Artigo: A FORMAÇÃO CONTINUADA DOS PROFESSORES E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO SOBRE O CONSUMO

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A FORMAÇÃO CONTINUADA DOS PROFESSORES E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO SOBRE O CONSUMO

Julciane Castro da Rocha¹; Daniela de Araujo Ando² ¹Pontífice Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduação em Educação (Currículo) Rua Ministro de Godói, 969, 4. Andar – Sala 4E-15 CEP: 05015-901 – São Paulo - SP [email protected] ²Pontífice Universidade Católica de São Paulo, Pós-Graduação em Educação (Currículo) Rua Ministro de Godói, 969, 4. Andar – Sala 4E-15 CEP: 05015-901 – São Paulo - SP [email protected]

Resumo: O presente trabalho visa propor algumas reflexões acerca da educação sobre o consumo e a formação continuada dos professores. Os Parâmetros Curriculares Nacionais prevêem que as escolas abordem o consumo como um tema transversal, permeando todas as disciplinas. Dedicamo-nos a discutir como a formação continuada de professores pode contribuir para o desenvolvimento da consciência crítica destes profissionais, partindo das reflexões sobre as situações que envolvem o consumo, vivenciadas dentro da própria escola, pelos seus sujeitos. Palavras-chave: Formação continuada de professores, Currículo, Educação sobre o Consumo, Temas transversais, Ética

CONTINUING TEACHER’S EDUCATION AND THE CHALLENGES OF EDUCATION ABOUT CONSUMPTION Abstract: The purpose of this work is to offer some reflections regarding the teachings of consumption and the continuing education of instructors in this subject. The National Curricular Parameters predict that schools broach the consumption theme transversally, across all the disciplines. Our focus is discuss how the continuing teacher’s education can contribute to the critical conscientious development of future professionals, starting from the reflections about the consumption situations experienced within the schools. Key-words: Continuing education for teachers, Curriculum, Education about consumption, Transverse Theme, Ethics

1.

O MUNDO DO CONSUMO PERMEANDO AS ESCOLAS

No mês de julho deste ano (2009), acompanhamos na mídia impressa algumas notícias sobre escolas que autorizaram a presença de empresas em suas dependências ou proximidades, atuando na distribuição de brindes ou realizando alguma atividade de entretenimento dirigida aos alunos. Em troca, as empresas aproveitam o espaço dado para divulgar suas marcas entre crianças e jovens. Foi noticiado também o envolvimento de professores em ações de marketing promocional das instituições em que trabalham. Neste tipo de ação, os professores vestem camisetas ou distribuem brindes dos patrocinadores aos alunos. Os casos relatados acima ocorreram em escolas privadas. No entanto, isso não significa que este tipo de ação também não possa ocorrer em escolas públicas. Não é incomum encontrarmos escolas que cedem seu espaço para empresas realizarem atividades educativas. Não é raro também encontrarmos casos de empresas que aplicam recursos financeiros em escolas públicas, como tem ocorrido há alguns anos no estado do Rio Grande do Sul, fruto da iniciativa de uma das maiores instituições financeiras do país (MARIANO, 2009). Há ainda escolas que aceitam doações de recursos e, em troca, autoriza a divulgação da benfeitoria por parte dos doadores. Em casos mais extremos, a escola autoriza a venda de produtos diretamente para as crianças, dentro da dependência da escola, como brinquedos, materiais escolares etc. Este tipo de iniciativa gera polêmica. Conforme relatado na reportagem feita por Bergamasco (2009b), dois educadores se posicionaram sobre esta situação e é possível notar divergências de opiniões. Um é absolutamente contra qualquer tipo de vinculação das escolas com propaganda, enquanto o outro considera que a distribuição de brindes, por si só, não seria algo prejudicial, embora também pondere que a presença de professores em qualquer ato desta natureza não é adequada. Este texto não tem a pretensão de discutir o que seria aceitável ou reprovável nestes casos. Nosso objetivo é exemplificar, por meio de situações reais e atuais, o quanto as situações de consumo estão presentes no cotidiano da escola. O Ministério da Educação reconhece a importância deste tema e o incluiu, em 1998, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). O documento propõe que os professores abordem questões relacionadas ao consumo com alunos do Ensino Fundamental II, ao longo de todo o ciclo e de forma transversal, ou seja, envolvendo todas as disciplinas. Na Apresentação do tema transversal trabalho e consumo, a justificativa para sua abordagem é feita da seguinte forma: “este tema incorpora no currículo escolar demandas sociais urgentes, de abrangência nacional, passíveis de ensino e aprendizagem no ensino fundamental e com importante papel na promoção da participação social e política” (BRASIL, 1998, p.339). No livro introdutório dos Parâmetros Curriculares Nacionais, descreve-se que a finalidade do trabalho e consumo como temas transversais é “indicar como a educação escolar poderá contribuir para que os alunos aprendam conteúdos significativos e desenvolvam as capacidades necessárias para atuar como cidadãos, nas relações de trabalho e consumo” (BRASIL, 1998b, p.68). O documento assinala que a escola não está à parte da dinâmica do trabalho e do consumo existente em nossa sociedade, sendo o espaço escolar influenciado e influenciador nestas relações. Direta ou indiretamente, de forma explícita ou implícita, a escola trabalha com valores, representações e posicionamentos relativos ao mundo do trabalho e do consumo. Todos trazem consigo representações sobre estas relações sociais [...] assim como sua tradução em práticas de consumo, na posse ou não de objetos ou em

