Artigo sobre arte, cultura e formação

July 26, 2017 | Autor: Ilana Goldstein | Categoria: Arte Educação, Gestão Cultural, Políticas Culturais, Artes Y Educación, Arte E Educação
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n. 15 2013 SUMÁRIO .06

AOS LEITORES

Paloma Automare .10

MEDIAÇÃO, FORMAÇÃO, EDUCAÇÃO: DUAS APROXIMAÇÕES E ALGUMAS PROPOSIÇÕES

José Marcio Barros .21

PENSAMENTOS E AÇÕES – SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CULTURA E FORMAÇÃO ESTRATÉGIAS E POSSIBILIDADES: QUESTÕES DE DISCUSSÃO

Cibele Risek .31

ERA UMA VEZ O PROGRAMA CULTURA VIVA

Celio Turino .39

MUSEU E EDUCAÇÃO: FIGURAS DE TRANSIÇÃO. REFLEXÕES A PARTIR DO REINA SOFÍA

Jesus Carillo Arte: Renan Magalhães

.51

A GESTÃO PÚBLICA DA CULTURA LOCAL: O CASO DO INSTITUTO DE CULTURA DO MUNICÍPIO DE QUERÉTARO (MÉXICO)

José MacGregor .61

REFLEXÕES SOBRE CULTURA E FORMAÇÃO: ESTRATÉGIAS E POSSIBILIDADES CRIANDO ESPAÇO CULTURAL

Fernando Garcia .71

O CENTRO COMO UMA EXPERIÊNCIA DE MEDIAÇÃO

Francisca Caporali   

.89 &HQWURGH0HPyULD'RFXPHQWDomRH5HIHUrQFLD,WD~&XOWXUDO

Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. - N. 15 (dez. 2013/maio 2014). ± São Paulo : Itaú Cultural, 2013.

O MUSEU, ALGO MAIS DO QUE ABRIGAR O PATRIMÔNIO, O CASO DE MUSEU E TERRITÓRIOS NO MUSEU DE ANTIOQUIA

Carlos Rendon .101

CULTURA, PÚBLICOS E FORMAÇÃO: O QUE PODEM SER, NA PRÁTICA?

Maria Carolina

Semestral ISSN 1981-125X

.121

ARTE, CULTURA E FORMAÇÃO

Ilana Godlstein

1. Política cultural. 2. Gestão cultural. 3. Cultura e formação. 4. Mediação   .2

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PENSAMENTOS E AÇÕES, SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CULTURA E FORMAÇÃO .3

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Foto: dreamstime.com

ARTE, CULTURA E FORMAÇÃO Ilana Seltzer Goldstein Introdução É muito frequente encontrarmos as palavras arte e cultura associadas, num binômio tão inseparável quanto pouco problematizado. Isso acontece em eventos como a Semana de Arte e Cultura da USP; em nomes de organizações como o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza; em iniciativas como o Programa Arte e Cultura nas Escolas, da Prefeitura Municipal de São Carlos, entre tantos outros exemplos – como a própria mesa-redonda que deu origem a este texto1. A vinculação entre o universo abrangente da cultura e os campos artísticos específicos é inegável. Muitas vezes, não se sabe onde estão as fronteiras entre os dois, já que toda produção artística é fruto de convenções e contextos culturais e, ao mesmo tempo, os valores culturais se expressam e se transformam por meio das práticas artísticas.

Maria Carolina Vasconcelos Oliveira A autora pesquisa e atua na área de cultura. Cursa doutorado em sociologia na Universidade de São Paulo, pela qual também é mestre. E-mail: [email protected]. .76

Proponho iniciar a presente reflexão pelo exercício de delimitar o campo semântico que envolve os termos arte e cultura – ainda que para concluir depois que os dois domínios mantêm diálogo permanente e podem se sobrepor. Tecerei também algumas considerações sobre educação e formação. Após a primeira parte, de cunho conceitual, serão recuperadas algumas das questões e propostas que vieram à tona durante o Seminário Internacional de Cultura e Formação, realizado no Itaú Cultural entre 28 e 30 de novembro de 2012.

