Artigo - As curvas do rio e a identidade sertaneja na canção de Elomar - 2014

July 21, 2017 | Autor: L. de Moura Arruda | Categoria: Musicology, Popular Music, Música Popular Brasileira, Songs
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As curvas do rio e a identidade sertaneja na canção de Elomar Lucas Oliveira de Moura Arruda 1 Universidade Federal da Paraíba / Mestrado Em Etnomusicologia SIMPOM: Etnomusicologia [email protected]

Resumo: Propõe-se aqui uma análise da canção “Curvas do Rio”, do cantor e compositor Elomar Figueira Mello. O material de análise consiste em a) três gravações da canção pelo autor e outros dois intérpretes e b) a transcrição publicada no volume Cancioneiro. Elementos da semiologia da música, notadamente os musemas de Philip Tagg, são úteis no desvendamento de sentidos e pontos de contato entre significados da letra e as sonoridades das vozes e dos instrumentos. O estudo se vale também de estímulos da criação visual do disco de Elomar que contém a canção em referência. Chega-se à conclusão de que a imagem de trovador e menestrel de Elomar possui pontos de ressonância nos elementos musicais de seu cancioneiro, como o modalismo e a preferência pelos instrumentos acústicos. Palavras-chave: Análise de Música Popular; Semiologia; Canção Brasileira; Elomar. The River’s Bends and Brazilian Backcountry’s Identity in Elomar’s songs Abstract: This paper presents an analysis of the song “Curvas do Rio” (“River’s Bends”), by the composer and singer Elomar Figueira Mello. The data for analysis comes from a) three recordings of the song, by the composer and also other two singers; and b) the transcription published in the volume Cancioneiro (“Songbook”). Elements in Semiotics of Music, notably Philip Tagg’s musemes, are helpful in unveiling senses and adjacencies between the lyrical meanings and voice’s and instrument’s sonorities. The study also betakes from stimuli from the illustrations in Elomar LP that contains the referred song. The conclusion is that Elomar’s representation as a minstrel from the backcountry has resonance points with musical elements in his Cancioneiro such as modalism and the preference for acoustic instruments. Keywords: Popular Music Analysis, Semiotics, Brazilian Song, Elomar.

Introdução Estudar a música popular em uma época de possibilidades comunicativas extensas como a nossa envolve entender como é construído o imaginário em torno de um artista. A imagem funciona como um cartão de visita. Nela, se podem entrever opções estéticas do 1

Orientador: Carlos Sandroni. Pesquisa financiada pela CAPES.

585 artista, estilo, formas de apelo comunicativo. Assim, contribui para a associação daquela música a um gênero musical. Entender o discurso musical por inteiro envolve a consideração de aspectos linguísticos, econômicos, históricos, técnicos, rituais, gestuais, visuais, psicológicos e sociais relevantes para o gênero, função, estilo, situação de (re)performance e atitude de escuta conectado com o evento sonoro sendo estudado. (TAGG, 2003, p. 11).

Vários são os exemplos de cantores ou cantoras populares contemporâneos transformados em mitos, carregando ideologias com as quais o público se identifica. John Lennon, Amy Whinehouse, Elvis Presley, Madonna, Roberto Carlos, têm um papel forte na construção do imaginário pessoal de milhares de pessoas. Rahde (2002), falando do mito Elvis, argumenta que o astro ressurge constantemente para nutrir um imaginário coletivo, com inúmeras fotos e vídeos, que reforçam, de tempos em tempos, a imagem do mito nos meios de comunicação. E assim, mesmo após sua morte, Presley vem, gradativamente, se tornando um sucesso sempre vivo, no momento em que sua imagem permanece alimentando a concretização dos sonhos mais submersos dos seus incontáveis admiradores ao redor do mundo. (RAHDE, 2002, p. 18).

