ARTE SEQUENCIAL E LITURGIA: UMA REFLEXÃO TEOLÓGICO-PRÁTICA SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O CINEMA E O CULTO CRISTÃO 1

May 31, 2017 | Autor: Julio Adam | Categoria: Liturgical Studies, Cinema, Lived Religion
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ARTE SEQUENCIAL E LITURGIA: UMA REFLEXÃO TEOLÓGICO-PRÁTICA SOBRE A RELAÇÃO ENTRE O CINEMA E O CULTO CRISTÃO1

Sequential art and Liturgy: a practical theological reflection about the relationship between the cinema and the Christian worship Júlio Cézar Adam2 Resumo: Cinema e culto enquanto atividade humana são eventos semelhantes. Ambos reúnem pessoas por um determinado tempo, em um determinado espaço com o objetivo de assistir e vivenciar uma experiência, que está relacionada a uma narrativa e uma sequência de atos específicos. Este artigo trata da relação entre o cinema, como arte sequencial, e o culto cristão, como ação simbólica, com o objetivo não só de traçar paralelos entre os dois eventos, mas de apontar meios para o uso do cinema na liturgia. De forma concreta, serão apresentadas duas propostas de relação, oriundas do contexto alemão: o Filmgottesdienst (culto-filme) e o videodrama. O artigo se enquadra, portanto, na área da teologia prática e da liturgia e está divido em três partes: uma reflexão teológica sobre o cinema; uma abordagem sobre o culto e os aspectos socioantropológicos que o aproximam do cinema; e, por fim, a apresentação das duas propostas de uso do cinema no culto cristão da comunidade. Palavras-chave: Cinema. Culto cristão. Culto-filme. Videodrama.

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O artigo foi recebido em 12 de maio de 2016 e aprovado em 27 de maio de 2016 com base nas avaliações dos pareceristas ad hoc. Professor adjunto de Teologia Prática na Faculdades EST, em São Leopoldo/RS, Brasil. Possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia (Faculdades EST) (1996) e doutorado em Teologia pela Universidade de Hamburgo, Alemanha (2004); Recebeu o prêmio Karl H. Ditze, da Universidade de Hamburgo, de tese de destaque. Atua como professor de Liturgia, Homilética, Mistério e Edificação de Comunidade e Espiritualidade. É coordenador, desde 2014, do Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST; coordena o grupo de pesquisa “Culto cristão, música e mídia na contemporaneidade”. É diretor do Centro de Recursos Litúrgicos (CRL) e coordenador da Rede Latino-Americana de Homilética (RedLah); é editor das revistas Estudos Teológicos (A2), Tear – Liturgia em Revista e Tear Online (B4). Desde 2001, é membro da Societas Liturgica e, desde 2012, é membro do conselho diretor da Societas Homiletica. É pesquisador bolsista da CAPES/Humboldt (Pesquisador Experiente) na Universidade de Hamburgo/ Alemanha, de 2015-2018, onde pesquisa sobre Teologia Prática, cultura pop e religião vivida. Realizou pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC/RS (2011-2012), pelo PROCAD/ CAPES, pesquisando sobre elementos religiosos na indústria cultural de Max Horkheimer e Theodor Adorno. Tem pesquisado na área da Teologia Prática, mais especificamente no âmbito do culto cristão, liturgia e homilética, ministério e edificação de comunidade, Ensino Religioso, espiritualidade e temas relacionados a mídias, cultura pop e religião vivida, comportamento e religiosidade juvenil na atualidade. Contato: [email protected]

Júlio Cézar Adam

Abstract: Cinema and worship as human activity are similar events. Both bring together people for a certain time, in a certain space in order to watch and live an experience that is related to a specific narrative and a series of acts. This article aims to address the relationship between cinema, as sequential art, and the Christian worship, as symbolic action, in order not only to draw parallels between the two events, but pointing means for the use of cinema in the liturgy. Concretely, two proposals for the German context will be presented: Filmgottesdienst (Worship-Movie) and the Videodrama. The article falls therefore in the field of Practical Theology and Liturgy and is divided into three parts: a theological reflection on the cinema; an approach to worship and socioanthropological aspects that approach it the cinema; and, finally, the presentation of two proposals for use of cinema in Christian worship community. Keywords: Cinema. Christian worship. Worship-Movie. Videodrama.

Introdução A partir de uma perspectiva do comportamento humano, podemos dizer que cinema e culto são eventos semelhantes. Ambos reúnem pessoas por um determinado tempo e em um determinado espaço com o objetivo de assistir (contemplar) e vivenciar (ritualizar) uma experiência, que está relacionada a um conteúdo, uma narrativa e uma sequência de atos específicos, relacionados à vida daquelas pessoas que fazem parte do evento. Este artigo trata dessa relação com o objetivo não só de traçar paralelos entre os dois eventos, mas de buscar estabelecer inter-relações entre os eventos, principalmente considerando as possibilidades de pensar o culto cristão como um evento onde o cinema e o filme podem ganhar espaço. De forma concreta, serão apresentadas duas propostas provenientes do contexto alemão: o Filmgottesdienst (culto-filme) e o videodrama. Ambas buscam utilizar filmes na reflexão teológica, bem como na vida comunitária e litúrgica da igreja. O artigo se enquadra, portanto, na área da teologia prática e da liturgia e se organiza da seguinte forma: Na primeira parte, abordaremos a relação entre culto e cinema, a partir de Joe Marçal G. dos Santos, Jörg Herrmann, Clive Marsh e Hans-Martin Gutmann, entre outros. Em seguida, apontaremos elementos de uma teoria do culto cristão em relação ao cinema, pensando em especial o culto com ação simbólica (darstellendes Handeln – ação representativa) com base nos autores supracitados, além de teólogos práticos, como F. Schleiermacher, J. J. von Allmen e do autor deste artigo. Por fim, na última parte do artigo, apresentaremos as duas propostas de uso do cinema, como arte sequencial, no culto cristão da comunidade.

