Arte Pública na 1ª República

June 4, 2017 | Autor: J. Abreu | Categoria: Cidadania, Primeira República, Arte Pública
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Arte Pública na Primeira República, por José Guilherme Abreu A noção de arte pública define-se, hoje, problematicamente, como um conceito aberto e instável. Antoni Remesar, um dos principais especialistas, teóricos e pedagogos desta área de intervenção e estudo, define-a como se segue: “Quando falo de Arte Pública utilizo o conceito de uma forma muito geral, entendendo-a como o conjunto de “artefactos” de características eminentemente estéticas que mobilam o espaço público” (Remesar, 2000: 67). A noção é pois definida em estreita correlação com a de espaço público, de utilidade pública e de ornamentação, sob cuja égide as artes se integram não somente como presença sinalizadora de valor estético, mas também como actividade catalisadora de sentido identitário, como o mesmo autor de seguida esclarece, acrescentando: “Esta acepção do conceito supõe conceber a Arte Pública como um “agente de co-produção” do sentido do lugar e não exclusivamente como uma manifestação “artística” localizada no espaço público. Como co-produtora na geração de sentido do lugar, a Arte Pública seria um dos elementos chave para a colocação em marcha dos processos sociais de apropriação do espaço, através da sua capacidade simbolizadora e geradora de “identidade”. Assim quando falo de Arte Pública refiro-me a coisas tão díspares como o desenho do espaço público, o paisagismo, a escultura, as performances, etc. (Remesar, 2000: 67). Também Malcolm Miles, um dos pioneiros do estudo da Arte Pública a nível universitário, logo em 1989, fazendo o cômputo dos seus benefícios, enumera quatro argumentos a seu favor: “confere um sentido de lugar; envolve as pessoas que usam o local; dá um exemplo de trabalho imaginativo; auxilia na regeneração urbana” (Miles, 1989: 8). Logo de seguida, porém, adverte: “Conferir identidade requer um entendimento da natureza do lugar. Isso envolve três aspectos fundamentais: a localização, a população que usa o espaço, e a história local que pode sugerir um tema, ou explicar por que razão um lugar se torna […] um veículo para o envolvimento comunitário.” (Miles, 1989: 8) Mais determinantes do que as análises dos teóricos e especialistas, são as próprias práticas artísticas contemporâneas que denotam o redireccionamento das artes para o domínio público, onde buscam um novo campo de intervenção e de disseminação capaz de superar as condicionantes do discurso expositivo, a partir do qual se estrutura a apresentação das artes nos espaços institucionais (museus, centros culturais e galerias de arte), propiciando novas interacções e mediações com a realidade social e cultural. É o que sucede, por exemplo, com a arte pública de novo género – New Genre Public Art – de Suzanne Lacy, cuja actividade se configura a partir do envolvimento e compromisso comunitário, reformulando, assim, radicalmente, o papel e a função do próprio artista, que de criador da obra ou da intervenção artística, passa comportar-se como mediador de uma criação colectiva, na qual os principais agentes são membros do público ou da comunidade, que se integram na intervenção, precisamente, e só, porque são parte constituinte dessa mesma comunidade ou público. O entendimento modernista do artista como criador de objectos cujo valor artístico se reduz ao valor estético, é denegado por Siah Armajani, artista cuja produção plástica e teórica caminham par a par, sendo autor do Manifesto Escultura Pública no contexto da Democracia Norte-americana (1995): um dos documentos que melhor explicitam o ideário da Arte Pública, documento cujo enunciado defende o primado da utilidade da obra de arte sobre o primado da sua universalidade, identificando a arte pública com a função de “preencher o fosso que se forma entre a arte e o público, para fazer com que a arte seja pública e os artistas sejam de novo cidadãos” (Armajani, 1995: p. 36). Este preâmbulo, serve para mostrar que a arte pública abarca hoje uma gama bastante heterogénea de produções que visam o contacto directo com o público, compreendendo obras permanentes de escultura, de pintura ou mosaico parietal, de painéis cerâmicos verticais e horizontais, de mobiliário urbano de autor, de desenho de espaço público, de jardins e de integração paisagística, a par de intervenções efémeras, como instalações, performances e envolvimentos, sempre com o propósito de melhorar a estética e dotar de

