Artigo - Rumor e produção de sentidos na transmissão direta ao vivo sobre riscos de desastres naturais

July 5, 2017 | Autor: Nilthon Fernandes | Categoria: Midia
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Rumor e produção de sentidos na transmissão direta ao vivo sobre riscos de desastres naturais Nilthon Fernandes Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

1. Referência situacional No primeiro momento, pode parecer invasivo querer cobrar das pessoas o conhecimento de propostas mundiais que permite construir países mais desenvolvidos, com maior segurança e qualidade de vida. Entretanto, para uma pessoa jurídica, cuja principal função é informar e disseminar conhecimento para grande parte da sociedade, como um veículo de comunicação a TV, essas campanhas nacionais e internacionais devem fazer parte da rotina de quem produz informação. Mais ainda, para os que trabalham na linha de frente do veículo, com reportagens em transmissão direta ao vivo. Desde 2011, durante 7ª Semana Nacional de Redução de Desastres, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil - Sedec, de acordo com a Estratégia Internacional para a Redução de Desastres (EIRD), da Organização das Nações Unidas (ONU), fez o lançamento da Campanha Construindo Cidades Resilientes: Minha Cidade está se Preparando. Essa iniciativa pretende sensibilizar governos e principalmente pessoas para os benefícios de se reduzir os riscos por meio da implementação de dez passos para construir cidades resilientes. O objetivo, que conta com a participação da mídia, é cristalizar o grau de consciência e comprometimento das práticas de desenvolvimento sustentável com intuito de reduzir as

vulnerabilidades das áreas de risco e propiciar bem-estar e segurança às pessoas. A campanha Construindo Cidades Resilientes é resultado do esforço mundial estabelecido em 2005 pelo Marco de Ação de Hyogo (Japão), quando 168 países se comprometeram a adotar medidas até 2015 para garantir que a redução de risco de desastres (RRD) seja prioridade nacional e local com uma sólida base institucional a ser colocada em prática. Foi amplamente divulgada tanto por meio de releases distribuídos aos mais variados veículos de comunicação quanto pelos sites de instituições distribuídas em todos os continentes, inclusive por programas de televisão nacional e internacional. Esta introdução é necessária para tentar mensurar como pode impactar uma transmissão direta ao vivo como foi colocada no ar na TV Record uma reportagem sobre desastres naturais. Para esta breve análise, é importante considerar a distinção sintética entre televisão e gênero televisual. Enquanto a televisão funciona como serviço, o gênero televisual está atrelado a transmissão direta. Neste caso, o material a ser analisado pertence ao gênero televisual sobre o registro de um vídeo transmitido direto pela televisão, ao vivo, para milhares de pessoas. Sabemos que faz parte da transmissão direta os eventos imprevistos e imponderáveis, assim

Artigo elaborado para a disciplina Audiovisual Ao Vivo do curso de mestrado em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.

como o que é ou não essencial, isso porque o caráter “ao vivo” tem uma crônica reprodutiva que requer interpretação, escolha e montagem do produto final que será colocado no ar. As redes de televisão, que podem dispor tanto de reflexão crítica quanto de hipnose, trabalham no universo da iconosfera uma vez que amplia a visão do receptor por via sensorial (Eco, 2011). Deste modo, quanto maior a dramaticidade, mais impacto provoca nas pessoas. Nessa reportagem, a visão crítica parte do produto audiovisual de uma reportagem de como o possível rompimento de uma represa provocou pânico na cidade de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro. O boato sobre o desastre se propagou rapidamente e acabou desestabilizando a cidade ao ponto dos próprios funcionários do hospital de campanha montado pela Marinha sairem do local e procurar abrigo. Na avenida Alberto Braune, a mais importante da região, se via pessoas apavoradas correrem para pontos mais altos em busca de proteção. Carros da Polícia Militar percorreram as ruas alertando as pessoas sobre a real possibilidade de uma inundação, enquanto bombeiros e técnicos da Defesa Civil orientavam a população de como sair das áreas de risco.

2. A reportagem Os parâmetros do discurso televisual possuem traços de vigilância e participação que produzem no receptor distaciamento ou juízo crítico, fascinação ou hipnose dependendo do estado sensível desse consumidor de imagens (Eco, 2011). Funcionam com lógica constituída de técnicas e possuem crônica reprodutiva com mecanismos de ação estratégica, como no discurso das reportagens e demais programas veiculados na televisão. Esta ideia é suporte para propor um olhar com outra perspectiva que compõe a particularidade na produção de