1 A mesa-redonda que deu origem a este artigo intitulava-se “Arte e Cultura na Vida das Pessoas”. A programação do evento, muito intensa, durou três dias e contou com mesas-redondas, painéis e rodas de conversa (chamadas “desconferências”). Mais informações em: http:// novo.itaucultural.org.br/ programe-se/agenda/ evento/?id=63619.

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1. Conceitos e terminologias A origem do termo cultura está no particípio passado do verbo cultivar, em latim. Por isso, assumiu inicialmente a posição de sufixo em palavras que descrevem o plantio de alimentos e a domesticação de animais – apicultura, piscicultura, vinicultura etc. Esse sentido, que remete ao cuidado permanente para que algo cresça ou floresça, prevaleceu até o século XVI, em várias línguas (EAGLETON, 2005). A partir do século XVIII, três noções modernas de cultura se delinearam. O conceito iluminista, surgido na França, aproximava-se de civilização e civilidade, ou seja, um processo geral de evolução material, intelectual e espiritual que incluía o polimento dos costumes, o progresso técnico e político. Era um conceito de cultura universalista, que se opunha à ideia de barbárie (ELIAS, 1994). Já o conceito romântico, surgido no século XIX, na Alemanha, equivalia a modo de vida. Um de seus formuladores foi Johann Herder que, juntamente com o jovem Goethe, refutava as teses iluministas: negavam a centralidade da razão, pondo a intuição e o sentimento em primeiro plano; fracionavam a unidade fundamental da humanidade, que passava a ser vista em suas peculiaridades regionais; e propunham uma volta às fontes populares, consideradas mais autênticas (WILLIAMS, 1969). O conceito de cultura como arte, por sua vez, emergiu na Inglaterra após a Revolução Industrial, quando autores como Matthew Arnold e T.S. Elliot decidiram resistir à perda de valores e referências decorrentes das transformações urbanas aceleradas. A cultura adquiriu, então, uma dimensão de individualidade e interioridade, associada às belas-artes, à música e à ciência, consolidando-se nos salões, onde se admiravam as pessoas cultas e habilidosas (WILLIAMS, 1969). Recuperar essas três maneiras de abordar a cultura é importante porque, de alguma forma, elas continuam permeando os debates contemporâneos. Foram sendo desdobradas e reinterpretadas a ponto de, no livro Culture (1952), Kroeber e Kluckhon terem elencado nada menos do que 145 variações para o conceito de cultura. Não caberia, aqui, passar por cada uma das abordagens. Mas, em linhas gerais, o conceito antropológico de cultura abrange objetos e conjuntos simbólicos – valores, crenças, normas, modos de fazer etc. – criados pelo ser humano, que viabilizam e dão sentido à vida social, além de alimentar a construção de identidades coletivas. Nessa concepção abrangente, a cultura está difusa no cotidiano, é internalizada espontaneamente, ao longo de nossa socialização. Grande parte das criações culturais tem origem indeterminada e apresenta uma relativa continuidade na longa duração. O que não quer dizer que se trate de um fenômeno estático: “a análise dos fenômenos culturais é necessariamente análise da dinâmica cultural, isto é, do processo permanente de reorganização das representações na prática social (DURHAM, 2004, p. 231). E a arte? Em nossa sociedade, a arte corresponde a um subconjunto de atividades e objetos culturais considerados especiais. Com o advento do .78