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Do cinema ao culto: o cinema como forma e conteúdo teológicos Segundo o crítico de cinema Georg Seesslen, a religião do futuro será o cinema e será produzida em Hollywood.3 Essa tese provocativa e, talvez para alguns, excessiva é o que motiva a escrita desse tópico do artigo. Em que medida o cinema tornou-se o culto – como ação simbólica – da sociedade contemporânea? Duas perspectivas vão ao encontro dessa tese: primeiro, é inegável que há uma estreita relação entre o cinema e a teologia e, de modo especial, com a teologia prática e o culto cristão, considerando esse como uma produção artística e cultural, como ação simbólica humana. Arte e cultura sempre compuseram a liturgia do culto, como a música, as pinturas, as esculturas, a arquitetura, os textos e a oratória e todos os elementos oriundos da cultura local. A relação é tão intensa que Bieritz, com base em Eco, chama o culto cristão com uma obra de arte aberta.4 A segunda perspectiva tem a ver com o comportamento humano simplesmente. Pesquisas, principalmente no contexto europeu, analisam a adesão do público a ambos os eventos e percebem uma mudança marcante.5 Enquanto o público que frequenta os cultos diminui, o público que frequenta os cinemas aumenta.6 Em que medida há uma relação entre a diminuição do público no culto e um aumento do público no cinema não podemos dizer sem pesquisas adequadas. Se pensamos, porém, a partir das imbricações entre culto e cinema, principalmente se consideramos o culto e o cinema como ação simbólica e espaços de construção de sentido, a relação fica mais clara. Em um estudo alemão, 70% das pessoas que vão ao cinema têm entre 14 e 19 anos de idade. Entre o motivos estão, em primeiro lugar, a vontade de ver um filme; em segundo lugar, o desejo por diversão e entretenimento; e, em terceiro lugar (em torno de 30% dos questionados), o principal motivo é estar junto com amigos.7 Segundo Santos, “o cinema deveria interessar à teologia por uma razão muito simples: não houve, desde o último século, outra maneira mais eficaz de produzir e contar histórias como o cinema”8. Em sua reflexão sobre o cinema no meio urbano de hoje, Santos discorre sobre pelo menos duas eficácias do cinema do ponto de vista teo-

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“Die Religion der Zukunft wird Kino sein und in Hollywood produkziert.” SEESSLEN, Georg. Global Dream Play. Hollywood am Beginn des nächsten Jahrhunderts, epd-film 2000, Heft 1, p. 22. BIERITZ, Karl-Heinrich. Gottesdienst als ‚offenes Kunstwerk’? Zur Dramaturgie des Gottesdienstes. Pastoraltheologie, v. 75, 1986, p. 358-373. HERRMANN. Jörg. “Film”. In: FECHTNER, K. et alii (Eds.). Handbuch Religion und Populäre Kultur. Stuttgart: Kohlhammer, 2005. p. 67s. Se considerarmos o culto das igrejas históricas no Brasil e o público jovem, p. ex., fenômeno parecido está ocorrendo. Ver: ADAM, Júlio Cézar; HANKE, Ezequiel. Juventude midiatizada: um estudo sobre as possibilidades de uma religião vivida na e através da mídia. Revista de Teologia e Ciências da Religião, Recife, v. 4, n. 1, 2014. p. 225s. HERRMANN, 2005, p. 67s. SANTOS, Joe Marçal Gonçalves dos. Cinema e teologia: por que tratar de cinema numa teologia da cidade? In: ZWETSCH, Roberto E. (Org.). Cenários urbanos: realidade e esperança. Desafios às comunidades cristãs. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2014. p. 242.

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lógico. A primeira eficácia tem clara relação ao mito, ao conteúdo e às linguagens que compõem o cinema: “[...] pelas histórias que conta. Os temas recorrentes; os gêneros que se difundem; personagens e artistas que se tornam ícones; mitologias que são inventadas ou reavivadas”9. A segunda eficácia está relacionada à dinâmica que ocorre no cinema, ao rito: “[...] o cinema revela algo próprio do nosso tempo pela mediação que exerce entre sujeito e objeto do olhar”10. Explicando essa ideia, Santos afirma que uma das marcas da modernidade é ação do sujeito sobre a realidade e a natureza, no sentido de olhá-la e dominá-la. Com o cinema surge uma nova relação, através da qual o sujeito é dominado por aquilo que olha. Segundo ele, “um filme é sempre um ponto de vista e de escuta em plena atividade”11, que alcança a subjetividade de quem assiste, sofre e participa de um filme. Por isso o cinema causa algo na pessoa que o assiste. Ele provoca uma troca de olhares, uma relação e uma experiência, algo que condiz em grande medida com o universo teológico e religioso. Ambas as eficácias estão profundamente relacionadas a anseios e necessidades do nosso tempo. Refletindo sobre o religioso (a religião vivida) presente na cultura pop, na qual o cinema ocupa um grande espaço, Ganzevoort, com base em Gordon Lynch, aponta três funções religiosas básicas que corroboram a reflexão acima: Em primeiro lugar, há uma função social, porque a religião dá às pessoas uma experiência de comunidade e consolo mútuo, fundamentada em crenças e valores compartilhados. Em segundo lugar, há uma função existencial ou hermenêutica, que dá às pessoas mitos, rituais etc. que as ajudam a viver com um senso de identidade, sentido e propósito. E, em terceiro lugar, há uma função transcendente, que dá a elas um meio de vivenciar ou se encontrar com Deus ou com o transcendente12. (tradução nossa).

