ARTIGO_Unesp_CapoeiraeComplexidade.doc

May 22, 2017 | Autor: Maira Bruce | Categoria: Teoria Da Complexidade, Capoeira Angola
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Capoeira Angola & Complexidade: uma leitura da capoeira angola a partir dos
operadores cognitivos do pensamento complexo.

Maira Bruce Valença - UFPE - Mestranda.

Profa. Dra. Rita Ribeiro Voss - UFPE - Pós-doutorado.

Resumo
Neste artigo, buscamos relacionar a sabedoria complexa e ancestral da
Capoeira Angola com o pensamento complexo contemporâneo, através de
conceitos desenvolvidos pelo filósofo Edgar Morin, percebendo de que modo
esta tradição de origem africana já apontava para leituras complexas de
mundo, no tempo da transmissão oral dos conhecimentos.
Morin (2013) aponta para as relações antagônicas e complementares,
dialógicas, recursivas e hologramáticas, entre os fenômenos, tomando-as
como operadores cognitivos necessários para enfrentar e construir a
.reforma do pensamento contemporâneo em busca da educação que nos importa
no século XXI (MORIN, 2011), que incorpora o exercício do erro e da
incerteza.
Faremos uma leitura de como a Capoeira Angola, enquanto prática educativa,
orienta desde sempre para o enfrentamento das incertezas, que hoje
atravessam o sujeito descentrado da contemporaneidade (HALL, 2003),
colaborando para que ele possa integrar o mistério à sua prática de vida,
não se fragmentando, mas encontrando formas de diálogo com o mesmo.
Numa crítica à segregação dos saberes, pelo pensamento ocidental, apontamos
para a emergente necessidade de estabelecer pontes entre estes saberes
tradicionais, dos quais hoje conhecemos muito pouco, e as novas abordagens
da ciência, percebendo a necessidade de "enegrecer" e "orientalizar" nossas
teorias.
Palavras-chave: Capoeira Angola. Pensamento Complexo. Saberes da Tradição.
Paradigma Ocidental.

Abstract
In this article, we aim to relate the complex and ancient wisdom of
Capoeira Angola to the contemporary complex thinking through concepts
developed by the philosopher Edgar Morin, noting how this African origin
tradition already pointed to some complex readings of the world in the time
of oral transmission of knowledges.
Morin (2013) points to the antagonistic and complementary, dialogic,
recursive and hologramatic relations among the phenomena, taking them as
necessary cognitive operators in order to face and build the reform of the
contemporary thought in search of the education that matters to us in the
twenty-first century ( MORIN, 2011), which incorporates the exercise of
error and uncertainty.
We will understand how Capoeira Angola, as educational practice, has always
led to facing the uncertainties that go through the decentered subject of
contemporaneity (HALL, 2003), so that this subject can integrate the
mystery to its practice of life, not being fragmented, but finding ways to
dialogue with it.
Criticizing the segregation of knowledge by the western thought, we point
to the emerging need to establish bridges between the traditional
knowledge, of which we know very little, and new approaches to science,
noticing the need to "blackenize" and "easternize" our theories.
Keywords: Capoeira Angola. Complex thinking. Knowledge of Tradition.
Western paradigm.
Introdução

Nesta pesquisa, apresentaremos inicialmente os conceitos desenvolvidos por
Edgar Morin acerca dos operadores cognitivos necessários para a reforma do
pensamento ocidental, o recursivo, o dialógico e o hologramático. Em
seguida, abordaremos as relações entre estes conceitos e a filosofia
ancestral da Capoeira Angola, de modo a demonstrar como o paradigma
proposto por Morin, se faz presente nesta cultura tradicional desde tempos
imemoriais.

Pensaremos o exercício das subjetividades, através da construção da
mandinga, a performance própria a cada capoeirista. Neste percurso,
refletimos sobre como os valores transmitidos gestual e oralmente, na
capoeira angola, colaboram para uma desejada educação para a complexidade e
para a construção de valores coletivos.