romantismo, o trabalho de pintores e escritores passou a ser visto como decorrente de uma vocação singular. O artista, apartado da linha de produção, passou a figurar como uma espécie de gênio e a singularidade de sua obra ganhou destaque em contraste com as mercadorias produzidas em série (HEINICH, 2001). A ideia moderna de arte foi construída em cima de três pressupostos. Em primeiro lugar, a obra de arte precisa ser, em alguma medida, única e original. Em segundo lugar, deve ser pautada pelo desinteresse, ou seja, não pode haver motivações utilitárias, econômicas ou religiosas por trás dela. Por fim, a autoria da obra precisa estar refletida na assinatura de um artista reconhecido por seus pares, pela crítica e pelas instituições de arte (HEINICH, 1998). Paradoxalmente, a história da arte e os museus outorgaram a posteriori o título de arte a peças que não se encaixam nesses pressupostos. Fala-se, por exemplo, em “arte egípcia” ou em “arte sacra” para se referir a artefatos anônimos, produzidos com finalidades políticas e religiosas. De onde se conclui que não existem objetos intrinsecamente artísticos: eles adquirem tal status a partir de convenções sociais e culturais2 (COLI, 1995). Em síntese, nas sociedades modernas ocidentais, uma parcela restrita das criações culturais recebe a designação de arte. Ela se origina em indivíduos e grupos considerados portadores de talentos e competências excepcionais. E depende da aprovação das instâncias de legitimação – a crítica, os diretores de equipamentos culturais, os colecionadores e os demais artistas. Se, por um lado, a arte dialoga com tradições particulares e com obras preexistentes, por outro, carrega um potencial de inovação, risco e ruptura. Por isso mesmo a relação entre a obra de arte e o público sai fortalecida quando são oferecidas oportunidades de familiarização com aquela linguagem e estratégias de mediação daquela experiência.

2 Durante o Seminário Internacional de Formação e Cultura, Jesus Carrilo, do Museu Reina Sofia, advertiu que a distinção entre arte e cultura é sempre relacional e política. “É preciso ver quem designa quem, com que interesses. A cultura costuma ser hierarquicamente inferior; chama-se de cultura, normalmente, o que o Outro e o subalterno fazem”. Em sua opinião, há resquícios dessa hierarquização nas políticas culturais que precisamos combater.

Chegamos, então, ao terceiro elemento do tripé conceitual deste artigo: a educação. Ela é a grande responsável pela transmissão dos repertórios culturais de uma geração a outra, e é fundamental no desenvolvimento de competências e sensibilidades que permitem a fruição artística. Infelizmente, no Brasil, existe grande descompasso entre as políticas culturais e as políticas educacionais (COELHO, 2011, p. 9). As escolas ainda pensam e atuam de forma fragmentada, preocupadas com a acumulação de saberes mensuráveis e a preparação para seleções universitárias. Desse modo, a educação escolar “não leva em conta o fato de que a refundação do sujeito responsável, exigida pela sociedade do conhecimento, requer como ponto de partida a religação e circulação dos saberes” (CARVALHO apud COELHO, 2011, p. 35). É verdade que já existem alguns dados animadores, sobretudo no Ensino Superior. No Seminário Internacional de Cultura e Formação, Ivana Bentes, da UFRJ, mencionou a parceria de sua instituição com o movimento social Rede Ação Griô, que, com financiamento do Ministério da .79

Educação, promoverá a inserção das tradições orais brasileiras dentro do âmbito acadêmico. É interessante ainda o caso da Universidade da Floresta, fundada no Acre, em 2005, com a finalidade de aproximar os professores das cidades dos mestres da floresta, valorizando os saberes tradicionais e o manejo da biodiversidade local. Mas esse tipo de prática ainda não é generalizada. Com efeito, é urgente que o sistema educacional se abra para a pluralidade, a divergência e a ação em rede. Aprendemos com Paulo Freire que a educação não é mera difusão do saber “dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (FREIRE, 1987, p. 58). A educação deve ser dialógica, um espaço de encontro. Ademais, a cultura e a arte devem estar presentes na escola em todas as suas facetas, de forma transversal – não relegadas a atividades extras, de menor importância, como costuma ocorrer. Enquanto a maioria das instituições educacionais permanece fiel a um modelo rígido, compartimentado e conteudista, os relatos que compuseram o Seminário Internacional de Cultura e Formação deixaram claro que as organizações culturais e os projetos artísticos têm se lançado em iniciativas flexíveis e inovadoras de formação. Algumas delas serão apresentadas na próxima parte do texto. Antes, porém, convém fazer uma última observação de cunho terminológico. A utilização do termo formação, em vez de educação, no seminário de novembro de 2012 deve-se ao fato de que, tradicionalmente, “educação significa ensino e aprendizagem relevantes para o desempenho de todas ou de um número considerável de funções operacionais [...]. A formação, por outro lado, visa a uma boa performance em uma tarefa específica ou em um conjunto de tarefas que constituam um trabalho” (DANNEMANN, 2004, s.p.). Ainda que, no terreno da arte e da cultura, os processos formativos resultem em algo mais complexo do que o “bom desempenho de uma tarefa específica”, trata-se, a princípio, de ações bastante focadas.

