stoeberl ll. de Melo, Desirée Paschoal lll. Gomes, Érica Dias lV. Cebulski, Márcia Cristina. CDD: 700

Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues (UNIVAS/MG) (Lattes) Prof. Dr. Antonio Carlos Giuliani (UNIMEP-Piracicaba-SP) (Lattes) Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi (FATEC-SP) (Lattes) Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna (UNESP/ASSIS/SP) (Lattes) Prof. Dr. Carlos Bauer (UNINOVE/SP) (Lattes) Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha (UFRGS/RS) (Lattes) Prof. Dr. Eraldo Leme Batista (UNIOESTE-PR) (Lattes) Prof. Dr. Fábio Régio Bento (UNIPAMPA/RS) (Lattes) Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa (FURG/RS) (Lattes) Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes (UNISO/SP) (Lattes)

Profa. Dra. Magali Rosa Santa'Anna (UNINOVE/SP) (Lattes) Prof. Dr. Marco Morel (UERJ/RJ) (Lattes) Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira (UNICAMP/SP) (Lattes) Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins (UNICENTRO-PR) (Lattes) Prof. Dr. Romualdo Dias (UNESP/RIO CLARO/SP) (Lattes) Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus(IFRO/RO) (Lattes) Profa. Dra. Thelma Lessa (UFSCAR/SP) (Lattes) Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt (UNIPAMPA/RS) (Lattes)

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Sumário Folha de rosto Página de Créditos Apresentação Prefácio Parte 1: Arte e Sociedade Capítulo 1: Arte e conhecimento Capítulo 2: Algumas Poéticas Urbanas Referências Capítulo 3: Quandonde (e outras) intervenções urbanas em arte – por um estudo indisciplinar e não artístico 1. Intervenção Urbana: um possível entendimento 2. O espaço da urbe: características contemporâneas de um suporte coautor 3. Artistas não artistas 4. Quandonde: indisciplina e antiarte Referências Capítulo 4: A temática ecológica como objeto de criações artísticas em arte-mídia e arte tecnológica 1. Ecologia, consciência ecológica e ecologia profunda 2. Arte e tecnologia 3. Iniciativas de arte e tecnologia que dialogam com a temática ecológica Considerações finais Referências Parte 2: Arte e Ensino Capítulo 5: A arte no currículo do ensino básico: experiências estéticas e culturais 1. Criação e Percepção: desdobramentos na sala de aula 2. Planejando nossas aulas 3. Experiência, Sensibilidade e Conhecimento Considerações finais Referências Capítulo 6: A influência de Murray Schafer na educação musical escolar – análise de materiais didáticos 1. Os três eixos filosóficos (pedagógicos) de Schafer 2. Relação Som/Ambiente: Paisagem Sonora 3. Confluência das Artes 4. Relação com o Sagrado 5. Os Princípios Schaferianos e sua aplicação no ensino de música escolar 6. Os materiais didáticos e os referenciais schaferianos Considerações finais

Referências Capítulo 7: O compositor na sala de aula – práticas composicionais contemporâneas para educação musical 1. Primeira Peça: Colagem-Paisagem 2. Segunda Peça: Ponto, Linha e Coisas... 3. Terceira Peça: Invenção em três instantes: Crepúsculo, Noite e Aurora

4. Quarta Peça: Pequeno nascer, grande morrer... 5. Quinta Peça: O regente sem orquestra 6. Projeto composicional e análise do Ciclo Pedagógico Considerações Finais Referências Capítulo 8: Por uma escuta mais crítica: planejando um grupo de vivências em apreciação musical 1. Primeiro encontro 1.1 Compartilhando expectativas e experiências 1.2 Dinâmicas corporais coletivas 1.2.1 Respiração sincronizada 1.2.2 Preenchendo o espaço 1.2.3 Volley invisível 1.3 Apreciação musical 1.4 Construções a partir de impressões e de ideias 2. Segundo encontro 2.1 Compartilhando expectativas e experiências 2.2 Dinâmicas corporais coletivas 2.2.1 Despertando os sentidos 2.2.2 Limpando os ouvidos 2.2.3 “Fio sonoro” 2.3 Apreciação musical 2.4 Construções a partir de impressões e de ideias 3. Terceiro encontro 3.1 Compartilhando expectativas e experiências 3.2 Dinâmicas corporais coletivas 3.2.1 Escuta do entorno sonoro 3.2.2 Espelho sonoro 3.3 Apreciação musical 3.4 Construções a partir de impressões e de ideias 4. Quarto encontro 4.1 Compartilhando expectativas e experiências 4.2 Dinâmicas corporais coletivas 4.2.1 Aquecendo 4.2.2 Se joga!

4.2.3 Massagem sonora 4.2.4 Gesto sonoro às escuras 4.3 Apreciação musical 4.4 Construções a partir de impressões e de ideias 5. Atividade individual 5.1 Repensando expectativas e experiências 5.2 Apreciação musical 6. Encontro final 6.1 Compartilhando experiências 6.2 Construções a partir de impressões e de ideias 6.3 Refletindo sobre o grupo Considerações sobre o processo de planejamento Referências Parte 3: Arte e Interseções Capítulo 9: Design e arte no contemporâneo – sentidos, estética e poéticas 1. Idade Contemporânea e Contemporaneidades 2. Sociedade do Consumo 3. A Estética do Cotidiano 4. Estética e o Design 5. Arte e Design: distanciamentos, reaproximações e fusões 6. Arte e Design em relações contemporâneas Considerações finais Referências Capítulo 10: Savage Beauty – as relações entre a arte e o design na produção de Alexander McQueen Introdução 1. O design contemporâneo 3. Savage Beauty: arte-design Considerações finais Referências Capítulo 11: Entre o corpo e a mistura de linguagens, o teatro multimidiático 1. Teatro pobre e obra de arte total 2. A presença e a fronteira 3. Uma linguagem hegemônica 4. O corpo joga contra o programa Referências Capítulo 12: Improvisação – a arte do encontro 1. Contato Improvisação: uma arte da Improvisação. Uma dança da atenção 2. Seria o Contato Improvisação uma arte da Improvisação? 3. Coexistência: forma-conteúdo

4. O movimento dos sentidos e a percepção 5. O acontecimento “entre” Considerações finais Referências Paco Editorial

Lista de Imagens Imagem 1. Partitura de referência para Colagem-Paisagem do Ciclo Pedagógico (Borges, 2013) Imagem 2. Exemplo de “paleta” sonora coletada a partir do Diário de Sons no contexto do timbre, espaço e gesto Imagem 3. Partitura de referência para a peça Ponto, linha e Coisas... do Ciclo Pedagógico (Borges, 2013) Imagem 4. Partitura de execução da peça Invenção em três instantes: Crepúsculo, Noite, Aurora do Ciclo Pedagógico (Borges, 2013) Imagem 5. Partitura original de Pequeno nascer, grande morrer (2005) incluída no Ciclo Pedagógico (Borges, 2013) Imagem 6. Partitura conceitual para O Regente sem Orquestra do Ciclo Pedagógico (Borges, 2013) Imagem 7. Diagrama analítico para a estrutura do Ciclo Pedagógico (Borges, 2013) Imagem 8. Diagrama notacional utilizado no Ciclo Pedagógico (Borges, 2013) Imagem 9. Letra da música “De palavra em palavra”, no encarte de “Araçá Azul” Imagem 10. “Oh Void, 2004, Ron Arad” Imagens 11 a 14. Sequência das Imagens: Face of Mae West, Pintura, Salvador Dalí, 1935 | Sofá Mae West, Salvador Dalí, 1937 | Sofá Marilyn, Studio 65, 1972 | Sofá La Bocca, Bertrand Lavier, 2005 Imagens 15 a 17. Sequência das Imagens: Composição Red Blue Yellow, Pintura, Piet Mondrian, 1930 | Ilustrações de Moda, Yves Saint Laurent, Revista Vogue, 1965 | Vestido Mondrian, Capa Revista Vogue, 1965 Imagens 18 a 22. Sequência das Imagens: Esculturas e luminárias de papel, Noguchi, 1950 | Sofá, modelo IN70, Noguchi, 1946 | Mesa de centro Coffee Table, Noguchi, 1944 | Xícara de chá em porcelana, Noguchi, 1952 7. Diálogos entre Design e Arte no Brasil Imagens 23 e 24. Sequência das Imagens: Estampas, Willys de Castro, 1965| Estampa, Willys de Castro, Calendário Rhodia, 1968 Imagens 25 a 27. Gigante Dobrada, Amilcar de Castro, 2001, Instituto Inhotim, Foto da autora, 2012 | Jornal do Brasil, Amilcar de Castro, 1950 | Exposição Desenho Design, IAC, 2012 Imagens 28 a 31. Mobiliário, Hugo França, 2011, Instituto Inhotim, Minas Gerais, Foto da autora, 2012

Imagens 32 a 35. Colares Espelho; Pedra e Pluma; Espelhos de Mesa ou Parede; Vaso Filhote, Manus, 2010/2012, SP Imagem 36. Jacqueline Terpins: Mil Folhas, foto de Fábio Scrugli Imagem 37. Matthias Megyeri: Glass Figures/ Razor Wire/ Railings/ Curtain, foto de Fábio Scrugli Imagem 38. Simone Mattar: Gelúmina Poesia Luminofágica, foto de Fábio Scrugli Imagens 39 a 41. Simone Mattar: Como Penso Como, fotos de Luna Garcia

Apresentação Este livro é resultado do evento anual “Simpósio de Arte-Educação” promovido pelo Departamento de Arte-Educação da UNICENTRO – Universidade Estadual do Centro-Oeste, no campus Santa Cruz, em Guarapuava-PR. A obra aborda a temática da Arte por meio de experiências de criação e de ensino, se caracterizando como anais do evento, que em sua décima edição, em 2013, teve como tema “Espaços de Arte, Espaços de Saber” e na sua décima primeira edição, em 2014, teve como tema as discussões sobre “Arte e Tecnologia”. Desta forma, apresentamos nesta obra capítulos que referem-se a temáticas específicas abordadas na X e na XI edições do Simpósio de ArteEducação. Assim, buscamos registrar, publicar e, de certa forma, eternizar os saberes que nortearam as palestras, mesas-redondas e comunicações realizadas por alguns dos convidados do evento durante a programação. Com o objetivo de possibilitar aos acadêmicos do curso de Arte-educação/UNICENTRO, aos professores de Arte da região de Guarapuava, aos pesquisadores, aos artistas e à comunidade em geral a vivência em processos criativos e em arte e ensino, o Simpósio de Arte-educação é um dos principais eventos da área na região e possibilita complementação extracurricular de estudos na área de Arte em contato com pesquisadores do Brasil e do exterior. Neste evento promove-se ainda, a disseminação de conhecimento científico em Arte e Ensino e Processos Criativos em Arte e que são apresentados neste livro, efetivando ainda mais a interação entre pesquisadores, estudantes, professores e artistas locais e nacionais. O Departamento de Arte da UNICENTRO, conta com a parceria de Instituições que, por meio do auxílio financeiro possibilitam o sucesso do evento, a nomear: Instituto Arte na Escola, Fundação Araucária e CAPES. Ressaltamos que estes órgãos, em suas diferentes concessões, foram indispensáveis para toda a logística em torno do evento, desde o planejamento, a divulgação, a execução da programação até a disseminação dos resultados, que inclui a presente publicação, permitindo a concretização e a consolidação do evento. O livro está dividido em três seções: arte e sociedade; arte e ensino; arte e interseções. A seção “Arte e sociedade” reúne textos que envolvem arte na sua relação com temas relevantes na sociedade contemporânea: arte e conhecimento na atualidade; espaço público e propriedade; e ecologia. Nesta seção, são apresentados quatro capítulos, sendo que o primeiro, “Arte e conhecimento”, de Celso Favaretto, discorre acerca de conhecimento e arte, perpassando por reflexões históricas, filosóficas, sociais e estéticas, procurando responder a questão “O que são os conhecimentos que derivam da arte, a se acreditar na proposição, muito genérica, de que a

arte é uma modalidade de conhecimento?” O autor procura configurar a paisagem desconhecida da contemporaneidade, a arte contemporânea: o presente. A seguir temos dois capítulos sobre intervenção urbana, que mostram a aproximação entre arte e vida presente neste tipo de ação que tem forte potencial enquanto questionadora dos valores vigentes na sociedade. Carminda Mendes André, doutora em Educação e docente no curso de Artes Cênicas da UNESP, discorre sobre a relação entre arte e política por meio de intervenções na cidade de São Paulo, em seu capítulo “Algumas poéticas urbanas”. A autora relaciona controle dos espaços públicos com arte de rua, apontando para a arte urbana enquanto meio de ressignificar o espaço público, trazendo reflexões sobre o significado destas ocupações na atualidade. O texto aprofunda na discussão acerca da característica de confronto com o poder público, colocando a intervenção enquanto forma de ação poética, que pode tomar empréstimos de várias formas estéticas em prol de um fazer político, de uma resistência a determinados aspectos do modo de vida contemporâneo, com destaque para a valorização da propriedade, as relações de poder, os mecanismos do sistema capitalista. A partir do texto, a autora questiona o tratamento do espaço público enquanto propriedade do poder público, que regula os modos de ser e de estar das pessoas, coibindo a espontaneidade, a criatividade e o lúdico que potencialmente estariam presentes como parte da vida. O texto “quandonde (e outras) intervenções urbanas em arte: por um estudo indisciplinar e não artístico”, de Diego Elias Baffi, professor assistente de Artes Cênicas na UNESPAR, vem completar a discussão, refletindo sobre a intervenção urbana enquanto forma de aprendizado, possibilitando um caminho para o desenvolvimento de linguagem artística própria, fazendo um relato de sua participação no coletivo quandonde, na cidade de Curitiba. O texto também aborda questões relativas ao espaço público na atualidade, apontando para a problemática dos processos de legitimação da arte. O autor coloca a intervenção urbana enquanto forma de construção de um lugar de pertencimento coletivo, em meio às trocas interventor-partícipe, consolidando-se enquanto meio para maior engajamento de artistas por meio de coletivos que busquem experiências para propiciar a fruição poética da cidade. Giuliano Tosin, doutor em Arte e Mediação pela UNICAMP, juntamente com suas orientandas Cristiane Lustosa e Rita de Cássia Mendes, colaboram com o capítulo sobre “A temática ecológica como objeto de criações artísticas em arte-mídia e arte tecnológica”, abordando especificamente obras que levantam questões acerca da ecologia e que humanizam as máquinas por meio da arte, pela aproximação entre homem e meio ambiente mediada pelo desenvolvimento tecnológico. O tema ecológico é tomado com abordagem ampla, dentro de perspectiva holística que insere a crítica política e a reflexão sobre os problemas oriundos da crescente intervenção humana no meio. Assim, os autores enfatizam a necessidade de conscientização do artista perante a utilização dos avanços tecnológicos para a criação, discutindo criações em arte-mídia e arte tecnológica de artistas como Eduardo Kac, Stelarc e Miguel Chevalier. O texto mostra a

importância que os diversos olhares sobre a ecologia têm assumido na arte-mídia e na arte tecnológica, com incorporação de elementos do avanço técnico-científico, avançando nas reflexões sobre o desenvolvimento tecnológico não só enquanto ameaça ao meio ambiente, mas também como meio de se pensar criticamente os modos de vida na atualidade. A seção “Arte e ensino” traz escritos com implicação direta para educação, com discussões sobre currículo e sobre metodologias que buscam refletir sobre o ensino da área na atualidade. O primeiro entre os quatro capítulo da seção, “A arte no currículo do ensino básico: experiências estéticas e culturais”, escrito por Silvia Sell Duarte Pillotto, provoca reflexões sobre a inserção da disciplina de Arte no currículo do Ensino Básico e suas contribuições para o desenvolvimento cognitivo e sensível dos estudantes, bem como para suas construções identitárias. Num primeiro momento a autora aborda a criação e percepção e seus possíveis desdobramentos na sala de aula, para na sequência abordar questões sobre planejamento de ensino de arte. Por fim, convida o leitor a repensar a sala de aula enquanto espaço de experiência, sensibilidade e conhecimento. Seguindo no caminho das discussões curriculares que envolvem o ensino da Arte, o capítulo produzido por Aline Canto dos Santos e Daiane Solange Stoeberl da Cunha resulta da investigação sobre os conteúdos de música e os princípios pedagógicos de Murray Schafer nas escolas de ensino fundamental nos anos finais, no município de Guarapuava – Paraná. Nesta pesquisa, os materiais didáticos utilizados pelos colégios de ensino fundamental da rede privada da cidade são analisados, os quais revelam possíveis direcionamentos curriculares para o ensino de música. O texto aponta que Paisagem Sonora, Relação com o sagrado, e Confluência das Artes são princípios Schaferianos que de certa forma estão sendo inseridos nos currículos de Arte e música da escola e assim, apontam para um ensino criativo e não técnico-instrumental. No capítulo “O compositor na sala de aula: práticas composicionais contemporâneas para educação musical” Alvaro Borges apresenta aspectos didáticos para educação musical que assumem o processo de criação como elemento central do aprendizado, para tanto propõe cinco peças a fim de aproximar alunos e educadores do repertório musical contemporâneo. Érica Dias Gomes e Rafael Siqueira de Guimarães, no capítulo “Por uma escuta crítica: planejando um grupo de vivências em apreciação musical”, apresentam um guia metodológico para inserção da apreciação musical enquanto possibilidade para se pensar diversidade cultural em processos educacionais. O texto tem o potencial de sistematizar um meio de se desenvolver uma escuta musical crítica, que permita a reflexão para valores da sociedade atual, e que pode ser aplicado em diferentes realidades, de acordo com seus objetivos específicos. A seção “Arte e interseções”, com a apresentação de mais quatro capítulos, traz temáticas que enfatizam a interseção entre artes e também entre arte e outras áreas de conhecimento. O texto “Design e Arte no Contemporâneo: sentidos, estética e poéticas de Mônica Moura”, apresenta uma investigação sobre os estudos sobre as relações entre design e arte na atualidade. No primeiro momento, a autora expõe um pequeno panorama sobre os marcos de eventos, inventos e

objetos do século XX e XXI que estabeleceram as características e as dinâmicas deste tempo no qual vivemos. Em seguida, apresenta a formação e características da sociedade do consumo e da estética do cotidiano. Prontamente, analisa a relação entre a Estética e o Design na contemporaneidade, problematiza a relação entre a Arte e o Design a partir de reflexões sobre os distanciamentos, reaproximações e fusões da Arte e do Design na contemporaneidade. Por último, descreve e analisa os exemplos de proposições híbridas que relacionam a Arte e o Design na contemporaneidade. A pesquisa intitulada “Savage Beauty: as relações entre a Arte e o Design na produção de Alexander McQueen”, de Carlos Godoy Júnior e Desirée Paschoal de Melo, teve como preocupação investigar os diálogos entre as áreas de arte e de design presentes nos discursos e nas práticas de alguns artistas-designers da contemporaneidade, tendo como objeto de estudo a produção de Alexander McQueen, que apresenta – na idealização, execução e finalização de suas propostas – a busca e a valorização da função simbólica e estética em detrimento da finalidade prática de suas criações, resultando assim em indumentárias conceituais e simbólicas. O texto aborda os principais apontamentos da revisão bibliográfica sobre o tema e, em um segundo momento, apresenta a descrição e análise de algumas obras apresentadas na exposição Savage Beauty organizada pelo Museu Metropolitano de Arte de Nova York. No capítulo intitulado “Entre o corpo e a mistura de linguagens, o teatro multimidiático”, Ernesto Valença aborda os impactos da inserção de mídias audiovisuais na cena teatral. Aspectos paradoxais como as novas possibilidades de linguagens artísticas e definições clássicas sobre o que seja o teatro conduzem o leitor a reflexões como a de que o teatro multimidiático realiza a aproximação de duas perspectivas normalmente vistas como divergentes: uma baseada na ideia de essência do teatro e outra na dialética entre unidade e diversidade de linguagens. Fundamentado em autores como Grotowski e Flusser, Ernesto aponta para a possibilidade, ou, a impossibilidade, de liberdade que o teatro multimídia realiza ao colocar a presença corporal do ator em perspectiva com o automatismo aparelhístico e conclui instigando a crítica teatral a refletir sobre esta ambígua relação. O texto “Improvisação: a composição do encontro”, de Ana Maria Alonso Krischke, Paula Zacharias e Cristina Turdo, discorre sobre aspectos envolvidos na improvisação em dança, por meio da experiência de pesquisa e práticas artísticas desenvolvidas pelas autoras. O texto apresenta enfoque em elementos como sensação, percepção, coexistência e diálogo, apontando para a importância da construção coletiva para a improvisação, em meio às singularidades dos indivíduos que dela fazem parte. Ressaltamos nossa gratidão aos convidados do evento que com prontidão e extremo profissionalismo participam como autores dos textos a seguir apresentados. Por meio do presente trabalho, esperamos possibilitar ao leitor um aprofundamento nas questões abordadas, permitindo refletir melhor sobre debates iniciados durante o evento. Assim, percebe-se a importância de

eventos como o Simpósio de Arte-Educação, no seu potencial para encontros produtivos, em que discussões e embates teóricos pertinentes à arte e à educação, em meio a vivências artísticas, podem se desdobrar em novas reflexões que colaboram para o desenvolvimento da área. Daiane Solange Stoeberl da Cunha Érica Dias Gomes Desirée Pascoal de Melo Márcia Cristina Cebulski

Prefácio A recente história das políticas públicas da área de educação de nosso país deixam, por vezes, um certo gosto amargo na boca de nossos educadores que têm de lidar com diversas situações complicadas ao enfrentar o dia a dia das escolas, sendo elas de ensino fundamental, médio ou superior. O mundo das artes não difere na quantidade de dificuldades que devem ser superadas, principalmente em uma sociedade que é dominada pelo descartável, pelo puro entretenimento que baniu a capacidade reflexiva do cidadão contemporâneo e pela destreza que a indústria cultural tem em transformar a tudo e a todos em produtos. Nesse contexto, não podemos deixar de louvar, comemorar, elogiar, regozijar-nos com um evento que passa de dez anos dedicados à discussão, ao estudo, à análise e à fruição não só da educação mas também da arte. Esta publicação ajuda a sacramentar onze anos de lutas travadas pelos profissionais de arteeducação da UNICENTRO que não deixam de acreditar que podem fazer a diferença nessas trincheiras tão abandonadas de nosso país, recebendo a colaboração de profissionais que já travam tal luta há mais tempo ainda. O que se expõe neste volume é resultado das duas últimas edições do Simpósio de Arte-educação da Universidade do Centro-Oeste – PR (UNICENTRO), evento organizado pelos visionários do curso de Arte-educação da instituição. Como participante de algumas edições desse simpósio, vale ressaltar qual o teor de efervescência que baliza o dia a dia do curso de graduação em Arte-Educação da UNICENTRO e por consequência fomenta e direciona a organização do simpósio fornecendo ao leitor uma ideia um pouco mais profunda dos ideais e dos conceitos que perpassam as entrelinhas de cada texto. Correndo o risco de imprecisões históricas, a situação da arte no ambiente escolar tem se tornado gradualmente mais favorável. As aulas de artes têm, paulatinamente, regressado aos currículos escolares, resgatando a presença da música, das artes cênicas e das artes visuais na vida do estudante brasileiro. Tal regresso, ao mesmo tempo que tem dado esperanças mais positivas aos arte-educadores e possibilitado ao estudante travar contato com outras formas de pensar o mundo através do fazer artístico, tem também levantado questões sobre as formas de ocupar esse novo espaço que foi aberto nos currículos escolares, principalmente quando se considera como os conteúdos das artes devem ser ministrados: respeitando as especificidades das áreas ou de formas mais interdisciplinares. Paralelamente, a arte – em meio a que se costuma chamar de pós-modernidade, melhor dizendo a “arte após o fim da arte” como irá preferir Arthur Danto ou ainda a arte feita após o “fim da história da arte” na visão de Belting – passa por transformações que destronam conceitos fundantes de sua epistemologia e práxis, como o próprio conceito de arte, bem como derrubam os muros que delimitavam as diferentes linguagens. Ao mesmo tempo em que nos projetos pedagógicos do ensino fundamental e médio são resgatados

os eixos curriculares das diversas linguagens artísticas, superando o antigo paradigma polivalente do ensino de arte, a produção artística contemporânea tem se tornado cada vez mais interdisciplinar, interlinguística e interativa. Esses ideais artísticos permeiam as atividades dos professores da UNICENTRO demonstrando o forte engajamento que têm com a produção artística contemporânea, superando antigos paradigmas de ensino conservatorial e academicista que por vezes permanecem em diversas instituições de ensino de arte brasileiras e que, por sua vez, fazem com que o curso de Arte-Educação da instituição caracterize-se como um dos mais atuais e dinâmicos em nosso país. Sendo assim, não só o curso compreende a realidade e a produção artística recente mas também o Simpósio é realizado de forma a contemplar esse panorama. Nesse contexto, o grupo de professores-artistas-pensadores que figuram neste volume não se furtam à responsabilidade de tratar desses assuntos ajudando a pavimentar essa nova estrada do ensino da arte contribuindo com uma visão de arte integrada aos desafios da contemporaneidade, das formas de pensar, fruir e ensinar a arte tanto a já historicamente consagrada quando aquela feita em nosso tempo. Boa leitura! Rael B. Gimenes Toffolo Maringá, abril de 2015

