Articulus Temporis: estudo dos regimes transitórios do legato na flauta

May 19, 2017 | Autor: Helder Teixeira | Categoria: Flauta, Estudantes De Flauta, Acustica Musical
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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE MÚSICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA

HELDER DA COSTA TEIXEIRA

ARTICULUS TEMPORIS: ESTUDO DOS REGIMES TRANSITÓRIOS DO LEGATO NA FLAUTA

Salvador 2016

HELDER DA COSTA TEIXEIRA

ARTICULUS TEMPORIS: ESTUDO DOS REGIMES TRANSITÓRIOS DO LEGATO NA FLAUTA

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Música. Área de concentração: Execução Musical Orientador: Prof. Dr. Lucas Robatto Coorientador: Prof. Dr. Leonardo Fuks

Salvador 2016

T266 Teixeira, Helder da Costa Articulus Temporis: estudo dos regimes transitórios do legato na flauta/Helder da Costa Teixeira.-- Salvador, 2016. 222 f. :il Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia. Orientador: Prof.. Dr. Lucas Robatto 1.Música – Execução. 2.Flauta Transversa. 3. Legato. I. Título.

CDD 784

AGRADECIMENTOS

Sandra Ribeiro Gomes, minha esposa, cuja companhia me alegra e que ao meu lado suportou minha ausência; À Glória Ribeiro e Alberto Gomes, meus sogros, pela assistência e suporte financeiro nos meses de minha estadia em Salvador. A eles minha gratidão; À Nina, minha filha, por partilhar momentos; Ao prof. Dr Lucas Robatto pelo brilhantismo e sensatez que norteiam sua orientação; Ao Prof. Dr Leonardo Fuks, brilhante engenheiro, visionário e inventivo; por sua assistência e orientação, e pelo bom amigo que sempre demonstrou ser; À Profª Drª Maria Lúcia Vaz Masson – Profª do Departamento de Fonoaudiologia da UFBA – por assessorar as primeiras análises de som realizadas na cabine de audiometria da Faculdade de Fonoaudiologia da UFBA; Ao Prof. Dr Guto Nóbrega e integrantes do grupo de estudo do NANO (Núcleo de Artes e Novos Organismos) - UFRJ pelo emprenho em todo o processo de elaboração do dispositivo ótico utilizado na pesquisa; À Lorenna Baptista de Oliveira, engenharia elétrica da UFF que contribuiu gratuitamente com o desenho do circuito; À Ariadne Paixão pela ajuda na tradução de textos em francês antigo; Prof. Dr. Antônio Jardim (UFRJ), Marcus Caetano e Amélio Ribeiro pela ajuda na tradução de termos e textos em grego e latim; À Sávio Novaes pelo trabalho de manutenção, adaptação e preparação da flauta utilizada no desenvolvimento do dispositivo ótico; À Jalzério Figueira, engenheiro eletrônico responsável pela versão final do dispositivo ótico astável e pela assessoria durante e depois da coleta de dados; Aos violinistas Daniel Carneiro de Andrade, Oswaldo Velasco e Greice Barros; aos trombonistas Sérgio Luiz de Jesus e Thiago de Souza Gomes; à soprano Patrícia Vieira de Oliveira; à pianista Sarah Higino; que também contribuíram gratuitamente nas gravações da coleta de dados;

À Nicolau Martins de Oliveira, Sarah Higino e Patrícia Vieira de Oliveira pela disponibilização do ambiente de ensaio da Orquestra de Cordas de Volta Redonda numa das fases da coleta de dados; À Águeda Sano, diretora administrativa da Orquestra Sinfônica Nacional (OSN-UFF); a Comissão Artística da Orquestra Sinfônica Nacional e aos colegas de naipe que suportaram minha ausência durante todo o desenvolvimento da pesquisa; Ao Dr Felipe Padilha, engenheiro mecânico que ajudou na intermediação com a Divisão de Acústica e Vibrações (Diavi) e o Laboratório de Eletroacústica (Laeta) – Inmetro; Ao Dr Zemar M. Defilippo Soares, chefe do Laboratório de Eletroacústica – Laeta – Inmetro; Ao Dr Paulo Massarani, chefe do Laboratório de Ensaios Acústicos do Inmetro.

À todos, obrigado, no sentido literal que o vocábulo expressa na língua portuguesa.

TEIXEIRA, Helder da Costa. Articulus Temporis: Estudo dos Regimes Transitórios do Legato na Flauta. 222 f. il. 2016. Tese (Doutorado) - Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

RESUMO A questão fundamental da investigação que ora se apresenta se concentra em aspectos ligados à acústica e a fatores sonoros com características perceptivas notáveis; fenômenos e eventos que ocorrem num muito breve espaço de tempo nos períodos transitórios do som da flauta. A preocupação com tais eventos está intimamente relacionada ao aspecto perceptivo que os mesmos imprimem à execução musical. A pesquisa aborda a articulação do som em quatro aspectos: 1) Articulação Fisiológica – descrição da articulação do som numa perspectiva fonética; o que o flautista faz; o trabalho dos articuladores e dos órgãos do aparelho fonador na articulação do som. 2) Articulação Fraseológica – a indicação escrita na partitura e o modo de realização do ataque e de articulações diversas mediante diferentes tipos de ambientes. 3) Articulação Mecânica – o sistema Böhm e o ab-rupto câmbio de tubos da flauta moderna e sua influência na percepção auditiva da articulação. 4) Articulação Acústica – aspectos físicos e piscofísicos da audição; situações e fenômenos interferentes no processo da articulação do som. O propósito focal da pesquisa se direciona ao legato, uma das principais ferramentas de expressividade do flautista. A importância do legato está associada à boa expressividade e ao fluxo melódico que dá sentido à frase musical. Por essa razão, o estudo se concentra em análises de diversas formas de legato com utilização de programas de análises de áudio e através de um dispositivo ótico adaptado à borda de um dos orifícios da flauta, a fim de capturar as alterações sonoras quadro a quadro à medida em que a chave cobre o orifício da flauta. Com isso, pretende-se identificar fenômenos acústicos presentes em meio ao movimento sonoro dos intervalos ligados na flauta e como tais fenômenos interferem na sensação de fluxo sonoro. Esta sensação de fluxo entre notas ligadas poderá ser mais bem compreendida no momento em que se apreende fenômenos e seus respectivos efeitos sonoros ocorrentes em meio às transições sonoras. Palavras chave: Flauta Transversa. Articulação Musical. Transições Sonoras. Legato.

TEIXEIRA, Helder da Costa. Articulus Temporis: Study of the Transitory Regimes of the Legato in the Flute. 222 f. il. 2016. Doctoral Thesis - Escola de Música, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016.

ABSTRACT The key issue of the presented research focuses on aspects of acoustics and on sound factors with remarkable perceptual traits. Those events and phenomena occur in a very short time on transitional periods of the flute sound. The concern about such events is closely related to the perceptive aspect that they imprint into the musical performance. This research addresses the articulation of sound on four aspects: 1) Physiologic articulation - description of the sound articulation from a phonetic perspective; what the flutist does; the work of the articulators and of the vocal tract organs in sound articulation. 2) Phraseological articulation – a written pointer on the song sheet and also the attack and articulation execution through different types of environment. 3) Mechanical articulation - the Böhm and ab-rupto systems of modern flute tube switch and their influence on auditory perception of articulation. 4) Acoustics articulation - physical and psicophysical aspects of hearing; situations and phenomena interfering in sound articulation process. The purpose of this research is directed to legato, one of the main tools of expression the flutist has. The importance of legato is associated with good expression and melodic flow that gives meaning to the musical phrase. For this reason, this study focuses on the analysis of various forms of legato with use of audio analysis programs and also through an optical device adapted to the edge of one of the flute gaps in order to capture the sound alterations frame by frame as the key covers the flute gap. This is intended to identify acoustic phenomena present amid the sound movement from the connected breaks on the flute and how these phenomena affect the feeling of sound flow. This sense of flow between linked notes may be better understood when it apprehends the phenomena and their respective sound effects that occur amid the sound transitions. Keywords: Transverse Flute. Musical Articulation. Sound Transitions. Legato.

LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS

Exemplo Musical 1.1

Introdução do Scherzo (2º movimento) da sinfonia nº 9 em Ré menor, Op. 125 de Ludwig van Beethoven ............................. 25

Exemplo Musical 2.1

Solo de flauta do Adagio non troppo (terceiro movimento) da Serenata nº 1 in D Major, Op. 11de J. Brahms ....................... 70

Exemplo Musical 2.2

Introdução do Magnificat in D Major BWV 243 de J. S. Bach ......................................................................................... 72

Exemplo Musical 2.3

Trecho do Finale do Concerto in D Major Op. 283 para flauta e orquestra de Carl Reinecke ...................................................... 73

Exemplo Musical 2.4

Syrinx pour flûte seule de Debussy .......................................... 94

Exemplo Musical 2.5

B – Pour que l’enfant qui va naître soit um fils (Cinq Incantations pour Flûte Seule) de André Jolivet ..................... 95

Exemplo Musical 3.1

Exemplo ‘A’, Pièce pour Flûte Seule (três últimos compassos) de Jacques Ibert, exemplo de Decaimento longo. Exemplo ‘B’ corte abrupto para o final da peça Density 21.5 de Edgard Varèse..................................................................................... 106

Exemplo Musical 3.2

Representação exemplificada da escrita e execução baseada na resposta do ambiente ........................................... 114

Exemplo Musical 4.1

Indicação escrita de articulação na introdução do Prélude à l’Après-midi d’un Faune, de Debussy .................. 140

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1.1

Representação esquemática do Envelope Dinâmico ........................... 26

Figura 1.2

Transição dos sons Si4 - Sib4 - Dó5 em legato ..................................... 31

Figura 1.3

5J (Dó5 - Sol5) na posição Dó4 ............................................................. 32

Figura 1.4

Transição das notas Dó5 - Sol5 na posição harmônica (Dó4) ............... 33

Figura 1.5

Fechamento da chave Si3 ..................................................................... 36

Figura 1.6

Roteiro de gravação ............................................................................. 40

Figura 2.1

Aparelho fonador e articulador ............................................................ 57

Quadro 2.1

Articulação das consoantes da língua portuguesa (br) ........................ 58

Figura 2.2

Fonema oclusivo linguodental /t/ ......................................................... 59

Figura 2.3

Fonema oclusivo velar /k/ .................................................................... 59

Figura 2.4

Fonema de vogal /ê/ ............................................................................. 60

Figura 2.5

Glote vista de cima no aparelho laríngeo ............................................ 63

Figura 2.6

Som da nota Si3 com vibrato de intensidade ....................................... 71

Figura 2.7

Quinze tubos primários da flauta transversa moderna e suas quinze respectivas fundamentais ......................................................... 75

Figura 2.8

Quinze sons fundamentais da flauta, produzidos em cada um dos tubos primários da flauta transversa, com seus principais sons harmônicos ........................................................................................... 76

Figura 2.9

Tubos acústicos da flauta ..................................................................... 77

Figura 2.10

Abertura e Fechamento da chave Si .................................................... 78

Figura 2.11

Intervalo das notas Dó4 - Lá3 ............................................................... 80

Figura 2.12

Som do fechamento da chave Sol com microfone interno na flauta ... 81

Figura 2.13

Articulação da nota Sol3 ...................................................................... 81

Figura 2.14

Alinhamento de eventos na articulação do som .................................. 82

Figura 2.15

Ataque da nota Sol3 com toque e articulação fonatória leves .............. 83

Figura 2.16

Aspecto das transições dos intervalos realizados na flauta ................. 85

Figura 2.17

Transição com acionamento de duas e seis chaves ............................. 86

Figura 2.18

Processo da percepção auditiva ........................................................... 89

Figura 2.19

Decaimento da nota Dó4 ...................................................................... 97

Figura 3.1

Transientes na articulação do som na flauta ...................................... 103

Figura 3.2

Espectrograma do som da nota Dó5 (tubo 14) ................................... 104

Figura 3.3

Decaimento do som da flauta em dois tipos de bocais ...................... 107

Figura 3.4

Decaimento do som Dó4 com 124 ms. ............................................... 108

Figura 3.5

Comparação entre Decaimentos da nota Dó4 .................................... 109

Figura 3.6

Comparação entre Decaimentos da nota Dó4 sem língua com limite entre 73 - 40 dB ...................................................................... 111

Figura 3.7

Sons descontinuados na flauta em dois modos de articulação .......... 113

Figura 3.8

Transição de um intervalo de 3m descendente (Mi4 - Dó4) realizado na flauta ............................................................................................ 129

Figura 3.9

Interferência harmônica ..................................................................... 133

Figura 3.10

Interferência no sinal provocado pela diferença entre duas frequências superpostas ............................................................. 135

Figura 3.11

Tipos de interferência na transição de intervalos na flauta ................ 135

Figura 4.1

Legato por sobreposição de sons no piano ........................................ 144

Figura 4.2

Variação do NPS na transição dos intervalos de 2M e 8J no violino ................................................................................................ 145

Figura 4.3

Espectrograma dos segmentos de transição nas formas de legado no violino ........................................................................................... 147

Figura 4.4

Legato por variação de tensão ........................................................... 148

Figura 4.5

Cinco formas de legato no trombone ................................................. 149

Figura 4.6

Legato por controle da pressão do ar na flauta .................................. 150

Figura 4.7

Legato por Substituição Imediata ...................................................... 151

Figura 4.8

Intervalos realizados no Tubo 14 ....................................................... 152

Figura 4.9

Intervalos realizados no Tubo 14 na câmara anecoica ......................... 153

Figura 4.10

Transição entre os Tubos 14-9 e 9-14 ................................................ 154

Figura 4.11

Segmentos com aumento e redução do tubo acústico ....................... 155

Figura 4.12

Intervalo FÁ3 - DÓ4 ligado ................................................................ 157

Figura 4.13

Intervalo Si3 - Dó4 ligado ................................................................... 158

Figura 4.14

Instabilidade na transição do intervalo nulo Dó5 - Dó5 ..................... 162

Figura 4.15

Efeito de Salto no tubo 14 ................................................................. 163

Figura 4.16

Quadro comparativo entre o tempo de transição do intervalo Dó4 - Si3 e o movimento da chave Si ................................................. 168

Figura 4.17

Abertura da chave Si .......................................................................... 171

Figura 4.18

Intervalo Si3 - Dó4 invertido .............................................................. 172

Figura 5.1

Variação do NPS na transição de intervalos selecionados ................ 178

Figura 5.2

Transição do intervalo Sol3 - Dó4 com tempo e frequência reduzidos a índices mínimos .............................................................. 180

Figura 5.3

Microfones utilizados nas coletas de dados ....................................... 183

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1.1

Variação de Nível de Pressão Sonora (NPS) em três de ataques na flauta em dois diferentes bocais ...................................................... 28

Gráfico 2.1

Três estágios da captação do som em salas de concerto ...................... 93

Gráfico 3.1

Decaimento do som sem língua e com Tongue Stop.......................... 112

Gráfico 3.2

Segmentação da fase de transição entre notas separadas ................... 115

Gráfico 3.3

Al descrito por Loureiro ..................................................................... 116

Gráfico 3.4

Descrição do Al de Loureiro em três tipos hipotéticos de ambientes com diferentes tempos de Decaimentos ............................................ 117

Gráfico 3.5

Índice de Separação de Notas (ISN) como descritor parcial da articulação ..................................................................................... 120

Gráfico 3.6

NSA (Nível de Som do Ataque) como descritor parcial da articulação .......................................................................................... 121

Gráfico 3.7

Nível de Articulação (A) ................................................................... 124

Gráfico 3.8

Nível de Articulação (B) .................................................................... 125

Gráfico 3.9

Nível de Articulação (C) .................................................................... 126

Gráfico 3.10

Ponto de alteração das notas na transição de um intervalo ligado segundo a estimativa de variação de NPS (Nível de Pressão Sonora) ................................................................................................ 128

Gráfico 3.11

Representação hipotética de um intervalo entre notas ligadas na flauta ............................................................................................. 130

Gráfico 3.12

Transição do intervalo ligado Dó4-Si ................................................ 134

Gráfico 4.1

Delimitação dos segmentos como definidores de um índice para o legato .................................................................................................. 165

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

Al

Nível de Articulação (Articulation level).

APC

Atari Punk Console.

APIWTXA

Associação Ashaninka do Rio Amônea

ASA

Acoustical Society of America

Capes

Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior.

dB

deciBel. (Ver Glossário, p. 196).

dBA

Unidade utilizada na medida da intensidade do som que mais se aproximada à sensação auditiva. (Ver Glossário, p. 196).

cm

centímetro.

Diavi

Divisão de Acústica e Vibrações do Inmetro.

DR

Duration Ratio. Intervalo de tempo que abrange a nota do início ao fim.

Hz

Hertz. Unidade de frequência no Sistema Internacional de Unidades (SI), equivalente à frequência de um ciclo por segundo.

Inmetro

Instituto Nacional de Metrologia.

IOI

intra-onset-interval. Intervalo de tempo entre o início da primeira nota e o início da nota subsequente

ISN

Índice de Separação de Notas.

Laeta

Laboratório de Eletroacústica do Inmetro.

LED

Light Emitting Diode.

LDR

Light Dependent Resistor; (fotossensor).

MPB

Música Popular Brasileira

mm

milímetro.

ms

milissegundo

NA

Nível de Articulação

Nano

Núcleo de Artes e Novos Organismos da UFRJ.

NPS

Nível de Pressão Sonora.

NSA

Nível de Som do Ataque.

NSfA

Nível de Som no fim do Ataque.

NSiD

Nível de Som do início do Decaimento.

Ofes

Orquestra Filarmônica do Espírito Santo

s

segundo

SI

Sistema Internacional de Unidades

TR1 e TR2

Área dos Triângulos Retângulos 1 e 2.

UFF

Universidade Federal Fluminense

UFBA

Universidade Federal da Bahia

UFRJ

Universidade Federal do Rio de Janeiro

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 19 1

DESCRIÇÃO DA PESQUISA ..................................................................... 23

1.1

ARTICULAÇÃO SILÊNCIO/SOM ............................................................... 27

1.2

ARTICULAÇÃO SOM/SOM .......................................................................... 29

1.3

DO PROBLEMA ................................................................................................. 31

1.4

HIPÓTESES ......................................................................................................... 33

1.5

OBJETIVO ............................................................................................................ 34

1.6

METODOLOGIA ............................................................................................... 34

1.7

PESQUISA BIBLIOGRÁFICA ...................................................................... 37

1.8

COLETA DE DADOS ....................................................................................... 39

1.8.1

Gravação UFBA ..................................................................................................... 39

1.8.2

Gravação Volta Redonda ....................................................................................... 41

1.8.3

Gravação Friburgo ................................................................................................. 43

1.8.4

Gravação Inmetro .................................................................................................. 45

1.9

ANÁLISE DE DADOS ..................................................................................... 46

1.10

ORGANIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO ....................................................... 47

2

DA ARTICULAÇÃO ....................................................................................... 50

2.1

ARTICULAÇÃO FISIOLÓGICA .................................................................. 56

2.1.1

Articulação oclusiva linguodental ......................................................................... 58

2.1.2

Articulação Oclusiva Velar .................................................................................... 59

2.1.3

Articulação Vogal ................................................................................................... 60

2.1.4

Oclusões africadas .................................................................................................. 62

2.1.5

Impropriedade Fonética ........................................................................................ 63

2.1.6

Impropriedade Fonológica ................................................................................... 66

2.2

ARTICULAÇÃO FRASEOLÓGICA MUSICAL ...................................... 68

2.2.1

Destacado Apoiado ................................................................................................. 69

2.2.2

Destacado Simples .................................................................................................. 72

2.2.3

Staccato .................................................................................................................... 73

2.3

ARTICULAÇÃO MECÂNICA ...................................................................... 74

2.3.1

Velocidade de fechamento e abertura das chaves ............................................... 78

2.3.2

Ruído de chaves ...................................................................................................... 79

2.4

ARTICULAÇÃO ACÚSTICA ........................................................................ 87

2.4.1

O Som no Ambiente ............................................................................................... 91

2.4.2

Reflexão, Reverberação e Decaimento do Som .................................................... 96

3

DESCRITORES DE ARTICULAÇÃO .................................................. 100

3.1

ESTÁGIOS TRANSITÓRIOS – TRANSIENTES DE ATAQUE ...................................................................................................... 101

3.2

TEMPO DE DECAIMENTO DO SOM DA FLAUTA .......................... 105

3.2.1

O Problema da delimitação das fronteiras do envelope dinâmico ................... 110

3.2.2

Tongue Stop .......................................................................................................... 111

3.3

DESCRITORES DE SONS DESTACADOS ............................................ 114

3.3.1

Articulation Level (Al) de Loureiro.................................................................... 116

3.3.2

Índice de Separação de Notas (ISN) ................................................................... 119

3.3.3

Nível de Som do Ataque (NSA) ........................................................................... 120

3.3.4

Nível de Articulação pela Correlação dos Descritores Parciais (NA) .............. 122

3.4

DESCRITORES DO LEGATO ..................................................................... 127

3.4.1

Delimitação dos Segmentos da Transição entre Notas Ligadas ....................... 127

3.5

INTERFERÊNCIA DE ONDAS ................................................................... 131

3.5.1

Índice de Sensibilidade ......................................................................................... 137

4

DO LEGATO .................................................................................................... 138

4.1

O LEGATO COMO É PERCEBIDO .......................................................... 141

4.1.1

Formas de Legato ................................................................................................. 142

4.1.1.1 Legato por Sobreposição de Sons ........................................................................... 143 4.1.1.2

Legato por Substituição Imediata nos Cordofones ................................................ 144

4.1.1.3

Legato por Substituição Imediata nos Aerofones .................................................. 146

4.1.1.4

Legato por Condução ............................................................................................ 146

4.1.1.5 Legato por Variação de Tensão .............................................................................. 147 4.1.1.6 O Legato Híbrido dos Metais ................................................................................. 148 4.1.1.7 Legato por Controle da Pressão do Ar ................................................................... 149

4.2

O LEGATO REAL DA FLAUTA ................................................................ 151

4.2.1

Legato de mesmo Tubo ........................................................................................ 152

4.2.2

Legato entre Tubos Distintos / Processo de câmbio dos tubos ......................... 153

4.3

A SENSAÇÃO DE FLUXO ........................................................................... 158

4.3.1

Efeitos dos Sistemas Não-Lineares ..................................................................... 160

4.3.1.1

O Efeito de Salto .................................................................................................... 161

4.4

O IDEAL DE LEGATO .................................................................................. 164

4.5

DISPOSITIVO OSCILADOR ASTÁVEL ................................................. 166

4.5.1

Transições de Intervalos Ascendentes ................................................................ 170

4.5.2

Observações do Oscilador Astável ...................................................................... 173

4.5.2.1 Tempo de Trajetória da Chave Si ........................................................................... 173 4.5.2.2 Velocidade Média de Abertura e Fechamento da Chave Si ................................... 174 4.5.2.3 Tempo de Transição do Intervalo em Relação à Abertura e ou Fechamento da Chave ........................................................................................... 174 4.5.2.4

Início da Transição do Intervalo no Movimento de Fechamento da chave Si ............................................................................................................. 174

4.6

ANÁLISE TÉCNICA DO OSCILADOR ASTÁVEL ............................ 175

5

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................... 176

5.1

CONCLUSÃO ................................................................................................... 176

5.1.1

Do legato da flauta ................................................................................................ 176

5.1.2

Do som das chaves ................................................................................................ 177

5.1.3

Da não–linearidade do segmento transitório no legato ..................................... 179

5.2

CRITÉRIOS DE VERIFICABILIDADE E REPETIBILIDADE.......... 181

5.2.1

Observação criteriosa do distanciamento do microfone ................................... 182

5.2.2

Modo da microfonação ......................................................................................... 183

5.2.3

Direcionamento a futuras pesquisas ................................................................... 184

5.3

A DIMENSÃO POÉTICA .............................................................................. 185 REFERÊNCIA ................................................................................................. 188 GLOSSÁRIO ..................................................................................................... 196

ANEXO A – OSCILADOR ÓTICO ASTÁVEL – HISTÓRICO, DESCRIÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO DISPOSITIVO ........................................................................ 204 ANEXO B – EQUAÇÃO DE BERNOULLI ............................................ 209 ANEXO C – INTENSIDADE DO SOM ................................................... 212 ANEXO D – PARECER TÉCNICO DO OSCILADOR ASTÁVEL ................................................................................. 214 ANEXO E – ORDENAÇÃO DAS OITAVAS E NOME DAS NOTAS MUSICAIS.......................................................................... 216 ANEXO F – COMPROVANTE DE COMPRA DE IMAGEM .......... 221 APÊNDICE A – CD DE EXEMPLOS DE ÁUDIO ............................... 222

19

INTRODUÇÃO

Com ansiedade, cheguei de viagem naquele dia. Na noite anterior, havia participado do Concerto da Orquestra Filarmônica do Espírito Santo (Ofes) no Teatro Carlos Gomes em Vitória –ES1, sob a direção do maestro Mario César Candiane, no qual apresentei o Concerto em Dó para piccolo e orquestra de Vivaldi. A ansiedade que me acometia naquele momento era para ouvir a gravação do concerto gravado ao vivo. Coloquei a fita cassete no aparelho e escutei com atenção. Tudo parecia muito bem: afinação, execução, andamento, etc. Mas algo soava estranho. Nunca antes havia observado. Os sons ligados no piccolo pareciam estar acompanhados de pequenos ruídos percussivos. Não soube responder a mim mesmo se aquele efeito era devido ao instrumento, ao microfone ou ao gravador. Num segundo momento, cerca de 10 anos mais tarde, me encontrava no Laboratório de Fonética da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Naquela época, programas de análise de áudio eram raros. Somente instituições como Universidades podiam ter computadores com placas de som especiais e caras como os computadores aos quais tive acesso no Laboratório de Fonética. Havendo concluído a tomada de dados para minha pesquisa sobre articulação do golpe duplo na flauta e ainda com algum tempo no laboratório, aproveitei para gravar sons com vibrato e passagens em legato. O que pude observar foi algo que imediatamente me fez recordar o estranho efeito percussivo entre notas ligadas no concerto de piccolo. Desde então, até o presente momento, se passaram mais de 15 anos. A questão principal que gera toda a investigação que ora se apresenta se concentra em aspectos ligados à acústica e a fatores sonoros com características perceptivas notáveis; fenômenos e eventos sonoros que ocorrem num muito breve espaço de tempo nos períodos transitórios do som. Isso se diz tanto em relação ao ataque2 de uma nota quando à transição entre notas ligadas. No entanto, a preocupação com tais eventos está intimamente relacionada ao aspecto perceptivo que os mesmos imprimem à execução musical. Assim sendo, a trajetória inicial da investigação destes fenômenos na atual pesquisa obedece à dedução de que o efeito ‘x’ pode ser devido à causa ‘y’. O princípio dedutivo baseado na simples percepção de causas e efeitos foi preponderante para o início da investigação. Todavia, as

1

Concerto realizado como prêmio do I Concurso para Solista da Ofes em 1987.