Chegamos à conclusão de nossa pesquisa, percebendo as lacunas que precisam
ser preenchidas em relação à contribuição das manifestações culturais de
matriz africana para a educação do presente, do passado e do futuro.

No livro o Método I, Edgar Morin inicia sua aventura cognitiva em direção à
proposição de um novo paradigma do pensamento, que seja capaz de perceber
as relações entre fenômenos, permitindo uma leitura complexa da realidade,
em contraposição à simplificação habitual da ciência tradicional, que
segrega os saberes, separa sujeito e objeto, dicotomizando diversos
elementos da atividade cognitiva no intuito de dominá-los, tarefa
impossível diante dos mistérios pelos quais estamos cercados.

Morin sugere, em vários de seus livros, e mais especificamente no "Método
III – o conhecimento do conhecimento", que partamos de determinados
operadores cognitivos – também discutidos por outros autores – para pensar
as interações organizacionais que estão presentes desde a concepção do
universo às formações sociais. Estes operadores são também conhecidos por
operadores de religação, visto que propõem a religação dos saberes. São
eles:

O operador dialógico (pode ser definido como a associação complexa -
complementar, concorrente, antagonista – de instâncias, necessárias
conjuntamente para a existência, o funcionamento e o desdobramento de
um fenômeno organizado) une o que está separado, pensando as vias de
mãos duplas, o diálogo entre as coisas, por exemplo: o sensível
dialoga com o racional, o corpo dialoga com o espírito e com a mente,
que também dialogam entre si; As disciplinas do conhecimento humano
dialogam, não há disciplina, ação e nem elemento isolado – não há
sistema fechado. Se o sistema se fecha, ele implode, o que também
acontece, mas leva à sua reorganização, e portanto, a novos diálogos.
Somos 100% cultura, 100% natureza, etc.

O operador recursivo dialoga com o operador dialógico, pois nos leva
a perceber as teias entre os acontecimentos, de modo que não há ação
linear, ou seja um ponto de partida que simplesmente desemboca em
alguma coisa, como as noções de causa e efeito do empirismo, mas
existe sim a ação do ponto de vista de algo que intervém, e que
intervindo, recebe uma resposta, que por sua vez gera outra, e assim
sucessivamente; Aqui, as coisas se produzem mutuamente – uma leva à
outra, que volta à primeira, que gera terceiras, que se relacionam com
as que a fizeram, e assim ad infinitum.

O operador hologramático propõe o não-holismo, pois nesta noção, o
todo se basta, o todo deve ser considerado sem a percepção de suas
interações com as partes. No operador hologramático, percebemos os
fenômenos como hologramas, que são imagens feitas por pequenas
partículas que possuem quase toda a informação da imagem, e que,
juntas, formam a imagem maior, como microcosmos que compõem um
macrocosmo, com o qual se parecem. Neste caso, a relação/interação que
há entre as partes dentro deste todo, e do todo em relação às partes,
se coproduz mutuamente, sendo impossível considerar partículas, ou
totalidades sem estabelecer esta relação. Socialmente, por exemplo, é
preciso considerar o indivíduo em sua complexidade, mas também, é
preciso considerar a sociedade em que está inserido. Ele produz e é
produzido por esta sociedade.

Na verdade, todos os operadores se complementam, pois o diálogo entre as
esferas das coisas, é recursivo, já que, à medida que um aspecto como o
sensível, por exemplo, se relaciona com o racional, estes se produzem
mutuamente, um recorre ao outro, e vice-versa. Do mesmo modo, à medida
que um elemento dialoga com outro, e, deste modo o cria, é também criado
por ele, e assim, o produto da relação entre eles é vista como um todo,
do qual, cada parte contém em si a chave desta relação, e sendo assim,
estamos frente à uma relação hologramática.