identidade e funcionalidade os lugares onde decorre a “vida activa”, e favorecer a formação e o reforço da “esfera pública”. Definido o conceito de arte pública da forma precedente, numa primeira análise pode parecer precipitado, senão extemporâneo, falar-se de Arte Pública, em Portugal, durante a 1ª República. Sucede que a investigação recente (Abreu, 2007: 2-3) mostra que o movimento em prol da arte pública remonta a finais do século XIX, tendo conhecido duas origens praticamente simultâneas, embora distintas e diferenciadas nos seus enunciados e práticas: Uma ligeiramente mais antiga, na Bélgica, que se forma com a criação, em 1893, de uma sociedade de artes decorativas intitulada L'Œuvre de l'art appliqué à la rue et aux objets d'utilité publique. Outra, mais recente, nos Estados Unidos, que se forma, em 1896, com a fundação da Public Art League of the United States, como se refere em A short History and facts, on the Park Commission Plans, redigido pelo Committee of One Hundred on the Development of Washington. É o primeiro núcleo que mais nos interessa considerar, visto ter sido aí que se iniciou o movimento que deu origem àquele em que Portugal viria a incluir-se, aproximando-se do movimento internacional lançado pelo pintor belga Eugène Broerman, ao qual viriam a juntar-se arquitectos como Victor Horta e Edmond de Vigne, pintores como Alfred Cuysenaar e Walter Crane, como o escultor Jef Lambeaux, entre outros. A partir de Abril de 1894, a sociedade L'Œuvre de l'art appliqué à la rue et aux objets d'utilité publique seria presidida pelo arquitecto e urbanista Charles Buls, que era também o burgomestre da cidade de Bruxelas, e que havia impulsionado a sua criação, derivando a utilização da designação Art Public, da simplificação da primeira designação, que rapidamente passaria a intitular-se L'Œuvre de l’Art Public. Esta nova concepção irrompia, como consequência da adaptação do ideário do movimento Arts and Crafs, ao contexto político-económico da sociedade belga, sendo a recepção do livro “News from Nowhere”, de William Morris, em 1874, contemporânea do surgimento, na Bélgica, daquele movimento, como demonstrou o professor Lieske Tibbe (Tibbe, 2001: p. 233), movimento esse que, a partir da década seguinte, tinha já como principal porta-voz Henry van de Velde que, com entusiasmo e fervor, clamava por uma estética ornamental e utilitária, produzida sob a égide das Artes Aplicadas, como sucedia em Déblaiement d’Art1: um “texto-manifesto”, escrito em 1894, onde o autor advertia que “Aquilo que não lucra senão a uma única pessoa está bem perto de se tornar inútil, pois na próxima sociedade só será considerado o que es útil e lucrativo para todos. E quando os artistas sonham em produzir uma obra útil, coisa que não os desconsidera em nada, isso significa o fim da tela e da estátua, que são gastos imorais.” (Van de Velde, 1979: p. 20).

É neste clima de entusiástica mobilização em torno de uma redefinição do lugar da arte na sociedade emergente da 2ª Revolução Industrial, que se realizou, em 1898, em Bruxelas, o I Congrès International de l’Art Public, organizado pela Œuvre Nationale Belge de l’Art Public, sob o alto patrocínio do rei Leopoldo II, integrando-se no âmbito das actividades da Exposição Universal de 1898. Documentado por um extenso e detalhado catálogo com 186 páginas, a definição de Arte Pública nele apresentada explicita-se como “a sublimidade do útil na via pública” (Broerman, 1898: 18), sendo que a análise das teses e resoluções do referido Congresso permite aduzir que “os termos utilizados para defender a arte pública, nomeadamente no que se refere à promoção dos objectivos sociais da arte, a denúncia da mediocridade da arte oficial, a defesa da utilidade pública da arte, mantêm hoje a mesma pertinência e actualidade, podendo por isso considerar-se o movimento que então se formava como um verdadeiro precursor das concepções actuais de arte pública” (Abreu, 2007: p. 3). De resto, a sociedade Œuvre Nationale Belge de l’Art Public esteve representada no pavilhão belga da Exposição, e pela análise da fotografia que documenta essa presença, verifica-se que o conceito de Arte Pública já então praticado, transcendia os géneros convencionais da estatuária e da pintura mural, estendendo-se à panóplia de adereços e equipamentos, destinados a melhorar a estética e a funcionalidade do espaço público. (fig. 1) Estes factos permitem-nos afirmar que a formação do conceito moderno de Arte Pública se define, na Europa, nos finais do século XIX, coincidindo, grosso modo, com a crono-