Entre os cantores-compositores brasileiros que carregam uma imagem mítica, Elomar Figueira Mello é um exemplo. Nascido nas imediações da cidade de Vitória da Conquista (Sudoeste da Bahia, 329,15 km de Salvador 2 ) em 1937, é conhecido como cantador, violeiro (embora seu instrumento seja o violão), menestrel das caatingas, trovador... Desde o começo de sua carreira como cantor das coisas do sertão, ele adota uma atitude reclusa, evitando a exposição exacerbada de sua imagem e de sua vida. Na Fazenda Casa dos Carneiros, a 20 km. da cidade de Vitória da Conquista, compôs parte significativa de sua obra, bem como na fazenda Duas Passagens, no Rio do Gavião, e, mais recentemente, na Fazenda Lagoa dos Patos, na Chapada Diamantina 3 . São lugares visitados pelos seus admiradores e amigos, e são como que lugares míticos dentro da sua obra. Sua insistência em não querer sua imagem registrada pelo público de suas apresentações é algo que chama a atenção. Nas duas ocasiões em que estive em apresentações suas no Recife, vi Elomar se indispor com pessoas que tiravam fotos da apresentação. “Isso me desconcentra”, disse da última vez. “Por favor, não repita; já foi dado o aviso”. No entanto, ao final da apresentação, recebia uma fila enorme de gente, dedicando atenção a cada um. Alguns 2

Informação obtida em: . Acesso em 27 jan. 2014. Conforme depoimento a Simone Guerreiro, incluído no livro Tramas do Sagrado: a poética do sertão de Elomar (GUERREIRO, 2007, p. 304-306). 3

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586 se demoravam ouvindo suas histórias. Um amigo, após uma dessas ocasiões, me disse: “Dei um abraço forte nele. Ele não pode tirar foto, mas o abraço ficou registrado pra sempre!”. Essa atitude, somada à raridade de suas aparições públicas, traz uma mensagem para uma época de possibilidades de tecnologias de registro cada vez mais acessíveis: a importância de um contato mais intenso, mais atento às pessoas, mais íntimo. Como diz Fabbri (1982), ao comentar sobre o comportamento de artistas do gênero musical canzone d’autore na Itália, e que tem alguns pontos em comum com Elomar: “em qualquer circunstância o cantautore deverá passar a impressão de desconforto na frente de sua audiência, porque a intimidade é sua ‘real’ dimensão”4 (FABBRI, 1982, p. 70). Essa atitude “intimista” se mostra também na maneira como as canções de Elomar são apresentadas, muitas vezes apenas com voz e violão, em que este faz solos e acompanhamentos. E também na maneira como seus discos são apresentados ao público: de seus 16 discos lançados até hoje, metade deles traz obras de artistas plásticos. Sob esse ponto de vista, os discos são mais conceituais do que comerciais, buscando uma mensagem que vai além da canção, trazendo ao ouvinte uma experiência estética que abrange também o visual. Este artigo busca desvendar traços da identidade artística do cantor e compositor Elomar Figueira Mello, através de uma análise da canção “Curvas do Rio”. Para isso, exponho elementos “textuais” da canção, e utilizo gravações em disco e a música escrita. As gravações em referência são três: a de Dércio Marques, no disco Terra, vento, caminho (MARQUES, 1977); a do próprio Elomar, no disco Na Quadrada das Águas Perdidas (MELLO, 1979); e a de Eugenio Avelino (o Xangai), no disco Qué qui tu tem canário (XANGAI, 1981). A música escrita compreende a partitura publicada no Cancioneiro (MELLO, 2008), que é uma transcrição da gravação de 1979; além de trechos das outras gravações citadas, em transcrição pessoal5. O uso de três gravações diferentes (e de uma transcrição publicada) tem como finalidade demonstrar como diferentes interpretações (a transcrição é uma quarta interpretação) enfatizam diferentes detalhes expressivos, mostrando assim múltiplos pontos de uma só identidade. A comparação de uma música com outras músicas faz parte da ideia de musemas (“unidades mínimas de significação”) de Philip Tagg ([1982] 2003, p. 16), que propõe a 4

“anyway the cantautore must always give the impression of being uncomfortable in front of his audience, because privacy is his “true” dimension” (tradução minha). 5 Xangai (n. 1948) e Dércio Marques (1947-2012) têm parceria antiga e constante com Elomar, tendo participado de momentos significativos de sua carreira, como o registro e a estreia em palco do Auto da Catingueira. Sobre essa parceria, cf. BASTOS, Eduardo Cavalcanti. Nova cantoria: movimento poético-musical de Elomar Figueira Mello, Dércio Marques e Xangai. Dissertação de Mestrado (Artes Cênicas). Salvador: Escola de Teatro da UFBA, 2007.

