Artistagens: filosofia da diferença e educação

July 6, 2017 | Autor: Sandra Mara Corazza | Categoria: Teacher Education, Gilles Deleuze, Filosofia da Educação, Filosofía
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Introdução ou apresentação, sei lá...

Isso não é uma introdução. [Epa! Esta fala é minha. R. MAGRITTE, VIA SESSÃO ESPÍRITA]. [Podia ser minha também.

M. FOUCAULT, VIA PAI-DE-SANTO].

Era pra ser. Foi o que

disse a dona da editora, a Rejane. E era pra ser escrita pela própria autora, como, aliás, toda introdução, que, como todo mundo sabe, é algo completamente diferente de apresentação. A diferença é muito simples: uma introdução é uma introdução, uma apresentação é uma apresentação. E era pra ser algo, digamos, mais palatável do que o que está dentro do livro. [O que envolve uma evidente contradição, porque uma introdução também está dentro do livro. E, pro meu gosto, está no ponto. EU MESMO, T. T., PEGANDO O REFÚGIO DOS COLCHETES].

quem é este cara que se meteu aqui? UMA CRESCENTE IMPACIÊNCIA].

[Oi, Sandra, não foi o que combinamos. E

REJANE, VIA EMAIL, DEIXANDO TRANSPARECER

[Rejane querida, não te preocupa. Ele tem o mesmo

nome de um autor da Autêntica, mas não passa de um personagem meu. Sou eu mesma quem está escrevendo tudo aqui. Fica zen, está tudo sob controle.

A AUTORA, TAMBÉM

VIA EMAIL].

Como dizia, antes de ser interrompido, isto não é uma introdução. Mas também é. Do contrário, não estaria aqui, antes de o livro começar. Mas, afinal, o que é mesmo uma introdução? Parece uma coisa simples, né? [Rejane, vamos deixar passar esses coloquialismos?

A REVISORA, VIA REDE INTERNA].

Abro um livro. Vejo escrito

“introdução”. Vou direto. É como um guia, né? O autor vai nos dizer o que escreveu, vai nos dar um resumo da ópera. Quem não gosta? Mas se o autor escreveu um livro pra nos dizer alguma coisa, por que ele precisa, agora, escrever alguma coisa pra explicar aquela alguma coisa que escreveu? Se a coisa está bem dita, não precisa de explicação. Se não está, é a própria coisa que é dispensável. Mas aí não haveria o livro, né? [Rejane, este abuso do coloquialismo está passando dos limites. SALA DE CAFEZINHO DA EDITORA].

A REVISORA, EM PESSOA, NA

Bom, mas neste caso, o livro está aqui. É uma coisa

palpável. Visível. Concreta. Só não decidimos ainda se isso é, afinal, uma introdução ou uma apresentação.

Agora, uma apresentação também parece coisa bem simples. Uma pessoa, em geral de “renome” , apresenta a autora e sua obra. [Quem ele pensa que é? Com que credenciais

5 ele se auto-intitula como sendo de “renome”?

A AUTORA, SENTINDO QUE ESTÁ

PERDENDO O CONTROLE DE SEU ALEGADO PERSONAGEM].

Mas não é assim tão simples.

Salta aos olhos que um livro que precisa de apresentação já se apresenta, de cara, como deficiente, como não sendo capaz de se sustentar por si mesmo. [Vamos deixar claro: não é o caso do meu livro. SANDRA, PERSONAGEM-APRESENTADOR].

AGORA JÁ SEM QUALQUER CONTROLE SOBRE O

Depois, uma pessoa de “renome” deve receber muitas

solicitações para escrever apresentações. [Nem vou falar de “prefácios”, que é, ainda, uma outra coisa.

EU MESMO, NOS COLCHETES].

E não deve ter tempo para ler os muitos

livros que deve apresentar. E acaba escrevendo uma bobagem qualquer, afinal por que perder tempo com autores iniciantes e desconhecidos, isso quando, o que não é raro, não resolve escrever sobre si mesmo. Na verdade, ninguém que seja de “renome” deixa de escrever, de uma maneira ou de outra, sobre si mesmo. [Prometo que não vou escrever sobre mim mesmo, sem querer com isso sugerir que eu seja uma pessoa de “renome”. MIM MESMO, DE NOVO NOS COLCHETES].

Uma apresentação, dizia eu, ou não dizia, pouco importa, deve, portanto, falar sobre a autora e sobre o conteúdo do livro. [Rejane, este “portanto” não tem nada a ver. Cortamos, né? A REVISORA, EM OBSERVAÇÃO ESCRITA À MARGEM DAS PROVAS DO LIVRO E EM FLAGRANTE DELITO DE COLOQUIALISMO].

Comecemos, portanto, pelo conteúdo.

[Oi, revisora, este “portanto” tem tudo a ver, né? EU MESMO, EMBAIXO DA OBSERVAÇÃO DA REVISORA, EM RETALIAÇÃO E ECOANDO, IRÔNICO, O COLOQUIALISMO DELA].

[Finalmente!

REJANE, MAIS ALIVIADA, AGORA INTERVINDO POR VIA DIRETA E FAZENDO

VALER SEUS DIREITOS DE DONA].

que o livro não é. [Ai, ai, ai...

E nada mais natural do que começar falando sobre o

REJANE, VIA SUSPIROS E TEMENDO PELO PIOR].

que este cara não se meta também na minha orelha.

PAOLA ZORDAN, ORELHISTA DO

LIVRO E SE METENDO NA MINHA APRESENTAÇÃO, VIA SANTO DAIME].

meta na vida da minha mulher.

[Só espero

[E eu, que não se

HUGO, MARIDO DA AUTORA, POR VIA ELÉTRICA].

intromissão demais! Serão, a partir de agora, impiedosamente suprimidas.

[É EU,

ASSUMINDO O COMANDO, VIA MANU MILITARI].

Comecemos, portanto, repito, pelo conteúdo. Este, tenho absoluta certeza, não é um livro sobre o ser e o nada, os mares e os oceanos, o pensamento e o desejo, as florestas e os desertos, o amor e o ódio, a flora e a fauna, o gozo e a dor, os ventos e as tempestades, a alegria e a tristeza,os batráquios e os répteis, a paixão e a indiferença, os

6 planetas e as estrelas, o júbilo e a melancolia, as flores e os frutos, os sensatos e os insensatos, o frio e o quente, o bem e o mal, o liso e o enrugado, as andorinhas e os beija-flores, os rebeldes e os conformados, o agradável e o repulsivo, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, a vida e a morte, os cinco sentidos e os sete pecados capitais, Deus e o cosmo, e tudo o mais que puder ser visto, ouvido, cheirado, palpado, palatado, sentido, pensado.

Curiosamente é, ao mesmo tempo, tenho absoluta certeza, um livro sobre Deus e o cosmo, os cincos sentidos e os sete pecados capitais, a vida e a morte, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande, o agradável e o repulsivo, os rebeldes e os conformados, as andorinhas e os beija-flores, o liso e o enrugado, o bem e o mal, o frio e o quente, os sensatos e os insensatos, as flores e os frutos, o júbilo e a melancolia, os planetas e as estrelas, a paixão e a indiferença, os batráquios e os répteis, a alegria e a tristeza, os ventos e as tempestades, o gozo e a dor, a flora e a fauna, o amor e o ódio, as florestas e os desertos, o pensamento e o desejo, os mares e os oceanos, o ser e o nada, e tudo o mais, etc. Não tenho nenhuma dúvida de que a diferença não terá escapado ao leitor atento. E isso explica tudo. Falta dizer alguma coisa sobre a autora.

O bom de se escrever sobre um autor, neste caso, uma autora, é que a gente já sabe como fazer. Primeiro, tem que dar alguns dados biográficos mínimos. Coisas como: onde nasceu; quando; onde se criou; que escolas freqüentou; se é pessoa de vida conjugal regular, com quem conjuga; que livros escreveu; enfim, coisas do gênero. O leitor gosta e fica com uma sensação de intimidade. E é muito útil para alunos que são obrigados a fazer trabalhos escolares sobre o autor ou a autora em questão. Ou para resenhistas preguiçosos. E tem gente que não consegue ler um livro se não sabe quem o autor é. Quero deixar bem claro que não vou fazer nada disso aqui. Nem por isso o que vou dizer será menos esclarecedor ou menos útil. É apenas uma questão de enfoque.

Antes de ser alguém, ela não era nada. O que, aliás, acontece com todo mundo. Depois que virou alguém, decidiu ser ninguém. O que, obviamente, não acontece com todo mundo. Mas virando ninguém ficou igual a todo mundo. O que indica, seguindo um silogismo irretocável, que todo mundo pode virar ninguém. Agora, o triste é que ela tem saudade de quando era alguém. E o mais triste ainda é que ninguém se importa. Mas, em algum lugar, alguém chora. E não me venham dizer que isso não tem nada a ver com

7 a história. Tem, sim, ainda que seja uma outra história. Como já temos a nossa, vamos deixá-la de lado. Não sem antes concluir a que começamos. Que, aliás, tem uma conclusão muito simples: a distância entre alguém e ninguém é menor que zero. Admito que, matematicamente, é uma coisa difícil de entender. Mas, traduzindo em termos simples e didáticos, que é pra isso que serve uma introdução ou apresentação, este famoso teorema matemático, que acabo de inventar, significa simplesmente que passar de alguém pra ninguém não é menos difícil do que passar de ninguém pra alguém. Que é o que queríamos demonstrar. O que, de resto, nossa autora sabe muito bem. Taí uma informação que não vai ajudar em nada o Joãozinho, ou a Mariazinha, que precisa escrever umas linhas sobre nossa estimada autora pra completar seu trabalhinho escolar. Por outro lado, isso mostra como é fácil escrever um parágrafo inteiro sobre nada. Ou sobre ninguém. O que me faz voltar à nossa autora.

É evidente que nossa autora é Sandra Corazza, como anuncia a capa do livro. O que é menos evidente é quem ela gostaria de ter sido. E vou dizer uma coisa pra vocês. Muitas vezes é mais importante saber quem gostaríamos de ter sido do que o que somos. Só não vê quem não quer que nossa querida autora gostaria de ter sido, antes de mais ninguém, Friedrich Nietzsche. E de ter feito longos e pensativos passeios pelos bosques de SilsMaria. E de ter morado em baratas pensões italianas. E curtido uma paixão recolhida por Lou Salomé. E ter escrito livros como Assim falou Zarathustra e O Anticristo. Não amaria menos ter se chamado Virginia Woolf. E ter exercitado sua conhecida arte da conversação nas animadas reuniões do Bloomsbury Group. E de ter ouvido vozes, como o personagem Septimus de Mrs. Dalloway. E de ter levado a criação ao limite da loucura. Desconfio de que ter sido James Joyce tampouco lhe teria desagradado. Muito pelo contrário. E teria adorado ter conhecido as ruas de Dublin. E ter escrito cartas de amor deliciosamente pornográficas para Nora Barnacle. E ter freqüentado a livraria “Shakespeare & Company”, de Sylvia Beach, na Rive Gauche da Paris dos anos vinte. E, obviamente, ter escrito Ulisses e Finnegans Wake. Também adoraria ter podido assinar-se D. H. Lawrence. E ter viajado pela Austrália, pelo México e pela Itália com sua amada Frieda. E de ter escrito poemas admiráveis sobre os frutos, os animais e o desejo divino. E de ter se rebelado contra as convenções, o poder de qualquer espécie e ideologia, e a moral sob todos os seus disfarces. Pra terminar, ela amaria ter sido Gilles Deleuze. E sobre isso nem é preciso dizer mais nada, tão grande é o seu amor por ele. O

8 curioso é que, neste livro, ela consegue ser toda essa gente e muitas outras, permanecendo, entretanto, ela mesma. Vá entender!

Assinado: Tomaz Tadeu. [Oi, revisora, corta isso e coloca: “Assinado: Sandra Corazza”. Este cara é um usurpador.

SANDRA, VIA EMAIL].

Assinado: Sandra Corazza. [Oi revisora, não liga para o que diz esta tal de Sandra. Ao contrário do que diz, é ela que é apenas uma personagem minha. Aliás, vamos deixar claro, fui eu quem também escreveu o livro. O raciocínio é simples. Só não vê quem não quer. Eu gostaria de tê-lo escrito. Logo, sou o autor.

TOMAZ TADEU, TAMBÉM VIA EMAIL].

Tadeu. [Caso encerrado, POR VIA DAS DÚVIDAS].

Assinado: Tomaz

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Nós, as belas almas

1. Furor pedagogicus. – Não importa que a idéia seja nova ou mais velha, muitíssimo antiga... Não importa de onde venha, se da filosofia, sociologia, antropologia, psicologia... Não importa quem a expresse. O que importa é que difira do pensamento dogmático da pedagogia. Então, nem bem é dita e escutada, há sempre uma multidão alvoroçada indagando: – Mas, então, se isso não é como eu pensava que fosse... Como fazer? Como é que eu vou agir na sala de aula? Como é que eu vou ensinar? Como...? Como...? Como...? – Praga, vírus, vício, cacoete pedagógico. Pergunta que não pára de perguntar. Até quando existirão aqueles que a formulam? E pior: aqueles que a respondem sem a mínima cerimônia? 2. Os mestres da culpa. – Se os professores são contemplados com um olhar favorável ou desfavorável? Invariavelmente, se os vê ocupados numa única tarefa: culpar os outros. Tantos séculos de culpabilização não serão suficientes para ver onde a culpa leva? 3. De amor. – Ela foi professora durante trinta anos. Teve, no mínimo, trinta turmas e mais de mil alunos. Então, aposentou-se e foi cuidar dos três netos. Não deixou um texto sequer. No final das contas, precisa maior prova do seu de-s-amor à profissão? 4. Salvação. – Existe um imenso e profícuo Exército da Salvação na educação. Salvam-se todos: alunos, comunidade, país, sociedade, cidadania. Educar como uma viagem imprevista, sem fins pré-estabelecidos, não é uma bela maneira de conjurar todo esse calamitoso salvacionismo? 5. Crítica. – Renegados: professores que problematizam, questionam, propõem. Ultrajante cultura da crueldade... 6.

10 Mercados. – Em cada escola, um escambo. Vende-se tudo: roupas, sapatos, bolsas, panos de prato, bijuterias, artesanatos. Realiza-se ainda uma economia das artistagens, fabulações e variações intensivas. Pratica-se também a usura de alianças fantásticas, linhas disjuntivas e desejos mágicos. 7. Profissional? – Se a profissão de pedagogo tiver um fim ulterior a si mesma – sustento, reconhecimento, auto-realização, conscientização – estará contaminada pelo utilitarismo. Então, fenece. Pois, já se viu um pensador profissional? Os professores potentes preferem ser aficcionados. 8. Azar! – Há muito tempo, existe uma maquinaria silenciosa e invisível operando nas escolas. Maquinaria produtiva, que funciona para além das teorias, epistemologias, palavras de ordem. Assim se compreende porque é tão difícil criar um povo de pensadores na educação. Azar de quem realiza a formação de professores! 9. Animal. – Ah, o cheiro animal de uma sala de aula no alto verão! 10. Recreio. – Abençoado! Bem-vindo! Ilha de paz dentre a confusão! Lenitivo dentre os afazeres pesados! Sem ele, é impossível sobreviver ao turno de trabalho. Ao contrário da opinião corrente, o recreio é mais vital para os professores do que para os alunos. 11. Único motivo. – Amam-se uns alunos mais do que outros. Qual professora ou professor nunca fez da simples presença de um amado aluno ou de uma amada aluna o único e salutar motivo para ir trabalhar? 12. Sonho. – Um dos maiores sonhos de todo professor é a abolição dos pais de seus alunos. 13. Desconfiança. – Desconfia... quando o que falares agradar a todos! E, mais seriamente: desconfia quando todos te elogiarem! O risco é, logo, logo, te transformares num falso astro ou num completo boçal! 14.

11 Teia de aranha. – Mantém distância daquele professor que responder às seguintes indagações: – Como dar uma aula? Como fazer um planejamento? Como elaborar um currículo? Ele é um renomado mentiroso... 15. Tensão insolúvel. – Sem a caixa de Folhas de Atividades (mimeografadas ou xerocadas), Regras de Convivência, Livro de Ocorrências... como não se deixar vencer pelo desespero? 16. Armadilha ou circo? – Pobres explorados! Assim falam dos professores. Vale perguntar – Como isso vem funcionando? e não – Qual o seu sentido? 17. Ditos. – Quão fácil era ensinar quando se dizia – Vai, faz assim! Ficou difícil quando se passou a dizer: – Vem, faz comigo! 18. Inocência diabólica. – Tanto blábláblá nesses livros pedagógicos... Tantas pretensões tagarelas, que dizem tão pouco e que, acima de tudo, não favorecem que ninguém pense. 19. Pânico real. – A estupidez educacional tem um só nome: humanismo. 20. Um mapa de transformações. – Antes, alimentação era para os alunos. Agora, nos encontros de professores, come-se. Por que será que a merenda trocou de lado? 21. Opulento. – O pensamento educacional? Opulência do verniz. Indolência dos animais que não voam. Cúmulo do prosaísmo. 22. Des-espera. – O aluno não espera o professor para começar a aprender. Pode-se até mesmo indagar se ele não aparece ao aluno apenas em condições artificiais e bem tardias. 23. Riqueza e pobreza. – Antes ser um educador rico e pródigo, como um relógio que adianta, do que um nada inventivo e indigente espelho. 24.

12 Cata-vento. – Educa-se para quê? Para um mundo melhor? Então, é uma educação do outro mundo, do além-mundo, do além... Educar não para fugir do mundo, mas para fugir no mesmo lugar, em pura intensidade, numa linha artista e contínua. Educar para devir um cata-vento na montanha. 25. Obra-prima. – Ah, o instante de fazer experimentação! Ah, educar como obra de arte! Ah, educar com potência criadora, apta a reverter ordens e representações! Ah, educar afirmando a Diferença no estado de revolução permanente do eterno retorno! Ah, educar para mostrar a diferença diferindo! Ah, educar apenas uma diferença entre as diferenças! 26. Programa de vida. – Nunca mais: 1) ter original e cópias; 2) subordinar a diferença ao idêntico e reduzi-la ao negativo; 3) trabalhar do alto do princípio de identidade; 4) amaldiçoar a diferença; 5) colocar a negação como motor do educar; 6) representar na forma da identidade, sob a relação da coisa ensinada e do sujeito que a aprende. 27. Autopoiese. – Na educação, como na vida, nada é igual, tudo se banha em sua diferença, em sua dessemelhança e em sua desigualdade, mesmo consigo. Elimina-se o Negativo, o Mesmo, o Semelhante, o Igual, o Análogo, o Oposto porque são as formas da in-diferença; elimina-se Deus e o Eu como formas e garantias da identidade. Conserva-se apenas o Dissimilar. 28. Jogo multívoco e polifônico. – Um pouco de ar livre! Educar com o pensamento mais elevado, isto é, o mais intenso: aquele que exclui a coerência de um mundo pensado, do sujeito pensante e de qualquer fiador universal. 29. Limiares de intensidades. – Desenrolar-se no limite, excessivamente, indo até o extremo da potência, metamoforseando-se de professor em aluno e vice-versa, enquanto fatores móveis, que não se deixam reter nos limites factícios deste ou daquele indivíduo, desta ou daquela função. 30. Nobreza e dignidade. – Vis são as irrisórias lutas por valores estabelecidos. Nobre é a energia de educar que é capaz de se transformar. Indigno é ensinar. Digno é

13 aprender. Pois, não se sabe como o aprender é feito, assim como não se sabe como encontrar um tesouro. Já, ensinar... há tantos mapas por aí! 31. Beco sem saída. – Proponho uma espécie de lei, que não vale sempre, só em certos casos: 1ª) educar numa caos-errância, que se opõe à coerência de um sujeito que representa e de um objeto representado; 2ª) educar num caos informal, que não tem outra lei que não a sua repetição, que não aquilo que diverge e descentra; 3ª) educar num empirismo transcendental; 4ª) educar díspar, apenas em permutações e labirintos sem fio; 5ª) educar poético, livre e selvagem!

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Como um cão

I – Traços 1. Festa. – A: A escrita faz do pensar uma festa? – B: Mas, se não me engano, em educação, quase não há festa! – C: Tão morta que é uma tristeza! – B: Por isso mesmo! 2. No berço. – Nebulosas, conjuntos vaporosos, que convocam as forças inumanas que vivem no educador. Da jararaca. Do jacarandá. Da petiça. Da samambaia. Do sol. Da alamanda. Da lesma. A escrita em educação pensamenteada numa teia de aranha. A paixão de escrever dançando na corda bamba. Por toda parte, fabulação de beleza, poesia, lírica, música, ditirambos. Contingência pura. No extremo da abstinência, rouba-se a escrita no berço. 3.

15 Bloco. – Escrever sobre educação tem funcionado, na maior parte das vezes, como uma territorialidade. Trata-se duma reprodução circular, duma progressão em vez de uma transgressão, de fotos de aulas, lembranças de escolas, desejos presos na armadilha da representação de alunos, que fazem pesar sobre o ato de educar fortes interditos pueris, persuasivos, idiotas. Trazer para essa escrita sons de aulas, blocos de escolas sem lembranças, vidas presentes e ativadas, precipitadas, multiplicadas em suas conexões, é dar-lhe um máximo de extensão polívoca, em oposição à escrita educacional definida pelo significante único, rebatimento e neutralização do social e do político. 4. De brincadeira. – Brincar de escrever, usando a intensidade zero do desejo de educar como catapulta. Despojar a escrita dos seus elementos representativos ou emocionais. Desmontar os modelos incorporados às palavras, que as levam a realizar movimentos figurativos e a imitar alguém ou alguma coisa. Constituir um movimento novo e puro de escrita, que extraia do escrever como evento a sua energia. Brincar de escrever que tãosomente inventa e devém muitas escritas, abre o seu espaço a todas as espécies de eventos que aí podem ter lugar, a elementos que são heterogêneos, mas que se afectam cada um a todos os outros. 5. O que é. – Uma escrita que cria um mundo incerto e perigoso é a única força que faz o professor diferenciar-se, isto é, tornar-se o que ele é, para além do que dele foi feito. 6. Contramão. – Para escapar de uma escrita indiferenciada, que vale para tudo, e afirmar radicalmente a diferença de uma escrita-artista da educação, importa investi-la de uma não-relação com a prática pedagógica e de afectos da Natureza. Então, ela será apreciada justamente por estar saturada destes afectos e por não ter qualquer semelhança com aquela prática. Tudo isso na contramão do moralismo otimista do amor pedagógico. 7. Ensina-se a escrever? – A: É possível ensinar a escrever? – B: Não sei se podemos ensinar a escrever. – C: Para Nietzsche (2003, p.144 ss.), junto à oratória, a escrita é uma arte que não pode ser adquirida sem “a orientação mais minuciosa e a aprendizagem mais penosa”. – A: Agora, dizer, ao modo de Deleuze (1988, p.54), – Vem, escreve comigo, implica escrever para ou com os alunos? 8.