mesmo tamanho do Museu de Arte e a entrada dos visitantes do museu se dá pela escola. A ideia é que as exposições ativem e propiciem sensações e reflexões discutidas e compartilhadas no espaço da Escola do Olhar. Se a experiência for enriquecedora e estimulante, os visitantes provavelmente voltem. Outro exemplo mais radical foi apresentado por Marcelo Evelin: quando o público não vai às apresentações, os artistas vão até sua casa. O coreógrafo implantou num bairro periférico de Teresina o projeto “1.000 Casas”, que consiste em levar espetáculos instantâneos às residências, numa espécie de assalto poético. Coloca em xeque, assim, a separação entre público e privado, entre arte e cotidiano, e produz uma performance de acordo com o espaço da casa e as histórias dos moradores. Ao responder acerca do efeito dessas ações na vida dos moradores, Evelin foi assertivo: “Agora há mais gente no galpão para assistir aos nossos espetáculos e o orgulho de morar no bairro Dirceu Arcoverde está nitidamente mais forte”. Uma segunda categoria é a formação de multiplicadores que lidam com o público, sejam eles monitores de exposições, professores ou mesmo colaboradores dos equipamentos culturais. Mônica Hoff, responsável pelo setor educativo da Bienal do Mercosul, contou, no Seminário Internacional, que, na última edição, 12 mil professores foram formados. Não apenas nos espaços expositivos, mas também na “Casa M”, espécie

Oficina Monta Livros

Foto: Christina Rufatto/ Itaú Cultural

2. Formações no plural: pensando a partir do Seminário Internacional de Cultura e Formação As experiências compartilhadas no Seminário Internacional de Cultura e Formação, organizado pelo Itaú Cultural entre 28 e 30 de novembro de 2012, sugerem, antes de mais nada, que não existe o “vácuo de promessas culturais” no Brasil, alardeado pela controversa edição da revista CartaCapital de fevereiro de 2013. No que concerne às interfaces entre arte, cultura e educação, as iniciativas apresentadas no seminário permitem decantar algumas grandes categorias de formação, ao mesmo tempo distintas e complementares. Em primeiro lugar, a formação de público. Exemplo emblemático é o da Escola do Olhar, que funciona vinculada ao Museu de Arte do Rio de Janeiro, inaugurado em 2013, no porto carioca requalificado. Segundo a coordenadora Janaína Mello, o edifício da Escola do Olhar tem o .80

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de anexo do evento que foi instalado no centro histórico de Porto Alegre, onde aconteciam oficinas e encontros. De forma similar, na 29ª edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, houve formação presencial, com duração de três a seis horas, para 30 mil educadores de escolas e ONGs, nos meses anteriores ao evento; capacitação de mediadores para a bienal por dois meses, incluindo o acompanhamento da montagem; e produção de material destinado a educadores de ONGs e professores de escolas. O terceiro tipo identificável é a formação para a prática artística – que, assim como a formação de multiplicadores, não deixa de estar relacionada à formação de público. Uma bela ilustração é o projeto Cine Anima, coordenado por Lula Gonzaga, que se apresentou na primeira noite do seminário. O Cine Anima promove mostras e oficinas itinerantes de produção audiovisual em regiões com pouco acesso a essa linguagem. Leva um estúdio completo de desenho animado para os locais em que oferece suas oficinas – comunidades quilombolas, aldeias indígenas e assentamentos do MST, entre outros – e ensina os interessados a fazer roteiros, desenhos, animações, digitalização e edição. O Teatro da Laje, núcleo de pesquisa e produção teatral carioca, embora não tenha feito parte da programação do seminário, merece menção na categoria formação artística. Sediado na Vila Cruzeiro, favela estigmatizada pelo assassinato do jornalista Tim Lopes, surgiu a partir de uma demanda da própria comunidade. Durante o processo de montagem dos espetáculos, faz-se uma pesquisa temática, com leitura de textos, exibição de filmes e debates; os participantes assistem a espetáculos em cartaz de outros grupos, participam de oficinas de improvisação, de interpretação e de voz, além de colaborar com a produção dos espetáculos. As peças que montam colocam em diálogo a realidade da favela com clássicos da dramaturgia. A quarta categoria refere-se à formação cidadã – e, muitas vezes, combina-se e confunde-se com a anterior. Nesses casos, a atividade artística é, sobretudo, uma ferramenta. A Casa da Ribeira, criada pela companhia Clowns de Shakespeare, em Natal (RN), abriga um projeto chamado ArteAção, que atua com jovens entre 14 e 18 anos, matriculados em escolas públicas parceiras. As escolas abrigam projeções de cinema e oficinas de teatro organizadas pela Casa da Ribeira, que forma 70 alunos por ano, interessados em aprender interpretação, cenografia, figurino e iluminação. Gustavo Wanderley, que apresentou o caso no Seminário Internacional, sintetizou o objetivo da seguinte forma: “Criar oportunidades educativas por meio da arte, para o desenvolvimento humano; criar arte e apreciar arte a fim de fortalecer competências para a vida”. A proposta do Projeto Guri, apesar de não enfocada no seminário, vai na mesma direção. A iniciativa da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, que existe há 18 anos, contempla crianças e adolescentes que vivem em locais com poucas opções de lazer. Em cada um dos polos formam-se orquestras-escola, corais e grupos instrumentais com jovens entre 8 e 18 anos. O Guri não tem como finalidade principal a forma.82