2

Ver Glossário, p. 196.

20

etapas sucessivas com novas pistas e observações direcionaram a pesquisa de forma a obter informações sobre o som da flauta além das encontradas nos tradicionais métodos de estudo do instrumento. Mesmo assim, é necessário saber que o presente trabalho se insere no contexto hegemônico da música como arte da performance, embora nos trilhos da acústica musical. O processo da apreensão do som envolve vários sistemas físicos e psicofísicos. Apesar de alguns fenômenos serem inerentes a certos sistemas, não é muito fácil, nem realista, determinar fronteiras de fenômenos envolvidos nas articulações sonoras musicais. Isso porque muitos deles, senão todos, caminham entre veredas dos sistemas até a definitiva percepção auditiva, que acima de tudo é individual e correlato à cultura do ouvinte. Há muito que se considerar quando se fala de fenômenos e/ou eventos presentes no som com intenção direcionada à música. A música está sujeita ao homem e, portanto, sujeita a todas as questões culturais, políticas e sociais que vigem numa determinada sociedade com toda sua história, costumes, crenças, etc. Deste modo, falar de música nos parece navegar num mar sem fim, sobretudo pela generalidade que o vocábulo ‘música’ condensa em si mesmo. Por essa razão se faz necessário ter em mente uma dimensão para o que se denomina ‘música’ num contexto tal que minúcias fazem sentido no todo. Esse contexto que ora exerce uma influência preponderante na música denomina-se ‘cultura ocidental'.3 A incidência de elementos transitórios durante o ataque de um som e na transição entre notas ligadas provavelmente terá pouca importância para a música da cultura Mucuando de Homunda Iovambo4, também poderá não fazer diferença para a cultura musical da nação Ashaninka5. Todavia não é necessário ir muito além da cultura ocidental. Muitos flautistas jazzistas assimilaram à sua técnica de articulação uma forma de ataque carregado de elementos transientes. Assim, no Jazz, na Música Popular Brasileira (MPB) ou na cultura Mucuando e Ashaninka não há as mesmas preocupações de sutilezas sonoras fruto de um preciosismo carregado de delicadeza e refinamentos artificiais que incidem sobre a cultura da música erudita ocidental. Cada cultura carrega em si características próprias com seu refinamento e sutilezas distintas, portanto, da música erudita ocidental. Por essa razão, torna3

As premissas que estruturam a denominada ‘cultura ocidental’ serão abordadas um pouco mais adiante.

4

A nação Mucuando é um povo que habita a região central de Angola num local denominado Homunda Iovambo (Montanha das Aldeias). Possuem um idioma próprio numa tradição puramente oral (TEIXEIRA, 1998).

5

O povo Ashaninka se situa geograficamente no ponto mais ocidental do Acre. Sua reserva se divide entre a Amazônia brasileira e peruana (ALGRANTI, 2005).

21

se fundamental uma delimitação contextual para que os eventos abordados nesta pesquisa não sejam considerados um total desatino. E neste ponto define-se que a pesquisa se direciona para a música no contexto da cultura da música de concerto ocidental onde o senso de beleza é identificado na precisão das ações, na sutileza do som, no equilíbrio das formas, etc. De acordo com Castro (2005), o que se estabelece como cultura ocidental e o que vem a se tornar um arcabouço hegemônico para a música erudita dentro desta cultura é uma conformação iniciada com a cultura greco-latina, mas especialmente com a cultura grega. Ser ocidental, nesse caso, diz respeito à compreensão de certos princípios que vão além de uma de-cisão geográfica. Trata-se de um modo de mundanizar o mundo a partir de valores determinados de acordo com estes princípios caracterizadores. Ainda dentro da conceituação de Castro (2000), o conjunto de pressupostos que edificam o conceito de cultura ocidental é algo impossível de ser enumerado em sua totalidade. Mas, no que diz respeito ao foco da presente pesquisa, um dos aspectos mais determinantes é a noção conceitual de mensurabilidade que está presente na cultura ocidental desde o período mítico da cultura grega no lema dos argonautas: “Navegar é preciso, viver não é preciso” (CASTRO, 2000). Bem conhecido no Brasil, seja pela poesia de Fernando Pessoa ou pela música de Caetano Veloso, com uma interpretação direcionada ao sentido existencial já que ambos compreendem o ‘preciso’ como ‘necessário’.

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d] esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.

22

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.6 (FERNANDO PESSOA. Texto da arca de inéditos).7

A leitura desse lema nessa perspectiva sugere o realizar, o criar, acima do viver, uma vez que somente viver pode não ser suficiente. Todavia, o conceito de mensurabilidade se torna bem mais nítido ao interpretar o ‘preciso’ como noção de exatidão e visto desta forma– navegar é exato, viver não – navegar e viver podem significar possibilidades completamente distintas como sugerido por Castro (2000, p. 13): A diferença entre viver e navegar-criar é fundamental para que possamos tentar compreender a dinâmica desempenhada pela medida na con-formação da Cultura Ocidental. Indistinguir viver de navegar, no lema, é optar por um em vez do outro, pela excludência entre realidade e realização.

Com efeito que a noção de mensurabilidade não é um requisito exclusivo da cultura ocidental, mesmo porque em qualquer con-formação cultural haverá um conceito de mensuração (CASTRO, 2000). Todavia, é com base nesse preceito, entre tantos outros pressupostos da cultura ocidental, que se desenvolveram muitas das premissas apresentadas na pesquisa. Este contexto hegemônico que envolve todo o senso de realidade e realização, o qual prima pela precisão com sentido de determinação de absoluto rigor, perfeição e pureza, expresso na crescente necessidade de se fazer melhor e pela necessidade de movimento na inconformidade do estático posiciona-nos frente a um mar sem fim com uma única e exclusiva determinação: navegar. Nesse sentido, somos todos argonautas.

6

7

"Navigare necesse est; vivere non est necesse" - frase de Pompeu, general romano, 106-48 aC., dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, [Plutarco, in Pompeu]. (MORENO, [s.d.]). Disponível em: http://sualingua.com.br/2009/04/29/navegar-e-preciso. Acesso 21 Jun. 2016.

23

1 DESCRIÇÃO DA PESQUISA

Quando se pretende descrever algum aspecto da sensação sonora musical cogita-se examinar o som em sua essência, tendo consciência da mescla de diversos fatores físicos e psicofísicos do som, os quais ocorrem desde a vibração de um corpo elástico à percepção auditiva. A cadeia produtiva sonora é um processo que só se completa no cérebro do ouvinte. Contudo, os sistemas envolvidos no processo da audição tornam-se pontos primordiais para qualquer discussão sobre a qualidade dos sons musicais por representar segmentos de uma variada sequência de fatores que têm seu apogeu na percepção do som e no discernimento das sonoridades esperadas por diferentes culturas musicais. De acordo com Luís Henrique: Tendo a acústica musical como objetivo o estudo, compreensão e análise dos fenômenos musicais, a música nunca deverá ser perdida de vista. Analisar e dissecar os sons isoladamente, não deverá fazer alterar a sensação única que se tem ao ouvir um trecho no seu todo (HENRIQUE, 2002, p. x).

Tendo-se em conta as leis da ressonância responsáveis pela transferência dos movimentos

vibratórios

entre

os

meios,

assim

como

os

complexos

processos

físicos/psicofísicos envolvidos desde a emissão de uma nota até o estímulo neural que interpreta tais vibrações como sensação de som, o processo completo da apreensão e percepção do som engloba três grandes e complexos sistemas: a Fonte de som; o Meio, e o Receptor (ROEDERER, 2002). - Produção do som – a fonte de som; o mecanismo de excitação; o elemento vibrante; e o ressonador; o instrumento musical com todas as características físicas e técnicas específicas. A flauta é um instrumento com um tubo único que altera suas notas ao simular mais de 30 tubos ao abrir e fechar orifícios no corpo do instrumento8 (ROEDERER, 2002). - Propagação do som – o ambiente; o meio como sistema modelador e propagador das ondas, o qual transporta e altera significativamente suas características através da reflexão, absorção e reverberação, transformando-as numa complexa rede de ondas sobrepostas (ROEDERER, 2002).

8

O funcionamento mecânico da flauta será abordado num capítulo posterior.

24

- Recepção do som – o ouvinte; a audição, que apreende todo tipo de vibração que acompanha o som musical – o som direto, primeiras reflexões, eco, interferências diversas decorrentes das reflexões das ondas no ambiente, etc. A recepção do som é um complexo sistema psicoacústico que envolve desde a captação das ondas mecânicas do meio – através do tímpano, do ouvido interno e do sistema nervoso – ao processamento das oscilações mecânicas em impulsos nervosos identificados pelo cérebro como som (ROEDERER, 2002). Além deste aspecto psicoacústico da percepção, existe ainda outro fator, que é exatamente o fator cultural que interage sobre o sistema psicoacústico e determina o modo como a música é apreendida. Esse fator cultural, com as diferentes sonoridades características de culturas musicais distintas, não deve ser ignorado, pois dele depende a identidade cultural de cada indivíduo. Em seu aspecto coletivo, essa identidade possui a peculiaridade de um arcabouço; um cabedal de conhecimentos, padrões de comportamento, crenças, costumes, etc. Tal fator ocupa um papel hegemônico no contexto social, onde a poética adquire significados próprios (CASTRO, 2000). Como mencionado por Beling, embora se considere a música como forma de expressão universal, assim como a linguagem, a música precisa ser culturalmente e socialmente construída (BELING, 2014) Capítulo 5, seção 5.3, p. 185. O estudo da acústica musical envolve todo o processo da percepção musical, a fim de estabelecer uma correlação entre os aspectos físicos da produção e propagação das ondas com os aspectos psicofísicos e neurais que envolvem a percepção do som e as sensações por ele estimuladas (HENRIQUE, 2002). Segundo Luís Henrique (2014, p. 6): A palavra som tem dois significados consoantes se considerado como fenômeno físico ou como fenômeno psicofísico. O significado físico diz respeito à fonte sonora e à propagação do som através do meio. O significado psicofísico refere-se à audição desse fenômeno, ou seja, à sensação que provoca em nós. Considerar o som como um fenômeno físico ou como uma sensação, depende do tipo de abordagem.

É importante ter em conta que a percepção do som possui aspetos fisiológicos que transcendem as ações mecânicas de variação de pressão do ar. Como observado por Roederer (2002, p. 29): “Nosso cérebro não está equipado a priori com o dispositivo operacional necessário para uma intercomparação ou medição quantitativa.”

25

Dessa forma, qualquer medição é complexa e de validade relativa, pelo fato do ‘nível subjetivo’ – o que se pode chamar de ‘intensidade musical’ –, não ser o mesmo que a ‘intensidade física’. Portanto, a magnitude da energia percebida está sujeita ao grau de percepção e sensibilidade auditiva de cada indivíduo (CANDÉ, 1983). Deste modo, durante o andamento da pesquisa e em toda a extensão do trabalho deve-se manter em mente que o som musical envolve esses três complexos sistemas. Assim, ao identificar um fenômeno acústico que ocorre em períodos transitórios do som, será conveniente também identificá-lo entre os sistemas que compõem a complexidade do processo de apreensão do som. A articulação do som na flauta se manifesta através da forma, ou a maneira, pela qual um som começa e termina, e a forma com que se dá a relação de conexão entre sons subsequentes. Assim têm-se duas formas distintas de como se processa a articulação do som: a articulação do som seguido e precedido pelo silêncio, e a articulação como transição sonora; quando intermeia uma conexão entre dois sons de frequências distintas, o legato. Pode-se considerar que a música seja uma arte elaborada a partir de duas ‘substâncias etéreas’: o som e o silêncio. O silêncio na música possui, muitas vezes, um caráter temático tão importante quanto o próprio som. Todavia, considera-se este ‘silêncio’ como ausência do som musical e não no sentido físico do termo como sinônimo de vazio ou nada (HENRIQUE, 2014). Como exemplo disso cita-se a introdução do Scherzo (2º movimento) da Sinfonia n. 9 de Beethoven, cujos compassos de pausa reforçam o caráter contemplativo do inciso temático na reverberação do ambiente.

Exemplo Musical 1.1 – Introdução do Scherzo (2º movimento) da sinfonia nº 9 em Ré menor, Op. 125 de Ludwig van Beethoven.

26

Henrique (2002) defende que o som musical, em geral, é composto por um período de som sustentado seguido e precedido por duas fases de transição: o período transiente inicial9 (Ataque) e o período transiente de extinção10 (Decaimento11). “O transiente inicial corresponde à passagem do silêncio ao som; o transiente de extinção é o período em que o som se extingue, enquanto que o período de estabilidade é o período entre os dois anteriores” (HENRIQUE, 2002, p. 171). Como forma de descrever o som de forma segmentada e didática a fim de detalhar processos e fases que ocorrem no som musical, denomina-se ‘envelope dinâmico’12 a forma do sinal de som; a variação da intensidade sonora de um som em toda sua duração; o invólucro da onda. O modelo descritivo do som musical apresentado a seguir procura estabelecer seções na forma do sinal de áudio como efeito didático; estas subdivisões serão úteis durante a pesquisa na explanação de fases do som musical. Os segmentos do envelope não são absolutos, tanto que “[…] muitos instrumentos de percussão, quer idiofones13, quer membranofones14, devido a seu grande amortecimento15 não é de se esperar que tenham um período de estabilidade, pois o decaimento do som começa logo após terminar o ataque” (HENRIQUE, 2002, p. 171).

Figura 1.1 – Representação esquemática do Envelope Dinâmico.

Fonte: Elaboração do Autor, 2014. DÓ4 (~520 Hz16) na flauta, com ataque no ponto linguodental em dinâmica forte (~ 85 dBA17 a 1m da fonte). (Seção 2.1.1, p. 58). Ver ‘período transiente inicial’, Glossário, p. 196. Ver ‘período transiente de extinção’, Glossário, p. 196. 11 Ver Glossário, p. 196. 12 Ver Glossário, p. 196. 13 Ver Glossário, p. 196. 14 Ver Glossário, p. 196. 15 Ver Glossário, p. 196. 16 Unidade de frequência no sistema internacional de unidades (SI), equivalente à frequência de um fenômeno periódico cujo período tem a duração de um segundo. 9

10

27

Segundo Vassilakis ([s.d.]), num envelope de um som de flauta identificam-se, em geral, três fases: Ataque, Sustentação e Decaimento. O modelo do envelope dinâmico não é universal ou absoluto. O que importa na presente pesquisa é a identificação dos pontos de início e fim dos segmentos do som na fase de Ataque e do Decaimento final da nota, não sendo fundamentalmente importante o envelope apresentar duas, três ou quatro fases.

1.1 ARTICULAÇÃO SILÊNCIO/SOM

A expressão ‘ataque’ aplicada à articulação do som ante ao silêncio denota uma energia articulatória necessária para alterar o estado de repouso de um sistema ao se produzir um som. O tempo de resposta do som frente ao silêncio e o Nível de Pressão Sonora (NPS)18 aplicado ao Ataque são fundamentais para a percepção. Deste modo, a articulação do som num ambiente se torna um jogo de ação e reação cujo resultado dependerá da relação entre fatores como: a resistência do meio (fator de amortecimento), a energia utilizada para impor uma transformação e o tempo decorrido na transição dos regimes (silêncio – som). O tempo decorrido durante o período transiente inicial e de extinção é determinante para a qualidade da articulação no momento em que os eventos transitórios presentes nesses momentos podem estar presentes no som por mais, ou menos, tempo. Uma articulação é mais eficiente na medida em que a fase de Ataque é mais breve e cujo pico de intensidade de som não apresenta valores extremos que caracterizam ataques acentuados. Segundo Henrique (2002), o período transiente inicial é de tal modo importante para a identificação do som musical que, se for cortado através de uma edição de um som gravado, o instrumento ficará sem uma identificação auditiva característica. Os microeventos presentes na região transiente inicial, entre o silêncio e a fase de estabilidade, estão diretamente vinculados aos modos e pontos de articulação das consoantes fonatórias 19 que, na flauta, possuem propriedades e características semelhantes. (TEIXEIRA, 2014b). 17

Unidade utilizada na medida da intensidade do som (NPS) que mais se aproximada à sensação auditiva humana. Esta medida, realizada com o filtro de ponderação ‘A’, se aproxima da sensação auditiva por corresponder à curva isofônica de 40 fones (desenfatizando baixas frequências). Ver Glossário, p. 196. 18

19

Medida para determinar o grau de potência de uma onda sonora.

Na fonética o ponto de articulação é a zona onde um determinado articulador móvel toca em outro articulador fixo ou móvel para alterar a corrente de ar e produzir diferentes fonemas consonantais. A articulação do som

28

Os modos de articulação do som na flauta têm a prerrogativa de alterar a qualidade do ataque, fazendo com que a região transiente seja mais, ou menos suave; mais, ou menos breve. Dependendo da precisão e energia utilizada no momento da oclusão e do modo e/ou ponto de articulação empregado. A figura a seguir apresenta a nota Dó4 gravada com três diferentes formas de articulação: Linguodental20 /t/, em vermelho (Seção 2.1.1, p. 58); velar21 /k/, em azul (Seção 2.1.2, p. 59); e sem ataque, na cor verde (Seção 2.1.3, p. 60). Estas articulações foram realizadas sem exageros articulatórios ou acentos a fim de deixar os ataques semelhantes; da forma como se trabalha naturalmente na flauta. O gráfico procura apenas comparar o Nível de Pressão Sonora (NPS) no momento dos diferentes ataques realizados em dois bocais de flauta e o tempo decorrido em cada forma de articulação. Gráfico 1.1 – Variação de NPS (Nível de Pressão Sonora X Tempo) em três de ataques na flauta em dois diferentes bocais.

Fonte: Elaboração do Autor, 2015. (CD Exemplos 1.1; 1.2). O quadro superior apresenta as articulações com um bocal BURKART C4; o inferior, articulações com o bocal BARLASSINA & CASOLI. Nível de Pressão Sonora (NPS) com variação entre 20 – 90 dB22. Cada segmento horizontal representa um tempo de 10 milissegundos (ms). nos instrumentos de sopro é produzida de forma semelhante, ao se pronunciar no instrumento um fone consonantal. As oclusões da corrente de ar variam de 3 a 50 ms dependendo dos articuladores acionados no processo (CALLOU; LEITE, 1995). 20 Ver Glossário, p. 196. 21 Ver Glossário, p. 196. 22 Unidade utilizada na medida da intensidade do som (NPS), correspondente à décima parte do Bel. Ver Glossário, p. 196.

29

Pode-se supor que para cada flautista, além de cada tipo de bocal de flauta, haverá uma configuração diferente da apresentada aqui, uma pequena variação que se configura como uma assinatura individual do flautista.

1.2 ARTICULAÇÃO SOM/SOM

O legato é uma das principais ferramentas de expressividade do flautista. A importância do legato está diretamente associada à boa expressividade e ao fluxo melódico que dá sentido à frase musical (CHEW, 2001). Articulação e fraseado representam algumas das principais maneiras pelas quais os músicos enquanto executantes e, consequentemente os ouvintes, podem criar "sentido" entre um fluxo de som de outra forma sonora indiscriminada, e convertem o tempo cronológico em tempo musical. Na música tonal, no sentido mais estrito, eles são (junto com a tonalidade e a organização temática) dois dos principais elementos que contribuem para a diversidade dentro da unidade orgânica; são os elementos em que o executante tem responsabilidade mais direta 23 (CHEW, 2001 – tradução de Antônio Cerdeira).

A qualidade dos sons ligados é algo altamente desejável na prática da música erudita. O fluxo de som entre notas ligadas está diretamente relacionado à modelagem da frase e a expressividade musical (LOUREIRO, et al., 2009). Por esta razão o estudo das transições sonoras na flauta através de um prisma técnico poderá revelar importantes considerações para a prática interpretativa. Porque detectar o ponto e/ou um fenômeno que resulta na percepção de um bom ou mal legato pode ser um passo em direção a obter respostas para a questão do bom fluxo da frase musical. O argumento central da presente pesquisa teve início através da observação de gráficos de intervalos entre notas ligadas quando do desenvolvimento da pesquisa para dissertação de mestrado sobre a articulação do golpe duplo na flauta intitulada ‘O legado do Verbo no império de Chrónos24’ (TEIXEIRA, 1998). Desde então, a observação e constatação de elementos transientes em meio às articulações do som na flauta demonstraram-se dignos de 23

Articulation and phrasing represent some of the chief ways in which performers, and consequently listeners, may make ‘sense’ of a flux of otherwise undifferentiated sound, and convert clock time into musical time. In tonal music in the narrower sense, they are (with tonality and thematic organization) two of the chief elements contributing to diversity within organic unity; and they are the elements for which the performer bears the most direct responsibility (CHEW, 2001).

24

Ver Glossário, p. 196.

30

uma investigação mais apurada por envolver possíveis fenômenos que atuam no ponto de junção entre notas ligadas na flauta. Na época, a constatação de transientes durante uma passagem em legato chamou atenção, mas era um objeto a ser investigado posteriormente já que o foco do estudo em desenvolvimento se concentrava na questão do ataque no contexto do golpe-duplo. A presente pesquisa possui, portanto, um argumento de mais de 15 anos. Assim, não se trata de uma pesquisa isolada ou elaborada em alguns meses; mas de um prolongamento de uma investigação antiga e que pretende, neste momento, um aprofundamento nas causas e efeitos dos regimes presentes nas conexões do som da flauta. A síntese da presente pesquisa procura investigar e identificar fenômenos acústicos presentes no instante da articulação do som na flauta e como tais fenômenos se comportam mediante as conexões sonoras. O fenômeno musical geral exerce um papel hegemônico sobre fenômenos acústicos presentes em suas microestruturas, mas mantém uma necessária correlação de dependência em função de uma finalidade maior. Sobretudo por esta ‘correlação de dependência’ e pelo forte caráter perceptivo de fenômenos presentes nas microestruturas sonoras que se considera legítimo e justificável o conhecimento e a investigação de fatores parciais que compõem a música. Todavia, ao se tratar de elementos inseridos no nível mais íntimo do som, os fatores trabalhados na presente pesquisa podem ser considerados em outras manifestações culturais e sociais da música. A shakuhachi25, a zamponha26, as flautas nasais utilizadas por comunidades tribais do Alto Xingu, por exemplo, mesmo sendo instrumentos completamente diferentes da flauta transversa ocidental produzirão sons com características comuns à flauta transversa de concerto: sons harmônicos, transientes iniciais e de extinção, etc. Desta forma, a questão central da presente pesquisa se fundamenta no discurso técnico, mas tem sua finalidade na percepção musical. Por essa razão, este assunto deve ser tratado e fundamentado no âmbito de um curso voltado para a interpretação musical, onde a percepção musical exerce primazia sobre fenômenos acústicos e onde fenômenos acústicos são vistos e estudados com vista a obter um melhor desempenho; diferente do foco convergente que a acústica musical atribui ao som.

1.3 DO PROBLEMA

25 26

Ver Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196.

31

A presença de transientes de ataque27 na fase inicial do som já é esperada, visto que tais eventos consolidam a sensação tímbrica do instrumento (HENRIQUE, 2002). Todavia, as notas ligadas se conectam entre si durante a fase de estabilidade do envelope. Mesmo assim, foi detectada a presença de transientes nas emendas das notas, como demonstrado a seguir:28 Figura 1.2 – Transição dos sons Si4– Sib4 –Dó5 em legato.

Fonte: Elaboração do Autor, 1998. A presença de transientes em passagens entre notas ligadas chamou atenção para possíveis fenômenos atuantes nas transições sonoras.

27

Conjunto de sons transitórios que ocorrem no início do som. Os sons transientes não fazem parte necessariamente do espectro harmônico do som fundamental a ser tocado, mas se apresentam principalmente no instante entre o ataque e a formação do timbre, e no Decaimento final do som. (CAMPOLINA, 2012, p. 16).

28

Apesar do sistema proposto pela Acoustical Society of America (ASA) atribuir o índice’0’ ao Dó mais grave (f =16.352 Hz), e o índice 4 para o Dó central (f =264 Hz); mesmo sendo amplamente aceito e se tornado cada vez mais frequente nos livros de acústica, na presente pesquisa adota-se o sistema francês que atribui o índice 3 ao Dó central, por dois motivos: 1) o som da flauta se localiza numa região de frequências médias para agudas, tendo o Si mais grave f =247.5 Hz e o Ré mais agudo (f =2376 Hz), fora da oitava ‘-1’ no sistema francês; 2) ser o sistema adotado no Brasil (HENRIQUE, 2002); (HELMHOLTZ, 1954). O Sistema científico denomina as notas através de letras A, B, C, D, E, etc.; diferente do sistema adotado no Brasil que indica as notas por seus devidos nomes: Lá, Si, Dó, Ré, Mi, etc. Apesar desta diferença na representação dos nomes das notas, para efeito de praticidade alguns gráficos e/ou figuras apresentados ao longo da tese apresentam a denominação por letras, todavia, no texto será adotado o modo como se denomina as notas e a numeração da oitava no Brasil. (Ver ANEXO E, p. 216).