logia do desenvolvimento do Republicanismo em Portugal, desenvolvimento esse que se processa ao longo do séc. XIX, intensificando-se na 2ª metade (Serrão, 1985: 285-293). Não cabe neste artigo aprofundar este paralelismo, mas se confrontarmos a cronologia, verificamos que os mais importantes momentos de afirmação do ideal republicano coincidem com momentos de afirmação do movimento Arts and Crafts, desde a criação, em Setembro de 1848, da Fraternidade Prè-Raefelita, fundada em Setembro, da empresa Morris, Marshall, Faulkner & Co, em 1861, a criação da Art Workers Guild, em 1884, e a fundação da Arts and Crafts Exhibition Society, em 1887, a qual terá como seu presidente fundador o pintor Walter Crane, a quem sucederia William Morris, até 1896, data do seu falecimento. O desenvolvimento do Republicanismo em Portugal ocorre, portanto, em paralelo com o desenvolvimento do movimento Arts and Crafts, e sob a égide de uma mutação do conceito de arte, em prol da democratização do seu âmbito e da sua função, apresentando-se assim como correlato da democratização visada pelo projecto político republicano. É certo que o estado da investigação realizada sobre este assunto, não permite estabelecer com segurança este lance, mas como se exporá a seguir existem argumentos que permitem sustentá-la como tese, podendo mesmo aventar-se a hipótese de que o projecto de redefinir o lugar da Arte no contexto da democratização da sociedade portuguesa visada pelo Republicanismo português, se manifesta, de forma descontínua, mas constante, por intermédio das comemorações dos centenários, juntando-se ao de Camões (1880) e ao de Pombal (1882), os do Infante D. Henrique (1894), da viagem de Vasco da Gama (1898), da de Pedro Álvares Cabral (1900), para finalizar com as Guerras Peninsulares (1909) que “põem ponto final a uma estatuária pública tradicional” (França, 1966: 330), festejos esses que se constituem como autênticas realizações de Arte Pública, e não como meros eventos cívicos. A promoção republicana da Arte Pública não se inicia, portanto, em 1911, em torno de um programa de edificação de estatuária monumental, embora se tenham verificado tentativas nesse sentido, mas antes em torno de uma política de protecção do legado monumental arquitectónico e arqueológico, pois “entre os defensores do novo regime encontravam-se indivíduos que já se tinham mostrado interessados pelo problema do património nacional. Com a implantação da República, é desencadeada uma importante acção legislativa que pretende assegurar a integridade e a conservação das obras de arte existentes no país, e estabelecer as bases do serviço de belas-artes e arqueologia, assim como do ensino artístico” (Moreira, 1989: 62), coisa que repercute a noção alargada de Arte Pública veiculada pelo Institut International de l’Art Public, fundado após o Congresso de Liège, em 1905, cujo órgão de difusão era a revista trimestral l’Art Public (fig. 2), que viria a publicar cerca de uma vintena de números, a partir de 1907, até ser extinta em 1912. Para lá destas considerações gerais, importa adiantar que o envolvimento do Republicanismo português, senão na definição, pelo menos na aplicação, de uma política de Arte Pública, radica no facto de Portugal ter enviado um representante, ao I Congresso Internacional de Arte Pública, realizado, como já referimos, no ano de 1898, em Bruxelas. Esse representante foi o arquitecto da Casa Real, Luís Caetano Pedro d’Ávila (c.18321904), que participou no Congresso na qualidade de “Membre Protecteur de L’Œuvre et du Congrès” (Broerman, 1898: p. 5), como “Architecte honoraire du Roi”, et “Architecte du Governement du Portugal, à Lisbonne” (Broerman, 1898: p. 6). Embora não figure na transcrição das sessões do Congresso nenhuma intervenção ou discurso de Pedro d’Ávila2, o propósito da sua participação não terá sido o de intervir na discussão de casos, mas mais provavelmente visava recolher dados e estabelecer contactos com o movimento que então ali se constituía, ficando assim provado que o movimento internacional a favor da Arte Pública era conhecido em Portugal, e que esse conhecimento não se esgotava no testemunho de Pedro d’Ávila, pois perdurava através de dois catálogos dos quatro congressos internacionais de Arte Pública que se realizaram, respectivamente em Bruxelas (1898), Paris (1900), Liège (1905) e Ghent (1910)3, existentes na Biblioteca da Universidade de Coimbra.

Repercutindo essa noção expandida, a Arte Pública manifestou-se em Portugal durante a formação e implantação da República, a partir de quatro linhas diferenciadas de expressão: 1. 2. 3. 4.