Diante deste paradigma, como sujeito inserido no objeto (a capoeira),
pude observar que os simbolismos, as estruturas da arte da Capoeira
Angola podem ser articuladas a estes operadores, devido à sua pedagogia
lúdica e ancestral, nos ajudando a olhar para o mundo a partir de um
ponto de vista complexo, facilitando uma leitura agregada, concisa e
significativa, individual e coletivamente.

Na cosmovisão[1] da capoeira de angola, além do desenvolvimento da
racionalidade, de pensar o jogo, estão também integrados os mistérios,
pois, é com a incerteza que trabalhamos, já que não podemos fugir desta
condição, presente em todos os níveis da existência. Jogamos com as
possibilidades, que dialogicamente, nos abrem canais para vivenciar o
improviso, o erro (MORIN, 2011b) e o acerto, a queda, o jogo de dentro e
o de fora, a pergunta que responde e a resposta que pergunta. Na capoeira
de angola "mostramos para esconder e escondemos para mostrar".

Também através deste prisma, começamos a olhar para o mundo, como uma
grande roda – a recursividade então se faz presente, pois o que se
aprende aqui, serve para a roda da vida; o holograma também, pois é uma
parte de experiência de vida que contém segredos encontrados no todo; e o
dialogismo se põe, à medida que através da experiência adquirida na
capoeira, dialogamos com nossas experiências de vida. Assim, a capoeira
angola nos preenche de sentidos, passamos a significar experiências,
encontrando o "paradigma perdido".

Dialogamos com a tradição para perceber o novo, a ancestralidade retorna
sobre o presente, e o presente retorna sobre a ancestralidade, produzindo
futuros.

O erro na Capoeira Angola[2] não é indesejado, pois nesta arte não há
ganhadores ou perdedores; não há graduação, e a competição que há, é
entre sujeitos que se complementam através de seus antagonismos, ou seja,
o espírito que compete na capoeira angola, não compete para que haja um
vencedor, antes, jogamos com um "camarada", e não com um oponente, e com
ele aprendemos.

Por mais que durante o jogo, apareçam tensões, não é possível determinar
quem ganha e quem perde, pois mesmo quem ataca aprende sobre sua ação,
tendo em vista que o ideal do bom angoleiro é ter o corpo hábil para não
atingir com seu golpe, ter controle de seu corpo e de seu movimento. Já
quem leva, levou, antes, o aprendizado de onde seu corpo está aberto, e
então pode decidir fechá-lo, ou não.

Do mesmo modo, a movimentação entre os jogadores, quando fluida, funciona
como ondas do mar, que sobem e descem, vão e vêm, crescem e encolhem,
criando ordem, desordem e organização do todo (MORIN, 2013).

Neste artigo, buscamos articular a sabedoria complexa e ancestral da
Capoeira Angola com o pensamento complexo contemporâneo do filósofo
francês Edgar Morin, que traz à tona hoje, esta visão tão antiga quanto
as filosofias do Oriente – nas quais incluímos África – mas sufocada até
os dias atuais pelo pensamento ocidental que percebe as coisas do mundo
de maneira dicotomizada, e não articuladas em múltipas relações entre si.

A Capoeira Angola: ancestralidade africana

Não se sabe ao certo se a origem da capoeira se dá no espaço urbano, ou
rural dos quilombos, mas já sabemos que nasce aqui no Brasil, fruto da
miscigenação própria deste país. Segundo Soares (2004):

[...] percebemos como a capoeira estava articulada com a
cultura urbana peculiar, forjada pelas camadas populares e
pelos trabalhadores marginalizados da segunda metade do
século XIX, atraindo não apenas escravos e negros livres –
como os estereótipos raciais deixam perceber – mas, também
emigrantes portugueses, brancos pobres, indivíduos vindos
das mais diferentes províncias do país e dos quatro cantos
do mundo atlântico – África, América e Europa – irmanados
pelos golpes fugazes e pela camaradagem dos grupos de rua.