32

Durante o legato, o som da nota seguinte não apresenta as mesmas características de envelope de um som articulado entre pausas, pois a energia que faz vibrar o ar na flauta não é interrompida nem modificada; o sopro se mantém constante. Mas a forma da onda se assemelha à de envelopes de sons separados, o que denota uma interrupção e/ou alguma interferência no fluxo do som. Os sons deveriam se ligar diretamente na fase de estabilidade. Entretanto, algo ocorre neste instante…

Figura 1.3 – 5J (Dó5 – Sol5) na posição de Dó4.

Fonte: Elaboração do Autor, 2015.

(CD Exemplo 1.3). Gravação realizada na cabine de Fonoaudiologia da UFBA em 2013 como verificação de hipótese. No espectrograma, quadro superior, nota-se a presença de transientes durante a passagem do intervalo. No quadro central, o envelope dos sons no momento do legato se assemelha com envelopes de notas separadas; uma transição sonora perceptivelmente ruim para um som ligado. O quadro inferior demonstra uma brusca variação do NPS durante a transição.

33

Figura 1.4 – Transição das notas Dó5-Sol5 na posição harmônica (Dó4).

Fonte: Elaboração do Autor, 2015. À esquerda, fase de estabilidade da nota Dó5; à direita, fase de estabilidade da nota Sol5. No centro, a transição das notas.

A queda do NPS no momento da transição entre notas ligadas se mostra frequente, o que em muitos casos pode produzir uma sensação perceptiva de notas levemente separadas. Quais fenômenos atuam no momento dessas transições, e que fatores se mostram mais, ou menos, sensíveis à melhor percepção de fluxo entre as notas?

1.4 HIPÓTESES

A presença de elementos transientes na articulação do som da flauta – tanto nas articulações precedidas e seguidas de pausas como no legato – denotam problemas de estabilidade do som nessa região, comprometendo a qualidade das transições (Seção 1.3, p. 31). Seja a qualidade do instrumento (LOUREIRO 2009); a apresentação mais ou menos imediata das componentes do som no momento do ataque (Seção 2.3.2, p. 79); o sistema mecânico do instrumento (Seção 2.3, p. 74); ou o ambiente (Seção 2.4.1, p. 91); há grandes evidências de fatores interferentes no momento da transição que operam na percepção auditiva do legato, de forma a diminuir a qualidade dos sons ligados na flauta.

34

1.5 OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é identificar fenômenos ocorrentes na modulação dos regimes transitórios que modificam as propriedades perceptivas do som na flauta transversa. Os principais aspectos observados: a variação de intensidade e a presença de elementos transientes parecem gerar alguma descontinuidade no som no momento da ligação entre as notas. Embora essa observação tenha ocorrido no campo visual por intermédio das imagens produzidas por programas de análise de som, a pesquisa tem como objetivo focal a relação entre fenômenos acústicos e a sensação de fluxo de som no legato.

1.6 METODOLOGIA

Foram investigados e avaliados através de programas como AUDACITY29, SONIC VISUALISER30, PRAAT31, além de mecanismos de processamento e análise de áudio, diversas transições sonoras com objetivo de apurar os fenômenos ocorrentes nas regiões transientes. Especificamente para esta pesquisa foi elaborado um dispositivo ótico/eletrônico para atuar paralelamente à captação de áudio. O dispositivo fotoelétrico astável32 auxiliou na verificação dos regimes transitórios no decurso do fechamento e abertura das chaves. Assim, os intervalos ligados serão analisados de forma mais completa do que somente pela investigação do áudio.

29

O AUDACITY 2.0.3 é um editor e gravador de áudio que possui recursos avançados que permitem seu uso para atividades de diversos gêneros. É um programa livre desenvolvido por uma equipe de programadores voluntários de todo o mundo, disponível para download gratuito em: http://audacity.sourceforge.net/ (ASH et al., [s.d.]).

30

SONIC VISUALISER é um programa para exploração, observação e análise de dados de som desenvolvido por Chris CANAAN pela Queen Mary Universityof London, disponível para download gratuito em: http://www.sonicvisualiser.org/. (CANAAN, [s.d.]).

31

O PRAAT é um software utilizado para análise e síntese do som da fala desenvolvido por Paul Boersma e David WEENINK, do Institute of Phonetic Sciences, da University of Amsterdam. Sua principal funcionalidade é a análise da onda de som, como frequência, comprimento de onda, intensidade, etc. O programa pode ser baixado gratuitamente pela internet através do site oficial: www.praat.org. (BOERSMA; WEENINK, [s.d.]).

32

Ver Glossário, p. 196.

35

O dispositivo fotossensível, um oscilador astável, é composto de um circuito eletrônico elaborado sobre uma plataforma Atari Punk Console (APC)33 - adaptada, que funciona como um oscilador de ondas quadradas, idealizado pelos professores Dr. Leonardo Fuks e Dr. Guto Nóbrega, desenvolvido pela equipe do Núcleo de Artes e Novos Organismos da UFRJ (Nano)

34

e aprimorado pelo engenheiro eletrônico Jalzério Figueira, responsável

pelo projeto final. Esse dispositivo, em sincronia com o som da flauta, permitirá a análise da transição de um intervalo durante o movimento de abertura e fechamento da chave. Foi realizado um teste piloto para ajustes e verificação do funcionamento do dispositivo antes do procedimento final de montagem e soldas do circuito. O intervalo Dó4-Si3 – apresentado a seguir – foi gravado na própria sala do Nano sujeito, portanto, a reverberações35 e interferências pela exposição à luz do ambiente. Os sons foram gravados em canais de áudio da seguinte forma: na faixa 1, o som da flauta captado por um microfone; na faixa 2, o dispositivo ainda em fase de teste sincronizado ao som da flauta. Através da análise dos sinais simultâneos pode-se observar algumas variáveis no Pitch36 durante estágios de transição do mecanismo de fechamento do orifício da flauta; entre totalmente aberto e completamente fechado. A transição do intervalo foi aferida em 47 ms, enquanto que o movimento completo de deslocamento da chave Si, 281 ms.

33

Circuito popular que funciona como um sintetizador de som e que equipou o popular videogame ATARI dos anos 1980.

34

Setor de pesquisa vinculado ao Núcleo laboratorial da Escola de Belas Artes da UFRJ para estudos e pesquisas em artes, hibridação e biotelemática. A equipe do Nano é formado por: Prof. Guto Nóbrega, Aroldo Mascarenhas – Engenharia de Telecomunicações na UFF; Leonardo Nunes – Engenharia Eletrônica na UFRJ e Pedro Alvarez – Desenho Industrial na UFRJ.

35

Ver Glossário, p. 196.

36

Ver Glossário, p. 196.

36

Figura 1.5 – Fechamento da chave Si3.

Fonte: Elaboração do Autor, 2015.

Na parte superior, som do intervalo Dó4-Si3 com tempo de transição de 47 ms. Na parte inferior, a representação da variação de luz causada pelo eclipsamento do fotossensor através do fechamento da chave Si. Intervalo gravado através do programa AUDACITY 2.0.5; as análises foram realizadas no programa PRAAT.

Através do oscilador astável, foi possível identificar tanto o princípio quanto o fim do movimento da chave37. A instabilidade demonstrada no sinal38 produzido pelo dispositivo torna difícil uma observação mais criteriosa. Mas, no início do processo de fechamento da

37

Em todo o processo de elaboração do dispositivo, a equipe do NANO teve à disposição uma flauta Emerson, para verificar as medidas na elaboração do projeto. A altura de curso da chave Si nesta flauta é de 3,5 mm.

38

Ver ‘sinal de som’, Glossário, p. 196.

37

chave se observa uma imediata variação na frequência39 gerada pelo dispositivo. Esta variação se deve ao sombreamento do fotossensor40. Finalmente, com a chave totalmente fechada e o fotossensor inteiramente na sombra, o dispositivo acusa uma estabilização da frequência. Observa-se ainda, que o fechamento da chave ocorre praticamente no primeiro terço do tempo total estimado do movimento da chave Si, seguido de um longo período de acomodação em que a frequência varia muito pouco. Desta forma verifica-se que o tempo total de fechamento da chave possui velocidades variáveis entre os estágios de fechamento e acomodação. Problemas e soluções que indicaram uma mudança de compreensão, direção e planejamento original da pesquisa ocorreram durante todo o processo: desde a elaboração do dispositivo ótico à Coleta de Dados; além de situações que só foram percebidas na análise dos dados. Estas questões são abordadas no ANEXO A, p. 204 (Oscilador Ótico Astável – Histórico, Descrição, Desenvolvimento do Dispositivo e Relatório de Ocorrências; e no Capítulo 4, (Seção 4.5, p. 166).

1.7 PESQUISA BIBLIOGRÁFICA

Foi realizada uma pesquisa bibliográfica em busca de trabalhos – livros, artigos, teses e/ou dissertações – em importantes centros de pesquisa e bibliotecas no Brasil. A Biblioteca Nacional de Música (MEC) no Rio de Janeiro; a Biblioteca da Escola de Música da UFRJ; a Biblioteca da Escola de Música da UFBA, e ainda no portal de periódicos da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes). O foco deste levantamento bibliográfico se concentrou em termos como: flauta, legato e transições sonoras. Em relação ao legato, métodos de flauta e livros direcionados a flautistas e músicos em geral, proporcionaram informações com características puramente empíricas, tendo como finalidade o pragmatismo para uma boa execução musical. Os dicionários de música demonstraram mais rigor nas informações, mesmo os mais antigos como o Dictionnaire de Musique de Hugo Riemann (RIEMANN; HUMBERT, 1931). Os artigos do The New Grove Dictionary of Music and Musicians, bastante atualizados foram bastante úteis em várias etapas da pesquisa. Quanto às teses de doutorado e/ou dissertações de mestrado, uma ou outra serviu a algum propósito nesta pesquisa, ainda que em parte.

39 40

Ver Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196.

38

O grande conflito bibliográfico entre as obras literárias de música, métodos de flauta e dicionários específicos da área de música com a temática desta pesquisa se instaura no propósito do conteúdo direcionado principalmente ao desempenho: como alcançar determinada técnica; como desenvolver habilidades, etc. Em oposição ao discurso mais pragmático do flautista, que está preocupado em produzir um som de “qualidade”, o cientista está frequentemente interessado em: (1) identificar os parâmetros físicos relevantes na flauta, (2) determinar as relações causais estabelecidas entre esses parâmetros; e (3) testar experimentalmente os modelos teóricos propostos (BARBOSA JR, 2013, p. 5).

A limitação das informações técnicas verificadas bibliograficamente é, em parte, ocasionada pela época e forma com que os métodos foram produzidos. Como exemplo, o método de flauta mais popular hoje, o Méthode Complète de Flûte de Taffanel & Gaubert (1958), escrito a cerca de cem anos. Isto se deve ao fato do conteúdo do método ser eficiente a quem e a que se destina. Tais preciosidades da literatura musical não se ocupam em explicar ou definir o que é um som de flauta ou o que acontece no ato da articulação e/ou na transição entre notas ligadas; senão como tocar bem. Mesmo livros mais atuais não se preocupam em demasia com os detalhes técnicos que as novas ferramentas tecnológicas da informática proporcionam ao público em geral no período presente. Entretanto, com a publicação de ‘The Vibrato: with particular consideration given to the situation of the flutist’ de Jochen Gärtner em 1973 (ano da primeira edição em língua alemã), os rumos da pesquisa musical começam a demonstrar novos interesses (GÄRTNER, 1981). Com a obra de Roger Mather, ‘The art of playing the flute’ com copyright de 1980 (MATHER, 2011), esses interesses parecem tomar um rumo mais técnico quando o conteúdo se ocupa de detalhes como o questionamento da velocidade de acionamento das chaves, embora sem experimentos que possam mensurar cientificamente os fatos, mas a obra sinaliza um princípio de koinonía41 entre o fazer, o como fazer e o que ocorre quando se faz. Ainda em outro exemplo; com copyright de 1986, Pierre-Yves Artaud traz em seu trabalho, ‘La flûte’, sonogramas42 quando se refere ao vibrato e sons percussivos das chaves; demonstra ainda a preocupação na explicação de alguns fatos relativos à acústica de tubos; ondas estacionárias e a fórmula de Bernoulli quando situa a flauta entre os sistemas aberto/aberto e fechado/aberto (ARTAUD, 1991). Essas obras, entre outras, são prenúncios de

41

Termo grego comumente traduzido como ‘comunhão’(CHAMPLIN; BENTES, 1995).

39

uma nova abordagem no ensino da flauta, onde o conhecimento empírico e a experimentação fundamentada nos recursos tecnológicos disponíveis se unem na construção de um novo paradigma no estudo musical. Em relação às ‘transições sonoras’, só se obteve algum resultado quando a pesquisa bibliográfica se expandiu para a área da engenharia acústica. Desta forma, as obras mais significativas no constructo deste tema foram os livros de acústica musical dos quais se destacam os trabalhos de Luís Henrique (HENRIQUE, 2002) e de Juan Roederer (ROEDERER, 2002) que muito contribuíram na compreensão de fatos e fatores que consolidam o embasamento teórico da pesquisa.

1.8 COLETA DE DADOS

Durante a evolução da pesquisa, foi necessária a realização de quatro períodos de gravações a fim de obter informações para questões que se manifestavam naturalmente com o desenvolvimento gradativo e progressivo da pesquisa. Assim, as gravações que caracterizaram a coleta de dados passam a ser descritas de acordo com os quesitos técnicos com que foram realizadas, objetivos e prioridades:

1.8.1 Gravação UFBA

No estágio inicial da pesquisa, foi necessário realizar uma gravação num ambiente o mais controlado possível a fim de ratificar algumas hipóteses iniciais e produzir material para estudo de causas e efeitos. A Cabine de Audiometria da Faculdade de Fonoaudiologia da UFBA foi o local mais adequado para esta finalidade.

42

Ver Glossário, p. 196.

40

Figura 1.6 – Roteiro de gravação. (CD Exemplo 1.4).

Com o acompanhamento da Profª Drª Maria Lúcia Vaz Masson a gravação foi realizada por intermédio dos seguintes programas e equipamentos:

FLAUTA .016” Burkart 998 Silver flute #563; A=442; B foot joint; Inline-G; Straubinger pads; .016” Burkart 998 Silver head joint #2318, C4 style. - CONFIGURAÇÃO DO COMPUTADOR AMD ATHLAN II X2250 Processador 2.99 GHz 1.75 GB de RAM - CONFIGURAÇÃO DE GRAVAÇÃO 2.0 ms Faixa de 80 Hz a 5512 Hz Taxa 11025 Hz Microfone direcional posicionado a 20cm

41

- RUÍDO DE FUNDO43 19dB.

1.8.2 Gravação Volta Redonda

Com o principal objetivo de conhecer os diversos tipos de legato realizados por diferentes instrumentos e o tempo de Decaimento do som nesses instrumentos, esta etapa da Coleta de Dados, foi realizada na Sala de Ensaios da Orquestra de Cordas de Volta Redonda, em Volta Redonda – RJ. A acústica da sala é relativamente seca e o Ruído de Fundo do ambiente mostrou uma variação entre 27 dB com picos de até 39 dB. Para esta gravação, foi utilizado o gravador digital ‘ZOOM H1’. Os instrumentos se posicionaram numa mesma distância do microfone, ~ 0,5m, mantendo-se, também, a mesma posição espacial dos instrumentos e gravador em relação à sala. A decisão em se gravar com todos estes instrumentos foi tomada primeiramente para se conhecer um pouco mais dos instrumentos: as diferentes formas com que os instrumentos iniciam o som, o modo de sustentação das notas, o decaimento sonoro de cada instrumento e como se processam os intervalos entre notas ligadas. Com base nestes sons foram realizadas análises úteis para a continuidade do estudo sobre o legato que será abordado num capítulo posterior. FLAUTA .016” Burkart 998 Silver flute #563; A=442; B foot joint; Inline-G; Straubinger pads; .016” Burkart 998 Silver head joint #2318, C4 style. GRAVADOR ZOOM H1 Gravação 96 kHz/ 16 bits Microfone posicionado a 80 cm.

43

Ver Glossário, p. 196.

42

RUÍDO DE FUNDO 39 dB

Roteiro de gravação:

Violino 1. Decaimento - Pizzicatto; arco 2. Legato 2.1. Cordas soltas 2.2. Corda solta para corda presa – um exemplo em cada corda 2.3. Portato44 – um exemplo para cada corda

Trombone 1. Acionamento da válvula 2. Legato por tensão labial e pressão do ar – série harmônica 1ª posição 3. Legato comum – utilizando a língua 4. O mesmo exemplo anterior – sem a língua (glissando45) 5. Ação inversa – intervalo ascendente para um movimento contrário da vara

Piano 1. Tempo de Decaimento – nota Lá2 com pedal acionado até o som se dissipar 2. Tempo de Decaimento – nota Lá2 sem pedal (mantendo a tecla pressionada) 3. Tempo de Decaimento – Interrupção do pedal de Sustain 4. Legato – Lá2-Mi3; Lá2-Sib2; Lá2-Ré#3; Lá2-Lá3

Voz 1. Articulação na fala – sílaba linguodental /te/; sílaba velar /ke/; vogal /e/ 2. Decaimento – Nota 3. Vocalise – um intervalo; frase com graus conjuntos e disjuntos 44 45

Ver Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196.

43

Flauta 1. Articulação – Dó4 com articulação /t/; /k/; /ø/ 2. Decaimento – nota Dó4 3. Ruído de chaves 3.1. Sol normal e slap key 3.2. Intervalo Lá3-Mib3 normal e slap key 4. Legato 4.1. Mesmo tubo – variação de pressão e velocidade do ar Dó3-Dó4; Lá3-Lá4 4.2. Tubo conjunto Dó4-Si3

1.8.3 Gravação Friburgo

Com objetivo de se manter estáveis todas as variáveis que poderiam afetar a análise e comparação de dados, como microfonação, reverberação, iluminação – que interfere no fotossensor do dispositivo –, a gravação realizada no MIDSTUDIO em Friburgo tinha como principal objetivo a coleta de dados com o oscilador astável. A sala de gravação do MIDSTUDIO possui uma característica acústica bastante seca, com Ruído de Fundo de 19 dB. O microfone utilizado, posicionado a 40 cm da flauta, foi um microfone direcional condensador46 com característica de captação supercardióide47. Assistiram a gravação os técnicos: Tiquinho Santos e José Antônio S. Noronha (Cebolinha) e Nina Oliveira Teixeira como assistente de estúdio. No momento em que as luzes do estúdio foram apagadas para iniciar a gravação com o dispositivo astável, verificou-se que a baixa iluminação do Light Emitting Diode (LED) gerava uma frequência muito baixa no sinal (entre 20 - 60 Hz), o que dificultaria a análise do som. Mediante esta constatação tomou-se a decisão de iluminar o fotossensor com uma fonte de luz externa e direcionada, o que solucionou a questão da frequência do sinal (ver ANEXO A, Seção 1.1, p. 208; ver também Capítulo 4, Seção 4.6, p. 175).

46 47

Ver ‘microfone condensador’, Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196.

44

- ESPECIFICAÇÕES TÉCNICAS: FLAUTA .016” Burkart 998 Silver flute #563; A=442; B foot joint; Inline-G; Straubinger pads; .016” Burkart 998 Silver head joint #2318, C4 style.

MICROFONE SCHOEPS Modelo CMC5 Distância da flauta: 40 cm

PRÉ-AMPLIFICADOR DE MICROFONE

CONVERSOR ANALÓGICO DIGITAL SSL FOCUSRITE Alpha Link modelo ISA220

SOFTWARE DE GRAVAÇÃO PRO TOOLS HD-10

RUÍDO DE FUNDO 19dB

Roteiro de gravação: - Legato - Mesmo tubo - Tubos conjuntos - 5J: Tubos disjuntos

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- Dispositivo fotoelétrico ( f, p ) - Dó4-Si3 - Dó4-Si3 movimento lento - Dó4-Si3 Louré48 - Dó4-Sol4 - Dó5-Si4 - Dó5-Si4 movimento lento - Dó5-Si4 Louré - Dó5-Sol5

1.8.4 Gravação Inmetro

Nesta etapa da Coleta de material para análise de dados, o objetivo principal foi conhecer o som direto49 da flauta com a certeza de não captar nenhuma interferência das reflexões do som que ocorrem em ambientes fechados. Esta gravação foi realizada na Câmara Anecoica50 do Inmetro - Divisão de Acústica e Vibrações (Diavi) no dia 23 mar 2016, sob supervisão do Prof. Dr. Leonardo Fuks.

- ESPECIFICAÇÕES TÉCNICAS: FLAUTA .016” Burkart 998 Silver flute #563; A=442; B foot joint; Inline-G; Straubinger pads; .016” Burkart 998 Silver head joint #2318, C4 style.

GRAVADOR Gravador ZOOM H4 - Distância da flauta: 60 cm

48

Ver Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196. 50 Ver ‘anecoica’; Glossário, p. 196. 49

46

RUÍDO DE FUNDO 17 dB Roteiro de gravação: - Decaimento do Som - Sem uso da língua: pp, mf, ff - Com língua: pp, mf, ff - Sons intermitentes

- Legato - Mesmo tubo - Tubos conjuntos - Tubos disjuntos

1.9 ANÁLISE DE DADOS

De posse dos arquivos e dados, foram realizadas análises através dos programas PRAAT, SONIC VISUALISER e AUDACITY, com o objetivo de se estabelecer elementos comparativos que proporcionassem não somente a observação de fenômenos e ocorrências em meio à região transiente da articulação Som/Som e Som/Silêncio, mas também de sua relação com a sensibilidade perceptiva de fluxo sonoro. - Articulação fisiológica, Capítulo 2, seção 2.1, p. 56. - Velocidade de fechamento e abertura das chaves, Capítulo 2, seção 2.3.1, p. 78 - Ruído de chaves, Capítulo 2, seção 2.3.2, p. 79 - Tempo de decaimento do som da flauta, Capítulo 3, seção 3.2, p. 105 - Interrupção de língua, Capítulo 3, seção 3.2.2, p. 111 - Formas de legato, Capítulo 4, seção 4.1.1, p. 142 - O legato puro da flauta, Capítulo 4, seção 4.2, p. 151

47

- O efeito de salto51, Capítulo 4, seção 4.3.1.1, p. 161 - Dispositivo oscilador astável, Capítulo 4, seção 4.5, p. 166 - Da não-linearidade52 do segmento transitório no legato, Capítulo 5, seção 5.1.3, p.179

1.10 ORGANIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO

O registro das atividades, bem como a organização das informações e etapas previstas, e ainda fatos ocorrentes durante a pesquisa, foram agrupados e fracionados em cinco capítulos, os quais são descritos a seguir:

Capítulo 1 – Descrição e Histórico da Pesquisa.

Descrição da pesquisa passo a passo, onde é exposto: o problema (Seção 1.3, p. 31), a hipótese (Seção 1.4, p. 33), o objetivo (Seção 1.5, p. 34) e a metodologia (Seção 1.6, p. 34) utilizada na condução da pesquisa.

Capítulo 2 – Da Articulação.

Texto sobre a articulação do som na flauta em quatro abordagens distintas: - Articulação fisiológica (Seção 2.1, p. 56). A articulação considerada pelo ponto de vista fisiológico da execução musical. O trabalho dos articuladores e dos órgãos do aparelho fonador na articulação do som. Comparação dos pontos de articulação entre os sons da fala com os sons articulados na flauta. - Articulação fraseológica musical (Seção 2.2, p. 68). O aspecto fraseológico da escrita da articulação na música. A indicação escrita na partitura de como articular um som e seu efeito em ambientes muito ou pouco reverberantes.

51 52

Ver Glossário, p. 196. Ver ‘sistema não-linear’, Glossário, p. 196.

48

- Articulação mecânica (Seção 2.3, p. 74). O sistema Böhm e o abrupto câmbio de tubos da flauta moderna; investigação sobre a possível interferência de sons do mecanismo na passagem entre sons ligados. - Articulação acústica (Seção 2.4, p. 87). Abordagem acústica da articulação no ponto de vista do movimento ondulatório do meio. Descrição de elementos que poderão se caracterizar como interferentes no processo do legato, tais quais: sons transientes, efeitos da ambiência, interferências de ondas e aspectos do timbre. O objetivo da abordagem desses pontos está no reconhecimento de fatores diversos que podem influir na qualidade perceptiva das articulações, principalmente nas regiões transitórias.

Capítulo 3 – Descritores de Articulação

Entre a abordagem física e psicofísica do som, o capítulo apresenta a descrição segmentada da região transiente, tanto na transição Silêncio/Som, como na região de transição Som/Som. Baseado nas pesquisas de Maestre & Gómez e também em Loureiro são propostos índices e/ou indicadores de fluxo como descritores de articulação. Entretanto, o principal veio deste articulus se direciona para a descrição e delimitação dos segmentos no envelope dinâmico na transição entre notas ligadas (Seção 3.3.4, p. 122).

Capítulo 4 – Do Legato

O texto relaciona a Percepção do Som X Fenômeno físico ao abordar as transições sonoras na flauta sob dois aspectos: o legato como se percebe (Seção 4.1, p. 141) e o legato que a flauta produz de fato (Seção 4.2, p. 151), apresentando análises sonoras dos intervalos através dos programas Sonic Visualiser, Praat, e Audacity a fim de identificar e reconhecer fenômenos e/ou problemas presentes nas transições.