marcas de distinção social. A desigualdade e a diversidade estão presentes nas escolas, por meio de práticas de consumo que permeiam o cotidiano escolar [...] que pode se refletir no desperdício ou reaproveitamento de materiais [enquanto] outras convivem com grandes carências até de materiais básicos (BRASIL, 1998, p.345).

Os autores dos PCNs são claros ao afirmar que as crianças e adolescentes são atingidos pelos apelos para consumir produtos valorizados pela sua faixa etária, uma vez que é para eles que se destinam boa parte dos artigos da indústria cultural. No entanto, “poucos conseguem usufruir tudo o que é oferecido pelo mercado” (Ibidem, p.394). Por esta razão, se faz necessário o envolvimento da escola com este tema, visto que ele já faz parte de seu cotidiano. São essas reflexões que justificam e delineiam os propósitos de uma educação do consumidor: propiciar aos alunos o desenvolvimento de capacidades que lhe permitam compreender sua condição de consumidor, com os conhecimentos necessários para construir critérios de discernimento, atuar de forma crítica, perceber a importância da organização, solidariedade e cooperação para fazer valer seus direitos e assumir atitudes responsáveis em relação a si próprios e à sociedade (BRASIL, 1998, p.354).

Estamos de acordo com a inserção do consumo como tema transversal, dada a importância da problematização de questões relacionadas aos malefícios do consumo exacerbado em nossa sociedade, bem como das desigualdades de acesso aos bens de consumo, conforme descrito nas justificativas dos PCNs. Compreender o quanto somos vitimados por um sistema baseado no lucro é o primeiro passo para a superação da lógica do capital. No entanto, preocupa-nos a ênfase dada ao consumo nas propostas didáticas de nossas escolas. Apenas municiar o aluno de informações acerca do código de defesa do consumidor, da linguagem publicitária e dos prejuízos causados com o consumo desenfreado não é suficiente para a superação da lógica do mercado. Por esta razão, consideramos de fundamental importância a conscientização dos docentes sobre a ideologia que está por trás do consumo, para que se busque atuar numa perspectiva transformadora. Para tanto, mais do que municiar os professores de propostas didáticas previamente preparadas para a abordagem do tema, acreditamos que uma formação que desenvolva o espírito crítico destes profissionais é mais efetiva, fazendo-os repensar sua própria relação com o consumo, tanto na vida pessoal quanto profissional. Neste processo, os professores também se modificam e, como advoga Freire, “já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2005, p.79). Conforme apresentamos no início deste texto, adultos e crianças, professores e alunos estão sujeitos aos ataques permanentes das empresas que tem como objetivo primeiro o aumento de seus lucros, por meio da venda de produtos e serviços. A sofisticação dos processos de marketing é contínua, criando em nós desejos e necessidades que não são genuínas ou nos usando como “ponte” para a divulgação e venda de seus produtos, mesmo que de forma velada. Por esta razão, acreditamos que somente uma formação continuada do professor que esteja comprometida com o desenvolvimento de sua consciência crítica pode contribuir para uma educação sobre o consumo que atue na direção da transformação, e não apenas com pequenos ajustes às situações que são consideradas problemas sociais. Assim como Freire (2002) e Cortella (2008), não consideramos que a educação, por si só, seja a chave das mudanças sociais. A esta concepção, Cortella dá o nome de otimismo ingênuo, em que o professor e a professora são vistos quase que como sacerdotes, com uma missão “messiânica” de salvar seus alunos e alunas das mazelas da sociedade. Porém, da

