ARTIGO 8: Eros Político - Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 10, n. 119, agosto de 2015.

July 5, 2017 | Autor: Daniel Barbo | Categoria: Greek History, Homoeroticism
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Eros Político
Daniel Barbo


Não havia homossexualidade na Grécia Antiga. A forma de relação homoerótica melhor documentada entre os gregos era a estabelecida pelo vínculo entre um adulto masculino (erastés) e um jovem (erómenos) pertencentes à classe dos cidadãos das aristocracias de virtualmente todas as póleis. Os gregos chamavam esta relação de paiderastia, que possuía dois aspectos inter-relacionados: o pedagógico e o erótico. O cortejo de um jovem por parte de um cidadão era socialmente aceito, bem visto e esperado nos círculos aristocráticos.
Isto se explica porque a cultura grega, diferentemente da cultura ocidental moderna, não concebia noções de orientação sexual (heterossexual, homossexual, bissexual) como identificadores sociais. Os gregos não distinguiam comportamentos ou desejos eróticos em função do gênero dos participantes da relação, mas em função do papel que cada um desempenhava no ato erótico: quem penetrava e quem era penetrado.
O ato erótico era polarizador e hierárquico. Ele dividia, classificava e distribuía os parceiros em duas categorias distintas e radicalmente opostas, o papel ativo e o passivo. Estas categorias eram social e politicamente articuladas, expressando as relações de poder. Isto implicava em que cidadãos masculinos adultos, os quais exerciam papel político ativo, podiam ter relações eróticas legítimas, exercendo obrigatoriamente o papel erótico ativo, com pessoas de status sociopolítico inferior, ou seja, mulheres, garotos, estrangeiros ou escravos, os quais não possuíam participação política direta. Estabelecia-se, assim, uma isomorfia entre o papel erótico de um indivíduo e seu status sociopolítico. A autoridade e o prestígio do cidadão masculino adulto expressam-se em sua precedência sexual – em seu poder de iniciar um ato sexual e em seu direito de obter prazer por meio desse ato.
Muitas fontes literárias e iconográficas gregas mostram cidadãos cortejando jovens nos ginásios, nos banquetes, na ágora. Segundo Platão (Banquete) e Ésquines (Contra Timarco), cada um dos parceiros desta relação homoerótica possuía uma condição, uma função e um comportamento específicos. Os parceiros pertenciam a diferentes categorias de idade e possuíam estatutos cívicos distintos: o adulto, solteiro ou casado, era cidadão pleno. O jovem só obteria cidadania plena por volta de vinte anos, quando então mudava de status. O desejo erótico nessa relação não era visto como recíproco: o adulto era o sujeito do desejo, e o jovem, o objeto.
O consentimento do jovem a este vínculo erótico só se tornava digno perante a comunidade na medida em que o relacionamento proporcionasse a ele a possibilidade de se enveredar no caminho das virtudes cívicas, o qual devia ser aberto pela convivência com o cidadão. Esta era a função pedagógica da relação. Esperava-se que o cidadão conduzisse o jovem ao ponto desejado pela comunidade: o acesso às virtudes e à futura participação na vida política da cidade. Ceder a um cidadão que não lhe proporcionasse este caminho das virtudes era uma desonra para o jovem.
Pela função pedagógica e pela condição de ambos na relação decorre que o costume grego encorajava o cidadão a 'caçar' seu erómenos e exigia que o jovem não cedesse facilmente a essas investidas. A própria comunidade examinava seus comportamentos, mostrando quem deveria ser louvado ou evitado. O costume considerava uma desgraça a capitulação muito rápida por parte do jovem, pois era necessário certo intervalo de tempo moralmente estabelecido. Considerava também uma desgraça se a rendição do jovem fosse por medo de resistir a maltrato, por dinheiro ou por interesse material. O jovem deveria mostrar-se devidamente desdenhoso de tais benefícios, sob pena de ser taxado de prostituto. Esta fama, no caso de cidades como Atenas, poderia lhe render no futuro um processo que lhe retiraria os direitos da cidadania.
Se para o erastés não era considerado vergonhoso o fato dele se demonstrar apaixonado e completamente escravizado por um erómenos, no caso deste, só havia um tipo de servidão voluntária que não era escandalosa: a busca das virtudes cívicas úteis à pólis. Este era o único modo pelo qual o jovem poderia com legitimidade gratificar seu erastés.
Dadas as características deste modelo de homoerotismo expresso pela paiderastia, devemos consequentemente demarcá-lo em relação à categoria da homossexualidade, entendida por Michel Foucault (História da sexualidade: a vontade de saber. Graal, 1988) como uma identidade construída na modernidade oitocentista. Elementos como a distinção etária, a função pedagógica, a fronteira obrigatória entre atividade e passividade eróticas, a isomorfia entre erótica e política, o fim do relacionamento estabelecido pela entrada do jovem na maturidade e a possibilidade da simultaneidade entre o casamento e o relacionamento homoerótico para o erastés distinguem claramente as identidades do erastés e do erómenos da identidade do homossexual. Em termos psicanalíticos e identitários, homoerotismo é uma subjetividade possível do ser humano, uma potencialidade humana. A paiderastia e a homossexualidade são, segundo Jurandyr Freire Costa, "duas formas de cristalização do imaginário cultural sobre a potencialidade homoerótica, e não dois nomes para o mesmo referente." (A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Relume-Dumará, 1992.) A paiderastia e a homossexualidade são formas distintas da potencialidade do homoerotismo. Daí, conclui-se inevitavelmente que os pederastas gregos não eram homossexuais.