49

A questão central da presente tese é tratada neste capítulo onde são analisados diferentes tipos e formas de se obter sons ligados: legato por sobreposição dos sons (Seção 4.1.1.1, p. 143); legato por substituição imediata nos cordofones53 (Seção 4.1.1.2, p. 144); legato por substituição imediata nos aerofones54 (Seção 4.1.1.3, p. 146); legato por condução (Seção 4.1.1.4, p. 146); legato por variação de tensão (Seção 4.1.1.5, p. 147); legato híbrido dos metais (Seção 4.1.1.6, p. 148) e legato por controle de pressão do ar na flauta (Seção 4.1.1.7, p. 149). Esta seção da tese enfoca ainda os tipos de sons ligados na flauta; analisando, com a ajuda do dispositivo astável e dos programas de análise de áudio, ocorrências de diversos fatores originários de sistemas distintos e correlatos que operam durante a transição de notas ligadas. Com o dispositivo fotoelétrico se procura detectar elementos presentes nos regimes transitórios através da correlação e associação de duas distintas abordagens articulatórias: a articulação sonora e a articulação mecânica. Os fatores descritos no Capítulo 2 são experimentados a fim de se determinar o efeito consequente proveniente de cada um dos eventos estudados.

Capítulo 5 – Conclusão e Considerações finais

Apresentação dos resultados das análises e considerações finais, onde se procura estabelecer uma relação entre o contexto hegemônico do discurso técnico com a dimensão poética do texto musical.

53 54

Ver Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196.

50

2 DA ARTICULAÇÃO

O vocábulo da língua portuguesa ‘articulação’ tem origem no termo latino artūs, uum; masc. pl. A forma no singular não é empregada, os exemplos são extremamente raros e restritos ao mal latim (ERNOUT; MEILLET, 1951). O sentido e etimologia da palavra são indicados por Sextus Pompeius Festus

55

em sua obra ‘De Verborum Significatione’: “Os

membros do corpo são denominados do grego, o que eles dizem αρθραν ou são chamados artus porque membros se encaixam em membros”

56

(FESTUS et al., 1839 – tradução de

Maria Lucilia Ruy). Artūs é muitas vezes sinônimo para membrum e sua relação com o termo ‘articulação’ tem origem nos membros do corpo, que são ligados e articulados entre si. No sentido próprio, designa os nós das árvores e junções dos ossos. Numa escala menor, o diminutivo articulus possui significado semelhante a pequenas junções ou conexões dos ossos dos dedos (FARIAS, 1962).

Mas, graças ao sentido de junção, conexão, etc., o

vocábulo se ramifica para diversas áreas. Na gramática e retórica, a palavra toma sentido de ‘divisão, artigo gramatical, conjectura, articulação, etc’. O vocábulo latino abrange ainda outras aplicações com sentido figurado como na distinção temporal onde o termo ‘articulus temporis’ designa o momento preciso onde se faz a junção entre dois acontecimentos (ERNOUT; MEILLET, 1951). A ideia de transição sugerida pela palavra articulus unida ao sentido de fragmentação cronológica do Χρόνος

57

(Chrónos) grego – que empresta sentido ao ‘temporis’ latino –

denota uma síntese de sentido e interesse da pesquisa nos segmentos e fenômenos presentes na transição das notas.

55

Sextus Pompeius Festus, gramático romano do fim do sec. II d.C. co-autor de ‘De verborum significatione quae supersunt cum Pauli epitome’ (FESTUS et al., 1839).

56

Artus ex graeco appellatur, quos illi αρθρα dicunt: sive artus dicti, quod membra membris artentur” (FESTUS et al., 1839, p. 20); (RUY, 2012). A diferenciação dos termos latinos ‘artubus’ dat. abl. de artūs, e ‘artibus’ dat. abl. de ‘ars’, tornou-se fundamental no latim (ERNOUT; MEILLET, 1951), exatamente pela confusão causada pela compreensão da palavra grega αρθρα (arthra), com os vocábulos latinos artus e ars (RUY, 2012). O termo grego αρθρα nada tem a ver com o ars latino, mesmo porque os gregos não tinham um vocábulo próprio para designar arte.

57

Os gregos tinham várias formas de denominar o tempo: Χρόνος (Chrónos) tempo cronológico; Αεον (Aeon) eternidade; Γενεá (Geneá) geração; Καιρός (Kairós) período fixo; Εμéρα (Eméra) dia; Νuν (Nun) agora; Ορα (Ora) hora; Ποτé (Poté) outra vez; Προθεσμíα (Prothesmía) tempo designado de antemão; Πóποτε (Pópote) qualquer tempo; Éκπαλαι (Ékpalai) tempo antigo; Εúκαιροσ (Eúkairos) tempo oportuno (CHAMPLIN; BENTES, 1995).

51

Antônio Houaiss, em seu dicionário da língua portuguesa, indica a etimologia da palavra através do vocábulo latino articulatìo, ónis – derivado de articulus –; definindo sua significação na língua portuguesa como: substantivo feminino 1 ato ou efeito de articular(-se) 2 Rubrica: anatomia geral. ponto de contato, de junção de duas partes do corpo ou de dois ou mais ossos Ex.: a. do cotovelo 3 Rubrica: morfologia botânica. ponto de conexão entre dois órgãos ou segmentos de um mesmo órgão ou estrutura, que ger. dá flexibilidade e facilita a separação das partes 4 ajuste entre partes; inter-relação, congeminação 5 Regionalismo: Nordeste do Brasil. diálogo em torno de ideias antagônicas; discussão, polêmica 6 Regionalismo: Nordeste do Brasil. censura acrimoniosa; descompostura 7 Rubrica: fonética. conjunto dos movimentos dos órgãos fonadores (articuladores) para a produção dos sons da linguagem; classifica-se segundo dois parâmetros: o modo de articulação (existência ou não de obstáculos à passagem do ar, e natureza desse obstáculo) e o ponto de articulação (ponto onde se dá o estreitamento mais acentuado do canal de escoamento do ar) 8 Rubrica: fonética. sequência das etapas da emissão de um som, que são: a) movimento de aproximação dos articuladores ativos (catástase, implosão ou intensão); b) sustentação dessa posição (articulação sistente ou tensão); c) afastamento dos articuladores (metástase, explosão ou distensão) 9 Rubrica: geografia. acidente geográfico ou do relevo que vale ser estudado apenas no plano horizontal 10 Rubrica: termo jurídico. enumeração escrita de fatos e razões no decorrer de um processo, expostos em parágrafos ou artigos de um requerimento; articulado 11 Rubrica: linguística. propriedade das formas linguísticas de serem suscetíveis de desmembramento em unidades menores 12 Rubrica: linguística. ponto de conexão entre duas orações

52

13 Rubrica: engenharia mecânica. sistema de junção de duas peças que permite mobilidade para deslocamentos angulares relativos; rótula. (HOUAISS, 2009)58

Em seu livro ‘Em Busca de um Mundo Perdido’, Laura Rónai (2008, p. 121) procura descrever a etimologia dos termos ligados à articulação em busca de uma compreensão simples para termos cuja significação quase se perdeu no universo da prática musical. Ao pensarmos nas origens etimológicas dos termos referentes à articulação, chegamos mais perto de uma definição simples para eles. O staccato, por exemplo vem do particípio passado do verbo italiano staccare, abreviação de distaccare, vindo do francês obsoleto destacher, que por sua vez deriva do francês antigo destachier. Todas essas palavras podem ser vertidas simplesmente por destacar, separar. Não há nelas qualquer implicação de acento ou dureza de ataque. (RÓNAI, 2008)

Na fonética e na fonologia59, o termo ‘articulação’ é amplamente aceito e padronizado nas descrições dos movimentos da língua, lábios, mandíbula, e outros órgãos do aparelho fonador (articuladores) a fim de formar os sons da fala. Desta forma, a articulação não está no som diretamente, mas no processo de produção. Na música, quase todos, senão todos, os sentidos deste vocábulo são empregados. Hugo Riemann em seu Dictionaire de Musique, no verbete Articulation, define a articulação como: “Na linguagem: pronúncia distinta de cada sílaba, na música: emissão dos sons e seus encadeamentos, ou seja, legato, staccato, e seus derivados.”

60

(RIEMANN, 1931, tradução

nossa). Geoffrey Chew (2001, [s.p.]) procura definir articulação musical como: A separação de notas sucessivas umas das outras, individualmente ou em grupos, por um intérprete, e a maneira pela qual isto é feito. O termo "fraseado" implica uma analogia linguística ou sintática, e desde o século 18 essa analogia tem sido constantemente invocada em discutir o agrupamento de notas sucessivas, especialmente nas melodias; na prática, o termo "articulação" refere-se, principalmente, ao grau em que um executante separa as notas umas das outras, (por exemplo, o staccato e o legato). Esta 58

Embora se tratando de uma obra sobre a língua portuguesa e, desta forma, não especializada em música, a utilização do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa será constante por refletir, de certa forma, o senso comum da significação atualizada de termos essencialmente relevantes.

59

A fonética trata dos sons produzidos pelo homem de uma forma geral, não importando a língua ou significação de determinado som para uma cultura, enquanto que a fonologia se ocupa do estudo dos sons dentro de um determinado idioma (CALLOU; LEITE, 1995).

60

“Dans le langage: prononciation distinct de chaque syllabe, dans la musique: emission des sons et leur enchainement, autrement dit le legato, le staccato e leurs dérivés" (RIEMANN, 1931).

53

distinção entre os dois termos foi recomendada por Keller (1955); mas a articulação em um sentido mais amplo às vezes é entendido como a maneira pela qual seções de um trabalho são separados entre si.61 (CHEW, 2001 – tradução Antônio Cerdeira).

Numa sinfonia, por exemplo, todos os movimentos, os temas e até a instrumentação são articulados entre si, fazendo com que a significação do vocábulo seja tão abrangente quanto possível ao distinguir partes que se separam e sons que se conectam. O significado do termo ‘articulação’ na música é, portanto, bastante abrangente, designando não somente tudo o que se conecta, se junta ou está ligado de alguma forma, mas também o ponto de conexão de partes distintas. Desta forma, na música podem-se distinguir vários tipos e sentidos para o termo articulação: A. Articulação estrutural – A conexão das frases, períodos e até movimentos de uma obra em relação ao todo; e a forma como se vinculam entre si (CHEW, 2001). Como exemplo, a forma de um Minueto no contexto de uma Suíte Orquestral: as frases em relação aos períodos; os períodos em relação à forma e o Minueto em relação à Suíte completa.

B. Articulação tímbrica e harmônica – Os encadeamentos harmônicos e as alterações de timbres. Como exemplo, os timbres amalgamados entre os naipes da orquestra numa densa orquestração - como a instrumentação e a harmonia do Bolero de Ravel - e o desenho rítmico recalcitrante da caixa clara como articulador tanto das ideias musicais quanto do desenvolvimento da obra. Nessa obra, nenhum período é igual ao anterior, apesar de manter repetidas vezes a mesma linha melódica. C. Articulação do som – a forma com que um som começa e termina, e sua relação de conexão com os sons ou silêncios que se sucedem. O processo completo de percepção do som, o qual engloba três grandes e complexos sistemas: 1) a fonte de som, o 61

“The separation of successive notes from one another, singly or in groups, by a performer, and the manner in which this is done. The term ‘phrasing’ implies a linguistic or syntactic analogy, and since the 18th century this analogy has constantly been invoked in discussing the grouping of successive notes, especially in melodies; the term ‘articulation’ refers primarily to the degree to which a performer detaches individual notes from one another in practice (e.g. in staccato and legato). This distinction between the two terms was recommended by Keller (1955); but articulation in a broader sense is sometimes taken to mean the ways in which sections of a work – of whatever dimensions – are divided from (or, from another point of view, joined to) one another” (CHEW, 2001).

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instrumento musical com todas as características físicas e técnicas específicas; 2) o meio como sistema modelador e condutor que transporta e altera significativamente características das ondas sonoras produzidas pela fonte transformando-as numa complexa rede de ondas sobrepostas; 3) a audição, o complexo sistema psicoacústico que envolve desde a captação das ondas mecânicas do meio à percepção do som pelo cérebro (HENRIQUE, 2002).

Dentre esses três modos de se compreender a articulação musical, este trabalho pretende lançar um foco sobre a articulação do som na flauta, considerando-a tanto no aspecto físico dos fenômenos presentes na formação do som, como em alguns aspectos psicofísicos relacionados à apreensão perceptiva do som, sobretudo quanto à sensação de fluxo na transição entre as notas, levando-se ainda em consideração os problemas relativos à reflexão dos sons62 no ambiente a partir da cultura musical erudita ocidental. Além desses três complexos sistemas há ainda o forte fator cultural que incide sobre o ouvinte e é o responsável pela articulação de todos os sistemas com os padrões de comportamento, ideias, costumes, conhecimentos, crenças, etc., de um segmento social determinado onde reside a identidade social e cultural de um povo e de cada indivíduo que o compõe. “A música então seria uma linguagem culturalmente construída e, portanto, culturalmente apreendida; sendo fruto da relação do ser humano com a própria cultura humana na qual se insere” (BARBOSA apud BELING, 2014, p. 5). A presente pesquisa não pretende ignorar o sistêmico ‘fator cultural’, mas se concentrar na música de uma forma mais genérica, pelo viés dos sistemas físicos e psicofísicos universais. Afinal, as propriedades físicas elementares do som se mantêm incólumes seja numa sala de concerto ou ao ar livre às margens do Rio Amônea – Ac63, porquanto não se alteram frente a culturalidades. Desse modo, com foco na flauta Böhm, os aspectos abordados na pesquisa pretendem ser mais generalizados e menos seletivos por serem essencialmente comuns às variadas culturas nas quais o instrumento possa estar inserido. Assim, o objetivo principal da pesquisa paira sobre o estudo e análise de elementos transitórios presentes entre as notas numa sucessão melódica a fim de estabelecer um vínculo 62 63

Ver ‘reflexão do som’, Glossário, p. 196. Berço da Cultura Ashaninka.

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com a sensação de fluxo percebida nos intervalos entre notas ligadas na flauta. Embora observada uma convergência para a abordagem física dos fenômenos ocorrentes na transição entre as notas na flauta, a pesquisa pretende também considerar a questão perceptiva de tais fenômenos. Desta forma, considera-se a transição como veredas entre as notas e/ou como o processo de fluxo sonoro. Tais veredas desempenham uma função essencial na articulação do som por serem o ponto central entre notas que se juntam ou se separam. Com base nesse viés, o estudo de causas e efeitos desenvolvido no processo da pesquisa sobre o legato teve como finalidade identificar fenômenos e eventos sonoros presentes nas transições que possam de alguma forma interferir na percepção da articulação do som na flauta. Em busca desses fenômenos que ocorrem no ato da articulação, quer sejam sons separados ou unidos, a articulação do som será considerada em quatro abordagens distintas: - Articulação Fisiológica – o que o flautista faz; o trabalho dos articuladores e dos órgãos do aparelho fonador na articulação do som. Descrição da articulação do som numa perspectiva fonética. Apresentação, análise e comparação de três dos principais modos de articulação do som na flauta. - Articulação Fraseológica – a indicação escrita na partitura e o modo de realização do ataque e de articulações mediante diferentes tipos de ambientes. - Articulação Mecânica – o sistema Böhm e o ab-rupto câmbio de tubos da flauta moderna e sua influência na percepção auditiva da articulação. - Articulação Acústica – Aspectos físicos e piscofísicos da audição do som; Situações e fenômenos interferentes no processo da articulação do som, os quais serão necessários na apreensão dos tipos de legato e problemas nas transições entre notas ligadas que serão abordados num capítulo posterior.

2.1 ARTICULAÇÃO FISIOLÓGICA

A maneira mais simples de emitir um som na flauta é através da utilização de um meio articulador que obstrua e libere o fluxo de ar de forma controlada e direcionada – da mesma

56

forma que na fala ao se pronunciar uma sílaba. O toque da língua em diversas partes da cavidade bucal produz ataques de diferentes tipos na flauta. Segundo a fonética, o trabalho realizado pelos órgãos do aparelho fonador resulta em fones64. As diversas possibilidades articulatórias capazes de serem emitidas se devem ao movimento dos chamados articuladores móveis65 em direção aos pontos de articulação fixos66 em diferentes posições. A atividade desses órgãos resulta na modificação da corrente de ar, ora obstruindo, ora liberando ou interrompendo parcialmente o fluxo de ar. Os diferentes tipos de fones são classificados pela fonética em dois grupos distintos: - Modo de Articulação – A forma com que os sons são articulados. Os sons podem ser Oclusivos, quando ocorre uma interrupção total da corrente de ar; Constritivos67 ou Fricativos68, quando a interrupção do fluxo de ar é apenas parcial. - Ponto de Articulação – Trata-se da zona, ou ponto, onde um determinado articulador móvel69 toca em outro articulador, fixo ou móvel, para alterar a corrente de ar.

64

Ver Glossário, p. 196. Língua, véu palatal, lábios. 66 Dentes, palato. 67 Ver Glossário, p. 196. 68 Ver Glossário, p. 196. 69 Ver Glossário, p. 196. 65

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Figura 2.1 – Aparelho fonador e articulador.

Fonte: (LABARTHE, 1885) – Imagem Shutterstock 154876235. Articuladores fixos: Palato; Dentes. Articuladores móveis: Lábios, superior e inferior; Véu Palatal; Língua e Parte Posterior da Língua.

Na linguagem oral, um vocábulo se difere de outro por diferentes sons preestabelecidos que caracterizam as palavras de um idioma. Os sons fonatórios dividem o objeto de estudo nesses dois distintos grupos: a fonologia70 e a fonética71. A relação de semelhança entre as articulações nos instrumentos de sopro e a articulação fonética é um excelente meio para o estudo da articulação musical, uma vez que, foneticamente, as articulações se apresentam com máxima clareza nos diferentes pontos de articulação e apresentam uma configuração ímpar em cada um dos seus modos, como descrito no quadro a seguir, que trata das consoantes da língua portuguêsa.

70

Que se ocupa do estudo dos sons dentro de um determinado idioma. (CALLOU; LEITE, 1995, p. 11).

71

Trata dos sons produzidos pelo homem de uma forma geral, não importando a língua ou significação de determinado som para uma cultura. (CALLOU; LEITE, 1995, p. 11).

58

Quadro 2.1 – Articulação das consoantes da língua portuguesa (br)

Fonte: Zamoner, 2007.

Com o propósito de verificar diferentes propriedades das articulações fonatórias, foram realizadas gravações de três tipos de articulações oclusivas, as quais nos fornecem dados para uma comparação com as articulações na flauta. As articulações aqui apresentadas foram realizadas com uma flauta Burkart Ag 998, com bocal Burkart Ag 998 modelo C4.

2.1.1 Articulação oclusiva linguodental

O ponto linguodental é constituído pela oclusão do fluxo de ar através do toque da língua no ponto dental. Articulador móvel (língua) + articulador fixo72 (dentes). Na articulação de uma sílaba linguodental ‘te’, o som da vogal /e/ aparece rapidamente, uma vez que a articulação linguodental é uma das consoantes oclusivas mais curtas. O som do fonema73 é representado pela sua consoante e uma vogal. Assim, o fonema /t/ 74 se pronuncia ‘tê’; /d/ ‘dê’, etc.

72

Ver Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196. 74 Um símbolo fonético entre barras inclinadas representa um fonema (/t/) enquanto um símbolo fonético entre colchetes ([t]) representa um fone, o menor fragmento linguístico da fala (KENT; READ, 2015). 73

59

Figura 2.2 – Fonema oclusivo linguodental /t/.

Fonte: Elaboração do Autor, 2015.

No quadro esquerdo, sílaba vozeada ‘tê’ (CD Exemplo 2.1); à direita, articulação da nota Dó4 na flauta no ponto linguodental /t/. Flauta Burkart. (CD Exemplo 1.1 primeiro ataque).

2.1.2 Articulação Oclusiva Velar

Produzida por dois articuladores móveis (parte posterior da língua + véu palatal). Por ser realizado no ponto velar, este fonema se apresenta como o mais lento dos fonemas oclusivos na flauta. Figura 2.3 – Fonema oclusivo velar /k/.

Fonte: Elaboração do Autor, 2015.

À esquerda, sílaba vozeada ‘kê’ (CD Exemplo 2.2); à direita, articulação da nota Dó4 na flauta no ponto velar (CD Exemplo 1.2 segundo ataque).

60

2.1.3 Articulação Vogal

As vogais são fonemas produzidos pelo ar que fazem vibrar as pregas vocais75 e não encontram nenhum obstáculo em sua passagem pelos articuladores do aparelho fonatório. A língua e o palato se aproximam sem que haja uma fricção do ar. A oclusão desta articulação deve-se ao controle respiratório da musculatura tóraco-abdominal76. (CALLOU; LEITE, 1995, p. 26).

Figura 2.4 – Fonema da vogal /ê/.

Fonte: Elaboração do Autor, 2015.

Sem a presença de consoante oclusiva, o som da vogal /e/ se apresenta de forma quase imediata. (CD Exemplo 2.3). Som da nota Dó4 produzido na flauta sem articulação fonatória. Essa forma de articulação também é oclusiva; o controle da oclusão se dá graças à Manobra de Valsalva77 (GÄRTNER, 1981, p. 73). (CD Exemplo 1.1 terceiro ataque).

Quanto aos pontos de articulação na flauta, foram observadas características claras entre os modos; não tão discrimináveis como na fala, mas distintos o suficiente para se perceber singularidades nos diversos pontos. 75

“As cordas vocais situam-se na laringe – estrutura músculo-cartilagínea que se encontra na parte superior da traqueia. A laringe é constituída de diversas cartilagens móveis – tíróide, cricóide, aritenóides, e músculos associados –, e pelo osso hióide, sendo considerado o órgão fundamental da produção vocal. Os componentes abaixo da laringe são muitas vezes designados infraglóticos enquanto aqueles que se situam acima são os supraglóticos. Os movimentos de elevação e de depressão da laringe são controlados respectivamente pelos músculos extrínsecos elevadores e depressores. Por sua vez os músculos intrínsecos – cricoaritenoideo, interaritenoideo e tireoaritenoideo – controlam a posição e a tensão das cordas vocais. Ligeiramente acima das cordas vocais existe um par de “pregas” semelhantes designadas bandas ventriculares ou falsas cordas vocais” (HENRIQUE, 2002 p. 666-7). Ver Glossário, p. 196.

76

O fonema /e/ – pronuncia-se [ê] – possui uma forma de articulação diferente das articulações das consoantes por não apresentar nenhum tipo de oclusão no aparelho fonador. É produzido diretamente pelo ar que faz vibrar as pregas vocais. A inclusão da vogal [e] na coleta de dados é devido à sua representação de uma articulação surda sem a utilização de nenhum órgão do aparelho fonador. (TEIXEIRA, 2014).

77

Ver Glossário, p. 196.

61

Não obstante as articulações fonéticas apresentarem traços característicos e divergentes em cada modo e ponto de articulação, na grande maioria do repertório da música erudita ocidental as articulações se sujeitam a um critério oposto à fonação 78. Enquanto o falar bem demanda uma articulação claramente diferenciada, o tocar bem muitas vezes caminha no sentido inverso. É necessário igualar as articulações a fim de unificar, tanto quanto possível, os modos de articulação. Assim, uma passagem musical que requer a utilização da técnica de golpe duplo (/t/,/k/) soará bem melhor quando as articulações velares tiverem uma resposta semelhante às linguodentais. O tipo e a qualidade do instrumento também são premissas a serem consideradas uma vez que um bocal ‘x’ pode responder de forma diferenciada à mesma articulação realizada com um bocal ‘y’. Mas, independente do material, os flautistas tendem a buscar uma articulação homogeneamente equilibrada quanto à equabilidade de seus pontos. De uma forma generalizada, na execução musical, o importante não é a clareza das diferenças articulatórias, mas as semelhanças. E tais semelhanças são obtidas quando se controlam as oclusões e a velocidade de resposta em cada tipo de articulação. Cada bocal de flauta possui uma configuração específica quanto à resposta sonora. Procurou-se testar dois tipos diferentes de bocais de flauta – Barlassina & Casoli, um bocal antigo de prata de origem italiana e considerado um bocal de baixa qualidade e, Lillian Burkart, um bocal moderno confeccionado com prata 998 mod. C4. Entre vários quesitos pelos quais se define a qualidade de um bocal estão: a velocidade de resposta da articulação, o timbre, a intensidade, gosto pessoal, etc. A comparação realizada se refere apenas ao aspecto da articulação do som; veja Gráfico 1.1 no Capítulo 1, p. 28; e Exemplo sonoro 1.1 e 1.2 no CD. Em todos os três modos de articulação experimentados nos dois bocais, os ataques se mostraram eficientes quanto à velocidade de resposta. As diferenças dos pontos de articulação entre os dois bocais se mostraram pequenas. Embora haja uma diferença marcante entre o som produzido pelo bocal Burkart para o som com o bocal Barlassina & Casoli no quesito ‘articulação do som’, não se pode determinar uma grande diferença. Apesar de demonstrar mais celeridade no ponto linguodental, o bocal Burkart se mostrou mais lenta no ataque sem articulação e praticamente igual no ponto velar. Todavia, como verificado no Gráfico 1.1, p. 28, os modos de articulação no bocal Burkart são mais regulares e apresentam reações mais 78

Na música contemporânea erudita ocidental a diferenciação e o repertório de articulações fonológicas aumentam com as chamadas ‘técnicas expandidas’. No Jazz e na música erudita contemporânea, por exemplo, é comum o uso de ataques com fonemas fricativos /f/, /ch/.

62

próximas entre os pontos de articulação analisados. Isso denota um melhor desempenho quando da utilização de articulações alternadas como no caso do golpe duplo. Mas a maior diferença entre os dois bocais se estabelece quando comparados com outras questões como o NPS e o timbre.

