ARTIGO: A estética sociológica e os limites do corpo e da linguagem

August 21, 2017 | Autor: Thiago Araujo | Categoria: Marxismo, Fenomenología, Sociología, Linguagem
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Isso deixa claro, como bem ensinou a tradição pragmatista e sua polêmica com o pensamento utilitário, que falar de criatividade e estratégia não implica um ator racional administrando quase burocraticamente suas condutas.






UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS




A ESTÉTICA SOCIOLÓGICA E OS LIMITES DO CORPO E DA LINGUAGEM

Thiago de Araujo Pinho





Salvador
2014



























"Um símbolo ultrapassa sempre quem faz uso dele e o leva a dizer mais, na realidade, do que tem intenção de dizer."(CAMUS, 1942, p. 89)

INTRODUÇÃO
Esse trabalho tem como objetivo compreender o papel do corpo e da linguagem nas relações sociais, através dos escritos de Goffman e Garfinkel, em especial nas obras "Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada" (1963) e " The studies in ethnomethodology" (1967). Para dar seguimento a esse projeto, foi necessário também recorrer a um tipo de apoio literário oferecido pelas obras "memórias do subsolo" de Dostoievski (2000) e o "retrato de Dorian Gray" de Oscar Wilde (2000), na medida em que esclarecem as interações entre os agentes, ao rastrear toda sua complexa e criativa condição, reafirmando assim as possíveis dissonâncias e desvios que possam existir ao longo da realidade cotidiana. Para Goffman, com seu interacionismo, ou para Garfinkel, com seu método documental, o agente é muito próximo à figura de um artista transitando por um mundo oscilante e cheio de desafios, e que justamente por essa condição cênica, desempenha uma postura criativa e dinâmica. Esse "pragmatismo cotidiano" garante a ele todo um suporte adequado, toda uma rede simbólica á mão, e isso para que, diante das fissuras no tecido social, seja ainda possível orientar suas ações do melhor modo, evitando que a dissonância brote daquelas regiões mais fundamentais de sua narrativa.
O corpo será entendido não apenas como um substrato de controle (FOUCAULT, 1999), o que sem dúvida não deixa de ser, mas também de uma forma, digamos assim, mais performática, enfatizando sempre seu lado criativo. Seus encontros com o mundo revelam um potencial para o novo difícil de ser contido em algum conceito pós estruturalista, com seus "a prioris" (HABERMAS, 1985) quase como esquemas psíquicos que desencadeiam instantaneamente uma ação. Em resumo, o ator não é um "idiota cultural" (GARFINKEL, 1967), uma criatura passiva e a mercê de forças ocultas que conduziriam sua prática. Ele é mais complexo do que esse reservatório de representações e condicionamentos. Por mais inculto que seja, carrega sempre consigo instrumentos e estratégias que garantam um melhor desempenho no mundo.

CORPO, LINGUAGEM E ATROFIAMENTO

O fluxo da vida humana, pensada sempre com seus obstáculos e rupturas, demanda de todos uma parcela significativa de vigilância e envolvimento, compensando assim a fluidez inevitável do dia-a-dia. A sua possível evidência ou obviedade, reflexo de uma atitude natural (SCHUTZ, 1979), quando vista com mais rigor, com um "método um pouco mais fenomenológico" (SOKOLOWSKI, 2000), perde em consistência, ao passo que revela uma tessitura precária e sempre em movimento. O que será proposto, de um modo geral, é a tentativa de observar no comportamento dos atores, nas situações mais concretas que possam existir, o seu perfil criativo- sua "condição de artífice", como gostavam de chamar os humanistas do século XVI. Haverá, por consequência, um abandono de qualquer pretensão formalista, como a focaultiana, por exemplo, a menos que venha acompanhada de algum tipo de suporte pragmático, lançando assim os fenômenos e os critérios aparentemente "desencarnados" na "arbitrariedade das coisas" (BOURDIEU, 2007) e na dinamicidade das práticas, criando a chance perfeita do corpo se manifestar com toda sua virtualidade criativa.
Esse fluxo de vida, porem, não raro se atrofia, permitindo assim ver os limites do próprio corpo e da própria linguagem no cotidiano. A criatividade atrofiada não mais reconhece a si mesma, mutilando aquilo que num primeiro instante era sua força impulsionadora. Esse tipo de atrofiamento na dinâmica da vida, por outro lado, não deve ser confundido com abordagens que se fundamentam em conceitos como alienação, uma vez que não há nada além das articulações e dos encontros, a não ser mais articulações e mais encontros. A suposta verdade ou objetividade no discurso marxista poderia ser suavizada por um pragmatismo que tire o enrijecimento de sua ortodoxia (LUKÁCS, 1978) e dinamize o papel do ator, que é mais rico do que parece, liberando seu corpo em toda sua potencialidade criativa, como bem apostam Garfinkel e Goffman, embora sem negar a existência de noções como poder, constrangimento e violência. Em outras palavras, existe de um lado um potencial rico para a criação e para a dinâmica do corpo, mas por outro, uma demanda pragmática que define, conceitua, nomeia, ou seja, restringe esse mesmo universo de possibilidades, e sem que com isso seja necessário conceber estruturas ou teleologias subjacentes à ação; a ação basta por si mesma.
Em função de tudo isso, qual seria o papel do corpo e da linguagem quando o assunto é lidar com os conflitos que brotam da realidade social? Como conciliar também aquilo de mais dinâmico no corpo dos atores e simultaneamente as demandas de um pragmatismo cotidiano que parece recusar essa mesma dinamicidade?