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587 comparação entre objetos musicais para chegar a conclusões sobre o efeito afetivo de determinada música. A comparação entre diversas interpretações de uma música pode trazer informações sobre a identidade de um intérprete (BAHIA, 2009), e tem muito a acrescentar nessa análise da identidade de um compositor em um determinado gênero musical. Há momentos de interdisciplinaridade, no paralelo que faço entre significados da música de Elomar e da pintura de Orlando Celino, que ilustra o álbum Na Quadrada das Águas Perdidas (1979). Valho-me aqui de noções básicas da semiótica, como sintagma e paradigma. Essa associação traz um ponto de vantagem e um ponto de desvantagem. A vantagem que esse paralelo pode trazer à análise da música está em informações e estímulos para: a) um entendimento mais global, dada a importância de meios comunicativos (aqui estão o computador e a televisão) que trabalham com a visão na significação da música para o público e b) para a clarificação na comunicação de resultados de pesquisa a partir de associações visuais. A desvantagem está justamente na dificuldade em equilibrar conhecimentos específicos das duas áreas, música e artes visuais. É preferível, no estudo que aqui se desenvolve, uma análise com ênfase maior na parte musical, tendo a visual como auxiliar e instrumento de “ancoragem” (PENN, 2002, p. 322). 1. Discussão e análise Na Quadrada das Águas Perdidas é o segundo disco de Elomar. Foi lançado pela sua gravadora independente, Rio do Gavião (com sede em Vitória da Conquista), em distribuição da Discos Marcus Pereira, em 1979. O selo foi fundado após o desengano de Elomar com as multinacionais do disco. Seu primeiro LP, ... Das Barrancas do Rio Gavião, foi lançado em 1973 pela Philips, e rendeu ao cantor uma grande frustração, pois todos os direitos sobre a execução do disco ficaram com a dona da gravadora, a Rainha dos Países Baixos, Juliana de Holanda, e mantém-se nas mãos do reinado6. O álbum duplo de 1979 traz vinte canções de Elomar, com temáticas ligadas ao imaginário sertanejo, e a um imaginário peculiar do próprio Elomar, notadamente, a ideia do sertão profundo: um sertão para além do sertão geográfico, lugar onde vivem personagens de suas histórias, e que se alcança através de diversos portais. Entre estes, a quadrada das águas perdidas, que dá nome ao disco. É uma lagoa que fica no sertão do Rio do Gavião, “uma lagoa misteriosa: ela enche num dia, noutro dia, ou três dias depois, a gente chega lá e não tem uma gota d’água e não tem um buraco visível pra onde teria ido aquela água” (Elomar em 6

Ver depoimento no site: . Acesso em 27 jan. 2014. A informação foi confirmada pessoalmente pelo compositor.

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588 depoimento a GUERREIRO, 2007, p. 288). A canção-título do LP (disco 1, lado A, faixa 2) é cheia de referências a serras e locais distantes, para além da Chapada Diamantina. A capa de Na Quadrada... (Fig. 1) traz uma pintura (acrílico sobre tela) do artista plástico Orlando Celino (n. 1956), conterrâneo de Elomar. Foi inspirada diretamente na impressão que o pintor teve ao ouvir a canção “Curvas do Rio”, ainda antes de o disco ser lançado. Fez então um estudo para um quadro, que Elomar viu, aprovou, e encomendou para a capa do álbum. Quando foi para Salvador, Celino levou o quadro, e lá terminou a arte, pouco antes da visita do fotógrafo Anthony Woorley para fazer a foto a ser reproduzida na arte do álbum. Segundo Celino, a arte final foi feita com bastante rapidez, e talvez a isso se deva a característica tão despojada e áspera do quadro, que o torna tão marcante (comunicação pessoal, 1 ago. 2012).

Figura 1: capa do disco Na Quadrada das Águas Perdidas (MELLO, 1979).

