ARTIGO: DO PEQUENO AO INFINITO: Tarde, vitalismo e o temperamento nas ciências sociais

June 19, 2017 | Autor: Thiago Araujo | Categoria: Michel Foucault, Gabriel Tarde, Pierre Bourdieu, Sociologia
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

DO PEQUENO AO INFINITO: TARDE, VITALISMO E O TEMPERAMENTO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS Thiago de Araujo Pinho 11/11/2015

“O que mais o exaspera é encontrar-se à mercê do acaso, do aleatório, da probabilidade, é deparar, nas atitudes humanas, com o desleixo, a imprecisão, sua ou de outros.” (CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das letras, 1990, p. 25)

SÍSIFO E O ETERNO RETORNO E lá vai ele, subindo e descendo uma ladeira irregular, não tão alta quanto qualquer morro, mas ainda assim reforçando a tragédia da cena, sua repetição, sua infinita repetição frustrada. Esforço inútil, estéril, retirando tudo de dinâmico, tudo de intenso, de seu interior. A monotonia do movimento, aliada ao suor que o acompanha em cada contração de um musculo, parece se transformar, para Sísifo, em um outro rochedo, esse muito mais difícil de conduzir, já que gerado por seu próprio encadeamento, suas próprias associações nada livres, suas próprias justificativas e, enfim, por sua própria incapacidade de romper com o vazio de sua existência. Como desistir de tudo isso em nome do lançar de dados, da verdadeira repetição? Sísifo não é um bom jogador, ao menos para os olhos do crupiê, Diosinio, essa criatura curiosa e desejante que, com os olhos atentos, observa toda aquela cena patética e pouco afirmativa. Sísifo deixa o ressentimento cegar suas possibilidades, e suas condições concretas negam a chance de um verdadeiro esforço criativo, em pura afirmação. Quem ele é? Sísifo? Ele é uma metáfora, uma metáfora daquilo que se é do que acompanha cada gesto, por mais simples que seja. Da síntese mais elaborada, até o gozo mais imediato e rasteiro, algo parece manter seu ritmo, uma certa regularidade, algo como uma técnica, algo como a linguagem. TARDE, SOCIOLOGIA E DEVIR Gabriel Tarde, personagem quase esquecido da historia do pensamento social, condenado a algumas discussões marginais no campo da psicologia e do direito, enfim ressurge. Embora tenha tido no inicio de sua carreira uma boa repercussão de suas ideias, em especial no campo antropológico, com seu dialogo com Lombroso, ou mesmo no campo sociológico, com as polemicas acaloradas com Durkheim, acabou sendo excluído de um novo domínio a ser formado, um espaço com fronteiras fixas e impenetráveis. A sociologia começava a apresentar limites bem demarcados, através de métodos assépticos, higienizados, com aquele polimento bem positivista. Havia uma busca ansiosa por legitimidade acadêmica, conseguida apenas, ao menos na época, através de aproximações insistentes com as ciências biológicas e físicas, conferindo assim maior firmeza, identidade e confiança ao conhecimento aí gerado. Tarde seria, talvez, um psicólogo social ou, no máximo, com um pouco de esforço, um microssiologo, quando não, uma espécie de protopensador, alguém que apenas instituiu rudimentos de uma sociologia em breve superada por Durkheim e sua ciência plena do social. Com o passar do tempo, através de alguns pensadores como Deleuze e Latour, esse personagem ressuscita de seu sono intelectual e passa a ganhar uma força cada vez maior. A predominância do vitalismo no espaço acadêmico e principalmente sua invasão nas ciências

sociais, garantiram a Tarde o status necessário e o lugar adequado para disseminar suas categorias, ao passo que se transforma, aos poucos, num evidente ancestral e numa referencia marcante para muitos autores contemporâneos, sejam eles filósofos, sociólogos, antropólogos, etc. Dentre os vários conceitos que circulam pelo seu universo, destaco a repetição, a diferença e a imitação, não porque sejam os principais, o que pode ser o caso, mas sim porque são três pontes convergentes para o pensamento vitalista, deleuziano, e para os questionamentos específicos desse artigo. Entender o papel do vitalismo nas ciências sociais, passando pela ancestralidade de Tarde, é o principal objetivo desse trabalho. O estudo é preliminar, ainda um esboço, portanto é muito mais uma experiência arriscada de criação do que algo mais sério, “cientifico”, a não ser que se chame de ciência o que o artista faz, nesse caso seria inútil erguer algum limite entre esses dois domi...“modos de existência”. O JOGO DE DADOS: A REPETIÇÃO Existiria, talvez, um jeito mais imediato, meio senso comum, de conceber a repetição. Para Gabriel Tarde, por outro lado, ela nada tem a ver com permanência, hábito ou identidade, ou seja, com aquilo que normalmente é associado a esse conceito. O que é repetido, assim como em Deleuze, não é uma serie causal, uma esteira idêntica de fenômenos, “[...] mas uma virtualidade de certo tipo” (TARDE, 2007, p. 121), uma espécie de inclinação ao novo e ao inédito. A repetição sempre adiciona alguma coisa ao fenômeno, sempre forçando suas fronteiras para uma nova remodelagem. Os três termos tardianos, diferença, repetição e imitação, nesse caso, convergem para um mesmo solo vitalista, ao abrir espaço não para realidades definidas, representações sobrepostas, ou categorias transcendentais. O que é repetido guarda dentro de si um potencial intenso, transbordante, se inclinando para novos agenciamentos, deslocando as continuidades e permanências de seu centro epistemológico. Em outras palavras, a identidade não deixa de existir em Tarde, assim como as categorias sujeito-objeto em Latour, embora elas se encontrem, por outro lado, descentradas de sua posição de excelência e transformadas em instantes passageiros, em momentos casuais, lançados numa repetição sem fim. Como para esse sociólogo “toda coisa é uma sociedade” (TARDE, 2007, p. 81), desde uma simples célula até um cardume se agrupando num coral, passando por encontros religiosos e polemicas politicas, a repetição atravessa tudo, permitindo que humanos e não-humanos cooperem num jogo rico de virtualidades, todos num ritmo sempre inédito de descobertas e articulações. Não importa se estamos falando da repetição ondulatória, gravitacional, hereditária ou imitativa; todas implicam num mesmo principio repetitivo e “profusor”, num mesmo solo heideggeriano