FENOMENOLOGIA E MARXISMO?
A escolha do presente objeto e em especial os limites em que ele foi exposto, é fruto de uma inquietação vinda de uma série de discussões realizadas no ECSAS (Núcleo de Estudos em Ciências Sociais, Ambiente e Saúde) e no NUCLEAR (Núcleo de Estudos Ambientais e Rurais), dois projetos de pesquisa situados na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Com o primeiro, houve a oportunidade de travar um contato estreito com a fenomenologia e com muitas das correntes sociológicas que derivam dela, dentre elas o interacionismo e a etnometodologia. Com o segundo, através de uma literatura frankfurtiana e psicanalítica, começaram a surgir alguns questionamentos a respeito daquilo que até então vinha realizando no campo fenomenológico. Os dois universos teóricos, muitas vezes tomados contraditoriamente, parecem conciliar seus interesses, na medida em que juntos geram uma interpretação alternativa a respeito do corpo e da linguagem nas relações sociais.
Essa proposta quase conciliatória permite uma abordagem sociológica curiosa, que se por um lado aposta no criativo e no dinâmico, por outro revela seu aspecto atrofiante, trazendo a tona uma violência no próprio ato de criação e manutenção da vida cotidiana. A arte e o poder participam de uma convergência inesperada, em que os atores acabam compartilhando mesmo na mais reduzida circunstância, como em uma simples construção de uma narrativa. Graças a fenomenologia a dinâmica da experiência e toda sua virtualidade criativa se fazem presente, evitando abordar os atores como carcaças ocas, sem vida e a mercê seja de representações que lhes dariam direção, seja por simples condicionamentos mecânicos que lhes conduziriam a prática. Aos frankfurtianos e aos psicanalistas é próprio o privilegio da dúvida e da contradição, ao conceber agentes em um mundo rasgado por conflitos, constrangimentos e como sempre, com um toque adicional de farsa. Aqui não reinam as unidades ou identidades, o que a etnometodologia chamará de "patterns" (COULON, 1995), mas uma desconfiança a toda manobra ordenadora e eficiente. Como permitir, então, um diálogo entre esses dois mundos, sem que com isso se perverta suas contribuições particulares? A sociologia apresenta um suporte adequado para conciliar polos tão divergentes, de tradições filosóficas e sociológicas tão contraditórias? Essas e outras questões devem orientar todo o trajeto de pesquisa.
Apesar de ser incerta a investigação aqui traçada sobre o interacionismo e a etnometodologia quanto à importância dada ao corpo e a linguagem, é esperançoso imaginar um destino alternativo ao que essas próprias tradições de pensamento estabeleceram. Sem apostar todas as fichas nos fins e numa possível reafirmação de alguma ideia prévia a pesquisa, o que interessa acima de tudo é o investimento criativo, ousado, ainda que a frustração seja uma companheira persistente. O que importa, portanto, seriam os meios e a própria "investigação ela mesma", ainda que os resultados venham a ser completamente diferentes daquilo que se tinha de partida. O prazer da busca e as novidades a ela associada, são motivos mais do que suficientes para justificar uma empreitada como essa, que pretende ultrapassar as fronteiras artificiais de nossos projetos de pesquisa, permitindo, quem sabe, uma diplomacia (LATOUR, 2013) interessante, ao gerar um possível ponto de tangencia entre universos que raras vezes buscam diálogo.