16 Escrevo sempre diferente de mim. – Escrever de um modo que não seja fusão, projeção, nem identificação com ninguém implica afirmar um princípio de diferenciação no próprio interior da escrita, que aspira à exterioridade absoluta. Assim como dizer: – Porque sou algo diferente de mim, porque estou sempre no exterior de mim mesma, é que escrevo diferentemente de mim. Será essa diferença a única que me permite entrar num processo de devir-escritora, como ser singular, real, que me torna outra? Talvez, uma educadora-escritora? 9. Espírito. – Ao artistar a escrita em educação, tomamos partido rigoroso contra qualquer escrita nostálgica, redentora, aconselhadora, messiânica, profética. Ao escrever, bebemos de fontes vivas. Uma necessidade de escrever nos persegue como um cão. Sobre nossa cabeça, guinchando, esvoaça o morcego do espírito da escrita. 10. Para escrever é preciso ler... – Como Nietzsche (1995, p.47-48) mostrou, essa máxima não é válida para todos os casos. Muitas vezes, para escrever é preciso deixar de ler, é preciso defender-se da mera reação à leitura, subtrair-se a situações e relações em que se fica sujeito a suspender a iniciativa e tornar-se apenas reativo. Aquele erudito que, “no fundo não faz senão ‘revirar’ livros” perde “totalmente a faculdade de pensar por si”. Ou seja, se não revira muitos livros, ele não consegue pensar; se apenas critica, aprovando e reprovando o que já foi pensado, “ele próprio já não pensa”, só reage aos pensamentos lidos. O seu instinto de autodefesa encontra-se embotado, pois, se assim não fosse, ele “se protegeria dos livros”. O erudito é um leitor em ruínas, um fósforo que se necessita riscar para que brilhe, isto é, para que emita supostos pensamentos – um décadent, no sentido nietzschiano. 11. Combinações. – Pode-se pensar a escrita-artista em educação como uma grandeza determinada e um número determinado de centros de força. Disso se segue que ela tem de passar por um número calculável de combinações, no grande jogo de dados da existência do educador. Em um tempo infinito, cada combinação possível está alguma vez alcançada, infinitas vezes. Cada uma dessas combinações expressa o mundo da educação que infinitas vezes já se repetiu e joga seu jogo in infinitum. 12. A obra. – Essa escrita, com seu caráter de simulacro, é singularidade que perturba a realidade da educação e que melhor representa o seu pensamento como jogo afirmador

17 do acaso. Ela escava o campo da moralidade e da religião, as motivações inconfessáveis que estão na origem dos valores éticos pretensamente absolutos, a valorização da racionalidade científica. Afirma, então, uma ciência alegre, o luxo intelectual e a filosofia dos espíritos livres, que celebram o corpo, os instintos e a Terra. 13. Interditos. – Ao escrever, nos esquecemos, por momentos, do mundo dos estados de coisas da educação, embora a este mundo estejamos fadados. Odiamos, com todas as forças, a humanidade e a bondade educacionais, que nos provocam náuseas. Revoltamo-nos contra o mundo do Bem. Devotamo-nos ao partido do Mal. Escrevendo, de maneira insensata, não há lei que não nos deleitemos em transgredir, nem coletividade que não violemos. Escrever nos torna eminentemente trágicos. Escrever é, assim, um movimento impulsivo, feito em nome da condenação do instante presente em proveito do futuro. Escrever nos faz aberrantes ao extremo. Exige a morte dos seres aparecidos. Renovada, nossa escrita se desinteressa de qualquer benefício, prestígio, divulgação, opõe-se à ordem natural, e liga-se à morte, que é condição da vida. Ela se assume como uma escrita mal-dita. E, gloriosa, ousa, imagina, cria problemas, como faz todo aquele que artista, ao invés de resolver problemas. É desse modo que combate a angústia e o desgosto. 14. Intempestiva. – A escrita-artista é mais profunda que o tempo e a eternidade. Ela luta pelo tempo por vir, em que sejam revigorados os modos de expressão da educação. 15. Estilo. – Liga-se tal escrita a uma prova, a uma seleção, como objeto da vontade e da liberdade. Repete-se a própria escrita, fazendo dessa repetição o objeto do escrever, aquilo que encadeia a escrita, salva e cura a repetição do Mesmo e da Lei Moral. Há,

18 nela, ao mesmo tempo, todo um jogo místico de perdição e de salvação, de morte e de vida, de doença e de saúde. Além de toda uma potência, “que é a da repetição do eterno retorno” (Deleuze, 1988, p.28). 16. Escrita-esquizo.

– À escrita-representacional pergunta-se: – O que quer dizer? À

escrita-artista: – Como funciona? Nos dois tipos de perguntas, existem mundos diferentes. De um lado, encontra-se uma escrita da qual faz-se exegese ou justificação, algo cognitivo, uma lógica do conhecimento extra-perspectivista. De outro, uma escrita para a qual valem apenas funcionamentos posicionais no mesmo complexo educacional, renúncia a qualquer interpretação, opção exclusiva pela utilização operatória. Maquinação de uma escrita, que é somente produtiva, nem expressiva nem representativa. Privilegiamento de uso; produtividade em relação à expressividade; utilização operatória em detrimento do sentido exegético. Perseguição de uma lógica da invenção. Escrita que não sai da razão, mas renova a arte do pensamento ao reenviar “o pensamento para a arte” (Rajchman, 1991, p.58). 17. Um caso. – A: Escrever sobre educação tem a ver com o que, nela, se viveu ou se vive. – B: E se não se viveu e nem se vive nada que valha a pena ser escrito? – C: Como assim? Todo mundo vive; logo, todo mundo escreve. – D: Só que escrever é um “caso de devir”, “sempre inacabado, sempre em vias de fazer-se”, é um processo, “uma passagem de Vida”, que “extravasa qualquer matéria vivível ou vivida” e “atravessa o vivível e o vivido” (Deleuze, 1997, p.11).

II – Riscos 1. Ubi?(Onde?) – Escrever feito um jogo ideal, puro, inocente (cf. Deleuze, 1998). As palavras vão nascendo da imaginação de princípios plásticos, anárquicos e éticos; os quais, mesmo inaplicáveis na realidade educacional, não integram regras pré-existentes. Cada ação de escrever – cada escritura-ação – inventa suas regras. A cada página, parágrafo, frase, palavra, sílaba, letra, acento ou ponto, o acaso é afirmado e ramificado, constituindo um lance; enquanto cada lance produz eventos ideais. Escreve-se, jogando, sem vencedores ou vencidos. Não é nem um professor nem uma professora que escrevem, já que só se escrevem não-sensos. Escrever assim, de modo indiscernível, é a própria realidade do pensamento educacional, o inconsciente deste pensamento, pois

19 cada palavra produz uma distribuição de singularidades neutras ou de eventos ideais. Essa escritura-ação não existe; ou melhor, só existe no pensamento educacional. E não tem outro efeito senão o de perturbar a realidade, a moralidade e a economia da educação. Assim, ela é feita por atos enigmáticos, não por atos simples e claros para si mesmos. Trata-se de uma escrita apaixonada pelo pensamento inefável. Escrita de um tempo superficial dos eventos tomados em sua relação com o devir, que remete ao passado e ao futuro simultaneamente. Escrita toda ela realizada num campo transcendental impessoal e pré-individual, cuja emissão ocorre pelo aspecto problemático e paradoxal de que se reveste a linguagem em sua gênese. Escrita que não tem a consciência da pessoa e o ponto de vista do indivíduo como meios porque é feita sobre uma superfície in-consciente, nem individual nem pessoal. Escrita essencialmente produtora de artistagens, cujo campo é uma região submetida a determinadas perturbações, onde são produzidos certos efeitos. Escrita como efeito produzido por um campo transcendental, o qual, por sua vez, também produz um campo a sua volta e impõe perturbações. Como singularidade na cultura, é uma escrita que, à sua volta, produz novas maneiras de acontecer no mundo. Não há nenhum objeto dessa escrita, já que o próprio objeto, sobre o qual a força de escrever se exerce, também é uma força. Escrever sobre a escrita-artista em educação produz posturas diferentes daquelas produzidas pela escrita sobre didática, currículo, metodologia, fundamentos, planejamento, avaliação, etc. Estilos de literatura educacional? Uma obra de arte, desde que a superfície física das ações e paixões cotidianas ceda lugar à superfície metafísica em que aparecem os eventos educacionais puros. 2. As forças. – Enquanto o tempo do mundo é infinito, não teve início nem terá fim, as forças da escrita-artista, embora múltiplas, são finitas, presentes em toda parte. Forças que só existem no plural, que não são cada uma em si, mas somente na relação com outras, e que não são alguma coisa, mas um agir sobre outras forças. Não se pode dizer que elas produzem efeitos nem que se desencadeiam a partir de algo que as impulsionam, porque implicaria distingui-las de suas manifestações e enquadrá-las nos parâmetros da causalidade. Elas tampouco podem não se exercer porque isso seria atribuir-lhes intencionalidade e enredá-las no antropomorfismo. As forças dessa escrita simplesmente se efetivam, irradiando vontades de potência, agindo sobre outras, resistindo a outras, querendo estender-se até o limite, manifestando um querer-vir-a-sermais-forte, o que explicita o seu caráter intrínseco à escrita mesma.

20 3. O Fora.

Aquele que escreve sob a pressão do Fora, do deserto, do exílio, vê

fragmentar-se a própria unidade subjetiva e desaparecer a forma da interioridade de qualquer essência do Eu. Então, aquele Fora-de-Si, que diz “Eu escrevo”, não pode representar um sujeito, não pode ambicionar um Eu idêntico a si mesmo, porque integra uma linguagem sem sujeito atribuível. As mãos que escrevem não são dele, nem de ninguém, muito menos de algum autor, que nada mais é do que um sujeito inventado. Elas escrevem uma escrita anônima, despersonalizada, liberta das garras de qualquer sujeito desaparecido no discurso. Então, só há um ser: o ser da linguagem que habita o espaço literário, prenhe de um eterno movimento (cf. Blanchot, 1987). Quem escreve? Ora, um Desdobrado, cuja palavra passa a constituir um espaço de transgressão, em que tudo o que é fixo se torna móvel, as verdades são abaladas e vêem-se desmanchadas as dicotomias interior/exterior, sujeito/objeto, eu/mundo. Esplendor de um escrevinhador impessoal... 4. Reino do devir. – A: Andava matutando: – O que podemos escrever em educação, hoje, nas condições de luz e visibilidade que são as nossas? – B: Já, eu, questionava: – Nessa escrita, como se exerceriam as relações de forças móveis? – C: De minha parte, eu ruminava: – Como seria escrever sobre o informe, sobre o não-estratificado, sobre o espaço de singularidades selvagens onde as coisas não são ainda? – D: E eu: – Quais seriam nossos modos de existência, dobras, processos de subjetivação? – E: – Jacaré achou as respostas para essas perguntas? Nem eu... Talvez, só valha a pena dizer: – Damos escrita para aqueles que são incapazes de fazê-lo; mas estes dão devires à nossa escrita, sem os quais ela seria impossível. 5. Furacão, clarão, trovão. – Traçadas numa zona de turbulência, onde se agitam pontos singulares e relações entre esses pontos, as palavras da escrita-artista não são nem corpos visíveis, nem pessoas falantes, mas um borbulhar de forças. 6. Nível. – Nessa escrita, nada é determinado, nada tem forma. Tudo está ainda por acontecer, num nível constituído somente de afectos e de singularidades. 7.

21 Desmembrado. – É preciso afectar e ser afectado para poder escrever. Escrever é ser desmembrado. É metamorfose constante. É abertura de um futuro que nunca começou. Errância total. 8. Viver. – Escrever é um pensamento de vida, não uma receita de felicidade, nem uma sonolência gostosa, ou uma irresponsabilidade divertida. Profundo vitalismo: os modos de vida inspiram maneiras de pensar e escrever; os modos de pensar e escrever criam maneiras de viver. A vida ativa o pensamento e a escrita; o pensamento e a escrita afirmam a vida. Como fazer da escrita uma arte de viver? Como torná-la vivível? Como criar uma unidade entre vida ativa e escrita afirmativa? Escrever é dobrar o Fora, como faz o navio com o mar. Fazer do pensamento uma experiência do Fora, escapar do senso comum, desestruturar o bom senso, entrar em contato com uma violência que nos tira da recognição e nos lança diante do acaso, abalando certezas e o bem-estar da verdade. Perder as referências conosco e com o mundo exterior, afastar-nos do princípio da realidade, romper com as referências cognitivas, promover uma ruptura com a doxa, colocar em dúvida o próprio pensamento, o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Escrever é criar, aligeirar e descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida, fazer nascer o que ainda não existe, ao invés de representar o que já está dado e admitido. 9. Quomodo? (Como?) – A escrita representacional pode ser: 1) monista, que considera o texto como consistindo uma unidade, fundado sobre si mesmo, inegendrado, resistente ao que não é ele próprio; 2) bipolar, que considera o texto engendrado pelo encontro entre uma forma e uma matéria. Tanto uma quanto a outra maneira de escrever evitam a

22 descrição direta do próprio texto e supõem uma sucessão temporal, que parte de algum princípio textual, chega ao texto constituído, depois de passar por aquilo que o esquema textual não estaria tematizando suficientemente: a própria operação textual. Assim, um texto é algo a explicar e não aquilo em que a explicação deveria ser encontrada. Já um texto da escrita-artista não é acabado, nem dele se dá uma explicação; mas um processo em desenvolvimento, uma realidade relativa, uma determinada operação complexa, ativada vitalmente. Um texto desses, enquanto se efetua, não esgota de uma única vez os potenciais da realidade educacional, mas designa o seu caráter de devir. Por isso, tal texto tem a capacidade de defasar-se em relação a si próprio, de resolver defasando-se, de resultar numa incompatibilidade inicial, rica em potenciais, num sistema tenso, supersaturado, acima do nível da unidade. Ele é mais uma onda ou um corpúsculo, uma matéria ou uma energia, que desdobra e defasa aquele tido por seu autor. O texto da escrita-artista é díspar; é disparação; é sistema formado por emissões de partículas, que implica um estado de dissimetria; continuuns de intensidades puras que operam como fatores individuantes, em processos de individuação constitutivos de indivíduos, mas que nestes não se esgotam; blocos de devires; conjugações de fluxos; diferença fundamental. Precário, mutante e mutagênico, campo de realidade virtual, esse texto agita-se na resolução de um sistema objetivamente problemático. 10. Cur?(Por que?)

A escrita-artista usa, sempre, a arma da crítica, que ela própria forja,

para escapar dos artifícios que são o refúgio da tradição, a miragem da erudição por ela mesma, a abulia do bom senso ou a anomia do senso comum, os valores superiores à vida. Ela critica a secularização em educação por meio da errância política e da revolução permanente. Para nomadizar o pensamento, escreve, seguindo Nietzsche, primeiro, como um camelo; depois, como um leão; para escrever, enfim, como uma criança lúdica. Metamorfoses que encobrem perigosos simulacros... 11. Quibus auxiliis? (Por quais meios?) – O desejo de escrever é sempre agenciado, maquinando sobre um plano de imanência ou de composição; plano que deve ser construído ao mesmo tempo em que o desejo agencia e maquina e em que o texto é maquinado e escrito. Não basta dizer, apenas, que esse desejo é histórica ou subjetivamente determinado, porque essas determinações apelam para instâncias estruturais que desempenham o papel de lei ou de causa, de onde o texto nasceria. O desejo de escrever é um operador efetivo, que se confunde com as variáveis de um

23 agenciamento; de modo que só se deseja escrever em função de um agenciamento onde se está incluído: por exemplo, um seminário, um bando, alguns “relacionamentos de duplos, mais do que de casais” (Deleuze, Guattari, 1996, p.68). 12. Quid? (O quê?) – Sobre o que se escreve numa escrita-artista, esquizo-analítica, micropolítica, pragmática, diagramática, rizomática, cartográfica? 1) Escreve-se sobre a profissão, o trabalho, as aulas, as férias, a aposentadoria, animais, crianças, adultos, brancos, negros, público, privado, homem, mulher, segmentos determinados, planos de organização; 2) escreve-se também sobre desvios, quedas, impulsos, flexibilidades, fluxos moleculares, micro-devires, blocos de devir, continuuns de intensidade, conjugações de fluxos, planos de consistência; 3) escreve-se, ainda, sobre linhas de fuga, celeridade, limiares. Escreve-se numa intertextualidade para criarem-se novas significações; de modo seletivo, apropria-se de textos da tradição educacional ou de argumentos adversários para deslocar-lhes o sentido original. 13. O máximo do problema! – Lançar o texto como uma pedra por uma máquina de guerra: problema da velocidade absoluta do pensamento. 14. Teoria materialista. – Fazer uma teoria materialista da escrita é: 1) expressar um mundo possível; 2) pôr eventos a bailar; 3) desmascarar a mediocridade e a compaixão; 4) denunciar a crueldade, a hipocrisia e o ressentimento; 5) execrar o prosaísmo, a vulgaridade e o tédio; 6) perguntar pelo valor dos valores; 7) transvalorar a moral tradicional que habita a educação. 15. Quando? (A que horas escrever?) – Pode ser a qualquer hora. A preferida é a meianoite, o fim da noite, a hora mais noturna, a mais misteriosa, a mais obscura, a mais deserta, hora das bruxas e das aparições, das falas com o demônio, hora dos grandes enigmas, hora do trânsito, da passagem, hora na qual termina um dia e começa o seguinte, ponto crucial entre uma jornada e outra. 16. Quis? (Quem?) – Quem escreve de modo artista? Ora, são os animais de rapina, os selvagens sagazes, os franco-atiradores, os ousados, terrestres, estrangeiros, guerreiros, legisladores, artistas, pensadores, poetas, afirmadores, experimentadores e criadores, que agem em nome da doutrina do círculo vicioso e dela fazem a condição sine qua non

24 da escrita universal. Aqueles que escrevem excedendo-se e reservando-se o direito de malograr. Aqueles que escrevem não porque possuam um projeto de escrita e tentam realizá-lo, mas que encetam o ato de escrever para ver se existe uma intensidade que produza alguns efeitos. Escritores da inocência alegre de um en-fant que só sabe falar a única palavra ajuizada: – Sim!

III – Setas 1. A escrita-artista está em constante fluxo, apesar de nossas tendências biológicas, perceptivas, lingüísticas e culturais nela identificarem formas estáveis. Ela também não varia de acordo com o ponto de vista de quem escreve, mas jamais atinge o estado de ser. 2. O caráter inapreensível dessa escrita deve-se a que ela não é produto de nenhum sujeito uno, permanente e idêntico a si mesmo, mas de sujeitos larvares, precursores sombrios, dinamismos espaço-temporais, ressonâncias rizomáticas, séries de diferenças intensivas. 3. Sendo maquinada por afectos múltiplos, variações do corpo, vontades de potência, a escrita-artista é perspectivista, não derivando de um ponto de vista transcendente e incondicionado, tal como a consciência ou a razão; possuindo um caráter condicionado, não relativo nem parcial, implica não a conclusão de que não se pode escrever a Verdade, mas a conclusão, bem mais radical, de que não há nenhuma verdade a ser escrita. 4. Na concepção da escrita-artista, não há distinção entre teoria e prática: a escrita não é uma teoria sendo feita sobre a prática educacional, que cobiçaria atingir a sua essência, descobrir as suas leis, ou reduzi-la a seus conceitos. Nada há para ser conhecido em alguma instância metafísica chamada “prática educacional”; nada há que possa transcender essa prática e tomá-la como objeto; não há, lá, nenhum sujeito, nenhuma identidade permanente, nenhum sentido por trás dela, nenhum fiador universal ou olhar divino, nenhuma substância inalterada por trás dos sucessivos acidentes, que seja suporte de diversos atributos; nenhuma prática, enfim, que seja fundamento para a escrita. O que tomamos como “fato educacional”, criado pela escrita, é sempre já resultado da atividade cognitiva e interpretativa humana. Por isso, a escrita-artista não vai deixar de ser, também ela, uma forma de esquematização da prática, introduzida por um “sujeito”, ou seja, pela necessidade prática e vontade humana de falsificar o mundo, de impor formas ao que é disforme, de simplificar o que é complexo, de regular o que é

25 caótico, de dar sentido ao que é sempre não-senso, de criar o Ser no que não conhece outro estado senão o do devir. 5. A escrita-artista constitui objetivamente o mundo da prática educacional, que não é independente da organização que lhe damos; nem tem sentido porque falta o ponto de vista transcendente para conferir-lhe uma finalidade; tampouco representa esse mundo, já que ela é anti-teleológica, anti-substancialista e anti-realista. 6. Todo conhecimento conceitual ou categorial produzido por essa escrita é uma ficção reguladora, não tem valor de verdade, mas é relativo, interpretativo e antropomórfico. Só pode ser assim, já que todo conhecimento não é uma verdade ontológica – mesmo que esta fosse apreendida por meios intuitivos –, mas estritamente operatório. 7. A escrita-artista integra uma doutrina da imanência. 8. Cada texto é fragmentado e parcial; mas a escrita-artista em si não seria dada por sua soma, já que esta soma é contingente, encontra-se em devir permanente, enquanto sua perspectiva está continuamente se modificando. 9. Eternamente movente, maximamente diferenciada, heterogênea, incontável, inumerável, a escrita-artista é um vir-a-ser que não deriva de um estado anterior e nunca atinge um estado final. Ela carece de medida, fundamento e finalidade. Ela é acaso, contingência e necessidade. Caso fortuito, delírio, pathos da distância. Fluxo do acontecer, continuum infinito de pontos de vista, força singular de experimentação do alargamento de horizontes. 10. A escrita-artista é uma maneira de escrever, nem mais avançada ou progressista ou evoluída ou científica ou lógica ou natural ou erudita do que as outras escritas. Ela não sublima, não cura, não suspende a vontade, o desejo, o querer... Só que ela sabe rir, comover, mover pernas e asas...