O quadro descreve o momento da despedida do pai de uma família sertaneja, que, já completamente ressecado pela estiagem, não tem outra solução que não a migração para outras terras, para conseguir condições financeiras de alimentar os seus. Ele vai “corrê trecho”, no dialeto sertanez, utilizado por Elomar em suas canções. “Corrê trecho” é viajar, correr trechos de terra alheia; a consequência é endividar-se, trabalhar para os poderosos ganhando miséria, perder-se na cidade grande, sem retornar ao seu lar. O tema das consequências trágicas da retirada é comum na arte de Elomar, como na de outros ligados a temas nordestinos, entre eles, Patativa do Assaré, Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga. “A triste partida” de Patativa, cantada por Gonzaga, mostra o resultado penoso ANAIS DO III SIMPOM 2014 - SIMPÓSIO BRASILEIRO DE PÓS-GRADUANDOS EM MÚSICA

589 da mudança de lar para uma terra estranha e violenta. “No meu pé de serra”, de Gonzaga e Humberto Teixeira, traz a saudade que o migrante tem da sua terra, onde, mesmo com muito trabalho todo dia e muita penúria pelas estiagens, ele está no seu lugar querido, e tem festança à vontade com seus amigos. Com Elomar, especialmente no ciclo de óperas Bespas Esponsais Sertana (“Vésperas de Casamento no Sertão”), cinco óperas ainda pouco conhecidas, a mudança para terra alheia toma proporções épica. A vida nas capitais como São Paulo, com seus costumes urbanóides, sua poluição, sua violência e seus “desfiladeiros de paredes verticais” (como diz ele mesmo no texto inserido na capa interna do LP Na Quadrada... [MELLO, 1979]), acaba por corromper por completo o espírito simples do sertanejo7. “Curvas do Rio” pode ser um prefácio a uma história desse tipo. Quando o personagem fala na necessidade de “dar um pulo” em “Son Palo Triang’ Minêro” (estrofe [est.] 2, verso [vs.] 4), ele vislumbra nesses lugares uma solução para seus problemas. Ou isso, ou cair nas mãos de um agiota, o Véi Brolino (est. 3, vs. 4), e empenhar todos os seus bens. Uma história que deixa entrever começo e fim, e que mostra uma característica das letras de Elomar, “uns canto contado” (depoimento de Mariquinha de Quilimero, capa interna de MELLO, 1979). Como pontua Cunha (2008, p. 20), “[h]á em Elomar uma lógica fractal, em que cada pequena peça parece trazer todo o conjunto de inspirações e, ao mesmo tempo, se torna elemento fundamental para o entendimento da construção completa”. Essa característica de contador de estórias dá a Elomar adjetivos como trovador, menestrel, bardo, repetidos constantemente por público e jornalistas que se ocupam de sua arte. A desolação da situação exposta na canção é refletida musicalmente na introdução da música, um ritornello que reaparece no final de cada uma das três estrofes, e que também encerra a música, em baixo ostinato8. Utilizando o modo eólio9, temos a sequência de acordes (Dm – C – G – D) (ou i – VIIb – IV – I), com o último acorde terminando em “terça de picardia”, passando do modo menor para o maior, como é muito comum em cadências finais na música da renascença europeia. Seria esse um dos motivos para a música de Elomar soar “antiga” para ouvintes que o chamam de “trovador medieval”, “menestrel”? A forma é (A-B7

O disco Árias Sertânicas (lançado em 1992 pela gravadora Rio do Gavião e relançado pela Kuarup em 2005), em que o próprio compositor e seu filho João Omar cantam e tocam trechos da pentalogia em duo de violões, é uma rara oportunidade de adentrar no universo operístico de Elomar. Pude ouvir trechos dessas óperas no concerto Elomar e João Omar ensaiando o Riachão do Gado Brabo (Recife – PE, 28 e 29 de setembro de 2012). 8 O uso de termos da música antiga pode ser válido ao observar a música de Elomar, dada a frequente associação do compositor aos tempos antigos. 9 As três gravações que utilizei estão em alturas diferentes do modo eólio: a de Dércio Marques, em Sol (alguns comas abaixo); a de Elomar, em Fá#; a de Xangai, em áb. A transcrição constante no Cancioneiro indica o uso do capotraste (pequena peça que, colocada em qualquer casa do braço do violão, aumenta a altura das notas das cordas soltas, de acordo com a casa) na quarta casa do violão, para produzir a tonalidade de Fá#, mas utilizarei a altura em que a música está escrita (Ré).