METODOLOGIA
A limitação do espaço/tempo na pesquisa acaba circunscrevendo a produção de Goffman e Garfinkel à década de 60, não que isso signifique que em outros trabalhos faltassem reflexões a respeito do corpo e da linguagem. Como proposta metodológica pretende-se fazer uma análise das obras "Estigma" e "Estudos em etnometodologia", destacando além de suas teorias, algumas pesquisas que foram desenvolvidas pelos dois autores, a fim de ilustrar de um modo claro e concreto o papel do corpo e da linguagem nas relações sociais. Como parecia insuficiente a escolha dessas pesquisas, apesar de sua riqueza prática ser inquestionável, foi preciso recorrer a um outro suporte. A literatura, nesse caso, foi uma companheira conveniente, até pela sua presença decisiva no ECSAS e em especial no NUCLEAR. Para que a pesquisa não despencasse em nada de genérico- ou pior, em algo contraditório e confuso-, foi preciso selecionar duas obras literárias que se adequassem bem com o material selecionado de Goffman e Garfinkel, ao criar um pano de fundo adequado. A escolha, portanto, não foi arbitrária, mas fruto de uma série de discussões e investigações. Visto que o projeto contém uma proposta bem ambivalente, ao articular o lado criativo da vida social com sua atrofia quase que necessária, a literatura mais próxima seria aquela chamada "anti-heroica", com seus personagens mal resolvidos e contraditórios; uma mistura de heroísmo e vilania. Depois de muita conversa surgiram os nomes de Dostoievski e Oscar Wilde. Em relação ao ultimo, era evidente que seria o "retrato de Dorian Gray" a obra a ser escolhida, mas quanto a Dostoievski ainda não era claro, já que, diferente de Wilde, haviam muitos trabalhos de peso em vista como "Crime e Castigo" e "Os irmãos Karamazov". Com o passar do tempo e de algumas opções jogadas fora, "memorias do subsolo" foi selecionada para criar uma boa articulação com o restante da pesquisa.
A partir de um levantamento bibliográfico cauteloso, haverá um processo de decomposição dos elementos tanto das obras literárias quanto dos próprios trabalhos de Goffman e Garfinkel, a fim de que sejam extraídos seus conceitos e suas ideias principais, ao passo que se possa criar uma boa convergência com os temas "corpo" e "linguagem". O eixo teórico aqui considerado, além do conteúdo a ser extraído dos autores citados acima, passará pela filosofia nietzschiana, especificamente levando em conta uma "obra póstuma" chamada "Sobre verdade e mentira no sentido extramoral" (NIETZSCHE, 1873), cujas discussões são mais interessantes para as ciências sociais, dando um destaque mais palpável aos dois conceitos que conduzem essa pesquisa. Além disso, há um estreito diálogo com a tradição pragmática, priorizando um trabalho de Richard Rorty chamado "Pragmatismo" (2000), acreditando que essa obra esteja bem próxima ao que é discutido por Goffman e Garfinkel.