contrário a predicados e enquadramentos. O que existe apenas é excesso e avidez, assim como a célula nietzschiana, sempre em busca de mais expansão e potencia. O espaço, o tempo, ou qualquer outra categoria a priori, vê a si mesma dependente desse movimento repetido, dessa virtualidade sempre contagiante, sempre se propagando para o infinito com aquela vontade expansiva, insatisfeita. Não é á toa, inclusive, que Tarde vê a imitação, com seu contagio bem rizomático, como geradora dos eventos repetitivos do universo humano (VARGAS, 2000). As coisas “não são” para Tarde, elas se possuem, se conectam e ultrapassam sempre a si mesmas, subvertendo a própria unidade individual que supostamente teriam, mascaradas pelo mais antigo artificio da linguagem: o verbo “ser” e sua mania transcendente. A essência não é um adjetivo, um rótulo necessário, ou uma marca profunda no corpo do fenômeno, mas a condição mesma de sua difusão, uma quebra de fronteira. A origem não sendo um núcleo atual, no sentido deleuziano, é um solo de novidades, um encontro de linhas de força. O critério determinante, como já era de se esperar, não é de validade, como se houvesse um corte atemporal entre o verdadeiro e o falso, transparente ao sujeito esclarecido. “Here we are beyond causes and effects[…]”(MERLEAUPONTY, 1964, p. 20). A origem é genealógica, ou seja, é um fundamento virtual em que a própria enunciação do evento, suas conexões e implicações, já é um mergulho em sua profundidade, um acrescimento á sua expansão. O sujeito desinteressado kantiano, o protótipo do cientista tradicional, uma vez descolado do mundo, enxergando de cima suas variáveis e suas determinações, é substituído não por uma outra transcendentalidade, um outro eixo vertical de significado qualquer, mas sim por um conjunto de mônodas descentradas. Ao tentar “[...] encontrar qualquer justificativa no acaso.” (BALZAC, 2012, p. 410), alguma série causal escondida, o ator adquire aquela identidade suficiente, aquele alicerce indispensável, ao menos para uma vida congelada. A genealogia, não sendo causa, não sendo simplesmente uma origem oculta por trás dos bastidores, oferece uma multiplicidade e uma dinâmica nova ao fenômeno. “É que, na realidade, trata-se aqui de centros e de núcleos infinitamente múltiplos, com pontos de vista e graus diferentes.” (TARDE, 2007, p. 126) O individuo, por consequência, não é uma célula isolada, um corpo ascético e bem esboçado, ou talvez um núcleo causal brotando de alguma transcendentalidade qualquer. Ele (o individuo), “[...] é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo (NIETZSCHE, 1874, p. 16). Isso implica o abandono do rotulo de individualismo metodológico quando falamos de Tarde, já que não há indivíduos no seu esquema de pensamento, mas mônadas lançadas numa esteira infinitesimal, ou, em outras palavras, um feixe de múltiplos contatos, um suporte de convergência para varias linhas de força. Seu projeto é de uma monodologia renovada, ao resgatar, como ponto de partida, as reflexões de Leibniz e sua filosofia monista, embora

ultrapasse suas conclusões, dando ao conceito de mônoda um aspecto mais diferencial e mais aberto. Seria a mônoda um átomo, um tipo de particula elementar indivisível? Não. Para Tarde, mesmo esse átomo não deixa de ser “[...] um turbilhão, um ritmo vibratório de certo gênero, algo de infinitamente complicado segundo todas as aparências [...]” (TARDE, 2007, p. 22). Com essas premissas não há lugar para dualismo, nem entre sociedade e cultura, muito menos entre eu, entendido como núcleo individual, e o coletivo, algo autônomo e sui generis. Essa unidade metafisica chamada eu, e toda sua identidade bem a priori, responsável pelo ordenamento da experiência e sua síntese necessária, é desmontada na exata medida em que ocorre a repetição no universo humano, ou seja, quando ocorre o processo imitativo e seu crescimento rizomático, seu deslocamento descentrado. O individuo já é um feixe diferencial, complexo e dinâmico; ele já é uma sociedade. “[...] esses elementos últimos aos quais chega toda ciência, o individuo social, a célula viva, o átomo químico, só são últimos da perspectiva de sua ciência particular. Eles próprios são compostos [...]”(TARDE, 2007, p. 57). Assim como Newton revela um universo múltiplo, dinâmico e ilimitado, deslocando oz cosmos de sua unidade e harmonia aristotélicas, Tarde realiza o mesmo percurso, ao desregular a funcionalidade do todo, reestabelecendo a importância das partes, essas já plurais e abertas. Como diz Latour, “Tarde offers a very odd type of reductionism since the smallest entities are always richer in difference and complexity than their aggregates or that the superficial appearances that we observe from far away.” (LATOUR, (ANO), p. 4) IMITANDO A DANÇA DIONISIACA O principio imitativo nada mais é do que o desdobramento específico da repetição no universo humano, embora seja necessário prestar maiores considerações a ela, o que acaba nos levando direto para a polêmica com Durkheim. Se a cadeia explicativa durkheimiana para os fenômenos sociais é vertical, priorizando instancias autônomas e externas como responsáveis por condutas e discursos, Tarde, ao contrario, aposta num principio horizontal, sem mudanças de níveis, imanente. O conceito de rizoma, em Deleuze (1975), esclarece bem essa proposta e principalmente a capacidade de expansão do movimento imitativo e sua avidez em conquistar tudo a sua volta1. Sem pontos de partida ou teleologias, o rizoma não é uma criatura, um objeto, mas sim uma força motriz, um impulso que se irradia tomando tudo ao seu redor. Isso significa que é impossível sugerir uma explicação de um processo rizomático, no sentido de compreender analiticamente esse fenômeno, desmembrando variáveis e expondo conexões necessárias. Ao contrario, eu participo do rizoma, ainda que 1