Fica muito evidente que a adesão ao cinema tem relação direta com as temáticas tratadas no cinema e o quanto essas temáticas estão diretamente relacionadas à vida concreta das pessoas do nosso tempo. S. Kracauers fala do cinema como espelho da sociedade: “Os temas dos filmes das últimas décadas espelham os temas e os problemas do seu tempo: amor, natureza, autenticidade, identidade e violência”13. Interessante que todas as temáticas fizeram e fazem parte da liturgia do culto cristão. Mais que isso. Assim como a liturgia condensa a história de Deus, o cinema parece condensar a vida, como obra de arte, possibilitando um olhar profundo da realidade e de si mesmo, uma troca de olhares (Santos). Por isso o cinema ganha espaço na teologia, na liturgia e na igreja como um todo. Há algo teológico no cinema. “Os fil-

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SANTOS, 2014, p. 248. SANTOS, 2014, p. 249. SANTOS, 2014, p. 249. GANZEVOORT, Ruard. Framing the gods. In: FRANCIS, Leslie J.; ZIEBERTZ, Hans-Georg (Org.). The public significance of religion. Leiden: Brill, 2011. p. 102. “...die Themen der Filme der letzten Jahrzenten spiegeln die Themen und Probleme ihrer Zeit: Liebe, Natur, Authentizität, Identität, Gewalt.” HERRMANN, 2005, p. 67. (tradução nossa).

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mes são uma expressão condensada das realidades humanas, e toda a vida tem espaço diante de Deus.”14 (tradução nossa). Com base no exposto até aqui, podemos dizer, seguindo o pensamento de Herrmann, que temos pelo menos três entrelaçamentos possíveis na relação entre cinema, teologia e religião: 1) filmes abordam temas, motivos e tradições religiosas; 2) filmes e o cinema assumem estruturas e funções religiosas, como o aspecto simbólico, as perguntas existenciais pelo sentido da vida, p. ex.; 3) filmes e o cinema têm em si um caráter religioso.15 Por fim, o depoimento do escritor americano John Updike, em uma entrevista, deixa muito claro algo desses entrelaçamentos entre cinema e religião em sua vida: De qualquer forma, o filme fez mais pela minha vida espiritual que a igreja. Minha ideia de fama, sucesso e beleza vieram todos da tela. Enquanto a religião cristã em toda parte está em declínio e perde mais e mais influência, o filme preenche esse vácuo e nos abastece com mitos e imagens condutoras. O cinema foi para mim durante uma certa fase da minha vida um substituto da religião16. (tradução nossa).

Do culto ao cinema: o culto como ação simbólica Teologicamente falando, o culto cristão é um encontro entre Deus e sua comunidade17, mediado pela Palavra, em forma de tradição bíblica e eclesiástica. Uma das principais tarefas desse encontro transcendente-imanente é nada mais nada menos do que recapitular através da liturgia os feitos de Deus na história, a memória, e anunciar a plenitude futura, a esperança escatológica, no presente e no local. Ou seja, é como se no breve espaço de sua realização, o culto, como momento de eternidade, possibilitasse aos que dele participam a vivência do passado e do futuro de Deus no tempo e local presentes. Por isso podemos dizer que o culto é o que Lange chama comunicação do

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“Filme sind ein verdichteter Ausdruck menschlicher Lebenswirklichkeiten, und das ganze Leben hat Raum vor Gott.” KIRSNER, Inge; GEHRING, Hans-Ulrich. Filmgottesdienst: Theorie und Modelle. Jena: Paideia, 2014. p. 13. HERRMANN, 2005, p. 68-70. “Jedenfalls hat das Kino mehr für mein spirituelles Leben getan als die Kirche. Meine Vorstellung von Ruhm, Erfolg und Schönheit stammten alle von der Leinwand. Während sich die christliche Religion überall auf dem Rückzug befindet und immer mehr an Einfluss einbüsst, füllt der Film dieses Vakuum und versorgt uns mit Mythen und handlungssteuernden Bildern. Film war für mich während einer bestimmten Phase meines Lebens eine Ersatzreligion.” HERRMANN, Jörg. Sinnmaschine Kino: Sinndeutung und Religion im populären Film. 2. ed. Gütersloh: Kaiser/Gütersloher Verlaghaus, 2001. p. 10. KIRST, Nelson. Liturgia. In: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Ed.). Teologia Prática no contexto da América Latina. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: ASTE, 1998. p. 119.

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Evangelho18, o que von Allmen chama recapitulação e epifania19, e o que Alves chama de saudade, a presença de uma ausência.20 Nessa mesma linha de compreensão, para Schleiermacher, o culto é agir representado (darstellendes Handeln)21, i.e., ação simbólica, lugar de síntese festiva e despropositada dos feitos de Deus no cotidiano. Ao contrário do agir efetivo (wirkendes Handeln), o culto existe como momento especial, sem romper com o cotidiano, sendo esse último, antes, base para sua construção representada, simbólica. Como agir representado, como ação simbólica, o culto revivifica e edifica a consciência religiosa22 e a vida cristã de uma maneira geral.23 Socioantropologicamente falando, o culto é um ritual que atualiza um mito, promove encontro e alimenta o espírito comunitário, cria espaço para o fortalecimento de valores éticos, morais e espirituais e proporciona entretenimento e a festa. O culto cristão é, portanto, um sistema cultural de comunicação e ação simbólica. Através de seus textos e suas narrativas; através de elementos e formas, como orações, gestos corporais e encenações, músicas e sons, substâncias como óleos e água, objetos e símbolos como mesa, vestes, livro e cruz, refeições e banhos, o ritual-culto conta uma história para as pessoas que o ritualizam.24 Ou seja, o culto cristão se organiza com base em ritos e rituais, mito e narrativas, meios através dos quais cria comunhão e comunidade e promove a expressão da espiritualidade individual e coletiva, além de oportunizar espaço para o lúdico, em forma de festa e entretenimento. Todos esses elementos estão direta ou indiretamente correlacionados à experiência do cinema, como veremos a seguir. Culto e cinema como ritual O culto, assim como o cinema, promove uma experiência ritual. Tomo aqui a definição de Peirano sobre ritual:

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LANGE, Ernst. Aus der “Bilanz 65.” In: LANGE, Ernst (Org.). Kirche für die Welt: Aufsätze zur Theorie kirchlichen Handels. München: Kaiser; Gelnhausen: Burckhardthaus, 1981. p. 102. ALLMEN, J. J. von. O culto cristão: Teologia e prática. São Paulo: ASTE, 1969. p. 60; WHITE, James F. Introdução ao Culto Cristão. São Leopoldo: Sinodal, 1997. p. 16. ALVES, Rubem. Creio na ressurreição do corpo: Meditações. 3. ed. São Paulo: Paulinas; Santo Amaro: CEDI, 1992. p. 23-26. SCHLEIERMACHER, Friedrich. Die Praktische Theologie nach den Grundsätzen der Evangelischen Kirche. Berlin: O. Reimer, 1850 (1983). p. 70. Culto é para F. Schleiermacher “circulação do interesse religioso: o real objetivo da comunidade religiosa é, portanto, a circulação do interesse religioso, e o clero, dentro disso, não passa de um órgão na vida conjunta”. SCHLEIERMACHER, 1850, p. 65. RÖSSLER, Dietrich. Unterbrechungen des Lebens: Zur Theorie des Festes bei Schleiermacher. In: CORNEHL, Peter; DUTZMANN, Martin; STRAUCH, Andreas (Hrsg.). In der Schar derer die da feiern: Feste als Gegenstand praktisch-theologischer Reflexion. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1993. p. 33-40. Ver o relato sobre o culto com um sistema simbólico de comunicação-ritual em ADAM, Júlio Cézar. Culto: comunicação viva. Novolhar, São Leopoldo, ano 13, n. 58, p. 16-17, abr./jun. 2015.

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O ritual é um sistema cultural de comunicação simbólica. Ele é constituído de sequências ordenadas e padronizadas de palavras e atos, em geral expressos por múltiplos meios. Estas sequências têm conteúdo e arranjos caracterizados por graus variados de formalidade (convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação ritual nos seus traços constitutivos pode ser vista como “performativa” em três sentidos; 1) no sentido pelo qual dizer é também fazer alguma coisa como um ato convencional; 2) no sentido pelo qual os participantes experimentam intensamente uma performance que utiliza vários meios de comunicação e 3), finalmente, no sentido de valores sendo inferidos e criados pelos atores durante a performance25.

O rito implica certa regularidade, a observância de determinados hábitos e práticas, certa familiaridade, envolve todo o corpo e todos os sentidos, razão e emoção.26 Tomando como base a perspectiva do ritual, como ação e comunicação simbólica, não ficamos muito distantes da experiência de ir ao cinema, como está sugerido no relato a seguir: As pessoas se aproximam do grande templo. Faltam apenas 13 minutos para iniciar o culto. Os membros dirigem-se com suas famílias e com seus grupos ao Santo dos Santos, dentro do grande templo. A oferta para o sacrifício precisa já ser deixada antes de entrarem no Santo dos Santos. Ali, também adquirem a comida e a bebida usada na grande eucaristia, refeição de ação de graças pela vida e o trabalho, em comunhão fraterna cultual. Adentrando o ambiente sagrado, com suas luzes bruxuleantes, fazem silêncio, como parte da devoção. Em poucos minutos, no horário marcado, os avisos sobre os próximos cultos são transmitidos. Em seguida, apagam-se também as luzes bruxuleantes. Há silêncio total no ambiente. Inicia-se o culto de 2 horas e 10 minutos. Luzes radiantes incidem sobre o grande altar da vida. “O verbo se fez luz e se projetou entre nós” (GÓES). Lá, céu e terra se encontram. No grande espelho das imagens, cada participante vê sua vida refletida, projetada, e, assim, a existência ganha sentido, ganha transcendência27.

Culto e cinema como mito e narrativa Culto cristão se estrutura e se expressa em torno a um mito, uma narrativa, uma história simbólica de autoridade. Essa história carrega a própria essência da tradição cristã. Essa narrativa é o que dá sentido e, ao mesmo tempo, oferece uma moldura a partir da qual a vida da comunidade é estruturada e organizada.28 Quem vai ao cinema reconhece o poder que as histórias possuem e a necessidade humana de construir sentido. Como abordamos acima, a narrativa cinematográfica promove uma troca de olhares, uma forma de espelhar a realidade e a si mesmo, con-

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PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 11. MARSH, Clive. Theology goes to the movies: an introduction to critical Christian thinking. London; New York: Routledge, 2007. p. 36. ADAM, Júlio Cézar. Da ficção científica para a ficção religiosa: ideias para pensar o cinema de ficção científica como o culto da religião vivida. Horizontes, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, abr./jun. 2012. p. 553. MARSH, 2007. p. 35.

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firmar e contrapor a própria narrativa pessoal e coletiva. Os “mitos” narrados através do cinema se caracterizam pela diversidade e pelo pluralismo, o que se contrapõe à relativa uniformidade da narrativa da tradição cristã.29 Nesse sentido, Herrmann, corrobora essa ideia: O cinema corresponde [...] ao nosso desejo de criar o mundo novamente não como na religião, como uma explicação obrigatória e mais ou menos dogmática, nem como a arte, como irrepetível acontecimento estético, mas como um possível fluir de imagens de diferentes tipos, ilimitadas, ordenadas, significativas e mutáveis, que oferece um sentimento de autocompreensão do mundo e também o fascínio pela surpresa e a vibração30. (tradução nossa).