ção profissional de músicos, embora isso possa ocorrer isoladamente. O foco recai sobre “um ensino técnico aprimorado e consciencioso, [...] que fortaleça a (re)construção da cidadania das crianças e adolescentes e insira-as no processo social através da utilização da música como agente transformador”, segundo se lê no site da iniciativa. Talvez uma subcategoria dentro da formação cidadã seja a transformação comunitária por meio de trabalhos artísticos. O projeto que o paraense Alexandre Sequeira expôs no Seminário do Itaú Cultural, por exemplo, pautava-se pelo deslocamento do artista rumo a comunidades que, normalmente, têm pouco contato com as artes. Sequeira frequentou o vilarejo de Nazaré do Mocajuba (PA) entre 2004 e 2005, a fim de desenvolver um trabalho fotográfico. Passou meses pescando e roçando com os moradores. Quando descobriram que ele era fotógrafo, passaram a lhe encomendar retratos, pois pouquíssimas pessoas guardavam uma memória visual da família. Ao frequentar as casas, o artista percebeu que um elemento comum eram as divisórias de tecido entre os cômodos. Pediu que lhe doassem essas cortinas internas, dando-lhes novos tecidos em troca. Sobre os tecidos, imprimiu fotos dos moradores em tamanho real. O resultado, de grande impacto visual e poético, foi exposto de frente para o rio, no vilarejo, antes de ir para Belém e para a China. Os tecidos estão sendo vendidos e metade do valor vai para a comunidade. Marie Ange Bordas, também presente no Seminário Internacional, é outra a utilizar a criação visual como ferramenta de reconstrução de identidade de grupos em situação de fragilidade. Ela produziu, entre outras obras, uma fotonovela com crianças de campos de refugiados no Quênia, em projeto intitulado “Deslocamentos”. Por fim, existem as iniciativas de formação profissionalizante para o mercado cultural. Dentre as que estiveram presentes no seminário, chamou a atenção o Método Canavial, criado por Afonso Oliveira em 2006, a fim de alcançar a sustentabilidade para o setor cultural na Zona da Mata. Consistia, inicialmente, numa rede articulada de agentes culturais – empresas, artistas, produtores, associações de maracatu, Pontos de Cultura e rádios comunitárias. Em seguida, foi fundada também uma agência na cidade de Nazaré da Mata, que ajuda a formatar e captar recursos para projetos voltados à cultura popular. Adicionalmente, desde 2008 é oferecido um curso de produção cultural. Já o grupo de teatro Ponto de Partida, representado no seminário pela diretora Regina Bertola, mantém a Bituca – Universidade de Música Popular, na cidade de Barbacena (MG). Os cursos livres oferecidos na Bituca englobam baixo, saxofone, violão, mas também afinação de piano e engenharia de som. Caso semelhante, no campo das artes cênicas, que não fez parte do seminário mas merece destaque, é a Escola Spectaculu. Idealizada pelo cenógrafo Gringo Cardia, com apoio da atriz Marisa Orth, a ONG profissionaliza jovens de 16 a 21 anos em situação de vulnerabilidade, para que atuem no ramo de espetáculos. São oferecidas oficinas de cenotécnica, iluminação, adereços, design gráfico, vídeo, além de discussões .83