2.1.4 Oclusões africadas79

As consoantes africadas são semelhantes às oclusivas por serem produzidas em duas fases: (1) fechamento do trato vocal; (2) uma soltura ruidosa. As oclusões africadas possuem um segmento fricativo após a explosão da oclusão (KENT; READ, 2015). Em busca de uma articulação bem definida, observamos que alterar o ponto linguodental para um ponto ligeiramente acima, no alvéolo dental80, produz uma oclusão diferente da obtida pelo ponto linguodental. Todavia essa técnica tende a provocar um efeito ruidoso no ato da oclusão pelo desvio do jato de ar pelas laterais e um consequente resultado fricativo na articulação (CALLOU; LEITE, 1995). Embora esse efeito fricativo não seja indicado para uma execução que prime pela clareza e precisão dos ataques, a articulação cujo efeito resultante é um ataque rico em elementos transientes, é indicado para algumas situações em que tal efeito reforce a qualidade temática de algumas composições contemporâneas. No Jazz, por exemplo, este modo de articulação adquiriu status de estilo. Ao se tratar a articulação musical através de uma perspectiva imagética fonológica e/ou fonética pelo registro dos livros e métodos de execução musical para instrumentos de sopro, desvelam-se algumas informações parciais e/ou incompletas na descrição de práticas de difícil explanação por incidir na explicitação de eventos que ocorrem no interior do corpo. Embora já arraigada na prática do ensino musical, algumas formas de explicação do processo articulatório para instrumentos de sopro não correspondem a uma realidade fisiológica. Mesmo em se tratando de um aspecto dinâmico na comunicação professor/aluno e que vem apresentando resultados práticos e eficientes ao longo dos anos, descreve-se a seguir duas das situações que podem ser consideradas como impropriedades:

79 80

Ver ‘Consoante africada’, Glossário, p. 196. Ver Glossário, p. 196.

63

2.1.5 Impropriedade fonética

Os órgãos do aparelho fonador funcionam de modo a modificar o fluxo de ar, obstruindo-o total ou parcialmente. A articulação poderá ser sonora, se a glote81 no aparelho laríngeo82 estiver na posição fonatória; ou surda – desvozeada – se estiver na posição respiratória. Para articulações desvozeadas os mesmos órgãos são acionados, com exceção das pregas vocais (CALLOU; LEITE, 1995).

Figura 2.5 – Glote vista de cima no aparelho laríngeo.

Fonte: Imagem Shutterstock 118506337. À esquerda, a glote em sua abertura máxima: as pregas vocais encontram-se afastadas; posição respiratória. À direita, completamente fechada: pregas vocais completamente aproximadas; posição fonatória.

As articulações podem ser mais oclusivas, produzindo sons com fortes acentuações; ou menos oclusivas, evitando acentos e suavizando os ataques. Mas, independente da intensidade da oclusão, os pontos de articulação se mantém constantes (KENT; READ, 2015). Tradicionalmente no ensino da flauta se observa que as articulações podem ser suavizadas ao se alterar a área do toque da língua nas regiões articulatórias, mudando, por exemplo, o ponto de articulação da sílaba ‘te’ para o ponto ‘de’ – ambos linguodentais –, ou do ponto ‘ke’ para o ponto ‘gue’ – ambos velares. Esta orientação produz um efeito imediato 81

Denomina-se glote, a abertura triangular na parte mais estreita da laringe, circunscrita pelas duas pregas vocais inferiores, com cerca de 16mm de comprimento e abertura máxima de cerca de 12mm. (HOUAISS, 2009).

82

A laringe é um órgão da fonação situado no trajeto das vias respiratórias. “Cavidade com paredes membranosas e cartilaginosas, situada entre a faringe e a traqueia, que contém as cordas vocais”. (HOUAISS, 2009).

64

no desempenho do aluno por atender precisamente a compreensão de como se processa o ataque de um som, de forma mais branda ou mais acentuada. A associação articulatória fonética com a articulação dos sons na flauta ao descrever os modos de ataque do som é bastante comum, sobretudo pela proximidade entre professor e aluno. Afinal, dentre as atribuições de um professor está o explicar sem complicar. Por esta razão, com objetivo didático, se tornou comum a prática de descrever a sílaba. Todavia tal descrição do processo de abrandamento dos ataques representa, na realidade, um contrassenso já que as zonas de articulação são as mesmas no trato desvozeado. Vários autores citam este vínculo fonético ao descrever o modo como se deve realizar o ataque do som na flauta. Dentre muitos cita-se: "Como é preciso emitir notas, tanto de forma enérgica quanto suave, é necessário distinguir, que para notas curtas, iguais, brilhantes e rápidas, deve-se empregar o ti. Do contrário deve-se empregar o di quando for lento ou mesmo alegre contanto que seja agradável"

83

(QUANTZ, 1752, p. 63 - Tradução de Helder

Teixeira e Ariadne Paixão). O Louré [destacado apoiado] é indicado por sua vez pelo ponto e pela ligadura. Executa-se o ataque de cada nota com muita delicadeza e sem pausas entre as notas. Para esta articulação, usa-se o a sílaba “Du” em lugar de “Tu” 84 (ALTÈS, [s.d.], p. 78 – Tradução de Helder Teixeira e Ariadne Paixão). Staccato – Deve-se atacar cada nota com um golpe de língua com a pronúncia tu, muito curto. Louré [destacado apoiado] – Deve-se atacar cada nota com um golpe de língua com a pronúncia du, a língua se desloca contra os dentes de cima85 (GARIBOLDI, [s.d.], p. 13 – Tradução de Helder Teixeira e Ariadne Paixão). Para interpretar os diferentes tipos de staccatos, os flautistas se utilizam da língua, percutindo-a entre o palato e os dentes; trata-se do “golpe de língua”. Hoje em dia se utilizam dois tipos: te e ke (o de e gue para os ataques mais suaves)86 (ARTAUD, 1991, p. 74 – Tradução nossa). 83

Comme il faut entonner quelques notes avec rudesse & d’autres avec douceur; il faut remarquer, que pour les notes bréves, égales, vives & vites, on doit emploïe le ti. Au contraire on se sert de di, quando le chant est lent, & même quando il est gai, pour vu qu’il soit agréable& foutenu (QUANTZ, 1752, p. 63).

84

Le louré est indique à la fois par le point et par la liaison. Il s’exécute em attaquant chaque note avec la plus grande douceur et sans aucun silence entre les notes. Pour cette articulation, la syllabe “Tu” de l’articulation naturelle sera transformée em “Du” (ALTÈS, [s.d.], p. 78).

85

Note spiquées – On doit attaquer chaque note d’un coup de langue, em prononçant tu trés sec. Notes lourées – On doit frapper chaque note d’un coup de langue em prononçant du, la langue se déplacant contre les dentes du haut. (GARIBOLDI, [s.d.], p. 13).

86

Para interpretar los diferentes destacados, los flautistas se ayudan com la lengua, percutiendo em el paladar o entre los dientes; se trata del “golpe de lengua”. Hoy em dia se utilizan dos tipos: te y ke (o de y gue para los ataques más suaves) (ARTAUD, 1991, p. 74).

65

Faz-se terminações abruptas de nota cortando o fluxo de ar com a ponta da língua; essas terminações são, portanto, chamadas de "paradas de língua". Se por exemplo você começar a nota com a sílaba "doo", suas ações de língua para toda a nota são os mesmos que ao dizer "dood" (exceto que o tempo entre o primeiro e o segundo "d" depende da duração da nota ). Assim como você começa uma nota com mais nitidez usando "t" em vez de "d", você também pode terminá-la mais abruptamente com "t" em vez de "d" (MATHER, 2011, p. 57 – Tradução Isabela Maira de Andrade Almeida) 87.

Segundo Sloboda (2008), o principal fator que determina na fala a diferenciação entre os fonemas sonoros dos surdos – como a diferença da sílaba linguodental ‘dê’ para ‘tê’ – é a relação de tempo na apresentação de dois componentes de som conhecidos como primeiro e segundo formantes 88. O som da fala possui tipicamente quatro regiões formantes. O primeiro formante é o que apresenta uma banda de frequência mais baixa, o segundo, mais alta e assim por diante. Estudos indicam que o melhor ‘dê’ é ouvido quando f1 e f2 são simultâneos; o ‘tê’ é reconhecido quando f2 se apresenta com ~ 60 ms antes de f1 (SLOBODA, 2008). Os formantes são importantes na caracterização e distinção do timbre, logo se trata de um elemento próprio do som que é subsequente à articulação da consoante oclusiva na fala. Portanto, refere-se ao trato vocal vozeado. A sílaba é composta pela articulação + voz; sendo que a articulação é apenas a borda da sílaba e a única parte utilizada na articulação do som na flauta que é em sua essência básica, desvozeada. Também nos instrumentos musicais, o ataque do som – apenas a borda da sílaba representada pelo ataque de uma consoante – está intimamente ligado à percepção de timbre, como citado por Roederer: “[…] o ataque de um som é o atributo mais importante para a identificação do timbre.” (IVERSON & KRUMHANSL apud ROEDERER, 2002, p. 237). Contudo, a articulação do som nos instrumentos de sopro não corresponde com exatidão à forma como se procede a articulação da fala. Desse modo, a relação entre sílabas vozeadas e a articulação de consoantes desvozeadas como descritores de articulação na flauta nem sempre é adequada.

87

You make note endings abrupt by cutting off your air flow with the tip of your tongue; such endings are therefore called “tongue stops”. If for instance you begin the note with the syllable “doo”, your tongue actions for the entire note are the same as in saying “dood” (except that the time between the first and second “d” depends on the length of the note). Just as you start a note more crisply by using “t” rather than “d”, you can also end it more abruptly with “t” instead of “d”. (MATHER, 2011, p. 57).

88

“Formantes são zonas do espectro de grande amplitude, e que são independentes das frequências das notas tocadas. Os Formantes correspondem a zonas em que há grande concentração de energia acústica, e surgem como resultado do sistema amplificador e radiante.” (HENRIQUE, 2002, p.176). Ver Glossário, p. 196.

66

Para o flautista não importa uma sílaba ser mais sonora que outra no trato vocal, quando o que utiliza para atacar a nota se limita ao ponto de articulação das consoantes89. Quando a laringe trabalha em posição respiratória, ou desvozeada, não haverá nenhuma diferença entre articulações de mesmo ponto. Assim, não há diferença articulatória entre os pontos linguodentais /t/ e /d/, ou nos pontos velares /k/ e /g/. O ponto de articulação de tais fones é único em todas as zonas (CALLOU; LEITE, 1995), cabendo ao instrumentista apenas suavizar a oclusão quando desejar uma articulação mais branda.

2.1.6 Impropriedade Fonológica

A abordagem da articulação na flauta pelo viés fonológico também é problemática. A relação entre o idioma e o modo como se deve articular os sons torna-se inapropriada ao se considerar o ponto de vista do leitor de cultura e idioma diferentes, embora a abordagem seja eficaz numa didática vernácula e regional. Para exemplificar a inadequação desta relação fonológica, cita-se duas passagens. Em primeiro lugar, a misteriosa articulação dupla did’ll, descrita por Quantz em seu livro L’Essai d’une Méthode pour Apprendre à Jouer de la Flûte Travesière, mal compreendida por quem não conhece a língua alemã 90: A palavra did’ll, que se pronuncia com duplo movimento de língua, sendo que, na segunda sílaba não há vogal. Por isso não se pode pronunciar nem didel, nem dili, mas did’ll, comendo a vogal que deveria estar na segunda sílaba. Portanto, d’ll não pode ser articulado com a ponta da língua, como o di 91 (QUANTZ, 1752, p. 69 – Tradução de Ariadne Paixão).

E ainda o relato do tubista e educador Arnold Jacobs, citado por Fabris e Braga em seu artigo sobre articulação no saxofone: Treinar a língua através da musculatura é difícil, senão impossível. Jacobs prefere resolver os problemas da língua através da fala, com relações 89

Muitos autores e flautistas atuais defendem a tese de que o formato interno da boca nas posições vogais altera a sonoridade da flauta e recomendam a utilização de gestos vocais como meio de diferenciação tímbrica. Esse procedimento, além de controverso, não está ligado diretamente à articulação uma vez que não influi diretamente no componente articulatório.

90

Embora o original seja em alemão Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen, aqui apresentamos uma tradução para a língua francesa, numa edição datada de 1752. Disponível em: http://imslp.org/wiki/Versuch_einer_Anweisung_die_Fl%C3%B6te_traversiere_zu_spielen_(QUANTZ,_Joha nn_Joachim).

91

Le mot did’ll, qu’il faut prononcer em servant de la double langue, devrois être composé de deux silabes. Mais dans la seconde il n’y a point de voyelle: c’est pourquoi on ne peut prononcer ni didel, ni dili; mais did’ll, mangeant la voyelle qui devrois être dans la second syllabe. Mais, ce d’ll ne peut être exprime avec la point de la langue, comme le di. (QUANTZ, 1752, p. 69).

67

consonantais e vocálicas. Por exemplo, as sílabas ‘oo-thu’ e ‘kee-hoe’ são utilizadas para movimentos para trás e para frente. ‘Hah’ versus ‘ssssss’ move a língua da porção mais baixa para a mais alta da boca. Para experimentar um fluxo de ar contraído, diga ‘tee, yee, tee, yee.’ Para experimentar uma passagem de ar aberta, diga ‘ah, oh, ooh’ (FREDERIKSEN, 2006, p. 127 apud FABRIS; BRAGA, 2013).

A recomendação do estudo diário das articulações e o motivo de tantas abordagens literárias – adequadas ou não – vêm da necessidade dos músicos, em especial flautistas no contexto da música erudita ocidental, e sua obsessão por conquistar uma articulação precisa e bem focada. Todavia, a indexação de uma correlação fonológica só se justifica num contexto regional, onde um aluno estuda sob a orientação direta do professor. Fora deste caso, quando se trata da articulação do som na flauta, os autores deveriam se concentrar mais na correlação fonética do que descrever sílabas que se modificam a partir de regionalismos e/ou pronúncias imperfeitas de determinado idioma. Afinal, as traduções literárias dos métodos para instrumentos de sopro podem ser bastantes problemáticas com adaptações fonológicas de um para outro idioma. Em sua obra Die Flöte und ihre Musik Gustav Scheck assinala a boa associação fonológica da língua francesa com os principais pontos de articulação utilizados na flauta, diferente de outros idiomas cuja pronúncia do fonema /t/, por exemplo, migra para outra zona de articulação (como a alveolar92) (GUSTAFSON, 1993). Isto traz de volta a referência da articulação utilizada entre os flautistas especializados no Jazz. Uma articulação estilizada. Todavia, não se trata mais de uma articulação realizada no ponto linguodental, mas de uma articulação com ponto de oclusão modificada. O saxofonista norte-americano David Liebman, também citado por Fabris e Braga, observa a dificuldade de se compreender associações idiomáticas na explicação da técnica da articulação para instrumentos de sopro: "O problema com estes exemplos é que a linguagem é idiomática e a mesma palavra pode ter sonoridades (pronúncias) múltiplas, dependendo da região geográfica do indivíduo, bem como o contexto e outros fatores" (LIEBMAN, 1994, p. 23 apud FABRIS; BRAGA, 2013). Todavia, num contexto regional, não há razão para se compreender que a articulação linguodental presente na palavra ‘tia’ no dialeto pernambucano seja diferente de ‘tia’ no dialeto regional carioca. Neste contexto, as consoantes africadas, de fato, não são as melhores opções para explicar ao aluno como se deve realizar as articulações

92

Ver Glossário, p. 196.

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do som na flauta, mas isso não significa que os pontos de articulação sejam diferentes. O ponto linguodental desvozeado é único para qualquer dialeto e/ou idioma. Com um enfoque fonético, a articulação de uma nota utilizando a sílaba ‘tê’ torna-se semelhante à articulação com a sílaba ‘dê’ porquanto o ponto linguodental é único; a borda inicial da consoante é exatamente a mesma, sendo diferentes apenas em vozeamento. Assim, as adaptações fonológicas tendem a se igualar nas articulações desvozeadas, mas se diferenciam nas articulações vozeadas (KENT; READ, 2015). A utilização imagética dos sons da fala para expressar a técnica de articulação instrumental é uma excelente ferramenta para a relação direta professor/aluno, todavia, para todos os que estão longe, de culturas diversas, seria melhor se fosse mantido o domínio fonético, onde se compreende o ponto linguodental como um ponto único para quem mora na França, no Brasil, ou no Sri Lanka. Afinal, na flauta não se utiliza ‘sílabas vozeadas’, senão somente a borda inicial dessas sílabas que correspondem ao modo e o ponto de articulação que, como já visto, são pontos únicos dentro de cada zona (CALLOU; LEITE, 1995).

2.2 ARTICULAÇÃO FRASEOLÓGICA Mesmo que se entenda a expressão ‘articulação’ de forma abrangente como sugere sua etimologia – afinal todos os sons de uma obra musical são, de uma ou de outra forma articulados entre si –, como termo musical, é necessária uma distinção entre notas que devem ser percebidas ligadas e aquelas que devem ser compreendidas de forma separada. Tal distinção deve acontecer tanto na escrita quanto na forma de emissão do som. Os sons ligados são unidos com um único sopro. Os demais, que não são ligados, são destacados cada qual à maneira do intérprete, buscando uma interpretação que concilie a instrução da partitura, a ambiência e, sobretudo, a adequação aos padrões estéticos esperados dentro de culturas musicais específicas. Assim, a utilização do termo ‘articulação’ para o intérprete é destinado a determinar de que forma os sons se iniciam, ao mesmo tempo em que pretende regular o período de silêncio que os separa. A relatividade entre os fatores – indicação escrita, resultado sonoro perceptivo no ambiente e gosto pessoal – dependerá da ênfase de uma maior ou menor separação entre os sons em função de um melhor resultado no ambiente (DONINGTON, 2001). Segundo Clive Brown (2001, [s.p.]):

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Até o final do século 18 os únicos sinais comumente usados para indicar distinções de articulação foram a ligadura e a marca staccato (um ponto, um traço vertical, ou uma cunha) colocado acima ou abaixo da nota. No século 19, os compositores se preocuparam em especificar suas necessidades, sempre com maior precisão e foram introduzidas outras marcas de articulação, embora apenas algumas delas foram adotadas amplamente. O principal significado da ligadura manteve-se relativamente constante, apesar da forma de emprego ter variado muito ao longo dos séculos. Exceto onde ligaduras são escritas ao longo de uma sucessão de notas iguais para indicar portato, especificam que as notas de alturas diferentes devem ser realizadas sem separação, isto é, legato. A rigor, não há maior ou menor grau de conectividade; termos como molto legato em passagens ligadas não podem afetar o grau de conexão entre as notas dentro de uma ligadura, que só pode significar que deve haver a separação mínima possível entre grupos ligados. Marcas de staccato, por outro lado, quer isoladamente ou em combinação com uma ligadura, têm sido utilizadas para indicar qualquer tipo e grau de separação, do mal articulado ao acentuadamente curto, e que por vezes tem implicações de acento, bem como de separação. A interpretação dessas marcas em casos específicos depende de fatores como período, nacionalidade, contexto musical e as sugestões práticas individuais de compositores. Outras formas de articulação e acentos também variaram consideravelmente em seu significado entre diferentes compositores e tradições93. (BROWN, 2001 – Tradução de Isabela Maira de Andrade Almeida).

Dentro desta gradação de possibilidades no repertório mais tradicional (exclui-se aqui as técnicas expandidas do repertório mais contemporâneo), identificam-se quatro formas principais de articulação: o legato; o destacado apoiado94; o destacado normal; e o staccato. Excluindo o legato, que será tratado num capítulo posterior, os sons destacados se apresentam da seguinte forma:

93

Until the late 18th century the only signs commonly used to indicate distinctions of articulation were the slur and the staccato mark (a dot, a vertical stroke, or a wedge) placed above or below the note head. In the 19th century composers became concerned to specify their requirements with ever greater precision, and other forms of articulation mark were introduced, though only a few of these were widely adopted. The principal meaning of the slur has remained relatively constant, though the manner of its employment has varied greatly over the centuries. Except where slurs are written over a succession of notes on the same pitch to indicate portato, they specify that notes of different pitches should be performed without separation, that is, legato. There is, strictly speaking, no greater or lesser degree of connectedness; terms such as molto legato in slurred passages cannot affect the degree of connection between notes within a slur, they can only mean that there should be the minimum possible separation between slurred groups. Staccato marks, on the other hand, either alone or in combination with a slur, have been employed to indicate every type and degree of separation, from the barely articulated to the very sharply detached, and have sometimes had implications of accent as well as of separation. The interpretation of these marks in specific instances will be dependent on such factors as period, nationality, musical context, and the known or inferred practices of individual composers. Other forms of articulation and accent marks (the two functions are seldom entirely discrete) have also varied considerably in their meaning between different composers and traditions (BROWN, 2001).

94

Ver Glossário, p. 196.

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2.2.1 Destacado Apoiado

Este tipo de articulação se situa a meio termo entre o destacado e o legato, podendo ser classificado como uma articulação híbrida; como um legato apoiado, onde as notas são destacadas em meio ao legato, portanto, sem interrupção do sopro. Alguns autores se referem a este tipo de articulação com várias nomenclaturas como: louré, semi-ligado, leggiero, etc. (RIEMANN; HUMBERT, 1931).

Exemplo Musical 2.1 – solo de flauta do Adagio non troppo (terceiro movimento) da Serenata nº 1 in D Major, Op. 11 de J. Brahms.

Exemplo de destacado apoiado escrito a partir do compasso 7 do solo.

Sobre esta forma de articulação, Artaud (1991) descreve a técnica de execução através do toque da língua no alvéolo dental superior para reforçar a nitidez de cada nota sem, contudo interromper o fluxo de ar. O mesmo tipo de articulação poderá também ser executado com o auxílio do vibrato de intensidade, ao regular a velocidade e a intensidade do vibrato para pronunciar levemente cada nota. (GÄRTNER, 1981). Quantz, em seu livro ‘On playing the flute’, indica esse tipo de técnica nas entrelinhas quando descreve os tipos de articulação, todavia não o associa diretamente ao vibrato como GÄRTNER o faz ao descrever o martelatto95. (GÄRTNER, 1981). Roger Mather aponta o equívoco de alguns flautistas em utilizar essa técnica durante uma passagem em legato a fim de aumentar o grau de expressividade da frase musical. Segundo ele, o efeito dessa forma de articulação é prejudicial à expressividade da frase, uma vez que as notas são reforçadas uma a uma e soam ligeiramente separadas entre si, o que, portanto, deverá ser evitado numa passagem expressiva em legato (MATHER, 2011, p. 55). 95

Ver Glossário, p. 196.

71

Figura 2.6 – Som da nota Si3 com vibrato de intensidade.

Fonte: Elaboração do Autor, 1998.

A interrupção das parciais harmônicas produz um efeito de sons separados; quando associado a diferentes notas produz um bom efeito de articulação destacada apoiada. Perceptivamente, um meio termo entre o staccato e o legato (TEIXEIRA, 2000).

Charles De Lusse indica duas formas de realizar este tipo de articulação: 1) o perlé em que o ‘tu’ é pronunciado na borda dos lábios, que é utilizado somente em movimentos rápidos e alegres e; 2) tac aspiré, que se utiliza apenas do sopro para articular cada nota, utilizado em movimentos lentos e ternos (LUSSE apud RÓNAI, 2008, p. 179).

2.2.2 Destacado Simples96

Esta forma de articulação é a mais básica pois, quando um compositor quiser que uma nota seja destacada bastará não indicar nada na partitura. Os ataques destacados, em relação aos pontos e modos de articulação, seguem de acordo com o gosto pessoal do intérprete, que deverá procurar a melhor forma de ataque para a passagem de acordo com o resultado sonoro 96

Ver Glossário, p. 196.

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no ambiente. No entanto, não se trata de uma forma de articulação completamente livre, pois será necessária uma elaboração, ainda que básica, para a formação de um critério articulatório eficaz. E tal critério pode exigir grandes diferenças na articulação entre um e outro estilo musical.

Exemplo Musical 2.2 – Introdução do Magnificat in D Major BWV 243 de J. S. Bach.

O intérprete define o modo de articulação, obedecendo a critérios escritos – no caso não escrito –; estilo de época – também não escrito –; e resultado final no ambiente. A definição da articulação baseada no conhecimento de tais fatores define um desempenho de alto padrão.

A consideração do estilo de época e o argumento principal da obra, no caso uma obra sacra no estilo barroco alemão, é fundamental para o intérprete definir os enlevos da articulação. No compasso 12 (último compasso do exemplo), as colcheias não devem, em nenhuma circunstância, ser articuladas de forma igual. O peso do compasso ternário recai sobre a nota Sol#4 que precisa ser Nobilis, assim como o Si3 no terceiro tempo necessita de um caráter Vilis97 (HARNONCOURT, 1998). Além dos costumes e normas que procuram regular uma interpretação de um estilo de época, o texto indicado no princípio do movimento‘Magnificat anima mea Dominum’98, indica o objetivo e a finalidade da composição que denota um caráter de júbilo na obra com o qual o intérprete deve se ocupar. A adequação das articulações no ambiente deverá proporcionar uma impressão de leveza e sugerir ao ouvinte um caráter de alegria ao alongar o tempo forte e encurtar os tempos fracos.

97

De acordo com autores musicais dos séc. XVII e XVIII, num compasso 3/4 há notas boas e ruins (Nobilis = n; e Vilis = V). 1 tempo – nobre; 2 tempo - não tão nobre; 3 tempo -; vil, miserável ou fraquíssimo. Por esta razão que a indicação moderna de arcada corresponde às letras n, para tempos fortes (posição do arco no talão) e V, para os tempos fracos (arco na ponta) (HARNONCOURT, 1998).