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590 A-C-A-D-A), em que A é o ritornello e B, C e D são a melodia principal repetida em três estrofes. D conta com um apêndice de dois versos, cantados em cima do ritornello10. A instrumentação da música na gravação de Elomar (1979) conta com vozes (Elomar, canto; Dércio Marques, vocalise); flauta transversal (Elena Rodrigues), viola caipira (Dércio), e violão (Elomar)11 (a transcrição incluída no Cancioneiro traz apenas voz, violão e flauta). Inicialmente, o violão faz sozinho o baixo ostinato. Depois, a flauta faz a melodia no ritornello, e na terceira vez, o violão faz uma rápida figura em arpejo, como que a sugerir o movimento do rio (Ex. 1), e a viola faz uma melodia em contraponto à da flauta. A partir da segunda aparição do ritornello, surge o vocalise em uníssono à viola de Dércio (Ex. 2).

Exemplo 1: Melodia da flauta e figuração em arpejos do violão. Fonte: MELLO, 2008.

Exemplo 2: Vocalise (voz e viola em uníssono) (dos 01:28 aos 1:32) (MELLO, 1979). 10

A letra completa da canção pode ser encontrada nos encartes dos LPs Na Quadrada... (MELLO, 1979) e Qué qui tu tem Canário (XANGAI, 1981) e no caderno Notas & Letras do Cancioneiro (MELLO, 2008). 11 As canções não possuem ficha técnica detalhada no encarte do disco. Apenas há a menção dos músicos participantes na contracapa. Trago aqui uma suposição a partir da percepção que tive ouvindo e acessando as informações básicas do disco.

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591 Na gravação de Xangai (1981), o uso da voz em falsete passa ainda mais uma imagem de desolação e agonia, realizando linha melódica baseada na flauta da gravação de Elomar. A instrumentação conta apenas com a voz e o violão de Xangai e o violoncelo de Jaques Morelenbaum, e o andamento tem mais rubatos do que as outras versões. Isso, aliado à privilegiada condição vocal de Xangai, lhe dá a possibilidade de criar maneirismos (Ex.3).

Exemplo 3: Vocalise de Xangai (dos 00:15 aos 00:42 da gravação) (XANGAI, 1981).12

Essa ideia do falsete já existe nas gravações de Dércio (1977) e de Elomar (1979), justamente no momento do vocalise de Dércio. Na gravação do disco de Dércio, ele faz o falsete em uníssono com uma flauta doce. No entanto, a expressividade mais enfática de sua interpretação é ao fim do sexto verso de cada estrofe (Ex. 4), em que a nota Ré 4 é alongada, quase sem vibrato, como um grito. O falsete assume uma posição mais discreta que na versão de Xangai. Com este, o falsete e os maneirismos roubam a cena no ritornelo, em dinâmica mais intensa. O andamento com Xangai não tem tantas características do baião quanto com Elomar. Os silêncios que Xangai coloca trazem uma noção de espaço à música, e a audição pode sugerir os largos descampados do sertão (Ex. 3, compassos finais – ver especialmente o final da gravação feita por Xangai). Uma característica de “Curvas do Rio” e de outras canções de Elomar – que tem sua parcela na expressividade desta canção –, é o uso de uma larga tessitura da voz, que compreende quase duas oitavas (de Fá#2 até Mi4, isso na voz masculina normal, sem contar com os falsetes).

12

Note-se na transcrição a opção por compassos; no entanto, nos fins de frase, há constantes rubatos. Os fonemas utilizados para o vocalize são tão importantes que decidi transcrevê-los, mesmo apenas aproximados.

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592 Isso traz um desafio para o cantor, mas ao mesmo tempo, é um recurso expressivo valioso. Sua relação com as inflexões da fala é notável no começo de cada sexto verso (“Dêrna d’intão...” – est. 1, vs. 6): na quarta sílaba, a melodia atinge seu ápice. O conjunto de três notas mais agudas é apresentado descendentemente neste trecho: Fá4, Mi4 e Ré4 (Ex. 4).

Exemplo 4: Interpretação de Dércio Marques (dos 00:34 aos 00:45) (MARQUES, 1977)13.