Daniel Barbo é professor colaborador da Universidade Federal de Alagoas e autor de O Triunfo do Falo: Homoerotismo, Dominação, Ética e Política na Atenas Clássica (e-papers, 2008). Atualmente, realiza pesquisa pós-doutoral sobre as relações entre a Historiografia do Homoerotismo Grego e a Cultura Política da Homossexualidade.

Saiba mais:
BARBO, Daniel. O triunfo do falo: homoerotismo, dominação, ética e política na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: e-papers, 2008.
DOVER, Kenneth. J. A homossexualidade na Grécia antiga. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: O uso dos prazeres. 4a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
HALPERIN, David M. One Hundred years of homosexuality: and other essays on greek love. New York, London: Routledge, 1990.
WINKLER, John. The constraints of desire: The Anthropology of Sex and Gender in Ancient Greece. New York, London: Routledge, 1990.

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O Homoerotismo Divino
Os gregos retrataram a relação homoerótica numa grande quantidade de vasos de cerâmica que hoje se encontram espalhados por vários museus do mundo. Um grupo destas imagens representa O Mito de Ganimedes. Segundo o relato mais divulgado deste mito, Zeus, apaixonado pelo belo troiano Ganimedes, teria levado o garoto para ser seu copeiro no Olimpo. Apolo apaixonou-se por Jacinto e desceu a terra para viver com ele. O deus do Oráculo de Delfos também amou o jovem Ciparisso, com o qual praticava a corrida e o arremesso de dardos. Embora o contexto e a configuração do Mito de Ciparisso sejam helênicos, o personagem é essencialmente descrito na literatura latina helenizada e representado nos afrescos de Pompéia. Poseidon apaixonou-se por Pélope e ensinou ao jovem todas as virtudes cívicas que um soberano deveria saber. Os deuses do panteão grego, embora imortais, possuíam características muito humanas. Eles sentiam raiva, decepção, ódio, medo, inveja, ciúme, preguiça, desânimo, soberba, tristeza, cansaço, desespero, compaixão, piedade, potência, felicidade, euforia, amor e desejo erótico, tanto por deuses quanto por humanos de ambos os sexos. Criados a imagens e semelhança dos próprios gregos, não é de se admirar que estes deuses sentissem amor e desejo erótico por belos rapazes mortais.



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