Sobre isso Tarde dirá: “Já que o ser é o haver, segue-se que toda coisa deve ser ávida.” (TARDE, (ANO), p. 123)

acredite em uma espécie de desinteresse cientifico. Assim como os “fluxos de desejo e vontade” em Tarde, o rizoma deleuziano não é um simples elemento explicativo, ele induz á participação, ao envolvimento instantâneo. Assim como o olhar genético lança o sociólogo direto no espaço que deveria explicar, transformando-o num combatente, num justificador engajado, o rizoma já demanda afecção, já força um encontro, por mais asséptico que pareça o cientista com seu jaleco branco e sua postura moderna, confiante. O processo imitativo, logo, é “[...] uma ação á distancia de um cérebro sobre outro. Ela pode ser consciente ou inconsciente, voluntaria ou involuntária, vaga ou precisa, unilateral ou reciproca, mas não pode deixar de ser produzida á distancia, em uma espécie de „geração á distancia‟, pois assim perderia sua especificidade.” (VARGAS, 2000, p. 226)

Tarde diferencia dois tipos de imitação: o inovador (as forças plásticas) e o institucionalizante (as forças funcionais). O primeiro, condicionado pela mudança, impulsiona o movimento imitativo para frente, para um expansão cada vez maior, quase que almejando o inedito a qualquer custo. A segunda, por outro lado, seria um percurso mais identitário, ligado a fixação e a reprodução de certos conteúdos. Existem outros exemplos de processos imitativos, como aqueles ligados á moda ou ao costume, embora haja sempre um denominador comum entre todos, permitindo uma convergência para o mesmo potencial expansivo, contagiante. Seu movimento é centrifugo, ou seja, começa do centro, esse já bastante diferenciado e infinitesimal, seguindo lentamente para a borda, esta menos diferenciada e mais rara. Segundo Tarde, o que efetivamente se propaga por imitação? Seriam ações dispersas, de indivíduos atomizados, progressivamente se expandindo, ou talvez representações coletivas, de alguma forma disseminadas para outras consciências, ou mesmo intuições kantianamente difundidas? Nenhuma delas, diria Tarde. O que é propagado são “crenças e desejos” (TARDE, 2007, p. 22), uma espécie de ânsia por novos agenciamentos, um verdadeiro fio tencionado entre dois polos complementares e inseparáveis: a transformação e a manutenção. Quase como o jogo nietzschiano de Apolo, o Deus da forma, e Dionísio, o Deus do excesso, ambos engajados numa dança quase reconciliatória, ao menos para o Nietzsche do nascimento da tragédia. Num certo momento do seu livro monodologia e sociologia, Tarde afirma que “[...] a crença e o desejo desempenham no eu, em relação ás sensações, precisamente o papel exterior do espaço e do tempo em relação aos elementos materiais.” (TARDE, 2007, p. 67). Essa analogia kantiana das crenças e dos desejos acaba por esclarecer melhor a pretensão epistemológica de Tarde, ao fazer dessas características (crença e desejo) a condição necessária para existência do eu, assim como o espaço e o tempo seriam

as condições para o envolvimento sensível na dialética transcendental. Em Kant, contudo, a identidade também é um pré-requisito para a experiência, instantaneamente enquadrando tudo em categorias definidas, em sínteses cada vez mais elaboradas. Em Tarde, ao contrario, o a priori, digamos assim, é a diferença, e, nesse caso, o aspecto identitário dos fenômenos seria apenas um instante passageiro dentro de encontros infinitesimais. Essa pequena “re-revolução copernicana” vai se afastando aos poucos de uma hipótese epistemológica de mundo e começa a marchar para uma ontologia, priorizando assim muito mais o movimento do que categorias e critérios formais. O que de solido existe é criado internamente ao mundo, consumido ao mesmo tempo por ele e sua velocidade. Sem duvida o entendimento possui dentro de si elaboradas associações de ideias, abstratas correlações de conceitos, embora, esses momentos sejam apenas a porção mínima, um simples aperitivo do que realmente acontece, deixando transparecer uma miríade de agenciamentos, desde o envolvimento sensível com um real sempre mutuante, até a serie infinitesimal de conexões entre sinapses em torno de um certa ideia cada vez mais irradiante, rizomática. Se em Latour o conhecimento deixa de operar por saltos, num procedimento representacional qualquer, através do conceito de mediação, contrapondo á fixidez do intermediário (LATOUR, 1979), Tarde utiliza uma imagem parecida ao se referir aos “[...] operários ocultos que colaboram para a realização de algum plano de reorganização especifico concebido e desejado [...]” (TARDE, (ANO), p. 64). Esses operários ocultos, uma vez ocultados pela unidade e autonomia de certos fenômenos, passam a ser vistos como o elo adequado entre tudo o que se constitui, ao passo que cria as condições necessárias para o próprio aspecto infinitesimal da realidade. Em razão desse processo imitativo, o que é de fato uma sociedade humana? Se para Durkheim ela se define por sua autonomia e coercitividade, quase como uma vontade geral, quais seriam, por outro lado, as suas características principais para Tarde? Ele é mais modesto, nesse caso, definindo as sociedades humanas como “[...] a possessão reciproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um.” (TARDE, 2007, p. 112). Não há uma preocupação em definir fronteiras que a circunscreveriam dentro de um certo espaço, o que só reforça mais ainda sua ideia de uma sociologia universal. A DIFERENÇA DIFERINDO A hipótese tardiana, logo, rompe com a proposta evolucionista de figuras como Spencer, em que o universo, seja ele humano ou não, sugeriria um deslocamento de uma etapa homogênea para uma meta diferenciada. Haveria um crescente, uma seta evolutiva atravessando desde um aglomerado de corais, até as relações internas de uma sociedade