temáticas sobre cidadania, saúde e temas atuais. Um aspecto importante do programa da Spectaculu, no tocante à complementaridade com a educação formal, é que, assim como no Projeto Guri, a precondição para a participação é o jovem estar cursando ou já ter cursado o Ensino Médio em uma escola pública.

3 Uma excelente fonte com (outras) boas práticas em termos de ações educativas vinculadas à arte e à cultura encontra-se nos anais de um encontro sobre mediação cultural organizado pela Unesp em 2007 (MARTINS; SCHULTZE; EGAS, 2007).

Haveria muitos exemplos interessantes de Norte a Sul do Brasil, tantos que não seria possível contemplá-los aqui3. E talvez existam outras categorias, para além das que pude identificar: formação de público, formação de mediadores, formação para a prática artística, formação cidadã por meio da arte e da cultura e formação de quadros para o mercado cultural. Formação, enfim, para cada um dos elos da cadeia – criação, produção, difusão e fruição. Conhecê-las e aprender com essas iniciativas é o que de melhor podem fazer aqueles que atuam em organizações culturais. Afinal, formatos e metodologias já vêm sendo testados e não é preciso “inventar a roda” a cada vez. Por outro lado, fica claro que não é possível falar em formação no singular, somente em formações no plural, cada qual levantando uma série diferente de desafios.

3. Propostas e desafios no campo da formação artística e cultural Célio Turino, um dos idealizadores do programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura, destacou na primeira mesa-redonda do Seminário Internacional de Cultura e Formação que a cultura está ligada ao cultivo e, portanto, ao exercício. A continuidade das ações formativas revela-se, assim, crucial. Um segundo aspecto destacado pelo palestrante foi a opção por valorizar, em programas culturais, aquilo de interessante que já existe na sociedade, “olhar para a potência, não para a carência”. Em terceiro lugar, Turino enfatizou a importância de se criarem ambientes solidários e plurais, nos quais a alteridade seja tão importante quanto a identidade e os fundamentalismos sejam evitados. Eis três boas sugestões para quem concebe ações formativas na área cultural. Jesus Carillo, chefe de programas culturais do museu espanhol Reina Sofia, que integrou a mesma mesa-redonda, chamou atenção para “o poder cívico e educativo da arte”. Em sua visão, a arte estimula a imaginação e a criatividade, que são ferramentas básicas para a transformação do mundo. A especificidade do viés artístico na educação é colocar em xeque tudo o que é normativo, levando a apreciar a diferença e a surpresa. “Só a potência não basta; é preciso afeto, magia e encantamento”, afirmou ele. Com efeito, o prazer e o acolhimento são cruciais. Como formulou John Dewey (2010), o segredo é propiciar às pessoas uma “experiência singular”, vivida de forma estética, em oposição às experiências genéricas do cotidiano, da ordem da dispersão e da distração.