mesma forma que ela não é “a força imbatível a serviço da transformação da sociedade [...] nem tampouco é a perpetuação do status quo” (FREIRE, 2002, p. 126). Em vista disso, nos baseamos no lema de Freire de que “se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode” (Ibidem, p.126) e, para que esse algo possa se concretizar, mudanças são necessárias, inclusive na formação continuada de professores. 2.

METODOLOGIA

Neste artigo, objetivamos analisar, por meio de uma pesquisa de revisão da literatura, os dois paradigmas mais recorrentes nos estudos sobre a formação continuada docente: a formação cumulativa e a formação reflexiva. Diante do levantamento das características de cada tendência, pretendemos evidenciar, ainda que de forma inicial e insuficiente, que os princípios da formação reflexiva favorecem o desenvolvimento da consciência crítica do professor. Pretendemos elucidar, à luz da teoria, como a consciência crítica do professor, aliada ao diálogo e a construção coletiva dos saberes entre os docentes, pode favorecer o desenvolvimento de uma educação sobre o consumo voltada à superação da lógica do capital. Optamos pela pesquisa de caráter qualitativo, entendendo este caminho como mais apropriado ao tipo de abordagem que pretendemos realizar. Nos termos de André e Lüdke (1986), “em educação as coisas acontecem de maneira tão inextricável que fica difícil isolar as variáveis envolvidas e ainda apontar claramente quais são as responsáveis por determinado efeito” (ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p.3). As autoras esclarecem que em educação uma multiplicidade de variáveis age ao mesmo tempo e o isolamento delas pode dificultar a compreensão geral do fenômeno. Ainda segundo André e Lüdke (1986), a pesquisa qualitativa tende a seguir um processo indutivo, em que os interesses iniciais apresentam-se de forma ampla e vão se afunilando à medida que a pesquisa se desenvolve. As pesquisas quantitativas, ao contrário, seguem um processo dedutivo. Chizotti (2003) esclarece que o sujeito da pesquisa faz parte do processo de conhecimento, interpretando os fenômenos. Portanto, não é possível esperar dele uma posição de neutralidade científica, pois “é a partir da interrogação que ele faz aos dados, baseada em tudo o que ele conhece do assunto [...] que vai se construir o conhecimento sobre o fato pesquisado” (ANDRÉ; LÜDKE, 1986, p.4) Por meio da revisão da literatura, buscamos uma elucidação de como a formação continuada docente pode contribuir para uma educação sobre o consumo que atue numa perspectiva transformadora. Luna (1996) considera a revisão da literatura como uma técnica importante no trabalho científico na qual “o problema da pesquisa é a própria teoria” (LUNA, 1996, p.84). Severino (2007, p.122) explica que nesta modalidade de pesquisa são utilizados dados ou categorias teóricas elaboradas e discutidas por outros pesquisadores e os são as fontes dos temas pesquisados. 3. ANALISANDO A FORMAÇÃO CONTINUADA DOS PROFESSORES E AS NECESSIDADES DA EDUCAÇÃO SOBRE O CONSUMO Conforme assinalado por Abramowicz (2001), a ressignificação da formação continuada de professores é um dos desafios educacionais contemporâneos. Diversos autores apontam para a insuficiência da formação de professores com ênfase na acumulação, em detrimento da reflexão. Dentre os que foram citados por García (1997), destacamos Nóvoa (1997), Giroux (1997) e Schön (1997). Nóvoa (1997, p.25) nos esclarece que “a formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimento ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de

reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal”. A formação por acumulação assemelha-se à educação “bancária”, denunciada por Freire em Pedagogia do Oprimido. Ambas relegam ao segundo plano o olhar crítico sobre as questões sociais, encobertando a possibilidade dos homens e mulheres transformarem o mundo em que vivem. Em outras palavras, ambas apresentam características reprodutivistas, ou seja, de manutenção do status quo. Mais uma vez se antagonizam as duas concepções e as duas práticas que estamos analisando. A “bancária”, por óbvios motivos, insiste em manter ocultas certas razões que explicam a maneira como estão sendo os homens no mundo e, para isto, mistifica a realidade. A problematizadora, comprometida com a libertação, se empenha na desmistificação. [...] A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. (FREIRE, 2002, p.83)

Esta forma de conceber a formação continuada vincula-se a visão do professor como um técnico, cuja atividade “profissional é sobretudo instrumental, dirigida para a solução dos problemas mediante a aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas” (GÓMEZ, 1997, p.96). Abramowicz (2001) nos aponta que a desvinculação entre teoria e prática é comum neste tipo de formação, além da separação dos professores por áreas de conhecimento. Como conseqüência, o currículo vigente neste paradigma de formação é, em sua maioria, fechado, instrumental e unilateral, características presentes nos currículos tecnicistas. Conforme assinala Gómez (1997) apropriando-se de Habermas (1979), um dos maiores equívocos desta concepção de formação continuada é desconsiderar “o caráter moral e político da definição dos fins em qualquer ação profissional que pretende resolver problemas humanos” (GÓMEZ, 1997, p.97). Esta insuficiência é ainda mais presente quando relacionada a um conteúdo educativo essencialmente atitudinal, como o consumo, que envolve representações sociais, valores e subjetividades adquiridas ao longo de nossa formação pessoal. Nesse sentido, para que seja possível ao professor problematizar a questão do consumo com vistas ao desenvolvimento da consciência crítica dos alunos, é necessário que ele também tenha uma formação que favoreça o desenvolvimento de sua própria consciência crítica, partindo de sua vivência pessoal nas situações de consumo (e não consumo). Nóvoa (1997, p.25), citando Nias (1991) é sábio ao destacar que “o professor é a pessoa. E uma parte importante da pessoa é o professor.” Assim sendo, sua formação profissional não deve desprezar sua trajetória pessoal mas, ao contrário, valorizá-la. “Urge, por isso, (re)encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se de seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida” (NÓVOA, 1997, p.25). Gómez avança na afirmação de Nóvoa quando diz que A reflexão implica a imersão consciente do homem no mundo da sua experiência, um mundo carregado de conotações, valores, intercâmbios simbólicos, correspondências afetivas, interesses sociais e cenários políticos. O conhecimento acadêmico, teórico, científico ou técnico, só pode ser considerado instrumento de processos de reflexão se for integrado significativamente, não em parcelas isoladas memória semântica, mas em esquemas de pensamento mais genéricos ativados pelo indivíduo quando interpreta a realidade concreta em que vive e quando organiza a sua própria experiência (GÓMEZ, 1997, p.103)

Ressaltamos neste trecho o fato do autor não desconsiderar o conhecimento científico, teórico, técnico e acadêmico acumulado pelo professor ao longo de sua trajetória, mas sim ressaltar a importância deste conhecimento não ser fruto da mera memorização, pois, se assim o for, não terá utilidade no processo reflexivo.