IV – Marcas A escrita-artista não é nunca simples. Ela não normatiza, não representa, não conta história, não ilustra nem narra o que se passou. Algo passa por ela. Traços, riscos, setas, marcas de espírito nela se exprimem e arrancam a significância do texto. De qual texto? Ondas, cascatas, olhos de ciclones, as palavras desse texto não correspondem a formas, mas só captam forças, que se exercem na folha em branco. Em branco? De jeito nenhum; pois, se assim fosse, o escritor poderia reproduzir um fato exterior, que funcionasse como matriz da escrita. Uma folha nunca está em branco, à espera de ser preenchida. Uma folha está, desde sempre, cheia! Povoada de muitos clichês, opiniões,

26 imagens, lembranças, fantasmas, significantes. Por isso, o escritor-artista é um faxineiro: ele esvazia, raspa, escova, limpa (cf. Deleuze, 2002). Ele escreve sobre os códigos, palavras de ordem, regimes de signos, para rechaçá-los, embaralhá-los, invertêlos, subvertê-los. No entanto, ele distingue entre o que lá pulula: aquilo que favorece a escrita, o que a obstaculiza, aquilo que a bloqueia, o que deixa passar intensidades. Porque ele sabe que, se apenas desmanchar reativamente o que encontra na folha, engendrará outros clichês; os quais, como cabeças de hidra, renascerão enquanto paródias, plágios, achados: “Tanta gente toma (...) um plágio por uma audácia, uma paródia por um riso, ou, ainda pior, um miserável achado por uma criação” (ib., p.92). Portanto, é entre a cópia e a criação que o escritor faz marcas: livres, acidentais, irracionais, involuntárias, ao acaso. Agora, essas marcas podem não dar em nada, estragar a folha, não eliminar os dados. Acontece que o escritor sabe o que quer fazer, mas não sabe como fazê-lo, nem no que vai dar. Uma questão de maneiras de pensar e de modos de agir: artistagens da vida...

Referências bibliográficas

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1988. _____. Crítica e clínica. Trad. Peter Pal Pélbart. São Paulo: Ed. 34, 1997. _____. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1998. _____. Francis Bacon: lógica de la sensación. Trad. Isidro Herrera. Madrid: Arena Libros, 2002. DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. 8. 1874 – Três novelas ou “o que se passou?”. In: _____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.3. Trad. Aurélio Guerra Neto et alii. Rio de Janeiro: Ed.34, 1996. p.63-81. NIETZSCHE, Friedrich W. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

27 _____. III Consideração Intempestiva: Shopenhauer educador. In: _____. Escritos sobre educação. Trad., apresentação e notas de Noéli Correira de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: PUC- Rio; São Paulo: Loyola, 2003. P.138-222. RAJCHMAN, John. Lógica do sentido, ética do acontecimento. In: ESCOBAR, C.H. (org.). Trad. Ana Sacchetti. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Holón Editorial, 1991. p. 56-61.

28 Uma única vez

Podem parar de procurar! Só uma única vez, em toda a sua produção, Deleuze fala em aprendizagem. Quando? Onde? Em qual livro ou artigo? Para Deleuze, quem é o educador? Ao afirmar “Ele é essencialmente educador”, quem é “ele”? E quem deve atingir o Ideal da formação? Quem é a educanda? Além disso, de que tipo é essa pedagogia? O que deve ser ensinado? Em que se baseia a relação pedagógica? Vejamos. O educador não possui nenhum privilégio. Mas corre todos os riscos de fracasso inerentes à “tarefa pedagógica”. Em meio a esses riscos, ele deve atuar, levando a educanda a engajar-se em seu papel que ela não sabe, ainda, representar, seja por excesso seja por falta. A sua tarefa consiste em “formar” a natureza da educanda, em “educá-la, persuadi-la”, de acordo com um projeto determinado. No processo de interação, pelo qual desenvolve a “aprendizagem” da educanda, as submissões e os tormentos que lhe são infligidos integram o calvário de um verdadeiro idealista. Cuidadosamente, o educador prepara as provas de iniciação místico-idealistas, reunindo elementos romanescos a ritos de caça, agrícolas e de regeneração, que levarão a educanda a ascender ao ponto específico da idealização. Platonicamente, ele cria condições para a observação e para os “exercícios pedagógicos” que vão da contemplação do corpo às idéias, ou melhor, do corpo à obra de arte e da obra de arte às idéias. Lança mão da imaginação dialética, da arte do disfarce, de operações suprapessoais e “ensina” a educanda a se desfazer de todos os elementos pessoais. Usa anúncios, ameaças, meios jurídicos, que exprimem uma mescla do seu medo, repugnância e atração de educador. E, se preciso for – o que é freqüente –, age à base de chicotadas, para que a formação da educanda seja a mais perfeita possível, em direção a uma nova criatura: sem amor sexual, sem propriedade, sem pátria, sem trabalho, sem briga... Mas, também, cabe a ele a tarefa de ser moroso, de reter a respiração, de viver a espera em estado puro, com função de retomada e reiteração. Uma espera que se desdobra em dois fluxos simultâneos – um que tarda essencialmente, o do prazer; e o outro, enquanto condição que possibilita aquele, que se espera e supõe, isto é, o da dor. Assim, as provas e exercícios terão um efeito voltado para o próprio educador: ele passará por um segundo nascimento autônomo, partenogenético, independente da mãe

29 uterina e livre da semelhança com o pai, que lhe permitirá renascer como um homem novo. Embora tal renascimento só aconteça se, na “relação pedagógica”, chegar o Grego, o Terceiro. Pois, mesmo representando o perigo que vem atrapalhar ou interromper os exercícios, é ele quem indica um desdobramento da educanda e prefigura a saída da relação. É ele quem auxilia o educador a recuar o primeiro fluxo, que deve tardar, pelo tempo necessário, para que o segundo fluxo esperado e suposto o torne permitido. Assim é que essa pedagogia da espera faz triunfar o Ideal, ou seja, a sentimentalidade da educanda no gelo e pelo frio. Denegando o mundo à medida que vai se formando, a educanda deve tornar-se fria, maternal e severa, como a Natureza. Sem piedade, mas também sem ódio, ela deve tornar-se uma mulher de aço, com centenas de lâminas saídas de seu peito, braços, pernas e pés. Ou seja, a frieza é o elemento-chave do ideal de educanda, o ponto da transmutação dialética, que preserva a sua sentimentalidade supra-sensual, a qual indica o estado cultural de uma sensualidade transmutada: ao calor, ao fogo, a frieza e seus gelos; à desordem, uma ordem, de preferência, rigorosa. A educanda será, assim, sentimental face à reflexão e severa contra a grosseria. Envolvida de gelo e protegida pelas peles, é no frio – ao mesmo tempo, meio ambiente protetor e medium, casulo e veículo – que a sua sentimentalidade irradia, fazendo dela alguém que erotiza a própria imaginação, numa espécie de latência divina que corresponde à catástrofe glacial. Já que essa é uma aprendizagem que se faz com mulheres de pedra, a educanda é perturbadora apenas por sua confusão com uma estátua fria sob o luar ou com quadros na sombra. É entre a carne, as peles e o espelho, que ela forma o vínculo entre o sentimental, o gelado e o cruel. Fantasmática, a ela pertencem as três imagens: mulher primitiva, uterina, mãe das cloacas e dos pântanos; mulher edipiana, imagem da amante, mãe que entra em relação com o pai, como vítima ou como cúmplice; e mulher oral, grande nutriz, silenciosa deusa portadora da morte. Nos alagados, nas estepes ou no mar, como uma bela déspota, tzarina terrível, mocinha de boa família, caçadora com seu troféu, revolucionária, oriental, camponesa, criada, patroa, pagã, mística, hermafrodita, amazonas, sereia, pescadora de almas, hetera, soberana e coquete, colérica e severa, a educanda será opulenta e musculosa, de caráter altivo, com uma vontade imperiosa e dotada de certa crueldade, mesmo na ternura ou na ingenuidade. Dona das peles, dos sapatos, dos capacetes estranhos, com seu corpo de mármore, essa Vênus de gelo subverterá a lei e terá um enorme receio de se constipar. Moderna, denuncia o

30 casamento, a moral, a Igreja e o Estado, como invenções do homem, a destruir; inspira às mulheres da casa o desejo de dominar; sujeita o pai; corta os cabelos do filho; traveste todos; abomina o incenso do cristianismo; carrega o coração meigo de uma colomba ao lado dos instintos cruéis da raça felina. Nessa pedagogia demonstrativa, a educanda deve ser persuadida a assinar um contrato, como a condição necessária da relação pedagógica. Contrato pautado sobre um sistema de direitos e deveres, não oponível a terceiros, e que vale por um tempo limitado. Uma aliança contratada, num momento preciso, dotada de cláusulas que prevêem, de um lado, a reciprocidade de deveres e uma reserva de partes inalienáveis, como a parte do trabalho ou a da honra; e, de outro, que conferem à educanda cada vez mais direitos para retirar do educador todos os seus, inclusive o direito do nome, da honra e da própria vida. Um contrato renovador da idéia de antigos juristas, segundo os quais a escravatura repousava sobre um pacto. Um contrato que não exprime apenas a necessidade de consentimento do educador, mas o dom da persuasão, “o esforço pedagógico e jurídico”, por meio do qual ele “adestra” a educanda, de modo a parecer que é ela quem educa o educador, embora seja este quem a forma e sopra as duras palavras que ela acaba por lhe dizer. Mais ou menos como Platão afirmava que Sócrates aparecia como o amante, mas era, fundamentalmente, aquele que era o amado. Embora não esteja preso senão pela palavra, o educador fala através da educanda, num contrato repleto de reviramentos e desdobramentos na distribuição dos papéis e da linguagem. Papéis e linguagem dotados de uma extraordinária decência, mas que têm uma função contratual dialética, mítica e persuasiva de estabelecer a lei e de fazer que, quanto melhor esteja estabelecida, mais ela se torne restritora dos direitos de uma das partes contratantes, no caso, a instigadora. Não há, assim, qualquer relação sem contrato ou sem quase-contrato no espírito do educador e da educanda. Eles nem mesmo pensam a educação sem a lei engendrada por esse contrato, mesmo que tal lei venha a ultrapassar e a desmentir as condições da qual derivou. Na aparente submissão do educador e na suposta docilidade da educanda à lei pedagógica, há toda uma provocação, uma força crítica e derrisória, manifestas no excesso de zelo e numa escrupulosa aplicação, que mostram o absurdo da própria lei e alcançam a desordem que se admite que ela proíbe e conjura. A lei é, então, revirada de modo humorístico, obliquamente, pelo aprofundamento das suas conseqüências. Ou seja, a mesma lei que proíbe ao educador e à educanda realizar um desejo sob pena de uma punição conseqüente será, agora, uma lei que coloca a punição no início, e ordena-

31 lhes, em conseqüência, que satisfaçam o desejo. Desse modo, ambos sofrem a punição antes de sentir o prazer. E o sofrimento não é causa de seu prazer, mas, justamente, a condição prévia indispensável para a vinda do prazer. Este é abjurado, mas para melhor ser reencontrado como recompensa ou resultado. Eis porque, nessa pedagogia persuasiva, a lei assume um caráter mistificador, tão logo se instala, e se torna o objeto de uma caricatura que acusa toda a sua ambigüidade de destino. Paródias, fetiches, pesada tapeçaria, saletas e rouparias, costumes nacionais e folclóricos, brincadeiras inocentes de crianças, gracejos, exigências morais e patrióticas, bancar o urso ou o cachorro, deixar-se atrelar a uma carrocinha ou a um arado, usar um papel assinado em branco, caçar um urso ou um lobo, cobrir o corpo com peles de animais, suspender o gesto da chicotada, entreabrir o casaco, ver-se refletida num espelho que paralisa sua pose, são todas atividades integrantes dessa pedagogia de teatro e que se apresenta sempre em tons cor-de-rosa. Espera profunda, próxima das fontes da vida e da morte, atraso ao máximo, um contínuo Ainda não... integram tal pedagogia. Pedagogia, na qual educanda e educador não destroem nem idealizam o real, mas o introduzem, pela via do fantasma, num nível intermediário entre ele e o ideal. Na relação vivida do seu prazer com a sua própria dor, prazer e dor constituem as posições da educanda que, muitas vezes, é suspensa, ou suspende um gesto ou uma atitude – aquele chicote ou aquela espada que não se abatem, aquele casaco de pele que não se abre, aquele calcanhar que não acaba de pisar –, ou se congela, como se fosse uma estátua, um retrato ou uma fotografia. Quadro

vivo.

Pesquisa

transcendental.

Dessexualização

de

Eros,

ressexualização de Tanatos. Experiência de suspense estético e dramático. Repetição como força terrível. Sentimentos mais profundamente vividos. Sensações e dores mais vivamente sentidas. Ritos de suspensão. Imaginação gelada. Misticismo perverso. Ancoragem na dor. Arte e disciplina do fantasma. Perfume carregado demais. Ar rarefeito e sufocante. Estranha atmosfera de ensino... Na magia desse cenário pedagógico, em que as cenas parecem ser fotografadas, estereotipadas ou pintadas, fixam-se ou dublam-se esculturas e quadros, ou desdobram-se nos espelhos e reflexos, o grande educador é Sacher-Masoch. A educanda não é ninguém menos do que a mulher-carrasco, a mulher espancadora, a mulher que surra. A relação pedagógica assenta-se sobre o contrato moderno, pelo qual o educador, ou o herói masoquista, persuade sua mulher, enquanto boa mãe, de se dar a outros. E a única vez em que

32 Deleuze fala em aprendizagem é aqui, quando apresenta, em sua crítica-e-clínica, o frio e o cruel do masoquismo i.

i

Gilles Deleuze. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1983.

33

Bestialogia

E se perguntarmos quando isso começa a ir mal? Até onde é preciso recuar? Será verdadeira a impressão de que isso vai mal desde o início? É que é preciso bastante disponibilidade para acreditar e muita boa vontade para agüentar. O que queremos mostrar é que, assim, talvez, estejamos nos contentando com bem toscos e mal diferenciados conceitos. Talvez, estejamos tomando meios de equivalência por sistemas de passagem e de transição. Caindo em todos os tipos de equívocos. Agora, se um diagnóstico diferencial entrar em jogo é toda uma outra história. Claro que não é da mesma maneira. Pensamos que não seria derrisório opor posições. Acreditamos que se pode tirar outras conclusões. Pois, apesar de tudo, elas sempre estiveram aí, a “rosnar, a zumbir sob a instância representativa” que as sufocava; e, por isso, se põem a “ressoar, em compensação, até o limite de ruptura”i. 1. Então, você... Dizem, não sei, contam de tudo, que, há exatamente cem anos, os seus contemporâneos ficaram chocados. Era uma indecência! Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidadei, você falava do chupar sensual, de puxar os lóbulos da orelha, das zonas erógenas, do vômito histérico, de clitóris e glande, sexo oral e animal, masturbação, auto-erotismo, hemorróidas, micção e constipação defecatória, erotismo anal e uretral, enurese e polução noturnas, comichões e alcalóides, secreções e vermes intestinais, membranas mucosas, banhos quentes, agitação mecânica ritmada, junção das coxas nas mocinhas, peles das nádegas, descarga de fezes, escopofilia e crueldade, sadismo e masoquismo, exibicionismo e voyeurismo, fetichismo, homossexualidade ou inversão, bissexualidade, transporte em carruagens e viagens de trem, beber e fumar, brincar ruidosamente e disputas verbais, ereção do órgão masculino e lubrificação da vagina, complexo de castração e inveja do pênis. Mas, você teria chocado os seus contemporâneos porque afirmou a existência de uma sexualidade infantil; e, acima de tudo, o caráter infantil de toda sexualidade humana. Ao dizer que, anteriormente, “nem um só autor reconheceu claramente a existência regular de um instinto sexual na infância”i, você atribuiu a si próprio uma recorrente e enfática descoberta da sexualidade infantil: “Já em 1896i eu insistia na importância dos anos da infância na origem de certos fenômenos importantes ligados à

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vida sexual, e desde então nunca deixei de dar ênfase ao papel desempenhado na sexualidade pelo fator infantil”i. Parece, assim, que, até você, existia uma tendência geral a considerar a infância como um período de felicidade perfeita e assexuada. E que, desde então, esse mito da assexualidade teria sucumbido junto ao mito do paraíso da infância. Ao menos, você garantia que era falsa a idéia sobre o infantil livre de pulsões sexuais: “A opinião popular tem idéias muito precisas a respeito da natureza e das características desse instinto sexual. A concepção geral é que ele está ausente na infância. Temos, entretanto, razão para crer que esses pontos de vista dão uma idéia falsa da verdadeira situação”i. Você assegurava, então, a gravidade das conseqüências dessa situação, ao afirmar: uma “característica da idéia popular sobre o instinto sexual é que ele está ausente na infância”; embora este seja “um erro que tem tido graves conseqüências”, dentre as quais, a “nossa atual ignorância das condições fundamentais da vida sexual”i. Só que você refez, no sentido inverso, o passo que acabara de dar. Jogou a infância num pântano luxuriante, feito de relações múltiplas e caprichosas entre infantis e adultos, ao deslocar o fator hereditário de explicação do funcionamento da vida sexual para a pré-história – como você a chamava – do indivíduo, isto é, para a sua infância. Acreditou que apenas um estudo completo das manifestações sexuais da infância revelaria as características essenciais do instinto sexual e mostraria o curso de seu desenvolvimento, de modo a sobrepujar, inclusive, a importância do fator hereditário. Afirmou o caráter infantil dos gêneros – “as disposições masculina e feminina”, que “são facilmente reconhecíveis na infância” – e a execrável invariabilidade masculina da libido, que escondia os verdadeiros problemas – “a libido é invariável e necessariamente de natureza masculina, ocorra ela em homens ou em mulheres e independente de ser seu objeto um homem ou uma mulher”i. Tanto mais terrível... Para desenvolver esse enfoque, você precisou desdizer os sexólogos da época, como Krafft-Ebing, Havellock-Ellis, Hirschfeld. Precisou deixar de lado a teratologia de Geoffroy Saint-Hilaire e ir além das ocorrências excepcionais, extravagâncias, casos horripilantes, anomalias, aberrações, depravação precoce – “ereções, masturbações e mesmo atividades que se assemelham ao coito”. Inclusive, você chegou a repreender os educadores, dizendo que eles temiam os instintos sexuais e estigmatizavam “toda manifestação sexual” dos infantis como um “‘vício’” ou como “’ruindade’ sexual”i. Além disso, recomendou que eles fossem cautelosos na escola, pois “o temor de fazer

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exames ou a tensão por causa de um trabalho difícil” poderia “provocar a irrupção de manifestações sexuais”, levando o infantil “a tocar os órgãos genitais”, ou ocasionando uma “polução noturna, com todas as suas conseqüências desnorteadoras”. Pensando a educação, de modo eminentemente sexual, você alertou: “O comportamento das crianças na escola, que apresenta ao professor um grande número de enigmas, deve em geral ser relacionado com sua sexualidade florescente”. Assim, para você, era um “fato inegável” que a “concentração da atenção numa tarefa sexual e o esforço intelectual em geral” produziam “excitação sexual”i. Garantindo que os fatores causadores da histeria remontavam à infância, você encontrou, na amnésia infantil, o ponto ideal para comparar os estados psíquicos dos infantis e dos adultos. Acreditou descobrir a existência regular da pulsão sexual na infância e o estágio infantil da sexualidade adulta neurótica calcado, exclusivamente, “nos resultados da pesquisa psicanalítica em adultos”, já que, “naquela época”, era “impossível utilizar amplamente a observação direta nas crianças”. Só em 1909, a partir do seu Pequeno Hansi, é que você pôde “vislumbrar diretamente a psicossexualidade infantil pela análise de alguns casos de doença neurótica durante os primeiros anos de infância”i. Embora, em 1905, você já tivesse defendido a gênese indiscutivelmente infantil da sexualidade: “Não só os desvios da vida sexual normal como também sua forma normal são determinados pelas manifestações infantis da sexualidade”i. Não duvidemos. Mesmo em 1908, no trabalho Sobre as teorias sexuais das criançasi, você estabelecera três fontes para a sexualidade infantil: a “observação direta do que as crianças dizem e fazem”; o que “neuróticos adultos conscientemente lembram de sua infância e relatam durante o tratamento psicanalítico”; e as “lembranças inconscientes traduzidas em material consciente, que resultam da psicanálise de neuróticos”. Você insistia que a primeira dessas fontes – a observação direta do que as crianças dizem e fazem – ainda não era suficiente para fornecer os elementos necessários ao esclarecimento das teorias sexuais, em função da atitude negadora da atividade sexual infantil por parte dos adultos. Ao aceitar a sua constatação de que a “observação direta das crianças tem a desvantagem de trabalhar com dados que são facilmente passiveis de má interpretação”, Melanie Kleini fez-lhe coro, e acreditou que, desde que os psicanalistas empregassem “um método equivalente à análise de adultos”i, os infantis poderiam perfeitamente produzir uma “neurose de transferência”; e que, “exatamente como no caso dos