98

“A minha alma engrandece ao Senhor” (Evangelho segundo Lucas cap.1, v. 46). (BAZAGLIA et al., 2003).

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O destacado simples é portanto, a mais básica forma de articulação, mas o intérprete precisa ter em mãos uma variada gama de ataques para produzir o enlevo exigido pelo compositor e que atenda adequadamente à demanda de caráter e finalidade da obra.

2.2.3 Staccato

Expresso graficamente por um ponto sobre cada uma das notas denomina-se staccato os sons bem separados uns dos outros. As notas devem ser encurtadas em sua duração normal, deixando pequenos períodos de pausas entre os sons. Para tanto, o fluxo de ar deve ser controladamente intermitente, e período de silêncio compreendido entre as notas dependerá da qualidade acústica do ambiente (Seção 2.4, p. 87).

Exemplo Musical 2.3 – Trecho do Finale do Concerto in D Major Op. 283 para flauta e orquestra de Carl Reinecke.

A percepção de separação entre as notas dependerá de uma série de acontecimentos em que a qualidade do ambiente imporá ao intérprete as condições necessárias ao músico para que tal passagem seja percebida de acordo com a intenção de sua interpretação (Seção 3.3, p. 114). Para tanto, a adequação da oclusão dos pontos articulatórios deverá ser criteriosamente trabalhado para que o staccato não tenha a perceptiva aparência de matelatto, nem soe demasiadamente brando para que possa ser percebido como destacado simples ou louré (Seção 2.2.1, p. 69; seção 2.2.2, p. 71).

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Há várias outras formas de articulação do som na flauta como, por exemplo, o portato99, acentos de intensidade (fp), de articulação (sfz), etc.; sendo que o mais importante para o intérprete é obter um bom controle das técnicas de articulação a fim de poder empregar o modo de articulação correto de acordo com cada circunstância.

2.3 ARTICULAÇÃO MECÂNICA

A flauta moderna é constituída de um único tubo cilíndrico aberto em ambos os lados (ver ANEXO B – Equação de Bernoulli, p. 209) e com vários orifícios que se abrem e fecham de forma rápida através do acionamento de um engenhoso e complexo sistema mecânico elaborado por Theobald Böhm100. Esse sistema alterna com perfeição quinze tubos básicos de diversas medidas acústicas por meio da abertura e obstrução dos orifícios do corpo da flauta e com isso se obtém toda a extensão melódica das três oitavas (Si2-Ré6). Naturalmente, cada um dos tubos acústicos é capaz de produzir uma série de sons parciais característicos de cada fundamental, múltiplos matemáticos da divisão fracionária do tubo, de acordo com as leis da ressonância para tubos com sistema aberto/aberto. Ex: Tubo 2 (Dó3) – Dó3, Dó4, Sol4, Dó5, Mi5, Sol5, Sib5… Desta forma, há notas com frequências iguais produzidas por tubos acústicos diferentes – a nota Dó5, por exemplo, pode ser produzida no Tubo 2 (Dó3, 3º modo), no Tubo 7 (Fá3, 2º modo) e no tubo 14 (Dó4, 1º modo) – permitindo uma série de recursos para uma boa execução.

99

Na flauta, assim como nos instrumentos de sopro em geral, o termo portato procura indicar que as notas devem ser estendidas em seu valor máximo, diminuindo assim o tempo de separação entre as notas. A significação deste termo na flauta diverge, portanto, de seu significado original port de voix (Ver Glossário, p. 196.) que representa a condução da voz por graus conjuntos. (ISAACS; MARTIN, 1985).

100

Böhm nasceu e morreu em Munique (1794-1881) (MATAS, 1980). Trabalhou na elaboração de um engenhoso sistema mecânico para a flauta transversa com a colaboração de William Gordon, Nolan, Johann Georg Tromlitz e Mendler, o empregado que o sucedeu em seu ateliê em Munique (ARTAUD, 1991, p. 29). Willian Gordon foi um construtor suíço de instrumentos musicais que introduziu vários aperfeiçoamentos no mecanismo da flauta mesmo antes de Böhm (MATAS, 1980). Desde 1883, trabalhou por vários meses em Munique em parceria com Böhm. Alguns anos mais tarde Gordon adoeceu e, no momento da apresentação oficial da flauta Böhm, a senhora Gordon se ofendeu por Böhm não mencionar o nome de seu marido. Entre Böhm e Gordon se estabeleceu uma violenta controvérsia (ARTAUD, 1991, p. 28-29).

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Figura 2.7 – Quinze tubos primários da flauta transversa moderna e suas quinze respectivas fundamentais.

Fonte: Adaptado de (PIFFER, 2011, p. 60).

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Figura 2.8 – Quinze sons fundamentais da flauta, produzidos em cada um dos tubos primários da flauta transversa, com seus principais sons harmônicos (TEIXEIRA, 1998).

Além dos quinze tubos acústicos primários produzidos pela abertura ou fechamento de orifícios no tubo principal, há vários outras possibilidades de tubos acústicos criados a partir da diminuição dos tubos primários e/ou pela alteração do modo acústico. A abertura da chave de ‘Dó4’ (dedo indicador esquerdo) no tubo 4 (Ré3), por exemplo, resulta num tubo de comprimento acústico menor do que o tubo original (Ré3), o que consequentemente produzirá uma fundamental mais aguda (HENRIQUE, 2002, p. 534). Esta abertura diminui acusticamente o tubo e permite uma maior clareza no modo harmônico superior (Ré4), que produz uma série de parciais estáveis como fundamental de um novo tubo.

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Figura 2.9 – Tubos acústicos da flauta.

Fonte: Adaptado de (HENRIQUE, 2002, p. 534).

O complexo sistema mecânico da flauta Böhm consiste de pequenos pratos fixados num eixo, forrados com sapatilhas niveladas e compactadas que permitem uma vedação imediata do orifício lateral do corpo da flauta, alterando de forma instantânea o comprimento do tubo, aumentando-o ou diminuindo. Deste modo, a abrupta alteração dos tubos causada pelo fechamento e abertura dos orifícios durante as mudanças na digitação poderá ser responsável por alguns dos fenômenos ocorrentes na transição das notas na flauta, como a frequente variação NPS no ato da transição, que configura a forma com que se dá a maioria das transições entre notas ligadas na flauta (TEIXEIRA, 2014). Passagens em legato e o efeito causado pela brusca alteração do tubo serão tratados num capítulo posterior.

2.3.1 Velocidade de fechamento e abertura das chaves

A precisão da obturação dos orifícios no corpo da flauta no sistema Böhm representou um avanço tecnológico considerável no sentido de tornar o câmbio dos tubos mais preciso e ligeiro, uma vez que as sapatilhas acomodadas nos pratos são ajustadas de forma a fechar o orifício uniformemente. O feltro utilizado para a fabricação das sapatilhas precisa ser compactado e uniforme para que a sapatilha não feche o orifício se acomodando irregularmente às bordas da chaminé, mas de forma plana e nivelada. Desse modo, o ajuste

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das sapatilhas é uma operação precisa e delicada, e disso depende o bom funcionamento da flauta (ARTAUD, 1991). O tempo de acionamento da chave, da posição totalmente aberta para totalmente fechada pode variar de acordo com o instrumento; pela tensão das molas; pela distância de curso do mecanismo, da sapatilha à borda do orifício; etc. Assim, é certo que o tempo de acionamento pode variar em cada instrumento ou até mesmo para cada flautista. Ao utilizar o dispositivo fotossensível acoplado ao corpo da flauta – como detalhado no ANEXO A, p. 204, e no Capítulo 4, seção 4.5, p. 166; que descreve o dispositivo e os dados por ele obtidos –, foi observada uma diferença entre o tempo de fechamento e o tempo de abertura da chave. Como descrito no ANEXO A, (p. 204) o oscilador astável é composto de um circuito eletrônico que emite um sinal, cuja frequência varia de acordo com a intensidade de luz que incide sobre um sensor acoplado junto à chaminé da chave Si. O quadro a seguir representa a variação da captação de luz do sensor fotoelétrico posicionado rente à chaminé do Si3. Figura 2.10 – Abertura e Fechamento da chave Si.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016. À esquerda, movimento de abertura da chave Si com tempo estimado em 187 ms; à direita, movimento de fechamento da chave Si com tempo aproximado de 309 ms.

A diferença na velocidade dos movimentos contrários foi confirmada após a verificação de vários intervalos. Em todos os exemplos gravados, a disparidade se manteve invariável. A explicação para essa diferença pode estar relacionada à diferença da pressão das molas; ao estágio de acomodação da sapatilha, o que naturalmente não ocorre na abertura; ou ainda a fatores diversos. Contudo, o tempo de 309 ms para um deslocamento de 3 mm da chave Si não aparenta estar correto. Por essa razão, por hora é importante guardar essa informação sem

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computá-la como verídica, pois a análise dos sons com o dispositivo astável será considerada pormenorizadamente no Capítulo 4, seção 4.5, p. 166.

2.3.2 Ruído de chaves

Durante a execução, mesmo sem o sopro, o simples acionamento do mecanismo ocasiona um som percussivo involuntário característico do tubo101. O efeito percussivo causado pelo impacto da sapatilha nas bordas da chaminé poderá interferir na qualidade, tanto do som articulado como do legato, e isto pode caracterizar um fator interferente considerável num estudo sobre transições sonoras; por interferir na qualidade do fluxo de som. Durante o estudo de causas e efeitos onde se buscavam elementos transientes na passagem entre notas ligadas, foi realizada uma gravação com um microfone posicionado no interior do tubo da flauta, na altura da chave Fá. O objetivo deste procedimento foi estudar a transição das notas na flauta, sem a interferência de sons reverberantes do ambiente, quase sempre presentes numa microfonação externa. Mas, foi observado um som no momento da junção das notas cuja origem foi, a princípio, atribuída ao ruído do mecanismo de fechamento de três orifícios simultâneos na passagem do intervalo Dó4-Lá3 (ver Figura 2.11, p. 80). A partir desta observação, houve a necessidade de uma investigação um pouco mais apurada sobre os sons das chaves. Algumas questões precisavam ser esclarecidas já que nem todos os intervalos gravados com as mesmas especificações apresentavam este som, logo não parecia se tratar de um padrão. Ainda com microfone interno foi realizada uma nova gravação para apurar, desta vez, o som das chaves com, e sem o som de notas, além de diversas formas de ataque e passagens em legato.

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Embora a estética da música erudita prime pela pureza do som, o som percussivo das chaves na flauta passou a ser explorado como componente estético a partir de 1934 com a composição da peça ‘Density 21.5’. O título enigmático da peça diz respeito à densidade da Platina (elemento 78 na tabela periódica, da família dos metais de transição); metal com o qual foi confeccionada a flauta de Georges Barrére, (uma flauta Powell), que encomendou a obra a Edgar Varèse. Desde então, o som percussivo das chaves se incorporou às técnicas expandidas da flauta (ARTAUD, 1991).

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Figura 2.11 – Intervalo das notas Dó4-Lá3.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Som, atribuído ao fechamento de três orifícios simultâneos, captado por um microfone interno no tubo da flauta. O som da nota Dó4 apresentou um NPS de 71.53 dB no ponto selecionado, enquanto que o som ressaltado na transição do intervalo atingiu 77.44 dB, e o Lá3 com 81.85 dB. (CD Exemplo 2.4).

Algumas chaves da flauta são conjugadas, e acionam outras chaves para fechar mais de um orifício, como a chave Sol (dois orifícios). Assim sendo, esta seção procura demonstrar a intensidade dos sons emitidos pelo acionamento do mecanismo da flauta com o fechamento de dois orifícios simultâneos, a fim de verificar uma possível interferência sonora do processo mecânico no movimento melódico, e ainda comparar estes sons com ações enérgicas como o G slap key e o G slap tongue.102

102

O slap key (Ver Glossário, p. 196.) é uma técnica de acentuação da nota onde se emprega um forte ‘tapa’ na chave (geralmente na chave Sol, por fechar dois orifícios simultâneos). A ação combinada do slap key com uma articulação enérgica no ponto linguodental, o slap tongue (Ver Glossário, p. 196.), produz um efeito altamente oclusivo no ataque da nota.

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Figura 2.12 – Som do fechamento da chave Sol com microfone interno na flauta.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Da esquerda para a direita: som do acionamento da chave Sol, sem sopro, com toque normal (58.2 dB); slap key na chave Sol (69.2 dB); G slap key com articulação linguodental suave (75.8 dB); slap key com slap tongue na chave Sol (77 dB). (Ver CD Exemplo 2.5).

Figura 2.13 – Articulação da nota Sol3.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Gravação realizada com microfone interno. Da esquerda para a direita: nota Sol3 com 68.8 dB no fim do Ataque, sem articulação fonatória e com leve toque na chave Sol (49 dB); No quadro do centro, Sol3 com 72.4 dB, sem articulação fonatória e com G slap key (63.1 dB); À direita, Sol3 com 72.2 dB no fim do Ataque, com G slap key e slap tongue (69.9 dB). (Ver CD Exemplo 2.6).

Na análise da gravação ficou claro que eventos que integram a articulação do som podem não se apresentar perfeitamente alinhados como demonstrado no Figura 2.13 (p. 81), mas com pequenas separações entre eles, como na figura a seguir:

82

Figura 2.14 – Alinhamento de eventos na articulação do som.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Três configurações nas ações combinadas entre o Slap key e Slap tongue que representam a borda inicial da nota. O som percutido da nota Sol3 surge em meio aos eventos articulatórios (linha azul). (Ver CD Exemplo 2.7).

Embora muito frequentemente os eventos se mostrem fora de sincronia, todos os aspectos envolvidos na articulação do som são percebidos como um único evento por se apresentarem numa estreita faixa de tempo (VASSILAKIS, [s.d.]). Dessa forma, cada articulação é diferente dependendo da configuração dos fatores que, somados, definem a qualidade perceptiva da articulação. O ataque de uma nota pode ser percebido de forma diversa de acordo com a sincronização ou dessincronização dos eventos e não somente pela intensidade do NPS do ruído das chaves, do efeito percussivo do tubo e/ou da oclusão fonatória.

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Figura 2.15 – Ataque da nota Sol3 com toque e articulação fonatória leves.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016. Ruído de chaves (45.19 dB), articulação linguodental (41.7 dB) e o som da nota Sol3 numa dinâmica p 65.02 dB). Três eventos numa faixa de tempo de 191 ms. Gravação Volta Redonda.

Consideradas essas situações, conclui-se que: 1. No ato do fechamento das chaves ocorre um natural som de tubo percutido (Seção 5.1.2. p. 177). 2. Embora haja som de mecanismo, tanto na ação de fechamento quanto na abertura das chaves, o efeito de tubo percutido ocorre apenas no ato do fechamento de um orifício da flauta. 3. O som do mecanismo em conjunto com o som do tubo percutido e da articulação fonatória tendem a ser percebidos como apenas um evento, mesmo quando não ocorrem em perfeito alinhamento. (SCHAEFFER, 1993) (JOURDAIN, 1998). 4. O som do tubo percutido possui uma frequência definida na altura do som da nota, o que auxilia a percepção de momento inicial do som. 5. A percepção de ataque da nota é compreendida pelo som do mecanismo, pelo efeito percutido do tubo e pela articulação fonatória seguidos pelo som da nota propriamente dito, numa estreita faixa de tempo (SCHAEFFER, 1993).

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6. O NPS da nota é muito superior ao NPS ocasionado pelo mecanismo e oclusão fonatória. A diferença de intensidade de 45.19 dB para 65.02 dB corresponde à percepção auditiva de intensidade de mais de 6 dobras, porquanto cada dobra corresponde a 3 dB (ver ANEXO C, p. 212).

Dessa forma, de acordo com as observações realizadas e descritas, a conclusão geral é que o som das chaves com o efeito percussivo do tubo é relativamente pouco perceptivo se comparado ao NPS do ataque como um todo e só se torna proeminente no momento de uma ação vigorosa intencional das chaves, como demonstrado pelo G slap key e o slap tongue. As gravações relacionadas com os gráficos apresentados – com exceção do Figura 2.16, p. 85 que foi realizada com microfone externo – e que estão contidas no CD de Exemplos de Áudio (APÊNDICE A, p. 215) foram realizadas com um microfone posicionado dentro do tubo próximo à chave Sol. Quando se posiciona o microfone na parte externa, o NPS captado pelo som do mecanismo e efeito percussivo do tubo diminui consideravelmente. Até aqui se seguiu os passos dos sons das chaves no momento da articulação do som, mas a observação que gerou esta investigação se trata de uma passagem entre sons num movimento melódico, uma transição sonora entre duas notas com frequências distintas. Todavia, como se pode explicar a transição do som exibido no Figura 2.11, p. 80, se outros intervalos gravados nas mesmas circunstâncias não apresentaram a mesma configuração? Através de uma observação mais criteriosa, verificou-se que os sons que apresentavam o suposto som de chaves no momento da passagem dos intervalos apresentavam também outro aspecto em comum: um acentuado desnível no momento da transição. Dessa maneira, pôde-se compreender que o aspecto perceptivo da transição observado no Figura 2.11 é devido a uma somatória de fatores, e que além destes – ruídos de chaves, efeito percussivo do tubo e oclusão fonatória; mesmo ocorrendo de forma dessincronizados – podem ainda haver outros fatores acústicos que incidiram nesta medição, uma vez observado que nem todas as transições apresentam as mesmas características. O gráfico a seguir demonstra um som do intervalo de Dó4-Sol4, com acionamento de cinco chaves simultâneas, realizado com microfone externo posicionado a 40 cm da flauta.

85

Figura 2.16 – Aspecto das transições dos intervalos realizados na flauta.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

(CD Exemplo 2.8). Em geral, esta é a configuração apresentada para quase todos os intervalos de sons ligados. Com microfone externo posicionado a 40 cm da flauta, durante a transição, não há som que se possa atribuir ao fechamento dos cinco orifícios acionados no intervalo Dó4-Sol4. Gravação Friburgo.

Em relação às transições sonoras entre notas ligadas, espera-se uma boa transição quando os sons se conectam com o mínimo desnível sonoro e com poucos elementos transientes na passagem do intervalo. Porém, o efeito percussivo das chaves no tubo se torna aparentemente irrelevante por dois motivos: 1- O som produzido pela percussão do tubo corresponde exatamente à frequência da nota para qual será a transição; o que auxilia na percepção de mudança da nota, o ponto de ligação dos sons. 2- A intensidade do efeito percussivo do tubo torna-se desprezível em relação ao NPS da nota produzido som da flauta, mesmo quando se tratam de várias chaves simultâneas.

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Figura 2.17 – Transição com acionamento de duas e seis chaves.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

(CD Exemplo 2.9). Transição do intervalo Lá3-Sol3 (2 chaves) e Lá3-Mib3 (6 chaves). A espessura da região transiente selecionada em cor rosa; o NPS discriminado na linha verde e a frequência em azul. Assim, na comparação dos intervalos, pode-se afirmar que se há alguma interferência percussiva no momento da passagem de uma para outra nota, esse efeito considerado isoladamente não representa um fator interferente a ser levado em consideração. Somente o acionamento normal das chaves é portanto, desprezível e incapaz de se constituir como uma variável causal interferente considerável em meio ao legato. Todavia, tal observação não pretende afirmar que o fechamento das chaves produz um efeito insignificante, mas como fator interferente é desprezível. Luís Henrique, em seu livro ‘Acústica Musical’ cita na p. 534 a pesquisa de Octávio Inácio sob o título: Investigation of the Hole-Change Behaviour of Electroacoustic Wind Instrument. O trabalho de Inácio (1998) estuda a influência da aproximação do dedo no movimento de obturação do orifício de uma flauta com sistema anterior à Böhm. Inácio constatou diversos regimes harmônicos multifônicos e caóticos entre o orifício totalmente aberto e completamente fechado 103 (INÁCIO apud HENRIQUE, 2002). No sistema anterior a Böhm, no traverso e na flauta doce, em que os orifícios são fechados diretamente pela ação do dedo que, hipoteticamente, se acomoda irregularmente às bordas da cavidade; o câmbio dos tubos, – que a princípio imaginava-se mais lento e menos 103

Para isto, Inácio desenvolveu um protótipo eletroacústico e um dedo artificial e realizou a coleta de dados a cada 0,0625 mm de aproximação (INÁCIO apud HENRIQUE, 2002, p. 534).

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preciso do que o mecanismo Böhm, pelo próprio feitio e movimento dos dedos sobre o orifício – demonstrou-se bastante semelhante, sobretudo quando há um toque enérgico: slap hole104. Não obstante a omissão de análises comparativas entre os dois sistemas, tal analogia é facilmente comprovável 105. Roger Mather, em seu livro The Art of Playing the Flute, observa uma perda de clareza e sonoridade na flauta moderna durante a transição das notas, quando os dedos acionam o mecanismo com um movimento lento (MATHER, 2011, p. 55). Enfim, como se comporta o legato ante o movimento natural da chave da flauta? Teria a flauta moderna a mesma tendência observada por Inácio no traverso?

2.4 ARTICULAÇÃO ACÚSTICA

O processo completo da percepção do som engloba a complexidade de três grandes sistemas: a fonte, o meio e a recepção. “Uma análise Física do som implica compreendê-lo em seu processo de produção e propagação. Por outro lado, uma análise Psicofísica está relacionada ao processo de recepção do som e à sensação que ele provoca no ouvinte” (LIMA JR.; RODRIGUES; SILVA, 2012). Entretanto, apesar de alguns fenômenos serem inerentes a certos sistemas, não é fácil nem realista determinar fronteiras entre tais sistemas a fim de isolar fenômenos envolvidos nas articulações sonoras musicais. Isso porque muitos deles, senão todos, caminham nas emaranhadas veredas dos sistemas físicos e psicofísicos até a definitiva percepção auditiva individual. Desse modo, nesta subseção, procura-se reconhecer alguns fenômenos que se manifestam em meio às transições sonoras na flauta. Detectar o ponto e/ou fenômeno que resulta na percepção de um bom ou mal legato pode ser um passo em direção a obter respostas que auxiliem na questão do bom fluxo da frase musical. Roland de Candé em seu livro ‘A música: linguagem, estrutura, instrumentos’, procura descrever o processo fisiológico da percepção do som da seguinte forma: 104

105

Ver Glossário, p. 196. Embora tenham sido realizadas gravações com diversos tipos de toques de dedos na flauta doce, e tendo encontrado semelhanças com o sistema Böhm em relação a este quesito; por esta relação comparativa não possuir aspecto temático categórico para a presente pesquisa, considerou-se dispensável a apresentação de tal comparação.

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O som apresenta-se como um sistema complexo de variações periódicas de pressão que se propagam em todas as direções por acção e reacção das moléculas entre si; chegando à entrada do ouvido, o fenômeno, dirigido pelo canal auditivo, comunica um movimento periódico ao tímpano que, por intermédio dos ossos do ouvido médio, transmite as variações de pressão à membrana da janela oval, e ao líquido do ouvido interno onde banha a “membrana basilar” (órgãos de Corti), términos do nervo auditivo (CANDÉ, 1983, p. 35).

Segundo Luís Henrique: A palavra som tem dois significados consoante se considera como fenómeno físico ou como fenómeno psicofísico. O significado físico diz respeito à fonte sonora e à propagação do som através do meio. O significado psicofísico refere-se à audição desse fenómeno, ou seja, à sensação que provoca em nós. Considerar o som como um fenómeno físico ou como uma sensação, depende do tipo de abordagem (HENRIQUE, 2014, p. 6).

É importante ter em conta que a percepção do som possui aspetos fisiológicos que transcendem às ações mecânicas de variação de pressão do ar. Como observado por Roederer: “Nosso cérebro não está equipado a priori com o dispositivo operacional necessário para uma intercomparação ou medição quantitativa.” (ROEDERER, 2002, p. 29). Dessa forma, qualquer medição é complexa e de validade relativa, pelo fato do ‘nível subjetivo’ – o que se pode chamar de intensidade musical – não ser o mesmo que a ‘intensidade física’. Portanto, a magnitude da energia percebida está sujeita ao grau de percepção e sensibilidade auditiva de cada indivíduo (CANDÉ, 1983).

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Figura 2.18 – Processo da percepção auditiva.

Fonte: Imagem Shutterstock 98308454. No desenho, com finalidade didática, o conduto da Cóclea é apresentado desenrolado.

No processo de audição de um som, o ouvido percebe eventos que ocorrem em tempo inferior a 5ms, em geral tais eventos estão ligados às oclusões das consoantes. Porém, a fisiologia da audição necessita de 10-60 ms de som para a percepção de altura e de 100 -200 ms para a percepção de intensidade sonora (VASSILAKIS, [s.d.]). Em seu livro ‘Tratado dos Objetos Musicais’, Schaeffer observa que a percepção auditiva é capaz de reconhecer a clareza das articulações de consoantes realizadas bem abaixo da faixa de 10ms, mas o ouvido tende a integrar eventos distintos que se sucedem num espaço de tempo abaixo de 50 ms como um único evento sonoro, ao que ele denomina de ‘constante tempo de integração fisiológica do ouvido’ (SCHAEFFER, 1993, p. 171-172). Num experimento descrito no capítulo 7 da obra citada, intitulado ‘O Ataque Tesoura’

106

106

, Schaeffer procura simular a

Pierre Schaeffer observa que, além do timbre, a articulação do som é um dos fatores indispensáveis para que o cérebro identifique a fonte sonora. O autor descreve um experimento onde é gravado um som de piano em registro grave em fita magnética. Schaeffer constatou que quando reproduzido a uma velocidade de 38 cm/s, um corte de 90° na fita reproduz de forma satisfatória o ataque do piano. Efetuando o mesmo experimento

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articulação característica de um instrumento alterando os ângulos de corte numa fita magnética com o som contínuo de um instrumento sem sua articulação natural; estabelecendo assim uma relação direta entre a forma natural de articulação com uma reprodução artificial ao definir um ângulo de corte que restitua a aparência perceptiva do ataque original. Embora reconhecida a necessidade do tempo de 10-60 ms para sensação de altura e 150-200 ms para a intensidade, como observado e ratificado por Vassilakis, Schaeffer identifica eventos sonoros presentes no ataque numa faixa de tempo inferior a 5 ms (SCHAEFFER, 1993, p. 171-172) Geoffrey Chew destaca em seu artigo Articulation and phrasing que o som de instrumentos de som contínuo como o oboé, trompete e o violino se tornam semelhantes ao se suprimir o início do som correspondente ao ataque da nota numa gravação desses instrumentos. Conclui-se assim que a articulação é tão importante para o reconhecimento auditivo do som de um instrumento quanto o próprio timbre (CHEW, 2001); (HENRIQUE, 2002). O mecanismo com que o cérebro percebe e discrimina o timbre de dois sons tocados simultaneamente não é inteiramente conhecido, todavia o ataque de notas com instrumentos diferentes possui uma pequena diferença de tempo entre um e outro ataque; parece ser este – o elemento temporal – o principal fator de tal reconhecimento (ROEDERER, 2002). Durante esse período transiente, o mecanismo de processamento em nosso cérebro parece capaz de se concentrar em certos detalhes característicos do padrão de vibração de cada instrumento e de se manter na pista desses detalhes, mesmo que eles sejam perturbados ou eclipsados pelo sinal do outro instrumento (ROEDERER, 2002, p. 237).