sentido, objeto das leituras denotativa e conotativa recolhidas do contato direto do registro do produto audiovisual extraído da informação televisiva veiculada na Rede Record. Para iniciar um debate pouco mais profundo é preciso classificar ou mesmo encontrar diretrizes capazes de orientar o caminho possível para ver acuradamente o produto audiovisual veiculado pela emissora em questão. São vários métodos que podem ser empregados nesta análise e muitos autores apresentam categorias tanto no formato de tabelas quanto na forma discursiva topicalizada que atribuem valores que podem ou não serem considerados para se chegar a um desfexo mais próximo da realidade possível. Neste caso, os itens de maior relevância foram estruturados conforme algumas categorias modulares que articulam melhor a análise do trabalho. O conteúdo do vídeo deixa o elementar de lado ao se caracterizar pela ausência de pontos que norteiam uma reportagem séria e responsável do ponto de vista social e cultural. Por exemplo, a falta de qualidade científica ao ignorar o trabalho que tantos cientistas de muitos países fazem em favor da mitigação dos desastres naturais em diversas partes do mundo. Como a não-exatidão e atualização das informações amplamente conhecidas, a insuficiência na quantidade e qualidade da informação, a desatualização e os prévios conhecimentos exigidos da equipe de reportagem para se cobrir desastres naturais. Na linguagem, o aspecto formal da imagem foi desconsiderado ou pelo menos foi tratado com pouco esmero nos planos, na angulação, escala, composição, movimentos de câmera, iluminação e cores. A confusão do uso fora do campo de visão da câmera foi outro fator que corroborou para dificultar uma leitura pouco mais realista do acontecimento que, não estando em

questão a interpretação ideal da realidade ao observar a singularidade do fato, mas em termos audiovisuais, estava quase desprovida de riqueza no valor narrativo, semântico e estético. No plano da obra, o roteiro e a argumentação, que durou mais de dois minutos, a reportagem foi marcada por um acentuado tratamento dramático do enredo que cresceu de forma incontrolável ao ponto de mostrar diante do vasto público a fragilidade e o despreparo da equipe de reportagem. A integração imagem, som e movimento, subentendida no aspecto icônico, verbal e auditivo (Foucault, 1999), estava privada de clareza, mas intumescida de elementos que dificultavam a identidade dos sons e demais fatos relevantes para se construir uma parte da realidade.

3. O impacto do rumor É oportuno situar o contexto em que foi propagado esse rumor reverberando a informação sobre o rompimento da barragem de uma represa e em quais condições a comunidade da região Serrana do Rio de Janeiro estava vivenciando. Segundo dados da Defesa Civil, naquele momento a enxurada havia matado mais de 700 pessoas e milhares ficaram desabrigadas durante o desastre que atingiu principalmente Nova Friburgo e outras cidades como Teresópolis, Petrópolis e Sumidouro. Outro fator preponderante é que este tipo de desastre causa prejuízo em diferentes etapas, como riscos de afogamento, erosões e desmoronamentos com as correntezas, toda sorte de lixo, detritos e materiais tóxicos que provocam suspensão de serviços essenciais, como o fornecimento de água potável e energia elétrica. Os que sobrevivem ao desastre, ficam suscetíveis às doenças transmissíveis como Leptospirose ou Hepatite A e E, por exemplo, que se proliferam com o excesso de lixo.

Neste contexto, o morador de Nova Friburgo, passando por grande desastre climático da história do país, superando mais de 460 mortes do temporal que atingiu o município paulista de Caraguatatuba, em 1967, é surpreendido com uma notícia que serviu não para esclarecer ou orientar as pessoas quanto outros serviços que a imprensa em momentos de desastres, pode coloborar para esclarecer e apurar com rigor as eventualidades, mas para provocar mais terror e desolamento na população. O resultado desfavorecido do fenôneno foi a constatação de que o rumor adquiriu seu verdadeiro poder quando amplamente disseminado pela reportagem da emissora de televisão e ainda pela existência de um alvo específico, os deslizamentos e enchentes que provocaram centenas de mortes. Nesta esfera, a falácia adquiriu maior poder porque o cenário propiciava dúvidas, incertezas e medo e a isso cedendo legitimidade de que o boato é bastante vulnerável a todos os que participam dele, provando que o acréscimo ou a falta de informação acarreta em soma ou subtração de informações no rumor. Por consequência da reportagem e, em todas as suas características de falta de preparo da equipe, a mensagem tomou diversas formas a cada indivíduo que passava, modificando a informação de maneira que a original emitida deixa de ser reconhecida pelo primeiro receptor. Estas pistas conotam duas circunstâncias sustentadas na adulteração: a ambiguidade que é a ausência da interpretação do fato, e a implicação que mensura o grau de intensidade de proximidade com a ocorrência. O indivíduo atingido pelo rumor, tende a negar publicamente o fenômeno quando pensa contrariamente a força central que a comunidade exerce porque está convencida pelo que foi disseminado (Kapferer, 1990).