humana, passando pela religião, ciência e filosofia. Para Tarde, ao contrário, não se trata mais de “[...] [uma barreira] intransponível[...] entre a natureza dos seres inorgânicos e a natureza dos seres vivos, já que vemos uma idêntica evolução, a de nossas sociedades, modificar sucessivamente os traços dos segundos e os traços dos primeiros.”(TARDE, 2007, p. 83)

Se a “diferença vai diferindo” (TARDE, 2007, p. 94), mesmo seus elementos mais básicos, mesmo os fenômenos mais rústicos, teriam um nível de diferenciação inclusive muito maior do que as formas mais bem acabadas e desenvolvidas. A diferenciação durkheimiana pela crescente divisão do trabalho, nesse caso, é também questionada por Tarde, já que enxerga nas sociedades tradicionais uma zona indiferenciada, progressivamente se diferenciando, na medida em que alcança momentos mais complexos. Para o autor de Monodologia e Sociologia, a homogeneidade dos fenômenos é um sintoma de uma falha, ou, no mínimo, de uma ignorância, já que o desconhecimento sobre as coisas tropeçaria nessa conclusão, tomada por muitos como a referencia do conhecimento, sendo, por outro lado, algo a ser descartado na exata medida em que ocorre um contato mais próximo com o objeto de estudo. A diferença, diria Tarde, é “o alfa e o ômega”(TARDE, 2007, p. 102) de tudo o que existe, seu principio fundante, seu suporte constituinte. Se havia sentido apostar num eu transcendental á modo de Kant, uma instancia ordenadora e a priori, condição para a identidade do sujeito e do próprio conhecimento, Tarde sugere, ao contrario, uma aposta na diferença, reservando ao apelo identitário apenas um momento casual, um instante passageiro. Como diria Merleau Ponty, “among Kantian consciousnesses harmony can always be taken for granted.” (MERLEAU-PONTY, 1964. p. 32); o que já não acontece em Tarde, em que a harmonia das coisas, sua identidade, não é um a priori, um ponto de partida, nem muito menos, para desespero de um evolucionista, uma meta. Ela é um momento perdido no fluxo diferencial; nada mais do que uma centelha prestes a desaparecer. O que é a diferença? Pergunta que não faz sentido, já que ela “não é”, ou seja, não carrega dentro de si nenhum predicado que a caracterizaria, nenhum critério que a definiria, como se fosse, por exemplo, alguma potencialidade hegeliana ou algo do gênero. Ela é movimento, ela é difusão... e só. Isso não significa que “pequenas transcendências” (LATOUR, 2013, p. 267) não venham a brotar desse percurso infinitesimal, mas sim que essas continuidades são transitórias, simples cartas lançadas ao vento. DOIS PENSAMENTOS, UMA MESMA MOEDA

Um mesmo mundo, dois olhares distintos. O vitalismo é uma espécie de rio que flui por baixo das teorias de Foucault-Deleuze, Bourdieu-Latour e Durkheim-Tarde, constituindo um terreno unico, um solo adequado em que seus pensamentos foram se configurando ao longo do tempo, criando raízes, ou melhor, rizomas. Se existem diferenças, o que sem duvida é o caso, elas são mais de grau do que de substancia. A realidade descentrada, a existência diferida e tudo aquilo implicado numa boa concepção vitalista, são signos recorrentes nos escritos desses três pares de escritores, apesar de haver um tipo de escala de temperamento, uma “oscilação teórica” de humor, digamos assim, saindo de um otimismo declarado, quase uma apologia á contingencia e ao fluxo, e chegando a um pessimismo nada sutil, com uma aposta em atrofias e constrangimentos. São duas faces de uma mesma moeda, assim como as figuras do amor fati e do ressentimento são, em Nietzsche, partes complementares de um mesmo mundo, de um mesmo solo vital, não importando as estratégias simbólicas que atravessam cada um. O primeiro abraça o fluxo em pura afirmação, sem transcendências, ou pelo menos, não aquela transcendência metafisica. O segundo, ao contrario, projeta fugas e desvios, artifícios bem elaborados para evitar o confronto com o unico mundo que é, ou melhor, que sempre deixa de ser. Sua estratégia é a negação e o ressentimento, sua substancia. Diferenças a parte, ambos compartilham de um mesmo projeto ontológico. Deleuze entendia seu parceiro, seu antípoda intelectual, como um vitalista assombrado por um espectro de pessimismo (DELEUZE, 1992), o que, na verdade, para o filosofo francês, nunca foi um problema, mas uma formula interessante e até divertida para novas articulações. Isso significa, em outras palavras, que Michael Foucault lançou mão de todo um arsenal do vitalismo, desde sua noção de historia como descontinuidade, como um movimento descentrado e autofágico, em vigiar e punir (FOUCAULT, 1975), até o seu conceito de poder rizomático, em história da sexualidade (FOUCAULT, 1999a). Além, claro, de noções como linhas de força em seu livro a verdade e as formas jurídicas (FOUCAULT, 1973), indicando assim um paralelo óbvio não apenas com Nietzsche, mas com as ideias do próprio Tarde, ainda que esse paralelo seja indireto, no limite quase do exagero. Em outras obras, contudo, essa “dinâmica vital” se perde no turbilhão de dispositivos históricos, fazendo com que nas “palavras e as coisas” (FOUCAULT, 1999b) a linguagem seja o local da verticalidade, que em “verdade e as formas jurídicas”, o devir seja violentado pelo signo e, finalmente, em “defesa da sociedade” (FOUCAULT, 1999c), o poder seja entendido como o atrofiamento de uma rede. Bourdieu e sua teoria da eficácia simbólica aposta num vitalismo sutil, embora presente, deixando apenas transparecer seus conteúdos em instantes específicos, em momentos de ruptura e desencantamento. Enquanto a nevoa da identidade e das justificações