Linha da mobilização cívica, englobando festejos, homenagens e celebrações Linha da monumentalização histórica, englobando estatuária, pintura mural e azulejo Linha da ornamentação plástica, englobando escultura, pintura mural e azulejo Linha da apropriação cidadã, englobando adereços e mobiliário urbano

Acompanhando o processo histórico de difusão do Republicanismo, o movimento inicia-se pela organização de eventos visando a mobilização cívica. No parágrafo anterior, aludimos ao impacto das comemorações do tri-centenário de Camões, pois apesar das celebrações terem sido promovidas por uma comissão da imprensa que agregou personalidades de diversas sensibilidades políticas e partidárias, o facto é que os republicanos se envolveram e empenharam nos festejos, demonstrando grande capacidade de mobilização cívica, para a qual contribuiu, justamente, a sábia utilização do poder de congregação da Arte Pública. A celebração do tri-centenário de Camões durou três dias em Lisboa, e combinou iluminações, música e foguetes com conferências, exposições e espectáculos nos teatros, tendo constituído o seu ponto mais alto o cortejo cívico que percorreu as ruas da Capital, para terminar numa concentração, junto do monumento ao Poeta, de cuja dimensão a gravura publicada na revista Occidente nos dá uma ideia clara. Esses festejos são já, por si só, Arte Pública. Arte Pública, desde logo, porque os mesmos se revestem de um inequívoco carácter performativo, porque são dirigidos a todos os cidadãos, sendo promovidos pelos próprios cidadãos, organizados em Comissões Executivas. Um bom exemplo, é descrito por Richard Sennett. Logo no ano seguinte ao da Revolução de 1789, as ruas de Paris passaram a ser palco de masquerades: paradas satíricas durante as quais “grupos de pessoas vestidos de padres e aristocratas, usando roupas roubadas, desfilavam montados sobre jumentos e faziam troça dos seus anteriores amos” (Sennett, 1994: 304). Enquanto que paralelamente às masquerades, cedo começou a ser promovido também o culto a Marianne: o ícone da revolução, figurando a imagem da pátria como uma mãe, ao mesmo tempo enérgica e guerreira, mas também pacífica, protectora e afável, imagem essa que deu azo à formação da iconografia que viria a ser adoptada, mais tarde, para representar a República nas artes. Verifica-se, pois, uma circularidade entre celebração→monumento→celebração, importando, em relação aos três centenários mais importantes – Camões, Pombal e Infante – referir que, no primeiro caso, o monumento já existia, tendo servido de suporte à celebração; que, no segundo caso, o monumento não existia, tendo os festejos servido para lançar a sua construção, e que, no terceiro caso, celebração e construção andaram de par a par. Daí, em relação à rememoração monumental, o caso do monumento ao Infante D. Henrique reflectir bem o modelo celebração→monumento→celebração, tendo a sua iniciativa “sido avançada […] pelo cidadão de ascendência alemã, Eduard von Hafe, numa proposta datada de 4 de Março de 1882 e apresentada perante o Conselho Científico da Sociedade de Instrucção do Porto” (Abreu, 2005a: 44), a que viria depois a juntar-se Joaquim de Vasconcelos, bradando, “Lisboa teve Camões: deixem-nos o infante.” (Pereira, 1894: 15). Decidida a implantação portuense, nomeada a Comissão Executiva destinada a lançar a subscrição pública pela qual seriam angariados os fundos necessários à organização do concurso público e à construção do monumento, agendado o lançamento da 1ª pedra para 4 de Março de 1894, dia do V Centenário do nascimento do Infante, o “programa das festas” desdobrou-se em múltiplas iniciativas, começando, logo em 3 de Abril de 1889, com um Sarau realizado no Theatro Gil Vicente (Palácio de Cristal), marcado por um pungente discurso do conselheiro António Cândido, onde este reconhecia que “os monumentos publicos tem alma e voz, falam, ensinam, educam”, mas desabafando dizia que são também “a consolação de muitos espiritos, que refujam do mal presente para a amoravel contemplação d'um passado que foi bello” (Pereira, 1894: 27), pressentindo-se assim, no seu desalento, “o avizinhar da tal monarquia sem monárquicos, como mais tarde diria D. Carlos” (Abreu, 2005a: 45).