Culto e cinema como criação de comunhão e comunidade O culto cristão cria e mantém a comunhão. Sua narrativa e ritual consideram o indivíduo, mas sua razão última implica a comunidade (o Corpo de Cristo, a Comunhão dos Santos e Santas), na sociedade onde os grupos estão inseridos.31 O cristianismo é uma religião social e pública, aberta ao mundo e às pessoas. O culto cria e congrega o Corpo de Cristo e o senso de pertença interna e da igreja ao redor do mundo. De forma muito semelhante, o cinema é uma atividade pública e social e uma experiência comum.32 Geralmente se vai ao cinema acompanhado de alguém ou em pequenos grupos. Como vimos acima, um dos motivos de ir ao cinema pode ser, justamente, a possibilidade de encontrar e estar com pessoas. Tanto para esses como para quem vai sozinho ao cinema, diferente de assistir ao filme em casa, há nessa experiência comum certa cumplicidade e um sentimento de pertença, uma comunhão em torno da narrativa e do rito de vivenciá-lo em conjunto.33 Culto e cinema como espaço de espiritualidade, festa e diversão O culto é uma forma de espiritualidade cristã. Através e no culto pessoas e comunidade expressam sua fé. Por outro lado, espiritualidade hoje é também entendida como uma dimensão humana, não necessariamente relacionada a uma tradição religiosa. Espiritualidade é uma forma individual de desenvolvimento de relações consigo mesmo, com o outro, com o mundo e o cosmo, com o transcendente. É exatamente aqui que encontramos muitos paralelos com o cinema. Quem vai ao cinema alimenta a vida interior.34

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MARSH, 2017, p. 36. HERRMANN, 2001, p. 92. MARSH, 2017, p. 37. MARSH, 2017, p. 37. MARSH, 2017, p. 37. MARSH, 2017, p. 38.

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Pela forma como mexe com a emoção, testa os sentidos, convida os espectadores para as narrativas, faz as pessoas rirem, chorarem, gritarem, ofegarem, ele ajuda as pessoas a viver mais plenamente. Não, porém, a “treinar as emoções” em um modo particular como algumas tradições religiosas podem querer fazer. Ele não cultiva nenhuma tradição espiritual particular. Ele não oferece nenhuma garantia de algum tipo de ligação com um “outro transcendente”. Uma sensação de transcendência pode ocorrer por alguns espectadores no cinema.35 (tradução nossa).

Muito próximo a essa espiritualidade humana está também o elemento da diversão, do entretenimento e da festa. Diversão e festa é uma forma de expressão e desenvolvimento da dimensão espiritual do ser humano. O culto cristão é em essência uma festa, festa subversiva, festa carregada do elemento contracultural (communitas, de V. Turner), de utopia, um outro mundo é possível, uma outra forma de partilha de alimentos, uma outra forma de convivência humana é dançada e celebrada, como dirá Cox: A festividade é o meio de refrigerar a história sem fugir dela. A festividade, como “excesso legitimado”, como alegria e como justaposição, representa um papel indispensável na restauração do senso humano para a paisagem mais ampla em que se processa a história. Dá-lhe uma perspectiva da história, sem removê-lo do terror nem da responsabilidade que carrega em sua qualidade de fazedor da história. [...] celebração nos lembra que existe um outro lado de nossa existência, que não é absorvido por fazer história e, portanto, que a história não é o horizonte exclusivo nem extremo da vida.36

O cinema carrega muito dessa dimensão da festividade, do lazer, da vivência de algo motivador, da festa e da diversão, e, em grande medida, assistir a um filme é uma forma de tomar distância do mundo, olhar o mundo e a si de outro ponto de vista, questionar o mundo de forma lúdica, divertida e emocionada37, como muito bem expressa Dirk Blothner: Do cinema as pessoas esperam uma experiência extraordinária. Eles querem ver imagens frescas e experiências intensas. Alguns esperam excitação e emoção, outros uma visão aprofundada sobre os problemas básicos da vida38.

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“By the way it stirs emotion, tests the senses, invites viewers into narratives, makes people laugh, cry, shout, gasp, it helps people live more fully. It does not, however, ‘train the emotions’ in any particular way as some religious traditions might want to. It cultivates no particular spiritual tradition. It offers no guarantee of some kind of connectedness with a ‘transcendent other’. A sense of transcendence may occur for some viewers in the cinema.” MARSH, 2017, p. 38. COX, Harvey. A festa dos foliões: um ensaio teológico sobre festividade e fantasia. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 50s. HERRMANN, 2005, p. 67s. “Vom Kino erwarten die Menschen ein aussergewöhnliches Erlebnis. Sie wollen frische Bilder sehen und sie wollen intensive Erfahrungen machen. Die einen erwarten Spannung und Thrill, die anderen eine vertiefte Einsicht in die Grundprobleme des Lebens.” HERRMANN, 2005, p. 68.

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Duas propostas de uso do cinema na liturgia do culto cristão Nos dois tópicos acima, vimos que há grande correlação entre cinema e o culto cristão, motivos suficientes para a intensificação da pesquisa em torno da cultura pop como campo de interesse da teologia prática e da própria teologia. Além dessa reflexão teórica, neste terceiro e último ponto do artigo, pretende-se uma abordagem de cunho prático. Como usar o cinema no culto? No âmbito das comunidades eclesiais é vasto o uso que se faz de filmes como forma de promover discussão de temas da sociedade ou como espaço para reflexão e discussão de temas religiosos e teológicos. Tanto os filmes de caráter mais explícitos como “A paixão de Cristo” (Mel Gibson, USA, 2004), “Lutero” (Eric Till, Alemanha, 2003), quanto os de caráter mais implícitos, como “Contato” (Robert Zemeckis, USA, 1997), “Avatar” (James Cameron, USA, 2009) ou “Transcendence” (Wally Pfister, USA, 2014), são ótimos recursos para o trabalho nos mais diferentes grupos das comunidades cristãs, nos estudos da teologia ou nas aulas de Ensino Religioso, na escola. No âmbito do culto, no entanto, o uso do filme é mais restrito. Geralmente esse uso se restringe a referências a filmes e seus enredos ou a cenas curtas, usadas como ilustração, principalmente na prédica, ou ainda o uso de trilha sonora no culto e em ofícios (como a bênção matrimonial, p. ex.).39 Na Alemanha, pelo menos duas propostas de uso do cinema e de filmes no culto parecem conseguir ir além, ampliando a própria ideia de culto cristão, de liturgia e de pregação a partir do cinema: o culto-filme e o videodrama. Culto-filme Culto-filme (Filmgottesdienst) é uma proposta recente, criada na Alemanha, sendo a professora Inge Kirsner umas das principais pessoas envolvidas, junto com vários outros nomes.40 A professora Kirsner tem trabalho em projetos práticos de culto-filmes em diferentes cidades de Alemanha e, ao mesmo tempo, pesquisado e publicado a respeito dessa proposta. O desenvolvimento dessa proposta surge das mesmas constatações já abordadas neste artigo. Há, por um lado, um esvaziamento do culto comunitário nas comunidades alemãs, marcadas pela secularização, e, ao mesmo tempo, há uma busca efusiva pelo cinema, como um espaço que ultrapassa o consumo e o entretenimento.