bem elaboradas não se dissipa, é impossível falar em criatividade ou dinâmica na experiência. Os próprios atores, para ele, são criaturas ressentidas, desejantes e inseguras, dispostas a tudo para manter previsível e constante a realidade a sua volta, ainda que os custos disso sejam enormes e o próprio corpo e as próprias mediações se vejam em perigo. O pragmatismo cotidiano e a necessidade de orientação razoável impelem os atores a uma trágica atrofia, um ocultamento daquela parcela do mundo taken for granted para um latouriano, sua vitalidade. As mediações não são ponto de partida para Bourdieu (ou Foucault), mas uma meta, um horizonte a ser alcançado, na medida em que o cotidiano se dissolve em identidades e centramentos. A investida genética bourdiesiana ou a genealogia foucaultiana, nada mais são do que esse resgate dentro de uma série de agenciamentos congelados, constrangidos a fim de alimentar as engrenagens de uma maquina interacional conservadora, conveniente e adequada, ao varrer para os bastidores da vida toda aquela porção dinâmica, plural, embora feia2, do mundo em seu movimento. A linguagem, em seu percurso cotidiano, “[...] esquematiza, ignora as diferenças, assimila as coisas entre si, e isto sem nenhum fundamento em verdade.” (FOUCAULT, 1973, p. 25), obscurecendo a riqueza da vida, limitando seu potencial em nome de alguma funcionalidade qualquer. Nesse movimento de “resgate de mediações”, e apenas na medida em que isso acontece, os fenômenos podem migrar para novos encontros e novos agenciamentos, e os atores, enfim, podem vê a si mesmos dentro de uma rede complexa e plural. Caso contrario, seria o mesmo que encontrar algum rastro de responsabilidade nos olhos indiferentes de um Eichmann (ARENDT,1998). No universo totalitário, perdido na banalidade do mal, desconhece justamente a dinâmica do fenômeno ao seu redor, desconhece suas mediações e, por isso, como pedir a ele que entenda o vinculo entre suas praticas cotidianas, seus menores gestos justificatórios, seu horizonte, no sentido fenomenológico, e aquela instancia autônoma, sólida e impositiva á sua frente? Como cobrar criatividade (responsabilidade) de alguém assim? Esse é o protótipo do outro lado do vitalismo, sua porção atrofiada e seu ressentimento. Bourdieu, em algumas de suas obras, deixa isso claro quando investe sua critica contra a identidade que passeia e fundamenta o universo humano, o que para ele ganha adjetivos como essencial e necessário. Seu método é um esforço para esclarecer justamente aquilo que para Latour e para Tarde é algo obvio e um ponto de partida evidente: a diferença e suas linhas de força. Sua analise genética, logo, “[...] é capaz de trazer á luz o quer torna [uma coisa] necessária, ou seja, a fórmula formadora [...]” (BOURDIEU, 1996, p. 15), resgatando 2

Adorno (1970) e Sartre (MERLEAU-PONTY, 1964) trabalharam bastante a ideia do feio em suas produções, tomando-o como sinônimo de dissonância, subversão e tudo aquilo contrario ao sentimento ilusório de integralidade, presente, por exemplo, na ideia de belo em Hegel.