Parte 1: Arte e Sociedade

Capítulo 1: Arte e conhecimento 1

Celso Favaretto

O que são os conhecimentos que derivam da arte, a se acreditar na proposição, muito genérica, de que a arte é uma modalidade de conhecimento? Sabe-se que, frequentemente, quando se fala do conhecimento que vem da arte, isto significa que ele é considerado interpretação de alguma realidade ou ilustração de fatos, acontecimentos, enfim de alguma coisa que transmite conhecimento. É comum, por exemplo, tomar-se a arte como um acesso ao conhecimento da história, assim como supõe-se que a arte, quando ela é designada como contemporânea, traria o conhecimento da atualidade. Motivações ou suporte, muitas vezes relevantes, de interpretações históricas, sociológicas, psicológicas, filosóficas e psicanalíticas, as obras de arte e os eventos artísticos acabam por se comprometer com a formulação ou com a justificação de imagens de mundo, constituindo-se frequentemente em recursos julgados privilegiados para se pensar aspectos do mundo, ou para dar a ver o mundo. E, mais frequentemente ainda, a arte é chamada para conjurar as dificuldades do mundo da vida, os percalços da existência humana, pois constituiria outro modo de conhecimento, de acesso ou revelação da vida, que não é aquele facultado pelas ciências e a filosofia. Trata-se, como se sabe, do conhecimento do sensível, que diz respeito à intensidade dos afetos, à sensibilidade, à produção de subjetividades que resistem às formulações convencionais, convencionadas ou padronizadas. Como diz Jacques Rancière, as obras, os objetos e acontecimentos de arte, seriam “testemunhos da existência de certa relação do pensamento com o não-pensamento, de certa presença do pensamento na materialidade do sensível, do involuntário no pensamento consciente 2

e do sentido no insignificante” . Considera-se comumente que uma espécie de suplemento de sentido é secretado pelo pensamento da arte, isto é, pelo pensamento específico elaborado pelas obras de arte ou mesmo sobre as obras de arte, pois parece que sempre ao se falar, de arte, trata-se da busca de sentido, quase sempre oculto, de alguma coisa, em tudo que se experimenta. Este modo de ver refere-se à arte como representação, segundo suas variadas efetivações desde a antiguidade até hoje, o que sempre supõe uma determinada relação com o que se chama real. Mas a dificuldade está em considerar o que pode ser representação na arte de hoje depois de todo o trabalho de desconstrução da arte de representação efetuada pela arte do século 20, especialmente pela arte de vanguarda. E também que relação mantém com o real, o mundo, que na verdade é relação com imagens do real ou do mundo. O que foi conquistado pela experimentação artística foi a consideração de que a arte, em toda arte desde sempre, implica uma modalidade específica de conhecimento, e que a maneira adequada de tratar os assuntos da arte é aquela sempre referida ao pensamento elaborado pelas

obras de arte, cujo resultado não é um conhecimento, como se pode ver na modernidade em que os artistas ao invés de produzirem “objetos de arte”, obras de arte, produzem “objetos de pensamento”, de que a Roda de bicicleta de Duchamp e o Quadrado negro sobre fundo branco de Maliévitch, ambos de 1913, são os signos anunciadores. É verdade que depois das vanguardas retornou uma obsessão pelo real, espécie de vontade de novamente habitar o mundo, de olhar para o real, acentuando o deslocamento, patente em experiências e projetos modernos, da estética para a ética. Aliás, como exemplo bastante elucidativo podemos bem entender este fato se nos voltarmos para algo próximo de nós, para a constituição a modernidade no Brasil, para o desejo e o empenho de alcançar a modernidade, na arte e na cultura desde o modernismo de 22, que implicava uma relação necessária entre modernidade e nacionalismo, aquilo que depois, nos anos 1960, foi categorizado como “realidade brasileira”. O imperativo de ser moderno compunha-se à necessidade e imposição de conhecimento do Brasil. O interesse etnológico, cultural, conciliavase com o interesse pelos processos artísticos modernos de modo que os processos das vanguardas europeias funcionaram como uma espécie de epistemologia, como operadores das transformações, possibilitando o conhecimento do Brasil. Veja-se a propósito a expressão mais próxima disso, pela originalidade e pela sua eficácia crítica em diversas situações culturais brasileiras, especialmente nos anos 20 e em sua reatualização nos anos 60, a antropofagia de Oswald de Andrade, toda ela empenhada em conjugar o ímpeto e necessidade de modernidade através de uma proposição sugestiva do encontro cultural entre cultura europeia, arte de vanguarda e realidade cultural e artística brasileira, a conjugação, como diz o Manifesto PauBrasil, entre a floresta e a escola. Daí, que desde o modernismo de 22, que compôs um primeiro projeto moderno no Brasil, até os anos de 1960 – quando o conhecimento do Brasil é transfigurado em consciência da realidade nacional compondo um projeto ideológico de ruptura política, em que as artes jogavam um papel da maior importância –, é possível flagrar sempre uma vontade de realidade, uma obsessão pela, assim chamada, realidade brasileira. E mesmo a passagem pelo conceitualismo dos anos 70 pode ser pensado em relação a este desejo de conhecimento da realidade, que então era outra, impulsionado pela necessidade de resistir ou pelo menos contornar as limitações do regime ditatorial ao exercício da arte, do pensamento e da política e a irresistível ascensão da cultura da comunicação e do consumo. O real da arte ficou aí obscurecido por duas razões: uma voluntária, pois era preciso centrar toda a energia artística na forma para repressão – com que houve um evidente avanço no país na reflexão da arte sobre a arte – e uma outra razão involuntária, fruto da penetração no país de toda forma de informação moderna, da economia às artes, com que a assimilação das recentes manobras da experimentação e do mercado artísticos eram os municiadores.

Mas desde o início da modernidade, e mais ainda, em nossa atualidade, em toda parte, pensar a arte como conhecimento da realidade é algo problemático, pois tanto o real como os dispositivos da representação perderam a eficácia, dado o enfraquecimento do simbólico e da potência das imagens e de toda sorte de dispositivos de simulação. Hoje esta potência depende da aplicação de efeitos de presentificação na tentativa de instaurar a presença como antídoto às fugas ou falsificações do que é tido como real, vale dizer, como verdade. Lembremos da frase de Nietszche: os homens inventaram a arte para não morrer de verdade. Sabe-se que este tema, arte e conhecimento, provém do interesse cognitivo da arte associada à autonomia do campo estético, que nada mais era que um domínio específico das esferas de racionalidade tematizadas pela filosofia do século XVIII, e mais tarde criticadas pelas filosofias que desligam o tema das posições mais ou menos próximas do kantismo. Desde o nascimento da estética no século XVIII, foi feita a caracterização da conduta estética, do conhecimento especificamente estético, como uma relação cognitiva. Mesmo sabendo-se que o estético não se reduz ao artístico, tal caracterização frequentemente atribuía-se à arte enquanto produção. Mas a ênfase crescente na atitude estética, na conduta estética, que acaba por prevalecer no século XX, ao indicar que no fato estético emoções estéticas e história pessoal são indissoluvelmente ligados, contrasta à caracterização de experiência estética de linhagem kantiana, em que o acento está colocado num determinado tipo de julgamento, com a negação de um conhecimento sensível, sem referência específica ao domínio dos objetos de arte. Acolhendo as experiências da vida corrente como uma fonte permanente de atenção estética, a arte é alvo de considerações teóricas que produzem transformações na maneira de entender a relação entre cognição e apreciação estéticas. A conduta estética é considerada uma atividade que não é mais uma atitude que remete à ideia de contemplação, que permitiria o acesso a uma propriedade interna das coisas e, por consequência, a uma essência da arte, que seria reveladas nas obras de arte, sendo, portanto, objeto de conhecimento. O que pode ser conhecido agora é uma propriedade relacional, o encontro entre um objeto e um indivíduo, carregado de afetividade, não uma propriedade do objeto, alterando-se assim o foco da atividade cognitiva, do discernimento cognitivo de prazer ou desprazer, de satisfação ou insatisfação, enfim da apreciação artística. Este seria o conhecimento próprio secretado pela arte, mais propriamente, identificando “o 3

pensamento efetuado pelas obras de arte” que, diferentemente da atitude contemplativa, não é nunca desinteressado, pois como toda atividade apreciativa e valorativa, está ancorada na 4

economia do desejo. Isto tudo decorre da mudança na própria concepção de estética, que não mais designa a ciência ou a disciplina que se ocupa da arte [...] designa um modo de pensar que se desenvolve 5

sobre as coisas da arte e que procura dizer em que elas consistem enquanto coisas do pensamento

Assim, o pensamento da arte não vem do pensamento em conceitos, mas do pensamento em 6

ato; pensamento material . Ademais, estas coisas da arte apresentam-se quase sempre como “um modo inconsciente do pensamento”, presente nas obras de arte e na literatura de modo 7

privilegiado numa relação de pensamento e não pensamento . A arte não reproduz o visível, não torna visível o invisível; sua eficácia, não sua verdade, refere-se ao que não pode ser dito, ao indeterminado, ao que é estranho, ao horror. Para Lacan, “a arte pode aparecer como modo de 8

formalização da irredutibilidade do não conceitual, como pensamento da opacidade” . E como diz Teixeira Coelho, a arte “não é conhecimento; deve descer sobre as pessoas como uma nuvem; 9

é um enigma que quer ser elucidado mas não de imediato” . Este deslocamento, da arte, da obra de arte, do conceito de arte, reconfigurou o domínio da estética e do regime do pensamento da arte e, portanto, dessa relação entre arte e conhecimento, pois já faz bastante tempo, pelo menos desde Duchamp, que se pergunta: que tipo de conhecimento e de experiência se procuram na arte, desde que a arte deixou de oferecer conhecimento e beleza para apresentar-se como um contínuo exercício de desorientação? As transformações da arte ocorridas no transcurso da modernidade deslocaram o tema da relação entre arte e vida efetuada na estética filosófica do século XVIII. Esta arte, surgida da experimentação moderna, disse Rauschemberg, pretendia “agir no vazio que separa a arte da 10

vida” ; isto é, explorar a inscrição artística do velho tema da relação entre arte e realidade na atualidade, quando a ideia de real foi tão alargada que não mais existe a possibilidade de ser o referente a qualquer possível representação totalizadora como na arte da representação. Atualmente, nos trabalhos do que se denomina arte contemporânea, efetua-se um pensamento, produz-se, portanto, um conhecimento, “sobre a sua própria atualidade” , sobre “o campo atual 11

das experiências possíveis” . Considerando-se, contudo, que a dificuldade de alguma coisa afirmar-se ou ser afirmada como contemporânea decorre, como diz Agamben, do fato de não ser possível perceber as luzes desse tempo, mas a sua obscuridade, estas experiências estão aí para 12

nos interpelar . Esta arte contemporânea, pertencente ao estatuto da interpelação, não figura, a bem dizer, nenhum conhecimento, nenhuma representação que dê conta da figuração da realidade. De fato, embora na arte e na filosofia da modernidade, teorias e experiências tenham encenado o fechamento da representação, percebe-se que em seu lugar ainda não se conseguiu formular “uma linguagem que esteja à altura de traduzir o estado atual das coisas”, que corresponda “a situações completamente indeterminadas, aleatórias, flutuantes”, da experiência contemporânea. O que ainda temos é a mesma linguagem da representação, que é a linguagem 13

do sujeito – que, aliás, é simbólica e ambivalente . Ela não serve para falar daquilo que nos perturba, pelo menos tal como ela aparece nos vários teatros da representação, artísticos ou

culturais, sempre interessados em responder a exigências diversas de identificação dos protagonistas de uma realidade em cena. Pois, diz Baudrillard: a linguagem que dá valor objetivo à representação é um processo de identificação e de sublimação que funciona no medo e se constitui como um véu, uma tela (écran) que nos separa e nos protege do fluxo 14

caótico do devir.

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Isto é, que nos protege do irrepresentável e do inominável. Talvez seja este o grande desafio colocado para todas as artes depois do grande trabalho das vanguardas, que levou ao fim as possibilidades da crítica da representação com a destruição das convenções que presidiam à produção da ilusão. A recuperação hoje em dia da presença, agora uma espécie de aura transmutada, tem em vista repropor o sentido da representação. Depois da terapia, efetuada pelo trabalho das vanguardas, que pôs em causa a representação como sistema, linguagem e modo artístico tradicionais, do espaço pictural inventado pela renascença, do espaço teatral, do espaço literário e da escala musical, parece que a reivindicação de realidade na presença e a pura materialidade da forma significa o reencontro com uma realidade aquém ou além do real simulado. Livre do imperativo moderno, particularmente vanguardista, de propor a ruptura e buscar o novo, a arte dita contemporânea vaga no indeterminado, tendo que definir, em cada caso, enquanto se inventa, as regras e categorias que a singularizam e que propiciam a fruição e o julgamento. Desidealizada, esta arte exercita-se na tensão com os limites da modernidade, 16

remetendo-se a um “sujeito operativo” e não mais a um “sujeito focal” , como o herdado da Renascença. Não prometendo nenhuma experiência de completude, assim dificulta a articulação de uma crítica da cultura, portanto, a aposta na transformação da vida. Porque não propõe ideias suficientemente fortes para fundamentar práticas, vive de incertezas e surpresas, entre a inquietação e a indiferença, ansiando, talvez por um preenchimento que dê conta da irrisão dos 17

projetos modernos . Assim, esta arte, de um lado vaga entre desejos de restauração de projetos e operações que outrora tiveram sentido, resgatando, como se diz, a possibilidade de articulação entre criação e crítica. Ou então, por outro lado, dedica-se a recodificar, reiterar e eventuar. Aqui e ali surpresas acontecem: um tensionamento de signos da experiência, uma reinterpretação que vira um modo inédito de enunciar, uma reinscrição do simbólico onde só havia repetição, um nexo surpreendentemente de sensibilidade e pensamento que interferem no circuito da razão comunicativa, repropondo a arte com sentido de intervenção cultural. São estes lampejos que afirmam as potências do puro viver. Pois é disto que se trata hoje na arte: reinventar a arte de viver. Curiosamente, tudo aqui vem enunciado pela partícula re. Um re que significa elaboração: levantamento dos esquecimentos, dos recalques, das supressões promovidos pelos dispositivos

vanguardistas e pelo projetualismo moderno. Trata-se, então, de indiciar com este re que agora estamos em pleno processo de elaboração, analisando taticamente os processos modernos. A representação, como se sabe, está no centro das posições filosóficas no que diz respeito às relações entre o pensamento e a realidade. As noções de sujeito e de consciência aí estão para atestar o primado da representação: nas imagens que o homem faz de si em espelho, das personagens com que se institui socialmente e nas imagens que a sociedade dá de si mesmo em espetáculo permanente. As imagens assim constituídas foram desde sempre a matriz das instituições, sistema de representação coletiva e, simultaneamente, modos suplementares de produção do sentido da existência, conjuração das potências invisíveis. Assim, a representação é a matriz de nossa identidade, cifrada nas imagens. Todo o drama contemporâneo, no pensamento e na arte, está na tentativa de lidar com esta velha doença ocidental, como diz Deleuze, a representação, de que um claro emblema é a chamada crise do sujeito, das dificuldades da afirmação de subjetividades, já que este fato não mais deriva das exigências daquela subjetividade inventadas na filosofia moderna, de Descartes a Kant, em que o real e o sujeito se recobrem. Conhecemos toda a discussão aí implicada, com as repercussões na arte, a ponto de Nietzsche, sintomaticamente, declarar que “temos a arte para não morrermos de verdade”. Então, onde estamos quando consideramos que a arte serve para aguçar nossa sensibilidade e 18

reforçar nossa capacidade de suportar o incomensurável? Onde estamos, quando constatamos que: nenhuma idéia nos assegura a salvação, nenhuma idéia é portadora de uma verdade que salve, nenhuma idéia nos dispensa de sermos nós próprios a criarmos o nosso modelo e itinerário de salvação.

E ainda, que: nenhuma idéia é suficientemente forte para fundamentar uma prática, para funcionar como ciência rigorosa da práxis. Sem astros que nos guiem, sem uma ciência da navegação que apenas seja preciso aplicar, avançamos agora num mar de surpresas e incertezas. 19

Visando a configurar e decifrar esta “paisagem desconhecida”, a contemporaneidade . Nesta paisagem desconhecida, que é preciso configurar – através dos signos que aparecem 20

em toda parte, já que o essencial “está no instante da aparição das coisas” –, há cenários que se delineiam. Por exemplo, aquele que se impõe no horizonte mais imediato da cultura: em sua instância predominante, a do mercado e do lazer, que ao mesmo tempo que exaltam o vivido, as experiências mutáveis, múltiplas e simultâneas, neutralizam a distância, o recolhimento e abolem a 21

mediação que a representação necessariamente introduz . Ou então, a crença absoluta na experiência, de que é possível um acesso imediato à realidade – que, é bom relembrar, é irrepresentável –, ou o reencontro com um eu, mítica fonte de unidade. Mas com que unidade sonhamos? Aquela, diz Lyotard, que acredita ser possível reorganizar os elementos da vida

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cotidiana numa unidade sociocultural? Aquela prometida pela restauração da unidade perdida agenciada pelos museus e teatros da memória? Ou aquela, que apela para o mito do vivencial? Ou aquela que ante a confusão do espaço público e do espaço privado quer dar consistência àquilo que agora são simples efeitos de uma suposta ordem objetiva, da lei? Referimo-nos, obviamente, às esperanças colocadas atualmente na recuperação da interioridade, da intimidade, da alteridade, da subjetividade. Mas o que querem dizer estas noções, para não serem entendidas como recaídas na idealidade, manifestação da carência de ideal e, simultaneamente, vulto de dispositivos de suplência do ideal? Na cena contemporânea, quando se pretende identificar questões artísticas e práticas culturais renovadas, inclusive com poder de transgressão, ou alguma eficácia crítica ou mesmo educacional, percebe-se uma grande dificuldade: a arte fundida à vida sob a modalidade do evento acaba por dissolver os signos numa categoria típica da arte dessublimada, da estetização generalizada da cultura das metrópoles, que é a categoria do “interessante”. Esta tanto afasta-se das categorias tradicionais, do belo, do maravilhoso, quanto das modernas, do novo e da 23

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ruptura . Ora, sabe-se que o que é interessante é indiferenciado. O evento, diz Lyotard , é exatamente uma maneira de exibição de objetos ou de situações estetizadas. Nele o interesse estético desloca-se dos objetos, obras, etc. para concentrar-se nos comportamentos dos participantes de um acontecimento cultural – participando, aliás, das mesmas categorias das instalações. Participar, entretanto, não tem a ver aqui com a categoria artística moderna que surge com a desestetização com a abertura da obra de arte, implicando sempre um teor reflexivo. Os trabalhos artísticos que funcionam de uma maneira ou outra vinculada ao evento, embora pretendendo, inicialmente, interferir, até mesmo dialetizar, o meio de arte, o sistema da arte, convertem-se frequentemente em instâncias de comunicação, com que perdem o valor crítico pretendido, qual seja: provocar um acontecimento localizado, que explorando a força do instante daria lugar à exploração de signos de resistência, entendendo-se este trabalho, segundo Lyotard, como o de explicitação da angústia provocada pela perda do próprio objeto da arte em virtude do aprisionamento dos objetos e do desejo pelo consumo. Assim, a estetização generaliza, típica da estética do consumo, é simultaneamente fruto da desestetização moderna e perda do vigor de nexos e tensões dos dispositivos modernos, como a tensão entre o sensível e o racional, entre construtividade e vivência, por exemplo. Mas não seria possível pensar uma outra posição da experiência dos acontecimentos que não se submetesse a esta estética generalizada , ou seja, não seria possível pensar uma outra maneira de se entender a estetização do cotidiano, num espaço cultural em que as representações simbólicas foram afetadas até a raiz? Em suma: seria possível pensar-se em outra ordem do simbólico ao nível dessa cultura dessublimada? Ou então: quais as possibilidades de reinstauração da simbolização e do espírito crítico na cultura do espetáculo? Ao se recusar as promessas redentoras da totalidade, da teleologia dos sistemas de pensamento, enfim dos sistemas de representação, a aposta que se tem que fazer é a de não se

render à tentação de preencher, de colmatar, o vazio que então se instala; talvez a aposta seja a de trabalhar nos insterstícios do vazio. Talvez se trate, na linguagem, no pensamento e na arte, de assumir as coisas em sua singularidade e na forma, onde podem aparecer frestas, deslocamentos e aí descobrir, como na música, uma dicção, um timbre, uma tonalidade. Assim, ao invés dos desenvolvimentos críticos habituais, em que o que é pensado como resistência ainda vive das ilusões do sujeito, da totalidade, das promessas da razão, trata-se de explorar a resistência na forma – na linguagem, no pensamento, na arte, pois “só a forma ataca o sistema em sua própria 25

lógica” . Nesta perspectiva, criticar é jogar, desde que se enunciem as regras do jogo. Criticar, resistir, é uma aposta. Sabemos que diversas proposições artísticas tentaram esta façanha. Lembremos apenas, a título de exemplo, a busca da eficácia do ato simbólico no teatro da crueldade de Artaud ao explorar a ruptura entre os signos e as coisas e ao propor um retorno para antes da representação. Não será também isto que se procura em alguns rituais musicais e festas 26

selvagens? Tais exemplos provocam-nos a pensar se a vontade de fazer coincidir arte e vida não é apenas um jogo, do qual não se sai nunca, o jogo da representação e que só podemos nos aproximar dos acontecimentos, quando representados e não quando imediatamente vividos. Mas o conceito de representação é ambíguo: acentua o efeito de presença que a torna possível e o de ausência, que a funda; de um lado torna visível, expõe, exibe algo, como o seu emprego no 27

teatro, por exemplo; por outro lado, pela repetição substitui algo ausente, vicário . Duas atitudes convergentes e simultâneas: a resistência, que de um lado incide sobre as representações da cultura pondo em relevo a imagerie das sociedades democráticas, que privilegiando o vivido neutralizam o distanciamento reflexivo e perceptivo; e que por outro lado a resistência, valorizando o irrepresentável da experiência contemporânea, o horror. A outra atitude é a criação, que tem em vista exatamente não só fazer a crítica da cultura como afirmar que há qualquer coisa que pode ser concebido e que não se pode representar, que não se pode ver nem fazer ver, mas que de uma maneira ou de outra é possível apresentar. Em síntese: criar é resistir. Nada tem com comunicar, antes com “nomear o informe, a ausência de forma (de 28

representação) como índice possível do inapresentável” . Como ainda observa Lyotard, situandonos, hoje, nas fronteiras, nos limites expressivos, do que pode ser apresentado, trata-se de violentar estas fronteiras para tentar apresentar o que não pode ser apresentado. Assim como nestas fronteiras o pensamento desafia a sua própria finitude, a imaginação tenta ultrapassar os limites do possível; quando a imaginação falha ao presentificar um objeto, devido ao desacordo com a razão, o sentimento do sublime indicia o inapresentável, o que não pode ser representado – já que não existe mais a possibilidade de projetos de domínio do real, de representação do real, das coisas, o que existe para a experiência artística é uma realidade difusa e indefinida.