Freire (2002, p. 29) destaca que o papel do educador não é apenas ensinar conteúdos, mas também “ensinar a pensar certo. Daí a impossibilidade de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor cadenciado de frases e idéias inertes do que um desafiador”. O conceito do pensar certo em Freire é profundo, pois reforça a perspectiva do mundo que está em construção, assim como o conhecimento humano. O autor afirma que “ao ser produzido, o conhecimento novo supera o outro eu antes foi novo e se fez velho e se “dispõe” a ser ultrapassado por outro amanhã” (Ibidem, p.31). Esta afirmação não se refere apenas aos conhecimentos científicos, mas também aos nossos posicionamentos éticos e morais. As nossas percepções sobre as relações atuais de consumo, a publicidade, o marketing, o lucro, a injustiça etc., se modificam ao passo que nossa consciência crítica também se desenvolve. García (1997) aponta sua preocupação com o uso indiscriminado do termo reflexão, esvaziando o seu sentido e, por esta razão, define quais seriam os três níveis diferentes de reflexão que estão vinculados à nossa abordagem neste artigo: técnica, prática e crítica. (GARCÍA, 1997, p.63). O primeiro nível está relacionado “ao que fazemos e é passível de ser observado” (Ibidem, p.63). O segundo envolve planejamento da prática (visando o futuro) e reflexão sobre aquilo que foi feito (olhar sobre o passado). O terceiro e último nível é aquele que toca as considerações éticas, ou seja, nossos posicionamentos éticos ou políticos sobre nossa prática cotidiana, “bem como das suas repercussões contextuais” (Ibidem, p.63). No caso do consumo, destacamos especialmente a relevância do desenvolvimento deste terceiro nível de reflexão na formação continuada dos professores. 3.1.

A auto-formação reflexiva participativa como alternativa

Embora nosso texto tenha como objetivo aprofundar alguns aspectos que consideramos essenciais na formação continuada docente, concordamos com García (1997) quando ele diz que a formação de professores deve ser vista como um continuum, mesmo que do ponto de vista curricular existam duas fases distintas: a inicial e a continuada (ou em serviço). Para ele, “a formação de professores é um processo que tem de manter alguns princípios éticos, didáticos e pedagógicos comuns, independente do nível de formação em causa” (GARCIA, 1997, p.54). O autor complementa sua reflexão destacando “a necessidade de existir uma forte interconexão entre o currículo de formação inicial de professores e o currículo de formação permanente de professores” (Ibidem, p.54). Portanto, consideramos fundamental que o processo de desenvolvimento da consciência crítica do professor tenha início já na sua formação inicial, permitindo o seu aprimoramento ao longo da formação continuada, por meio da reflexão a partir de suas vivências. Freire (2002, p. 43), assim como os outros autores aqui citados, defende que “na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática”. Schön (1997) esclarece que este processo apresenta diferentes momentos, denominados por ele de reflexão-na-ação e reflexão sobre a ação. O primeiro ocorre durante sua atuação profissional e o segundo é um olhar retrospectivo sobre esta atuação, permitindolhe “pensar no que aconteceu, no que observou, no significado que lhe deu e na eventual adoção de outros sentidos” (SCHÖN, 1997, p.83), tratando-se, portanto, de uma reflexão sobre a reflexão-na-ação. Esta tendência de formação continuada favorece o desenvolvimento da autonomia do professor que, num processo de auto-reflexão constante sobre sua atuação profissional, não depende apenas de momentos específicos para aprimorar-se. Ainda sobre o consumo, a reflexão e o olhar atento sobre suas experiências pessoais e as experiências vividas pelos alunos permite a desnaturalização de alguns posicionamentos que fazem parte do senso comum, constantemente alimentados pela ideologia do mercado. A busca constante por um