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adultos”, surgiria uma “situação transferencial”. Já Anna Freud acreditava que não se deveria aplicar aos infantis um método terapêutico análogo ao empregado para adultos, pois o ideal do eu infantil ainda era muito débil. Anna reconhecia que, em situação terapêutica, os infantis eram “seres muito diferentes dos adultos”i. Ao passo que, para Melanie Klein,

no

inconsciente, os infantis não

eram, de modo algum,

“fundamentalmente diferentes dos adultos”; de modo que as “condições práticas e teóricas para a interpretação” eram “exatamente as mesmas que para a análise de adultos”i. Assim como os adultos, já nos primeiros anos de vida, os infantis “experimentam não apenas impulsos sexuais e angústia, como também sofrem grandes desilusões”. Tais conclusões eram obtidas por meio da “análise dos adultos”, que foi seguida pela observação direta das crianças”i. Embora esta observação viesse apenas comprovar os resultados obtidos pela técnica da análise de adultosi, revelando-se então uma analogia perfeita. Todas posições tristes de morrer... Não se deve dizer apenas que, assim procedendo, você sexualizou o infantil, em sua ausência, sem que ele participasse efetivamente dessa sexualização. O problema, ao mesmo tempo formal e político, é muito mais sério, e mais original também. Além de acabar inferindo o inconsciente infantil diretamente do adulto, você atribuiu-lhe toda uma sexualidade familialista, feita de pai, mãe, irmãos, avós. Com essa natureza avongueira, que nada arrisca, você produziu uma antropomorfia burguesa da sexualidade. E obrigou o pansexualismo infantil a ingressar nas fileiras do inadequado. Cá entre nós, quem é mesmo que tinha inventado esse paraíso assexuado, do qual falavam antes de você? De qual tipo de forças provinha o discurso da felicidade infantil assexuada? Da ausência de qual sexualidade se tratava? Será que não havia uma outra sexualidade infantil? E se, ao contrário do que você e seus contemporâneos pensavam, as pulsões, os instintos e os desejos sexuais estivessem atuando, desde sempre, nos infantis? A pergunta talvez seja esta: desde você, qual a sexualidade que se implantou e veio funcionando? Se essa sexualidade foi virada para o lado dos infantis, de que modo eles foram sexualizados? Sob quais condições, por meio de sua sexualidade, eles foram psiconeurotizados? Qual o uso operatório do que você fez? O que foi feito da sua produção? O que se fez com ela? O que ela fez em si mesma? Afinal, o que você acabou fazendo? 2. Com seu cheiro de morte

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Voltando-se para a infância, como chave-mestra para explicar a vida sexual adulta, você infantilizou o mito de Édipo-Rei, levando os infantis a entrarem no funil de um turbilhão: desejo da morte do rival, que é a personagem do mesmo sexo, e desejo sexual pela personagem do sexo oposto; ou, sob a sua forma considerada negativa, esses desejos apresentados de modo inverso. Você interiorizou o Édipo na família e o exteriorizou na escola, na comunidade, nas instituições. Povoou a infância de uma sexualidade patológica, edipianizou o seu inconsciente e tornou-o culpado, castrado, incestuoso: “impulsos sexuais da criança em relação aos pais, que, via de regra, já são diferenciados devido à atração pelo sexo oposto – o filho se sente atraído pela mãe e a filha, pelo pai”i. Asseverou que “o complexo de Édipo” era o “fenômeno central do período sexual da primeira infância”i. Comparou o infantil com as prostitutas, dizendo que elas “exploram a mesma disposição polimorfa, isto é, infantil, para as finalidades de sua profissão”i. Criou uma sexualidade predominantemente genital, na qual, até mesmo, o “pré-genital” estava referido: “Daremos o nome de ‘pré-genitais’ às organizações da vida sexual em que as zonas genitais ainda não assumiram seu papel predominante”i. Nessas ações de introduzir a sexualidade edipiana como ponto de partida e de chegada do humano, você promoveu o objeto e o sujeito do desejo, ensinou o infantil a ter medo da vida, manteve o desejo sob as leis da falta, da castração, do fálus. Leis que nutrem a culpabilidade daquele que obedece, desvelam a sua matriz num inconsciente fantasmático e filial, criam uma nova versão do ideal ascético, e mergulham o infantil num caldo de cultura da má consciência i. E, sobretudo, de uma maneira, que é insuficiente e que não oferece, aliás, nenhum interesse, encontramos a sua “posição de base”i. Qual seja, se foi você mesmo quem descobriu a sexualidade infantil, ao mesmo tempo, afiançou que, para se tornar um adulto normal, produtivo, o infantil deveria providenciar para que a sua libido fosse devidamente dessexualizada, sublimada, desviada para objetivos não sexuais: “O que descrevemos como o ‘caráter’ de uma pessoa é construído em grande parte com o material de excitações sexuais e se compõe de instintos que foram fixados desde a infância, de construções alcançadas por meio da sublimação, e de outras construções, empregadas para eficazmente conter os impulsos perversos que foram reconhecidos como inutilizáveis”i. Ao abandonar a teoria da sedução, voltar-se integralmente para o mito e infantilizar Édipo-Rei, você o reconstruiu como um complexo. Por meio deste

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complexo, inoculou uma elevada carga de culpabilidade sexual e criou o impasse de um fantasma individual privado. Tornou equivalentes o comportamento infantil e o de uma “mulher comum inculta em quem persiste a mesma disposição perversa polimorfa”i. Ao posicionar, assim, o infantil sob o jugo mortífero de Édipo, mais do que se transformar num “avô edipianizante”, você se transformou num “superego de grupo”. Ao posicionar o infantil no lugar amaldiçoado, você instaurou o Édipo como “limite interior, com todos os tipos de pequenos narcisos em volta”i. Foi dessa maneira que acompanhou de perto a posição religiosa-educacional de Comenius, o qual afiançava: “Todos estão corrompidos e tornaram-se abomináveis em todas as suas paixões”i. Você fez o pecado e a paranóia girarem ao redor de uma Santa Trindade, no quadro do Édipo, do Eu e da Família: eu-transa-com-papai-odeia-e-mata-mamãe; eutransa-com- mamãe-odeia-e-mata-papai. Ou, em vez de tais figuras, você deu margem para que essas ações fossem realizadas estruturalmente, como universais estruturais da subjetividade: no imaginário, na linguagem, na cultura. O que não mudou em nada o estado pecaminoso do infantil, nem alterou o postulado familialista e seus correlatos paranóicos: o personológico e o egótico. Há dois milênios, os infantis foram declarados pecadores; há um século, foram atraídos para a tentação de papai-mamãe-eu, desde quando já eram infantis culpados. Acontece que, embora você tivesse dito que estava abandonando a concepção sexológica e preferido a abordagem psíquica do sexual, desde o modo edipiano da sexualidade, você promoveu o que se mostrou mais persistente e abrangente: criou regras exegéticas para descodificar não só a sexualidade, mas todo o funcionamento da vida infantil, em si mesma ou em sua relação com a adulta. Você ensinou todos a olharem, escutarem e falarem da infância, sempre com uma chave descodificadora na mão: o que o infantil quer dizer? O que ele representa? O que ele significa? Qual a gênese infantil do que um adulto sente, faz, pensa, fala, escreve, sonha? Qual a origem infantil das dificuldades e qualidades adultas? Assim, você acabou criando uma potente máquina significantemente edipiana de infância. Uma máquina que não se farta de fazer prisioneiros. A sexualidade infantil, da qual você tanto falou, não diz respeito a qualquer sexualidade, em sua indeterminação e multiplicidade, mas tratou-se sempre de uma sexualidade unívoca. Nela, você introduziu o despotismo edipiano. E o que você pensou ter subvertido com uma mão codificou com a outra: “É por razões inconfessáveis que se nega a existência de uma sexualidade infantil, mas é também por

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razões pouco confessáveis que se reduz essa sexualidade a desejar mamãe e a querer o lugar do pai”. A sua chantagem consistiu nisso: ou se reconhecia “o caráter edipiano da sexualidade infantil” ou se abandonava “toda posição de sexualidade”i. Você edipianizou o infantil, cortando-lhe outras possibilidades de sexualidade, que investissem o campo social, através dos seus amores, em suas determinações econômicas, políticas, raciais, históricas, culturais, etc. Ou seja, a sua – que passou a ser nossa também – questão não foi reconhecer a sexualidade infantil, mesmo porque ela sempre existiu, de modo diferente, em cada tipo de socius, mas reconhecer tal sexualidade como exclusivamente edipiana. Assim, a psicanálise, esse “novo avatar do ‘ideal ascético’”i, criado por você, colou à pele do infantil todas as famílias artificiais e toda “podridão edipiana”i. Levou a terra pantanosa do Édipo, com seu cheiro de morte, a deixar de delirar a história, os continentes, os reinos, as raças, as culturas. Ficaram fora de cogitação... 3. Órfão, anarquista e ateu Você... – E que erro, por tantas páginas, ter dito “você”. Pois, quando se diz “você”, trata-se apenas de um nome mal fabricado, de um pronome de tratamento para toda a psicanálise. Só que não apenas para ela, também para o que vem de alhures e de mais profundo, feito de forças mais potentes, mais subterrâneas do que você, do que a psicanálise, do que a ideologia, do que a família, do que o eu. Forças que pretendem vencer as do desejo infantil e levá-las à resignação infinita. Forças que buscam substituir tudo o que é ativo, agressivo, produtivo, conquistador e artista no próprio inconsciente, que é, por natureza, infantil; portanto, “órfão, anarquista e ateu”i. Então, de novo... – Você e a psicanálise são muito representativos e representam unidades muito grandes, conjuntos estatísticos, molares. Vocês são muito interpretativos e interpretam demais o significado e o significante. Vocês inventaram “um último padre”i e “a formação de um novo tipo de padres, animadores da má consciência”i. Padres (poderia ser outro o seu nome?), que nos ensinaram a interpretar, enquanto “nossa maneira de acreditar e de ser devoto”i, e que nos fizeram retomar crenças antigas em nome de uma estrutura do inconsciente: “Somos ainda devotos”i. Não foi à toa que você afirmou que a questão da sexualidade infantil não poderia ser mais bem expressa do que por

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E.D.Dekker, um escritor holandês do século XIX, que assinalou: “A criança já peca enquanto os pais acreditam que ela desconhece o pecado”i. Que ventura aventurosa! Outra vez... – E não foi nem a psicanálise que inventou Édipo. Ela se contentou em vivê-lo, desenvolvê-lo, confirmá-lo, dar-lhe uma forma médica e altamente mercantil. Havia, nela, muitos interesses em jogo: prosseguir com as crenças, pôr a morte no desejo, exaurir os fluxos infantis, bloquear as conexões sexuais. 4. Mais do que fartos Assim, recaímos sempre na falsa alternativa a que Édipo e sua estupidez sentimental nos conduziram. E é alocados dentro dessa máquina religiosa-moral, constituída por uma verdadeira “psicologia de padre”i, que dizemos agora a você: não podemos mais suportar isso – embora não fujamos disso porque sabemos “fazer fugir aquilo de que foge”i. Estamos mais do que fartos desse seu esquema que serve para tudo. Mais do que fartos dessa bestialogia da sexualidade infantil. Estamos enojados dela, do Édipo e da castração, do simbólico e do imaginário. Enojados de carregar o peso de um complexo ou de uma estrutura de Édipo, tanto faz. Dos obrigatórios sentimentos de ódio e de rivalidade em relação a um genitor e de amor pelo outro. Do pegajoso amor e da pesada sensação de culpa em conexão com o genitor rival. Nauseados de sentidos e metas, de significantes despóticos, de tantas paixões tristes que recaem sobre a sexualidade edipiana: da ansiedade depressiva, da ansiedade persecutória, da posição paranóide, da voracidade, da inveja, dos impulsos destrutivos. Nauseados, porque a sexualidade humana, da qual você tanto falou, nada mais é do que um conjunto unificado e identificado pelo Édipo. Porque a bestialogia do pequenoÉdipo nada mais é do que uma forma de julgar a vida, de depreciar a vida, de conjurar a vida, de amarrar a vida a pesos, por meio da repetição e da volúpia do fantasma, de equipará-la à morte. Vida mortificada. Não podemos mais seguir... O que aconteceu foi que você não apenas erigiu uma explicação totalizadora para a infância. Ao contrário, ao ser tentado pelo mito e pela tragédia, armando o alçapão edipiano, você não andou no contra-fluxo de seu próprio tempo, não; você, simplesmente, seguiu o fluxo de um dispositivo de infantilidade pouco estranho, vindo do cristianismo. Coube a você ter liberado esse paradoxo situado entre a teologia e a ciência. Tocou a você continuar a tarefa paulina, aproveitando-se de nosso medo da loucura e da morte, de nosso horror da finitude e do esquecimento, para, ao invés de

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atribuir um caráter científico à sexualidade, legar-nos as crenças murchas e secas de um padre, no mais caro exemplo de como a ciência pode ser também religiosa. Com a psicanálise, você deu continuidade ao que a religião iniciara: o infantil como cria do pecado. Ao derivar o pequeno-Édipo do adulto, como a religião derivara já os pequeninos dos grandes pecadores, a concepção prosseguiu não sendo imaculada. Como o “psicanalista com seus três princípios: Prazer, Morte e Realidade”i, você foi a figura mais recente do padre, que propagou a religiosidade, sob a forma da má consciência generalizada, correlata indispensável do capitalismo. Você laicizou a religião, pela via do familialismo edipiano, fazendo-a penetrar no Estado e investindo-a em todo campo social. Por isso, é tão curiosa e, ao mesmo tempo, tão aterrorizante a aventura da psicanálise. Justo ela, que “deveria ser um canto de vida, sob o risco de não valer nada”. Ela, que, praticamente, “deveria nos ensinar a cantar a vida. E eis que emana dela o mais triste canto de morte”i. O erro da psicanálise, como máquina de esmagar o desejo, foi rebater toda a produção social sobre a ordem familialista edípica. Foi apagar o conteúdo social, político e cultural da sexualidade infantil. Foi não ver que “o pai é primeiro em relação ao filho”. Foi não reconhecer que “os investimentos sociais são primeiros em relação aos investimentos familiares”, por nascerem da aplicação e do rebatimento daqueles. Foi não identificar a culpabilidade do filho do pecado como “uma idéia projetada pelo pai antes de ser um sentimento interior experimentado pelo filho”; já que “Édipo é primeiro uma idéia de paranóico adulto, antes de ser um sentimento infantil de neurótico”; já que é “o pai paranóico que edipianiza o filho”i. O erro da psicanálise foi fazer como se as coisas começassem com o infantil, ao invés de começarem pelos adultos: “A história não começou na cabeça das crianças que desejam o lugar do pai, mas no medo deste, que diz: ‘O que desejas é a minha morte’! O Édipo é uma idéia de paranóico, e por ele a família é, mais do que alienada, alienante”i. Pois, se não, pensemos: como é que podemos, após cem anos, continuar a ser devotos desse tipo de sexualidade? Como é que ainda transmitimos aos recém-nascidos o Édipo em estado puro? Como podemos continuar tão edipianamente sentimentais e choraminguentos? Como arrastamos ainda tantos cadáveres, dentre eles, o de um imenso desejo deprimido de que não somos amados o bastante? Como é que continuamos doentes de Édipo? Como é que prosseguimos com nossas crenças na bestiologia do pequeno-Édipo? Crenças que sobrevivem ao século, que cheiram mal,

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que cheiram ao pequeno Eu, ao grande Outro. Trata-se de ficarmos “sozinhos com a nossa má consciência e nosso tédio, nossa vida em que nada acontece”i? Trata-se do nosso medo diante dos infantis? Esse medo talvez seja o único elemento que explique o culto restaurado de Édipo e da castração, as crenças e as representações, a grande lição da falta, a menos-valia de ser e a mais-valia da renúncia. Cenas de teatro. Neo-idealismo da sexualidade. Operação perversa. A psicanálise continua se incumbindo de fazer acreditar aqueles que ainda não acreditam. Não podemos mais suportar religiões, valores, morais, pátrias, mitos, tragédias, certezas, que traduzem o infantil segundo o código do Édipo. Não podemos mais suportar a falsa alternativa, onde Édipo nos leva: ou, ele diz, vocês abandonam toda posição sexual, ou vocês me reconhecem e fazem de mim a morada sexual da libido, e de papai-mamãe o máximo do erotismo. “Pois não é nem mesmo a infância que é edipiana; ela não o é absolutamente, não tem a possibilidade de sê-lo. O que é edipiano é a abjeta recordação de infância, a tela”, as “velhas fotos”, as “recordações-tela” que “fazem da infância um fantasma regressivo para uso dos pequenos velhos”i. Desidiapinizar o amor demasiado humano. Blocos recorrentes de infância, que reintroduzem as máquinas desejantes: é disso que se trata. 5. Os vivos não são crentes Só que ainda não se viu tudo, porque “os vivos não são crentes”i. Apenas nos podem acusar de um único crime medonho: o de não viver plenamente a vida. Mas, não se preocupem: não fomos nós, os infantis, que inventamos as teorias sobre a copulação violenta, o nascimento pelo ânus e o determinismo sexual. Somos os depositários de uma longa tradição religiosa, pela qual nos consideraram filhos do pecado da carne. Pecadores, somos todos, inclusive os infantis, afiançou Comenius. O próprio Satanás, para vingar-se de sua condenação, sempre quis nos destruir, enquanto “as arvorezinhas de Deus”, ferindo-nos de várias maneiras com “as suas fraudelentíssimas maquinações” e, “com o veneno infernal (dos exemplos das várias impiedades e dos maus instintos)”, quis nos infectar “até às raízes”, para que secássemos de todo e caíssemos, ou, ao menos, murchássemos, definhássemos e nos tornássemos inúteisi. Por isso, deveríamos ser educados. Rousseaui já mostrara que não se poderia forçar a nossa natureza, mas, também, que não poderíamos ser educados sem ser desnaturalizados. Para isso, a lei dos pedagogos deveria ser inflexível como uma lei natural. Uma questão de nos educar

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negativamente. Ou seja, uma educação negativa que considerava a nossa natureza da mesma ordem que a Natureza, dotada de incompletudes, deficiências e falhas. Cabia à educação nos suplementar, isto é, suprir a nossa natureza, e fazer com que ela nos fosse útil. Assim, seríamos salvos pela suplência pedagógica da carência natural. Mas, para que isso acontecesse, era essencial que a nossa sexualidade fosse constantemente vigiada. Obsessivamente, Rousseau aconselhava aos pedagogos: “’Atentai portanto com cuidado para o jovem. Ele poderá defender-se de tudo mas cabe a vós defendê-lo contra ele próprio. Não o deixeis sozinho nem de dia nem de noite, dormi ao menos no quarto dele”i. Hoje, sabemos porque o onanismo, por tanto tempo, foi considerado altamente perigoso. Porque ele fazia entrar em jogo o que parecia ser um excesso de desejo i. Desviava nossas vidas da verdadeira finalidade da sexualidade, tomada em sua vertente heterossexual, ou seja, a reprodução. Se continuássemos sendo onanistas, realizaríamos a perversão do desvio do fim. Rousseau foi um outro precursor das teorias sexuais, ditas infantis, que Freud pensou ter identificado, por vez primeira, e que Bentham já tecera como a rede da invisível natureza moral dos criminosos. Todos eles, fazendo eco ao cristianismo, atribuíram a masturbação infantil à ausência de maturidade. Falaram muito mal do auto-erotismo e a ele contrapuseram a concepção higiênica da sexualidade, convertida em instrumento pedagógico, que se dedicava ao domínio do próprio corpo para usos conjugais, de modo a investir uma formação social que melhor conviesse à ordem reprodutora. Desse modo foi que a nossa sexualidade surgiu como produto da repressão consentida do desejo. Ao menos, a psicanálise foi até o fim. Aquele estado de suposta inocência, com o qual todos nos observavam, implicava brincadeiras e jogos, mas desde que não fossemos nós quem fixasse as regras e distribuísse os prêmios. Foram vocês que criaram nossa sexualidade e a cercaram do “pequeno segredo sujo”, que emergia do inconsciente edípico. Foram também vocês que encontraram um “meio médico de torná-lo público, de fazê-lo o segredo de todos e cada um”i. Por isso, vocês e seus problemas perverteram a nossa sexualidade. Por isso, a nossa sexualidade – que era um problema de fluxo, não um segredo de Polichinelo que tinha uma origem edipiananarcísica – já surgiu pronta, desde o início, pervertida, como um pequeno monstro, como se fossemos adultos apequenados e que possuíam como única possibilidade de desejar a admissão à lei do Édipo.