Neste momento em que as forças utópicas declinam, o que se apresenta, paradoxalmente, é o signo de algo inaugural, de um recomeço da estaca zero. Não sabemos signo de quê; só sabemos que estamos numa situação em que vige a pergunta: teríamos já nos apropriado das condições suficientes para levantar e elaborar os obstáculos modernos, do imperativo do novo a todo custo e da crença num princípio unitário da história, fundamento de realidade e verdade? Já estaríamos aptos para realizar a experiência de uma vida em que a arte, na impossibilidade de dar a ver o mundo, pode entretanto simplesmente mostrá-la? Uma frase de Machado de Assis, a frase final de Iaiá Garcia, “alguma coisa escapa ao naufrágio das ilusões”, serve de emblema para esta tentativa de entendimento esta nossa situação. Entre nós, frequentemente, e principalmente para fins educativos, são depositadas esperanças no poder emancipador da arte e da cultura, com a proposição de ideias e ações criativas que traduzem um empenho e fervor poucas vezes experimentado no Brasil. Inscrevendo idéias e ações de resistência, os projetos tiram sua eficácia da força do desejo que os mobiliza. Trata-se então de se pensar o que pode permitir identificar no presente os sintomas de uma outra experiência, indeterminada mas possível, mas que contudo é preciso configurar e decifrar. Assim, rever os princípios dessas atividades, tendo em vista repontecializá-los segundo as condições presentes do imaginário e da história, não significa simplesmente recodificá-los, resgatá-los, pois esta atitude frequentemente apenas os presentifica com efeitos adaptativos, o que se pode fazer através da elaboração, do processo de escuta que atravessa os projetos e experiências indagando a possibilidade de outras temporalidades que se abrem para um sentido impressentido. Tematizando-se assim obras, teorias e projetos artístico-culturais tem-se em vista configurar estratégias modernas e sondar táticas contemporâneas que compõem um campo de ressonâncias de intensidades que forçam o pensamento, que aguçam nossa sensibilidade para as diferenças. Há uma diferença evidente entre a atitude moderna e a algumas ditas contemporâneas no que se refere ao tema, tão acentuado atualmente – da resistência e criação –, patentes em muitas das atividades artísticas e culturais. Sobre isso, diz com clareza Peter Pál Pelbart: Se na modernidade a resistência obedecia a uma matriz dialética, de oposição direta das forças em jogo, com a disputa pelo poder concebido como centro de comando, com os protagonistas polarizados numa exterioridade recíproca mas complementar, o contexto pós-moderno suscita posicionamentos mais oblíquos, diagonais, híbridos, flutuantes. Criam-se outros traçados de conflitualidade, uma nova geometria da vizinhança ou do atrito.Talvez com isso a função da própria negatividade, na política e na cultura, precise ser revista. Como diz Negri: “Para a modernidade, a resistência é uma acumulação de forças contra a exploração que se subjetiva por meio de uma ‘tomada de consciência’”. Na época pósmoderna, nada disso acontece. A resistência se dá como a difusão de comportamentos resistentes e singulares. Se ela se acumula, ela o faz de maneira extensiva, isto é, pela circulação, pela mobilidade, a fuga, o êxodo, a deserção: trata-se de multidões que resistem de maneira difusa e escapam das gaiolas sempre mais estreitas da miséria e do poder. Não há necessidade de tomada de consciência coletiva para tanto: o sentido da rebelião é endêmico e atravessa cada consciência tonando-a orgulhosa. O efeito do comum, que se atrelou a cada singularidade enquanto qualidade antropológica, consiste precisamente nisso. A rebelião não é pois pontual nem uniforme: ela percorre ao contrário os espaços do comum e se 29

difunde sob a forma de uma explosão dos comportamentos das singularidades que é impossível conter.



Notas 1. Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo, livre-docente pela Faculdade de Educação da USP. Atualmente, é professor efetivo aposentado da Universidade de São Paulo. 2. Jacques Rancière. O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2009, p. 10-11. 3. Cf. J. Rancière. O inconsciente estético. Trad. Mônica Costa Neto. São Paulo: (Editora 34, 2010), 2010, p. 13. 4. Cf. J.-M. Schaeffer. Adieu à l’esthétique. Paris: PUF, 2000, p. 29. 5. Cf. J. Rancière. O inconsciente estético. op. cit., p. 11-12. 6. Cf. G. Wajcman. L’objet du siècle. Paris: Verdier, 1998, p. 160 (col. Philia). 7. Cf. J. Rancière, op. cit. 8. Cf. V. Safatle. Estética do real: pulsão e sublimação na reflexão lacaniana sobre as artes. In: G. Iannini; et al., (org.). O tempo, o objeto e o avesso- ensaios de filosofia e psicanálise. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 117. 9. Teixeira Coelho. O homem que vive. São Paulo: Iluminuras, 2010, p. 191. 10. Cf. J.-P. Comoli. L’art sans qualités. Tours: Farrago, 1999, p. 63. 11. Cf. Michel Foucault. O que são as luzes?. In Ditos e escritos, v. II. Trad. Elisa Monteiro, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 341. 12. Cf. G. Agamben. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius N. Honesko. Capecó-SC: Argos, 2009, p. 63. 13. Cf. Jean Baudrillard, entrevista. Folha de S.Paulo, Ilustrada – p. A-37, 23/12/1987. 14. François Warin. La représentation de l’horreur. Marseille: Lycée St. Charles, nov. 2001, p. 5. 15. Cf. a análise de O coração das trevas em Luiz Costa Lima, O redemunho do horror – as margens do ocidente. São Paulo: Planeta, 2003, p. 212-27. 16. Cf. F. Warin, loc. cit. 17. Cf. Eduardo Prado Coelho. Para comer a sopa até o fim. Jornal do Brasil, Idéias/Ensaios, 03/03/1991, p. 4. 18. J.-F. Lyotard. O pós-moderno. Trad. bras. de La condition postmoderne. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1986, p. xvii. 19. Eduardo P. Coelho, op. cit. 20. J. Baudrillard. De um fragmento ao outro. Trad. bras. São Paulo: Zouk, 2003, p. 31. 21. Cf. F. Warin, op. cit., p. 5-6. 22. Cf. J.-F. Lyotard. O pós-moderno explicado às crianças. Trad. port. Lisboa: Dom Quixote, 1987, p. 15. 23. Cf. Jean Galard. Repères por 1’élargissement de 1’expérience esthétique. Diogène, 119. Paris: Gallimard, 1982, p. 94. 24. Cf. J-F. Lyotard. Moralidades pós-modernas. Trad. bras. Campinas: Papirus, 1996, p. 29 e ss. (Travessia do Século). 25. J. Baudrillard, op. cit., p. 39. 26. Cf. F. Warin, op. cit., p. 7. 27. Ibidem, p. 8. 28. J.-F. Lyotard. O pós-moderno explicado às crianças, p. 27. 29. Peter Pál Pelbart. Vida Capital. Ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 142.

Capítulo 2: Algumas Poéticas Urbanas 1

Carminda Mendes André

Temos observado que desde o final do século passado vem crescendo, nas metrópoles do mundo ocidental, o número de artistas nas ruas, nas praças; há experiências de coletivos de artistas ocupando edifícios abandonados, reativando-os com ações culturais. Também assistimos a experiências de dança e teatro performático em espaços públicos. Gostaria de apresentar algumas produções artísticas produzidas para e com a cidade de São Paulo. Portanto, vou apresentar artistas e coletivos que venho estudando e que mantemos maior contato. Por isso, não levem esse discurso como uma totalidade, mas uma perspectiva a partir de uma amostra, diria que pequena, da enorme produção da arte da intervenção urbana que encontramos na cidade de São Paulo na atualidade. Vou tentar apresentar algumas características dessas produções, que estou chamando de poéticas urbanas. Em nosso entender, há uma relação entre controle dos espaços públicos e arte de rua na contemporaneidade. A arte urbana de que falamos relaciona-se por seu gesto de ressignificação, ou desejo de ressignificação do espaço público e, por conseguinte, desejo de inventar outros usos e valores para esses espaços. O que esta acontecendo para que muitos artistas queiram estar nas ruas? O que nos contam sobre nosso presente? Sobre a vida na cidade? Trata-se de falta de espaço para as apresentações ou exposições? Alguns coletivos e artistas nos mostram gestos políticos e poéticos invadindo o cotidiano urbano, gestos que poetizam e politizam a vida pública, gestos que nos aproxima do que Nietzsche chama de “estética da existência”, gestos poéticos que se confundem com a ética, arte que, aproximada à vida, ressignifica a arte e a vida urbana. Quais seriam as bases teóricas para a perspectiva que aqui apresentamos para a arte da intervenção urbana? No final do século XX, um autor desconhecido de codinome Hakin Bey, publica nos EUA um livrinho chamado Zona Autônoma Temporária – TAZ que, em meu entender, já sinaliza outros modos de pensar arte e política nas cidades da atualidade. A descrença nos Estados políticos modernos, a descrença em qualquer tipo de moralidade em benefício de valores humanos possíveis no capitalismo levou esse autor a pensar sobre o significado das festas raves ou da atuação dos hackers, como seguidores dos antigos piratas. Anarquistas e vistos como mal feitores, os piratas criaram modos de vida totalmente desvinculados a qualquer Estado ou Nação. Anarquistas e nômades, os piratas foram interpretados por Bey como indivíduos que não reconhecem a autoridade dos Estados-nações. Bey problematiza a criminalização da ação dos piratas ao interpretar seu modo de agir no campo da insurgência e não do periculoso. Ou seja,

tal como Foucault que vai estudar a vida dos “homens infames” (os loucos, os criminosos, os homossexuais), Bey muda o valor que se dá aos piratas, retirando-os do discurso moral de bem e mal, recolocando-os na história do ocidente como rebeldes insurgentes. Nós brasileiros não precisamos ir aos piratas para refletir sobre a insurgência contra o Estado brasileiro: Antonio Concelheiro, Zumbi, Lampião, os italianos anarquistas, e tantos outros. Mas, talvez, aqui no Brasil temos a maior riqueza nessa área, que são as nações indígenas que ainda resistem em seu modo de vida coletivo e não capitalista. As perspectivas de Bey e Foucault nos abrem caminhos para repensar esses sujeitos fora do discurso racista que os desqualifica como não civilizados, culturalmente menores, sujeitos ignorantes. O confronto entre capitalismo e preservação ambiental tem recolocado a importância da sabedoria dos povos da floresta. Falo daqueles que resistem e não renunciam suas almas selvagens (da selva), que não renegaram seus deuses para serem o que jamais poderão ser. Muitos de nós já entendeu que podemos repensar e aprender com eles modos de respeito e de preservação à vida (animal, vegetal e humana) que tem estado longe de nossos modos de vida. Ao trazer para o discurso histórico as narrativas dos vencidos, Foucault e aqueles que continuam nessa perspectiva nos apresentam outro modo de fazer a crítica da história do presente. Em consonância a essa perspectiva que chamaremos de pós-moderna, encontramos trabalhos de artistas e coletivos urbanos que analisam a cidade como um discurso e dialogam seus significados a partir do que encontram na cidade: a arte urbana (monumentos, patrimônios, estatuas, azulejos, etc.), urbanização, sujeitos frequentadores, usos dos lugares, tipos de lugares públicos. E será dentro desse discurso, que é a cidade, dialogando com ele, que entendo parte da produção da arte urbana de que tratamos aqui. Ao estudar certos casos de criminosos, ao aproximar o ato delituoso da revolta, Foucault problematiza as provas de periculosidade, que aparecem nos processos jurídicos a partir do final do século XVIII na França. Interpretar a ação do criminoso como efeito de uma subjetividade em revolta e não como falha moral (essa seria efeito e não causa). Foucault apresenta o criminoso com um sujeito, como alguém com consciência e capaz de falar de si mesmo, ao invés de aproximá-los de um psiquismo irracional dominado por um desvio de caráter que supostamente o levaria ao inevitável desvio de conduta moral. Foucault questiona como teria sido possível aparecer um tipo de crime, um tipo de ato como aquele? E tenta levantar documentação para nos fazer ver de que modo em com quais discursos de época o processo jurídico foi elaborado. Quais os argumentos e provas condenaram ou não esse ou aquele. Foucault nos faz ver que certos crimes (e criminosos) são produções do poder. Questiona, em estudos de caso, até quanto os atos do delinquente, do louco, do escolar indisciplinado, não seriam modos de resistência ao controle que estão sendo obrigados sofrer? Mas há outro sentido que podemos dar ao crime, à loucura, à indisciplina e que acho interessantíssimo. Nas revoltas, na loucura e na indisciplina temos também o sentido do lugar do

escape, da fuga ao controle, da liberdade de subjetivação. Isso me faz pensar que não há controle absoluto para os indivíduos, posto que sempre encontraremos uma fresta para fazer sobreviver em nós, o que é criativo, diferente, o exercício de alteridade. Essa tem sido uma aproximação possível que fazemos entre o rebelde e o artista urbano; entre política e arte; entre insurgência e poesia urbana. Bey inicia seu livro criticando a ideia de “revolução” para nos apresentar uma outra atitude de resistência, um outro tipo de luta; a luta do insurgente, do rebelde que age independente, que é apartidário. Em alinhamento aos pensadores pós-modernos, Hakin Bey é um crítico às grandes revoluções modernas. Segundo ele as revoluções modernas são resultantes do choque entre forças em que um Estado é atacado e se instaura um outro Estado com outros dispositivos de coerção. Bey desnaturaliza o discurso que define a História como a sucessão de revoluções supostamente em progressão de Estados em Estados. Bey mostra, então, que não mais é possível pensar em ações para “despertar a consciência” dos supostos alienados com a finalidade de derrubar o Estado presente e substituí-lo por um Estado supostamente mais justo. De que, o que é possível na contemporaneidade, é propor ações desestabilizadoras por meio de “levantes”, de “insurreições” que poderão ser interpretação como traições pelo Estado. Para o autor, o levante é o momento de negação radical. O levante é uma ação que cria uma “experiência de pico”. Não é algo que se faz todos os dias, mas quando acontece, o levante gera não uma mudança de consciência, mas uma diference no sentido dado por Derrida (não idêntico, ser outro). Talvez o que presenciamos nas manifestações gigantescas realizadas em junho no Brasil de 2013 seja um tipo de levante. Nada aparentemente mudou, mas não somos mais os mesmos. As manifestações continuam reverberando em nós. Sinto que vivi uma experiência de pico. Em nosso grupo de pesquisa estudamos Hakin Bey e outros anarquistas, pois estamos observando aproximações possíveis entre a insurgência de que fala esse autor e certos tipos de performances urbanas que temos observado. Parece haver, entre a ação insurgente e a ação poética de algumas intervenções urbanas, certas características comuns. Por exemplo: a temporalidade, a negação radica, e a esperança, nem sempre alcançada, de provocar uma “experiência de pico”. No campo das produções artísticas, há insurgência, por exemplo, quando os artistas insistem em realizar as ações poéticas em espaços públicos sem autorização do Estado. Mas talvez o que provoque a insurgência poética é não distinguir se é arte ou protesto; se é arte ou bagunça. Nem mesmo podemos, em alguns casos, distinguir a categoria artística da ação. É inútil buscar definila. O interessante é justamente poder estar diante de um signo que é produzido nas fronteiras das definições das categorias estéticas. Eduardo Srur, ao colocar uma boia no Cristo Redentor está pintando a paisagem? O Coletivo Pi, ao realizar uma competição de natação na faixa de pedestre está fazendo teatro? Milene, do Coletivo Alerta! ao andar dentro de uma jaula, pedindo

aos transeuntes que a leve para lugares determinados, está fazendo performance? Artes visuais? Alexandre Orion, ao criar caveirinhas com pano molhado tirando a fuligem produzida pela poluição dos automóveis, está pintando um quadro? Para Hakin Bey, o confronto direto com o poder público, ou seja, com o Estado não interessa (pois não lhe interessa o poder, estar no poder, ser o Estado) e em seu entender não vale a pena, pois se trata de um Estado terminal, uma megacorporação/Estado de informações, um império do Espetáculo e da Simulação. Diz ele “todos os seus revólveres estão apontados para nós”. Mas, de outro lado, mesmo com nosso armamento miserável de artistas (balões, roupas de palhaços, instrumentos musicais, bandeiras, palavras em estado de poesia, etc.) Bey garante que não temos em quem atirar, pois, em frente a nós, está um fantasma, estamos diante de um simulacro, de uma máquina chamada Estado. Há uma foto muito conhecida nas redes sociais eletrônicas de um menino de rua que faz troça de dois policiais. O menino está de frente e os dois policiais estão de costas emoldurando a imagem. O fotógrafo flagra a vertiginosa assimetria entre os poderes, no caso ai o poder público com o morador de rua. A ausência de rostos dos policiais é muito significativa. Não se trata de criminalizar indivíduos, não se trata desse ou daquele policial, mas de uma ideologia que governa a partir da divisão da população em classes e em forma piramidal, ou seja, sob o signo da hierarquia. Hierarquia das classes que segue a velha hierarquia das raças que, por seu turno, segue a hierarquia das culturas, hierarquia dos saberes. Do outro lado, está o menino performatizando, com ironia de poeta, com expressividade de ator, a situação do Brasil diante dos desdentados, dos pés-descalços, dos meninos drogados. De alguém que foi deixado para morrer. É com essa realidade que os artistas urbanos de muitas metrópoles brasileiras estão tendo que lidar. Sua arte, tal como o menino, esboça, por meio de gestos minúsculos comparado ao poderio do espetacular do poder público, sua resposta ao que vive. A arma do menino é a mesma de muitos, ou talvez a esmagadora maioria dos artistas: a ironia e a poesia. Sem a brincadeira, sem o sentido lúdico da vida, sem utopia, sem sonho... como resistir? O levante e a intervenção urbana desautorizada pelo poder público são anarquistas. Suas ações criam o que Bey chama de Zonas Autônomas Temporárias, isso quererá dizer que trata-se de ocupações clandestinas de espaços em que o Estado ainda não reconheceu a ação dos rebeldes ou que está momentaneamente vazio de armamentos (câmeras de segurança, guarda metropolitana) ou ainda a TAZ pode vir de invasões repentinas de lugares vigiados (como são os casos de ações em metrôs, instituições bancárias, instituições públicas etc.). Nos explica Bey: Assim que a TAZ é nomeada (representada, mediada) ou descoberta por policiais, ela deve desaparecer, ela vai desaparecer, deixando para trás um invólucro vazio, e brotará novamente em outro lugar, novamente invisível, porque é indefinível pelos termos do Espetáculo.

A TAZ é um microcosmo daquele “sonho anarquista” de uma cultura de liberdade. A TAZ é um acampamento de guerrilheiros ontologistas: ataque e fuga. A TAZ deve ser capaz de se defender; mas, se possível, tanto o “ataque” quanto a “defesa” devem evadir a violência do Estado, que já não é uma violência com sentido. O ataque é feito às estruturas de controle, essencialmente às idéias. A “máquina de guerra nômade” conquista sem ser notada e se move antes do mapa ser retificado. (Bey, 2004, p. 18-19)

Todas as frases acima destacadas do livro de Bey podem nos indicar do que se trata A TAZ de Bey sempre nos leva a pensar na arte como intervenção. Arte da efemeridade, arte do gesto poético, arte que reinventa o agora, arte que não vem para ficar. Arte que não se fixa. Arte que corta, que gera desordem, fazendo jus ao termo que insistimos em preservar que é a de “intervenção urbana”. Intervir aqui é irônico, é o mesmo que faz o menino de rua diante dos policiais: uma representação grotesca da violência banalizada e que tem alterado a vida coletiva da cidade. A atitude do artista urbano que aqui nos referimos não pretende criar um produto acabado, uma obra de arte e com ela estetizar a cidade. Eduardo Srur, ao colocar a instalação das pets gigantes nas margens do rio tietê não quer embelezar a margens do rio tietê (apesar de alcançar esse efeito), mas sim dar visibilidade ao ato criminoso de transformar o rio em esgoto aberto; ato criminoso de que todos somos responsáveis. Não se trata de embelezar o que está feio, mas de mostrar a pobreza de ideias e sensibilidade que se mostra naquele lugar, da vida pública, que foi escolhido pelo artista. Muitas ações poéticas que encontramos na cidade nos propõem outros e pequenos gestos, gestos poéticos que são proposições de relações de poder não hierarquizados, gestos políticos, gesto com os transeuntes e com a cidade; gestos que nos propõe fazeres poéticos no micro das relações afetivas, nas trocas possíveis entre artistas, transeuntes e cidade. Se há beleza nesses gestos artísticos é da ordem da ética da gentileza com o outro, com a cidade e com suas histórias. A TAZ surge também do que Bey chama de “fechamento do mapa”. Isso quer dizer que não há mais, no globo terrestre, um território que já não seja tomado por proprietários. Ao que o autor chama de “gangsterismo territorial” onde “nenhum centímetro quadro da Terra está livre da policia ou dos impostos... em teoria” (Idem, p. 22). “O mapa está fechado, mas a zona autônoma está aberta. Metaforicamente, ela se desdobra por dentro das dimensões fractais invisíveis”. No caso dos artistas, penso que eles inventam espaços públicos no mapa fechado. A criação da TAZ de que fala Bey é sustentada por uma ciência alternativa, a psico-topologia definida pelo autor como a arte de submergir em busca de potenciais Zonas Autônomas Temporárias. Tal conceito leva Bey a se a aproximar das derivas e da psico-geografia dos situacionistas. Derivar, andar a esmo, acaba sendo um modo de conhecer um território sem uma

finalidade prévia. Ao perambular sem procurar algo específico, o performer deixa-se levar pelo lugar, por suas poesias, por seus poetas, para alcançar um estado poético que lhe permite apreender um mapa afetivo do caminho. Muitos coletivos, somente criam suas ações poéticas depois de realizar derivas pelo território em que pretende atuar. Outra aproximação que podemos fazer entre a TAZ e uma possível poética urbana é a relação direta que se pretende construir entre artista e transeunte. Embalado pelo sonho anarquista, Bey afirma que “a TAZ deseja, acima de tudo, evitar a mediação, experimentar a existência de forma imediata” (Bey, 2004, p. 34). Ele está se contrapondo à sociedade do espetáculo apontada por Guy Debord. Esse afirma que o capitalismo contemporâneo produz um tipo de vida inteiramente mediada por imagens, por objetos e ideias de consumo. De que o capitalismo cria a simulação da vida. Ou seja, a vida simulada é uma vida falsa, não experimentada, não vivida. Trata-se de uma vida-mercadoria, vida que podemos comprar, mas que acaba por nos roubar a própria vida. No campo da subjetividade, a consequência da vida simulada é impedir que os indivíduos sejam autônomos, pensem e decidam por si mesmos, pela experiência. A imagem e a normatividade da sociedade do consumo diz fazer quase tudo por nós (ela cuida de nosso dinheiro, de nossa família, de nossa vida sexual, de nossos estudos, desde que a gente faça o que nos é dito para fazer e que não deixemos de pagar a prestação dos serviços). É justamente na proposição de criar a experiência sem a mediação dos simuladores do capitalismo contemporâneo é que algumas intervenções urbanas nos convidam à participar do ato poético. O artista interventor é, em nosso modo de pensar, alguém que tem um posicionamento sobre aquilo que pretende tocar e intervir. Não um posicionamento ideológico, mas sabe por que está atuando nesse ou naquele lugar. Por isso, a intervenção urbana não parece ser uma categoria estética exatamente, mas uma ação poética, que discute um modo de fazer política e que pode tomar de empréstimo várias formas estéticas, tudo depende do que pretende atingir e das necessidades de se disfarçar. Nesse sentido, entendemos que a intervenção urbana é um modo de RESISTIR à homogeneização dos sentimentos, das aparências; resisti à ideia de uma estética universal e à espetacularização da vida (no sentido de simulação da mesma). O artista de rua nos parece um insurgente quando não reconhece a propriedade privada acima da vida seja ela humana ou de outra natureza. Como é isso? O artista da rua é um despossuído de um lugar próprio e, com isso, exerce um modo de vida profissional nômade. Ora, se vivemos o fechamento do mapa, em que mesmo os lugares coletivos passam a ser normatizados pelo poder público e não pela população, a errância dos moradores de rua, dos mascates, dos artistas de rua passa a se tornar um ruído ameaçador à ordem institucionalizada, uma ameaça à propriedade, nesse caso, o próprio Estado.