Entretanto, o programa para o lançamento da 1ª pedra, compreendia as seguintes actividades: “a) Um concurso litterario e scientifico ácerca do valor historico, acções, feitos, e importancia das navegações que o infante D. Henrique iniciou; b) Uma exposição industrial e colonial; c) Um cortejo civico; d) Uma festa fluvial, em que poderiam entrar embarcações do typo das que foram empregadas nas nossas primeiras navegações de descoberta; e) Lançamento da primeira pedra para o monumento ao infante D. Henrique; f) Conferencias sobre assumptos historicos, coloniaes e industriais, mais directamente relacionados com a natureza da commemoração; g) E todos os elementos que seja possivel congregar e que possam contribuir para que esta cidade seja concorrida por grande numero de visitantes e que a solemnidade desperte o interesse patriotico que se deve ter em vista.” (Pereira, 1894: 37) Em 24 de Agosto de 1893, no rescaldo do Ultimatum e da intentona do 31 de Janeiro, fixava-se, em Edital, o programa do concurso, para “projecto d'uma estatua pedestre, em bronze, representando o Infante D. Henrique, sendo o pedestal de marmore portuguez, e o todo de grandeza proporcionada ás dimensões da praça do Infante D. Henrique, cujas plantas podem ser vistas e examinadas na Camara municipal do Porto”, acrescentando que “quando haja algum quadro de relevo, com que o artista julgue a proposito ornamentar o pedestal do seu projecto, deverá preferir a alegoria” (Pereira, 1894: 56). No dia 10 de Novembro de 1893, o governo autorizava a emissão de formulas de franquia (postais e estampilhas) destinadas, em paralelo com a subscrição pública, a financiar a construção do monumento, encarregando-se do seu desenho Veloso Salgado. O projecto vencedor seria escolhido, no dia 10 de Janeiro, por um júri “presidido pelo Conde de Samodães, Inspector da Academia Portuense de Belas Artes e dele fazendo parte, como vogais, João Marques de Oliveira, professor da Academia Portuense de Belas Artes, Victorino Teixeira Larangeira, professor de construção da Academia Politécnica, João Carlos d'Almeida Machado, engenheiro da Câmara Municipal do Porto e Joel da Silva Pereira, arquitecto da Associação Comercial” (Abreu, 2005a: 48), cabendo o 1º prémio ao projecto “Invicta”, de Tomás Costa, o qual na versão inicial, era formado por uma estátua do Infante vestido de cavaleiro, com uma dalmácia colocada sobre a armadura, sem espada e sem o chapeirão habitual, arrancando com a mão direita o véu que cobria o globo terrestre e, com a esquerda, apontando a direcção da costa africana, erguido sobre um torreão medieval estilizado, onde figurava na parte frontal da base uma alegoria à Navegação Portuguesa, composta por uma Glória, que avançava “triumphante sobre o castello da proa d'um navio, puxado sobre as ondas do mar avassalado por dois cavallos marinhos, um d'elles guiado por um Tritão o outro por uma Nereide”, segurando na mão direita a bandeira de Portugal e na esquerda uma coroa “com que premeia os navegadores.” Na parte de trás do monumento, também junto à base, figurava uma alegoria da religião cristã, “representada por uma virgem de aspecto sereno e grave, tendo na mão direita a cruz que encosta ao peito” (Pereira, 1894: 65). A descrição do projecto dá conta do pesado dispositivo retórico e simbólico da monumentalidade oitocentista, pensada para glorificar a memória dos grandes homens e das grandes façanhas, tomando como componente principal o alto pedestal historiado que eleva o homenageado aos píncaros da glorificação, rodeando-o do vocabulário convencional das alegorias, em composições simetricamente estruturadas e hierarquizadas, que denotam a influência da Escola de Belas-Artes de Paris, onde Tomás Costa ingressara, em 1885, como bolseiro do Estado, vindo a ter como professores Alexandre Falguière (1831-1900), Antonin Mercié (1845-1916) e Laurent-Honoré Marqueste (1848-1920). Importa observar que a iconografia da figura do Infante proposta por Tomás Costa, denotava alguma consonância com a iconografia de Cristóvão Colombo, com quem a figura do Infante de Sagres rivalizava, sendo que o gesto de desvelar o globo terrestre, repetia a solução usada por Charles Cordier (1827-1905) para o monumento a Cristóvão Colombo, de 1877, que ainda hoje se ergue na Cidade do México. Não seria essa, porém, a solução adoptada, visto o júri, usando as pregorrativas que lhe conferiam o programa, ter aprovado o projecto de Tomás Costa mediante a condição de nele serem introduzidas várias alterações, que enumera: “a orientação que deverá ser alterada voltando-se de poente para o Sul; a altura que talvez precise de ser acrescentada; o escudo que não esta con-