PARA ALÉM DE UM CORPO FENOMENAL
De partida se faz necessário um esclarecimento daquilo que será chamado de "estética", pensada em seus dois significados, um como "sensibilidade" (corpo), o outro como "criatividade", destacando como fundamento teórico, além das contribuições de Goffman e Garfinkel, os escritos do filosofo alemão Friedrich Nietzsche e toda a importância que confere a esse tema. A relevância de seu pensamento será bem circunscrita aos interesses das ciências sociais, na medida em que permitir uma análise sociológica concreta das interações, sejam elas numa escala reduzida, compreendendo simples diálogos cotidianos e narrativas particulares, ou mais amplas, ao tratar de imensos contingentes de pessoas em torno de uma narrativa mais abrangente, como em um discurso religioso, por exemplo.
A estética nietzschiana é mais elástica do que o normal, ultrapassando bastante os limites impostos pela tradição. Ela compreende todo o empenho humano em construir as condições necessárias de sua permanência no mundo, não se restringindo a nada de autônomo ou mesmo a uma etapa dentro de algum tipo de escatologia transcendente, além de conferir uma centralidade enorme ao corpo, evitando enxergar sua presença como coadjuvante. A aisthesis nietzschiana, lançada que é na vida concreta, compartilhando tanto das suas alegrias quanto de suas tristezas, é pura imanência. A estética não corresponde a algum momento ansioso por superação futura, como em Hegel (1999), mas é o que há de mais fundamental em toda ação humana. Por outro lado, sua dinâmica pode, sem dúvida, ter problemas ao longo de sua adesão ao mundo, podendo atrofiar a si mesma e a sensibilidade a ela envolvida, graças a uma exigência prática de um sujeito portador de uma linguagem capaz de definir, de nivelar e de enquadrar o seu corpo e sua criatividade dentro de expectativas tanto pessoais quanto coletivas. (NIETZSCHE, 1873).
Assim como Ulisses na Odisseia põe a si mesmo em sacrifício a fim de experimentar um pouco do canto suave das sereias, ao ser amarrado no mastro do seu próprio navio (ADORNO, 2000), o ator social, cotidianamente, sacrifica um corpo repleto de circunstâncias para desfrutar tanto o conforto dado pela sensação de pertencimento a um agrupamento qualquer, quanto a própria certeza dada pela sua biografia, que no mais íntimo de sua privacidade possa vir a ter o máximo de encadeamento e não se torne algo de dissonante e caótico. Ao procurar "manter sua face" (GOFFMAN, 1985) ou "indexar sua experiência" (GARFINKEL, 1967), o sujeito se vê diante de um tecido de realidade a ser costurado e mantido. Sua existência não é autônoma aos atores e aos seus corpos, mas ao contrário, depende deles para que a instabilidade dos fenômenos não rompa com a coerência tão fundamental das narrativas. Para esse proposito, tudo de dissonante tende a ser sacrificado, ainda que esse excesso, não aproveitado pelo "estoque de conhecimento" (GOFFMAN, 1963) e pela "atitude natural", seja apenas uma extensão do próprio corpo e das próprias vivencias dos atores. Esse sacrifício cotidiano, em grande medida, é afastado do "plano da consciência", digamos assim, justamente por contribuir para uma agência segura e bem definida. O sujeito pode, de forma intuitiva e ao mesmo tempo criativa, distorcer a si mesmo e as relações a sua volta, ao atender uma demanda prática qualquer, sem nem ao menos desconfiar do quanto de corpo e de criação existe naquilo que produz, acreditando, com toda sua convicção sensível, que lida com fatos, providências, essências, memórias, etc. Convicção, como foi dito acima, que é auto imposta e não um resultado direto de agenciamentos externos, como dispositivos, modos de produção, conflitos de campo e outras instâncias tão verticais quanto essas, do mesmo modo que o "estigma" (GOFFMAN, 1963) não é um rótulo imposto verticalmente, mas um trabalho contínuo gerado tanto pelo sujeito quanto pelos outros ao seu redor.
Desde que o corporal e suas experiências contribuam para a unidade das relações e das narrativas, não há qualquer contenção diante dos recortes e das colagens que precisam ser feitos; eles serão feitos, ás custas do corpo e da vida efetiva, ou seja, do corpo e da vida em toda sua transbordante, embora inconveniente, condição concreta. Ao perceber o mínimo sinal de metamorfose, quando o corpo começa a incomodar, todos tornam-se membro da grande família Samsa, dispostos a tudo para impedir o confronto com o Real, agindo como se nada acontecesse, como se nada importasse a não ser a bela aparência e um discurso linear e coerente. Em resumo, o pragmatismo cotidiano acaba reduzindo ao máximo o potencial do corpo e de sua criatividade a certos limites convenientes, seja para servir a narrativa do sujeito, seja para servir a comunidade que o rodeia. O corpo, logo, se torna "fenomenal" (MERLEAU-PONTY, 1999), acostumado com unidades e identidades, mantendo assim a certeza básica de que cada "argumento cotidiano" está firme, sólido, do mesmo modo que as experiências associadas a ele. Além do mais, nada de grotesco, nada de inconveniente, se esconderia nos becos de nossa consciência ou nas lacunas de nossa linguagem, local povoado sempre por belos encontros, mesmo quando tristes, ainda que angustiantes; de alguma maneira o corpo fenomenal consegue, pela totalidade inscrita e suposta, fazer de cada evento uma peça, um monumento minuciosamente cultivado, mantido e, a qualquer custo, reproduzido. Muitas vezes é até local de remissão, ou, como diria Foucault, um espaço utópico em que encontramos muitas vezes aquilo que falta no mundo, um sentido. Nesse processo catártico, o corpo fenomenal é o instrumento adequado, a ferramenta necessária, para que tudo continue estável, ainda que mudanças venham a acontecer. As pinceladas de Cezzanne, apesar de mutantes, dinâmicas, não são arbitrarias; jamais se deixariam capturar pelo devir e pelas marcas de um corpo pleno, descentrado.