Podemos compreender que tomar o lugar do despossuído e criar um espaço para subjetivar outros de si, para criar diferenças por meio de BOLHAS POÉTICAS, como gostamos de dizer, tudo em uma sociedade que governa para segurar a propriedade e que controla a população dividindo-a em classes, dividindo-a em bairros, identificando os supostos inimigos a partir dessa divisão e dos objetos que ele carrega (carro, roupas, cor de pelo, objetos), um nômade na sociedade do “ter” será identificado como suspeito sempre. Assim, tornar-se nômade, não querer ser proprietário, nos parece exercício de despojamento que os artistas fazem consigo e nos convidam a fazer o mesmo. Propõem-nos a experiência da desterritorialização (da mente, da identidade de classe, de valores fixados e assim por diante). O artista de rua, como qualquer trabalhador despossuído, utiliza o espaço da rua para sobreviver, pois precisa do encontro coletivo para realizar o que deseja fazer. Privatiza o espaço público? Não, porque é nômade. Seu estado de espírito, seu psiquismo, seu modo de ganhar a vida, é nômade, vive entre as fronteias. Por isso, dizemos que eles podem ser criadores de TAZ. Uma vez descobertos, eles precisam desaparecem para ressurgir em outra fresta que irão inventar. Quando artistas ou ambulantes mascates saem às ruas para trabalhar, sua ação provoca os dispositivos de poder que estão ai para assegurar as propriedades. E é desse modo que ações poética do tipo intervencionista acabam por revelar a privatização de lugares que deveriam ser coletivo. Revelam também o divórcio entre os interesses do poder público e os interesses dos cidadãos. Parece-nos que é por isso, que esse tipo de ação poética tende a se confundir com o ativismo político. Nem todas as intervenções urbanas são geradas pelo sentimento de indignação. No entanto, tenho participado de algumas ações poéticas que são geradas pela indignação e, por isso mesmo, acabam por mostrar avessos. Muitas intervenções artísticas desse tipo acabam tocando no medo e nos preconceitos (que vemos em nós e compartilhamos com os outros, como modo de consciência de si). Nesse sentido, a arte da intervenção também pode ser do tipo participativa, sua presença no espaço público pode funcionar também como exercícios para a práxis de uma filosofia de vida fora da mercantilização da arte, fora da normatividade do consumo. Os artistas que intervêm na cidade e que não pedem autorização ao poder público para se manifestar, assumem um posicionamento de negação do poder do Estado em espaços que deveriam ser da população. Não pedir autorização é não aceitar a infantilização do ato de ser tutelado. Há uma intervenção em que o artista está desenhando caveirinhas em um túnel. Seu pincel é um pano com agua. Sua tela é a parede suja de fuligem de um túnel de passagem de automóveis. Como guerrilheiro de uma outra mentalidade para a vida na cidade, a arte intervencionista desse artista atua clandestinamente para provocar a desordem do que está naturalizado pela população. Trata-se de Alexandre Orion.

Não pretende tomar o poder e, do mesmo modo, não pretende fazer com que a população tome consciência de algo que ela não sabe ou finge não saber. Nada do que mostra é novidade, ao contrário, trata-se do óbvio. A arte está no modo como ele nos chama a atenção sobre a poluição. Por ser uma insurgência, por não pedir autorização para sua presença – e, em sua genuína ação ativista ela não é institucionalizada – muitas vezes, tal arte é traduzida como vandalismo. Vou dar um outro exemplo, esse eu estava presente. Trata-se do que chamamos de “barraca de trocas”. Esse jogo artístico, na rua, suscita uma coisa curiosa nas pessoas: testa nossos princípios éticos. Distribuímos vários tipos de objetos nessa barraquinha e trocamos por outros objetos. Mudamos as regras para as trocas dependendo do lugar em que atuamos. Nesse dia da foto o jogo era trocar os objetos sem qualquer tipo de restrição. Estávamos em frente ao teatro municipal de São Paulo. Naquele dia certo sujeito parou e nos desafiou da seguinte maneira, escolheu uma caixinha de musica que funcionava muito bem, e quis trocar por uma caneta velha que tinha no bolso. Fez isso sorrindo, já esperando nossa negativa. Qual foi sua surpresa quando nossa jogadora, com um belo sorriso, aceitou a caneta e entregou o objeto escolhido ao sujeito. Ele ficou surpreso, depois envergonhado, pois queria desfazer a troca alegando que nosso objeto “valia” muito mais do que aquele que ele nos deu – destroca que foi sorridentemente negada pela artista. Ele tinha que ficar com seus sentimentos, responsável por sua ação. Então literalmente maravilhado o sujeito olhou para nossa artista e, como vendo nela algo de grandeza invisível, só tinha a nos oferecer, um “deus te abençoe” ou talvez tivesse dito “Deus te abençoa”. Talvez aquelas palavras, cheias de significados, tenha sido a coisa mais preciosa que trocamos naquele dia. O que ele pode nos oferecer, com a experiência ética que o fizemos passar? Não sei ao certo se foi um agradecimento em forma de benção, sua fé na possibilidade de haver ainda uma relação de troca em que os valores eram subjetivos e não capitalista, ou se ele afirmou que Milene, nossa performer, era uma mulher abençoada, um anjo sobre São Paulo. Em seus aspectos formais, algumas performances urbanas são constituída por tudo e todos que estão nas ruas: tipo de urbanismo, obras de arte públicas, ambulantes, moradores de rua, como já o disse antes. E a dificuldade em catalogar essa arte dentro das classificações clássicas (artes visuais, teatro, música, dança), como também já me referi acima, me parece falar sobre uma necessidade: a de compor estruturas poéticas móveis, permeáveis, fáceis de entendimento, fáceis de serem colocadas em movimento por transeuntes. Um fato curioso é que os coletivos de artistas intervencionistas são, geralmente, constituídos por atuantes de diferentes áreas do conhecimento: artistas, professores, estudantes, outros. Ao determinar os usos do espaço público sem a participação da população, o Estado tende a criminalizar qualquer outro uso que não seja previamente o autorizado, mesmo os usos lúdicos,

colocando em prática um tipo de poder que não conta com a espontaneidade, a criatividade, o lúdico como partes da vida.

Referências ANDRÉ, Carminda Mendes. O teatro pós-dramático na escola. São Paulo: Ed.Unesp, 2011. BEY, Haken. Zona Autonoma Temporária. 2. ed. São Paulo: Conrad, 2004 (Col. Baderna) . CARREIRA, André. Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade. In: LIMA, Evelyn F. W. (org.). Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. São Paulo: Nau, 2005. Fontes eletrônicas: http://coletivo-parabelo.blogspot.com.br/p/coletivo-parabelo.html (Coletivo Parabelo) http://mapaxilografico.blogspot.com.br/ (Coletivo MapaXilográfico) http://opovoempe.blogspot.com.br/ (Grupo Povoempé) http://www.eduardosrur.com.br/#!intervencoes-urbanas/c16q7 (Eduardo Srur) http://www.alexandreorion.com/ (Alexandre Orion)

Notas 1. Doutora em Educação, é pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Artes e docente do curso de Licenciatura em Artes Cênicas do Instituto de Artes da Unesp. Escreveu o livro O teatro pós-dramático na escola.

Capítulo 3: Quandonde (e outras) intervenções urbanas em arte – por um estudo indisciplinar e não artístico Diego Elias Baffi

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1. Intervenção Urbana: um possível entendimento A intervenção urbana em arte se configura em um amplo espectro de manifestações artísticas, dificilmente aferível enquanto conjunto. Isso se dá justamente por sua conformação histórica. 2

Herdeiros dos Espíritos Livres , os antiartistas – dos quais os dadaístas são os mais importantes – ficaram conhecidos por oporem-se à separação entre arte e vida e, por este motivo, optaram por ações que se utilizavam de procedimentos e resultados estéticos que os colocavam na fronteira entre arte e cotidiano, esquivando-se, como estratégia de ação e discurso, de procedimentos que permitissem sua inserção no que preconizasse como uma nova forma de arte. Como resultado, a intervenção urbana reside em um terreno amplo que está sempre sendo revisto e 3

redimensionado . Faz-se necessário, portanto, iniciarmos com uma descrição do que entendemos, no âmbito do 4

coletivo quadonde intervenções urbanas em arte por intervenção urbana no contexto da experiência a se descrever sucessivamente, a quais autores e práticas artísticas nos filiamos e quais os conceitos que orientam nossas escolhas metodológicas, vejamos: Em Certeau (1994), o espaço público aparece como um espaço em práxis, só passível de ser assim compreendido quando em fluxo de mudança e apropriação pelos passantes, em devir. A cidade assim concebida será escrita e reescrita por seus caminhantes em processo permanente de co-afetação, de forma que estes se tornam ao mesmo tempo autores e escrita em rede desta cidade. Esse escrever/inscrever-se se dá permanente em negociação entre os transeuntes, calcados entre normatizações homogeinizadoras (especialmente macropolíticas) e inscrições subreptícias de subjetivação em multiplicidade. Desta forma a intervenção urbana, enquanto inscrição, não seria uma prática específica de habitar a cidade, mas o próprio processo de constituição deste espaço que ao mesmo tempo que constrói operadores de estruturas disciplinadoras do poder (Foucault, 1979), traz no bojo a constituição de micropolíticas de resistência (ou Contra Usos, para Leite) compondo processos de apropriação e subjetivação. Tais instâncias não são separadas das demais práticas em categorias excludentes, mas constroem um processo permanente de negociação que é o espaço público em si. Cada caminhante é escrita e escritor – ao mesmo tempo, em uma relação de dupla dependência: ele é escritor, pois é escrita e vice versa – deste espaço.

É desta forma que, enquanto actantes da urbe, somos igualmente responsáveis pela sua escrita e pelos processos de fruição que ela apresenta e toda e qualquer alteração na maneira de habitar seu espaço – desde as ações ali executadas ou suprimidas, até mesmo as microalterações em cadeia provocadas pelos estados adivindos da consciência desta responsabilidade – é um processo de proposição e negociação com os demais passantes, é um escrever um novo espaço no espaço público. A partir das reflexões anteriormente apontadas, passa-se a não considerar os interventores em arte como únicos atuantes do espaço público, mesmo que consideremos sua ação poética, subjetivadora ou subversiva, mas como propositores conscientes de determinadas maneiras de fruição deste espaço que pretendem objetivos outros a fruições meramente utilitaristas, espetaculares ou das que criem “operadores” dos espaços de poder. Ao não ignorar que o espaço público é um território de negociação permanente entre singularidades os interventores são pensados como membros da parte do processo de escrita do espaço público que pode, mantendo a metáfora literária, propor perguntas potentes à mobilização de respostas estruturadas em territórios de fruição poética. Nos demoremos aprofundando estas tais perguntas, que podem ser entendidas como qualquer posicionamento do interventor que, para além dos processos de escrita/inscrição elencados, constituam-se tendo como objetivo o convite a um engajamento dos passantes na construção de 5

uma nova experiência de cidade, agora em co-criação poética. Um acontecimento entre espaço, interventor (presente através de suas ações ou de inserções de elementos autônomos que funcionem como ruídos à ordem utilitarista na urbe) e partícipe (este último trazido da categoria de passante por engajado ao processo desencadeado pela pergunta) sem diferença hierárquica entre si, criado no encontro de processos de apropriação em subjetivação que esquivem igualmente da hierarquia pré-dada de uso/ocupação do espaço público e possam, assim, desterritorializar o espaço onde se estabelece o encontro, reterritorializando em lugar poietico, de fruição em arte. A apresentação de questões desencadeadoras de percursos que encontrem seu resultado em arte já foi objeto de reflexão de Rolnik em seu texto Geopolítica da Cafetinagem, quando observa que ... o surgimento de uma questão se dá sempre a partir de problemas que se apresentam num contexto singular, tal como atravessam nossos corpos, provocando mudanças no tecido de nossa sensibilidade e uma consequente crise de sentido de nossas referências. É o desassossego da crise que desencadeia o trabalho do pensamento – processo de criação que pode ser expresso sob forma verbal, seja ela teórica ou literária, mas também sob forma plástica, musical, cinematográfica, etc. ou simplesmente existencial. Seja qual for o meio de expressão, pensamos/criamos porque algo de nossa vida cotidiana nos força a inventar novos possíveis que integrem ao mapa de sentido vigente, a mutação sensível que pede passagem.

Quando objetivam propor a investigação, em ato, de novos possíveis que conformem meios de expressão em intervenções urbanas em arte, temos detectado a passagem por três processos 6

menores, ou “camadas” de afecto por serem indissociáveis e apresentarem graus crescentes de mergulho na experiência. A primeira camada nos remeterá a própria constituição dos ditos procedimentos negociados de escrita coletiva que configuram o espaço público no que tange a sua fruição compartilhada, e dar-se-á na medida em que se revele como uma pergunta potente a contribuir ao desencadeamento de alterações conscientes na forma que os passantes realizam sua inscrição no espaço urbano. Diante da ação proposta, a primeira camada revela-se pelo estabelecimento da pergunta “Porque isso está acontecendo?” que o passante se faz não necessariamente de maneira verbal, mas que altera seu estado de atenção e resposta à dinâmica de afetos daquele espaço, por extra-cotidiano. A segunda dá-se quando a pergunta advinda do ruído provocado pela primeira camada, agora corporifica também um afeto-resposta e adentra o processo de negociação. Apresenta-se por uma necessidade de apropriação, subjetivação e corporificação da questão apresentada e dá-se na medida em que o passante vai atribuindo sentido à experiência dentro de seu referencial, dialogando com ela com a memória e os processos emocionais e sensoriais que remetem. Este é o meio pelo qual o passante se torna partícipe, dado que as alterações corporais provocadas, mesmo micro-perceptíveis, afetam e influenciam os demais processos de inscrição dos passantes, partícipes e interventores. O acesso à terceira camada se dará no momento em que o processo de compreensão da experiência (seja por nomeação, analogia, apropriação, subjetivação, etc.) iniciado na camada anterior não a encerra e esta “transborda”, extrapolando o acontecimento objetivo em fruição poética. Esgueirando da proposição de uma nova disciplina de utilização do espaço público (na medida em que os processos vivenciados deixam de tender à univocidade e dão lugar à multiplicidade), materializa-se o desvio à composição com a multiplicidade de sujeitos/subjetivações construindo o que poderíamos nomear como espaços ímpares de afecto, dinâmicas de atravessamento, processos de perda de si, de reconfiguração afectiva de tempo e/ou lugar; e estabelecendo a necessidade de criação de metáforas, funções poéticas e o acesso a uma experiência de um quando aiônico e um onde reterritorializante, “em arte”.

2. O espaço da urbe: características contemporâneas de um suporte coautor A permanência da arte nas ruas, especialmente das metrópoles – onde as dinâmicas de uso estão mais visivelmente prescritas – entra em contraste com um território em vias de esvaziamento e alienação, onde se vê incentivado processos de espetacularização (Debord), concretizados particularmente em não lugares (Augé), processos de gentrificação, privatização ou concessão à administração privada da gestão e ocupação do bem público.

Esta cooptação do bem público por parte dos poderes instituídos – especialmente econômicos, 7

mas não só – tem promovido uma homogeneização do espaço coletivo antagonicamente ao seu princípio norteador de território poroso à diferença e multiplicidade. Observa-se que os espaços cooptados têm dinâmicas de uso – declaradas ou sub-reptícias – cerceadoras dos processos de reapropriação. Uma abordagem fascista, autoritária e alienante se instaura não apenas no presente, no uso, mas igualmente na construção de passado (por exemplo, através de falsas memórias travestidas em “história oficial”, “importância histórica” e similares) e futuro (determinação dos tempos de uso através de concessões à iniciativa privada, concessões estas que ignoram o processo natural de modificação do espaço compartilhado, entre outros) que se faça dele. Muito do que se baseia segundo um diferente mecanismo de uso/ocupação do espaço urbano, quando parasitário ou produtor de diferença ao poder instituído, tem sido automática e prontamente execrado. Ao serem dispostos sob o contestável prisma da “ilegalidade” o povo da rua, vendedores ambulantes, andarilhos, festeiros, manifestantes, ocupantes (movimento Occupy), etc. perdem a liberdade de trânsito, apropriação e subjetivação dos espaços coletivos. Assim atua uma ameaçadora tendência à criminalização da diferença. Nesse cenário, a intervenção urbana configura-se como um processo ativo de construção de um lugar – geográfico e conceitual – de pertencimento coletivo, a refundação de um território de subjetivação, de extensão de si em arte com vistas à consagração de uma coletividade suprimida ou mesmo ao escancaramento desta supressão: funda-se assim não apenas uma ação artística, mas um lugar-ação. O lugar revela-se como co-autor, por apresentar neste jogo potências e demandas igualmente afectíveis, as quais o interventor considera e com as quais interage na construção de sua ação. Essas características dotam as artes ligadas à intervenção urbana da velocidade e multiplicidade do processo de transformação da urbe, fazendo com que seja responsável pela ampliação dos territórios atribuídos à expressão artística: é comum na contemporaneidade que sejam tênues as separações entre a arte da intervenção urbana e elementos atribuídos a outras searas da vida cotidiana, como o esporte (parkour), a desobediência civil (ocupações artísticas de terrenos e edifícios abandonados, fabricação de “falsos acontecimentos” – flash mob, artistas que se passam por personalidades, etc.), e até mesmo o vandalismo (ressignificação de propriedades públicas ou privadas a partir da inserção não autorizada de elementos gráficos – pixações, grafitagem, lambe-lambes, etc. – ou cenográficos); o que com frequência coloca esse lugar-ação na vanguarda das artes, pois num processo de afirmação da permanente construção de multiplicidades de fruição da experiência contemporânea e de busca por possibilidades de novos pensamentos-ações em arte.

3. Artistas não artistas

A intervenção urbana tem uma de suas bases mais aferíveis no Situacionismo, movimento nascido na década de 50 do século passado e que teve seu auge em 1968 vindo a ser oficialmente desmembrado em 1972, quando influenciou o surgimento de diversos movimentos que disseminaram e aprofundaram suas práticas. Sua grande contribuição à intervenção urbana como a conhecemos hoje parece ser oriunda do vínculo à corrente de pensamento que ligava os Livres Pensadores aos experimentos Dadaístas – em especial a crítica à institucionalização da arte quando da separação entre arte e vida cotidiana, promovida após a desvirtuação e cooptação da ideia de território da arte pela aristocracia e, posteriormente, pela burguesia – e somar a isso a crença de que a construção de situações (daí o nome do movimento) era o principal caminho de enfrentamento da arte enquanto instituição, bandeira igualmente presente em uma série de movimentos contemporâneos que virão ou não a serem conhecidos como anti-artísticos. Desta forma, tal aspecto ideológico não se restringiu ao momento histórico de atuação direta dos situacionistas. Vale conhecê-lo para entendermos como influencia a intervenção urbana hoje. Como estratégia de facilitação de entendimento do ponto de vista a ser aqui explicitado, 8

partiremos de um exemplo já dado neste mesmo texto, dos pixadores brasileiros que se emparelham a este discurso ao defender uma posição artística que se coloca, ao mesmo tempo, como crítica feroz à arte em seus espaços de institucionalização (no caso, as Bienais e a Faculdade de Belas Artes). Faz-se visível que o que se critica tanto aqui quanto lá é a alienação da arte do ambiente da vida cotidiana e a mercantilização da cultura presente na sociedade de consumo, que quantifica e encarcera a arte em espaços onde a entrada é controlada, seja do público, seja daquele interessado em compartilhar o seu trabalho artístico. A arte assim concebida cada vez mais dar-se a exigir uma rotulagem para ser alçada ao patamar fetichizado e poder ocupar os lugares que lhe foram reservados pelo status quo. A violência àqueles que não se moldam a essa engrenagem é tão declarada a ponto de que hoje muitas cidades estejam se armando “contra” a arte não institucionalizada, criminalizando não apenas a ação de pixadores, mas de todo e qualquer artistas que se apresente nos espaços públicos sem a chancela dos poderes. É comum (e esperável) que se opte por uma resposta violenta à violência sofrida. É isso que vemos nas ações dos pixadores, a opção por estratégias que combatem a violência real do estado com violência simbólica (ou, se assim preferirmos, combatem a violência real do estado com a violência real contra alguns de seus maiores símbolos – a opulência, a excessiva visibilidade e a propriedade privada), retomando o paralelismo, estavam igualmente presentes no discurso dos membros da Internacional Situacionista. Boa parte desta violência não é personificável, mas encontra-se na raiz do processo de organização da sociedade no século XX (e, como veremos, também no XXI), que Guy Debord nomeará Sociedade do Espetáculo. Para Debord, faz-se urgente combater tal organização, ligada à fetichização da mercadoria e à assunção de imagens que se impõem como mediadores das relações humanas. Tal combate se dá a partir da construção de situações.

A construção de situações começa nas ruínas do espetáculo moderno. É fácil visualizar a que ponto o próprio princípio de espetáculo – não-intervenção – está ligado à alienação do Velho Mundo. Ao contrário, os experimentos revolucionários e mais pertinentes de cultura vêm tentando quebrar a identificação psicológica do espectador com o herói, para levá-lo à atividade, provocando sua 9

capacidade de revolucionar sua própria vida. (52, grifo nosso)

Devolver a capacidade do público de “intervir” nos acontecimentos culturais é provocar-lhe a “capacidade de revolucionar a própria vida”. Atente-se ao fato de que o artista não é a fonte desta revolução, mas o é o próprio espectador, levado à atividade por uma nova organização do acontecimento cultural. O desencadeamento de um lugar de ação compartilhada – de comoção (mover junto) – é uma das premissas que até hoje influenciam diretamente a construção de intervenções urbanas em arte. Mais do que uma devoção ao movimento proposto por Debord, a manutenção desta premissa se deve a intensificação do processo de espetacularização das cidades, como bem detecta Jacques ao apontar que estamos Hoje, em um momento de crise da própria noção de cidade, que se torna visível principalmente através das ideias de não-cidade: seja por congelamento – cidade-museu e patrimonialização desenfreada – seja por difusão – cidade genérica e urbanização generalizada. Essas duas correntes do pensamento urbano contemporâneo, apesar de aparentemente antagônicas, tendem a um resultado bem semelhante: a “espetacularização” das cidades contemporâneas.