do interior atrofiado do real uma multiplicidade de praticas e de justificações, impedindo que a ânsia conservadora do sujeito, e suas estratégias linguísticas transcendentes, possam vencer a luta vital. Se existe conservadorismo em seu pensamento, isso é menos pelas restrições do campo, que nada mais é do que um conjunto de feixes arbitrários e casuais, e mais pelo esforço dos próprios atores em manter a “peça transcendendo”. Esforço esse não apenas dos dominantes, o que é obvio, mas dos próprios dominados, igualmente favorecidos pela moeda identitária que circula e alimenta a todos. Mesmo o habitus é incorporado á medida do movimento, no instante mesmo da experiência do sensível, e por isso jamais é exterior e imposto verticalmente. Sem uma cadeia complexa de justificações e sem a própria mania identitária, nada marcaria o corpo desse agente, por mais bem elaborado que fosse o campo, por mais enrijecido que se apresentasse. Esse procedimento não é tão claro no conceito de habitus quanto é no de processus (BOURDIEU, 1979), mas, ainda assim, existe esse esforço identitário, subterrâneo, mesmo nas microrrelações, sustentando até aquelas instâncias mais verticais e mais supostamente autônomas. Na psicanalise isso ganha o nome de castração simbólica (ZIZEK, 2012, p. 34) e um dos resultados disso é o surgimento do Grande Outro, uma entidade impositiva, unitária e vertical, embora frágil, já que sustentada a cada segundo pelas investidas de um sujeito descentrado e incapaz de se responsabilizar pelo que nomeia e pelas conexões que traz a tona. O papel do psicanalista, nesse sentido, é o mesmo que o do sociólogo genético, ou seja, trazer a criatividade e as conexões de volta a vida, aliviar o peso de uma atitude natural constrangedora, apesar de todo o esforço contrario do agente com seu desejo de autoconservação. A narrativa desse “sujeito autoconservador” é construída para gerar impacto, eficácia, o que impede que o vitalismo, dissonante que é, seja simplesmente apreendido nas relações diárias, ao contrario do que apostam as teorias latouriana e tardiana, em que os instantes de atrofiamento não são a regra, mas ao contrario, são a exceção diante de praticas sempre vitais, sempre descentradas e sempre em fluxo. Enquanto para Bourdieu e Foucault é a identidade o principio determinante, ao menos da vida em sociedade, apesar do fluxo vital de fundo. Para os outros dois autores, por sua vez, “[...] a identidade é apenas um mínimo, e portanto apenas uma espécie, e uma espécie infinitamente rara, de diferença, assim como o repouso é um caso do movimento, e o circulo uma variedade singular da elipse.” (TARDE, 2007, p. 30). Aquilo que para Bourdieu e Foucault são momentos constantes da linguagem e da interação humana, seus constrangimentos e suas atrofias, para Latour são personificações daquilo que chamou de moderno, uma espécie de desvio, de falha dentro de um mundo, ao menos para ele e Tarde, sempre diferencial e rizómatico. O que para os dois primeiros autores é uma conquista, um resgate, para os dois últimos é um dado, uma obviedade. Um toma como ponto de chegada o

que o outro toma como ponto de partida, embora, claro, exista um mesmo projeto ontológico, um de múltiplas ontologias. Se, por alguma razão, não parece claro essa convergência de ideias, isso se deve menos ao autor especifico, e mais ás expectativas que cada um deposita nas praticas cotidianas. Existe, repito, apenas uma fronteira de grau, não de substancia, de humor, não de ontologia. O ressentimento do ator bourdiesiano e sua mania identitaria, assim como o sujeito da vontade de verdade em Foucault, impedem que o pluriverso presente em cada circunstância seja honrado, obscurecendo essa mesma dinâmica, na medida em que as linhas de força se atrofiam, se sobrepõem e se constrangem. Nesse universo não existem trocas, não existem interações, da mesma maneira que em Habermas (1990) não é possível falar de interação enquanto existem desníveis no envolvimento, impedindo uma troca efetiva, um reconhecimento mútuo. Novamente, com mais razão ainda, as mediações e a própria multiplicidade ontológica deve ser conquistada, jamais tomada de partida, principalmente em função do modo como os alicerces cotidianos são constituidos. A demanda pragmática dos atores, sua tendência em enquadrar e justificar suas condutas, barra o fluxo da vida3, impede que o real seja apreendido em seu aspecto espontâneo, em seu devir. O vir-a-ser constante e arrebatador, sendo inconveniente e instável, tende a ser obscurecido não por estruturas, por sistemas, ou instâncias tão verticais como essas; não é preciso supor nada além das relações elas mesmas. O pragma cotidiano- e a atitude natural a ele associado- acaba demandando não diferença, mas identidade, não descentramento, mas centralidade, e não contingência, mas necessidade. Curioso que a própria fenomenologia, meio sem querer, acabou criando um obstáculo teórico para uma implantação direta dos critérios vitalistas, colocando um impedimento nessa vitalidade incontrolável, com seu conceito de atitude natural, a não ser Latour, o dissidente, personagem suspeito da tradição inaugurada por Nietzsche. Sua mistura de vitalismo e pensamento fenomenológico acabou transformando o devir, assim como Tarde o fez, em um elemento transcendental, como um recurso que atravessa as praticas cotidianas e as compõe, da mesma forma que o horizonte sustenta e enriquece as interações. O devir, logo, perde seu aspecto grotesco, feio e dissonante, contribuindo para as praticas e para a intensificação dos encontros; perspectiva, por sua vez, bem estranha ao quer seria o vir-a-ser em todo o seu movimento incontrolável e disfuncional. Em outras palavras, seria incompreensível a frase latouriana de “(...) quanto mais mediações melhor (LATOUR, 2007, 3

Adotando o jargão latouriano, a linguagem, talvez, não seria composta, em sua própria condição de ferramenta prática, adaptativa, por inúmeras mudanças de nível, condição até da própria cotidianidade com sua “atitude tão natural”? A linguagem como recurso adaptativo não incorreria numa contradição direta com tudo aquilo defendido pelo “vitalismo-fenomenológico” de Latour?