Apesar de apenas tatearmos o momento em que ela se torna algo mais
próximo do que se é hoje e na história recente, sabemos da majoritária
influência africana dos negros bantos, primeiros e em maior quantidade a
chegar no Brasil para serem escravizados (Oliveira, 1989 apud FONTOURA;
GUIMARÃES, 2002).

Dos estilos "mais considerados" atualmente de capoeira – angola, regional
e contemporânea – nos atemos, neste artigo, à filosofia e prática da
Capoeira Angola, devido principalmente ao envolvimento do sujeito de
pesquisa com esta modalidade, de modo que possamos falar a partir de um
território mais conhecido.

Sabemos também, que a capoeira angola está mais próxima da ancestralidade
bantu, sendo conhecida como "a capoeira mais antiga", atentas porém, ao
fato de que as tradições assumem traduções (HALL, 2003). Neste contexto,
isto significa que em cada grupo de capoeira angola, são também feitas
diferentes escolhas para a forma de armar a bateria, para as cores do
fardamento, se o há, e mesmo nos gestos e registros corporais, assim como
nos corridos e ladainhas que predominam neste ou naquele espaço.

Ou seja, a tradição hoje, já é muito diversa do que um dia foi, inclusive
porque cada época carrega suas próprias características, suas razões
próprias para lutar, e exigir liberdade.

Levamos em consideração também, que a tradição propriamente dita, da
capoeira angola, é muito recente. A sua própria denominação é uma
invenção da segunda metade do século passado, quando da legitimação da
luta regional baiana, pelo reconhecimento de Getúlio Vargas ao trabalho
desenvolvido por Mestre Bimba, que gerou a divisão, entre esta e a
primeira. Assim como, a descriminalização da arte da capoeira.

Sendo assim, pensamos que a cosmovisão africana parece funcionar de uma
forma mais integrativa, na perspectiva natureza e cultura de uma forma
dialógica, ou seja, que compreende a complementaridade e a dinâmica
concorrente dos elementos que constituem os fenômenos, percebendo suas
relações de ordem, desordem e organização.

Movimentos da capoeira angola e os princípios do pensamento complexo

Isto de que falamos, só é possível compreender do ponto de vista dos
elementos que compõem a manifestação da Capoeira Angola, como seus
gestos, movimentos, ladainhas e corridos. É preciso viver a brincadeira
do jogo de angola, onde meus movimentos perguntam e respondem ao outro,
meu camarada, na mesma proporção em que este me pergunta e também me
responde, para sentir o dialogismo, a recursividade e o holograma que são
juntos, sujeito e roda.

Mesmo assim, podemos esboçar o indizível, através da descrição de alguns
elementos. Por exemplo, na chamada de angola, fazemos uma vírgula no jogo
– ou depois de deferir um golpe acertivo, ou depois de levar, chamamos o
outro para o respiro, para ganhar tempo de refletir sobre qual o próximo
passo mais interessante a dar naquele momento, se o recuo, ou mesmo a
arapuca.

O pensador de angola é um símbolo recorrente no universo da capoeira; ele
nos convida a refletir o jogo, a ter o pensamento ativo junto ao corpo
ativo[3]. Neste momento, os dois se integram, dialogam, um não existe sem
o outro, retroagem sobre si. E quando alcançamos o estado de dialogismo
pleno, seja na própria movimentação, ou na própria movimentação em
relação com a movimentação do outro, atingimos um estado de transe, que
nos faz girar no campo de mandinga, movendo pela liberdade "de corpo e
alma".

A mandinga é a "manha, a malícia, o jogo de mostrar e esconder", através
da qual o capoeira "entra e sai dos espaços sem ser percebido". É a forma
de fechar o corpo e esquivar diante dos perigos e dificuldades que estão
no jogo, assim como na vida.