Assim como a premissa, a manutenção de procedimentos utilizados para combater este processo de espetacularização integram ainda as experiências de cidade. Além da proposição de ações integradas ao combate da lógica da violência pela violência, apontada anteriormente no caso dos pixadores, é significativo o engajamento de diversos coletivos de intervenção urbana ao uso de derivas, ou seja, caminhadas a esmo pelos espaços públicos que subvertem a noção da cidade como território de passagem através da abertura à emergência de um estado de experiência, de fruição poética da cidade. Por sua abertura à emergência de afectos que mobilizam processos de reconfiguração de si no espaço público, a deriva aparece tanto como ação em si, quanto como metodologia de estudo do espaço público por estes coletivos para construção de ações em intervenção que se utilizem de outros formatos. A deriva – cujo personagem modelo será o flâneur, por Walter Benjamim – coloca o interventor como estrangeiro na própria cidade e potencializa sua capacidade de produção de diferença do modus vivendi em operação. As ações daquele que deambula pela cidade a encaram como algo a ser descoberto, explorado, nunca aceito como natural, que está lá e daquele jeito desde sempre [...] 10

Nesse sentido, o flâneur é sempre um estrangeiro na cidade, pois está lá para explorá-la.

A ele, a cidade se apresenta como território de diferença, estranho, estrangeiro, aberto à construção de uma estratégia particular e única tempo-espacialmente de fruição, que esquive do espaço funcionalista, se orientando pela singularidade do acontecimento de encontro com o espaço.

Se ampliarmos essa vivência ao encontro de subjetividades que o espaço público supõe e, por princípio, incentiva, estaremos próximos da conformação de T.A.Z.s (sigla em inglês para Zonas Autônomas Temporárias), teorizadas por Hakim Bey: espaços onde a sociabilidade esquiva dos ditames dos poderes instituídos em direção ao que Alice e Motta detectarão como concretização de microutopias, e que, acredito, possam ser também compreendidas como espaços de existência potencializada de si e do encontro concomitantemente, em uma espiral onde a subjetivação e apropriação tensiona, estimula e dá velocidade ao compartilhamento da experiência dobrando o espaço de si no espaço de encontro e vice-versa.

4. Quandonde: indisciplina e antiarte O quandonde intervenções urbanas em arte, do qual aqui se discorrerá brevemente, é um coletivo formado como frente de atuação artística do projeto de Pesquisa “Intervenções Urbanas em Arte: Um Lugar-Ação na Urbe” (fevereiro de 2012 a fevereiro de 2014), sucedido pelo projeto “quandonde intervenções urbanas em arte – em busca de um lugar-ação na urbe” (fevereiro de 2014 a fevereiro de 2016) dentro da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) 11

– Campus Curitiba FAP. Coletivo este atualmente formado por sete discentes e egressos dos cursos de Bacharelado em Artes Cênicas e Bacharelado em Dança da referida universidade, além de membros da comunidade externa. Desde sua fundação o grupo se caracteriza por sua indisciplinaridade, ou seja, a busca pela construção de procedimentos em intervenção urbana que partam da investigação de estratégias de proposição dentro desta linguagem como resposta a necessidades advindas de outros âmbitos da vida de seus componentes. Se por um lado tais âmbitos organizam-se como estranhos à linguagem propriamente dita, por outro tal estratégia contribuirá para que a relação arte-vida, basilar para a intervenção urbana em arte, esteja garantida. Assim, buscamos que as necessidades dos membros do coletivo possam encontrar não soluções nos procedimentos que utilizamos, mas problemas potentes que exijam a reconfiguração dos procedimentos conhecidos 12

para que ganhem fluxo dentro do espaço de intervenção urbana em arte. Assim, o grupo tem se configurado a partir da busca por “problemas” mobilizadores, que podem ser: a necessidade de um posicionamento político, um incômodo em relação a uma experiência vivida no espaço público, uma celeuma individual ou coletiva vivenciada no campus, a admiração por um artista e o desejo de ser influenciado por ele, o convite para uma festa da faculdade, o amigo secreto de final de ano, a comemoração do próprio aniversário... A partir da delimitação de um problema instigante, o grupo começa a experiência prático-teórica de investigação, experimentação e aprofundamento dos caminhos possíveis para concretização da transcriação em intervenção. Este acontecimento se dá a partir do encadeamento de uma série de

considerações que não seguem um mesmo trajeto, mas tocam, em geral, questões circundantes 13

aos mesmos temas e se dá, aproximadamente, assim: Observamos autores e artistas de referência, entrecruzamos hipóteses, conjecturamos caminhos não apenas na teoria, mas, sobretudo, na prática. Exercitamos, exercitamos, exercitamos. Em intervenções de estudo, abrandamos à vontade para que o espaço nos proponha caminhos, realizamos derivas ativas e contemplativas. Deixamos que o espaço haja, em nós. Na medida em que algumas opções se delineam e as experimentações ganham corpo tentamos aferir qual camada, das três elencadas, estamos conseguindo tocar e como aprofundar esta relação com vistas à construção, nem sempre atingida, mas sempre almejada, das tais Zonas Autônomas Temporárias. Exercitamos a violência que acolhe e dá espaço à multiplicidade, a agressividade que respeita as potências e inclui as diferenças sem homogeneizá-las. Sempre que uma ação se mostra potente e provoca comoção, repetimos, repetimos, repetimos. Damos tempo e espaço às urgências. Aguardamos que o fim se imponha. Exercitamos à abertura ao erro e ao arrebatamento sem buscar culpados. Suspendemos o julgamento. Evitamos estabelecer relações de finalidades, de assistência social, de superioridade moral. Encaramos a falibilidade do processo como a permanência do desafio que nos move. Esquivamos dos mecanismos espetacularizantes. Buscamos que a ação não tenha separação geográfica entre propositores e partícipes e nem se configure uma determinação aferível de tempo e espaço que encerre a fruição poética. Buscamos que nossas ações toquem uma forma de viver, ou experimentar, a cidade e damo-nos a que esta nova cidade em construção, nos experimente também. Até que uma nova necessidade se imponha e nos convoque. Através destas considerações – que se dão, é bom que se lembre, tanto na teorização quanto na prática em uma relação de inter-dependência não hierarquizada –, temos alimentado as inquietações do coletivo e buscado os caminhos para que elas fruam em arte através da intervenção urbana. Tal metodologia tem contribuído para que cada integrante desenvolva ao mesmo tempo sua própria linguagem artística, delineada pelas escolhas tomadas dentro do amplo e maleável horizonte das intervenções urbanas em arte, e estejam vinculados a uma opção estética que nos caracteriza como membros do quandonde intervenções urbanas em arte quanto das cidades que nossa ação reverbera, modifica, contesta e, por tudo isso, indisciplinada e não artisticamente, (des)constrói.

Referências BASSANI, Jorge. As Linguagens Artísticas e a Cidade: cultura urbana do século XX. São Paulo: Formarte, 2003. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas Sobre a Experiência e o Saber da Experiência. Tradução de João Wanderlei Geraldi. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

FOUCAULT, MICHEL. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes, 2004. GREINER, Christine. O Corpo. São Paulo: Annablume, 2005. HOME, Stewart. Assalto à cultura: utopia, subversão, guerrilha na (anti) arte do século XX. São Paulo: Conrad, 2004. LEITE, Rogério Proença. Contra Usos da Cidade. Campinas, Aracaju: Editora da UNICAMP, UFS, 2004. Documentos Disponíveis em Meio Eletrônico: ALICE, Tania; MOTTA, Gilson. A(r)tivismo e utopia no mundo insano. Revista ArteFilosofia, n. 12, p. 32-47. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013. BEY, Hakim. T.A.Z. Zona Autônoma Temporária. Disponível em: . Acesso em: 9 out. 2013. ESTADO DE SÃO PAULO. Bienal sofre ataque de 40 pichadores no dia da abertura. Estado de São Paulo. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013. FOLHA ONLINE. Escola expulsa aluno que vandalizou prédio para discutir arte. Folha Online. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013. ______. Paulista “picha” curador da Bienal de Berlim. Folha Online. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013. JACQUES, Paola Berenstein. Breve Histórico da Internacional Situacionista IS (1). Disponível em: . Acesso em: 18 maio 2011. ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. Disponível em: . Acesso em: 3 nov. 2013.

Notas 1. Professor Assistente na Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR – Curitiba Campus, Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas, membro do Grupo de Pesquisas Arte e Performance (UNESPAR) e coordenador do Projeto de Pesquisa Prático – Teórico em Intervenções Urbanas – Um Lugar-Ação na Urbe e de seu braço artístico, denominado quandonde intervenções urbanas em arte. E-mail: [email protected]. 2. Howe, passim . 3. A critério de exemplo, cito aqui a progressiva transição ainda em curso da pixação, de ação vista como um problema de direito penal – seja pelo discurso da subversão política, seja do dano ao patrimônio – ao universo da intervenção urbana em arte. Apesar de ainda incipiente e controversa, vemos ações como a invasão de quarenta pichadores à 28ª Bienal de São Paulo em 2008 como uma estratégia de contestação e, ao mesmo tempo, de reivindicação de visibilidade dos pichadores dentro do universo das artes visuais. A busca por visibilidade comprova-se quando autores da ação, entre eles Rafael Guedes Augustaitiz – que havia sido expulso meses antes do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo, por liderar a ação de pichadores no campus em sua apresentação de Trabalho de Conclusão de Curso –, afirmam em entrevistas e nas redes sociais que o que fazem é arte, ou, como disse a única detida na ação da Bienal (não identificada), à reportagem do Jornal Folha de São Paulo, “É o protesto da arte secreta”. Tal visibilidade é eficaz a ponto de fazer com que pichadores assumidamente presentes na ação da 28ª Bienal fossem convidados a dar um workshop na 7ª Bienal de Berlim em 2010, durante a qual apresentaram seu trabalho com visível rigor formal: escalando um prédio não autorizado e pichando-o, mesmo após a tentativa de impedimento pelo curador e pela mídia que cobria o evento. A sua inserção no mundo das artes segue, assim, sendo frequentemente revista e redimensionada, já que ainda carrega consigo o caráter contestador e libertário. 4. Apresentarei o coletivo mais detalhadamente ao longo deste texto. 5. Aqui consideraremos acontecimento como um encontro intensivo que modifica os elementos nele envolvidos. 6. A grafia afecto é aqui escolhida para que se atente a sua ligação com o vocábulo afetar e não com afeição. O que se está em jogo é a capacidade de provocar alterações, de mobilizar de maneira ampla, e não unicamente de suscitar emoções. 7. Apenas a título de exemplo, poderíamos ampliar a lista destes poderes para o estado, as milícias e as igrejas. 8. Vide nota 33 para mais informações. 9. Debord, Guy. Internationale Situationniste n.º I de Junho de 1958. Apud Howe. 10. Bassani, p. 45. 11. Em quarenta e um meses de atuação, o coletivo tem sido composto de maneira dinâmica por alunos, ex-alunos e membros da comunidade extra – cadêmica à UNESPAR. Curitiba Campus II FAP. Cerca de quarenta integrantes passaram pelo coletivo e foram responsáveis por mais de quatrocentas intervenções em 15 cidades de 6 estados brasileiros, bem como nos Estados Unidos (Boulder) e Portugal (Lisboa). Conta atualmente com a participação de Carla Canes, Cassiana Lopes, Diego Baffi, Julia Campos, Juliana Liconti, Renata Fernandes e Thiago Martins. Mais informações sobre o coletivo podem ser obtidas em sua página na rede social facebook: https://www.facebook.com/quandondeintervencoesurbanas. 12. Tal procedimento está diretamente vinculado ao descrito por Rolnik no trecho transcrito anteriormente. 13. A partir deste momento, experimenta-se neste texto uma escrita que busca influenciar-se por este processo de indisciplina e transcriação essencialmente caótico e em primeira pessoa.

Capítulo 4: A temática ecológica como objeto de criações artísticas em arte-mídia e arte tecnológica 1

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Giuliano Tosin Cristiane Lustosa Rita de Cássia Mendes

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Este capítulo aborda a presença da temática ecológica nas criações de arte-mídia e arte tecnológica. Conforme ilustraremos, essas criações compõem uma produção singular no contexto da arte contemporânea. Tratam de assuntos que preocupam a ecologia, e trazem reflexões sobre eles, através da expressão artística aplicada à tecnologia. A contraposição natureza versus máquina adquire, nesses casos, uma dimensão inversa: há uma humanização das máquinas através da arte, uma aproximação entre o homem e o meio ambiente, mediada pela sintonia com o desenvolvimento tecnológico, que seria, por razões históricas, inimigo da natureza. A visão que a ecologia trouxe como ciência biológica particular foi a compreensão do meio ambiente e dos seres vivos como um sistema integrado biologicamente, geograficamente, em termos climáticos, genéticos, etc. As ações e reações nos complexos sistemas em que a vida se apresenta apontam para a interdependência das espécies em si, entre si, e com o meio. Desde que a biologia se constituiu como uma ciência aplicada, em meados do século XX, começou a fornecer subsídios para diversas iniciativas, que surgiram em diferentes esferas da sociedade: no campo político, nas manifestações populares, nas iniciativas do terceiro setor, na comunicação especializada e de massa, e também no contexto das artes. O crescente domínio do homem sobre o planeta trouxe, em contrapartida, o aumento do interesse com as preocupações ecológicas, à medida que o avanço tecnológico deixou claro, com a agressão ao meio ambiente, o preço do desenvolvimento. À ecologia antiga, de Darwin e Haeckel, sucedeu-se a moderna, que transformou-a numa ciência amplamente aplicada. Mas as tendências contemporâneas abriram novos caminhos interpretativos para a ecologia, vide o paradigma da ecologia profunda, que representa uma reformulação dos conceitos da ecologia moderna, e hoje constitui um ponto forte na formação do que se define como consciência ecológica. A corrida tecnológica interferiu em todas as áreas da sociedade, entre elas, nas artes, onde a convivência com as novas tecnologias tornou-se um atrativo para os artistas experimentarem novas formas de realização. Entretanto, o que os artistas fazem, normalmente, é um uso não convencional dos dispositivos tecnológicos, explorando seu caráter não utilitário e desprogramando as finalidades originais para as quais foram fabricados. É visível que existe também um certo modismo nessa produção artística, caracterizado por obras que se concentram no uso decorativo das tecnologias. Mas existem também muitos projetos que equacionam, de maneira criativa e como parte constituinte fundamental, a presença dos suportes técnicos. De todo modo, essas iniciativas constroem diálogos interdisciplinares que fundem sensibilidade e criatividade artística, pesquisa e conhecimento técnico, com questões pertinentes às temáticas

abordadas nas obras. No caso da ecologia, a produção de arte-mídia e arte tecnológica tem apresentado obras que instauram reflexões sobre problemas fundamentais da área, como: a preservação ambiental, as condições de vida nas metrópoles, a transgenia, o cibridismo, a valorização da biodiversidade, a conscientização sobre o controle demográfico, entre outros.

1. Ecologia, consciência ecológica e ecologia profunda A ecologia é definida como a “ciência do habitat”, que se ocupa das condições de existência dos seres vivos e suas interações, sejam elas de qualquer natureza, existentes entre eles e o meio no qual estão inseridos. A ecologia utiliza em seu conjunto métodos, conceitos e resultados de outras ciências biológicas, além da física, química e matemática. As espécies não são investigadas isoladamente ou em pequenos grupos de amostragem, mas como população, um conjunto de indivíduos situados em uma localidade determinada, que renova-se com o tempo. O termo “ecologia” foi adotado pela primeira vez em 1866, pelo biólogo alemão Ernst Haeckel, na obra Morfologia Geral dos Organismos (Dajoz, 1973, p. 13-14). Charles Darwin, no célebre livro A Origem das Espécies (1859), embora não tenha empregado especificamente este termo, foi um dos pioneiros nos estudos que dizem respeito à ecologia, visto que assegurou a hipótese do transformismo das espécies, caracterizando-o a partir das relações com o meio onde as mesmas estão inseridas. Na segunda metade do século XIX, multiplicam-se os trabalhos de biologia com cunho ecológico, que evidenciam o aspecto dinâmico das inter-relações entre os organismos e seu meio. Podem ser citados com destaque, neste sentido, os trabalhos de Humboldt, Haeckel, Mobius, Shelford e Adams. A partir dos anos 1920, esses estudos começam a subsidiar iniciativas práticas, como aplicações agrícolas e florestais, a fundação de sociedades de proteção ao meio ambiente, e a criação de veículos especializados em publicações relativas à temática ecológica (Ibidem, p. 19-20). Na década de 1930, nasce a ecologia moderna, caracterizada, sobretudo, pela profusão de sua aplicabilidade em diversos ramos da sociedade, como: a luta biológica do homem contra espécies nocivas à sua saúde, à agricultura e à pecuária, com suas implicações e decorrências; a regulação racional do corte de áreas verdes; a criação de Reservas e Parques Nacionais; a preservação da biodiversidade marítima e terrestre; o controle demográfico; os cuidados no desenvolvimento de transgênicos; as condições de vida nas metrópoles, etc. Os conhecimentos desenvolvidos por esta ciência subsidiam iniciativas que partem de grupos e organizações militantes e interferem na realidade social, política e econômica dos países. A ecologia moderna divide-se em três segmentos: a autoecologia, a demoecologia e a sinecologia. O primeiro estuda as relações de uma única espécie com seu meio, definindo os limites de tolerância e as preferências das espécies em face dos fatores ecológicos, examinando a ação do meio sobre a morfologia, a fisiologia e o comportamento. Já o segundo, aborda a dinâmica das populações, as variações na quantidade das diversas espécies, visando explicar as

causas dessas variações. Por fim, a sinecologia é a responsável por analisar as relações existentes entre os indivíduos pertencentes às diversas espécies de um grupo, e seu meio. Divide-se em sinecologia descritiva, que consiste na descrição dos grupos de seres existentes num determinado meio, e sinecologia funcional, que aborda a evolução dos grupos, analisando as influências que os fazem suceder-se em um determinado lugar (Ibidem, p. 17-18). O domínio crescente do homem sobre o planeta trouxe consigo uma série de preocupações, decorrentes das interferências realizadas no meio ambiente, para propiciar o desenvolvimento humano. Soma-se a isso a desigualdade de condições de vida entre os próprios humanos, que acarreta outra série de problemas, pertinentes também ao escopo da ecologia. O problema da sobrevivência da humanidade deixou de ser interesse somente de visionários, lunáticos e profetas de mau agouro, e a consciência ecológica tem se difundido gradualmente nas últimas gerações. Segundo a definição de Antônio Moser: A consciência ecológica não nasce no vazio. Ela emerge antes de tudo de uma dura realidade, que ameaça derrubar todo um sonho acalentado durante séculos, mas sobretudo nos últimos decênios: o sonho de o homem enfim tornar-se de fato o senhor de toda a criação. [...] A consciência ecológica emerge igualmente no contexto de uma nova consciência ética, que supera o eternismo para preocupar-se com as realidades do homem; que sai do subjetivismo privatista para lançar-se na macro-realidade; que abandona o progressismo para abraçar uma contestação libertadora. (1984, p. 8-9)

A consciência ecológica é um fenômeno ético que demonstra que parte da humanidade, nos dias de hoje, se preocupa com o respeito às pessoas e aos povos, com a preservação dos direitos humanos, com a paz entre as nações, e com o problema da desigualdade nas condições de vida. É uma sensibilidade que combate o individualismo suplantado pelas sociedades capitalistas e seu incentivo à competição desenfreada. Para Moser (1984, p. 10), a ética oferece subsídios para o equacionamento dos problemas ecológicos. Mas isso requer uma postura do homem diante a natureza, que não seja meramente idealista, mas que se configure como prática, como já foi demonstrado por personagens e acontecimentos históricos. A mudança de atitude aponta, ainda segundo o autor, três caminhos: o modo de ver a realidade, o modo de julgá-la, e o modo de instaurar uma prática que seja libertadora. De acordo com Loureiro (2012, p. 17), a prática ambientalista, que visa a construção da cidadania plena e ecológica, é prejudicada pela ausência de crítica política e de uma análise estrutural dos problemas que vivenciamos, além da lógica instrumental do sistema vigente reduzir o “ambiental” a aspectos gestionários e comportamentais. O autor cita três ameaças à consciência ecológica, no plano da produção de conhecimento: o naturalismo, que aborda os problemas ambientais de modo a-histórico, ignorando as relações sociais e onde a relação indivíduo-natureza é condicionada, trocando essa abordagem equivocadamente pela dinâmica das “relações naturais”; o tecnicismo, onde as soluções técnicas, de manejo e gestão dos recursos naturais são apresentadas como capazes de resolver os dilemas ecológicos, ignorando os aspectos políticos e econômicos envolvidos; e o romantismo ingênuo, defendido pelos que buscam

ser política e ideologicamente corretos, mas não consideram a dinâmica da natureza e a inevitável ação humana sobre ela. Sacralizam o meio ambiente e caracterizam o homem como ser nefasto (Ibidem, p. 24). Os problemas globais que danificam a biosfera e a vida humana de um modo que, em breve, pode tornar-se irreversível, motivaram Fritjof Capra a defender o conceito de “ecologia profunda”. Segundo o autor (2004, p. 23), esses problemas não podem ser compreendidos isoladamente, pois são sistêmicos, ou seja, estão interligados e são interdependentes. Por exemplo: só será possível estabilizar a população quando a pobreza for reduzida em âmbito mundial, ou, a extinção de espécies animais e vegetais continuará em escala massiva enquanto os países do Hemisfério Meridional continuarem com enormes dívidas. Esses problemas precisam ser vistos como facetas de uma única crise: a crise de percepção. Nossa percepção, e das instituições em geral, agora é que está começando a adequar-se a um mundo superpovoado e globalmente interligado, e é necessária uma transformação urgente nos valores, uma nova visão de mundo na ciência e na sociedade, “uma mudança de paradigma tão radical como o foi a revolução copernicana” (op. cit.). A ecologia profunda apresenta-se como um paradigma que concilia uma visão holística, por entender o todo como um sistema integrado, e ecológica, mas não no sentido da ecologia tradicional, que é considerada como “ecologia rasa”. A ecologia rasa é antropocêntrica, vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como a fonte de todos os valores. Já a ecologia profunda, segundo Capra não separa os seres humanos, ou qualquer outra coisa, do meio ambiente natural: Ela vê o mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida. [...] Em última análise, a percepção da ecologia profunda é percepção espiritual ou religiosa. Quando a percepção de espírito humano é entendida como o modo de consciência no qual o indivíduo tem uma sensação de pertinência, de conexidade, com o cosmos como um todo, torna-se claro que a percepção ecológica é espiritual na sua essência mais profunda. (2004, p. 26)

Este novo paradigma, surgido a partir dos anos 70, muito influenciado pelas ideias do filósofo norueguês Arne Naess, também é caracterizado por questionar, a partir de perguntas profundas, cada aspecto do velho paradigma ecológico, colocando em cheque os próprios fundamentos “da nossa visão de mundo e do nosso modo de vida modernos, científicos, industriais, orientados para o crescimento e materialistas”. Segundo as premissas filosóficas que a sustentam, a ecologia profunda não pretende desfazer-se por completo dos antigos preceitos ecológicos mas, antes, questioná-los todos (op. cit.).