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Quando do lançamento do novo filme da série Stars Wars, na catedral luterana de Berlim, Alemanha, usou-se a música tema da saga, o pastor, portando um sabre de luz, saudou a comunidade reunida com as palavras “A espera terminou! – A Força despertou”. Cerca de 500 pessoas participaram do culto, muitas delas fantasiadas de Darth Vader e portando sabres de luz de brinquedos. Cf. IGREJA alemã celebra missa por lançamento de filme de Stars Wars. Brasil 247. 20/12/2015. Disponível em: . Acesso em: 12 maio 2016. ADLER, Dietmar et alii (Orgs.). Mit Bildern bewegen: Filmgottesdienst. Hannover: Lutherisches Verlaghaus, 2014.

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Em um de seus livros, a profª. Kirsner relata o caso da cidade de Kassel, onde igreja e cinema encontram-se lado a lado, e se pode constatar de forma muito clara o deslocamento do acesso do público que antigamente se dirigia à igreja e que hoje se dirige ao Ufa-Palast (o palácio do cinema)41. Além disso, segundo Kirsner, o culto – liturgia e prédica – como evento humano está muito próximo do cinema, como também já abordamos aqui. Quando vamos ao cinema, embarcamos em uma viagem que nos leva para longe de tudo e esperamos nada menos do que uma revelação sobre aspectos até então desconhecidos da vida, das pessoas. Se vamos ao cinema como cristãos, talvez nós também vemos o filme a partir do ponto de vista se ele revela algo sobre o ser de Deus.42 (tradução nossa).

Segundo Kirsner, a ideia de Filmgottesdienst é uma proposta litúrgica, feita em equipe, sendo o processo de moldagem da liturgia, condução litúrgica e avaliação posterior tão importante quanto o resultado em si. Não se trata de usar o filme ou recortes de filmes no culto, como um exemplo, uma ilustração ou um recurso, e sim de recriar a liturgia e a pregação a partir de um filme determinado. Por culto-filme [eles] compreendem um culto onde são apresentados trechos de um filme ou um curta-metragem completo. Pregação e a liturgia estão relacionadas a esse filme. [...] Em tal culto fazem parte os elementos clássicos da liturgia como a oração, o canto da igreja, a bênção, e também a pregação – seja em qual formato for – não é substituída pelo filme.43 (tradução nossa).

O filme é a própria liturgia do culto ou parte integrante do evento litúrgico: O filme é parte de uma ação litúrgica, que, ao mesmo tempo, torna a liturgia do filme significativa. O filme não deve servir como uma ilustração para o texto da prédica, mas ele é o ponto de partida para a busca e o encontro dos textos bíblicos – e de outros textos – que de forma correspondente se encontram ao seu lado44. (tradução nossa).

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KIRSNER; GEHRING, 2014, p. 5ss. “Wenn wir ins Kino gehen, begeben wir uns auf eine Reise, die uns vom Alltag wegführt und wir erwarten nichts weniger als eine Offenbarung, über bisher unbekannte Aspekte des Lebens, der Menschen. Gehen wir als Christen ins Kino, sehen wir den Film vielleicht auch unter dem Aspekt, ob er uns etwas über Gottes Sein offenbart.” KIRSNER; GEHRING, 2014, p. 12. “Unter Filmgottesdienst verstehen [sie] einen Gottesdienst, in dem Auschnitte eines Filmes oder ein ganzer Kurzfilm präsentiert werden. Verkündigung und Liturgie stehen in Beziehung zu diesem Film. [...] in einen solchen Gottesdienst die klassische Elemente der Liturgie wie Gebet, Gemeindelied und Segen vorkommen und auch die Predigt – in welcher Form auch immer – nicht nur dem Film selbst überlassen wird.” ADLER et alii (Orgs.), 2014, p. 9. “Film wird Teil eines liturgischen Geschehens, das zugleich die Liturgie des Films deutlich macht. Der Film soll nicht als Illustration eins Predigttextes dienen, sondern er ist der Ausgangspunkt für das Suchen und Finden von biblischen – und anderen – Texten, die korrespondierend neben ihn treten.” KIRSNER; GEHRING, 2014, p. 14.

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O princípio da constelação litúrgica – que parte do método de Walter Benjamin de montagem literária – busca a combinação de elementos da tradição bíblica e da tradição litúrgica com elementos da atualidade, como os filmes, criando um diálogo através de elementos fragmentários e possibilitando, através dessa constelação, uma nova visão. Através dessa constelação o culto-filme reproduz a própria fragmentariedade e diversidade da vida atual. Cada culto-filme busca se construir na arte litúrgica da constelação, ou em outras palavras, tenta sempre de novo tornar visível a estranheza da tradição cristã, para assim interromper a naturalidade de tradições que encobrem essa estranheza e, assim, com frequência suficiente, diminuir a eficácia dos exemplos bíblicos, e colocar essa tradição em diálogo com a realidade contemporânea (como a mídia), sem romper com a dimensão vertical (a sucessão temporal) ou horizontal ( a justaposição espacial). 45 (tradução nossa).