olhar rigoroso, substituindo a ingenuidade e simplismo deve fazer parte dos objetivos da formação continuada docente. Abramowicz (2001) defende ainda uma formação contínua que se desenvolva de forma coletiva, dentro da própria escola, denominada por ela de grupos de formação reflexiva. Nestes grupos a vivência de cada professor é valorizada, “resgatando sua experiência pessoal e profissional, permitindo a construção coletiva dos saberes. A mola propulsora deste trajeto é a participação, mediante o diálogo” (ABRAMOWICZ, 2001, p.140). Nóvoa (1997, p.25) também evidencia a importância do coletivo na formação críticoreflexiva dos professores, denominada por ele de “dinâmicas de auto-formação participada”. O autor afirma que “a troca de experiências e partilha de saberes consolidam espaços de formação mútua, nos quais cada professor é chamado a desempenhar, simultaneamente, o papel de formador e formando” (Ibidem, p.26). Pimenta (2000) explicita os alicerces da formação de professores baseada na reflexão. A autora coaduna-se com Nóvoa ao destacar que o desenvolvimento profissional dos professores não ocorre descolado de seu desenvolvimento pessoal: A formação de professores na tendência reflexiva se configura como uma política de valorização do desenvolvimento pessoal-profissional dos professores e das instituições escolares, uma vez que supõe condições de trabalho propiciadoras da formação como contínua dos professores, no local de trabalho, em redes de autoformação e, em parceria com outras instituições (PIMENTA, 2000, p.31)

Este modelo de formação tende a ser riquíssimo para discussões coletivas sobre situações de consumo que estão presentes no cotidiano da escola, como aquelas que descrevemos no início deste artigo. Embora muitas delas não estejam relacionadas às experiências diretas vividas pelos alunos, elas fazem parte do universo da escola e dos professores e, nesse sentido, não devem ser desprezadas. Ao contrário, elas devem ser ressaltadas, pois revelam as percepções dos professores sobre o consumo e suas inter-relações. Muitas das situações que se relacionam ao contexto do consumo envolvem decisões individuais, mas terminam por afetar os docentes enquanto grupo. Como exemplo, podemos citar um caso hipotético em que um dos professores aceite uma oferta de uma empresa e decida sortear entre seus alunos um determinado jogo educativo. Embora para alguns esta ação possa parecer inofensiva, é possível que para outros ela seja encarada como uma propaganda velada. A riqueza desta discussão fará com que o grupo amplie suas percepções sobre o tema e que situações posteriores possam ser discutidas coletivamente antes de qualquer decisão ser tomada no âmbito individual. Ainda nas palavras de Nóvoa (1997, p.26) “os momentos de balanço retrospectivo sobre os percursos pessoais e profissionais são momentos em que cada um produz a ‘sua’ vida, o que no caso dos professores é também produzir a ‘sua’ profissão”. Acreditamos que, ao longo deste processo, os professores produzam também a escola. No desenrolar deste processo de formação continuada, o professor toma consciência do caráter político da educação e da não neutralidade de sua atividade profissional. Como advoga Freire (2002) “em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política, assumindo uma neutralidade que não existe.” (FREIRE, 2002, p.79) pois, para ele, “ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra” (Ibidem, p.86). A formação do professor deve estimulá-lo constantemente a se questionar: “em favor de que estudo? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?” (Ibidem, p.86). Mais ainda, como afirma o próprio autor, “tão importante quanto o ensino de conteúdos é a minha coerência de classe. A coerência entre o que digo, o que escrevo e o que faço” (FREIRE, 2002, p. 116)

Quando relacionamos a não neutralidade da função docente com a educação sobre o consumo, este tipo de questionamento é crucial. Que tipo de educação pretendemos desenvolver: uma educação que ensine os alunos a escolher seus produtos de forma consciente? Que os ensine reconhecer os recursos lingüísticos utilizados pela publicidade? Uma educação que instrumentalize nossos jovens a lidar com os desafios da falta de recursos naturais em um futuro próximo? Que os ensine a lidar com o dinheiro (educação financeira) e com a dinâmica de uma economia cada vez mais frágil? Que os eduque para saber reconhecer seus direitos como consumidores, clientes, proprietários do capital? E para os alunos das classes menos favorecidas, o que ensinaremos? A lidar com suas frustrações quanto às restrições ao acesso dos bens e serviços produzidos socialmente? Diante das diversas possibilidades de uma educação sobre o consumo é que apontamos a relevância de uma sólida formação ética para os docentes, para que estes saibam reconhecer a quem serve a educação que estão desenvolvendo em suas salas de aula. 4.