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Nada, nem o sexo, nem a famosa latência, separou vocês de nós. Um nasceu em face do outro, no negativo do outro. A nossa inocência pareceu, definitivamente, sexualizada pelo fator edipianizante. A nossa sexualidade foi inscrita no quadro de Narciso e de Édipo, do Eu e da Família, terra edipiana por excelência. Por que alguém poderia, então, se horrorizar pelo fato de que nos excitemos, tenhamos libido, gozemos? A psicanálise deu continuidade à religião, embora seja difícil, para os psicanalistas e pedagogos de inspiração psicanalítica, admitir que ela é a religião moralizada. Tal posição colaborou para que a nossa ameaça fosse permanente: somos a prova viva de que os adultos cometeram o pecado sexual e incestuoso. O pequeno-Édipo revela a “missão da família” que “é produzir neuróticos pela sua edipianização”i. Revela a nossa persistência em vocês, ao mesmo tempo em que colabora para destruir o nosso próprio mitoi. A psicanálise não enfocou vocês como modelados por nós e a partir de nós, mas a nós como estruturados por vocês, cujo desenvolvimento se realiza nos marcos que vocês prepararam. Há uma penetração nossa em vocês, e vocês nos induzem à sua imagem e semelhança. O Édipo é o exemplo privilegiado dessa infantilização adulteradora. É somente O anti-Édipo que sustenta a tese da anterioridade de vocês com respeito a nós mesmos e da projeção constante sobre nós das limitações de vocêsi. Para nós, nunca é possível a revelação de nada que vocês não tenham submetido à lei edipiana, que ordena ao nosso desejo: – Não saiam jamais do círculo de papai-mamãeeu! O ponto de autocrítica do pequeno-Édipo é aquele em que descobrimos o seu avesso como um princípio positivo de não consistência que acaba por dissolvê-lo. Eis chegado o momento de raspagem do inconsciente edípico, de destruição do eu, de borramento do fantoche do infantil, da culpabilidade, da lei, da castração. 6. Agora, vamos rir Como tudo isso não nos faria rir? Agora, vamos rir. Não invocaremos nenhuma vingança, nenhum ressentimento, porque não é sobre essa terra que nascemos nem é nela que vivemos. Tampouco, sabemos como lidar com a angústia anti-sexual múltipla de vocês, nem se ela os seguirá ainda. E, falando a verdade, isso não nos interessa nem um pouco, pois o que ela é, a não ser Édipo ainda, e tanto mais virulento? Achamos que seria bem mais produtivo e, inclusive, preferível, se vocês perguntassem acerca de quais são os nossos amores na contemporaneidade. Pois, é sempre “com mundos que fazemos amor. E nosso amor se dirige a essa propriedade libidinal do ser amado, de encerrar-se

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ou abrir-se sobre mundos mais vastos, massas e grandes conjuntos”. Assim, as “pessoas a quem dedicamos nossos amores, inclusive as pessoas parentais, só intervêm como pontos de conexão, de disjunção, de conjunção de fluxos cujo teor libidinal de investimento propriamente inconsciente elas traduzem”i. Somos aqueles que, primeiramente, formamos bandos portadores de fluxos de vida, antes do que duplas heterossexuais. O nosso sexo é neutro e a nossa sexualidade está em toda parte, num regime de dispersão dos seus elementos moleculares. Enriquecemos vocês em vez de infectá-los. Já a moral de vocês é que ambiciona que sejamos ou assexuados ou sexuados pelo Édipo. Não temos nada a ver com a falta no desejo, mas com o modo da presença do desejo na multiplicidade. Constituímos verdadeiras falanges de enfants libidinosos que resistem a se deixar dessexualizar. Existimos misturados a vocês, ainda mais, em ações alheias a Édipo. Embaralhamos “todos os códigos” e desfazemos “todas as terras”i. As “grotescas interpretações pedagógicas”i, que nos edipianizaram, enquanto perversos polimorfos, foram formuladas por vocês apenas para tranqüilizar-lhes. Elas exigiram a sublimação de nossos atos, só que estes transbordam toda normatividade sexual e as concepções evolutivamente normativas de nossa sexualidade. Sexualidade livre, que não se confunde nunca com a reprodução edípica e se adapta apenas ao princípio do prazer. – Sem dúvida, é um erro ficar opondo essas dimensões: vocês e nós. Trata-se mais da diferença entre dois tipos de coleções, arranjos, conexões e interações. Vocês e nós nunca deixamos de passar de um a outro pólo. Entretanto, sabem, por acaso, quem são os “inimigos naturais”i da nossa sexualidade? Ora, ninguém menos do que os pais e os mestres, como humanistas, abstratos, fantasmáticos, solipcistas, a quem abjuramos. Vêem que o Édipo foi pedagogizado por meio da exclusiva genitalidade heterossexual? Reconhecem que foram vocês os criadores da psicose social anti-sexual e duma pedofilia pedagógica? Identificam que, no admirável interesse pedagógico, que nutrem por nós, há sinais de uma verdadeira pederastia, que explicaria melhor a dedicação de vocês à nossa educação do que a paternidade ou a maternidade substitutivas? Vocês querem dominar seres imaturos ou é Édipo em profícua ação? Vocês se pretendem vazios de desejo para melhor aplicar as suas canhestras metodologias e seguir o seu curso rechaçado de qualquer erotização? Vocês ainda têm dúvidas sobre se Emílio e Rousseau ou Rousseau e Sofia foram amantes?

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Vocês são os tiras dos outros e de si mesmosi. Seres paranoicamente sexuados, aborrecidos e segregadores da morte. Nós somos senhores cansados do permanente triunfo de escravos. Vocês ajustam contas com a própria infância, é certo, mas odiandoa até a morte. Projetam fantasmaticamente um ser maleável que desejaria a interrupção do próprio desejo. Vocês estão loucos! Não nos encontramos imobilizados no Édipo. Somos alegria pura demais para isso. Arrebentamos o cano imundo das falsidades familiares. Fazemos passar um dilúvio de derivas misteriosas. Liberamos fluxos que escorrem prazeres. Recortamos esquizas e somos enrabados pelo socius civilizado. Nossos corpos porosos podem ter nascido do pecado, mas o pecado foi, justamente, o gozo de vocês. Inocentemente anedipianos como somos, por que deveremos viver e morrer como criminosos? Por um lado, a nossa culpabilidade, do outro, a absolvição de vocês: são arcaísmos, embora com função atual. Somos os pequenos culpados, sempre, tanto mais culpados quanto mais estritamente obedecemos. Vocês dizem, há muito tempo: – É por tua culpa que eu sou neurótico e infeliz! Porque desejaste tua mãe e quiseste matar teu pai. É por tua culpa que eu pequei! Ora, podem deixar disso! O inconsciente já foi devidamente destriangularizado! Nossa hora já chegou, investida de sua potência absurda. Hora de explodir a soldadura entre o mito e a sexualidade, o que libertou nossos n sexos. Fomos, então, lançados “numa empresa totalmente diversa, órfã, montando uma máquina desejante infernal”, pondo o nosso “desejo em relação com um mundo libidinal de conexões e de cortes, de fluxos e de esquizas”, “atravessando, misturando, subvertendo estruturas e ordens, mineral, vegetal, animal, infantil, social”, desfazendo “as figuras derrisórias de Édipo, levando sempre mais adiante um processo de desterritorialização”i. Mas, não se trata somente de sexualidade infantil. Trata-se de política, é claro, como um jogo essencialmente ubíquo. 7. Mais um esforço! Na verdade, não dissemos nem o centésimo do que era preciso dizer contra a psicanálise, sua burocracia, sua tirania. Nefasta! Apesar dela, a hipoteca da nossa produção desejante é levantada. A potência revolucionária da nossa sexualidade é assumida e não mais reduzida às coordenadas narcísicas, edipianas e castradoras. Introduzimos deformações, convulsões, explosões nos inesperados fluxos presentes em tal posição. Mas não zombemos deles! Não é nada fácil nos desidipianizar, nos desfamilializar, nos dessubjetivar. Para isso, puxamos linhas de singularidades

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anedipianas e nos recusamos a continuar respondendo afirmativamente à pergunta clássica da má consciência: – Você não tem vergonha de ser feliz”i? Freud errou redondamente: nossa sexualidade saiu, sim, da família. Transbordou, escorreu para as imagens sociais, nas linguagens eletrônicas, ganhou o espaço aberto. Mas, o que ainda estamos fazendo é limar as paredes, passar pelas paredes, atravessar as paredes, para, nos limites, instaurar cortes estranhos que transbordam e quebram as condições de nossa identidade sexual. Fazemos uma “dessubstancialização e desmistificação simultâneas da sexualidade, que já não tem nem substância precisa nem sentido”i. Enxameação infinita: eis o empreendimento. O nosso desejo como produção efetiva, ensaio, experimentação, mobilidade, abertura da vida para a intrepidez de perspectivas infinitas, que ainda se batem contra as famílias que brincam de Édipo. Deriva do desejo, não mais restrito à cama de papaimamãe, inconsciente não mais familializado nem divanizado, que rebate a libido sobre o papai-mamãe-eu, mas em busca de algo que é cósmico. Onde o desejo age, há grande alegria, produção, criação, felicidade, transformação do mundo. Fim da cena primordial! Vontade de criar, de viver, com entusiasmo, a novidade, a diferença e a singularidade. Inocência verdadeira das crianças de Heráclito e de Nietzsche. Vocês insistem em retornar ao tema do pequeno-Édipo, à atualização desse tema, a um fazê-lo concreto, pois compreenderam bem demais as lições da psicanálise. Só que vocês não encarnam mais o déspota infantilmente sexuado e nem são mais “reais inocentes ou mesmo vítimas”i. A psicanálise cede o seu lugar familialista à imanência do mundo e nós deixamos de ser os tarados da família. Um único consolo: vocês deixam de estar “doentes” da “infância”i, apenas na medida em que emitimos, recebemos, interceptamos, nos deslocamos vertiginosamente, fugindo de vocês e de nós mesmos, em movimento permanente. A não ser que vocês, ridiculamente restritos, aceitem continuar sendo agentes do ressentimento contra o nosso desejo, e optem por prosseguir com a triangulação humilhante e aviltante. Infelizes, do lado de vocês, decidí: querem deixar de ser fascistas? De nosso lado, bradamos: – Infantis, mais um esforço, se quiserem ser revolucionáriosi!

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i Gilles Deleuze e Félix Guattari. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia [1972]. [AE] Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p.375. i Sigmund Freud. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade [1905]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.VII. i Ib., p.177-178. i Sigmund Freud. Hereditariedade e a etiologia das neuroses [1896]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.III. i Três ensaios..., p.180. i Ib. p.135. i Ib., p.177. i Ib., p.225-226. i Ib., p.184-185. i Ib., p.209-210. i Sigmund Freud. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos [1909]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.X. i Três ensaios..., p.199. i Ib., p.218. i Sigmund Freud. Sobre as teorias sexuais das crianças [1908]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.IX, p.213. i Cf.: 1) Melanie Klein. O sentimento de solidão: nosso mundo adulto e outros ensaios. Trad. Paulo Dias Correia. Rio de Janeiro: Imago, 1971; 2) __. Psicanálise da criança. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Mestre Jou, 1975. 3) __. Narrativa da análise de uma criança: o procedimento da psicanálise de crianças tal como foi observado no tratamento de um menino de dez anos. Rio de Janeiro: Imago, 1994; 4) __, Joan Riviere. Amor, ódio e reparação. Trad. Maria Helena Senise. Rio de Janeiro: Imago, 1970. i Melanie Klein. Psicanálise..., p.20. i Melanie Klein. Contribuições à psicanálise. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Mestre Jou, 1970, p.199. i Ib., p.204. i Psicanálise..., p.25. i Ib., p.207. i Ib., p.233-234. i Sigmund Freud. A dissolução do complexo de Édipo [1924]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.XIX, p.217. i Três ensaios...,p.196. i Ib., p.204. i Cf. AE, p.155, ss. i AE, p.454. i Três ensaios..., p.246. i Ib., p.196. i AE, p.444. i João Amós Coménio. Didáctica Magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Trad. Joaquim Ferreira Gomes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1985, p.69. i AE, p.132. i Ib., p.342. i Ib., p.343. i Cf. ib., p.394. i Ib., p.146. i Ib., p.421. i Ib., p.217. i Ib., p.388. i Sigmund Freud. O esclarecimento sexual das crianças (Carta aberta ao Dr. M. Fürst) [1907]. Trad.Jayme Salomão. In: __. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. V.IX, p.138. i AE, p.342. i Ib., p.433. i Gilles Deleuze, Félix Guattari. 28 de novembro de 1947 – Como criar para si um corpo sem órgãos. Trad. Aurélio Guerra Neto. In: Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996, p.16. i AE, p.420. i Ib., p. 347; p.349. i Jacques Donzelot. Uma anti-sociologia. In: Manuel Maria Carrilho (org.). Capitalismo e esquizofrenia (Dossier sobre o AntiÉdipo). Trad. José Afonso Furtado. Lisboa: Assírio & Alvim, 1976, p.184. i Ib., p.390. i Ib., p.496. i Ib., p.377. i Didáctica magna..., p.67. i Jean-Jacques Rousseau. Emílio ou da educação. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1992. i Ib., p.396. i Cf. René Shérer. La pedagogía pervertida. Trad. Jerônimo Juan Mejía. Barcelona: Laertes, 1983. i AE, p. 342; p.444-445; p.470. i Ib., p.459. i La pedagogía..., p.54. i Ib., p.55. i AE, p.372. i Ib., p.417. i La pedagogía..., p.86. i Friedrich Nietzsche. O viandante e a sua sombra [1880]. Trad. Heraldo Barbuy. São Paulo: Brasil, 1939, §267, p.170. i AE, p.440.

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Ib., p.496. Ib., p.342 [variação]. i Uma anti-sociologia, p.159. i AE, p.344. i Ib., p.345. i Gilles Deleuze. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Taurus, 1983 [variação].

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O currículo

O que é realmente currículo quando você diz o currículo? Alvo delicado. Curiosa a vida do currículo. Estranha toda a atmosfera de. Toda sorte de tempo, todos os lugares, toda hora. Nenhuma vontade própria? Ninguém. O improviso deve turbilhonar por sua causa. Pena perturbá-lo. O caráter dele. Alguma coisa acontecendo: algum currículo. Um fazer tão cheio. Como chamá-lo? Nomes: selvagem, bárbaro, civilizado. Primitivo, despótico, capitalista. Lugares: selva, deserto, capital. Aldeia, cidade, rede. Personagens: Jocasta, Laio, Édipo. Modos: corpo, memória, axiomática. Ligações: fetiches, ídolos, simulacros. Afectos: crueldade, terror, cinismo. O anti-Édipoi força a pensar. Até em currículo. – Boa idéia? Falar sobre onde se esteve. Costumes estranhos. Ar. Água. Fogo. Neve. Sol. Festas, profissões, desportos. Arte. Ciência. Filosofia. Abandono da má consciência. Dos dispositivos de negatividade e culpabilização. Maldito seja o pensamento depressivo. Não mais crispações humanistas. Sempre os fluxos fugindo. Grande corpo social. Corpo sem órgãos: forma reterritorializada: socius. Cada sociedade produz um. Cada um produz currículo. Tipos gerais: mais do que representações de uma sociedade. Há uma história universal do currículo. Produção desejante. Relações entre desejo e poder. Entre socius e máquinas desejantes. Não evolucionistas. Coexistência: numa formação social. – Feche seus olhos e abra a sua boca. O quê? Barragens e canais. Válvulas mitrais. Energia perfurante. Intensidades viajantes. Inevitável preço da aventura. Multiplicidade funcional. Terra miraculada. Explosão. – Enfim, rir. Mais dança e menos piedade. 1. Da crueldade Era-se mais feliz então. Ou será que não? Ou agora se é? Você voltaria para lá? Apenas começando. Voltaria? De qualquer forma não. Inútil voltar atrás. Mesmo impossível. – Por que? Alguma razão. Ainda bem anterior ao capitalismo. Abra seus olhos e feche sua boca. Talvez para. – Sim. Foi o que pensei. Chegou. Vale o quê? O corpo pleno da terra. A inegendrada. Úmida ou areenta. Grande e doce mãe. Força de gravidade. Indispensável à codificação dos fluxos. E entoa: – Como o tempo voa, heim? Onde é que está agora? De que tipo é a máquina curricular? Influxos germinais de intensidade. Sinergia entre humano e máquinas. Técnicas: prolongam a força. Social:

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humanos: peças. Abstrata: o desejo. – Quais os seus usos? Única questão. Conexões com as máquinas desejantes. Coeficientes variáveis de afinidade entre. Disso depende. Fluxos todos codificados: de mulheres e crianças, rebanhos e sementes, esperma e menstruação. Deriva histórica e coletiva. Meio-ambiente é habitat. – Veja agora. Vou ver se posso. Ali o tempo todo. E sempre estará, por todos os séculos. – Esqueça. Basta devagar. Organiza disjunções inclusivas sobre molécula gigante (Numen). Distribui estados, segundo domínios de presença ou zonas de intensidade. – Pronto! Concebido na escuridão. No cheiro bom molhado terroso. Elementos moleculares de um microinconsciente. Mas que não existe independentemente das formações sociais macroscópicas. Resistente à centralização do poder. Representação é sempre repressão: recalcamento do desejo. Um sistema. Primitivo. Perverso, por certo. Marca os corpos com traços de fogo. Escreve alfabeto nos corpos. Um geografismo. Palavra falada: signo plurívoco: também a coisa designada. Grafismo conectado à voz. Ordem de conotação. Abraão. Isaac. Jacob. Mitos das origens autóctones. Dogon. Iniciações rituais. Dor é um prazer para o olho. Mais-valia que o olho tira. Teatro da crueldade. Voz. Signo na carne crua. Olho que goza. Ferros. Domar. Marcar. Tornar capaz de aliança. Formar na relação credor-devedor. Nietzsche etnólogo. Como pagar com sofrimento? Equação da dívida: dano causado = dor a sofrer + olho avaliador. Maisvalia de código: compensa relação rompida entre voz de aliança e marca que não penetrara suficientemente. Código: memorizado no corpo. Tatuar. Cortar. Escarificar. Mutilar. Cercar. Iniciar. Nada escapa: nem o prestígio do chefe, nem a riqueza dos comerciantes. Relações de parentesco codificam fluxos de deuses, pessoas, privilégios. Não privatização dos órgãos. Família: uma práxis. Estratégias de aliança e filiação: estreitamente codificadas. Jogo. Dívida compõe alianças. Ela é a unidade de aliança. Codifica fluxos. Condiciona filiações. Aliança-dívida: trabalho pré-histórico da humanidade. Mnemotécnica terrível. Economia libidinal de prazer e dor. Mais adiante: memória de palavras: – Eu devo. Então, esquece-se a terra. Memória delas recalca a bio-cósmica. Moralização. Desponta: economia de mercado. Desmoronamento do modo este. – Currículo territorializante? Ele perscruta e proclama asperamente: – Em mim, só o desejo e o social. Aliás, como nos outros. Simples, reles. Mas, ele tem de fazer isso. Ele tem de fazer alguma coisa. Essa é a parte divertida do pré-Estado. Uma lava: invasão de fluxos decodificados. Tinha de ser. Ela. – Desfiguração? A mesma coisa atenuada. Nada vazia. Tênue. Eles chegam como a fatalidade. – Morto! – gritam. – Não!

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A morte vem de fora. É só outra coisa que se vai passar. Ó coisa maravilhosa! Depressa. – Ahã. Mais um momento. Uma formação social se apropria e, de modo abrupto, se reconfigura nas velhas instituições ou revive práticas pela recombinação seletiva de seus propósitos. Os propósitos de uma formação social são recombinados seletivamente. Reconfigurada nas velhas instituições. Apropria-se. Práticas revividas. De modo abrupto. 2. Do terror Não se sabe muito sobre isso. Perda de tempo? Conservação derrisória. Se tinha que ser foi. Primeiro grande movimento de desterritorialização. – Então, é começo? Não é primitivo: origem e abstração: essência abstrata originária. Unidade superior transcendente que se apropria da mais-valia dos códigos territoriais. Supõe adesão dos corações. Artistas da violência de olhos de bronze. Catástrofe. Vinda do exterior. Nietzsche genealógico. Faraó. Novo Testamento. Mitos de origem divina. Novo socius de inscrição: corpo do déspota: fonte, estuário. Terra. Não mais. Nova aliança: déspota com o povo. Direta. Nova filiação: direta: déspota com Deus. Precisamente aquele que diz – Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Megamáquina de Estado. Motor imóvel. Pirâmide funcional. No ápice: déspota. Na base: camponeses: peças trabalhadoras. Aparato burocrático. Devem seguir. Aparelho curricular: coextensivo ao campo social. O déspota e seu exército. O conquistador e suas tropas. O santo homem e seus seguidores. O anacoreta e seus discípulos. Cristo e São Paulo. Máquina do estranho. Grande máquina paranóica. Império: nasce. Pode ser militar. Pode ser conquista religiosa. A terra se torna um asilo de alienados. Currículo: julga a vida: permite sobrevoar a terra. O déspota institui a lei. Punições: de festivas a vingativas. Reprodução passa pelos fatores não econômicos do parentesco. – Terror, terror sem precedentes! Destruição. Sistema de crueldade: sobrecodificado pelo terror. Fluxos primitivos empurrados até a embocadura. Obsessão da decodificação é conjurada pela sobrecodificação: essência do Estado. Nenhum órgão, nenhuma vagina devem escapar ao déspota. Segunda inscrição. O corpo imóvel, imutável, monumental se apropria das forças e dos agentes de produção. O cão-Estado e os fundadores de. Significante despótico. Imposição através da fala. Grafismo: arbitrariedade do signo remete à questão exegética: – O que é que o déspota quis dizer? Questão que faz nascer: – O que é que isso quer dizer? Morte de: – Como é que isso funciona? Currículo: introdução à falta, à castração, à perda do objeto total. Blocos de dívidas: sob a forma de tributos.

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Dívida se torna infinita pela invenção da moeda. Dinheiro: forma indissociável do Estado. Impostos: alarga o regime das dívidas: torna-o mais forte. Estado credor: interminável. Em vez da dívida móvel e finita. Dívida para a vida toda. Dívida de existência. Interiorizada e espiritualizada. O credor ainda não emprestou nada. E o devedor já está pagando. Emprestar é uma faculdade. Pagar é um dever. Representação imperial: mais estrangeira: mais definitiva. Déspota faz escrita: legislação, contabilidade, historiografia. Não mais conotação. Ordem de subordinação. Signo gráfico: privado das múltiplas conotações. Uma só transcrição da voz: som associado à significação. Som e conceito correspondente. Relação unívoca. Significados fixados. Pela autoridade transcendente. Lei da regularidade lingüística. Sonho do significante transcendental. Sempre despótico. Saussure. Uma voz muda do alto. Uma voz. Muda. Do alto. – O que o currículo quer dizer? Sempre remetido. Pode ser à religião, à ciência. Hora da má consciência se aproxima. Estado. Realizado só como abstração. Existência imanente concreta: proteiforme. Mas um só. Um, que nasce pronto. Urstaat: fundamental, originário. Eterno modelo. Surge armado no cérebro. Idéia cerebral. Dos olhos de bronze. – E a revolução? Socialista? Maoísta? Russa? Cubana? E o Partido? Ainda figuras despóticas: territorializadas, codificadas, hierarquizadas. O polícia sindicalizado. O dono de empresa. O proletário. O secretário. O marqueteiro. O deputado. O presidente metalúrgico. Monstros esperados. Nação. Civilização. Liberdade. Futuro. Nova Sociedade. Átomos atrativos e desviantes. Repulsantes. Repelentes. Cadáveres arrastados: proletariado, luta de classes, direitos humanos. Interditos opostos aos fluxos: reterritorializações. Para manter o sistema no lugar. Neoarcaísmos: reservas de índios, fascismos, burocracias, Terceiro Mundo, Édipo. Localizações inscritas na superfície do socius: colocar regiões inteiras ao abrigo dos fluxos esquizos. – Currículo autoproduzido? Cíclico. Enrola a experiência da morte na sua experiência e faz do devir aquilo que não cessa e não deixa de acontecer. Vidamorte. 3. Do cinismo Onde é que ele desapareceu? Sempre o mesmo estribilho. Algum sinal. – Ora com franqueza. Nos poros do antigo corpo. Nos intervalos. Se a máquina despótica veio de fora, a capitalista sobe de dentro. Na barriga de. Cortes que atravessam e transformam o socius. Chegada à civilização. Fluxos decodificados escorrem. Atravessam o currículo de lado a lado. Decodificar: compreender um código e traduzi-

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lo. Potência. Econômica. Máquina capitalista. Não mais necessidade: marcar os corpos: fabricar

uma

memória.