Segundo Jaime Sodré, em O Fio da Navalha (s/d):

O verdadeiro capoeirista era 'mandingueiro'. O que era um
mandingueiro?! Era aquele que tinha habilidades mágicas de
se proteger contra o inimigo. Nesse caso ele tinha a
proteção dos seus movimentos e dos seus entes protetores,
dos orixás, dos seus 'inquices', seus 'vodús'. De modo que
para ser evidentemente um capoeirista à moda antiga, tinha
que praticar a religião afro-brasileira, tinha que ter o
arsenal de proteção espiritual – patuás – e a proteção
física dos movimentos.

A mandinga é também a marca do capoeira, a expressão da sua
subjetividade. Podemos perceber a mandinga de cada camarada, pelo modo
como faz suas rezas, como arma os seus truques. Sendo assim, ela é a
subjetividade de cada um, a forma como cada indivíduo expressa suas
emoções, suas verdades, através do jogo.

A performance revela o sujeito, de forma tal que sua construção passa a
ser feita num tecido conjunto, entre o sujeito e seu grupo. Isto se
expressa nos momentos em que numa atitude agressiva ou de maior
desconstrole, seja por empolgação ou mesmo por cansaço, o berimbau gunga
chama o jogo, ou terminando, ou aconselhando o que esteja desequilibrado
a se reequilibrar. E o jogo recomeça.

Assim, o sistema da roda se mantém através de sua organização própria e
efêmera, e "quanto mais a organização se torna complexa, mais a sua ordem
se mistura intimamente com as desordens, mais os antagonismos, as
desinibições, os acasos desempenham seu papel no ser e no sistema em sua
organização" (MORIN, 2013). Assim, o capoeira faz a roda, e a roda faz o
capoeira, pois a condução deste momento só se dá com e por conta de todos
envolvidos.

O que a capoeira angola ensina

Não há nada mais ancestral do que vivenciar a roda. É nela que se
conectam energias, pois todos se vêem e compartilham. Através da roda,
sabemos da retroatividade das ações, pois tudo o que se faz, se recebe em
algum momento posterior. Este caminho, aponta para o desenvolvimento do
valor da humildade em relação ao outro, à vida.

Aprendemos também sobre a importância da incorporação das incertezas
(MORIN, 2011b) no modelo cognitivo da capoeira, já que devido ao seu
caráter de improviso, somos levados a aprender a lidar com a surpresa,
construindo o aprendizado em bases passíveis de mudança, flexíveis, em
detrimento de uma educação enrijecedora, repleta de certezas que não nos
preparam para lidar com o desconhecido.

Nos corridos e ladainhas está muito da filosofia da Capoeira Angola.
Através deles são transmitidos "valores morais e estéticos, que auxiliam
o indivíduo na busca pelo principal fim da educação: a felicidade, mas
não uma felicidade externa, material, e sim uma felicidade interna, que
permita ao indivíduo estar bem, em plena função criativa em qualquer
espaço" (MAKIGUTI, 2002).

"Não bata na criança que a criança cresce, quem bate não se lembra, quem
apanha não esquece" ensina claramente o conceito de retroatividade na
roda da vida, alertando para algo que muitas vezes falta à educação
doméstica, cotidiana, e por que não em certas práticas mesmo de ensino
formal ou informal?! Este corrido critica a violência no trato com um
jogador menos experiente, o que se traduz ao pé da letra, em outras
situações, alertando para o fato de que um dia, todos foram crianças,
todos foram inexperientes, mas que o jogo da capoeira é uma construção, e
esta inexperiência terá, na roda da vida, seus dias contados.

Conclusão

Percebemos, através da construção deste raciocínio, que a complexidade,
que surge como novo paradigma científico na contemporaneidade, ela mesma
passou por um círculo de ordem, quando imperava nas manifestações
ancestrais, desordem, com o pensamento científico, que a encapsulou em
diversas "caixinhas" e compartimentos, a fim de dissecá-la para
compreendê-la, e agora vive uma reorganização, desde a era moderna, com
"a descoberta das incertezas" pelas ciências naturais (MORIN, 2013).