2. Arte e tecnologia

Doravante nos debruçaremos sobre outro foco de interesse do presente projeto: as relações entre arte e tecnologia. Os avanços das ciências físicas e biológicas ocorridos, sobretudo nas últimas décadas do século XX, permitiram que muitos analistas da sociedade e da cultura repetissem enfaticamente que estamos vivendo um verdadeiro “choque do futuro” (Santaella apud Arantes, 2005, p. 9). A explosão da teleinformática, das telecomunicações, o advento das próteses tecnológicas, sensório-cognitivas, a biotecnologia e a bioindústria constituíram um salto antropológico comparável ao da revolução neolítica, por conta das transformações que estão trazendo para todas as esferas da sociedade: economia, trabalho, política, cultura, comunicação, educação, consumo, etc. No momento atual, segundo Santaella (op. cit.), há que se ficar bem perto dos artistas, prestar atenção no que estão fazendo aqueles que se situam na ponta de lança da cultura, pois eles são os primeiros a enfrentar face a face os “horizontes da incerteza”, criando as novas imagens do humano e de seus ambientes, no vórtice da atuais transformações. Arte computacional, sky-arte, arte por satélite, arte da telepresença, teleintervenção, imersão, realidade virtual, arte transgênica e arte robótica são algumas das manifestações que representam esse feixe de produções. A autora define como “arte tecnológica” a produção que ocorre quando um artista utiliza dispositivos maquínicos, ou seja, que materializam um conhecimento científico e têm uma certa inteligência corporificada em si. São diferentes das ferramentas técnicas, utilizadas na produção artesanal, por exemplo, como pincéis e espátulas, que são simples prolongamentos do gesto hábil (2004, p. 153). Para Arlindo Machado, as tecnologias eletrônicas e digitais estão permanentemente ao redor dos artistas na atualidade, “despejando o seu fluxo contínuo de sedução audiovisual, convidando ao gozo do consumo universal e chamando para si o peso das decisões no plano político”. Sendo assim, continua o autor: [...] é difícil imaginar que um artista sintonizado com o seu tempo não se sinta forçado a se posicionar com relação a isso tudo e a se perguntar que papel significante a arte pode ainda desempenhar nesse contexto.

As respostas, segundo Machado, representam a diferença introduzida pelo artista no universo midiático: ao invés de alimentar a “máquina produtiva” com enunciados de consumo, ele pode apresentar um projeto crítico relacionado aos meios e circuitos com os quais opera. Sendo assim, interfere na lógica das máquinas e dos processos tecnológicos, subvertendo e desnudando suas funções prometidas, e “desprogramando” a técnica (2007, p. 22). Segundo Antonio Risério: [...] as tecnologias não têm natureza nem essência, são mutáveis, de acordo com a nossa vontade, isto quer dizer que não se pode pensar “vou produzir assim porque estou usando determinado meio”. (1998, p. 9)

Essa visão deposita toda a iniciativa e responsabilidade da realização na criatividade do artista, mas queremos chamar a atenção para o fato de que as tecnologias também, com suas qualidades materiais e especificidades históricas, sugerem e propõem, criando um diálogo com a imaginação de quem produz arte. Como salienta Arlindo Machado: As técnicas, os artifícios, os dispositivos de que se utiliza o artista para conceber, construir e exibir seus trabalhos não são apenas ferramentas inertes, nem mediações inocentes, indiferentes aos resultados, que se poderiam substituir por quaisquer outras. Eles estão carregados de conceitos, eles têm uma história e derivam de condições produtivas bastante específicas. (2007, p. 16)

A relação com a tecnologia traz ao artista a oportunidade de, ao mesmo tempo, viver o desafio de abrir-se às formas tecnológicas de produzir do tempo presente, e contrapor-se ao determinismo técnico, recusando o projeto industrial já embutido nas máquinas. Com essa atitude, o artista evita que sua criação resulte simplesmente num endosso dos objetivos de produtividade da sociedade tecnológica (Machado, 2007, p. 16). É a oportunidade de desprogramar o caráter utilitário da mídia através de seu uso poético, de conceder ócio, contemplação e reflexão sobre os aparelhos de natureza produtiva, iluminando-os pela criação crítica para revelar outro viés das linguagens em que se manifestam. Como observa Philadelpho Menezes (1998), a arte permite ver o que a tecnologia “tem de programado que pode ser desprogramado”, dado que não se restringe a explorar seu caráter utilitário. Segundo Machado, o “desvio” do projeto tecnológico permite que a arte proponha uma “metalinguagem” da sociedade midiática, à medida que apresenta, “no interior da própria mídia e de seus derivados”, alternativas críticas às formas de normatização e controle da sociedade para as quais as mídias são convencionalmente idealizadas (Ibidem, p. 17). Como esclarece o autor: [...] a apropriação que a arte faz do aparato tecnológico que lhe é contemporâneo difere significativamente daquela feita por outros setores da sociedade, como a indústria de bens de consumo. Em geral, aparelhos, instrumentos e máquinas semióticas não são projetados para a produção de arte, pelo menos não no sentido secular desse termo, tal como ele se constituiu no mundo moderno a partir mais ou menos do século XV. Máquinas semióticas são, na maioria dos casos, concebidas dentro de um princípio de produtividade industrial, de automatização dos procedimentos para a produção em larga escala, mas nunca para a produção de objetos singulares, singelos e “sublimes”. (Ibidem, p. 10)

Existe uma sensível diferença entre projetos que usam a “arte como tecnologia” no lugar de “tecnologia como arte”, como distinguiram Julio Plaza e Mônica Tavares (1998, p. 69). A primeira reflete um processo de criação pautado em uma atitude inovadora, que busca explorar as potencialidades oferecidas pelos novos meios, aliadas à criatividade e originalidade, no sentido de fazer brotar, da materialidade dos suportes, as qualidades que levarão o pensamento humano à invenção estética. No outro caso, está a vocação reprodutiva da infraestrutura tecnológica, mais concentrada nos meios do que na criatividade.

No momento da invenção com tecnologias eletrônicas, a sinergia entre o homem e a máquina se manifesta através do diálogo estabelecido entre a subjetividade do criador e as possibilidades de realização com o meio escolhido. Esse diálogo apresenta diferentes possibilidades (ou poéticas), que Plaza e Tavares classificam em: poética por associação, que é aquela que utiliza repertórios armazenados em memórias eletrônicas; poética do acaso, criada a partir de processos aleatórios; poética dos limites, que trabalha com um repertório delimitado onde prevalece a ideia minimalista de fazer “mais com menos”; poética de projeto, fortemente regida pela racionalidade programadora; poética da simulação, onde a imagem é construída através de modelos de síntese que simulam a realidade, e as poéticas experimentais, onde a concepção vai surgindo a partir da própria realização (Ibidem, p. 124-194). Os meios eletrônicos, como forma de expressão em incessante renovação, apresentam ao artista capacidades inéditas de cognição (sensíveis e inteligíveis), trazendo possibilidades que exigem dele uma “familiarização com os modelos tecnocientíficos em uma interligação de práticas e saberes disposta em relações interdisciplinares” (Ibidem, p. 64).

3. Iniciativas de arte e tecnologia que dialogam com a temática ecológica A ecologia é uma inspiração recorrente na criação de obras nas vertentes da arte tecnológica e arte-mídia. Por buscarem, muitas vezes, abordar temáticas atuais em suas criações, as obras desse naipe não poderiam deixar de inspirar-se nas questões ecológicas, conforme podemos verificar na produção de vários artistas. Eduardo Kac é autor de Teleportando Um Estado Desconhecido (1996), uma instalação eletrônica onde a luz coletada interativamente via Internet com o público num continente fazia crescer uma planta numa exposição em outro, integrando o público interagente à preservação da vida, através da máquina. Genesis (1999) foi uma obra que contou com um longo percurso criativo: inicialmente Kac escreveu um trecho do livro de Gênesis da Bíblia relativo à criação, em código Morse. Depois transcodificou este código em DNAs, criando um gene sintético, que foi introduzido em bactérias, colocadas em placas. Na galeria, as placas foram postas sobre uma caixa de luz ultravioleta, controlada via internet por participantes interagentes. Ao acionar a luz ultravioleta, esses participantes causavam mutação genética nas bactérias, alterando também o texto que elas carregavam consigo. Os textos modificados foram publicados após a exposição, e estão disponíveis no site do artista. Uma de suas obras mais polêmicas, GFP Bunny (2000), foi a criação de uma coelha com implante genético de proteína fluorescente verde (GFP). Quando colocada sob luz azul, a coelha emite luz verde. Já em O Oitavo Dia (2001), o artista utilizou novamente o mesmo processo transgênico em espécies rudimentares, criando um sistema ecológico fluorescente que contava ainda com um robô 4

biológico conectado à internet. Stelarc é um artista que percorre o mundo realizando performances com dispositivos tecnológicos acoplados ao seu próprio corpo, antevendo os caminhos para o corpo ciborgue, um

mito antigo do qual nos aproximamos, na realidade presente. A arte cíbrida de Stelarc é representada por obras como Third Hand (1980), uma mão mecânica de látex e alumínio acoplável à mão direita do artista, como uma mão adicional. A mão é controlada por impulsos elétricos originados pelos músculos “verdadeiros”, que são carregados e amplificados, através de recursos eletrônicos, originando os movimentos da terceira mão. Em Ear on Arm (2007), Stelarc cultivou uma prótese de orelha humana através de cultura celular, e depois implantou-a no próprio braço, através de um procedimento cirúrgico inédito. Em seguida, foi instalado na orelha biônica um microfone em miniatura, que captava o que a orelha estivesse “ouvindo” no momento e transmitia, via wireless, para a internet. Desse modo, um usuário da rede no outro lado do globo poderia escutar ao vivo o que a terceira orelha de Stelarc estava ouvindo. A intervenção durou 5

pouco tempo e, devido a uma infecção, teve de ser retirada. “Fractal Flowers” é uma instalação digital interativa criada por Miguel Chevalier, que já foi realizada em diversos países, sobretudo em locais públicos, como parques, praças, aeroportos, estações, etc. A obra conta com grandes telões que projetam o crescimento de flores fractais gigantes, com diferentes formas e cores, cuja abundância depende diretamente da quantidade de 6

pessoas que transitam pelo espaço diante delas. As flores nascem, crescem e morrem em segundos, respondendo à presença dos transeuntes, como se o princípio generativo das sementes virtuais estivesse atrelado à interação com os humanos. A relação entre o público e a tecnologia constrói um habitat onde o crescimento e o florescimento dependem da colaboração e da participação dos que nele coexistem. A instalação já recebeu diferentes versões, desde 2008. Les Pissenlits (2005), de Edmond Couchot e Michel Bret, é uma obra eletrônica interativa que apresenta imensas projeções digitais de flores dente-de-leão. O público interage assoprando num sensor, diante do que as pétalas das flores caem, simulando o que ocorre com essa espécie de planta na realidade. O despetalar varia de acordo com a intensidade do sopro, gerando belas 7

imagens das flores virtuais voando pelo espaço da tela. A obra apresenta uma maneira criativa de abordar a natureza e metaforizar o sensível, através da imagem e da ação, no contexto virtual. A dupla EcoArtTech, formada por Leila Nadir e Cary Peppermint, desenvolve projetos desde 2005 fundindo arte, tecnologia e ecologia. Seu conjunto de referências abrange tecnologias primitivas, sistemas biológicos, práticas de meditação antigas, narrativas do século XIX sobre a natureza, teorias sobre a modernidade, novas tecnologias e mídia. Mesclam em suas obras o espaço urbano e virtual, com a natureza ambiental; promovem intervenções, happenings, performances públicas e net art. “Basecamp.exe” (2013) é uma instalação/happening/workshop de sua autoria, que simula um acampamento dentro de uma galeria, interligando novas mídias e artefatos ambientais. As fogueiras simuladas são feitas com entulho industrial e tecnológico, um convite a pensar sobre as consequências que o despejo desse tipo de material pode causar no

meio ambiente. As cadeiras para o público e outros itens do acampamento são de material reciclado, e dispositivos eletrônicos veiculam imagens das caminhadas ecológicas realizadas pelo grupo. No acampamento são realizados, durante a exposição, workshops e oficinas de 8

conscientização ambiental, utilizando conteúdo presencial e virtual. Animal-Cams (2008) é um videoarte de Sam Easterson no qual o autor acoplou pequenas câmeras de vídeo em animais, obtendo imagens que retratam a perspectiva da visão dos mesmos em seu dia a dia, nos diferentes habitats onde vivem. De búfalos a tarântulas, o público espectador recebe a oportunidade de ampliar seu contato com diferentes espécies, a partir de pontos de vista inusitados. Já Botanicalls (2011), instalação de Kate Hartman, é um sistema ecocíbrido que consiste em uma planta ligada a sensores de umidade da terra conectados a um circuito que resume o seu “estado” naquele momento e o divulga, em primeira pessoa, no Twitter. Não é raro deparar-se com tweets da planta pedindo a seus seguidores para ser regada.

Considerações finais Esta descrição preliminar de algumas obras selecionadas demonstra os diálogos que a criação artística tecnológica tem construído com diferentes questões do universo da ecologia. A temática ecológica, com seus variados enfoques e questões, tem ocupado um espaço importante no universo artístico contemporâneo. Parte dessa produção, marcada pelo uso das tecnologias recentes, possibilita trazer às obras elementos representativos do desenvolvimento tecno-científico que, historicamente, sempre foi considerado uma ameaça ao meio ambiente e à consciência ecológica. Entender esses processos criativos, interpretar as obras e sua repercussão, avaliar seus diálogos com o discurso de outras esferas da sociedade, bem como analisar essas criações à luz de um arcabouço teórico adequado, constitui-se um desafio instigante para a pesquisa nas áreas de arte tecnológica e arte-mídia.

Referências ARANTES, Priscila. Arte e mídia. São Paulo: Senac, 2005. CAPRA, Fritjof. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 2004. CARDOSO, Juliana. Arte e sustentabilidade: uma reflexão sobre os problemas ambientais e sociais por meio da arte. Revista Espaço Acadêmico, n. 112, set. 2010. DAJOZ, Roger. Ecologia geral. Petrópolis: Vozes, 1973. DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Unesp, 2009. ______ (org.). Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Unesp, 2003. ______ (org.). A Arte no Século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997. HUWS, Ursula. Nature, technology and art. Disponível em: . Acesso

em: 15 mar. 2013. LOUREIRO, Carlos Frederico; et al (orgs.). Sociedade e meio ambiente: a educação ambiental em debate. São Paulo: Cortez, 2012. MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. ______. Máquina e imaginário: o desafio das poéticas tecnológicas. São Paulo: Edusp, 2001. MENEZES, Philadelpho. Interpoesia: definições, indefinições, antecedentes e virtuais conseqüências. Texto integrante do CD-Room Interpoesia. São Paulo, 1998. MOSER, Antônio. O problema ecológico e suas implicações éticas. Petrópolis: Vozes, 1984. PARENTE, André (org.). Imagem-máquina. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. PLAZA, Julio & TAVARES, Monica. Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, 1998. RISÉRIO, Antonio. Ensaio sobre o texto poético em contexto digital. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, Copene, 1998. SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2004. ______. Cultura das mídias. São Paulo: Razão Social, 1992. SANTOS, Laymert Garcia dos. Politizar as novas tecnologias. São Paulo: Ed. 34, 2003. SCHWARZ, Walter e Dorothy. Ecologia: alternativa para o futuro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

Notas 1. Doutor em Arte e Mediação pela UNICAMP, professor da FAAT Faculdades e da UNINOVE. 2. Aluna de Comunicação Social da FAAT Faculdades e bolsista de iniciação científica. 3. Aluna de Artes Visuais da FAAT Faculdades e bolsista de iniciação científica. 4. Fonte: . Acesso em: 20 maio 2014. 5. Fonte: . Acesso em: 26 maio 2014. 6. Fonte: . Acesso em: 18 maio 2014. 7. Fonte: . Acesso em: 18 maio 2014. 8. Fonte: . Acesso em: 25 maio 2014.

Parte 2: Arte e Ensino

Capítulo 5: A arte no currículo do ensino básico: experiências estéticas e culturais 1

Silvia Sell Duarte Pillotto

O artigo, ora apresentado, visa a provocar reflexões sobre a inserção da disciplina de Arte no currículo do Ensino Básico e suas contribuições para o desenvolvimento cognitivo e sensível dos estudantes, bem como para suas construções identitárias. Nesse processo, é oportuno pensar que as experiências estéticas e culturais e os repertórios apropriados pelo estudante são indispensáveis para a sua construção enquanto cidadão crítico e partícipe em uma sociedade em que também é protagonista de sua e de outras histórias. Para que possamos melhor compreender a Arte no currículo, se faz necessário revisitar nossos conceitos sobre currículo pois, no contexto da escola, somos aquilo de que nos apropriamos, construímos e principalmente o que vivenciamos. Nos estudos de Silva (2000, p. 43), o termo currículo (curriculum) contém uma “conotação espacial, “pista de corrida”, local em que os romanos disputavam competições. Etimologicamente, deriva do verbo latino “currere”, que significa correr.” Para o autor, numa abordagem atualizada, o currículo/curriculum configura-se em um verbo e uma atividade, ou seja, está em constante movimento de ideias, de ações e ressignificações. Nessa perspectiva, a escola e o currículo são responsáveis por determinar formas de se perceber e pensar o espaço, o tempo e as identidades. No entanto, essa percepção e entendimento não são naturais, mas construídas pelas sociedades e suas culturas. Os currículos possuem mecanismos que são próprios da modernidade e que, semelhantes a uma maquinaria, são colocados em ação. São calendários, cronogramas, horários, disciplinas, matrizes que materializam e distribuem o espaço e o tempo em espaços/tempo de aulas e intervalos, que disciplinam e ordenam os ambientes escolares. Circulando pelos territórios da educação, das culturas e do currículo, observa-se que existe uma relação profunda entre educação e cultura, seja compreendendo o termo educação em sentido amplo, de formação e socialização do indivíduo durante toda a vida, seja no âmbito do domínio escolar. Na atualidade, com os desafios da sociedade contemporânea, a escola não pode ser apenas uma instituição que transmite a “verdadeira cultura”, mas se torna um espaço de conexões entre diferentes culturas. Para Goodson (2001, p. 42), “a escola deveria procurar tratar de igual modo todos os grupos diferentes, quer estejam estratificados por processos sociais, gênero ou raça”. Existem múltiplos sentidos da contribuição da escola para a produção social, pois ela participa ativamente das transformações nas estruturas dos grupos sociais, com consequências decisivas no processo de produção e reprodução cultural (Petitat, 1994).

A escola, portanto, é uma articulação seletiva de conjuntos culturais e grupos sociais e, dessa forma, participa tanto da produção quanto da reprodução da sociedade e das culturas. Também para Forquin (1993), as ligações entre educação e cultura são inquestionáveis. Existe uma relação profunda entre ambas, seja na concepção ampla de educação como formação e socialização dos indivíduos, seja no âmbito específico da educação escolar. Para o autor, a educação não transmite “a cultura” considerada patrimônio único e coerente, mas “algo da cultura”, abarcando uma diversidade irregular e mesmo vulnerável em seus modos de transmissão. Dessa maneira, o currículo é compreendido como uma porção da cultura: “[...] a escola não ensina senão uma parte extremamente restrita de tudo o que constitui a experiência coletiva, a cultura viva de uma comunidade humana” (Forquin, 1993, p. 15). Segundo Goodson (2001, p. 41): [...] a introdução das disciplinas na escola não é uma decisão racional e desapaixonada sobre as coisas que se considera serem de interesse para os alunos. É um ato político concebido de uma forma muito mais global.

Em que todos os grupos têm voz, o que pode ser entendido como ação democrática e autonomia. A partir dessas considerações, é fundamental rever e ressignificar o currículo nas escolas pois, caso contrário, como afirma Morgado (2007, p. 53), “corremos o risco de continuarmos a centrar-nos nos conteúdos e no ensino e a restringir os processos educativos a mera transposição de saberes teóricos oriundos do terreno das disciplinas”. Pensando assim, Pimenta (1999), explicita que as questões do currículo não se reduzem aos aspectos técnicos, mas se configuram em questões culturais, no sentido mais amplo e complexo, que constituem a sociedade contemporânea. A autora analisa e discute aspectos básicos e fundamentais da formulação de um currículo contemporâneo, levando em conta pressupostos ontológicos, epistemológicos e metodológicos desse currículo. Essa preocupação nos leva, consequentemente, a refletir sobre como estão sendo estruturados os currículos, bem como a pensar em quais indicadores de aprendizagem em artes visuais devem compor esse desenho curricular. Nessa perspectiva, Alves (2006) salienta a importância de um equilíbrio entre a apropriação de conhecimentos, que devem ser selecionados com responsabilidade e comprometimento por parte dos protagonistas envolvidos. Nesse conjunto, há que se refletir sobre o desenvolvimento das capacidades transversais [...] desenvolvimento de competências, mais objectivas, centradas nas aquisições de todos os tipos: conhecimentos, capacidades, automatismos, atitudes, aquisições da experiência. (Alves, 2006, p. 177)

As reflexões aqui apresentadas visam a desenvolver algumas ideias sobre possibilidades para que o professor adote métodos para educar e educar-se pela via do sensível, destacando aspectos que contribuem para esse fim: a criação, a percepção – a sensibilidade.

A escola, apesar das inúmeras pesquisas realizadas sobre métodos contemporâneos para a educação, ainda continua priorizando, em suas práticas, um ensino e aprendizagem voltados ao pensamento linear, disciplinar e, consequentemente, fragmentado. A educação pela via do sensível é, por vezes, considerada menos importante que os aspectos cognitivos, que indicam na concepção de algumas escolas – sucesso futuro. Nesta perspectiva, vale apontar que os caminhos educativos vão em uma linha dupla e, às vezes, contrária, entre o que significa ensinar e aprender pelo sensível e pela razão separada da sensibilidade, se é que isso é possível. O conhecimento sensível vem sendo abordado, ao longo da história, por filósofos, teóricos da psicologia, da educação, da arte e, mais recentemente, da administração. São muitas as controvérsias com relação ao seu real significado Alguns estudiosos afirmam que o sensível está desvinculado do processo cognitivo; outros o definem como elemento de apoio ao processo de aprendizagem, e, outros ainda, preferem fundamentar suas pesquisas afirmando que o conhecimento sensível é imprescindível no ato de se apropriar e internalizar os conhecimentos de um modo sistêmico. É por essa abordagem que esse estudo se define.