p. 52), se não tivéssemos em mente essa mudança no conceito de “devir” e seu processo de fenomenologização. Em Tarde, da mesma forma, o devir atravessa o universo humano em toda extensão de um modo evidente, espontâneo, assim como compõe o movimento cósmico e as relações físicas, num golpe cortante que atravessa tudo; não há distinção, ou melhor, nenhuma relevante o suficiente para se estabelecer fronteiras. O fato de haver linguagem no jogo social propriamente humano, não chega a incomodar nenhum dos dois autores, criando assim uma busca afirmativa de uma realidade talvez não tão evidente, não tão disponível e muito dissonante para circular por ai sem maiores problemas. A aproximação do universo humano com o de outros organismos, nesse caso, acaba esbarrando na peculiaridade de nosso instrumento adaptativo, o signo. Sua própria natureza abstrativa e o próprio “ser” tão presente em nossa gramatica, se por um lado garantem a identidade do fenômeno, permitindo assim uma melhor orientação da conduta, por outro congela e simplifica o universo ao redor, especialmente quando a repressão desempenha seu papel. Aquilo que põe em perigo minha definição de vida, minha própria identidade, tende a ser afastado do meu estoque de conhecimento, mesmo do meu horizonte, tornando uma certa parcela do mundo e de meu próprio corpo inacessíveis. O devir, por outro lado, não guarda nele mesmo essa conveniência. Sua virtualidade não é uma ferramenta disponível, um eixo estruturante, ou algum fundamento qualquer. “Ela é o que ela é”, com o perdão da tautologia. Ela é movimento, ela é rizoma. Não é por menos que Deleuze compara o devir com o inconsciente (DELEUZE, 1997), entendendo que ambos são regidos pela criatividade, sem duvida, mas, acima de tudo, por uma dimensão inconciliável e, por isso, não transcendental. Se para Wittgeinstein, ou mesmo para seus descentes como Austin, Grice e Rorty, a linguagem é técnica, ferramenta constituinte dos “limites de meu proprio mundo”, com todas as implicações funcionais disso, o devir seria o total oposto. Da mesma maneira, se para Merleau Ponty o corpo é um transcendental, condição para a propria identidade perceptiva, garantindo que o sujeito se mantenha ileso, uno, assim como Cezzane garante ás suas obras as condições necessárias para uma futura reconciliação, o devir é o contrário, sua radicalidade.

TARDE-DURKHEIM E O TEMPERAMENTO

Assim como Foucault é o Outro em relação a Deleuze, a parcela contraria de uma mesma moeda, e também Bourdieu em relação a Latour, seria exagerado admitir o mesmo com Tarde e Durkheim? Não haveria mais complementaridades do que distanciamentos? Talvez a ânsia quase obsessiva por mais espaço intelectual, além do ressentimento pelas

décadas varridas do pensamento sociológico, acabe erguendo fronteiras teóricas e dicotomias retoricas indefensáveis em outras circunstancias. Tarde, agora, demanda afirmação, demanda um novo esboço para seu pensamento, cada vez mais presente e mais firme. Não é de se surpreender que fronteiras sejam sustentadas, quem sabe até forçosamente instituídas. Não haveria, claro, problema algum nessas instituições, desde que concebidas como arsenais simbólicas, estratégias pragmáticas de indivíduos interessados, deixando Tarde e Durkheim “eles mesmos” na nevoa do misticismo metafisico, perdidos para sempre nos agenciamentos de um “devir-leitura”, como diria Deleuze. CONCLUSÃO? Durante muito tempo, vários séculos até aqui, um mesmo pensamento parecia predominar no campo filosófico e em suas ramificações nas ciências humanas. Essa abordagem, de fundo platônica, apesar das distinções aparentes, carregavam um solo compartilhado de critérios e referencias; o dualismo era um deles. Corpo, diferença e devir eram termos que até pouco tempo jamais tinham sido objetos de respeito, ou mesmo de tolerância, sempre subordinados a alguma instancia outra, algum suporte mais abstrato e conceitual, como o entendimento, por exemplo. A meta, o proposito último de todo saber cientifico e filosófico, desde Descartes, nesse caso, era alçar sempre voos mais altos, saindo do simples, do intuitivo, e caminhando aos poucos para atmosferas espirituais mais complexas, ou, como diria Hegel, chegando no conceito ao passar brevemente pela sensibilidade. A diferença, o devir e o próprio corpo eram tidos como meios de acesso a uma realidade estável, identitária e nobre, conferindo constância e equilíbrio á investigação. No final do século XIX e durante o século XX, começa a se proliferar uma nova gramatica filosófica, não mais fundada no platonismo ou em seus derivados kantianos e hegelianos. David Hume, Spinoza, Nietzsche e tantos outros personagens ofuscados pelo brilho intenso da tradição dominante, ganham terreno e passam a transbordar suas teorias para além das fronteiras de seus campos de atuação. Aos poucos um novo repertório se forma, tendo nos conceitos de devir, diferença e rizoma suas características principais. Como resultado disso, há uma valorização cada vez maior do transitório sobre o constante, do plural sobre o unitário, do descentramento sobre a centralidade, etc. O pesquisador perde sua vaidade epistemológica, não mais sendo uma espécie de guardião do conhecimento adequado, e adquire, por consequência, uma arbitrariedade lamentável para uns e comemorada por outros. De qualquer maneira, o campo intelectual muda suas configurações e põe em movimento um tipo de abordagem sem duvida antiga, desde Demócrito, na verdade, só que finalmente valorizada e capaz de divulgar seus conteúdos sem restrição ou constrangimento.