As estrofes da canção possuem estrutura melódico-harmônica semelhante entre si, começando já com um arpejo do acorde menor com 7ª menor (Ré – Fá – Lá – Dó), o que reforça o caráter modal da canção, bem como a aparição constante do acorde menor do v grau, sem a função de sensível. Parece que a função de sensível não é ascendente, mas descendente, e está na resolução do IV grau para o I, que tem a nota Sol descendo para Fá# (Ex. 1). Apenas na transição entre os versos 6 e 7 de cada estrofe (Ex. 4), há o V com função de dominante. Se fôssemos pensar em cores e perspectiva, talvez pudéssemos pensar na pintura de Portinari, ou nos afrescos do início da renascença italiana. Ou na pintura de Orlando Celino. O acrílico de Orlando Celino apresenta figuras magras e alongadas. No entanto, a expressão facial é de força e coragem. A mãe mostra semblante de choro preso e dureza nos traços. Uma característica do sertanejo que fica para quem é da cidade é a contenção. Essas escolhas de traços, representação de figuras magras, tem a ver com o que a semiologia chama de paradigma (PENN, 2003, p.321). Poderiam ser representadas figuras gordas, ou com roupas bem-cuidadas, mas isso seria um significado convencionado de fartura, riqueza. Da mesma forma, o cenário poderia ser de uma mata, com árvores altas e ricas em frutas. Nesse caso, a relação sintagmática (relação entre os elementos) estaria distorcida. O retrato do sertanejo em questão possui representações socialmente construídas, tendo suas implicações ideológicas (e políticas) na sociedade. Uma representação comum dos 13

É provável que Dércio tenha utilizado na gravação o capotraste na V casa do braço do violão, para conseguir o som do Ré com a 4ª corda solta neste trecho. Vale lembrar também que o cantor modifica o verso, de “Dêrna d’intão é sol é fogo é tái d’inxada” (est. 1, vs. 06) para “Dêrna d’intão é pó é seca é tái d’inxada”. Não se sabe se a primeira versão da letra pelo compositor é esta (visto que a gravação de Dércio surge antes da de Elomar), ou se é modificação do próprio intérprete. Vale lembrar que foi a primeira gravação da canção.

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593 sertanejos está na pintura de Portinari (Retirantes, 1944; Retirante morrendo, 1958), na literatura de Graciliano Ramos (romance Vidas Secas, de 1938) e no cinema de Nelson Pereira dos Santos (Vidas Secas, de 1963). Representações que fazem parte do imaginário disseminado nas metrópoles do Brasil, e que é aproveitada pela visão fatalista do sertão, praticada até hoje, correspondente à visão hidráulico-institucional afirmada por Gomes (1998). Essa visão, reforçada por diversos autores, desde Euclides da Cunha, é de que todos os problemas da seca se resolvem por meio da água, e que todos no sertão, sejam ricos ou pobres, têm suas vidas destruídas pelo flagelo. Gomes traça, nesse capítulo, uma linhagem teórica que vai dessa vertente fatalista até uma que encara a seca de maneira desmistificada, entendendo-a como “um acontecimento historicamente produzido, por motivações políticoeconômicas, no seio das relações de produção, observadas alterações ocorridas na organização socioeconômica nordestina” (GOMES, 1998, p. 85). Os poderosos, como o Véi Brolino, de muitas maneiras lucram com a situação desesperadora da seca. A necessidade dos camponeses faz com que empenhem seus bens a preço barato, para conseguir comprar alimento. Assim, uma concepção política sustenta até mesmo a própria visão dos sertanejos sobre sua situação, atribuindo a ela uma representação mágico-religiosa (p. 64-65). Quanto a outros detalhes da capa do disco, estão o título e o nome do artista em letras manuscritas, provavelmente do próprio punho dele. Isso pode dar ao ouvinte a impressão de um disco “feito à mão”, de uma rusticidade, e uma autenticidade, que são características de pessoas simples e despojadas. Além disso, pode passar a ideia de algo “livre” da tecnologia eletrônica atual. Para seus admiradores, Elomar, com sua simplicidade de modos, sua reclusão e sua autenticidade, representa um ideal de contato com a natureza, de contemplação, de silêncio na vastidão da terra. Traz, então, uma nostalgia de um tempo em que as pequenas coisas artesanais e a tranquilidade eram mais valorizadas14. Como já foi dito acima, sua opinião sobre os hábitos industriais urbanos não é nada esperançosa. Em contraposição a uma tipografia “industrial”, o artista coloca sua própria letra, assina sua “obra”. Essa ideia de uma “rusticidade” está presente na própria pintura de Celino – o acrílico teve uma gestação demorada, mas a realização final foi feita rapidamente, pouco antes do prazo para finalizar o projeto gráfico do LP (ARRUDA, 2013). Notam-se as pinceladas rápidas em muitos detalhes. 14