Os resultados de experimentos dessa natureza atestam que a articulação do som é de extrema importância no reconhecimento auditivo de instrumentos de som contínuo, como a flauta. O ouvido necessita dos elementos presentes no início do som do instrumento para associá-lo ao que se denomina ‘som de flauta’. Assim, para a percepção musical, a articulação do som é uma das principais características que identifica o instrumento musical (CHEW, 2001). Dessa forma, a básica diferença entre um som de trompete para o som de uma flauta não é atribuída somente ao timbre, mas à soma de fatores, como a articulação. Contudo, o som musical é composto de três fatores básicos: A frequência (altura dos sons), o timbre (distribuição do espectro harmônico) e a intensidade (dinâmica). Além da com um instrumento de som contínuo, no caso do som da flauta, um corte reto (90º) desvirtua lhe o timbre provocando um ataque muito oclusivo, sem comparação com o original, enquanto um corte de 60 graus restitui a semelhança do ataque original (SCHAEFFER, 1993).

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complexa relação entre potência física e percepção subjetiva do som, há outros eventos presentes na articulação capazes também de influir na condução perceptiva do som musical por produzir estímulos auditivos consideráveis.

2.4.1 O Som no Ambiente

O som musical não está somente na fonte e/ou na percepção auditiva, mas nas propriedades acústicas do ambiente ao entorno do músico, o que influencia diretamente a percepção e pode modificar a intenção de uma interpretação musical. Cada ambiente é por si só único, devido a sua estrutura, dimensão e conjuntos de outros fatores que potencializam alguns elementos presentes no som. A tendência natural do músico é tocar sempre da mesma forma em qualquer espaço. A diferença é que, se ao ar livre percebe-se a qualidade do som de uma maneira, em uma sala fechada o som será percebido de forma bastante diferente em sua intensidade, timbre, tempo de Decaimento, etc. Também para cada sala, de acordo com seu volume, ângulos e materiais de revestimento, haverá diferenças perceptíveis. Um músico com boa formação procura se ajustar ao ambiente de forma a se fazer entender em qualquer tipo de acústica, mas existem ambientes que, graças às suas características físicas e acústicas, são simplesmente impróprios para a música (CANDÉ, 1983). No livro ‘Música, cérebro e êxtase’, Robert Jourdain menciona que os peritos em acústica de salas de concerto identificam três estágios na captação do som: - Som Direto – trata-se do som que procede diretamente da fonte no palco até o ouvinte; um som com propagação livre. - Primeiras Reflexões – São as primeiras reflexões do som, geralmente procedentes da reflexão do teto e das paredes. O tempo entre o som direto e as primeiras reverberações pode variar de acordo com as dimensões e características de cada sala. No entanto, o cérebro não percebe as primeiras reflexões como reverberação senão como parte integrante do som direto, um fenômeno conhecido como ‘Constante de Integração’107. 107

Efeito em que o ouvido agrega num só evento a percepção do som direto e das primeiras reflexões quando estes eventos acontecem numa faixa de tempo abaixo de 50 ms (SCHAEFFER, 1993). Luís Henrique enfatiza ainda o ‘Efeito de Precedência’ “refere-se à capacidade do nosso sistema auditivo localizar a direção de uma fonte sonora” (HENRIQUE, 2002, p. 788). Ver Glossário, p. 196.

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Qualquer evento que venha num intervalo de até 20 ms depois do som direto não é percebido separadamente. Antes, o ouvido atribui elementos ao som original. - Reverberação – Reverberações subsequentes, geradas a partir do ricochetear das ondas por todas as superfícies do ambiente até a completa dissipação da energia (JOURDAIN, 1998, p. 76).

A adequação de uma sala para música de câmara ou música sinfônica dependerá principalmente das dimensões do ambiente. Quanto menor for a sala, mais ‘intimista’, e isso depende do tempo dispensado entre o som direto e as primeiras reverberações (JOURDAIN, 1998). O ambiente representa o sistema intermediário do ciclo completo de apreensão sonora. A propagação do som é um sistema modelador que não somente influi, como também molda vários aspectos do som através das reflexões das ondas no espaço; dependendo da forma do ambiente, tipo de revestimento das paredes, material do piso, altura do teto e distância da fonte sonora e de todos os elementos reflexivos ou absorventes que revestem a sala. Desse modo, o ambiente transporta e altera significativamente as características naturais do som e as transforma numa complexa rede de ondas sobrepostas. Como se trata de ondas, o som ganha boas ou más propriedades, dependendo especificamente dos aspectos do espaço que em certas circunstâncias precisa ser preparado, reparado ou corrigido em busca de um apurado som musical. Enfim, os materiais presentes no ambiente sonoro têm a capacidade de alterar algumas propriedades tímbricas, uma vez que podem absorver alguns harmônicos e refletir outros. Desta forma, o melhor ambiente para a música é uma sala preparada a fim de se obter, entre outras coisas, uma reverberação minimamente adequada para que o som ecoe musicalmente belo (CANDÉ, 1983). A qualidade do som pode sofrer alterações com a diversificação do material do meio, resultando em aumento natural na intensidade sonora e até na qualidade do som, ou ainda, na destruição dos elementos que tornam o som esteticamente aceitável. (CANDÉ, 1983). Uma sala muito reverberada (tempo de reverberação muito longo) dá uma sensação de confusão; a palavra corre particularmente o risco de aí ser incompreensível. Uma sala mais abafada (tempo de reverberação muito curto) dá uma impressão de frieza; os músicos são obrigados aí a forçar o matiz, porque a música perde a beleza (CANDÉ, 1983).

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Gráfico 2.1 – Três estágios da captação do som em salas de concerto.

Fonte: Adaptado de: http://www.torgny.biz/Room acoustics_1.htm. (LUNDMARK, 2012).

O maior problema para os especialistas em acústica de salas preparadas para a escuta musical é que a preparação acústica para um tipo de música não é adequada a outro. Por exemplo, a música de câmara exige um ambiente mais íntimo, isto é: quando os primeiros reflexos chegam quase que imediatamente, agregando a Constante de Integração e o Efeito de Precedência108 que evocam a sensação de intimidade da sala. Essa configuração acústica somente se torna possível em ambientes pequenos, mas é quase inalcançável em salas com dimensões maiores. A intimidade da sala depende basicamente do tempo decorrido entre o som direto e as primeiras reflexões. Por essa razão, exige dimensões bem mais modestas para que os sons diretos que se deslocam num campo livre cheguem ao ouvinte antes das primeiras reflexões, que se deslocam por um campo reverberante para que o ouvinte mantenha a percepção espacial de localização da fonte (HENRIQUE, 2002). Mas para que a subjetividade de intimidade da sala seja alcançada, é necessário que a diferença de tempo entre o som direto e as primeiras reflexões estejam abaixo de 20 ms. As grandes salas são, em geral, inimigas do

108

Ver Glossário, p. 196.

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efeito de prededência e, consequentemente, da subjetividade de intimidade sonora. Já a música sacra para órgão e coro soará melhor num ambiente com grande reverberação, pois, segundo Jourdain, o longo período de reverberação evoca uma desejável e interessante aura de eternidade (JOURDAIN, 1998). A decisão de se atacar uma nota através de uma ou outra forma de articulação mais oclusiva ou menos oclusiva está sujeita ao intérprete, o qual deverá obedecer a critérios articulatórios ditados pela obra e assim deliberar de acordo com a resposta sonora dos ataques, mediante a percepção da resposta sonora no ambiente. Ao atacar um som ante ao silêncio, o intérprete precisará de um bom controle técnico de articulação; pois, dependendo do tipo de ambiente, um simples ataque poderá ser de difícil execução e motivo de muita preocupação. Como exemplo, cita-se a primeira nota de Syrinx para flauta solo. O ataque inicial do Sib4 é especialmente difícil pela delicadeza que a obra impõe ao intérprete, mas as características acústicas do ambiente poderão fazer com que esta articulação seja ainda mais difícil.

Exemplo Musical 2.4 – Syrinx pour flûte seule de Debussy.

A articulação da nota Sib4 é motivo de muita preocupação para os flautistas. Além disso, há também a preocupação do decrescendo no fim do membro de frase, novamente Sib4.

Dependendo do ambiente de execução e do processo de elaboração de uma interpretação, esse simples membro de frase poderá exigir do intérprete um controle de articulação e dinâmica de alto desempenho. Contudo, a resposta sonora do ambiente poderá fazer com que o início do som soe linda ou asperamente. Essa diferença está diretamente associada à qualidade da sala e ao tempo de reverberação do ambiente. Num ambiente com uma acústica muito seca, o ataque do Sib4 de Syrinx soará mais ríspido ao mostrar com muita clareza o ponto oclusivo da articulação. Assim como apontado por Rolland de Candé,

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articulações delicadas dessa natureza soarão melhor em ambientes mais reverberantes do que numa sala com acústica pouco reverberante (CANDÉ, 1983). A reverberação do som num ambiente se dispõe naturalmente a cobrir as imperfeições de um ataque ao sobrepor o som, repetidas vezes, nos instantes imediatos à oclusão da articulação. O Efeito de Precedência e a Constante de Integração determinarão o quão adequado o ambiente está para o tipo de música. Em geral, ambientes menores são mais adequados para a música de câmera exatamente pela velocidade de reflexão das primeiras reverberações que o ouvido tende a atribuir ao som original (JOURDAIN, 1998). Num outro caso, a difícil passagem do segundo movimento das Cinq Incantations para flauta solo de André Jolivet necessita de um ambiente com acústica moderada ou mais seca para que esse tipo de articulação funcione bem. Numa acústica muito seca, esta passagem soará de forma áspera, enquanto numa acústica muito reverberante haverá a tendência perceptiva de uma única nota longa com vibrato de intensidade109; as pausas entre as notas tendem a desaparecer. Nesse caso não será apenas com o modo e ponto de articulação que o intérprete deverá se ocupar, mas também com a extensão dos sons.

Exemplo Musical 2.5 – B – Pour que l’enfant qui va naître soit un fils (Cinq Incantations pour flûte seule) de André Jolivet.

Em quaisquer passagens dessa natureza, a música somente funcionará bem quando executada num ambiente cuja acústica seja equilibrada o suficiente para mostrar os sons consecutivos ao mesmo tempo em que cubra as imperfeições dos ataques. Para tanto, a acústica do espaço deverá apresentar um elevado grau de equilíbrio. Caso contrário, a execução se tornará difícil ou incompreensível. Num ambiente muito reverberante, a diferença entre os tipos de articulação muitas vezes não pode ser percebida. A articulação se deforma a ponto de emendar as notas que deveriam soar separadas. 109

Na flauta há basicamente dois tipos de vibrato, o de frequência e o de intensidade (ARTAUD, 1991, p. 75).

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A reverberação é desejável. Todavia, em grau elevado, deteriora a inteligibilidade de notas separadas. Os sons se misturam e as articulações se perdem em meio aos sons reverberantes. Por essa razão que nas salas de concerto há tanta diversificação nos materiais utilizados para os revestimentos. Eles têm a propriedade de alterar tanto a intensidade quanto a qualidade do som, controlando os aspectos do som que mais interessam à música, ressaltando sons harmônicos que enriquecem o timbre de forma que a experiência da escuta nesses ambientes seja marcada pela beleza do som musical (CANDÉ, 1983). A reverberação auxilia o som principal na questão da formação e reforço dos sons harmônicos além de produzir a sensação de preenchimento do ambiente. Deste modo, trata-se de um aliado do ideal sonoro, desde que devidamente dosado. Mas, um ambiente com reflexões excedentes pode acarretar na destruição da articulação e na deformação do espectro sonoro. A questão do controle da reverberação numa sala de concerto é de muita importância para a música, pois a reverberação é parte fundamental do meio que conduz o som do instrumento até o ouvido. Assim, ao separar os sistemas – a fonte de som, o ambiente e a percepção auditiva – a reverberação faz parte do ambiente que está no sistema de transição entre dois outros complexos sistemas que compõe o grande processo sonoro.

2.4.2 Reflexão, Reverberação e Decaimento do Som

A reflexão do som é a propriedade da onda de se refletir mediante o choque com uma barreira ou obstáculo de superfície sólida, segundo as leis da Reflexão Ótica. A reflexão ou rebatimento da onda sonora se dá no mesmo ângulo em que a onda incide, podendo, inclusive, refletir-se sobre si mesma (FERNANDES, 2010); (HENRIQUE, 2002). As múltiplas reflexões do som numa sala fechada produzem a reverberação dessa sala. Com a reverberação, o som oriundo de uma fonte específica contrai elementos diversos que atuam no ambiente e provocam diversos tipos de efeitos altamente perceptivos. Entre esses efeitos que estimulam fortemente o processo psicofísico de apreensão do som estão a sensação de intensidade do som, a sensação de envolvimento e a percepção de alongamento do tempo de decaimento natural do som (HENRIQUE, 2002). A resposta da sala torna o processo de decaimento mais complexo. Os modos próprios da sala interferem com os modos próprios do instrumento, e

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nas condições em que habitualmente se faz música, esta interferência pode prolongar o transiente de extinção de um ou mais segundos (POLLARD & JANSSON apud HENRIQUE, 2002, p. 173).

Uma definição de reverberação é o período necessário para que a intensidade do som num campo reverberante estacionário diminua em -60 dB. Admite-se que o tempo de reverberação obedeça a uma constante aproximativa expressa pela equação retirada da primeira fórmula de Sabine110, que demonstra que a energia sonora diminui após a fonte sonora cessar (HENRIQUE, 2002). As ondas sonoras num ambiente fechado podem ser acometidas ainda de diversos tipos de interferências que podem alterar significativamente a percepção sonora. Quando um som soa num campo reverberante, os sons tendem a se estender para além de sua duração natural. Ou seja, o tempo de Decaimento se modifica de acordo com as características da cada sala (HENRIQUE, 2002). A figura a seguir apresenta uma comparação entre um som de flauta, gravado num ambiente com pouca reverberação e alterado eletronicamente. Trata-se de um único arquivo que foi processado através do Programa AUDACITY e analisado através do PRAAT. Com o início das fases finais do som sincronizados verificou-se a diferença entre os tempos de decaimento (de 142 ms para 517 ms).

Figura 2.19 – Decaimento da nota Dó4.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

(CD Exemplo 2.10). À esquerda, Decaimento da nota Dó4 num ambiente seco (142 ms); à direita, com reverberação artificial simulando uma grande sala de concerto (517ms), (efeito produzido pelo processamento do sinal no Programa AUDACITY). Gravação Friburgo. 110

Wallace Clement SABINE, físico norte-americano. Pioneiro no campo da arquitetura acústica. (Nasceu em Richwood, 1868 – Faleceu em Cambridge, 1919). http://www.acoustics-engineering.com/html/sabin.html. Acesso em: 11 set. 2015.

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Para as análises que indicam a variação de NPS, tem sido adotado o valor mínimo de 40 dB – valor estipulado desde as análises dos sons gravados em Volta Redonda que apresentou um Ruído de Fundo de 39 dB. Desse modo, o tempo apurado de Decaimento está bem abaixo da definição de ‘tempo de reverberação’ proposto por Sabine. O tempo de reverberação de um ambiente – nos casos dos ambientes verificados até então (Volta Redonda e Friburgo) – poderá ser calculado pela extrapolação dos valores, como observado por Henrique: “Devido ao nível de Ruído de Fundo habitualmente existente nas salas torna-se difícil medir um decaimento de 60 dB, a não ser que seja emitido um som de intensidade desaconselhável. Na prática torna-se mais simples e viável calcular um decaimento de 30 dB ou 20 dB e extrapolar para os 60 dB” (HENRIQUE, 2002, p. 772-773). Segundo Candé, a reverberação é um aliado do som musical (CANDÉ, 1983) mas longos Decaimentos podem trazer problemas para as transições sonoras pela possibilidade da ocorrência de interferências que o som estendido pode causar nos sons subsequentes através da sobreposição de notas com alturas diferentes soando num campo reverberante. A real duração de um som – considerado pelo ponto de vista da fonte sonora e não pelo aspecto perceptivo do ouvinte – corresponde ao tempo em que um objeto vibratório permanece vibrando. No caso do violino, a duração é todo o período em que o arco se mantém em contato com a corda fazendo-a vibrar, seguido do Decaimento natural do som da corda. Num instrumento de sopro, a vibração da fonte sonora se mantém apenas enquanto o músico permanece soprando. Entretanto, graças à capacidade do ambiente em responder acusticamente à frequência de excitação e estender o som para além do tempo gerado na fonte, esse período extra de som poderá alimentar alguma interferência na transição entre as notas no momento em que ocorre uma superposição linear111 de duas vibrações (ROEDERER, 2002). No instante da articulação entre duas notas – aqui no sentido de junção ou ponto de ligação –, os dois sons soarão simultaneamente durante um breve período de tempo que poderá ser suficiente para alterar a sensação de fluxo numa passagem em legato. Os fenômenos e/ou efeitos observados neste capítulo servirão ao propósito de facilitar a compreensão e observação de fatores observados nas transições, tais quais discriminados nas seções: 3.2, p. 105, sobre o tempo de decaimento do som na flauta; 3.5, p. 131, referente à interferência das ondas no momento da transição; 4.1, p. 141, onde se trata do legato e seu aspecto perceptivo; e 4.2, p. 151, que trata do legato que a flauta realiza de fato,

111

Ver ‘sistema linear’, Glossário, p. 196.

99

respectivamente nos capítulos 3 e 4. A distinção entre fatores causais e efeitos consequentes é um dos principais objetivos de toda esta explanação sobre ambiente acústico (SELLTIZ WRIGHTSMAN; COOK, 2005).

100

3 DESCRITORES DE ARTICULAÇÃO

A articulação do som é uma das ações musicais mais importantes na elaboração de uma interpretação, pois é o elemento pelo qual o executante tem responsabilidade mais direta (CHEW, 2001). Todavia, uma boa execução/interpretação obedece a critérios que precisam ser previamente elaborados e/ou construídos sob um conjunto de considerações relativas tanto à obra em si quanto ao ambiente de execução. Uma execução musical – sujeita ao rigor físico das leis da acústica e à complexidade subjetiva da percepção sensorial e/ou magnitudes psicológicas – acontece em meio à convergência de princípios e fatores que definem uma interpretação. Durante o processo de preparação e performance, o músico necessita compreender e colocar em prática uma vasta e complexa gama de conhecimentos musicais que envolvem desde a decodificação e compreensão dos símbolos contidos na partitura - ou seja, identificação de ritmos, alturas, dinâmicas, articulações, andamentos, harmonia, contraponto, etc. - à técnicas instrumentais próprias e que, conjuntamente com outros conhecimentos musicais (fraseologia, análise, estilo musical, história da música, entre outros), auxiliarão no processo de construção do entendimento da obra (interpretação). Quanto mais rico e diverso o conjunto de conhecimentos a disposição do intérprete musical, mais rica e variada será a possibilidade de construção da interpretação e maiores serão as possibilidades de êxito na execução (ou performance). (SINICO; WINTER, 2012, p. 37).

A música é um processo que se reifica no cérebro do ouvinte. Assim, quaisquer elementos que exerçam estímulos sensoriais exigirão do músico expressa concentração na construção de sua interpretação e não somente o conhecimento e informações sobre o autor e sua obra. A consideração e correlação de tais partes constituintes da interpretação musical – aqui inclusos elementos relativos à acústica musical e o domínio técnico resultante da consideração de minúcias do som –, juntamente com o conhecimento básico exigido para toda boa interpretação há de configurar um desempenho de maior ou menor qualidade como destacado por Sinico e Winter. O fazer música implica domínio técnico, conhecimento e consideração de fatores que combinados e relacionados entre si têm o potencial de tornar determinada frase musical clara e fluente ou simplesmente mal pronunciada (RÓNAI, 2008). Desse modo convergem-se para o momento da execução diversos elementos dos quais o intérprete possui completo gerenciamento e ainda alguns aspectos indiferentes ao controle do músico. Segundo Loureiro:

101

“Alguns aspectos da qualidade das transições entre notas estão relacionadas à manipulação intencional de articulação pelo intérprete, através do controle preciso das durações e da qualidade dos ataques, que ele detém.” (LOUREIRO et al., [s.d.], p. 5). Especificamente em relação ao Ataque da nota, a qualidade do instrumento e o nível de perícia do músico podem influenciar no tempo de resposta (LOUREIRO et al., 2009). O intérprete tem sob seu domínio a gerência do NPS aplicado ao ataque – podendo dosar tanto a energia empregada no ataque quanto alterar o modo e/ou o ponto de articulação –, o controle do tempo de sustentação da nota, o domínio do timbre, etc. Esses fatores variáveis são gestos sonoros característicos do som musical (ROEDERER, 2002). Mas em todas as situações, as características acústicas de cada ambiente exercem uma forte influência na articulação do som, por aumentar o nível de variabilidade de fatores básicos do som musical. Assim, a relação dos aspectos moldáveis e/ou gerenciáveis, com os de propriedades não-moldáveis determinará a qualidade de uma interpretação musical no momento em que alguns fatores do som podem ser sensivelmente detectáveis, sendo percebidos com mais ou com menos rigidez112.

3.1 ESTÁGIOS TRANSITÓRIOS113 – TRANSIENTES DE ATAQUE

No momento do ataque do som ocorre um pico de energia de curta duração que produz uma série de componentes, aparentemente de comportamento caótico, denominados transientes (IAZZETTA, [s.d.]). Essa explosão de energia ocorre principalmente no momento da articulação do som na flauta, após a oclusão do fluxo de ar.

Os regimes transitórios, em geral, são provenientes da inércia que todo sistema físico opõe a uma excitação exterior. Eles se revelam tanto ao nível dos corpos sonoros (transitórios do sinal físico), quanto ao nível do ouvido

112

Entre os aspectos moldáveis da música na cultura erudita ocidental estão principalmente a forma como se dá a articulação, a dinâmica, o timbre, a expressividade das frases, etc. Os elementos não gerenciáveis são: a composição em si, com suas notas, frases, períodos, etc. O cumprimento das indicações diretas do compositor em relação à obra, embora esteja subordinado ao intérprete no momento da execução musical, compreende-se como parte dos aspectos não-moldáveis. O ambiente de execução, cada qual com propriedades singulares, relativiza a forma de execução entre os elementos moldáveis e os não-moldáveis.

113

Ver Glossário, p. 196.

102

(problema da constante de tempo e do poder integrador do ouvido) (SCHAEFFER, 1993, p 166) 114.

Na fala, o estado transiente se apresenta principalmente nas emissões consonantais cujas vibrações não periódicas definem a forma como se processa a borda inicial das sílabas. Na flauta, essa explosão de componentes sonoros não periódicos representa o princípio pelo qual o som se apresenta no ambiente, que pode ser de forma variável, dependendo da energia empregada na articulação do som, do modo de articulação e da espessura da região transiente. A instabilidade focal na formação de um jato de ar presente no instante do ataque de uma nota na flauta é uma das circunstâncias mais propícias para o surgimento desses elementos transientes. Esta momentânea ‘energia difusa’, que produz um efeito de som desfocado e o tempo de transição entre essa ‘energia difusa’ e o jato de ar bem formado é um dos fatores que determinam a espessura da região transiente inicial. Henrique afirma que o tempo da região transiente inicial depende de três fatores: a frequência, o amortecimento do sistema115 e condições de ataque do instrumento. Na flauta, o tempo de ataque nas notas graves é superior à região média e aguda e, portanto, a espessura da região transiente do ataque será maior no registro grave e menor na região média e aguda (HENRIQUE, 2002); mas a formação de transientes podem ter outros fatores causais. Vários elementos podem ser responsáveis pela formação de transientes em sinais musicais, entre eles – excluindo a qualidade do instrumento e a perícia do músico – tem-se a variação do NPS do sinal e variações na magnitude do espectro da frequência (CAMPOLINA, 2012, p. 28). Thiago Campolina em sua dissertação de mestrado sob o título ‘Estudo sobre transientes em sinais de fala e música’116 (2012) sustenta que: “A resposta transiente de um oscilador117 ocorre quando uma força externa é aplicada ao sistema com uma frequência f inicialmente diferente da frequência natural f0” (CAMPOLINA, 2012, p.8). Com isso, elementos 114

O termo ‘sinal de som’ é relacionado à forma como o som é compreendido por meio de transdutores (Ver Glossário, p. 196). Um transdutor é um transformador de sinais; no caso dos microfones, transforma a energia cinética da onda mecânica em pulsos, ou sinais, elétricos (FONSECA; SANTOS; FERREIRA, 2002).