A ÉTICA PERMEANDO A FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Rios (2008) defende que a competência docente apresenta três dimensões complementares entre si: a dimensão técnica, política e ética, sendo esta última a mediadora das duas primeiras. Conforme afirma a autora, “como elemento de mediação, a ética deve estar presente na técnica, que não é neutra, e na política, que abriga uma multiplicidade de poderes e interesses. A ética, garante, então, o caráter dialético da relação” (RIOS, 2008, p.87). Nas páginas que se seguem, Rios acrescenta mais uma dimensão essencial para o trabalho docente da melhor qualidade: a estética, entendida por ela como aquela “que diz respeito à presença da sensibilidade e sua orientação numa perspectiva criadora” (RIOS, 2008, p.108). Para este artigo, nos interessa o aprofundamento na dimensão ética do trabalho docente. Consideramos relevante registrar, nos termos de Rios, o conceito de ética: Define-se aqui e ética como uma reflexão de caráter crítico sobre os valores presente na prática dos indivíduos em sociedade. É no domínio da ética que se problematiza o que é considerado bom ou mau numa determinada sociedade, que se questionam os fundamentos dos valores e que se aponta como horizonte o bem comum, sem dúvida histórico, mas diferente de um bem determinado por interesses particulares e, muitas vezes, insustentáveis (RIOS, 2008, p.87)

Mais adiante, Rios destaca a diferença entre ética e moral, afirmando que “a ética pensa criticamente sobre a moral, como conjunto de valores, princípios que orientam a conduta dos indivíduos e grupos na sociedade” (RIOS, 2008, p. 105). A ética, portanto, não tem um caráter normativo, mas reflexivo. Para a autora, o professor competente é aquele que revela as quatro dimensões em sua prática profissional. A demonstração da ética se dá numa atitude crítica constante, que provoque questionamentos sobre conteúdos, métodos e objetivos, tendo como horizonte o bem comum, entendido aqui como o bem coletivo. Ela orienta a ação do professor. Essa competência não é algo acabado, mas sim um processo em que “vamos nos tornando competentes” (Ibidem, p.90). Diante da complexidade do cotidiano educativo, Gómez (1997), assim como Rios (2008), aponta a necessidade de uma formação docente que leve o professor a questionar suas próprias as percepções, juízos, crenças e explicações para a realidade, pois estes são decisivos para uma compreensão crítica da realidade e para a reconstrução de significados. Rios postula que

a tarefa mais importante da educação, da escola, ao construir, reconstruir e socializar o conhecimento, é formar cidadãos, portanto contribuir para que as pessoas possam atuar criativamente no contexto social de que fazem parte, exercer seus direitos e, nessa medida, ser, de verdade, pessoas felizes. (RIOS, 2008, p.26)