Agora, século XXI, com o declínio das velhas identidades (HALL, 2003) "o
sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável,
está se tornando fragmentado; composto não de uma, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas", de modo que
a "identidade torna-se uma 'celebração móvel': formada e transformada
continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou
intrpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam."

Deste modo, interessa perceber como uma tradição complexa, articula a
fluidez – dos corpos, dos gestos, dos pensamentos – e ao mesmo tempo lhes
garante bases nas quais apoiar seus fluxos de identidades individuais e
coletivas. A tradição da capoeira angola, desde sempre, brinca com a
ordem, com a desordem e com a reorganização, ensinando à várias gerações,
isto que a narrativa científica só deu conta de perceber recentemente.

Olhando justamente para estas filosofias que nunca perderam sua
compreensão complexa do sujeito, percebemos o quanto nos faltam[4]
horizontes teóricos, míticos, de narrativas literárias e orais, onde
buscar referência para a fluidez desta era, com a qual nos assustamos
diante de surpreendentes fragmentações às quais não nos sentimos
preparados para compreender, e que dirá para viver.

Talvez, estes saberes ancestrais nos ajudem a tatear pelos caminhos das
incertezas, de uma maneira mais lúdica, aprendendo com os movimentos
circulares, a como nos virar diante do imprevisível, do mutável, sem
precisar fragmentá-lo, mas percebendo-o em seus dialogismos,
antagonismos, complementaridades; em sua recursividade que produz todo e
partes simultaneamente, como num holograma.

A partir destas considerações, enxergamos um horizonte de pesquisa, onde
possamos articular narrativas orais, e um maior aprofundamento no estudo
de bibliografias que desenvolvam a reflexão sobre como e o que a capoeira
transmite enquanto sistema de ensino não formal, sobre como se situa
enquanto saber tradicional na contemporaneidade, e sobre como apoia o
sujeito pós-moderno na percepção complexa do todo, diante de seus fluxos
identitários, em suas relações fluidas e fragmentadas.

Referências

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003

FONTOURA, Adriana Raquel Ritter; GUIMARÃES, Adriana Coutinho de Azevedo.
"História da Capoeira". Revista de Educação Física, Maringá, vol.13, n.2,
2. Sem, 2002. p.141-150.

MAKIGUTI, Tsunessaburo. Educação para uma vida criativa. Rio de
Janeiro/São Paulo: Record, 2002.

MORIN, Edgar. O Método I: A natureza da natureza. Porto Alegre: Sulina,
2013.
________. O Método III: O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre:
Sulina, 2011.
________. Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São
Paulo/Brasília: Cortez; Unesco, 2011.
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições
rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: UNICAMP, 2004.

OLIVEIRA, Eduardo David. "Filosofia da ancestralidade como filosofia
africana: educação e cultura afro-brasileira". Revista Sulamericana de
Filosofia e Educação, Brasília n.18, maio/out, 2012. p. 28-47. Disponível
em: .

Filmografia

O FIO da Navalha, documentário realizado pela ESPN, direção Júlio
Bartolo, sem data. Disponível em:
.

-----------------------
[1] "Alojada no útero da ancestralidade está a cosmovisão Africana, isto
é, sua epistemologia própria, que por ser absolutamente singular e
absolutamente contemporânea, partilha seus regimes de signos com todo o
mundo, enviesando sistemas totalitários, contorcendo esquemas lineares,
tumultuando imaginários de pureza, afirmando multiplicidade dentro da
identidade." (OLIVEIRA, 2012, p.40)
[2] Os primeiros mestres criaram o jogo da capoeira sem muitas noções de
"certo" ou "errado", mas à medida em que ela se institucionaliza, em grupos
de capoeira, adquire muitas vezes, "normas e regras da casa".
[3] Como defende Mestre Pastinha, em imagens mostradas no documentário "O
Fio da Navalha".
[4] À academia.
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