Nada melhor do que a literatura para ilustrar esse pensamento. Ela é um veículo privilegiado de debate de problemas, ao revelar sempre de uma maneira viva o que existe no interior das coisas, ao contrário da teoria que apresenta um compromisso excessivo com a linearidade e com a firmeza conceitual. Dostoievski (2000), enquanto sociólogo, levanta um ponto que merece ser destacado, ao entender a importância do pragmatismo do dia-a-dia e a impotência do ator em romper com essa mesma grade simbólica. Ao elevar, por exemplo, até as ultimas consequências suas reflexões e seu engajamento- quebrando assim qualquer compromisso prático com unidades e totalidades-, o ator não garante nenhuma certeza e eficácia á sua narrativa, ao contrário, acaba comprometendo tudo ao seu redor. Em "memórias do subsolo", o personagem principal é um infeliz, condenado a ver em cada racionalização e em cada justificativa dada, uma parcela inconveniente de seu corpo, um prolongamento indesejado de si mesmo. Com esse excesso "não pragmático", ele se torna incapaz de ser acolhido pela linguagem e envolvido por suas abstrações e encadeamentos; ele é um dissidente, uma criatura que fracassou em manter seu corpo e sua consciência bem ajustados, diferente dos alunos entrevistados por Garfinkel, que ao menor sinal de desajuste mobilizavam tudo ao seu redor, em especial sua linguagem, conseguindo assim, de uma forma clara, manter a cadência e o sentido de suas narrativas. O "homem do subsolo", ao perder o conforto pragmático de seu engajamento e a certeza dada pela sua própria linguagem, faz aquilo que seria impensável para qualquer figura em interação, ou seja, abraçar o desprazer e a dissonância. Ele, justamente por abrir mão da conveniência básica que alicerça a vida social, aceita ao mesmo tempo uma realidade difícil de suportar: a visão concreta e excessiva da "realidade cotidiana". Quase como se a costura realizada por ele falhasse e se desfizesse diante de seus próprios esforços em manter o mundo sólido e em funcionamento. Sua "carreira moral", diria Goffman (1963), parece perder sua coerência tão constituinte, expondo um descompasso nada fácil de conciliar.
Da mesma maneira que no romance de Oscar Wilde (2000) a pintura de Dorian Gray carrega todos seus excessos, deslizes e estados de corpo que ele jamais imaginava ter, a vida prática porta essas mesmas características, inclusive a tendência de afastar todo esse inconveniente que ronda as relações aparentemente sólidas, unitárias e coesas sob os pés dos atores em cena. Essa atitude evasiva garantiria ao corpo uma melhor adesão ás narrativas que são construídas em torno e por meio dele, afastando tudo de dissonante para as profundezas de um algum sótão sombrio, a espera, talvez, de um tipo de visitante curioso disposto a ir além das aparências. Há uma recusa declarada de um corpo excessivo e inconveniente, que apesar de legitimo, se torna para Dorian e para os próprios exemplos de Goffman e Garfinkel, um obstáculo que destoava não apenas das expectativas que os outros tinham deles, mas principalmente das exigências realizadas por eles mesmos. Em convergência direta com a arte contemporânea feita de sucata, a confusão de elementos é rapidamente substituída por um feixe luminoso que projeta uma sombra coesa e bem definida, revelando em primeiro plano aquilo que há de mais essencial: a passagem do caos ao sentido. Tanto no interacionismo simbólico quanto na etnometodologia, essas metáforas artísticas ganham forma ao se apresentarem naquelas situações mais concretas, com atores reais, em situações reais. Seja na garota internada de Goffman, ou no psicólogo de poucas palavras de Garfinkel, há uma presença forte tanto do núcleo criativo da vida, quanto de sua consequente atrofia diante de um pragmatismo afeito a unidades, identidades e consistências.
Dispensa-se aqui, portanto, a ideia de uma linguagem transparente como os gregos, em que o cosmos reflete seu ordenamento, ou de uma linguagem representacionista qualquer (RORTY, 2000). Ela nunca esteve tão atrelada ao corpo e tão dissolvida no mundo quanto agora. Tudo é convertido- da semântica a sintaxe- a uma ferramenta indispensável para administrar os problemas concretos que brotam de um simples dia, ao passo que se confere á corporeidade uma importância que não existe dentro de uma noção de linguagem representacional. Ao acreditar, por sua vez, que palavras correspondem a coisas, perde-se de vista o quanto é custoso manter o tecido coerente das relações sociais, fazendo com que os atores se contentem apenas com aquela parcela de si e do mundo que se encaixa no previsto. Há uma suposição de que existe algo além do modo flexível das palavras e de um corpo em movimento, quando, na verdade, como seres práticos que são (JOAS, 1999), os atores apenas dependem de suas sensibilidades e de alguns punhados de significantes para compor suas narrativas, estruturando tudo graças a uma performance muito bem elaborada.