forme o que a História nos diz ter sido o do Infante D. Henrique; a mudança das esferas armilares para a Cruz de Cristo como a usava o infante, por isso que foi [com] rendimentos d'esta Ordem que elle emprehendeu as suas dilatadas navegações; a menor saliencia dos rostos; a substituição do ornato da cornija por outro mais acommodado ao carácter do monumento e finalmente um estudo consciencioso e quanto possível em harmonia com [o] que os escriptores nos deixaram dito sobre este príncipe, não só quanto á cabeça, mas quanto á estatua e ao vestuário.” (Pereira, 1894: 58). Este aspecto das alterações propostas pelo júri, ilustra bem os condicionalismos exteriores à criação de autor, a que o regime de “produção alogerada” sujeita a Arte Pública (Remesar, 1997: 206), diferenciando-se, também por isso, como um segmento específico das artes. Aceites as alterações propostas, o passo seguinte seria a cerimónia de lançamento da 1ª pedra, agendada para o dia do centenário, inserindo-se no programa estabelecido, como já vimos, destacando-se um aparatoso “cortejo cívico” que a fotografia de Emilio Biel registou (Biel, 1894), para culminar na cerimónia de lançamente do pedra fundmental do monumento, que começou com a chegada dos augustos personagens a quem foram levantados vivas, correspondidos pelas “massas choraes que desempenhavam o Grande Hymno do Infante, escripto por Alfredo Keil”, sendo que em seguida, “SS. MM. e AA., ministros e comitiva tomaram lugar n'um elegante pavilhão que para esse fim fôra erguido na praça”. Logo de seguida, chegava o cortejo que acompanhava a pedra arrancada às falésias de Sagres, que iria servir de base ao monumento, iniciando-se a cerimónia propriamente dita, pela benção da pedra. Mediante aquele acto solene, encenava-se a o espectáculo público da “ordem, e sob a égide da monarquia e com a benção da Igreja, reafirmavam-se os papéis e retomava-se o costume, como se num frentea-frente com a memória, se retemperasse a História, do funesto terramoto do Ultimato e dos revolucionários vivas à República” (Abreu, 2005a: 52). Era a tal “monarquia sem monárquicos”, que num último esforço procurava manter-se, e perdurar… Extrapolando para outros programas de implantação monumental, podemos dizer que as linhas de mobilização cívica e rememoração monumental acompanharam e marcaram a agenda da difusão e enraizamento social do Positivismo a partir do qual se fundava Republicanismo português, veiculando a Crença no Progresso Contínuo da Humanidade, em direcção ao advento do Estado Positivo que haveria de conduzir à realização plena do Homem, culminando mesmo na apologia de uma Religião da Humanidade. (Comte, 1852: 2). Após a implantação da República, assiste-se a um retrocesso abrupto da implantação de estatuária rememorativa, durante a sua vigência, tendo abortado o projecto de erigir um monumento à República4, no Porto (fig. 3), assim como “abortaram monumentos de ideologia republicana a Joaquim António de Aguiar,[…] a António José da Silva, o Judeu, e aos Mártires de 1817 […] a Vasco da Gama” (França, 1966: 330-331) e também a António Granjo. Constituíram por isso uma excepção, os monumentos à 1ª Travessia Aérea do Atlântico Sul que foram erguidos nalgumas cidades do País, como Cascais, Guimarães e Vila Nova de Gaia, destacando-se do conjunto “o monumento da Régua, aflitiva coluna manuelina, terminada pelas inevitáveis esfera armilar e águia”, (Saial, 1991: 106), ao que se deve acrescentar um outro de mais acentuada monumentalidade, erguido, em 1922, na cidade do Mindelo, Cabo Verde, que reproduz, grosso modo, a maqueta que Henrique Moreira e João Queirós haviam produzido para ser erguida na Rotunda do Castelo do Queijo, no Porto, projecto esse que viria também a ser abortado (fig. 4). Na verdade, não se trata de um fenómeno estritamente português. Também em Espanha, a idade do ouro do monumento estatuário público viria a extinguir-se em 1914, como refere Carlos Reyero no seu estudo sobre escultura comemorativa em Espanha (Reyero, 1999), sendo que em Portugal ficaria como marca da paisagem monumental republicana, os Monumentos aos Mortos da Grande Guerra, implantados em todas as sedes de Concelho do País, e inaugurados, a contra-gosto, fora do período da 1ª República, pelo Estado Novo, os quais devido à sua corência temática merecem estudo separado.