4. Conclusão No intuito de concretizar a análise sobre o fênomeno não pouco comum do rumor das imagens que acentuaram mais a catástrofe ocorrida em 2011 na Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, devemos considerar os que realmente estavam na cidade naquele momento, como o tamanho da população que, segundo dados do IBGE e estimativas, não ultrapassa 190 mil pessoas, mas no momento do desastre, tinha menos de 140 mil (IBGE, 2013). É importante refletir não somente na quantidade expressiva de pessoas mas, principalmente, na propagação do rumor pela televisão de um possível desastre tendo resultado o argumentum ad populum, ou seja, uma proposição defendida pela população ou parte dela sugerindo que, quanto mais pessoas defendem uma ideia, mais verdadeira ou correta ela é, como os boatos do “ouvi falar”, “dizem” ou “sabe-se que”. Outro traço que corrobora a incidência de desastres naquela região, tem a ver com as características intrínsecas da fragilidade da Mata Atlântica, principal bioma do local. Numa análise com dois níveis de síntese dos diagnósticos, é possível enxergar as interferências antrópicas, diretas e indiretas e a fragilidade integrada da Mata Atlântica (Galindo-Leal, 2005). Esta fragilidade está associada a dinâmica climática da região, condicionada tanto pela posição geográfica, circulação atmosférica local quanto pelas massas de ar tropical e polar que propiciam à região umidade, grande nebulosidade e altos índices pluviométricos, com chuvas distribuídas o ano inteiro. Ao clima, somar-se o substrato rochoso da região, predominantemente formado por rochas graníticas, gnáissicas e metamórficas, que causam com frequência escorregamentos ou deslizamentos de terra ao longo da serra, particu-

larmente no período chuvoso. Os fatores que favorecem sua ocorrência são comuns e podem ser descritos como a espessura e composição da camada de solo alterada, a alta declividade das encostas e o elevado índice pluviométrico (Galindo-Leal, 2005). Às complexidades sociais e dimensão daquela comunidade, os fatores geográfico e climático e a fragilidade da Mata Atlântica, bioma onde está localizada a cidade de Nova Friburgo, é adicionada o fenômeno do rumor produzido pela televisão para os afetados pelo desastre e pessoas de todo o Brasil, distinguindo dos eventos imprevistos e imponderáveis e o não essencial produzido pelo caráter “ao vivo” e irreversível da transmissão direta do rumor. Em situações similares de riscos, os fatores sociais e ambientais desencadeiam uma série de condutas adequadas ou não e emoções coletivas como a ordem da evacuação da população dos riscos, que se permite lutar contra a propagação do perigo, dos rumores e da organização racional dos recursos. Entretanto, há circunstâncias em que a conduta coletiva difere da ideal porque a população tem uma resposta inadequada desenvolvendo uma desorganização social que aumenta ainda mais o risco de desastre. O comportamento coletivo mais frequente diante de uma catástrofe é uma combinação reativa de comoção, inibição e estupor quando ela está sujeita a vislumbrar a emersão de sobreviventes atônitos saindo dos escombros, alterados pelo choque emocional, sem iniciativas cujo único ímpeto é um lento passo em busca da fuga de lugares que o proteja da catástrofe. Exemplos desse êxodo humano foram vistos nos terremotos no México e no Chile, em Hiroshima e Nagasaki que testemunhas desses eventos viram lentas filas silenciosas de sobreviventes seguindo uns aos outros por entre caminhos improvisados nas ruínas. Estas reações

duram, na maior parte das vezes, algumas horas (Crocq, Doutheau e Sailhan, 1987). Em suma, os elementos que não dificultam e mais colaboram para ajudar os sobreviventes são os praticados no momento da catástrofe quando oferecidos às vítimas sem que haja qualquer tipo de estigmatização da pessoa como o apoio e o ouvir. A construção do sentimento colaborativo para que a pessoa enfrente o acontecido, bem

como a tentativa de se compreender as reações emocionais dos atingidos pelo desastre, são fatores essenciais. Neste sentido, a transmissão da reportagem esteve contra a valorização das relações sociais ao dificultar a identificação do desastre, porque é incapaz de prever as tensões provocadas, decepcionando pela falta de apoio e compreensão dos que os cercam (Hodgkinson e Stewart, 1991).

referências CROCQ, L.; DOUTHEAU, C. e SAILHAN, M. Les réactions émotionnelles dans les catastrophes. Encyclopédie Médico Chirurgicale-Psychiatrie, 1987. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. 7. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5. ed. São Paulo: Loyola, 1999. (Leituras Filosóficas). GALINDO-LEAL C., CAMARA I.G. Mata atlântica: diversidade, ameaças e perspectivas. São Paulo, Fundação SOS Mata Atlântica/Belo Horizonte, Conservação Internacional, 2005. HODGKINSON, P. E. e STEWART, M. Coping with catastrophe. A handbook os disaster management. Londo: Routledge, 1991. Kapferer, Jean-Noel. Rumors. New Jersey, New Brunswick: Transaction Publishers, 1990. ROUQUETTE, Michel-Louis. Le syndrome de rumeus. Communication. 1990. Youtube. Repórter da Record entra em pânico em nova friburgo. Janeiro, 2011. Acesso em https://www.youtube.com/watch?v=uBKnnbVILL4

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