duração, como uma exposição ou um espetáculo. Publicações acessíveis e a regularidade na oferta de programação são alguns dos caminhos para isso, bem como a aliança entre educação formal e não formal. Janaína Mello, da Escola do Olhar, também disse acreditar na aliança entre os equipamentos culturais, as escolas e universidades. Uma precisa da outra, pois “é o professor que conhece o aluno e é na relação entre professor e aluno que se estabelece a continuidade”. Por outro lado, “a instituição artística instaura fissuras na cultura e no processo escolar”, catalisando transformações. Tampouco se pode ignorar as especificidades da sociedade contemporânea, atravessada pelas novas tecnologias e pela mobilidade. Ivana Bentes, que fez parte da terceira mesa-redonda do seminário, propôs uma comparação entre os formatos convencionais de formação e os novos formatos. Nos formatos convencionais, os conteúdos são apresentados de maneira linear, as fontes de informação são escassas e existem “guardiões” com monopólio do conhecimento. Já nos formatos que começam a se consolidar, a comunicação é descentralizada e não linear, as fontes de informação são abundantes e acessíveis e os conteúdos são portáteis4. Isso estimula a formação flexível, individualizada e contínua. Mas gera certa crise nas instituições culturais e educacionais, que precisam se reinventar. Ao mesmo tempo, exige do facilitador da aprendizagem, além de repertório e erudição, a capacidade de estimular as pessoas em formação a buscar ativamente suas próprias respostas, a selecionar e relacionar conteúdos com base em parâmetros coerentes e pertinentes. Há que se atentar ainda para a importância de consultar os diversos envolvidos nos processos de formação. O que eles querem? Do que precisam? Quais suas limitações? O que já sabem? Sem responder a perguntas como essas, quaisquer iniciativas artísticas, culturais ou educacionais têm menos chance de êxito.

4 Vêm surgindo alternativas paralelas à educação formal oferecendo novas metodologias, como é o caso da Universidade Fora do Eixo, que disponibiliza opções de formação em rede com base na vivência prática, na escolha individual dos itinerários de formação e no compartilhamento de informações, conforme explicou Carol Tokuyo, presente no Seminário Internacional de Cultura e Formação.

Um último aspecto importante é a relevância do acompanhamento e da sistematização das atividades. Quem oferece uma formação, seja ela do tipo que for, precisa registrar as etapas do processo e elaborar meios de saber como os formandos são (ou não) impactados por ele. A avaliação da formação é uma grande ferramenta de aprendizagem para os próprios formadores. Apesar do tamanho do desafio, é fascinante atuar na interface entre cultura, arte e formação. No mundo difícil e violento em que vivemos, essa é uma forma de consolidar “valores da paz e da solidariedade, modos de vida culturalmente saudáveis, imaginário rico e eivado de utopias [...] identidades abertas e novas tendências, poéticas de um mundo novo (FARIA, 2000, p. 19). Afinal, as experiências estéticas nos ajudam a transcender o imediatismo que povoa o mundo contemporâneo. São descondicionantes e, portanto, transformadoras.

Outro desafio, segundo Carillo, seria que as instituições culturais conseguissem propor atividades que não se esgotassem nos eventos de curta .84

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Ao completar 25 anos em 2012, o Itaú Cultural se propôs um novo desafio: pensar a formação como orientadora de sua política de atuação cultural.

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Ilana Seltzer Goldstein Mestre em antropologia social pela USP, especialista em direção de projetos culturais pela Université Paris 3 e doutora em antropologia social pela Unicamp. Autora de O Brasil best-seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional (Senac, 2003), entre outras publicações. Docente de gestão cultural na Fundação Getulio Vargas e no Centro Universitário Senac, atua também como consultora para diversas organizações. .86

A cultura como estratégia para estimular situações de maior protagonismo por parte dos indivíduos é uma diretriz dos projetos desenvolvidos pelo instituto ao longo do tempo. O foco da instituição é a pesquisa, o registro e a difusão de bens culturais, além do mapeamento, fomento e apoio à produção artística contemporânea. Nesse sentido, criou programas e produtos que se tornaram modelo de política cultural. O atual contexto do país e do mundo encaminha o instituto à produção de atividades que tenham como valor unificador a experimentação da arte, com o objetivo de integrar, transformar e impactar a vida das pessoas. O Itaú Cultural não se vê sozinho nesse desafio. Importantes iniciativas têm sido propostas por agentes, organizações não governamentais, instituições, com quem dividimos a crença na importância da cultura para o fortalecimento da cidadania, relacionada à dimensão sensível dos indivíduos. Pensamentos e Ações – Seminário Internacional de Cultura e Formação reúne representantes de diversos setores da educação, das artes e da cultura para tratar de questões relacionadas a três eixos temáticos: Arte e Cultura na Vida das Pessoas; Mediação, Formação e Educação; e Estratégias e Possibilidades. Além das mesas redondas diárias, a programação conta com painéis de relatos de experiências com educação e arte realizadas no Brasil e em outros países da América Latina. Milú Villela Presidente do Itaú Cultural .87

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