Assim como Freire (2005), Rios também ressalta que, ao longo do processo educativo, não é apenas o aluno que está em formação, se construindo, mas também o professor. Freire é incisivo ao afirmar que “como professor, não é possível ajudar o educando a superar sua ignorância se não supero permanentemente a minha” (FREIRE, 2002, p.107). Portanto, “a prática competente contribuirá para a formação da cidadania não apenas no aluno, mas do próprio professor” (RIOS, 2008, p.126). A autora completa sua reflexão esclarecendo que aquilo que esperamos da pessoa que desejamos formar não deve ser diferente daquilo que esperamos de nós mesmos. Ao relacionar a educação sobre o consumo com as contribuições trazidas por Rios, tornase mais nítida a importância de uma formação continuada docente que enfatize a reflexão e a autonomia do professor. Uma formação de caráter técnico não é suficiente para preparar o professor para lidar com as situações idiossincráticas do consumo, tampouco lhe permitirá uma auto-formação, desencadeada pela reflexão sobre suas próprias condutas em face deste tema. Freire (2002) ressalta que a prática docente, embora não seja superior a nenhuma outra profissão, exige um alto nível de responsabilidade ética, intrínseca à própria capacitação científica que envolve sua formação profissional. Uma competência profissional baseada na ética e no bem comum é a certeza de que caminharemos para uma educação sobre o consumo engajada na transformação da lógica do capital, e não em promover pequenos reparos necessários à própria sobrevivência do sistema baseado no lucro e na exploração. Nas palavras de Freire (2002, p.144) devemos lutar bravamente para que a ética do mercado seja substituída pela ética universal do ser humano, se optamos por viver em um mundo de gente. 5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste texto analisamos, dentro dos limites da proposta, as particularidades da educação sobre o consumo e como a formação continuada de professores pode contribuir para seu desenvolvimento. Diante da presença do consumo na vida de professores e alunos, conforme pudemos constatar por meio de alguns casos apresentados no início deste texto e os argumentos posteriores, justifica-se sua inserção no conteúdo curricular das escolas. O MEC, em seus Parâmetros Curriculares Nacionais, já reconheceu esta necessidade o incluindo nos temas transversais. A complexidade deste tema demanda uma formação comprometida com o desenvolvimento da consciência crítica do professor. Diante desta necessidade, uma formação baseada na acumulação (de cursos, de certificados, de informação etc.) apresenta-se insuficiente, pois não prepararia o professor para olhar criticamente as situações de consumo que fazem parte do cotidiano da escola. Aprofundando-nos nas principais bases do paradigma reflexivo de formação de professores que são a reflexão sobre a prática, o diálogo e a construção coletiva dos saberes, acreditamos que este tipo de formação possa contribuir de forma significativa no desenvolvimento pessoal e profissional do professor. A auto-formação participada, defendida por Nóvoa, coloca o professor como o centro do processo formativo. Relacionando a formação de professores com a educação sobre o consumo, o olhar rigoroso do professor acerca da sua própria relação com os bens e serviços produzidos pela sociedade nos parece ser um caminho a ser trilhado.

Apontamos ainda a importância da ética como mediador da competência técnica e política do professor, levando-o a questionar suas próprias as percepções, juízos, crenças e explicações para a realidade, tendo como eixo norteador o bem-estar da coletividade Muito embora tenhamos nos dedicado a reflexão da formação continuada, apontamos a necessidade do processo de desenvolvimento da consciência crítica do professor ter início em sua formação inicial, estabelecendo um continuum entre estas duas fases. Diante dos desafios da lógica do mercado, é fundamental que a educação sobre o consumo atue no sentido da transformação desta realidade, e não apenas amenizando alguns dos problemas sociais causados pela busca desenfreada pelo lucro. Para tanto, acreditamos que somente uma formação continuada docente comprometida com o desenvolvimento de sua consciência crítica é capaz de nos conduzir a esta direção. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAMOWICZ, Mere. A importância dos grupos de formação reflexiva docente no interior dos cursos universitários. In: CASTANHO, Sérgio. CASTANHO, Maria Eugênia (Orgs.). Temas e Textos em Metodologia do Ensino Superior. Campinas: Papirus, 2001 BERGAMASCO, Daniel. Escola usa professor para promover produto. Folha de São Paulo, São Paulo, 08 julho 2009a. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0807200901.htm. Acesso em: 02 agosto 2009 ______. Educadores divergem sobre brinde em escola. Folha de São Paulo, São Paulo, 08 julho 2009b. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0807200905.htm. Acesso em: 02 agosto 2009 ______. Publicidade entra nas escolas com brindes, gincanas e teatrinhos. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 junho 2009c. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3006200907.htm. Acesso em: 02 agosto 2009 ______. Escolas dizem vetar grande parte dos pedidos dos anunciantes. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 junho 2009d. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3006200909.htm. Acesso em: 02 agosto 2009 ______. Para empresas, ações são informativas. Folha de São Paulo, São Paulo, 30 junho 2009e. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff3006200910.htm. Acesso em: 02 agosto 2009 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental; temas transversais –Trabalho e Consumo. v.10.7. Brasília: MEC/SEF, 1998 BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quatro ciclos: apresentação dos temas transversais. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília, MEC/SEF, 1998b CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 2003. CORTELLA, Mario Sergio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 12. ed. (revista e ampliada). São Paulo: Cortez, 2008

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