Por isso, a linha de expressão predominante da arte pública republicana é a escultura decorativa: uma escultura fundada na simplificação plástica da representação da figura humana, que formalmente se traduziu pela depuração da “dispendiosa aparelhagem simbólica e retórica das alegorias” (Abreu, 2005a: 33), em sintonia com “classicismo mediterrânico” de carácter sensualista e inspiração mailolliana, que o “novecentismo catalão”, definido por Eugenio d’Ors, praticou, e que Henrique Moreira adoptou, nos seus mais felizes momentos, como sucede com a estátua Juventude, inaugurada durante a Ditadura Militar, em 1929, na placa central da Avenida dos Aliados, representando um sorridente nu feminino, sentado com sensual elegância, sobre o esteio de uma fonte Art-déco, desenhada por Manoel Marques. Importa referir que, em Barcelona, no ano anterior, havia sido inaugurada na Praça da Catalunha, uma estátua da autoria de Josep Clarà, que se intitulava Joventut, representando também um nu feminino, esculpido com mais densa, mas também eficaz, sensualidade. Será na estatuária do Porto que se manifestará, com Henrique Moreira5, a escultura que melhor interpreta, plasticamente, a ingrata condição da escultura pública republicana: a circunstância de se situar, incomodamente, “entre dois paradigmas de monumentalidade” (Abreu, 2005b: 129-160) que foram o da monumentalidade oitocentista, de feição positivista – que o Republicanismo usou para enraizar socialmente a sua mensagem política – e a monumentalidade estadonovense, de feição nacional-historicista (Portela, 1982: 71), que viria a preteri-la. A última linha de expressão da Arte Pública republicana é a que se ocupará da produção de objectos funcionais, como fontanários, chafarizes, luminárias (a gás e eléctricas) e mobiliário urbano6, em grande parte produzidos em ferro fundido, compreendendo esta última categoria uma grande variedade de objectos, como bebedouros, reclames e inclusive construções, como quiosques, mictórios, cabines telefónicas e, sobretudo, coretos. Tirando partido da produção em série, esta linha de expressão centrou-se na encomenda, da produção das fundições de arte francesas, como a Val d’Osne (ASPM, 1990), caso da colecção existente nos jardins do Palácio de Cristal, no Porto, circunscrevendo-se a produção portuguesa a peças utilitárias que dialogam com coerência com a arquitectura de ferro, e que aqui e ali ainda se mantêm – como sucede na frente marítima da Foz do Douro – ou por outro lado que vêm sendo recuperadas, como sucedeu com o projecto requalificação da Avenida dos Aliados, que recuperou os belíssimos candeeiros em forma de tridente, produzidos pela fundição de Massarelos, havendo outras, como as do Bolhão e do Bom Sucesso, entre muitas mais, ainda sem estudo sistemático e exaustivo.7 Em suma, pode dizer-se que o movimento de Arte Pública era conhecido e praticado em Portugal, e que durante a difusão e implantação do Republicanismo, ele teve forte impacto, verificando-se a existência de um nexo recíproco entre o desenvolvimento da Arte Pública e o da República, nexo esse responsável pelo reforço, também recíproco, dos desígnios que ambos os movimentos perseguiam, se é que não se tratava, no fim, de um só e mesmo desígnio: o desígnio da Arte Pública se conceber como a política cultural da República. Desígnio esse que não viria a cumprir-se, nem em Portugal, nem nos restantes países europeus, por força dos condicionalismos históricos que conduziram ao desencadear dos nacionalismos, com os quais o movimento internacional da Arte Pública era incompatível. Por cumprir e esquecido, esse desígnio soçobrou, apagando-se da memória colectiva o seu enunciado, e paralisando-se o movimento que o sustentava. A hipótese que, no fim, avançamos, terá de ficar, portanto, em aberto. Não obstante, não pode deixar de se observar que a formação do movimento em prol da Arte Pública foi na sua génese impulsionada por figuras ligadas a círculos maçónicos, como sucedia com Charles Buls, pertencente à loja “Les Amis Philantropiques”, de Bruxelas (Smets, 1995: 79), e Daniel Burnham, autor do Masonic Temple (1892) de Chicago, e ele também franco-maçon, o que, por outro lado, vem reforçar a tese de um nexo recíproco entre a Arte Pública e a República, pelo que se durante a sua vigência a República não foi capaz de “salvar” a Arte Pública, fica agora a expectativa da Arte Pública poder ajudar a realizar a República.