Como se trata de um projeto experimental, Kirshner junto com várias outras pessoas que trabalham com o culto-filme apresentam uma imensa lista de liturgias construídas na dinâmica de constelação com filmes, como “Romeu e Julieta” (Baz Luhrmann, USA, 1997), cujo tema do culto era amor e sacrifício; “Os últimos passos de um homen (Tim Robbins, USA, 1995), sendo o tema do culto culpa e expiação; “Truman Show” (Peter Weir, USA, 1998), em um culto cujo tema era a construção da realidade; ou ainda “Gattaca” (Andrew Niccol, USA, 1998), cujo tema era o novo ser humano.46

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“Jeder Filmgottesdienst versucht sich an der liturgischen Kunst der Konstellation, oder anders gesagt: er versucht jedes Mal neu, die Fremdheit christlicher Überlieferung sichtbar zu machen, die Selbstverständlichkeit von Traditionen aufzubrechen, die diese Fremdheit verhüllen und die Wirksamkeit biblischer Stücke oft genug entkräften, und diese Überlieferung mit heutiger (Medien-) Wirklichkeit in Dialog zu bringen, ohne die Vertikale (des zeitlichen Nacheinanders) oder die Horizontale (des räumlichen Nebeneinanders) einzubrechen.” KIRSNER; GEHRING, 2014, p. 17. Ver essas e várias outras liturgias e exemplos em KIRSNER; GEHRING, 2014, p. 27-144. Uma descrição do processo de elaboração de uma das liturgias: “Ende November hatten wir uns – entsprechend der Jahreszeit und dem zu Ende gehende Kirchenjahr – das Thema Tod vorgenommen. Wir einigten usn auf Atom Egoyans ‘Das süsse Jenseits’ (Kanada 1997). Beim Aufbau der Grossleinwand hinter dem Altar der Vaihinger Stadtkirche kam es zu einem überraschenden Effekt: Die schwarze Einfassung der weissen Fläche wirkte wie der Trauerrand einer leeren, später durch den Film gefüllten Traueranzeige. [...] Der Leinwand wurde zum Vorletzten, und Jean Cocteaus Aussage: “Filmen heisst, dem Tod bei der Arbeit zusehen”. [...] Und das alles, bevor nur ein einziges Wort gesprochen war. Dem bildhaften Geschehen, das an die liturgische Stelle des Predigtextes rückte, wurden dann im Vollzug des Gottesdienstes PsalmGebete, Lieder aus dem Gesangbuch, Jazz, Lesungen aus dem Hiob-Buch und Gedichte von Pablo Neruda zur Seite gestellt.” KIRSNER; GEHRING, 2014, p. 16s.

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Videodrama O videodrama é um derivado do bibliodrama (Samuel Leuchli, Natalie Warns, Gerhard Marcel Martin)47, do método didático-simbólico sobre obras da cultura pop (Inge Kirsner, Michel Wermke, Jörg Herrmann)48 e da observação estética (K. Mollenhauer, Peter Biehl).49 Trata-se de uma forma de lidar de maneira profunda e intensa com o texto bíblico, fazendo sua leitura, interpretação e atualização para dentro da realidade social e individual concretas, através de um processo estético de filmagem da vida à luz do drama bíblico. O texto bíblico proporciona o espaço, a atmosfera, mas também a forma, na medida em que, na interação entre o texto bíblico e os participantes, o movimento central, o conflito principal e o foco temático do texto bíblico são retomados e encontram sua forma em um novo movimento narrativo.50 (tradução nossa).

Enquando o bibliodrama trabalha internamente em pequenos grupos e se utiliza do teatro e da expressão corporal na abordagem dos textos bíblicos, o videodrama tem como objetivo o processo de produção de um vídeo, de um filme, a ser divulgado para o público externo. O que está em jogo é o processo crítico, vivencial e criativo através do qual um grupo lê em profundidade textos bíblicos a partir da própria vida e da situação, tendo como resultado um filme, não apenas como produto final, mas como meio que possibilidade a continuidade da reflexão com o grupo externo que o assiste. O videodrama é um processo estético que acontece no contexto de um texto bíblico. Entre o texto bíblico, de um lado, e os pensamentos e desejos, as fantasias e também as expectativas e sonhos marcados pela televisão e o consumo cinematográfico dos participantes, de outro, deve-se abrir um espaço de interação, que envolve a corporeidade e todos os sentidos. 51 (tradução nossa).

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FABER, Karoline et alii. Kobajabok – Genesis 32.23-233 auf den Leib geschrieben; Ein Werkstattbericht zu einem Videodrama-Projekt. In: EBACH, Jürgen et alii (Orgs.). Dies ist mein Leib: leibliches, leibeigenes und leibhaftiges bei Gott und den Menschen. Gütersloh: Gütersloher Verlaghaus, 2006. p. 265s. Sobre o bibliodrama, ver, p. ex, ROESE, Anete. Bibliodrama: a arte de interpretar textos sagrados. São Leopoldo: Sinodal, 2007. Symbol-didaktische Unterricht über populärkulturelle Werke: FABER et alii, 2006, p. 266s. FABER et alii, 2006, p. 268s. “Der biblische Text gibt den Raum, die Atmosphäre, aber auch die Gestalt vor, insofern in dem Wechselspiel zwischen biblischem Text und Teilnehmenden die zentrale Bewegung, der leitende Konflikt, die thematische Fokussierung des bliblischen Textes aufgenommen wird und in einer neuen Erzähbewegung Gestalt findet.” FABER et alii, 2006, p. 264. “Das Videodrama ist ein ästhetischer Prozess, der im Raum eines biblischen Textes stattfindet. Zwischen dem biblischen Text auf der einen und den Gedanken und Wünschen, den Phantasien und den auch durch Fernseh- und Filmkonsum geprägten Seh-Erwartungen der Teilnehmenden soll ein Wechselspiel eröffnet werden, das körperorientiert ist und möglichst alle Sinne einbezieht.” FABER et alii, 2006, p. 264.