Tomada

dos

códigos

territoriais.

Substituição

da

sobrecodificação despótica. Por uma axiomática. Generalizada. Segundo grande movimento de desterritorialização. O capital se apropria diretamente da produção. Hora do maior cinismo. Em vez da crueldade e do terror. Não é o contrário da má consciência. Correlato. Para beneficiar o sistema. A serviço de seus fins. Nietzsche antihumanista. – Salve! Não, ninguém rouba. A mais estranha devoção. E forma. Novo corpo pleno: capital. Mais-valia se torna incodificável: de fluxos. Agora. Axiomática rigorosa das quantidades abstratas monetárias e de trabalho. Mundial. Relações diretas entre entidades baseadas sobre qualidades abstratas. Fluxos de relações fixas e limitadas entre homens e coisas. Trocados por unidades abstratas de equivalência. Equivalências entre. Bens. Corpos. Ações. Idéias. Conhecimentos. Valores. Fantasias. Mercadorias. Abstração: dos fluxos de produção pelo capital mercantil. Dos Estados pelo capital financeiro e dívidas públicas. Dos meios de produção pelo capital industrial. Dívida: desterritorializada na unidade abstrata: livres fluxos de deuses, corpos, imagens: reterritorializada na axiomática. – Mas, há fluxos esquizos que escapam? Representação: atividade produtora: produtores não marcados: capital toma alianças e filiações: passam pelo capital-dinheiro. Subjugado Estado despótico. Torna-se imanente. Torna concreto o abstrato. Naturaliza o artificial. Integrado numa agência burocrática de reterritorialização. A família: factícia, residual. Mãe é territorialidade. Pai é signo despótico. O eu está no meio: dividido, cortado. Pequeno triângulo. Centro do mundo. Funcionamento do microcosmo: esquecer que o corpo do capital está separado das máquinas desejantes. Antiprodução: funciona por sua conta. Reino da privatização. Dinheiro. Trabalhadores. Órgãos. Substrato. Respeito pela pessoa. Igualdade entre homens. – Oculta o funcionamento da classe burguesa? Acredita-se que sim. Lugar de retenção e ressonância. Fora. Mas subconjunto ao qual se aplica todo campo social. Tática sobre a qual se fecha. Rebatimento. Dobradura. Reprodução social em seu modelo. Retorno do tirano sob formas inesperadas. Pessoas individuais, imagens de segunda ordem, imagens de imagens do capital, simulacros que representam pessoas sociais: o pai, a mãe, o filho. Capitalismo preenche com imagens seu campo de imanência. O patrão, o chefe, o cura, o tira, o soldado, o professor: conjunto de partida. No conjunto de chegada: família. Para o currículo. Puras figuras. Funções. O capitalista: derivada do fluxo de capital. O trabalhador: derivada do fluxo de trabalho. Estimulado

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pelas imagens, o que cada um responde? Ora: – Papá-mamã-eu... Édipo chega. E fica. Formação colonial íntima. Responde à forma de soberania nacional. Pequenas colônias: somos. Resultado da história universal. Como o capitalismo. – Sim. Foi o que pensei. Partiu. Currículo da burguesia: classe única. – Eu queria isso demais! A ordem, a casta, a hierarquia: decodificadas. Não há senhores: escravos que comandam escravos. Interesses pré-conscientes de classe se opõem a desejos inconscientes de grupo. Perguntar. Responder. – Por que as massas desejam o fascismo? Por que se deseja contra os próprios interesses? Por que se faz investimentos reacionários? Como se vira fascista? – Depressa. Mais um momento. Meu coração. Quem? – Ora! Falência. – Por que essa imposição? Um novo estado de coisas. Não contente mais em sobrecodificar territorialidades ladrilhadas. – O danado do Estado! Pós-Estado. Reinsuflamento do Urstaat. Interior ao sistema. Nós: fechados aí para ser domesticados. – Engraçado! Antes: também privatização da propriedade. Também formação de grandes fortunas. Também produção mercantil. Também expropriação e proletarização. Mas não era ainda a máquina capitalista! Roma. China imperial. O dinheiro não engendrava o dinheiro. Universalidade do capitalismo. Depois que a morte subiu de dentro. Desterritorialização maciça. O currículo define-se por. Do solo por privatização. Dos instrumentos de produção por apropriação. Dos meios de consumo por dissolução da família e da corporação. Do trabalhador em proveito do trabalho. Da riqueza pela abstração monetária. Ilimitada a relação entre capital e força de trabalho. Acumulação do capital-deus, de onde emanam as forças do trabalho. – Primeiro tenho de. Currículo humanista: imanência física do campo social e manutenção de um Urstaat espiritualizado. Configurações flutuantes: linhas e pontos sem identidade discernível. – Que história é essa do dinheiro engendrar dinheiro? Ou o valor uma mais-valia? O trabalho qualificado equivaler a um quantum determinado? O Banco desmaterializa a moeda. Operações financeiras. O Estado assegura a conversão: ouro, crédito, taxa de juros, mercados de capital. Não há limite exterior. Só interior: o próprio capital. Limite deslocado, habitado e vivido. O que o capital decodifica com uma mão, axiomatiza com a outra. É ao mesmo tempo. O currículo: liberado pela máquina capitalista. Organiza os códigos científico e técnico. Inovações curriculares: sempre atrasadas. Dependem de seu efeito sobre a rentabilidade global das empresas e do mercado e do capital comercial e financeiro. Axiomática social e capital de conhecimento. Relação insidiosa. Imbecilidade. Organizada. Lado morto da vida este. Sem potencialidade revolucionária.

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Mas o currículo usa. Linguagem dos fluxos decodificados: elétrica, eletrônica, meios técnicos de expressão, televisão, computador. Assignificantes: desejo, sopros, gritos. De n dimensões. Palavras: tratadas: coisas. Quebra da dupla voz-grafismo. Lingüística capitalista e esquizo. Hjelmslev. Capitalismo analfabeto. Morte da escrita. Gutenberg. Ele. Função atual, folclórica, residual. – Currículo: agente integrado da integração capitalista? Destruidor? Criação consistia em? 4. Energética política Então, tá. O capitalismo faz passar fluxos esquizos? Quem diz. Capitalismo e esquizofrenia. Única e mesma economia? Único e mesmo processo de produção. A produção capitalista paralisa o processo esquizo? Transforma o sujeito em entidade clínica. Faz do esquizo um doente? Encerra os loucos. Vigia artistas e cientistas? Forma máquina de repressão-recalcamento frente aos fluxos decodificados. – Por quê? É que o capitalismo é o limite de toda sociedade. Ele não tem limites. Tem: produção e circulação. Axiomatiza os fluxos de decodificação. Reterritorializa os fluxos desterritorializados. Mais impiedoso que qualquer outro socius. Só na esquizofrenia encontra limite exterior, que não cessa de repelir e conjurar. Enquanto produz limites relativos imanentes, que alarga sem parar. Esquiza é seu desvio e morte. Não a sua identidade. – De jeito nenhum! Limite deslocado: Édipo. Neutralizar esquiza. Interioriza Édipo. Desejo se prende aí. Limite absoluto de toda sociedade: esquiza. Faz passar fluxos em estado livre, que devolvem à produção desejante. Capitalismo só funciona se inibir, repelir e conjurar a. Triângulo edipiano é territorialidade íntima: corresponde aos esforços de reterritorialização social. Potência capitalista: campo de imanência desterritorializado. E não cessar de preenchê-lo. Fluxo-esquiza ou corte-fluxo: definem o capitalismo e a esquizofrenia. – Mas, não é a mesma coisa. Diferença de funcionamento. Decodificações retomadas numa axiomática? Fica-se nos grandes conjuntos ou se atravessa as barreiras? Se o capitalismo desaparecer, algum dia, não será por falta, mas por excesso. Energética que desloca limites. – Programação. Teoria geral do currículo: uma teoria generalizada dos fluxos. Políticas da criação. Intervenções micro-políticas. Contra fascismos. Não mais um sistema de crenças no lugar da produção. Nem formas expressivas. Não teatro íntimo. Nem familiar. Não estrutural. Nem neo-idealismo da falta. Não simbólico. Nem culto restaurado da castração. Não ideologia antropomórfica. Nem sistemático. Não representativo. Nem figurativo. Figural é abstrato. Realidade: a do Real em sua produção. Produção do

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currículo. Rosna. Zumbe. Uiva. Triângulo mágico. Pontos-signos. Essências vagas. Campos. Devires. Oficinas. Fábricas. Usinas. Uma nova terra. Um povo por vir. Ao longo da desterritorialização. Raspagem de ilusões, fantoches, culpas, leis. – Depressa, mas com prudência, com grande paciência. Currículo-esquizo. Inorganizado. Transbordante. Ziguezagueante. Só maquínico. i

Gilles Deleuze e Félix Guattari. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia [1972]. Trad. Georges Lamazière. Rio de Janeiro: Imago, 1976. Especialmente: capítulo III “Selvagens, bárbaros, civilizados” (p.177-345).

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Uma tetralogia para o pensar, chez Deleuze

AGUILHÃO (Ereto feito um cabo de vassoura. Pele tão colada ao corpo que, ao mínimo corte, rasga-se toda. Balança numa corda entre dois parapeitos. Não refletido, nem representado, vestido de impossibilidade. – Ma dove, bambino, dove? Trocado ao nascer. Menino encantado. Um gnomo. Assoma. Cul-de-sac. Então, rindo, salta rente ao muro. Escarrapacha-se de encontro a um monte de lixo. Seus sapatos de vidro abatem-se, destrutivos, sobre os saberes sabidos. Um copo d’água se espatifa. – Les ronds! Les ponts! Chevaux de bois! Chaîne de dames! Dos à dos! Balancé! As crianças o vêem e, estridentemente, gritam: – Mas é real! Sem dúvida, embora ameace com estranhamento. – Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela. Mas não servia ao pai, servia a ela, que a ela só por prêmio pretendia. – Vendo o triste pastor que com enganos lhe fora assim negada a sua pastora, como se a não tivera merecida, começou a servir outros sete anos, dizendo: – Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida! Como um navio gigantesco, assustador, nas águas calmas, seguras, da sabedoria adquirida, ele não leva jeito. Balança sua pança, desfaz o emaranhado do cabelo, coça seus trapos. Olha de soslaio. Titubeia. Cambaleia. – ‘Stamos em pleno mar... Era um quadro dantesco o tombadilho... Que das luzernas avermelha o brilho, em sangue a se banhar. Tinir de ferros... Estalar de açoites... Legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar... Negras mulheres suspendendo, às tetas, magras crianças, cujas bocas pretas rega o sangue das mães. E ri-se a orquestra irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente faz doudas espirais... Presa nos elos de uma só cadeia, a multidão faminta cambaleia. E chora e dança ali! Qual um sonho dantesco as sombras voam! Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás!... – Senhor deus dos desgraçados! Dizei-me vós, senhor deus! Se é loucura, se é verdade tanto horror perante os céus?! Ó mar, por que não apagas, co’a esponja de tuas vagas de teu manto este borrão?... Astros! Noites! Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! Ele passa por nós. – Jogo limpo, por favor! Estica os braços, suspira, enrosca o corpo. Suas brandas mãos clamam juntas. Ithyphálliko, cutuca. Atira um punhal. Faz o sinal dos cavaleiros templários. – Diga-me uma palavra apenas! Um caranguejo com olhos vermelhos finca as garras em seu

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coração. – Devorador de paixão! Ils me disent, tes yeux, clairs comme le cristal: – Pour toi, bizarre amant, quel est donc mon mérite? – O olho é o cadáver da luz, da cor. Exalando cinzas, seus traços tornam-se cinzentos. Envelhecidos. Ressequidos. Ergue um braço entorpecido. Na mão esquerda segura uma bengala fina de marfim com cabo violeta e um castão de prata em forma de cabeça de dragão. – Era uma vez uma mulher sem nome que dava nome às coisas. Harpa eólia. – Agora posso me coçar com tranqüilidade. Retira a perna de cima da mesa e vai dançar. – Bals musette? Lampejos azuis verdes amarelos marrons. Tinidos metálicos. Ele nada mais é do que são seus ossos: imprevisto, incompreensível, inassimilável. Gorgolejante. Áspero. Escrofuloso. – Eles vão lutar. – Por mim?! Quem quer?) Ele não é ele. Mas ele é de novo possível. Peste. Virótico. Venéreo. Terrorista. Monstro. Fumaça. Vapor. Névoa. Nuvem. Espuma do mar. Centelha. Rumorejo. Risco. Riso. Júbilo. Máscara. Dementia. Força elementar. Incitação. Afirmação. Inovação. Estilo de vida. Política da. Arte em favor da. Cofre de ressonâncias. Insolente. Indiscutível. Nada de justas. Justo idéias. Síntese disjuntiva. Intuitiva. Contra-efetuação. Lance de dados. Dobra do ser. Imagem-sol. Signo-força. Estrangeiro. Cruel. Violento. Um gato. Lava as iniqüidades do Ser. De Deus. Da Consciência. Do Negativo. Tem o que dar a. Diante da obstrução e exclusão. Sem Ego. Sem Édipo. Sem Falta. Sem troca regulada. Sem interação. Sem diálogo. Sem assembléia. Sem comunidade. Sem identidade. Sem boa vontade. Sem natureza reta. Sem lei. Não substituir um por outro. Não um mais ágil ou amplo ou verdadeiro. Não crise. Não mudança. Não virada. Não sistema discursivo. Afinidade com o inimigo. Work in progress. In process. Um novo ato. Abalo. Isto sim! Experimentar. Irritar os imbecis. Envergonhar a estupidez. Fazer da besteira um trampolim. Impedir o impudor dos medíocres. Relançar possibilidades. Calar respostas. Falar problemas. Meter medo. Ora bolas! Ao intolerável. À miséria programada. Ao conformismo. Ao consenso-diretriz. À preguiça. À proteção. Operação. De resistência. Não dizer se nada houver a. Desamparar. Desimpedir. Inventar singularidades. Clandestino. Garrafa ao mar. Espada. Flamejante. Speranza. Trajeto solar. Vendredi. Dia de Vênus. Contra atualidade. Interesse geral. Bom-mocismo. Bonhommes. Valores democráticos-liberais. Universais. Eternos. Aparelhos de partido. Avaliações subjetivas. Solipsismo. Simples vivido. Juízo empírico. A priori. De Deus. Regularidades. Modelos. Sensações pastosas. Regime jornalístico. Racionalidade comunicativa. Instantânea. Conversação edificante. Proposições de fato. Consenso.

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Marketing. Mercantilização. Promoção comercial. Divisão social do trabalho. Divisão sexual. Fitas métricas. Hermenêuticas apocalípticas. Cultura de massas. Vontade da maioria. Opiniões razoáveis. Crenças. Hábitos. Convenções. Clichês. Cinismo. Dívida. Vingança. Nostalgia. Facilitação. Conforto. Hic et nunc. Ficção da razão. Repetição do Mesmo. Reativo, escravo, ressentido. Vontade de verdade. Acordos intersubjetivos. Essências. Pseudo-eventos. Debates. Réplicas. Trocas de idéias. Correntes. Trilhos. Caminhos. Um firmamento. Estruturas. Paradigmas. Gnosias. Praxias. Ortodoxias. Representação.

Recognição.

Platonismo.

Hegelianismo.

Dialética.

Imitadores.

Glosadores. O Homem. Os Direitos Humanos. A Infância. O Estado. A Ciência Régia. Triste imagem midiática. Servidão voluntária. Imensa fadiga. Canto de morte. Morte em vida. Medo da vida. Car qu’est-ce que le schizo, sinon d’abord celui qui ne peut plus supporter tout ça: o dinheiro, a bolsa, as forças da morte – morais, pátrias, religiões, certezas privadas? Hýbris. Ato. Criador. Conservar. Contemplar. Contrair. Arrogância. Desmesura. Ousadia do querer. Força de amar. Aptidão inventiva. Bander. Interruptor. Curto-circuito. Des-comunicação. Des-informação. Des-conversa. Como engendrar saídas para a vida? Linhas de singularização? Formas de heterogênese? Subtração à homogeneização? Quais aventuras? Atravessar o Aqueronte. Mundos possíveis. Por Outrem. Le dehors. Mergulho no caos. Forma do conceito. Força da sensação. Função do conhecimento. Personagens conceituais. Observadores parciais. Figuras estéticas. Interferências. Extrínsecas. Intrínsecas. Ilocalizáveis. Indecidíveis. Indiscerníveis. Indizíveis. Impassíveis. Imperdoáveis. Deslizamentos. Partilha da mesma sombra. O mesmo segredo. Povo-mundo. Imaterial. Incorporal. Invivível. Invisível. Pura reserva. Espera infinita. Entre-tempo. Guerra. Guerrilha. Grito de alerta. Cor. Som. Imagem. Arabesco. Intensidade. Velocidade. Multiplicidade. Singularidade. Virtualidade. Artistagem. Variação. Modulação. Fabulação. Imanência. Un chant de vie. É que eu não acredito nas coisas. Pedagogia? Cadela. Cavalo alado. Dragão. Centauro. Dioniso. Maldito. Delírio. Diferença livre. Repetição complexa. Alusão perpétua. Gigantesca. Mistura louca. Ardência. Sarça. Caosmos mental. Atratores estranhos. Heráclito. Estóicos. Nietzsche. Spinoza. Bergson. Scott. Artaud. Lenz. Sade. Beckett. Bene. Cézanne. Klein. Klee. Bouvard. Pécuchet. Bacon. Sacher-Masoch. Hjelmslev. Lawrence. Miller. Woolf. Gregor. Zaratustra. Monet. Delaunay. Hantaï. Carroll. Tchekov. Uexhüll. Michaux. Tournier. Bresson. Riemann. Boulez. Homem dos lobos. Ahab. Dubuffet. Pissaro. Combray. Molly. Josefina. Scenopoietes dentisrostris. O

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carrapato. O demônio. O pequeno Hans. Fuite devant la fuite. Evento puro. Idéias vitais. Ética do amor fati. Transbordamento. Coro de sátiros. Coro trágico. Intermezzi. Orgia de liberdade. Os três Não. As três filhas do caos. As três caóides. As três jangadas. Trajetos. Sobrevôo. O cérebro. Fogacho. Queima da memória e da história. Esfarelamento dos controles miméticos. Dança. Disparo. Devir. Puro acaso. Pathos. Os deuses jogam na mesa da Terra. A truly joyous machine. Alegria ilícita. Rameira. Mundana. Indecente. Ímpia. Lúbrica. Celerada. Gozosa. Anca vaidosa. Vagina dentada fremente. Incendiada de vida. Bacante. Lena. Mênada. Embriaguez. Absinto. Instinto. Désir. Vampiro. Cão dos Baskervilles. Cascavel. Escorpião. Mandrágora. Lisa e listrada. Ferida. Ferina. Festa. Fauno telúrico. Vôo e canto de Andoar. Esmeralda das bruxas de Mayfair. Possessão. Sortilégio. Espírito de fogo. Mudança de pele. Idéia diabólica. Vagabunda. Espasmo. Convulsão. Derrame. Enxurrada. Dinamite. Águia sobre o abismo. Salto mortal. Linguagem da paixão. Asas da alma. Escândalo político. Vivo ergo cogito. Non cogito, ergo sum.

TURBULÊNCIA (Lupercalia: 15 de fevereiro. Depois de sacrificar um cão, dois luperci tocam com a faca do sacrifício a fronte. Correm, então, ao redor do Palatino. – Ah, mas ela não vai ser surrada com pedaços de couro de cabra! – Pra quê? Já é fértil! Fornica. Matraqueia. Altiva, flutuante, zombeteira. Toma fôlego com vagar e avança lentamente em direção às luzes da sala. O fulgor jorra. Aurora borealis? Não, os bombeiros chegam. Ciclistas, com as campainhas retinindo, correm entre os carros. – Quelle soupe! Nas mãos, anéis com pedras preciosas. Nos tornozelos, correntes de ouro como algemas. Cabelo trançado. Travessa de brilhantes e penacho de pluma de pavão na cabeça. Vestido de negro organdi. Decote fundo. Botões de diamante e rubi no bolero. Broche camafeu. Brincos e pulseiras de diamantes. Cinto bordado a ouro. Picada por um espasmo, esfrega a camada de lama grudada em seus sapatos. – Ai, meus sais! – Mantenha-se, mantenha-se, mantenha-se... – O homem do saco vai te pegar, se ficares variando tanto! – Sinos a defunto. Ai, quem morreria? Olha, foi o pobre Ti Zé, senhor! Velho, tão velhinho, nenhum outro havia. Pra cumprir 100 anos, lhe faltava um dia. Há 94 que era pastor... Tocadora de flauta. Dançarina. Mulher de Rodes. Perfumada. Aromatics elixir. Figura sinistra. De olhar maligno. Cospe fogo. Mulier toto iactans e corpore amorem. – Eram para ela o maior flagelo, um sofrimento que não tinha

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paralelo... Dá um passo. – Ó Sol, liberta-me da gravidade! Lava meu sangue dos humores espessos que extinguem a alegria de viver. Ensina-me a ligeireza. A minha metamorfose caminha no sentido da tua chama! Um cão de caça se aproxima e rosna. – Ah, esse dog-god tem mesmo alma! Um belo espetáculo! Uma pantomima. Um beijo e um queijo. Lilies of the valley. Papoulas. Tulipas. Rododentros. – Je ne crois à ni pére ni mére. Ja na pas à papa-mama... Gotas de suor brilham em sua testa. Calorões de hora em hora. – Sou uma flecha arremessada contra a tua fornalha! – Dizem, não sei, contam de tudo. Que ela foi vista a escavar sobre uma tumba, porque queria queimar restos do morto. Repetia a louca que, assim, teria cinzas para voltar a encher velhos cinzeiros... A seu lado, um camelo com arreios vermelhos aguarda. Engruvinhar do pescoço. Rabo e pêlos. Patas rosadas. Uma escada de seda leva ao balanço que balouça. O camelo se ajoelha para recebê-la. Ela sobe. Ralha com ele em árabe. Vai começar. O erâstes e seu erômenos vêm vindo. Descalços, túnica e calça à maneira dória: mostra-coxas. Empurram-se. Chamas tatuadas nas testas. – Engraçado! Seus pés estão voltados para trás, os calcanhares na frente... Seres de fuga. – Seul l’esprit est capable de chier.) Responsável pela arte de pensar, ela nem sempre foi ela. Seria um erro nela buscar qualquer univocidade. Nos 60, ela era o traçado que moldava o terreno. Uma constatação impiedosa. Isto é o que ela era, então. Denunciava a boa vontade, a afinação com o Verdadeiro e o Bem. Claro, Nietzsche, além de mostrar o seu caráter moral, já havia lutado contra ela. Em nome da gaia ciência. Daí, talvez, a ambivalência produtiva: uma nova imagem ou sem imagem? Tratava-se de um pensamento que não obedecia a nenhuma imagem prévia, que o orientaria, que determinaria de antemão o que significava

nele

orientar-se.