Seja em Goffman ou em Garfinkel, os atores em cena apresentam uma característica curiosa: possuem uma enorme tendência de evitar o sofrimento através do rearranjo de suas experiências e memórias dentro de um todo ordenado. A dor e o desespero deixam de ser compreendidos em si mesmos- em seu aspecto indiferente- e passam a ser lidos á luz de um fluxo muito bem encadeado de justificativas, tal como na famosa fabula reescrita por Jean de La Fontaine: A raposa, desapontada por não ter conseguido as uvas que tanto queria, frustrada pelo esforço e pelo tempo perdido, resolve desistir de tudo aquilo, alegando que as uvas estavam verdes. Em semelhança a essa simples, embora tão profunda, alegoria, a vida cotidiana se inscreve em uma equivalente cadeia criativa de justificação e prática (HABERMAS, 1999), criando uma espécie de "amortecedor simbólico" diante de diversos fenômenos, inclusive aqueles mais imprevisíveis e desagraveis; aqueles que transbordam a tal ponto que excede a capacidade de apreensão; aqueles que zombam da própria unidade e certeza das "atitudes naturais" e dos "estoques de conhecimento".
Esse perfil dinâmico do ator, tão presente em Goffman e em Garfinkel, é essencialmente estético- no sentido nietzschiano dado ao termo. Sua vida ganha contornos e um direcionamento eficiente que jamais conseguiria de outro modo. Por esse motivo, nenhum valor, nenhuma diretriz religiosa ou mesmo nenhum horizonte político tem sua razão de ser para além do trabalho cotidiano dos atores e do envolvimento de seus corpos em cada momento do fluxo da vida; em si mesmos essas categorias práticas são colchas de retalho agrupadas performaticamente, respondendo apenas ao imperativo pragmático da convivência em sociedade. Suas aplicações concretas e toda concatenação significativa que as sustentam, estão ancoradas nessa "condição radical do humano". Por outro lado, um complexo de experiências contraditórias e desagradáveis se revela em meio ao horizonte previsível e circular da vida cotidiana, gerando um corpo muito mais conveniente do que efetivo em suas manifestações. Corporeidade curiosa, capaz de atrofiar a si mesma para atender aos interesses de uma bela e encadeada narrativa.
As contribuições de Goffman para o esclarecimento desse "empasse empírico", em que corpo, linguagem e mundo parecem colidir constantemente, é bem marcado em muitos de seus relatos, dentre eles o famoso caso da garota internada por causa da poliomielite. Nesse exemplo ele resgata muito bem tanto um corpo criativo, quanto um "corpo-objeto"; um obstáculo que parecia comprometer a narrativa esperançosa de uma menina em busca de conforto pessoal. De todo modo, falar de "corpo" e "linguagem" e não lembrar desse discípulo de Hebert Mead, é uma falha grave. Diferentemente do que se pensa, seu olhar voltado ás famosas relações face-to-face, não se reduz a um tipo de microssociologia (GIDDENS, 2003), mas consegue ultrapassar os limites desse rótulo, em grande medida condenatório, revelando que seus conceitos e suas conclusões são muito mais amplos do que se poderia imaginar. A respeito de Garfinkel não foi diferente. Com toda desconfiança por trás de seu método documental, seus trabalhos foram reduzidos a apenas um exercício analítico "rasteiro", se comparado com todo o monumento teórico erguido pela sociologia parsoniana (HERITAGE, 1999). Somente com o passar do tempo e com o descrédito do funcional-estruturalismo do seu ex-orientador, é que suas análises, como a de tantos outros filósofos e sociólogos, foram recuperadas. Goffman e Garfinkel, hoje, são autores de grande presença acadêmica, convivendo lado a lado com correntes distintas de teoria e prática, ao passo que conquistaram a possibilidade de contato com diversos campos de debates como o fenomenológico e o pragmático, passando pela geografia e pelas artes plásticas. E aqui, nessa pesquisa, se abre um novo caminho de discussão, quando a escola de Frankfurt e a filosofia nietzschiana são convidadas para uma conversa amistosa em que o pensamento social pode muito bem se enriquecer.

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