Bibliografia: AA.VV., Ier Congrès International de l’Art Public tenu a Bruxelles du 24 au 29 septembre 1898, s/l, s/d ; AA.VV., IIe Congrès International de l’Art Public tenu à Liège 12-21 Septembre 1905, s/l., s/d ; AA.VV., IIIe Congrès International de l’Art Public tenu à Ghent, 17-22 Septembre 1910, s/l., s/d ; ABREU, José Guilherme R. P. de, A Escultura no Espaço Público do Porto. Inventário História e Perspectivas de Interpretação, Tese de Mestrado, FLUP, 1999, Edición e-Polis, Barcelona, 2005a ABREU, José Guilherme, A Escultura Novecentista entre dois paradigmas de monumentalidade, In, AA.VV., Encontros de Escultura, FBAUP, Porto, 2005b ABREU, José Guilherme R. P. de, Escultura Pública e Monumentalidade em Portugal (1948-1998). Estudo transdisciplinar de História da Arte e Fenomenologia Genética, Tese de Doutoramento, FCSH-UNL, Lisboa, 2007. ABREU, José Guilherme, El Concepto de Arte Público. Sus Orígenes y significado actual, In, Arte Público Hoy. Nuevas Vías de Consideración Crítica. Congreso Internacional de Críticos del Arte, AECA y ACILCA, Valladolid, 2010. ARMAJANI, Siah, Manifesto Public Sculpture in the Context of American Democracy, In, AA.VV, Reading Spaces, MACBA, Barcelona, 1995 BRAGA, Pedro Bebiano, Mobiliário urbano de Lisboa: 1838-1938, Tese de Mestrado, FCSH-UNL, Lisboa, 1995. BRANDÃO, Pedro e REMESAR, Antoni, O Espaço Público e a Interdisciplinaridade, CPD, Lisboa, 2000 COMTE, Auguste, Catéchisme Positive, Carillian Gœury, Paris 1852 FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no Séc. XIX, 2º Vol., Bertrand, Lisboa, 1966 MILES, Malcolm, Art For Public Places, Winchester School of Art Press, Winchester, 1989 MOREIRA, Isabel Martins, Museus e Monumentos em Portugal. 1772-1974, Universidade Aberta, Lisboa, 1989; NUNES, Maria Helena Souto, O Engenheiro-Militar e Arquitecto Luís Caetano Pedro d’Ávila (183[2?]-1904). A condição profissional e as práticas do ‘métier’. Lisboa: [s.n.], 2006, 2 vols. Tese de Doutoramento em Ciências da Arte apresentada à Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa OLIVEIRA CAETANO, Joaquim e CRUZ SILVA, Jorge, Chafarizes de Lisboa, Distri Ed., Lisboa, 1991. PEREIRA, Firmino, O Centenário do Infante, Magalhães & Moniz Editores, Porto, 1894 PORTELA, Artur, Salazarismo e Artes Plásticas, Biblioteca Breve, Lisboa, 1982 REMESAR, Antoni, Para una Teoría del Arte Público. Memória para el Concurso de Cátedra, Facultat de Belles Artes. Universitat de Barcelona, Bracelona, 1997. REYERO, Carlos, La Escultura Conmemorativa en España. La Edad de Oro del Monumento Público, Cátedra, 1999, Madrid SAIAL, Joaquim, Estatuária Portuguesa dos Anos 30, Bertrand, Lisboa, 1991 SENNETT, Richard, Flesh and Stone. The Body and the City in Western Civilization, Norton & Company, New York-London, 1994 SMETS, Marcel, Charles Buls. Les Principes de l’Art Urbain, Architecture + Recherches, Bruxelles, 1995 SERRÃO, Joel, Dicionário de História de Portugal, Livraria Figueirinhas, Porto, 1985 TIBBE, Lieske, ‘Art and the Beauty of the Earth’: The reception of News from Nowhere in the Low Countries – English version of: ‘Nieuws uit Nergensoord. Natuursymboliek en de receptie van William Morris in Nederland en België’, In, De Negentiende Eeuw, 25 (2001), pp. 233-251 VAN DE VELDE, Henry, Déblaiement d'art, Archives d’Architecture Moderne, Bruxelles, 1979, (1894)

Notas: 1

Déblaiement, remete-nos para o sentido de depuração, desobstrução, limpeza (do terreno) Autor de uma extensa obra arquitectónica, Pedro d’Ávila foi bolseiro do Estado em Paris, e protegido do Visconde de Paiva. Cf, NUNES, Maria Helena Souto, O Engenheiro-Militar e Arquitecto Luís Caetano Pedro d’Ávila (183[2?]-1904). A condição profissional e as práticas do ‘métier’. Lisboa: [s.n.], 2006, 2 vols. Tese de Doutoramento em Ciências da Arte apresentada à Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. 3 Uma segunda presença portuguesa viria a ter lugar no III Congresso de 1905, em Liège, tendo a representação ficado a cargo do Prof. Joaquim Mendes dos Remédios (1867-1932), director da Biblioteca da Universidade de Coimbra e do médico Xavier da Cunha (1840-1920) Director da Biblioteca Nacional de Lisboa, a partir de 1902 e até 1910. 4 A celebração do Centenário da República implantou monumentos no Porto e em Lisboa, sendo o do Porto uma figuração da República, implantada no local, onde, em 1911, devia erguer-se o primeiro, em betão. 5 O autor deste artigo encontra-se a ultimar uma monografia sobre este escultor, que se será publicada com o título “Henrique Moreira. O escultor público, ou o ofício como cânone”. 6 Cf, BRAGA, Pedro Bebiano, Mobiliário urbano de Lisboa: 1838-1938, Tese de Mestrado, FCSH-UNL, Lisboa, 1995. 7 Um estudo sobre “A fundição de ferro em Portugal, 1790-1890” está ser realizado no âmbito da activiade do CEPESE. A lista das fundições referenciadas está disponível em http://www.queirozportela.com/ferro.htm 2

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