A Imagem,

como

sinônimo

de

Modelo,

era

representacional, transcendente, com forma subjacente, regras prévias. Corria 1969. Ali, ainda foi possível encontrar uma geografia mental do pensamento, com eixos e orientações. Não um movimento ascensional ou uma profundidade. Mas, a reconquista nietzschiana. Elogio da superfície. Não reivindicação por uma nova. Clamor para que a filosofia fosse sem. O sentido parecia equivaler, tanto no início como no final dos 60. Mais adiante, nos 80, ela era associada à forma do Estado. Então, a demolição. Pensamento-vampiro: sem imagem, nem para criar modelo, nem para fazer cópia. Rizoma, espaço liso, exterioridade pura. Um deserto. Movente. O pensamento como multiplicidade. É claro! Aquele que se desloca fora das estriagens do espaço mental,

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imposto pelas imagens clássicas e seus modelos. Chegamos aos 90. E ela recebia o nome inesperado: plano de imanência. Nem um conceito pensado nem pensável. Uma potência de Uno-Todo. Condições internas. Pressupostos implícitos. Conjunto de postulados. Pré-filosóficos. Não-filosóficos. Númeno. Um crivo. Um grito. Puramente diferencial e repetitivo. Esse percurso: ainda obscuro? Mas, temos condições de compreender o conjunto. Bref. Antes de 80, a reivindicação por um pensamento evacuado de pressupostos pré-filósoficos. E de estriagens. Um pensamento sem imagem. Após, a exposição de um plano não-filosófico necessário à filosofia. O que foi que mudou? Houve radicalização: o sem imagem continuava proposto. Entretanto, a exigência: um plano totalmente imanente. O pré-filosófico, desde então, não foi mais abolido porque compunha intrinsecamente a filosofia. Talvez, fosse mesmo convincente que o não-filosófico estivesse mais no coração da filosofia do que ela própria! Modificara-se o entendimento de pré-filosófico, antes remetido à imagem dogmática, como objetivo e conceitual, ou subjetivo e não-conceitual. Também a idéia de que não havia uma só imagem, mas que o plano era traçado ao mesmo tempo em que os conceitos eram criados. Cada filósofo constrói o seu plano ou se instala num já constituído. Um plano como campo, solo, terra. Albergue dos conceitos. Assegurador de sua existência autônoma. A crítica não se dirigia mais à Imagem, mas ao plano em que a imanência não fosse absoluta, em que o movimento não fosse infinito. Um plano sem coordenadas espaço-temporais, sem horizonte, sem móveis determinados. Porque, desde que o plano fosse imanente a algo, o transcendente corria o risco de ser reintroduzido. O pensamento sem passa a ser considerado sem modelo, sem forma, sem transcendência. Imanência pura. Uma imagem, desta vez, puramente imanente. Pensamento pleno da imanência. Fluido, fluente. Duração pura. Doação insensata de sentido. Integrado por sonhos, processos patológicos, experiências esotéricas, embriaguez, excesso. Agora, entre o plano e os conceitos, personagens de existência misteriosa: conceituais. Imagem do Pensamento-Ser. Ser-Natureza. Ser-Caos. Ser-CsO. Por sua fluência e vibração, a imagem torna-se próxima da matéria. Matéria do ser ou imagem do pensamento. Matéria: mais do que o idealista chama representação e mais do que o realista chama coisa. No meio do caminho. A Imagem migra de Modelo ou Forma para Matéria. Como isso foi possível? Percurso conceitual de difícil compreensão! É preciso multiplicar as precauções e ir mais devagar! Não parece inacreditável que o conceito de Imagem signifique Modelo, em algum momento? Se o próprio Platão contrapôs a Idéia (o

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Modelo) e a Imagem (a Cópia)? Há fusão entre Modelo e Cópia no conceito de Imagem? Ou, em Platão, há outra dualidade além daquela entre Idéia e Imagem, entre inteligível e sensível? Com efeito, há duas espécies de imagens que a Idéia deve selecionar. É preciso distinguir entre os pretendentes bem fundados e os falsos. De um lado, as cópias ou ícones e, de outro, simulacros ou dissimiles. Imagem sem semelhança, portanto. A Cópia interioriza a semelhança com a Idéia, enquanto o simulacro interioriza a dissimilitude. O Modelo do simulacro não é mais o Mesmo, como é o caso da Cópia, mas o Outro, o que já é dessemelhança. Eis porque é abolida, simplesmente, a dualidade entre essência e aparência. Só que Kant e Hegel já tinham feito isso... Tratava-se de afirmar e de positivar o simulacro. Todas as nossas esperanças! A imagem sem semelhança não remete a um modelo, que lhe é insubordinada, sendo ela própria dessemelhança. Por isso, apresenta-se um tipo de imagem que nada tem a ver com a cópia e que, aliás, é rebelde tanto à cópia como ao modelo. Uma imagem em devir-louco que produz um a-fundamento universal. Terceira síntese do tempo. Eterno retorno da diferença. Coextensiva à matéria fluente ou à sua variação. Uma espécie de Ser-Tempo de que a filosofia se nutre e que ela instaura. Imagem, como o plano temporal não-filosófico, prévio à filosofia e que subjaz ao seu exercício. No entanto, por que esses deslocamentos no conceito de imagem? Ora, porque tinham sido escritos o Cinema 1 e 2, com suas imagens autotemporalizadas. Herança direta. Não é à toa que o Cinema 2 termina onde começa O que é a filosofia? A concepção e o estatuto ontológico do conceito de imagem foram, irremediavelmente, modificados. O conceito ficou prenhe. De todo tipo de velocidades, de movimentos e de profundidade do tempo. Como as imagens do cinema. Definiram-se as diferenças entre formas de pensamento e criação: arte, ciência e filosofia. E seus cruzamentos. Bergson ao lado de Spinoza? No mesmo nível de importância. A filosofia não precisava mais lutar contra suas próprias ilusões nem se desfazer da imagem. Tem-se a impressão que essa idéia recém tinha chegado. Mas ela esteve ali. O tempo todo. A filosofia adquire a necessidade vital de traçar um plano, porque se dedica a subtrair um pouco da consistência ao caos que desfaz tudo. Não obstante, sem renunciar ao infinito do movimento e suas velocidades. Assim, movimento infinito e imagem tornam-se, para sempre, solidários. Um corte no caos. Compreendem-se, por fim, os efeitos de transcendência que pontuam a história da filosofia. O que a produz é a parada do movimento. Não a imagem que, em si mesma, é movimento, mas a parada sobre a

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imagem. Se há tantas imagens distintas do pensamento é porque cada uma criva o caos de modo diferente, seleciona de modo diferente o que pertence de direito ao pensamento. Nenhum plano pode abraçar o todo do caos. Cada um o corta do seu jeito. Essas operações permitem que os conceitos e os planos se encontrem, se distribuam, se reagrupem. Tempo estratigráfico. Claro que, deste ponto de vista, não estamos seguros que a filosofia não tenha futuro! E, ainda, não estamos seguros que ela não seja nada mais do que um grande amor...

INFLEXÃO (– Alô! Olá! Hi! Bonjour! Comment ça va? – Nil novi sub sole? Ele espreita por detrás. Com seu rosto de coelho. A corda em volta do pescoço. As tripas parecem se soltar. Acabam se descarregando. Camisa de algodão azul, casaco de linho preto, calça cinza xadrez. Mordisca uma folha de hortelã. Chupa uma manga. Seu fígado pede o divórcio por maus tratos e requintes de crueldade. O rosto congelado num raivoso ponto de interrogação. – Terracota? Se um pensamento entrasse algum dia em sua cabeça morreria de inanição. – Ei! Mãos ao alto! – De nenhuma criatura viva tenho rancor. Só l’amour grec. Ela atiça. – Você vai arrumar encrenca! Chuta os seus testículos. Confusão. Barulho. Em baixo do andaime, aquele banzé! A ousada. – Que tal eu socar o seu peito? Qual múmia caiu duro. – Muito desagradável! Fabulada pela memória. Com gestos elaborados, inspira. – Mil vezes matar aquele que inventou o abdominal! – Mil vezes picar aquele que inventou o apoio! – Não chores ainda. A terceira. Opulenta cabeleira cor de mel. Linha graciosa do queixo e do colo. Estrutura óssea bem conformada. Nariz fino. Pele eternamente iluminada pela luz do sol poente. Olhos cor de jade. Lábios carnudos e resolutos. Perfeita simetria da confluência genética. Mulher misteriosa. Na cama. Na campa. Continente negro. Pôxa, nem Freud... O homem faz você-sabe-o-quê. – O que está acontecendo? Um doutor com estetoscópio. – Eu venho consultar-vos, Doutor. O mal que eu tenho e que me martiriza os dias, tirando-me a razão e a mocidade, é um cancro que nunca cicatriza. Eu tenho um coração que não palpita. Cabeça que não pensa, só divaga. Um tédio negro me envenena os dias. Tédio que mata. Tédio que assassina. Como os beijos vendidos nas orgias de intermináveis noites libertinas. Todos os seus amantes. – Entrem e desfrutem... – E se as duas hipóteses forem falsas? E se for ainda mais complicado do que dissemos? – It is very difficult... – Ora, bolas, já não perguntarás pelo ser, mas pelo

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pensar. Ele é apedrejado com cascalho, chinelos, urinóis cheios de porcaria. Mordemlhe os calcanhares. – É impressionante a semelhança entre os dois! A mesma crítica das ilusões! – La femme cependant precisa de ar puro. Pauvre muse! Hélas! – Da montanha. – A mágica? – Monte de Vênus. – Arrependa-se! Poeirinha da poeira! – Ó, o fogo do inferno, hem! Um rio de bile pingando. O amargo do amor. – Ó, menininha com olhos virginais! Eu te procuro. Mas, tu não me escutas. Será que não sabes que és a única condutora de minh’alma? – Cet démon, il n’est pas lá... – Só uma coisa me preocupa mais uma vez... – Membrum virile? – O sêmen pode se converter em adiposidade, havendo continência? – Aqui reside Hércules. Que nada de mal entre aqui. – Pouco importa! Em condições artificiais, o destino decide.) Gottfried: – Caro Friedrich, aqui estamos. Trouxemos conosco este Estrangeiro. Filho de Diógenes e de Hipatia, ele vem de Cítio no Chipre. Mas ele é diferente (héteron) dos companheiros de Zenão. Ele pensa realmente como um filósofo, pois pertence ao círculo de Fiódor, Francis, Franz, Henri, David, Louis, Arthur, Stéphane, Jean-Luc e Virginia. Friedrich: –Mas, caro Gottfried, como pensa este Estrangeiro? Como um homem? Como um deus? Não pensa ele como um deus disfarçado de homem? Não te acompanha, sem saberes, um deus-pensador em lugar de um pensador-estranho? Não esquece que, para Homero, há deuses que assumem a aparência de estrangeiros vindos de outros lugares... Embora existam aqueles que são companheiros dos homens que operam com um pensamento estranho. Não será o Deus dos Estrangeiros (tón xénion theòn) o único que pensa estranhamente? Por certo, quem te acompanha é um desses pensadores superiores que vem pensar junto a nós, que somos tão fracos! Não será ele um deus refutador (theòs tis elegktikós)? Pensa como político? Como sofista? Pode bem ser que pense feito louco... Mas, como sabê-lo, se o pensamento segue tão diversos sendeiros? Gottfried: – Ora, Friedrich, o pensar deste Estrangeiro percorre a Terra. Quando indagas se ele pensa como um deus, à qual conceito te referes: ao pensar dos poetas ou àquele de um deus sophós, cuja divindade parece encarnar-se no filósofo? Fica tranqüilo, amigo, acho que o Estrangeiro pensa como um homem-divino (theîos anêr). Seu pensar é mais sóbrio do que os ardorosos amigos da Erística. É comedido (metrióteros), como em todos os verdadeiros filósofos. Eu o vejo não como um deuspensador, mas como um pensador-divino, já que assim considero todos os filósofos.

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Friedrich: – Tens razão, caro amigo. Temo, entretanto, que o pensar do filósofo não seja nada fácil de determinar, assim como o divino. Para o juízo tolo das multidões, ele corre sempre o risco da besteira. A uns, ele parece nada valer, e a outros, tudo valer. E, outras vezes, dá a impressão de estar completamente em delírio. Não se trata de um deus-pensador que assume uma outra forma, mesmo permanecendo deus – mas qual deus? –, para participar do pensar humano e eventualmente refutá-lo? Diz-nos, Estrangeiro, afinal, pensas como um deus ou como um homem? Ou nada disso, mas como um homem-divino? Gottfried: – E, se assim for, Estrangeiro, como discernir o pensar filosófico, dentre as aparências que ele assume (phantazómenoi), devido à estupidez dos outros homens (dia tèn tôn állon ágnoian)? Como examinar a multiplicidade própria ao modo que tem o filósofo de pensar? O seu pensar faz ou não parte do mundo? Friedrich: – Assim como a deusa, no prólogo do poema de Parmênides, diz ao jovem que é preciso que ele se instrua sobre todas as coisas, sobre a verdade e sobre as opiniões, modalidade das aparências, parece-te que o pensar filosófico é da ordem da aparência? É preciso examinar a própria aparência enquanto imagem? Imagem visual? Imagem falada? Discurso (lógos)? Gottfried: – O que perguntas é se, dentre as diferentes maneiras que se tem de pensar, há uma maneira falsa? Friedrich: – O pensamento falso seria próprio do pensar do sofista, que, em última análise, é o pensar em confrontação com os eleatas? O pensar sofístico não implica a máxima socrática do gnôthi seautón? A filosofia da diferença não começa por esse pensar? Se as nossas questões não forem desagradáveis, quero perguntar-te, diretamente: o que é pensar? Gottfried: – Para quem? Friedrich: – Para o artista, o cientista e o filósofo. Gottfried: – O que queres saber, precisamente? Friedrich: – Há uma única forma de pensar ou mais de uma? Gottfried: – A questão que propões, Friedrich, é bem escolhida. Ela se parece com aquelas que formulamos, no caminho para cá. O Estrangeiro discutia, então, os mesmos problemas, e a propósito dos quais ele diz que ouviu muitos ensinamentos e que não os esqueceu.

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Friedrich: – Por favor, Estrangeiro, não te recuses ao primeiro favor que pedimos. Mas, dize-nos, antes, se preferes desenvolver o que queres mostrar numa longa exposição ou empregar o método interrogativo? Estrangeiro: – Com parceiros assim, tão distintos, Friedrich, o método mais interessante é com um interlocutor. Do contrário, talvez valesse mais a pena argumentar apenas para mim próprio. Friedrich: – Neste caso, escolhe a quem, dentre nós que aqui estamos, queres por interlocutor. Agora, se aceitas um conselho meu, toma a este jovem, Baruch. Estrangeiro: – Oh! Friedrich! Sinto-me um tanto inseguro. O problema que propões exige uma longa conversação. Consinto de bom grado que Baruch me replique, pois já conversei com ele antes e agora tu o recomendas. Baruch: – Faz, pois, assim, Estrangeiro, como disse Friedrich, que a nós todos deixarás satisfeitos. Estrangeiro: – Toda palavra a mais será supérflua. Tu, Baruch, é que deves, daqui para frente, proceder à discussão. E se este trabalho vier a cansar-te acusa os teus amigos aqui presentes e não a mim. Baruch: – Não acredito que vá cansar-me logo. Se, no entanto, isso acontecer, tomaremos a Heinrich, que aqui se encontra, meu parceiro no gymnásion. Ele já está acostumado a realizar o mesmo trabalho. Estrangeiro: – Muito bem. A decisão de mudar de interlocutor caberá a ti e poderás tomá-la durante a nossa discussão. Cabe, pois, tratar da filosofia que leva mais longe a afirmação da criação. A não ser que tenhas outro caminho a propor-nos. Baruch: – Não, não sei de nenhum outro. Estrangeiro: – Concordas então que investiguemos a arte de pensar para Deleuze? Desde que fique bem estabelecido que não é de conhecimento que se trata, mas de pensamento. Tenhamos presente que a pergunta “O que é a filosofia”? é idêntica às perguntas “O que significa pensar”? e o “O que é orientar-se no pensamento”? Baruch: – Qual o início desse pensamento que, na sua instauração filosófica, deve-se à impaciência e às vertigens nietzschianas? Estrangeiro: – Como na época de Platão, em que os gregos eram dominados pela doxa, e somente a filosofia poderia mostrar o verdadeiro mundo, Deleuze inicia pelo diagnóstico de que também estamos condenados à opinião e às fáceis certezas daqueles que tudo sabem. A opinião luta contra o caos, que é multiplicidade de possibilidades.

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Incapaz de viver com o caos, sentindo-se tragada por ele, a opinião tenta vencê-lo, foge dele, e impõe um pensamento único. Baruch: – Mas, essa fuga não é apenas aparente? O caos não continua ali, jogando dados com a nossa vida? Estrangeiro: – Diante do caos, o que importa ao filósofo não é nem vencer o caos, nem fugir dele. Mas conviver com ele e dele extrair possibilidades criativas e velocidades infinitas. Baruch: – Agora, diz-nos, Estrangeiro: o caos existe? Estrangeiro: – Não, o caos não existe. Ele é uma abstração. Na linguagem cosmológica, pode-se dizer que o caos é conjunto de possíveis. Na física, que ele é trevas sem fundo. Na psíquica, que ele é atordoamento universal. O caos é inseparável de um crivo, que faz surgir algo. É pura diversidade disjuntiva. Enquanto o algo é um artigo indefinido, que designa uma singularidade qualquer. Baruch: – Como se faz surgir algo do caos? Estrangeiro: – É preciso que intervenha um crivo, como uma membrana elástica e sem forma, como um campo eletromagnético. Baruch: – Esse crivo é uma máquina infinitamente maquinada que constitui a Natureza? Estrangeiro: – Se o caos não existe é porque é o reverso do grande crivo e porque este compõe, até o infinito, séries do todo e das partes. Estas séries somente nos parecem aleatórias, caóticas, em função da nossa incapacidade para segui-las ou da insuficiência de nossos crivos pessoais. Baruch: – Então, Estrangeiro, a filosofia, entendida em sua relação com o caos, não se empenha em adquirir um conhecimento capaz de realizar a correspondência entre o conceito e um estado de coisas. Mas dedica-se a atribuir consistência aos conceitos, pela via da produção de sentido, não é mesmo? Estrangeiro: – Desde que ela não busca ascender ao plano de imanência para atingir uma verdade ulterior. Baruch: – Temos, então, um monólogo do conceito, que é anticomunicativo, antidiscursivo e antijuízos? Estrangeiro: – Não se pode julgar se não houver preocupação com a possível existência de verdades. Baruch: – Sendo assim, o que essa filosofia produz sobre o pensamento?

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Estrangeiro: – Produz uma subversão da imagem clássica, dogmática, moral da filosofia. Imagem baseada no reconhecimento: aquela que diz que, fora de si, o pensamento reconhece materialmente o que formalmente já possui. Imagem que supõe que, de um lado, existe o intelecto, como faculdade do pensamento, enquanto, do outro, há a coisa, objeto externo, correlato do intelecto. Conhece-se como adequação. A verdade é a correspondência entre a coisa, aquilo que ela essencialmente é, e a representação da coisa, pelo intelecto. Baruch: – Para a imagem dogmática, pensar significa conhecer. E o pensado rompe com a doxa, com a opinião, e acolhe as coisas na sua essência? Estrangeiro: – Pensar é rejeitar as coisas como aparecem, em favor das coisas como elas verdadeiramente são. É responder corretamente à pergunta – O que é? É conhecer as coisas, os objetos, os entes, na sua verdadeira natureza. O pensamento encontra-se no ser das coisas. Ele pré-figura as idéias inatas e, no contato com as coisas, reconhece-as. No cogito cartesiano, todos sabem, pré-filosoficamente, no senso comum, o que significa pensar, eu, ser. O primeiro conceito do plano cartesiano é o cogito, a partir do qual os outros conceitos conquistam a sua objetividade. Com a condição de serem ligados por pontos ao primeiro conceito, de responder a problemas sujeitos às mesmas condições, e de permanecer sobre o mesmo plano. Baruch: – Ao subverter a imagem dogmática do pensamento, a filosofia da diferença necessariamente cria? Estrangeiro: – Ela trata o pensamento como experimentação e viagem. A imagem do pensamento como encontro. E, junto a isso, concebe a vida como processo de criação, como uma obra de arte, vinculada à produção de singularidades e de diferenças. Baruch: – Nessa proposta criadora, quais elementos estão implicados no pensar como a força responsável por extrair sentido do não-senso que nos cerca? Estrangeiro: – A filosofia como criação é constituída por três instâncias correlacionadas: o plano de imanência que ela traça, os personagens conceituais que ela inventa, e os conceitos que ela cria. Baruch: – Então, ao invés de contemplar, refletir, comunicar – verbos clássicos da imagem dogmática –, os três verbos principais dessa filosofia são: traçar, inventar, criar?