115

Redução progressiva da amplitude de um som quando ocorre dissipação de energia (HENRIQUE, 2002).

116

Dissertação de Mestrado em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Minas Gerais; tendo como orientadores Hani Camile Yehia e Maurício Loureiro. Disponível para download em: .

117

Todo corpo capaz de produzir oscilação em sua frequência.

103

transientes ocorrerão sempre que houver qualquer variação no som, seja no nível de intensidade ou na variação de frequência.

Figura 3.1 – Transientes na articulação do som na flauta.

Fonte: Elaboração do Autor, 1998.

O ataque é o momento onde há a maior incidência de transientes. O espectrograma do som da nota Dó5 com articulação no ponto velar /k/ apresenta uma forte presença de elementos transientes, à esquerda; e sem oclusão fonatória sem a presença de transientes, à direita.118

A quantidade de transientes presentes no momento do ataque da nota pode influenciar significativamente a percepção das transições sonoras (silêncio/som) uma vez que a sensibilidade auditiva é capaz de perceber variações e eventos presentes nos instantes iniciais da oclusão das consoantes (SCHAEFFER, 1993; CAMPOLINA, 2012). Se nos aproximarmos suficientemente de um instrumento musical a ser tocado, e estivermos muito atentos do ponto de vista auditivo, verificamos que o início de qualquer som começa por ser um ruído mais ou menos acentuado. Isto acontece porque num intervalo de tempo muito curto existem vibrações irregulares que antecedem o período de estabilidade em que o som passa a ter regularidade. Esse “ruído” constitui o transiente inicial, e é de tal modo importante na identificação do timbre do instrumento, que se for

118

Gravação realizada no Laboratório de Fonética da UFRJ utilizando o programa Sound Scope 1.27 f, tendo sido utilizado uma flauta Louis Lot com bocal Tudrey (1986).

104

cortado, o instrumento ficará auditivamente inclassificável na maioria dos casos (HENRIQUE, 2002, p. 171).

Entretanto, também se encontram estágios transitórios fora da configuração articulatória do Ataque; até mesmo nas transições entre notas ligadas de mesma fundamental, como apresentado a seguir:

Figura 3.2 – Espectrograma do som da nota Dó5 (tubo 14).

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Espectrograma do som da nota Dó5 (tubo 14) ligada ao mesmo Dó5 na posição de Dó3(terceira parcial do Tubo 2). (CD Exemplo 1.4). Mesmo em sons de frequência muito próximas e séries semelhantes, é notória a presença de transientes na conexão entre uma e outra forma de tocar a mesma nota. Uma variação do NPS no momento da alteração do tubo da flauta através do acionamento das chaves é a provável causa da formação destas frequências transientes. Gravação UFBA.

Estes aspectos de transições entre sons ligados serão tratados com mais detalhes no próximo capítulo. Porém, as características dos regimes transitórios – tanto do ataque da nota como na transição entre notas ligadas – podem estar relacionadas e sujeitas, não somente à habilidade do flautista e à qualidade do instrumento, mas às características acústicas do ambiente e a outros fatores interferentes (LOUREIRO et al., 2009).

105

3.2 TEMPO DE DECAIMENTO DO SOM DA FLAUTA

Num estudo sobre som e articulação, um dos fatores essenciais para análise entre notas separadas e ligadas é o tempo transcorrido na fase de Decaimento da nota. Cada instrumento tem suas próprias características e entre tantas outras, o tempo de Decaimento é parte de um conjunto de fatores que definem diferenças acústicas entre instrumentos distintos. Numa pesquisa focada na articulação do som e nas possibilidades de conexão entre sons e silêncios, o Decaimento da nota se torna tão importante quanto o modo e o ponto de articulação no Ataque. Mas, cada instrumento possui um tempo de Decaimento diferente; em cada caso, uma maneira de controlar a fase de Decaimento final do som. No violino, por exemplo, o arco poderá exercer um papel modelador do movimento vibratório da corda, enquanto no piano há um sistema mecânico próprio para interromper a vibração da corda quando tende a soar por um tempo mais longo do que o desejado. Na gravação realizada em volta Redonda foi observado o tempo de 50 - 60 ms no Decaimento final de uma nota tocada no piano quando acionado o mecanismo de abafamento das cordas. Nos instrumentos de sopro, o domínio do Decaimento está no próprio sopro e no controle do fluxo de ar. Enquanto no piano o músico necessita dosar o tempo de permanência do som no ambiente, à medida que a corda do piano tende a diminuir gradativamente sua vibração; o contrário ocorre com instrumentos como a flauta. O músico precisa fazer um acabamento na nota através da diminuição da pressão e velocidade do ar para estender o tempo de Decaimento do som de acordo com a intenção musical, como expresso a seguir no exemplo (A). Em oposição a este modelo, o exemplo (B) determina um corte abrupto do som, neste caso o Decaimento do som deverá ser o mais incisivo possível. O controle do Decaimento do som na flauta exige do flautista um grande domínio do fluxo de ar.

106

Exemplo Musical 3.1 – Exemplo ‘A’, Pièce pour flûte seule (três últimos compassos) de Jacques Ibert, exemplo de Decaimento longo. Exemplo ‘B’ corte abrupto para o final da peça Density 21.5 de Edgard Varèse.

O controle dinâmico do instrumento, principalmente no decrescendo, é fundamental ao flautista. Mas, essa forma de Decaimento do som é uma técnica de acabamento utilizada de acordo com a intenção do flautista. Neste caso, a qualidade do instrumento pode fazer diferença na execução musical. Além disso, é relevante se conhecer como ocorre o Decaimento final do som na flauta e o tempo decorrido nessa fase, pois estes dados serão importantes em outras etapas da presente pesquisa. Adotou-se a definição sugerida por Loureiro para o instante do início do Decaimento, onde os segmentos do envelope dinâmico são delimitados por pontos na onda sonora correspondentes a amplitudes máximas e mínimas a fim de estabelecer minimamente o fim da fase de Sustentação e início do Decaimento (LOUREIRO et al., [s.d.]). Definiu-se ainda, o fim da nota quando o NPS atinge os 40 dB por estar acima do Ruído de Fundo. A padronização deste patamar como definidor de ‘fim de nota’ teve por base a gravação de Volta Redonda que registrou um Ruído de fundo de 39 dB. De tal modo, adotou-se essa definição em todas as outras gravações a fim de se obter uma referência comparativa de tempo para melhor controle das variantes. As demais gravações, na UFBA, em Friburgo e no Inmetro, apresentaram Ruído de Fundo abaixo de 20 dB. Numa análise de várias notas tocadas na flauta na gravação de Volta Redonda, o tempo de Decaimento se demonstrou relativamente constante apresentando tempos entre 250 a 320 ms. A gravação foi realizada com dois tipos diferentes de bocais: o da própria BURKART mod. C4, e um bocal antigo também confeccionada em prata por Barlassina & Casoli.119 Os sons se mostraram muito semelhantes em relação ao tempo de Decaimento. A maior diferença apresentada foi em relação ao timbre e ao NPS, como demonstrado a seguir:

119

Procurou-se aqui estabelecer um parâmetro de qualidade entre estes bocais, já que o moderno bocal Burkart é um bocal considerado de boa qualidade, enquanto que o antigo bocal italiano é unanimemente aceito como um bocal de qualidade inferior.

107

Figura 3.3 – Decaimento do som da flauta em dois tipos de bocais.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Gravação Volta Redonda. À esquerda, Decaimento da nota Dó4 no bocal Burkart com tempo de 270 ms (de 81.85 dB a 40 dB); à direita, Decaimento da nota Dó4 com o bocal Barlassina & Casoli, com tempo de 252 ms (de 76.51 dB a 40 dB). A diferença do NPS apresentada nos tempos de Decaimento entre os dois bocais pode ser a causa da diferença no Decaimento.

Esta observação denota uma tendência de comportamento constante na finalização do som da flauta, independente da qualidade do bocal e/ou flauta. Um NPS mais intenso resultará num maior período de Decaimento. Mas o ambiente é responsável por significativas disparidades, por representar todo um sistema capaz de perturbar o sinal original do som produzido pelo instrumento. O tempo de Decaimento do som da flauta apresentado na sala de ensaios da Orquestra de Cordas de Volta Redonda foi verificado em torno de 250 – 320 ms. Entretanto, no MIDSTUDIO em Friburgo, foi registrado um tempo de Decaimento bem mais curto: entre 100 – 150 ms, semelhante ao tempo observado na cabine de Fonoaudiologia da UFBA. Verificou-se nesse ambiente – Volta Redonda – que o som emitido pela flauta sofreu alterações em relação ao timbre e NPS, embora se tenha mantido a mesma maneira de emissão do som com o mesmo instrumento e flautista. Dessa forma, tem-se por certo que a sala, como sistema propagador do som, exerce uma forte influência sobre o som natural do instrumento ao modificar suas características naturais e alterar significativamente o efeito perceptivo do som em seus vários aspectos: timbre, intensidade, tempo de Decaimento, etc.

108

Figura 3.4 – Decaimento do som Dó4 com 124 ms.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Gravação Friburgo. O limite de 40 dB definido aqui é somente para efeito de comparação com a gravação de Volta Redonda; o nível de Ruído de Fundo registrado neste ambiente foi abaixo de 20 dB.

O ambiente atribui elementos ao som natural do instrumento que determinam, entre vários aspectos, o NPS e consequentemente, o tempo de Decaimento final de um som. Todavia, com essas características do sistema de Propagação do som, não foi ainda possível conhecer o que a flauta realiza de fato. Na gravação realizada em Volta Redonda, tomou-se o cuidado de posicionar o microfone bem próximo ao instrumento para evitar sons reflexivos do ambiente. Entretanto, o gravador ZOOM H1 possui dois microfones cruzados acoplados ao aparelho para proporcionar o efeito omni120. Desse modo, mesmo estando próximo à fonte presume-se que o aparelho captou o ambiente mais do que o desejado. A diferença do tempo de Decaimento apresentado entre a gravação realizada em Volta Redonda para o estúdio em Friburgo deu-se não somente pela questão do ambiente do MIDSTUDIO ser mais seco, mas também pela microfonação utilizada. Na gravação do MIDSTUDIO em Friburgo, foi utilizado um microfone supercardióide SCHOEPS mod. CMC5 posicionado a 40 cm da flauta. Com esse equipamento e procedimento esperava-se

120

Ver Glossário, p. 196.

109

anular o efeito do ambiente e se chegar bem próximo do som que a flauta realiza de fato ao captar somente o som direto e evitar sons reflexivos. O gráfico a seguir apresenta uma comparação entre o tempo de Decaimento do som da flauta na Cabine de audiologia da UFBA, na sala da Orquestra de Cordas de Volta Redonda, no MIDSTUDIO em Friburgo e na Câmara Anecoica do Inmetro. Estima-se que o Decaimento do som numa câmara anecoica seja mais breve do que em qualquer outro local, exatamente pela certeza de que num ambiente controlado o som apreendido corresponda ao som direto da fonte, eliminando quaisquer possiblidades de interferências causadas pela reverberação do som.

Figura 3.5 – Comparação entre Decaimentos da nota Dó4.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

(CD Exemplo 3.1). Tempos de decaimento: Gravação UFBA, 97 ms; Volta Redonda, 242 ms; Friburgo, 94 ms; Inmetro, 106 ms. Amplitude máxima, 90 dB; e mínima, 40 dB. Sons analisados no programa PRAAT.

De acordo com o observado na análise dos decaimentos finais nos quatro diferentes ambientes, a gravação realizada na câmara anecoica mostra que a sala é menos amortecida do que a cabine de audiologia da UFBA e o MIDSTUDIO de Friburgo, o que contraria nossa suposição inicial. Este aparente desacerto pode estar relacionado com a delimitação do início

110

da fase de decaimento, já que o fim da nota é demarcado pelo corte no NPS em 40 dB, comum a todos os exemplos.

3.2.1 O Problema da delimitação das fronteiras do envelope dinâmico

O limite estabelecido para ‘fim de som’ foi determinado através da limitação do NPS em 40 dB, como já mencionado, devido ao elevado nível de Ruído de Fundo da gravação de Volta Redonda (39 dB). O fim real do som da nota se estende para além deste limite, mas em alguns casos, logo se mistura com o ruído de Fundo. Assim, essa delimitação é importante para efeito de comparação entre os segmentos de decaimento das notas. A delimitação da fronteira anterior que marca o início do decaimento final do som foi baseada no texto de Maestre & Gómez (2005) que define o fim da fase de estabilidade do som e o início do decaimento através do momento de máxima amplitude do sinal entre um e outro segmento. A determinação de um limite através desse procedimento não assegura um ponto exato que permita uma comparação segura entre sons distintos, principalmente pela imprecisão da curva inicial do decaimento que demonstra diferentes tangentes para cada som. Deste modo, a fim de uma comparação precisa entre segmentos realizados em ambientes e situações diferentes, estipula-se para o início deste segmento a mesma ação de delimitação adotada para determinar o ‘fim da nota’: um corte de intensidade. Essa medida não delimita toda a fase de decaimento, senão uma pequena faixa deste segmento; entretanto, essa ação permitirá uma melhor comparação entre decaimentos em ambientes diversos. Assim, o segmento de decaimento do som passa a ser delimitado pelas fronteiras de NPS com início em 73 dB121 e fim em 40 dB. A definição dessas fronteiras permitirá uma visão mais realista do decaimento final do som, uma vez que elimina a parte mais problemática do segmento e permitirá comparar o tempo na parte mais vertical do decaimento. Porém, mesmo com o novo procedimento de delimitação do segmento de decaimento final do som que estabelece momentos precisos de início e fim da fase de decaimento, as gravações da cabine de audiologia da UFBA e o

121

O teto de 73 dB aqui estabelecido como limite máximo de amplitude foi considerado de acordo com o NPS em todas as tomadas de dados. De todos os sons analisados nenhum deles apresentou um NPS abaixo de 73 dB.

111

MIDSTUDIO em Friburgo demonstram ser ambientes mais amortecidos do que a câmara anecoica do Inmetro. Figura 3.6 – Comparação entre decaimentos da nota Dó4 sem língua com limite entre 73-40 dB.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

(CD Exemplo 3.1). Com fronteiras estabelecidas na limitação de NPS (máximo 73 dB – mínimo 40 dB), a comparação dos tempos de Decaimento se torna mais precisa: Gravação UFBA, 73 ms; Gravação Volta Redonda, 203 ms; Gravação Friburgo, 81 ms; Gravação Inmetro, 83 ms. Valores obtidos através da análise dos sons no programa PRAAT.

3.2.2 Tongue Stop122

Como forma de obter um decaimento com uma interrupção sonora mais precisa, Roger Mather recomenda a utilização da língua para obstruir o fluxo de ar, como uma articulação oclusiva invertida (MATHER, 2011, p. 57). Faz-se terminações abruptas de nota cortando o fluxo de ar com a ponta da língua; essas terminações são, portanto, chamadas de "paradas de língua". Se 122

Ver Glossário, p. 196.

112

por exemplo você começar a nota com a sílaba "doo", suas ações de língua para toda a nota são os mesmos que ao dizer "dood" (exceto que o tempo entre o primeiro e o segundo "d" depende da duração da nota ). Assim como você começa uma nota com mais nitidez usando "t" em vez de "d", você também pode terminá-la mais abruptamente com "t" em vez de "d" 123. (MATHER, 2011, p. 57 – Tradução de Isabela Maira de Andrade Almeida).

A interrupção do som com o auxílio da língua produz um corte mais preciso, como observado por Mather (MATHER, 2011). A diferença de tempo no decaimento do som entre a forma de interrupção do som pela suspensão do fluxo de ar ou pela intervenção oclusiva da língua no ponto linguodental mostrou ser considerável, como se vê a seguir:

Gráfico 3.1 – Decaimento do som sem língua e com Tongue Stop.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Decaimento sem língua em 69 ms; com intervenção de língua no ponto linguodental, 64 ms; 8% menos. (CD Exemplo 3.2). Gravação Friburgo. Valores obtidos através de análise no programa PRAAT.

123

You make note endings abrupt by cutting off your air flow with the tip of your tongue; such endings are therefore called “tongue stops”. If for instance you begin the note with the syllable “doo”, your tongue actions for the entire note are the same as in saying “dood” (except that the time between the first and second “d” depends on the length of the note). Just as you start a note more crisply by using “t” rather than “d”, you can also end it more abruptly with “t” instead of “d”. (MATHER, 2011, p. 57).

113

O decaimento do som observado com as fronteiras de NPS (amplitude máxima de 73 dB e mínima em 40 dB) ocorre num período menor de tempo quando se utiliza a língua no ponto linguodental /t/ como interruptor do fluxo de ar, como num golpe de língua invertido. Esse processo produz uma significativa diferença perceptiva no decaimento do som. Essa diferença na transição entre som/silêncio pode ser bastante perceptível em caso de sons intermitentes ou descontínuos. O som intermitente com oclusão final linguodental possui a tendência de ser mais curto do que a simples interrupção do fluxo de ar sem a utilização da língua, o que confirma a observação de Roger Mather (MATHER, 2011). No entanto, como soam perceptivamente diferentes, a utilização de uma ou outra maneira de interrupção do som dependerá da decisão do músico no ato da execução; levando-se em conta as orientações do autor da obra, a resposta do ambiente e o gosto pessoal do intérprete.

Figura 3.7 – Sons descontinuados na flauta em dois modos de articulação.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

(CD Exemplos 3.3 e 3.4). O quadro superior representa três ataques intermitentes da nota Dó4 com interrupção do fluxo de ar sem língua; tempos de decaimento de 87 ms, 76 ms e 87 ms. Na parte inferior, o quadro demonstra três ataques da nota Dó4, também intermitentes, com o uso da língua no ponto linguodental /t/ para cortar o fluxo de ar; tempos de decaimento de 76 ms, 74 ms e 73 ms. Gravação Inmetro. Programa PRAAT.

114

3.3 DESCRITORES DE SONS DESTACADOS

Em ambientes onde a reverberação do ambiente ocasiona um longo período de decaimento do som, a relação entre a forma com que o intérprete executa notas destacadas e a resposta do ambiente é altamente significativa, pois o meio modifica o modo com que os sons são percebidos (ROEDERER, 2002). O ataque e a sustentação do som estão entre os principais aspectos com que o intérprete exerce controle a fim de elaborar o sentido do texto musical e obter o resultado pretendido. O bom controle dessas particularidades – o NPS do ataque, modo e pontos de articulação e o controle do tempo de sustentação do som –, permite ao flautista obter uma boa execução em diversos tipos de ambiente. Todavia, o meio em que ocorre a música é em geral um campo reverberante e isto altera a forma com que se percebe o som pelas superposições das ondas que reverberam no meio (ROEDERER, 2002).

Exemplo Musical 3.2 - Representação exemplificada da escrita e execução baseada na resposta do ambiente.

O diagrama a seguir procura descrever eventos e fases que ocorrem em meio à transição entre notas separadas, tendo em consideração alguns aspectos perceptivos que o ouvido pode detectar durante uma passagem entre os sons124.

124

Diferente do dB calculado de forma linear por um programa de análise de som, o dBA é uma forma de expressar a sensação de NPS, visto que o ouvido processa frequências graves e agudas em intensidades diferentes da região mediana como descrito no estudo de Fletcher & Munson (1993) (FLETCHER & MUNSON apud ROEDERER, 2002). Portanto, o ‘nível subjetivo’ – o que se pode chamar de intensidade musical –, não é sinônimo de ‘intensidade física" (CANDÉ, 1983).

115

Gráfico 3.2 – Segmentação da fase de transição entre notas separadas.

Fonte: Elaboração do Autor, 2016.

Com base no trabalho de Loureiro, a fim de se estipular um nível de articulação entre notas perceptivelmente destacadas, considerar-se-ão tanto o NPS do ataque em relação ao NPS do decaimento da nota anterior como o tempo de separação entre esses dois segmentos (LOUREIRO, 2006). No entanto, é necessário flexibilizar o conceito de precisão, uma vez que a percepção do som é um atributo inidividual (CANDÉ, 1983). Assim, a elaboração de uma fórmula que traduza em números a sensação de notas mais ou menos destacadas ou ainda, um grau de separação entre as notas deverá conceber a relação dos instantes e eventos ocorridos em meio à transição, a fim de se obter uma média numérica que reflita a lógica do movimento das coordenadas entre si que sirvam como descritores do fluxo melódico. Contudo, considerar coordenadas físicas mescladas a grandezas psicofísicas aparenta um ilogismo. Torna-se imprescindível determinar com que abordagem do som se está trabalhando; se o som como fenômeno físico ou como fenômeno psicofísico (HENRIQUE, 2002). Ora, se a grande preocupação em relação às transições sonoras está na esfera psicofísica, como definir índices físicos precisos que compreendam os aspectos sensitivos do problema?

116

3.3.1 Articulation Level (Al) de Loureiro

Considerando o som na esfera física e tal qual é produzido na fonte, Loureiro estabelece um nível para a articulação Articulation Level (Al ) que é definido pela razão entre a Duration Ratio (DR) – intervalo de tempo que abrange a nota do início ao fim –, e o intervalo de tempo entre seu início e o início da nota subsequente, o intra-onset-interval (IOI) (LOUREIRO et al., [s.d.]). O diagrama a seguir procura demonstrar um panorama de seu Articulation Level.

Gráfico 3.3 – Al descrito por Loureiro.

Fonte: Adaptado de (MAESTRE & GÓMEZ, 2005).

Al obtido através da diferença entre os segmentos da transição entre notas destacadas (LOUREIRO et al., [s.d.]).

A importante percepção de ausência de som entre as notas pode até ser importante para a sensação de notas separadas, mas não é fundamental em notas destacadas. O silêncio como sinônimo físico de ‘nada’ não existe na música, mas ainda que não haja um ‘silêncio’ entre as notas – mesmo que as notas não sejam realmente separadas (HENRIQUE, 2002) –, pode-se percebê-las nitidamente destacadas através da articulação da nota seguinte. Tal percepção

117

ocorre mesmo quando o tempo de decaimento é longo. Desse modo, a transição de notas, quando muito separadas, apresentará um Al positivo (> 0), enquanto transições de notas articuladas em meio ao decaimento da nota anterior, que se estende no ambiente, apresentará Al com valores negativos (< 0).

Gráfico 3.4 – Descrição do Al. Descrição do Al em três tipos hipotéticos de ambientes com diferentes tempos de Decaimentos.

Fonte: Adaptado de (LOUREIRO et al., [s.d.]).

118

Com um tempo alongado de decaimento, a sensação de distinção entre as notas é produzida somente por intermédio da percepção de articulação da nota subsequente. Assim, o NPS do ataque da nota subsequente é especialmente importante na percepção de articulação. A percepção auditiva do Ataque do som só se estabelece após o fim da fase de Ataque, e os eventos inseridos em meio a este período transiente, como a oclusão do fluxo de ar, são agregados ao que Schaeffer chama de ‘espessura do presente’125 (SCHAEFFER, 1993). Pela observação de Schaeffer e também de Vassilakis sobre questão perceptiva de eventos que ocorrem numa faixa estreita de tempo (VASSILAKIS, [s.d]), torna-se concludente que a preocupação primária de Loureiro em seu Al não contempla a questão perceptiva da transição, senão somente o aspecto físico, uma vez que Loureiro considera o Ataque da nota seguinte no princípio do sinal e não no fim da fase. A fórmula de Loureiro é eficiente como descritora temporal dos segmentos da transição. Porém, como é descrita numa abordagem inteiramente física, sem a preocupação com aspectos sensitivos da transição, não envolve questões importantes para a percepção entre notas articuladas, como o NPS aplicado ao ataque da nota subsequente – coordenada importante perceptivamente, visto que o ouvido possui uma alta capacidade sensitiva numa comparação entre intensidades de sons próximos, podendo captar uma diferença de intensidade mínima entre 0,2 – 0,4 dBA numa gama de frequência musicalmente relevante (ROEDERER, 2002). Dessa forma, com a propriedade de descrever somente a diferença de tempo entre as notas articuladas e/ou separadas – o eixo das abscissas num plano cartesiano –, sua fórmula apresenta um índice parcial que, por si só, é insuficiente para representar a totalidade dos eventos presentes entre notas destacadas ou separadas se considerada sob o aspecto perceptivo. Por essa razão, em busca de um índice descritor que relacione a percepção de separação das notas com a percepção da variação de NPS (dBA) que ocorre numa transição sonora, apresenta-se a delimitação de dois parâmetros: o Índice de Separação de Notas (ISN), e o Nível de Som do Ataque (NSA).

125

Ver Glossário, p. 196.

119

3.3.2 Índice de Separação de Notas (ISN)

Embora semelhante ao Al de Loureiro, o ISN modifica os pontos referenciais dos segmentos e procura mensurar a separação entre as notas considerando a ‘espessura do presente’ como ponto de melhor referência à percepção do Ataque. Deste modo, o ISN indica a diferença entre os segmentos temporais relacionados no eixo das abscissas num plano cartesiano de acordo com a fórmula:

Onde ‘a’ representa o tempo do início do Decaimento; ‘b’, o fim do Decaimento da primeira nota; e ‘c’, o instante do fim do Ataque da nota posterior126. Através desse cálculo poder-se-há obter uma informação mais perceptiva em relação à separação entre notas destacadas. Entretando, o resultado se assemelha bastante com o Al de Loureiro, uma vez que as notas bem separadas possuirão índices maiores que zero (> 0) e as notas próximas, articuladas dentro da fase de decaimento serão identificadas com índices negativos ( 0) indica que a intensidade do ataque da nota seguinte está acima do NPS do início do Decaimento da nota anterior (NSfA>NSiD). O NSA negativo (< 0) denota uma nota articulada com menos intensidade em relação ao início do Decaimento do som precedente (NSfA
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