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A proposta foi criada, há mais de 30 anos, pelo pastor e professor Hans-Martin Gutmann, inicialmente no trabalho com confirmandos/as e nas aulas de Ensino Religioso, mais tarde (desde 1994) com estudantes de Teologia, na Alemanha.52 É uma proposta que envolve e fascina, sobretudo, adolescentes e jovens.53 Não se trata, porém, de uma simples filmagem de histórias bíblicas, e sim de um processo grupal, árduo e aprofundado de interpretar a dramaticidade presente no texto bíblico e criar um curta-metragem de qualidade estética e artística. O objetivo é filmar as imagens e as palavras, o poder e o dinamismo do texto bíblico em uma narrativa cinematográfica, de forma que resulte em uma adequada e efetiva – nós fazemos o filme – nova narrativa com o aqui e o agora, de força e dinamismo presentes. A narrativa do filme pode ser uma história totalmente nova, mas também sequências de narrativas individuais, imagens, cenas, passagens ligadas em forma de mosaico.54 (tradução nossa).

Conheci a proposta do videodrama quando estava concluindo meu doutorado na Universidade de Hamburgo, em 2012. Naquele semestre, no programa dos cursos oferecidos da Faculdade de Teologia, havia um seminário de videodrama. O resultado desse seminário foi um curta-metragem “Da Capo – al fine”, apresentado a um auditório lotado de estudantes, professores e público externo. Esse filme tomou por base os textos bíblicos de Gênesis 11.1-9 (a torre de Babel ) e Lucas 13.1-15 (a morte dos galileus e a queda da torre de Siloé) e retratava de forma impactante os então recentes acontecimentos do 11 de setembro relacionados a concepções individuais de vida e conflitos relacionais, como a perda de segurança, construção de fantasias pessoais e a pergunta pela culpa e a desgraça.55 O videodrama não foi pensado primeiramente como um modelo exegético e homilético, embora, na minha visão, seja uma inovadora proposta homilética. A proposta tampouco foi criada com vista ao produto final, o filme, a ser assistido no culto. O processo, em si, já é uma pregação e uma liturgia, onde já ocorrem ritual, encenação, teatro, narrativa e diálogo a partir das vidas individuais dos integrantes, da cultura pop, do cinema, em si, e da sociedade como um todo. O próprio Gutmann define o videodrama como uma incorporação litúrgica.56 Penso, porém, que o videodrama encontraria no culto comunitário um excelente espaço de expansão do processo intenso

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GUTMANN, Hans-Martin. Der Flow-Kanal und der Weg zur guten Gestalt. In: BIZER, Christoph et alii (Orgs.). Religionsdidaktik. Neukirchen: Neukirchener, 2002. p. 100ss. FABER et alii, 2006, p. 269. “Ziel ist, die Bilder und Worte, die Kraft und Dynamik des Bibeltextes in einer Filmerzählung aufzunehmen, und zwar so, dass eine entsprechende und doch – wir machen den Film – neue Erzählung mit hier und jetzt präsenter Kraft und Dynamik gefunden wird. Die Filmerzählung kann eine vollständige neue Geschichte sein, aber auch einzelne filmische Erzählsequenzen, Bilder, Szenen, Passagen mosaikförmig verbinden.” GUTMANN, 2002, p. 101. GUTMANN, 2002, p. 100. GUTMANN, 2002, p. 106.

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e criativo que ele representa, inclusive com a possibilidade de as duas propostas, o culto-filme e o videodrama, convergirem.

Considerações f nais A correlação entre cinema e culto fica muito clara na reflexão aqui desenvolvida. As duas propostas de incorporação do cinema e do filme na liturgia são motivadoras para pensar de forma prática possibilidades. É importante ressaltar que nenhuma das propostas é feita de forma isolada, por uma pessoa. Ambas as propostas são feitas em grupo, em equipe, e o processo de construção é tão ou mais importante que o próprio resultado, algo que condiz com a essência do culto cristão. O culto pertence à sua comunidade e não ao seu ministro ou ministra. Em ambas as propostas tem algo de constelação e montagem; combinam-se elementos de diferentes procedências, como a tradição litúrgica e bíblica, e elementos da cultura e as narrativas pessoais e coletivas na construção do filme e na moldagem da liturgia. Há algo da essência do próprio cinema e da própria liturgia, como uma arte fragmentária que reúne e congrega todas as outras artes – pintura, teatro, ópera, dança, música, fotografia, arquitetura, fotografia etc. – na construção de uma obra, que, por sua vez, dialoga com a cultura, a sociedade, os grupos e os indivíduos. Em tempos de crise litúrgica – em especial nas igrejas históricas e principalmente dos públicos jovens – e de grande interesse pelo cinema, me parece não só interessante, mas algo pertinente e prudente estabelecer relações entre o cinema e o culto cristão. Referências ADAM, Júlio Cézar. Culto: comunicação viva. Novolhar, São Leopoldo, ano 13, n. 58, p. 1617, abr./jun. 2015. ADAM, Júlio Cézar. Da ficção científica para a ficção religiosa: ideias para pensar o cinema de ficção científica como o culto da religião vivida. Horizontes, Belo Horizonte, v. 10, n. 26, p. 552-565, abr./jun. 2012. ADAM, Júlio Cézar; HANKE, Ezequiel. Juventude midiatizada: um estudo sobre as possibilidades de uma religião vivida na e através da mídia. Revista de Teologia e Ciências da Religião, Recife, v. 4, n. 1, p. 213-236, 2014. ADLER, Dietmar et alii (Orgs.). Mit Bildern bewegen: Filmgottesdienst. Hannover: Lutherisches Verlaghaus, 2014. ALLMEN, J. J. von. O culto cristão: Teologia e prática. São Paulo: ASTE, 1969. ALVES, Rubem. Creio na ressurreição do corpo: Meditações. 3. ed. São Paulo: Paulinas; Santo Amaro: CEDI, 1992. BIERITZ, Karl-Heinrich. Gottesdienst als ‚offenes Kunstwerk’? Zur Dramaturgie des Gottesdienstes. Pastoraltheologie, v. 75, 1986, p. 358-373. COX, Harvey. A festa dos foliões: um ensaio teológico sobre festividade e fantasia. Petrópolis: Vozes, 1974. EBACH, Jürgen et alii (Orgs.). Dies ist mein Leib: leibliches, leibeigenes und leibhaftiges bei Gott und den Menschen. Gütersloh: Gütersloher Verlaghaus, 2006.

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