1. Criação e Percepção: desdobramentos na sala de aula Muito se tem falado sobre criatividade, mas na educação não temos ainda a dimensão do que a criação é capaz de fazer nos processos de ensino e aprendizagem. O que entendemos por professor e aluno criativos? Mais do que entendê-los, é necessário que reflitamos sobre a necessidade de criar. [...] o homem cria, não apenas porque quer, ou porque gosta, e sim porque precisa; ele só pode crescer, enquanto ser humano, coerentemente, ordenando, dando forma, criando. Os processos de criação ocorrem no âmbito da intuição. [...] toda experiência possível ao indivíduo, também a racional, trata-se de processos essencialmente intuitivos. Intuitivos, esses processos se tornam conscientes na medida em que lhes damos uma forma. Entretanto, mesmo que a sua elaboração permaneça em níveis subconscientes, os processos criativos teriam que referir-se à consciência dos homens, pois só assim poderiam ser indagados a respeito dos possíveis significados que existem no ato criador. (Ostrower, 1986, p. 10)

Os processos de criação, nesta perspectiva, estão relacionados à sensibilidade e esta não é privilégio de artistas. É capacidade inerente a todos os seres humanos, mesmo em diferentes graus. Desta forma, é possível entender a criação como uma abertura permanente de entrada de sensações. Nas definições mais antigas encontramos o termo em latim Creare que é igual fazer. No termo grego Krainen é igual a realizar. Essas duas definições demonstram a constante preocupação com o que se faz e com o que se sente, ou seja, como pensar, produzir e realizar criativamente. Essa concepção para a sala de aula pode significar intenso trabalho, tanto do ponto de vista cognitivo,

quanto sensível. Em outras palavras, podemos dizer que o ato criador envolve aspectos teóricos e práticos, ou seja, ativamos pensamento, corpo, espaço, movimento e ação. Quando isso acontece? Podemos dizer que praticamente todos os processos de criação começam em estado de profunda inquietação e tensão – na região da pura sensibilidade. É quase uma busca que se inicia com um tatear no escuro. Não por nossas indecisões, ao contrário, requer de nós, imensa coragem para nos entregarmos verdadeiramente a incertezas e questionamentos para os quais não existem perguntas ou respostas prontas ou definitivas (Ostrower, 1986). Remetendo-nos ao contexto educacional, podemos revisitar alguns exemplos que possivelmente todos nós já vivenciamos. Ao planejar nossas aulas, é necessário flexibilidade sempre, pois problemas levantados e questões expostas pelo aluno podem modificar a trajetória daquilo que estava traçado. Para isso, é preciso ter coragem, disponibilidade, autenticidade e perspicácia. É abrir novos espaços sem perder de vista a essência proposta do objeto a ser estudado. Quando o professor é aberto à vida, sem preconceitos, e receptivo às novas experiências, quando é capaz de diferenciar-se e reintegrar-se, de amadurecer e crescer espiritualmente, terá condições para criar e possibilitar o ato criativo aos alunos. O potencial criador é a plena entrega de si e a presença total naquilo que se faz. Ele vem acompanhado da eterna surpresa com as coisas que se renovam no cotidiano, ante cada manhã que ainda não existiu e que não existirá mais de modo igual, ante cada forma que, ao ser criado, começa a dialogar conosco. Os processos de criação e sua realização correspondem a um caminho de desenvolvimento da personalidade. Professor e alunos poderão crescer ao longo de suas vidas, crescer para níveis sempre mais elevados e complexos, para aqueles que existirem latentes em suas potencialidades (Ostrower, 1986). O fazer criativo sempre se desdobra numa simultânea exteriorização e interiorização da experiência da vida, numa compreensão maior de si própria e numa constante abertura de novas perspectivas do ser. Cada um de nós só pode falar em nome de suas próprias experiências e a partir de sua própria visão de mundo. E, em sendo cada pessoa um indivíduo único, suas formas expressivas também o serão. Por conta disso, é fundamental que no contexto da sala de aula sejam reunidas impressões do professor e alunos sobre si mesmos, os outros e a vida. Esse é o verdadeiro caminho para os processos de ensinar e aprender. E o que é então esse ato criativo? Inicialmente, o impulso criador é indefinido. Significa a ausência de padrões preconcebidos, no entanto, nunca uma ausência espiritual. É o estado de mobilização interior que leva o professor e os alunos a criar, caracterizando-se pela total presença ativa da mente. Isso significa que não há como separar mente – pensamento, do sensível – intuição, criação, percepção, emoção. Ao criar, ativamos corpo e mente como um todo absoluto que pensa e sente e por isso imagina, cria e produz (Meira; Pillotto, 2010).

Então, até que ponto tal busca é consciente ou inconsciente? Essa é uma pergunta que talvez nem possa ser respondida com precisão. Aliás, tudo o que se refere ao sensível é imprevisível e nunca definitivo, haja vista as várias pesquisas nas áreas da neurologia e psiquiatria. Porém, podemos afirmar que os processos de criação exigem uma concentração intensa. Nesse processo, a mente é ativada e, consequentemente, todo o ser responde aos estímulos também sensíveis. Essa trajetória nos leva a pensar que a educação lida não apenas com os aspectos cognitivos mas, principalmente, com os sensíveis, pois quando não construímos laços de afeto e de extrema sensibilidade com os alunos, não é possível construir conhecimentos e produção de sentidos. Assim, o conhecimento sensível desencadeia um processo de enfrentamento do mundo e relações no limiar do racional e do emocional. A experiência, segundo Cerón e Reis (1999, p. 232), pode ser aquela que “nos tira de uma relação soberana sujeito-objeto, que nos puxa para fora do copertencimento em relação ao fenômeno externo e, portanto, ao mundo”. A experiência pode ser pensada à luz da sensibilidade para um corpo reflexionante. “Ele é reflexionante por ser requisitado a prestar contas sobre o significado do que está sentindo, e o que está sendo sentido é por sua vez alimentado por essa reflexão” (Ibidem, p. 232).

2. Planejando nossas aulas Ao planejar nossas aulas, levantamos hipóteses do que os alunos necessitam aprender em um determinado espaço-tempo, o que são capazes de aprender, e, quais repertórios e histórias trazem consigo. No entanto, por vezes estamos mais preocupados com o que desejamos ensinar do que sobre suas reais necessidades de aprendizagem. Nessa linha de pensamento, os fenômenos estão relacionados aos meios audíveis, corporais e visuais e podem ser ativados pelas ações do professor que lhes confere sentido. Na comunicação, é necessária a mediação, que se dá entre o professor e os alunos. Para torná-la possível, é imprescindível que o ouvinte compreenda a intenção daquele que fala. Na ação da comunicação são construídos sentidos baseados em atos e manifestos sobre o que se desejou comunicar, o que daquilo foi necessário aprender e o que se interpretou do que foi dito (Meira; Pillotto, 2010). Ou seja, o planejamento, seu desenvolvimento e as ações que dele se desdobram podem ser uma imensa troca de vivências e experiências, tanto do professor quanto dos alunos. Embora seja o professor quem coordena esse processo, a participação de todos deve ser o que subsidia os processos de ensino e aprendizagem. Mas, como se dá esse processo? Como saber sobre as impressões de cada um? Nesse processo, acontece uma percepção imediata do que do aluno é exposto a partir da visibilidade do seu corpo, dos seus gestos e dos sons que ele profere. A face subjetiva da experiência de alguém – a sua consciência e as ações pelas quais dá sentido aos signos – não acontece da mesma forma e com a mesma intensidade para todos os alunos, em todos os

momentos. A percepção é um elemento sutil, que dificilmente é reconhecido pelo professor de imediato, mas que acompanha diariamente as atividades humanas, a forma pessoal de cada indivíduo na apropriação dos significados internalizados do entorno, portanto, fundamental nas práticas educativas. Como então identificá-la? A percepção se estrutura através de processos seletivos, a partir das condições físicas e psíquicas de cada aluno e, ainda, a partir de certas necessidades e expectativas deles e do professor. Frente aos incontáveis estímulos que chegam continuamente, esta seletividade representa uma primeira instância da filtragem de significados. Em outras palavras, tudo que é absorvido pelo professor e alunos dentro e fora da escola, influencia na filtragem do que se deseja perceber: interesses, necessidades, dúvidas, problemas, entre outros. Disto tudo, a única certeza é de que, no que se percebe, se interpreta; no que se apreende, se compreende. Essa compreensão não ocorre somente de modo intelectual, pois todo aprendizado deixa lastros profundos em nossa experiência. Aquilo que realmente aprendemos, porque percebemos e relacionamos à nossa vida, pode mudar nossa forma de ver o mundo e de nos percebermos como pessoas (Ostrower, 1986b). Por isso, a percepção não é apenas uma identificação, pura e simplesmente. É muito mais do que isso, pois é na percepção de que algo se esclarece para quem percebe (professor e aluno) e se estrutura também. Perceber é uma constante cadeia de formas significativas, portanto, no planejamento e nas práticas educativas é imprescindível que o professor ative constantemente a sua percepção e organize ações que provoquem a percepção nos alunos.

3. Experiência, Sensibilidade e Conhecimento Segundo Schott, o conhecimento do mundo material é base estrutural para a formação de seres sensoriais e cognitivos. O autor trata a cognição no âmbito da experiência vivida, abrindo o campo para os problemas epistemológicos, quando afirma que esses problemas são gerados por fatos históricos. Ao admitir o papel cognitivo da experiência e da sensorialidade, também desafiamos a concepção de que a argumentação é a principal forma do conhecimento. (Schott, 1996, p. 234)

Importante ressaltar que o conhecimento acontece nos níveis da racionalidade (argumentação/reflexão) e do sensível (emoção, intuição, percepção, imaginação, criação). Ambos devem ser considerados nos processos de ensino e aprendizado, pois fazem parte do contexto cotidiano e, sobretudo, da experiência humana (Meira; Pillotto, 2010). Gardner (1999, p. 57) afirma que: o sensível e o intelectual não estão dissociados dos processos cognitivos, uma vez que o indivíduo necessita do sistema corporal, sensível e cognitivo para comunicar-se no mundo das ideias, das sensações e das emoções.

O autor alerta para a necessidade de uma educação que crie condições para o desenvolvimento desse conhecimento, que motive os alunos a aprender a lidar com suas próprias emoções e as emoções mediadas pelos outros. Em outras palavras, o aprendizado sensível e humano deve ocorrer por meio da experiência da realidade. Na sala de aula, saber lidar com a experiência, sensibilidade e conhecimento é imprescindível, especialmente no atual contexto, que estimula, muitas vezes, a inversão de valores, a violência, a competitividade e tantos outros sentimentos que fortalecem a ideia do individualismo e do egoísmo. Portanto, saber sentir as emoções dos alunos, envolvendo-as nos processos de aprendizagem, é também ter um olhar sensível para o enfrentamento e embate de opiniões, decisões a serem tomadas e problemas com alternativas para sua superação. Para Fernándes (2001, p. 129), a contribuição da experiência estética está na possibilidade de o ser humano perceber-se e transformar a realidade. A compreensão que fazemos da realidade, acompanha a imagem que dela fazemos. “Nessa correlação entre existência e pensamento, entre consciência e objeto intencionado, é que a imagem surge como processo de apreensão... Pela imagem, outorgamos voz ao silêncio”. Nesse viés, a maior conquista do professor é a que conduz ao sentimento estético pela vida – o prazer, a reflexão, a possibilidade de utilizar os seus sentidos na construção de significados de eventos, objetos e pessoas. O sentido do estético é um sentido sempre receptor de um perceptor que quer aprofundar-se nesse mais além da imagem, transcendê-la, voltando-se sobre si mesmo sem perder seu entorno. (Ibidem, p. 132)

Na experiência estética, o professor pode encontrar formas de aprender sobre a realidade. Esse não é um processo totalmente lógico-racional, ou seja, alimenta-se muito mais de um saber subjetivo, apropriado de elementos que, por sua natureza, não necessitam de uma explicação lógico racional, mas de uma força transcendental que se fortalece na forma individual de perceber-se e perceber tudo o que está à sua volta (Meira; Pillotto, 2010). Portanto, é fundamental que o professor dedique uma parcela do seu tempo às experiências estéticas, seja bebendo da fonte das artes visuais, das artes cênicas, da música, da natureza, enfim, de tudo aquilo que possa modificá-lo e torná-lo cada vez mais sensível à vida e, consequentemente, aos processos de ensino e aprendizagem.

Considerações finais As questões aqui abordadas não se resumem a um artigo, são complexas e em constantes transformações, acompanhando os eventos sociais, econômicos, políticos e culturais. Pensar a arte no currículo do Ensino Básico é um desafio de professores, alunos, gestores e todos aqueles que também indiretamente fazem parte desse contexto. Porém, pensar e ousar mudar os pressupostos enraizados no currículo é um desafio ainda maior para todos nós, envolvidos na educação.

Embora o século XXl tenha, em suas bases, um pensamento globalizado, em que é preciso gerenciar o tempo e compreender os signos que dele emanam, existe resistência, tanto em relação ao pensamento sistêmico, quanto ao conhecimento sensível como fundamento básico para essa compreensão no contexto educacional. Algumas práticas educativas têm em sua natureza a fragmentação, tanto na sistematização dos planejamentos educacionais, quanto nos espaços físicos construídos, que são também espaços culturais, e, portanto, de identidades, apontando o que pensamos e o que queremos e quem somos. Professor e alunos estão habituados a trabalhar com modelos pedagógicos lineares, em detrimento dos não lineares, e esta é uma das razões da dificuldade para compreender todas as implicações da dinâmica da aprendizagem a partir de redes de significações. O pensamento humano, juntamente com os processos criativos e perceptivos, faz parte dessa rede que compõe os elementos sensíveis e racionais. E essa é uma das funções da arte no currículo. Educar pelo e para o sensível pode ser um caminho possível para uma educação plena, que leve em conta as histórias de vida de professores, alunos e comunidade. Que articule espaços formais e não formais da educação, entendendo que é possível aprender também para além dos muros escolares. Mais importante que a quantidade de conteúdos é a sensibilidade, percepção e criação do professor em selecioná-los de forma a garantir que o aluno desenvolva habilidades estéticas e esteja em permanente construção identitária. Propor, mediar e provocar os alunos é nosso maior desafio. Não basta mais transmitir informações, pois essas estão disponíveis nos mais variados meios midiáticos. É necessário se fazer professor, aquele que vai muito além de meras informações conteudistas, aquele que se interessa pela vida e em viver, aquele que assume uma posição diferenciada – de alguém que motiva o aprendizado mas, que é também, um aprendiz. Aquele que é comprometido com a ética, com a estética, com o conhecimento sensível, com os processos culturais, com a vida e com tudo o mais que faz sentido e gera produções de sentidos.

Referências ALVES, Maria Palmira Carlos. O desenvolvimento do currículo e a avaliação por competências. In: LOPES, Alice R. C.; MACEDO, Elizabeth F.; ALVES, M. P. C. (orgs.). Cultura e política de currículo. Araraquara: Junqueira & Marin, 2006. CERÓN, Ileana P.; REIS, Paulo. Kant: crítica e estética na modernidade. São Paulo: SENAC, 1999. FERNÁNDES, A. B. M. Imagen y estética del discurso postmoderno en tiempos de globalización. Revista de Estudos Universitários, Sorocaba: UNISO, v. 27, n. 2, dez. 2001. FORQUIN, Jean Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993. GARDNER, Howard. O verdadeiro, o belo e o bom – os princípios básicos para uma nova educação. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

GOODSON, Ivor. O currículo em mudança: estudos na construção social do currículo. Tradução de Jorge Ávila de Lima. Porto, Portugal: Porto Editora, 2001. MEIRA, Marly; Pillotto, Silvia. Arte, afeto e educação: a sensibilidade na ação pedagógica. Porto Alegre. Mediação, 2010. MORGADO, José Carlos. Formação e desenvolvimento profissional docente: desafios contemporâneos. In: MORGADO, José C; REIS, Maria Isabel (orgs.). Formação e desenvolvimento profissional docente: perspectivas europeias. Cadernos CIEd, UMINHO, Braga, Portugal, 2007. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1986. PETITAT, A. Produção da escola/ produção da sociedade: análise sócio-histórica de alguns momentos decisivos da evolução escolar no ocidente. Tradução de Eunice Gruman. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. PILLOTTO, Silvia Sell Duarte (org.). Processos curriculares em arte: da universidade ao ensino básico. Joinville. Editora Univille, 2005. ______. Processos curriculares em arte – da universidade ao ensino básico. Joinville. Ed UNIVILLE, 2005. PIMENTA, Selma G. (org.). Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez, 1999. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autentica, 2000. SCHOTT, Robin. Eros e os processos cognitivos: uma crítica da objetividade em filosofia. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1996.

Notas 1. Doutora em Engenharia da Produção (Gestão) pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Mestre em Educação (Currículo) pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e Graduada em Educação Artística (Artes Plásticas) pela Universidade para o Desenvolvimento de Santa Catarina – UDESC; Professora/pesquisadora no Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Educação e nos cursos de Graduação – Artes Visuais e Pedagogia na Universidade da região de Joinville – UNIVILLE, atuando também como pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Arte na Educação – NUPAE.

Capítulo 6: A influência de Murray Schafer na educação musical escolar – análise de materiais didáticos Aline Canto dos Santos

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Daiane Solange Stoeberl da Cunha

Neste capítulo apresentamos apontamentos que resultam de uma investigação sobre os conteúdos de música e os princípios pedagógicos de Murray Schafer nas escolas de ensino fundamental nos anos finais, no município de Guarapuava – Paraná. Os materiais didáticos analisados, livros e apostilas de caráter pedagógico foram coletados nos anos de 2013 e 2014 e revelam aspectos sobre a abordagem didática realizada neste município, no estado do Paraná. A argumentação para a realização desta pesquisa, está fundamentada na LDBEN 11769/08 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 2014), que a partir de 2012, torna o ensino da música obrigatório na educação básica. Esta lei trouxe grande motivação à educação musical e ao ensino da arte, já que desafia as instituições escolares públicas e privadas a buscarem caminhos para tornarem realidade a educação musical em sala de aula. Com a efetivação desta lei, geraram-se desafios para os educadores e instituições de ensino privadas e públicas, ao depararem-se com a necessidade de buscar metodologias para trabalhar a música na escola, desafios para o professor de música, diante da nova conjuntura de ensino coletivo e não individual, criativo e não instrumental. Neste ínterim, surgem muitas produções didáticas que estabelecem relações entre os métodos clássicos e os mais recentes de educação musical. O ato de ensinar não é neutro, ao contrário, ensinar é um ato social, intencional e fundamentado. Assim sendo, toda prática de ensino pressupõe escolhas. O professor escolhe, ou ainda, estabelece a partir de escolhas, seu perfil docente, suas intenções educativas, os princípios que nortearão seu trabalho, e os encaminhamentos metodológicos. (Cunha; Gomes, 2012, p. 70)

Diante de tantas proposições filosóficas e metodológicas, há uma grande urgência em se realizar pesquisas na área que possam desvelar caminhos e ainda diagnosticar realidades. Neste último sentido, é que esta pesquisa se encontra, e seu foco está em compreender os reflexos das proposições e princípios pedagógicos de Murray Schafer na educação brasileira. Pode-se entender que os princípios filosóficos/pedagógicos schaferianos são ferramentas importantíssimas na conscientização dos alunos no que diz respeito ao meio ambiente e a ecologia, ao ter contato com estes conceitos o aluno desenvolve conhecimentos a respeito do meio em que vive, a paisagem sonora, o aluno tem a oportunidade de ampliar sua consciência crítica à música e à sonoridade mundial, até mesmo também a possibilidade de refletir sobre a poluição sonora e repensar suas relações com a tecnologia. Por meio dos registros do pensamento e das práticas schaferianas de ensino musical criativo toma-se conhecimento da proposta em que o aluno possui autonomia para desenvolver sua capacidade criativa sob mediação do professor,

para Schafer o aluno participa de todo o processo de criação, sendo ativo e não passivo no desenvolvimento deste processo de aprendizagem.

1. Os três eixos filosóficos (pedagógicos) de Schafer Antes de apresentar a análise da aplicabilidade educacional dos princípios schaferianos nos materiais didáticos, é importante reconhecer e compreendê-los. Fonterrada no seu artigo que tem por título Música e meio ambiente – três eixos para compreensão do pensamento de Murray Schafer explica como se apresentam esses princípios filosóficos: Destacam-se que os três Princípios Filosóficos, Relação Som/ Ambiente (Paisagem Sonora), Confluência nas Artes, Relação da Arte com o Sagrado, presentes nos livros/escritos de autoria de Schafer e de pesquisadores schaferianos, fundamentam as análises desta pesquisa. (Fonterrada, 2010, p. 4)

A reflexão conceitual é fundamental para qualquer proposição didática, sendo assim, apresentam-se os princípios filosóficos schaferianos e sua implicação pedagógica. É necessário destacar o pensamento de Schafer em relação a cada princípio e de que forma estes são inseridos numa perspectiva pedagógica.

2. Relação Som/Ambiente: Paisagem Sonora A temática da Paisagem Sonora está inserida no projeto mundial “World Soundscape”, que procurou investigar soluções e alternativas para um meio ambiente sonoro ecologicamente equilibrado, o objetivo deste projeto é harmonizar a sociedade e seu ambiente sonoro. Por meio das reflexões sobre a Paisagem Sonora, Schafer mostra um modo de como a escuta na vida contemporânea pode ser ampliada, para Schafer a produção neste contexto está ligada à produção musical atonal. Pode-se definir como paisagem sonora os sons que fazem parte do nosso cotidiano, da comunicação, das atividades corriqueiras. Produzimos sons mesmo sem querer e sem perceber. Tudo ao nosso redor produz os sons mais diversos, curiosos e rotineiros. Na natureza estão inseridos infinitos exemplos de paisagem sonora, os trovões, a chuva, o barulho do mar, o som dos animais, e muitos outros. No dia a dia os objetos que manuseamos produzem diversos sons. No livro O Ouvido Pensante (Schafer, 2011), são apresentadas práticas de ensino de Schafer reflete sobre a nova paisagem sonora mundial a partir da abordagem conceitual e pedagógica. Ao apresentar o som como matéria prima da música o autor sugere a compreensão do entorno sonoro como uma grande composição musical. Insere nesta abordagem a reflexão conceitual e pedagógica sobre o ruído mundial: Eis a nova orquestra: o universo sônico! E os novos músicos: qualquer um e qualquer coisa que soe! Isso tem um corolário arrasador para todos os educadores musicais. Pois os educadores musicais são guardiões da teoria e da prática da música. E toda natureza dessa teoria e prática terá agora que ser inteiramente reconsiderada. (Schafer, 2011, p. 109)

Em Afinação do Mundo (2011), Schafer expõe a pesquisa Word Soundscape Project (WSP) – Projeto Paisagem sonora Mundial – iniciado em 1969 com a finalidade de estudar o ambiente sonoro, uniram-se neste objetivo, Murray Schafer e um grupo de pesquisadores – Bruce Davis, Peter Huse, Barry Truax e Howard Broomfield da Simon Fraser University Canadá na tentativa de definir arte e ciência no desenvolvimento de uma interdisciplina chamada projeto acústico. Fonterrada aponta como se deu este processo de pesquisa: Para que isso seja mais bem compreendido, vou trazer brevemente alguns dados do início de seu trabalho na Universidade de Simon Fraser, em Burnaby, um distrito de Vancouver, na Colúmbia Britânica, Canadá, na década de 1970. Murray Schafer era docente em um curso de comunicação, e dava aulas em uma disciplina que tratava de som e ambiente ... Dessa primeira experiência decorreu a criação de um grupo de pesquisa conhecido como The World Soundscape Project, desenvolvido por uma equipe de pesquisadores da mesma universidade, que tinha como objetivo desenvolver estudos a respeito de paisagem sonora. Entre os mais interessantes estudos, podem-se destacar os registros efetuados na cidade de Vancouver que se encontram no CD Soundscape Vancouver: ondas do mar, a entrada do porto, uma narrativa feita por um índio nativo, marcas sonoras de Vancouver, entre outros, gravados pela primeira vez em 1973. Posteriormente, a cidade foi revisitada, em 1996, durante um simpósio organizado pelo Word Fórum for Acoustic Ecology, com a colaboração do Goethe Institut de Vancouver, Sonic Resarch Studio na Escola de Comunicação da Universidade de Simon Fraser, de Vancouver New Music Society e da CBC. Dois artistas da Alemanha – Sabine Breitsamer e HansUlrich Werner – e dois canadenses – Darren Copeland e Claude Scryer foram convidados a criar retratos sonoros pessoais da cidade, a partir de sua própria experiência de ouvir Vancouver. Esses trabalhos fazem parte do segundo CD, junto a outras composições, registros sonoros e documentários feitos por Barry Truax e Hildegarde Westerkamp, colaboradores de Schafer no primeiro projeto, da década de 1970. (Fonterrada, 2010, p. 2-3)

Como resultado deste trabalho, Schafer escreveu o livro A Afinação do mundo, no qual sintetiza todas suas pesquisas. Este livro tornou-se material de grande relevância no que concerne a pesquisa sobre a Paisagem Sonora. Em síntese o livro apresenta uma pesquisa minuciosa de investigação dos sons e um estudo apurado de como a paisagem sonora e a percepção dos sons foram modificando-se no desenrolar da história. Antes da Revolução Industrial a percepção dos sons era mais pura, após a revolução Industrial e com o desenvolvimento urbano foram surgindo novos sons como consequência do progresso, e acabaram por se misturar a paisagem sonora, tornando assim a percepção dos sons fundamentais mais difícil, e com o passar do tempo foi se deixando de prestar atenção nos sons fundamentais. Este livro é de grande importância para os estudiosos em ecologia sonora, serve como referência para os estudos em musicologia, é de grande relevância para a sociedade, pois traz dados sobre os distúrbios que o ruído tem causado ao redor do mundo, tornando-se importante conteúdo a ser trabalhado no ensino de música escolar. Os princípios filosóficos/pedagógicos apresentam-se como uma possibilidade de aplicabilidade em sala de aula. O capítulo “Limpeza de ouvidos”, do livro O Ouvido Pensante, propõe exercícios de escuta atenta para que o aluno saiba definir os elementos formadores do som e suas variações. No início do capítulo, Schafer explica como concebeu este conceito:

Senti que minha primeira tarefa nesse curso seria abrir os ouvidos: procurei sempre levar os alunos a anotar sons que na verdade nunca haviam percebido, ouvi avidamente os sons de seu ambiente e ainda os que eles próprios injetaram neste mesmo ambiente. Essa é a razão porque chamei o curso de limpeza de ouvido. (Schafer, 2011, p. 55)

3. Confluência das Artes O segundo eixo filosófico/pedagógico schaferiano é a Confluência nas Artes. Neste contexto as formas de arte convivem juntas, sem que uma se sobressaia à outra, a intenção é que se descubra novos meios de integração e movimento. Esse modelo é utilizado como base nas propostas em educação musical, as diferentes linguagens da arte podem ser trabalhadas juntas, o que resulta num dinamismo e os alunos descobrem mais possibilidades de como entender essas linguagens. Fonterrada apresenta um estudo sobre a obra de Murray Schafer de como é contextualizado o Teatro de Confluências, onde estão interligadas as Artes Visuais, Artes Cênicas, Música e a Dança, a autora aborda que Schafer deixa bem claro que nenhuma dessas Artes deve sobrepor a outra, mas sim se complementarem. Fonterrada, aborda também o profano e o sagrado nas Artes, que estão ligados ao ritual e a tradições milenares. A confluência das artes, foco desta pesquisa, permite um olhar holístico, que recupera esta ligação arte e vida, presente nas origens das expressões artísticas, com desenvolvimento de todos os sentidos em busca de uma melhor apreensão do mundo e dos fenômenos à nossa volta. Desta forma, propostas como esta são imprescindíveis também na educação, enquanto uma possibilidade de ressignificação da própria educação formal na atualidade. (Cunha; Gomes, 2014)

4. Relação com o Sagrado O terceiro eixo chamado Relação com o Sagrado pode ser definido como uma filosofia schaferiana na qual existe uma relação do homem com os rituais ou mitos, seja o bater de tambores, o canto, a dança, todos os ritos ligados ao folclore e os movimentos que nos carregam para fora do mundo. Nestes mitos ou rituais há sempre a concepção de que a vida é sagrada, essas manifestações estão presentes em grupos e sociedades que estabelecem vínculo com o sagrado, não importando o modo ou religião como se expressem. Schafer afirma que o desaparecimento do sagrado é o responsável pelas mazelas vivenciadas pelo homem nos dias atuais, pois sem a relação com o sagrado perdesse o sentido da vida, por consequência não há valorização do próximo. Para Schafer a Arte é o canal pelo qual o homem pode se reconciliar com o sagrado, pois ela tem o poder transformador. No capítulo “Quando as palavras cantam” do livro O Ouvido Pensante há um exemplo de exercício que Schafer propõe, no qual apresenta uma das características da relação com sagrado: Sente-se em silêncio, atentamente. Feche os olhos. Ouça. Num instante você será preenchido por um som inestimável. Na mantra Yoga, o discípulo repete uma palavra muitas vezes, como um encantamento, sentindo sua majestade, seu carisma e seu obscuro poder narcotizante. Quando o monge tibetano recita “OMmmm OMmmm OMmmm”, sente o som se expadir pelo seu corpo. Seu tórax balança. Seu nariz ressoa ruidosamente. Ele vibra com uma profunda voz ressoante comece a repetir: OMmmmmmmm

OMmmmmmmm OMmmmmmmm.Sinta seu golpe vibratório. Hipnotize-se com o som de su própria voz. Imagine o som rolando para fora de sua boca, para preencher o mundo. Quando a palavra OM é proferida, a emissão do “o” terá chegado a uma distancia de quarenta metros em todas as direções antes de o “m” começar: OMmmmmmmm OMmmmmmmm OMmmmmmmm. Esta é sua impressão vocal.Você não disse nada.Você disse tudo. Não é preciso palavras A flauta em seu corpo revelou você. Você está vivo. (Schafer, 2011, p. 196)

5. Os Princípios Schaferianos e sua aplicação no ensino de música escolar Os princípios Filosóficos de Schafer são possíveis de serem trabalhados no ensino de música escolar, apesar de a proposta não ser dirigida a estes alunos. Entretanto, há cerca de 20 anos, educadores musicais vêm adotando seus princípios principalmente nas práticas de musicalizaçao. Granja, em seu livro Musicalizando a escola: música, conhecimento e educação, propõe metodologias que podem ser trabalhadas nas escolas através dos princípios filosóficos/pedagógicos de Schafer: Música e meio ambiente: a música pode vincular-se também com a questão ecológica por meio de projetos que tenham como tema maior relação das pessoas com meio ambiente. Construção de instrumentos musicais e reciclagem de materiais: [...] A obtenção de um som musical estável requer materiais que tenham alguma regularidade no seu formato, como é o caso de alguns produtos industriais. Assim, é possível construir instrumentos musicais a partir de tubos de PVC, garrafas plásticas, latões de lixo, latas de refrigerante, entre outros. Ecologia acústica : trata-se de um projeto que envolve o exercício da escuta dos sons ambientes, possibilitando a tomada de consciência dos efeitos positivos e negativos da ecologia sonora sobre as pessoas. As sociedades urbanas sofrem muito com os efeitos da poluição sonora, resultante do aumento dos ruídos ambientais. Um processo de conscientização certamente é necessário, pois os efeitos da poluição sonora afetam diretamente a saúde pública e a qualidade de vida dos cidadãos. A partir desse projeto podem surgir propostas de melhoria nos ambientes públicos e escolares, uma vez que a escola também é palco de muita poluição sonora. (Granja, 2010, p. 114)

No Brasil, o ensino de música escolar, como uma criança ainda em fase de crescimento, busca caminhos, aprende possibilidades. No contexto em que esta pesquisa esteve inserida, as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná propõem, ainda que superficialmente, encaminhamentos didáticos para o ensino de Arte para as escolas de ensino fundamental e médio deste estado, no qual a música divide espaço curricular com as outras artes. Essas diretrizes curriculares também propõem ao professor que trabalhe a apreciação, análise e o fazer e a educação musical criativa: Apreciação e análise do vídeo clipe (música, imagem, representação, dança...), com ênfase na produção musical, observando a organização dos elementos formais do som, da composição e de sua relação com os estilos e gêneros musicais; 2. Seleção de músicas de vários gêneros para compor uma trilha sonora da cena; 3. Construção de instrumentos musicais com diversos arranjos instrumentais e vocais, compondo efeitos sonoros e músicas para vídeo clipe; 4. Registro de todo material sonoro produzido pelos alunos, por meio de gravação em qualquer mídia disponível. (Paraná, 2008, p. 77)

Depois de analisar o que as Diretrizes Curriculares apresentam, percebe-se que a tentativa de valorizar o ensino de arte no ensino fundamental no estado do Paraná, a proposta indica em

conteúdos a serem ensinados diferentes questões relativas a paisagem sonora, entretanto não se quer a indicação dos livros de Schafer nas referências do documento. Ainda em análise dos materias produzidos pelo governo do estado do Paraná, é importante apontar que em 2008, a Secretaria de Educação do Estado do Paraná produziu e distribuiu aos professores de arte, um livro didático para o ensino médio, o qual apresenta em diferentes capítulos questões relativas aos princípios schaferianos, entretanto este livro não foi objeto de análise nesta pesquisa por se tratar de um livro de ensino médio, e o recorte desta pesquisa se deu na análise de materiais didáticos para o ensino fundamental. Ressaltamos a importância do livro didático nas escolas e o papel que este representa na disciplina de arte, é de conhecimento que o livro didático exerce o papel de material de apoio para o professor, e é usado como referência para os alunos no momento de produção, aprendizagem e avaliação. O livro didático exerce grande influência no contexto escolar, pois nele são abordados conteúdos que constituem conhecimentos e que formam uma base pedagógica estruturante, segundo Talamini, os livros didáticos interferem no contexto escolar: A presença dos livros didáticos na escola causa interferências relevantes na produção e circulação de ideias pedagógicas – como formas de pensar o ensino e a aprendizagem – bem como na difusão de métodos de ensino e de avaliação. Assim, eles exercem também influência na formação de professores. (Talamini, 2009, p. 8)

Santos, aborda a influência do livro didático, afirmando que este tem o papel de produto cultural, pois encontra-se diretamente ligado à cultura da escola, também pode ser considerado como produto pois assume o papel de mercadoria (Santos, 2007, p. 15). Já que o livro didático é um elemento de grande relevância para o ensino, e causa impacto no aprendizado dos alunos, nos motivamos a realizar esta pesquisa, e assim desvelar os princípios schaferianos que encontram-se inseridos nos livros didáticos.

6. Os materiais didáticos e os referenciais schaferianos A metodologia aplicada nesta pesquisa consistiu em catalogar os materiais didáticos dos sistemas de ensino utilizados pelas escolas particulares de ensino fundamental nos anos finais no município de Guarapuava, Paraná. Optou-se por este recorte, já que a presença da música na escola se efetiva com maior ênfase no ensino fundamental, a ausência de materiais didáticos para o ensino fundamental na rede pública de ensino possibilitou o recorte: 30 livros/apostilas de arte, que incluem conteúdos de música, produzidos por seis diferentes sistemas de ensino, e utilizados em dez escolas. Após esta primeira etapa de catalogação, partiu-se para a fase de análise destes materiais didáticos a qual foi norteada por um roteiro previamente produzido de forma a contemplar as principais questões desta pesquisa.

Ao realizar a primeira leitura dos materiais, surgiram categorias de análise, as quais nortearam a construção do roteiro de análise, segue abaixo as questões levantadas e analisadas. Primeiramente, ao abordar a especificidade das linguagens artísticas os materiais analisados se diferenciam no que tange ao enfoque dado para determinada linguagem em detrimento de outras. Assim numa análise quantitativa dos 30 livros analisados obteve-se: a música é abordada por 22 livros, o que resulta em 73,33% do total analisado; a dança e o teatro são abordados por 15 livros, o que resulta em 50% do total; os conteúdos de artes visuais estão presentes em todos os materiais, isto é, 100% dos livros e apostilas utilizados na rede particular de ensino no nível fundamental da cidade de Guarapuava priorizam o ensino da linguagem visual, em segundo plano está a música e as artes cênicas ficam em terceiro plano. Os dados obtidos nesta questão revelam que as Artes Visuais são mais favorecidas no que diz respeito a prioridade de conteúdo, este dado aponta algo negativo, pois quando há prioridade em somente uma linguagem, as demais linguagens ao serem menos abordadas empobrece o desenvolvimento de aprendizado do aluno, porque eles poderiam trabalhar diversos conceitos dentro da confluência e teriam a possibilidade de fazer várias conexões entre as linguagens o que só favoreceria o aprendizado. As Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná em sua estrutura como base norteadora para o ensino abordam a interdisciplinaridade como componente estruturante da educação: Desta perspectiva, estabelecer relações interdisciplinares não é uma tarefa que se reduz a uma readequação metodológica curricular, como foi entendido, no passado, pela pedagogia dos projetos. A interdisciplinaridade é uma questão epistemológica e está na abordagem teórica e conceitual dada ao conteúdo em estudo, concretizando-se na articulação das disciplinas cujos conceitos, teorias e práticas enriquecem a compreensão desse conteúdo. No ensino dos conteúdos escolares, as relações interdisciplinares evidenciam, por um lado, as limitações e as insuficiências das disciplinas em suas abordagens isoladas e individuais e, por outro, as especificidades próprias de cada disciplina para a compreensão de um objeto qualquer. Desse modo, explicita-se que as disciplinas escolares não são herméticas, fechadas em si, mas, a partir de suas especialidades, chamam umas às outras e, em conjunto, ampliam a abordagem dos conteúdos de modo que se busque, cada vez mais, a totalidade, numa prática pedagógica que leve em conta as dimensões científica, filosófica e artística do conhecimento. (Paraná, 2008, p. 27)

Apesar de os documentos curriculares apresentarem propostas de que todas as linguagens artísticas devem ser abordadas no ensino de Arte, nota-se que a escolha de conteúdos das artes visuais se sobressai, o que denota a herança histórica da educação artística que priorizava as artes visuais. Segundo Ferraz, esta herança histórica apresenta-se impregnada na tradição do desenho: Nas primeiras décadas do século 20, o ensino de arte, mais especialmente o desenho, apresentava-se impregnado do sentido utilitário de preparação técnica para o trabalho, iniciado no século anterior. Na prática o ensino de desenho nas escolas primárias e secundárias valorizava o traço, contorno, a configuração, e era voltado sobretudo para o aprimoramento do conhecimento técnico e estética neoclássica. (Ferraz, 2009, p. 44-45)

Ainda em relação a este assunto, realizou-se uma segunda análise mais detalhada com o objetivo de verificar em cada livro a prioridade dada a cada linguagem, sendo que dentre os trinta livros analisados de 24 se detém na maioria de suas páginas nos conteúdos de artes visuais; outros 6 livros priorizavam grande parte de sua estrutura para abordar conteúdos de música. Em contra partida está a dança que ocupa espaço mínimo na abordagem dos materiais, sendo que dos 15 livros que abordavam a dança em 9 deles ela é a linguagem menos abordada. Considerando que o foco desta pesquisa está na abordagem musical dos livros didáticos, ao relacionarmos a análise da primeira e da segunda questão conclui-se que dentre os 30 materiais didáticos analisados, 22 abordam a linguagem musical sendo que 16 deles enfocam as artes visuais e apenas 6 dão maior enfoque à música, enquanto 8 não abordavam música. Na terceira questão, pretendia-se saber se a confluência nas artes estava inserida nos materiais didáticos, ao analisar chegou-se a conclusão de que 24 dos materiais didáticos apresentavam a confluência nas artes, em um destes 24 materiais didáticos ocorre a confluência das quatro linguagens da arte, ou seja integração total, enquanto 6 dos materiais didáticos não abordavam a confluência das artes. A questão 4, partindo para uma análise mais restrita à linguagem musical, categorizamos o repertório musical presente nos materiais didáticos em três diferentes categorias: música tradicional, música folclórica, música contemporânea. É necessário esclarecer que dos 30 materiais didáticos analisados, 22 abordavam a música como conteúdo, destes 22 materiais que abordavam a música foi feita a investigação para saber que repertórios musicais eram apresentados aos alunos, notou-se que as categorias presentes nestes materiais didáticos tratavam-se da música contemporânea, música folclórica e música tradicional. Entende-se por música contemporânea a música produzida por meios digitais, pelo computador, ou ainda pela busca de novos sons, instrumentos musicais alternativos, e paisagem sonora. Nesta categoria de música abordada de forma contemporânea a totalidade de abordagens nos materiais didáticos foi de 43,33%. Este resultado demonstrando como a música contemporânea vem se desenvolvendo e sendo contextualizada nas aulas de artes. A música folclórica foi elencada como a segunda categoria investigada nas análises dos materiais didáticos, pode-se definir como música folclórica, manifestações culturais populares, onde há ritos tradicionais, e está ligada a canções simples e populares, figurinos e cenários representativos, aspectos religiosos, festas lendas e fatos históricos, acontecimentos do cotidiano e brincadeiras, esta categoria totalizou-se em 23,33%. A terceira categoria elencada foi como Música tradicional, entendesse por música tradicional a abordagem sobre os movimentos musicais historicamente, e a contextualização dos elementos musicais, e as propriedades da música, a música tradicional obteve a totalidade de 63,33%. O intuito da questão de número 5 foi de descobrir se o nome de Murray Schafer é citado nos 30 materiais didáticos, para isto foram categorizados os seguintes quesitos: biografia, produção

musicológica, bibliografia e conceitos. Apenas um material didático apresenta a biografia de Murray Schafer, nos 29 restantes não há citação, quanto a produção musicológica não é abordada nenhuma vez, ou seja 100% dos materiais não contém este quesito, a bibliografia está presente em 4 materiais didáticos como referências, os conceitos estão inseridos em 6 dos materiais didáticos, neste caso o que se desejava saber se o autor ou autores dos materiais didáticos tiveram o cuidado de citar o nome de Schafer, já que muitos livros e apostilas apresentam conceitos schaferianos, mas somente apresentam e propõe metodologias, porém não citam o nome de Schafer como pesquisador e criador destes conceitos. A questão de número 6 ao ser elaborada teve como objetivo descobrir se os princípios filosóficos/pedagógicos de Schafer eram abordados. Para tanto, foram elencadas 6 categorias para fazer uma análise mais detalhada para saber se os princípios shaferianos estavam contextualizados nos materiais, e como estes estão contextualizados. A primeira categoria foi formulada como pergunta: os princípios schaferianos estão explícitos? Entende-se por explícitos, estes princípios e conceitos que ao serem abordados o leitor não teria dificuldade de identificar os conceitos schaferianos, esta categoria está presente em 5 dos materiais analisados. A segunda categoria, pergunta se os princípios schaferianos estão implícitos, ou seja abordados em uma linguagem genérica, sem especificar que os princípios ali reproduzidos seriam de Schafer, o resultado obtido nesta categoria foi de 16 dos materiais didáticos abordam os princípios schaferianos implicitamente. Na terceira categoria elaborada, pretendia-se saber se não havia princípios schaferianos nos materiais didáticos, o resultante desta categoria foi que 9 dos materiais didáticos não abordam os princípios schaferianos. A quarta categoria foi denominada como Ecologia Sonora, pois trata-se de um dos três eixos dos princípios filosóficos/pedagógicos de Murray Schafer, a Ecologia Sonora é abordada em 2 dos materiais didáticos. A quinta categoria analisada foi Confluência das artes, esta categoria é o segundo eixo dos princípios filosóficos/pedagógicos de Schafer, a Confluência das Artes é abordada em 24 dos materiais didáticos, a sexta, e última categoria, desta questão foi nomeada como Relação com o Sagrado e trata-se do terceiro eixo dos princípios filosóficos/pedagógicos de Schafer , esta categoria é abordada em 24 dos materiais didáticos analisados. A pergunta da questão de número 7 teve como objetivo desvendar se a abordagem metodológica dos 30 livros ou apostilas analisados, poderia ser considerada schaferiana, o resultado obtido através das análises dos materiais foi que em 17 livros ou apostilas a abordagem metodológica poderia ser considerada schaferiana, estas abordagens seriam exercícios propostos como escuta atenta, criação de instrumentos musicais, investigação da paisagem sonora, nos 13 materiais restantes a abordagem metodológica não pode ser considerada schaferiana. A questão de número 8 teve como propósito descobrir se as propostas de vivências/experiência schaferiana encontravam-se nos 30 materiais didáticos, dentro desta questão elencou-se três categorias: Na íntegra, Com paráfrase, Não há propostas schaferianas.

A primeira categoria elencada: na íntegra, pretendia-se saber se havia proposta de vivência/experiência, se houvesse a proposta, se esta encontravam-se da mesma forma que se encontra nas publicações de Murray Schafer, a segunda categoria denominada: com paráfrase, o objetivo era descobrir se haviam propostas de vivência/experiência nos materiais didáticos em forma de paráfrase, ou seja apresentar as propostas mas com outras palavras que não fossem do autor, já a terceira categoria: Não há proposta schaferiana, o intuito foi de descobrir se havia ausência das propostas schaferinas. Na realização destas análises chegou-se ao seguinte resultado: a primeira categoria Na integra ocorre apenas uma vez nos 30 materiais didáticos analisados, quanto a segunda categoria Com paráfrase, o resultado obtido foi que 6 dos 30 materiais didáticos, 6 apresentam as propostas schaferianas em forma de paráfrase, nestes mesmos 6 materiais é que são abordados os conceitos schaferiamos que foram analisados na questão de número 6. A terceira categoria elencada como: Não há vivência/experiência, totalizou-se em 23 dos materiais didáticos analisados.

Considerações finais É fato que os materiais didáticos analisados tem como prioridade a abordagem às artes visuais, a qual a estrutura em alguns materiais deixam a desejar porque algumas editoras optam por reduzir a quantidade de papel, deixando o texto com fontes minúsculas, e pouco colorido, já que o material didático trata-se de Artes, o que deixa o material menos interessante para o aluno. Quanto a linguagem apresentada em alguns materiais didáticos está inserida de modo formal, já em outros materiais esta linguagem narrativa torna o material mais atrativo, o que desperta a atenção do leitor, no geral a linguagem é de fácil compreensão. No que diz respeito ao referencial teórico, notou-se que os trinta materiais analisados possuem referenciais de boa qualidade e a quantidade é satisfatória. A contextualização didática em alguns dos materiais, necessita apresentar no seu desenvolvimento mais alternativas para se trabalhar as diferentes linguagens, pois em alguns desses materiais há somente abordagem em uma linguagem artística, o que empobrece a aprendizagem do aluno, cabe ao professor não se ater somente a isto e buscar metodologias e trabalhar as demais linguagens, mas em contra partida, a maioria dos materiais apresentam-se de forma dinâmica e atrativa, o que propicia ao aluno explorar diferentes formas de aprendizado e desenvolver atividades que trabalhem as diferentes linguagens. Também foi analisada a contextualização artística, em alguns materiais didáticos a abordagem da produção artística é superficial, apontando algumas contextualizações ou movimentos artísticos, porém, não há aprofundamento em processos criativos, o que poderia ser mais abordado e explorado, mas no que diz respeito ao restante desses materiais a contextualização artística é rica no seu conteúdo, e consegue prender a atenção do leitor.

Quanto aos princípios filosóficos/pedagógicos de Schafer, percebeu-se a presença das metodologias pedagógicas schaferianas presentes em boa parte dos materiais didáticos, já que foram totalizados 24 materiais didáticos que abordavam os conceitos schaferianos, dos 30 materiais didáticos analisados, é importante ressaltar que os princípios filosóficos schaferianos diferenciam-se das metodologias schaferianas, já que estas metodologias tratam-se de atividades práticas, ou seja elas complementam os princípios filosóficos/pedagógicos de Murray Schafer. No momento das análises dos materiais didáticos, percebeu-se que os princípios filosóficos/pedagógicos schaferianos são democráticos e acessíveis a qualquer realidade escolar, além destes conceitos trabalharem a educação musical criativa, elas permitem com que o aluno investigue, componha e execute um processo de criação musical sem que seja preciso gastos dispendiosos, pois alunos podem trabalhar com materiais que perderam sua utilidade, e transformá-los em instrumentos musicais, esta metodologia está integrada a consciência de que devemos procurar utilizar bem os recursos que temos disponíveis no planeta, essa consciência ambiental vai sendo incutida na mente dos alunos ao serem trabalhadas estas metodologias na escola. A abordagem schaferiana ganha espaço nos materiais didáticos utilizados pelas escolas particulares de ensino fundamental do município de Guarapuava no Paraná. A relação com o Sagrado, a Confluência das Artes e a Paisagem Sonora perpassam conteúdos interdisciplinares do currículo do ensino fundamental, entretanto, em se tratando dos conteúdos musicais sugeridos pelos documentos governamentais, PCN e DCE, estes eixos mostram-se uma possibilidade de estruturação curricular voltada a formação integral do sujeito em seu saber inteligível e sensível, a qual ainda suscita qualificação o que só é possível por meio da reflexão, do estudo e da produção de pesquisa, assim como estas apresentadas nesta obra.

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GRANJA, C. E. S. C. Musicalizando a escola: música conhecimento e educação. 2. ed. São Paulo: Escritura Editora, 2010. PARANÁ, Diretrizes Curriculares da Educação Básica do Estado do Paraná. Disponível em:
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