Existe, sem duvida, o outro lado da historia, além da apologia inocente desse transbordamento. Se por um lado houve um ganho de reflexão, uma enxurrada de novos temas e abordagens, jamais vistos até aqui, por outro temos um uso descuidado do vitalismo nas ciências sociais, em especial por causa daquilo que chamei de fenomenologização. Seus conceitos foram usados de um modo irrestrito, ás vezes quase irresponsável. Para autores como Nietzsche, Deleuze e Foucault, sem muito entrar nesse assunto, o vitalismo não seria tomado em sua espontaneidade, jamais seria apreendido, com todas suas implicações conceituais, enquanto certas condições impedissem a livre circulação do real, dentre elas a forma que a linguagem adquire nas práticas cotidianas, um enrijecimento muito bem visto inclusive pelo próprio estruturalismo, ao enxergar, atrás da logica arbitrária do signo, uma certa atrofia no instante de sua inserção sincrônica no mundo. Tarde afirma que “toda a filosofia fundou-se ate agora no verbo Ser [Etre] cuja definição parecia a pedra filosofal a descobrir.” (TARDE, 2007, p. 113). Será que com essa sugestão não acaba reduzindo, assim como Latour o fez com sua catarse moderna, um problema complexo, da natureza mesma da linguagem, tornando-o local, acessível e de fácil nomeação? Será mesmo que o verbo ser é um simples recurso filosófico, um mero efeito de um conjunto de especuladores, ou talvez a filosofia só tenha colocado em andamento uma forma muito comum de gerenciar a experiência? Esse não é o espaço para sequer começar a responder essas questões. Fica aqui apenas a hipótese de que o vitalismo que começa a escorrer nas ciências sociais, desde a década de 70, acaba negligenciando a centralidade com que o signo se apresenta na vida cotidiana, deixando de lado, inclusive, a própria cautela dos fundadores dessa linha de pensamento, dentre eles Nietzsche e posteriormente Deleuze e Foucault. O uso de conceitos como diferença, rizoma, além da apropriação vitalista da ideia de espaço, por exemplo, se tornaram irrestritos, aplicados a qualquer lugar, a qualquer circunstancia, a não ser quando algum evento incomum e externo, o moderno para Latour e a filosofia clássica para Ingold, Tarde e Doreen Massey, entram em cena para estragar o obvio vitalismo que circularia por toda parte. Nietzsche, aristocrata que era, acharia estranho essa “democratização” do vitalismo, como se fosse um momento acessível, quase como uma realidade preobjetiva, simplesmente dada. Nesse tipo de mundo, seria tão espontâneo o acesso a essa realidade vital que a propria genealogia ou qualquer procedimento genético seria uma perda de tempo diante de evidentes fluxos, rizomas e linhas de força. Apesar dessas considerações, elas nada mais são do que o fruto de uma analise, no sentido kantiano do termo. Para além de articulações e justificativas, não existe um meio seguro, empírico, de se chegar a uma conclusão. Quem estaria certo, no fim das contas, Durkheim, liderando a “sociologia atrofiante”, ou talvez Tarde e seu projeto “sociológico sem

fronteiras”? Essa pergunta não faz sentido, diria talvez um Carnap. A pergunta poderia ser outra, alguma mais deleuziana, talvez. A quem poderia interessar que o real seja governado por forças diferenciais, rizomáticas e vitalistas ou, ao contrario, a quem poderia interessar que esse mesmo real fosse sustentado por linhas identitárias, centralizadas e reificantes? Apesar, curiosamente, de tanto na sociologia de Tarde, quanto na de Latour, a linguagem ser um elemento acessório, redutível àquilo que um chama de “correntes de desejo e vontade” e o outro de “modos de existência”, é esse elemento linguístico que acaba sendo a referencia ultima, o critério seletivo de maior importância, na distinção dos seus pensamentos em relação á outros. As articulações, ou mediações, parecem desaparecer diante das unidades retoricas tão bem encadeadas de inúmeras justificativas direcionadas seja á Durkheim e sua tradição “idealista”, seja á Tarde e sua sociologia imanente. É preciso notar, não sem algumas gotas de ironia, que logo o sociólogo que cunhou a expressão “existir é diferir”, é aquele reificado pelas fronteiras de um simples artigo, enquadrado numa certa identidade, arrastada a qualquer preço, apesar da resistência de outros corpos e outros fenômenos. Difícil apostar na diferença, quando uma serie de justificações se apossam do elemento justificado, o envolve com um espectro sólido, evidente e unitário, quase como um ser autônomo, durkheimiano. De qualquer maneira, Durkheim, nesse sentido, talvez estivesse com maior razão ao apostar na autonomia dos eventos na condução das praticas, embora Tarde tenha resgatado justamente sua matéria formadora, sua virtualidade comprimida. REFERÊNCIAS BIBLIOTECAS ADORNO, Theodor. Teoria Estética. Rio de Janeiro: Edições 70, 1970. BALZAC, Honoré. A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada. São Paulo: Globo, 2012. BOURDIEU, Pierre. As regras da arte e a gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. DELEUZE, Gilles. Kafka por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Editora Imago,1975. DELEUZE, Gilles. Conversações:1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997. FOUCAULT, Michael. Vigiar e Punir. São Paulo: Vozes, 1975. FOUCAULT, Michael. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1999a. FOUCAULT, Michael. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 1973. FOUCAULT, Michael. As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1999b. FOUCAULT, Michael. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999c. HABERMAS, Jurgen. Pensamento pós-metafísico: Estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo brasileira, 1990 NIETZSCHE, Friedrich. Para uma genealogia da moral. São Paulo: Editora Sabotagem, 1874. MERLEAU-PONTY, Maurice. Cézanne‟s Doubt. In:________. Sense and Non-Sense. Illinois: Northwestern University Press, 1964 LATOUR, Bruno; An inquiry into modes of existence: an anthropology of the moderns. Cambridge: Harvard University Press, 2013. LATOUR, Bruno. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Editora Relumé Dumará, 1979. LATOUR, Bruno. Como falar sobre o corpo? Portugal: Edições Afrontamento, 2007. LATOUR, Bruno. Gabriel Tarde and the End of the Social. In: PATRICK, Joyce(Org.). The Social in Question. London: Routledge, pp.117-132 TARDE, Gabriel. Monodologia e sociologia. São Paulo: Cosacnaify, 2007. VARGAS, Viana Eduardo. Antes Tarde do que nunca: Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: ContraCapa, 2000.

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