O grupo virtual ELOMAR FIGUEIRA MELLO – OFICIAL, no facebook, recebe frequentemente depoimentos que testemunham essa admiração do público pelo artista, além de histórias de quem o conheceu e conviveu com ele. É interessante pensar como, ironicamente, sua fama se beneficia de meios tecnológicos: através desse grupo fechado, a produção divulga todos os eventos do artista, dezenas de pessoas compartilham ideias (e polêmicas), e pesquisadores mostram gravações raras das músicas.

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594 Outro elemento significativo da pintura, mas que aparece indiretamente, é o sol. Ele está presente na iluminação forte, na secura das plantas e dos corpos, no cenário de tons pálidos. Não há sombras, exceto as de cada personagem. O céu é azul, sem uma nuvem sequer, e um urubu espreita em busca de alimento. Um sinal de fertilidade entre tanta sequidão é o umbuzeiro, de copa resplandecente e cor verde forte, em contraste com as outras cores – marrom, bege, rosa claro. O umbuzeiro, na canção “Curvas do Rio”, é um símbolo de força, resistência, teimosia, características que o próprio sertanejo deve ter também. O umbuzeiro é planta resistente e capaz de dar frutos até durante a estiagem15. 3. Considerações Elomar é visto por si mesmo e por seus admiradores como um “menestrel”16. Isso tem uma função significativa no seu imaginário como compositor. A preferência por certos tipos de instrumento, como cordas pulsadas, flauta e violoncelo; o tipo de voz empregada para sua interpretação, com uma extensão que vai até os falsetes (comuns no imaginário sobre os cantores medievais); o uso do modalismo, com ausência de sensível ascendente na escala musical; a imagem de um errante a buscar sossego nos campos brancos da caatinga; a preferência por discos “artesanais” (devemos lembrar que o registro de música na Idade Média era manuscrito); além da não submissão a valores que considera pervertidos, ou seja, uma independência. Não quero dizer aqui que a música de Elomar é um elo perdido com os trovadores do passado (isto é matéria para pesquisas futuras); se há ou não essa ligação, o que existe de relevância é o imaginário que se cria em torno disso com o seu significado e importância para a própria construção da figura pública do cantor e a significação de sua música pelos ouvintes. A partir de ideias da semiótica e das representações da seca, observei uma pintura associada ao imaginário de Elomar, e que enumera muitos elementos presentes em sua música de forma pictórica, em associação com significados da letra. Esses elementos musicais do imaginário trovadoresco se repetem durante o Cancioneiro, no entanto, eles não são os únicos,

15

Cf. NEVES, Orlando Sílvio Caires. Umbuzeiro (Spondias tuberosa Arr. Câm.): uma alternativa para o semiárido. Vitória da Conquista (BA): Edições UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), 2010. 16 Na “agenda” de seu site oficial, , ele fala “o meu canto de menestrel”. Uma rápida busca no Google com as palavras Elomar+Menestrel traz vários resultados que associam o adjetivo ao nome do cantor. Da mesma maneira, a procura da palavra “menestrel” no grupo do facebook “ELOMAR FIGUEIRA MELLO – OFICIAL” traz dezenas de resultados, entre pessoas falando no cantor. O principal resultado que aparece é dos vídeos postados pelo amigo Paulo Sílvio, que, em sua conta do YouTube, produz a série “ELOMAR*, O MENESTREL DAS CAATINGAS”, que traz várias versões de suas canções, por vários intérpretes. Acessos em 12 jul. 2014. O apelido “Menestrel das Caatingas” foi colocado por Luiz Gonzaga, segundo consta em um jornal de Vitória da Conquista (FIFÓ, ano 1, n. 0 – 11 out. 1977).

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595 como já demonstra a presença da “terça de picardia” na canção em análise. Fica aqui em aberto a comparação com as outras canções de Elomar, e com possíveis objetos musicais de outros artistas, para o desenvolvimento de “musemas” sertanejos.

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