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Estrangeiro: – A filosofia deve ser examinada pelo que produz e pelos efeitos que causa. Trata-se de perguntar se os conceitos, o plano e os personagens são importantes, interessantes, notáveis. Baruch: – O que é que dá materialidade à filosofia? Estrangeiro: – O plano de imanência, que é o solo e o horizonte dos conceitos. O que faz com que os conceitos não se desgarrem e se tornem transcendentes. Baruch: – E há algum “sujeito”? Estrangeiro: – Aquele que permite ao filósofo criar e explorar os conceitos: o personagem conceitual. Sócrates é o personagem de Platão. Dionísio, Zaratustra e o Anti-Cristo são personagens conceituais de Nietzsche. Baruch: – Essa filosofia possibilita que se pense o intratável, o impensável, o esquecimento do esquecimento, o não-pensado do pensamento, a exterioridade, o seu fora, o diferente de si, o seu outro? Estrangeiro: – Pensar não é reconhecer. Não é um exercício de boa-vontade. Não é a correta aplicação de um método. Não tem a ver com a verdade. Não pergunta sobre a essência das coisas. Baruch: – Mas, o que é pensar, então? Estrangeiro: – Pensar é encontrar signos. Baruch: – São os signos que nos forçam e obrigam a pensar? Que arrancam o pensamento de seu torpor e de suas possibilidades meramente abstratas? É desse modo que se pode pensar o caos? Estrangeiro: – Isto! Pensar como evento e como sentido. Quando alguma coisa é designada, o sentido está sempre pressuposto. Baruch: – Logo de saída, então, instalamo-nos em pleno sentido, sem precisar ir dos sons às imagens, nem das imagens ao sentido? Estrangeiro: – Nunca dizemos o sentido daquilo que dizemos, embora possamos tomar o sentido do que dizemos como objeto de novas proposições. Numa regressão infinita... Baruch: – O sentido, pois, é distinto do que as proposições significam, manifestam ou designam? Estrangeiro: – Ele é um extra-ser. Faz existir o que o exprime. Faz-se existir no que o exprime.

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Baruch: – Por isso é que o evento se passa nas bordas do que acontece, se dá nas fronteiras entre as coisas e as proposições, entre o que se vê e o que se diz? Estrangeiro: – O evento é o único capaz de destruir o verbo ser e o atributo. Baruch: – Pensar por conceitos e produzir sentido têm uma ligação essencial com a linguagem, não é mesmo? Estrangeiro: – Os conceitos são manifestações da linguagem. O pensamento é um corolário da ordenação da linguagem. A filosofia é um jogo de conceitos com consistência em seus devires. Baruch: – Estrangeiro, só não podemos esquecer a lógica aristotélica, que nos levou a pensar por meio de proposições, dotadas da estrutura ternária sujeito-epredicado, ligada pelo É do verbo ser. Não podemos esquecer que, ao invés de “Sócrates filosofa”, ela propôs a forma lógica “Sócrates é filósofo”; ao invés de “A árvore verdeja”, “A árvore é verde”. E que esse acabou se tornando o modo dogmático de pensar... Estrangeiro: – Já, em Deleuze, o pensar faz com que o encontro com as relações penetre e corrompa tudo, mine o Ser, faça-o vacilar. Ao invés do É designativo propõe o E, que faz com que as relações corram para fora de seus termos e para fora do conjunto de seus termos, para fora de tudo o que poderia ser determinado como Ser, Uno ou Todo. Baruch: – Trata-se, então, de uma maneira de afrontar a filosofia como teoria do que é para constitui-la como teoria do que fazemos? Estrangeiro: – O pensamento só diz o que é, ao dizer o que faz. Ele reconstrói a imanência substituindo as unidades abstratas por multiplicidades concretas, o É da unificação pelo E..., E..., enquanto processo ou devir – uma multiplicidade para cada coisa, um mundo de fragmentos não-totalizáveis comunicando-se através de relações exteriores. Baruch: – Trata-se, então, de querer o evento, de vivê-lo por inteiro? E não pela metade... Estrangeiro: – De viver segundo uma ética das quantidades intensivas, que tem dois princípios: afirmar até o mais baixo e não se explicar demais. Baruch: – De viver segundo a ética estóica, que nos dizia: – Não sê inferior ao evento! – Torna-te filho de teus próprios eventos!

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Estrangeiro: – Há uma dignidade do evento: – Sê digno dele! O contrário de uma moral da salvação. Baruch: – Eventum tantum. Pedagogia filosófica que ensina a alma a viver a sua vida e não a salvá-la... À vontade abjeta de ser amado opor uma potência de amar. Extrair o puro evento que nos une àqueles que amamos. Àqueles que não esperam mais de nós do que nós deles. Já que só o evento nos espera... Estrangeiro: – Transposição da especulação ontológica para um horizonte ético, para um campo de forças, de sentido e de valor. Baruch: – Transavaliação de Nietzsche e de Deleuze: desculpabilizar a existência, romper com a mobilização dos afectos tristes, que são os princípios da lei, da finalidade, da causalidade, de toda exterioridade ou de todo transcendente natural ou sobre-natural. Estrangeiro: – Para tornar a existência terrena mais leve e alegre... Uma ética que vai contra a atitude ressentida ou vingativa, que quer estancar as velocidades e intensidades, através da lógica representativa. Lógica que agrupa os seres pela continuidade, tomando-os na extensão e nas qualidades, segundo o modelo do idêntico. Baruch: – O pensamento de Nietzsche foi vital para esse conceito de pensar como evento? Estrangeiro: – Foi Nietzsche quem restituiu a intuição do evento, no ponto em que as palavras inscrevem-se enquanto diferenciante intensivo em um processo de criação. Baruch: – A crítica nietzschiana à filosofia da representação dirigiu-se ao ato classificatório ou de significação, que despreza tudo o que é singular (nem individual nem universal), apaga a diferença vital intensiva, e dá-se apenas o idêntico, a semelhança ou a diferença dos semelhantes, apenas a forma e o conceito. Estrangeiro: – A filosofia da representação deixa, assim, de reconhecer a potência inerente ao próprio ato interpretativo – o que dá forma e não pode ser apreendido mediante o que ele forma. Baruch: – Podemos dizer que evento e linguagem são pensados juntos? Que as palavras recebem nelas e sobre elas os eventos, realizando-se como contra-efetuação na efetuação, atualizando algo e provocando um diferenciante? Que o objeto não é o designado, mas o expresso ou exprimível, jamais presente, mas sempre já passado e ainda por vir?

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Estrangeiro: – O evento pertence essencialmente à linguagem, mantém uma relação essencial com ela. Embora a linguagem seja o que se diz das coisas... Baruch: – O evento não preexiste à linguagem? Estrangeiro: – Não, ele a habita, sem com ela se confundir. Baruch: – Por isso, o puro expresso não se confunde com a expressão? Estrangeiro: – O evento não é o que acontece. Ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e espera. Baruch: – Ele implica, portanto, outra lógica do sentido, outro tempo? Estrangeiro: – Ele é inatributável e imprevisível. É o que há para ser compreendido. O que deve ser querido. O que deve ser representado no que acontece. Ele tem: uma extensão – conexão todo-partes, que forma uma série infinita, sem começo nem fim; uma vibração – como uma onda sonora ou luminosa; um indivíduo – que é criatividade, formação de algo novo, o que apreende o evento; objetos eternos – fluxos, do Eterno Retorno. Baruch: – Apreender-se a si mesmo como evento é desejar e compreender todos os outros eventos como indivíduos, sem representar todos os outros indivíduos como eventos? Estrangeiro: – É conceber uma subjetividade essencialmente fortuita, como um ator-dançarino, que percorre uma série de individualidades a cada individualidade outra que ele acredita ser. Baruch: – Diz-nos, Estrangeiro: que é esse pensamento sem as forças efetivas que agem sobre ele e as indeterminações afectivas que nos forçam a pensar? Estrangeiro: – Nada, não é nada. O pensar se dá no infinitivo do presente – e não na primeira pessoa do indicativo. Produzindo o movimento do pensamento, podemos pensar de outro modo. Pensar é criar os novos conceitos requeridos pela experiência real, e não apenas possível (isto é, abstrata), para dar lugar a novas experimentações da vida. Baruch: – Como já vimos anteriormente, a força de uma filosofia é medida pelos conceitos que cria, ou cujo sentido renova, e que impõem um novo recorte às coisas e às ações. Trata-se de uma vida, que não consiste somente no seu confronto com a morte e de uma imanência que não produz transcendência? Estrangeiro: – Conceito e criação se reportam um ao outro para contra-efetuar o evento. A imanência, como vertigem filosófica, é o que está em jogo no trabalho

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filosófico. Zona pré-individual e impessoal, além ou aquém da idéia de consciência, é o que convoca o transcendental, para opô-lo ao transcendente e a toda forma dada no campo da consciência – à transcendência do sujeito, bem como à do objeto. Baruch: – Trata-se da imanência absoluta, ontológica, não fenomenológica ou crítica? Estrangeiro: – Exprime o que há de selvagem e de potente, num tal plano de pensamento. O ser é imanente só a si mesmo, mas está sempre em movimento. Imanência

é

potência,

beatitude

completa,

feita

de

virtualidades,

eventos,

singularidades. Um vitalismo transcendental. Baruch: – Isso tudo está indo rápido demais para mim. Preciso de alguma desaceleração. Por isso, pergunto: se o ato filosófico por excelência é criar conceitos, o que é, afinal de contas, um conceito? Estrangeiro: – É uma aventura do pensamento, que institui um evento ou vários eventos. Aventura que permite um ponto de visada sobre o mundo, sobre o vivido: reaprendizado do vivido, ressignificação do mundo. É um sobrevôo, um pássaro que sobrevoa o vivido. É formado por partes conceituais, que podem ser também, por sua vez, tomadas como conceitos e geram, assim, uma extensão ao infinito. Baruch: – Podes nos dar alguns exemplos? Estrangeiro: – O conceito de Eu em Descartes é formado por três componentes: duvidar, pensar, existir. Cada um desses, por sua vez, já é conceito que tem seus componentes conceituais. Deleuze utiliza o conceito de Eterno Retorno, do plano de imanência nietzschiano, para operar o conceito de Repetição, como repetição da diferença – que é o contrário do conceito de Eterno Retorno como produção do Mesmo e do Idêntico. Baruch: – A produção de sentido e a consistência entre os conceitos é o que interessa em sua formulação? Estrangeiro: – O conceito como evento não é proposicional. A filosofia não é discursiva. Na lógica e na ciência, uma proposição define-se por sua referência a coisas ou estados de coisas. Mas o conceito, que é filosófico, é auto-referente. Nem a ciência nem a lógica operam por conceitos porque as funções científicas supõem uma referência em ato, são coordenações necessárias de estados de coisas ou objetividades, como termos variáveis independentes. As funções lógicas recaem sobre a referência em si mesma, ou como possibilidade proposicional, determinam as condições de referência

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das proposições em geral. Já os conceitos remetem apenas a puros eventos incorporais, distintos de suas atualizações em corpos e estados corpóreos, e formam consistência não referência. Baruch: – No plano, os conceitos são imanentes a quê? Estrangeiro: – São imanentes a um horizonte. Eles têm endoconsistência e exoconsistência. São rizomas, isto é, sistemas a-centrados e não hierárquicos. Baruch: – Realizam conexões, ligamentos, junções horizontalmente num mesmo plano. Mas, nunca saem, verticalmente, desse plano? Estrangeiro: – Por sua imanência, os conceitos evitam realizar experiências que centrem o pensamento em realidades ulteriores, sobrenaturais, místicas, ou que busquem suas referências em estados de coisas (fatos) e em verdades fora do plano. No sentido escolástico, os conceitos desterritorializam o pensar por figuras de cunho transcendental. Baruch: – Contudo, sem referir-se a nada exterior a ele próprio, o conceito não é uma função? Estrangeiro: – O conceito busca consistência nos eventos. Põe-se a si mesmo e põe seu objeto: autoposição do conceito. Ele é autopoiético. Baruch: – Assim, o pensamento conceitual não se interessa por nenhuma correspondência representativa, mas pela própria coerência e produção de sentido. Neste caso, podemos afirmar que a auto-referencialidade torna-se um método filosófico, isto é, uma maneira determinada de fazer filosofia? É isto o que significa pensar por conceitos? Estrangeiro: – O conceito diz o evento, que se efetua em um estado de coisas. Pensar não é tratar os conceitos como noções gerais, mas como eventos. Não como universais, mas como singularidades. Não sair do plano de imanência e buscar uma referência ulterior, mas criar sentido no próprio plano. Pois, se a verdade existe, ela está no sentido das conjunções dos conceitos no plano. Logo, ela é sentido construído. Baruch: – Se os conceitos não são imanentes a nada, a que eles remetem? Estrangeiro: – A problemas, que são o sentido da invenção conceitual e o verdadeiro objeto de uma pedagogia do conceito. Baruch: – Se os conceitos são criados para solucionar problemas que se considera mal vistos ou mal colocados, eles exigem só um problema, sob o qual remanejam ou substituem conceitos precedentes?

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Estrangeiro: – Pode ser um problema, mas também uma encruzilhada de problemas, em que se aliam a outros conceitos coexistentes. Baruch: – Esses problemas, enquanto criações do pensamento, têm a ver com interrogações? Tais como essas que vimos formulando aqui? Estrangeiro: – Não, porque a interrogação é apenas uma proposição suspensa, o pálido duplo de uma afirmativa que se supõe servir-lhe de resposta. Por exemplo, se perguntarmos – Quais são os personagens do Sofista? –, estaremos levando o pensamento a produzir algo de interessante? A fazer com que ele acesse o movimento infinito que o libera do verdadeiro, como paradigma suposto, e reconquiste um poder imanente de criação? Ou levando-o apenas à recognição? Baruch: – A imagem adequada não será a do vapor? Aquele que se desprende dos corpos, das coisas, dos estados de coisas? Como em história, não se trata de atingir a névoa não-histórica que ultrapassa os fatores atuais em proveito de uma criação de novidade? Estrangeiro: – Trata-se da esfera do virtual. A lógica mata o conceito duas vezes. O conceito renasce porque não é uma função científica, nem uma proposição lógica. Ele não pertence a nenhum sistema discursivo. Ele não tem referência. O conceito se mostra e nada mais faz do que se mostrar. Baruch: – Então, os conceitos são verdadeiros monstros que renascem de seus pedaços... Mas, o que dizer, Estrangeiro, de conceitos ou de conjuntos de conceitos vagos ou confusos, simples agregados de percepções e afecções, que se formam no vivido como imanente a um sujeito, a uma consciência? Por exemplo, o conceito de gordo? Não é ele um conjunto vivido, não um enunciado científico nem uma proposição lógica? Não é ele uma simples opinião do sujeito, avaliação subjetiva, juízo de gosto ou juízo empírico? Os conceitos que integram o mundo do vivido são ou não conceitos filosóficos? Estrangeiro: – Com os conceitos do vivido se reconstituem funções científicas ou lógicas, ou inverte-se um novo tipo de função propriamente filosófica. O mundo do vivido é uma fundação primeira para o conceito filosófico. Baruch: – O filosófico se confunde com o vivido, mesmo definido como imanência de um fluxo do sujeito? Os conceitos filosóficos são funções do vivido? Essas funções tornam-se primeiras?

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Estrangeiro: – Ora, Baruch, não se pode confundir o filosófico com o vivido. A fenomenologia já fez isso em demasia... Para o pensamento da diferença, no seio da imanência do vivido a um sujeito, é preciso descobrir atos de transcendência. Baruch: – O sujeito, neste sentido, deixa de ser empírico e passa a ser transcendental? As opiniões e os juízos deixam de ser empíricos e transformam-se em proto-crenças, Urdoxa (opinião disfarçada), opiniões originárias como proposições? Estrangeiro: – O conceito só tem uma consistência definida por seus componentes internos. Ele é evento como puro sentido que percorre os seus componentes. Baruch: – Pelo que disseste, no início de nosso diálogo, esse universo do pensamento engloba também o plano de imanência. Do que entendi, ele consiste na possibilidade de pensar o impensável. Parece que o plano é ao mesmo tempo o que deve ser pensado e o que não pode ser pensado. Pergunto: seria ele o não-pensado do pensamento? O pensamento-outro (pensée autrement), que embaralha a sintaxe e organiza o pensamento numa lógica às avessas? Estrangeiro: – Sim, pode-se afirmar isso. O plano de imanência é alheio às estruturas e acoplado aos processos. É diagrama, e também horizonte e solo. Um campo, onde se produzem, circulam e entrechocam os conceitos. Uma atmosfera. Um reservatório. Um meio indivisível. Baruch: – Podemos afirmar que o pensamento-outro é multiplicador de devires? E que, como todo devir, é composto por fluxos e refluxos nômades, singularidades? Que ele está liberto das categorias, do culto ao todo, dos pares de tensões, como bem/mal? Que opõe ao pensamento binário a inocência do devir? Que é um pensamento marcado não pela vingança nem pela má-consciência, mas, pela vontade de potência? Que o artista é um criador, portanto, um estuprador da folha, da tela, do barro? Já que não existe criação sem lutas entre dobras e estruturas, linhas de fugas e nomeação? Estrangeiro: – O pensador (o criador) é sempre um ignorante... Do valor das opiniões estabelecidas e das verdades recebidas. A filosofia de Deleuze é uma filosofia de campo. Só que esse campo não é pensável por si mesmo. Seu mapeamento só é possível pela definição correlata dos conceitos que o povoam. Baruch: – Os conceitos precisam de um campo virtual prévio e o plano de imanência não subsiste sem os conceitos?

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Estrangeiro: – O plano de imanência ou planômeno (imagem do pensamento) despovoado de conceitos é cego. No limite, é o caos. E o conceito, por sua vez, extraído de seu elemento intuitivo, é vazio. O plano é sempre dito no plural. Ele é um corte no caos. Cortar é captar uma fatia do caos, que permanece livre em todas as outras direções. É um crivo, que seleciona e fixa, determina e contém um rio... Baruch: – De Heráclito... Conceitos e plano de imanência são sempre contemporâneos? Estrangeiro: – Trata-se de um construcionismo filosófico. Sempre que conceitos são criados, é necessário instaurar um planômeno. Compreender o que se passa com um conceito é, simultaneamente, entender o plano de imanência, pois, eles ressoam, correlacionam-se. Mas não se confundem. Baruch: – O que não entendi ainda: qual a relação entre filosofia e vida? Ou seja: quais os efeitos da idéia do plano de imanência e de conceito, em nossa vida imediata, individual ou coletiva? Estrangeiro: – O plano é a máquina abstrata. Os conceitos são agenciamentos concretos, configurações da máquina, suas peças. Baruch: – O que está em jogo, em nossa vida imediata, é, assim, uma luta contra o caos, responsável pela dissolução do consistente? Por isso, o plano retira do caos a consistência que é doada aos conceitos? O plano é o espaço liso, vetorial, cortado por intensidades, por forças criativas de atualização da diferença múltipla, que passam pelo virtual como um corte, que retira dele consistência? Estrangeiro: – O plano é a possibilidade de orientação do pensamento. Baruch: – Ah, finalmente, acho que entendi! Sendo o terreno pré-filosófico que traça coordenadas para a construção conceitual, o plano é a casa do conceito! Estrangeiro: – No plano comum de imanência, que é virtual, estão todos os corpos, todas as almas, todos os indivíduos. Baruch: – Mas, o que é o virtual? Estrangeiro: – O virtual é a virtualidade tornada consistente. A entidade que se forma sobre um plano que corta o caos. Baruch: – É o que se chama evento, ou a parte do que escapa à sua própria atualização em tudo o que acontece? Estrangeiro: – O evento se atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido. Mas, todo evento tem uma parte sombria e secreta, que não pára de se subtrair

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ou de se acrescentar à sua atualização. Ele não começa nem acaba, mas ganha ou guarda o movimento infinito ao qual dá consistência. É o virtual que se distingue do atual. Mas um virtual que não é mais caótico, tornado consistente ou real, sobre o plano que o arranca do caos. Baruch: – Por isso é que Deleuze gosta de repetir Proust: “real sem ser atual, ideal sem ser abstrato”... Estrangeiro: – O evento é transcendente, porque sobrevoa o estado de coisas, os corpos, o vivido. Mas somente a imanência pura lhe dá a capacidade de sobrevoar-se a si, em si mesmo, e sobre o plano. Quando então ele se faz trans-descendente. Movimentos do evento... Baruch: – Desde que ele é imaterial, incorporal, invisível: pura reserva. Desde que ele não é eterno, mas também não é tempo: é devir. É um tempo morto, uma espera infinita que já passou infinitamente... Estrangeiro: – Espera e reserva. Nada se passa aí. Todavia, tudo muda, porque o devir não pára de conduzir o evento, que se atualiza alhures, a um outro momento. O conceito tem uma potência de repetição, a realidade de um virtual, de um incorporal, de um impassível, porque é ele que apreende o evento, seu devir, suas variações. Baruch: – Só que, Estrangeiro, para mim, há algo ainda muito enigmático: a instância intermédia dos personagens conceituais. Eles têm uma existência fluida entre o conceito e o plano pré-conceitual, certo. Mas, de onde eles vêm? Como aparecem? Estrangeiro: – A filosofia passa pelo estudo desses personagens, de suas mutações segundo os planos, de sua variedade segundo os conceitos. Ela dá vida aos personagens conceituais, que não podem aparecer por si mesmos, mas que estão lá e devem ser reconstituídos. Baruch: – Fico confuso porque os personagens conceituais, por vezes, têm um nome próprio, como Sócrates, no platonismo. Entretanto, outras vezes, personagens como Teeteto, Teodoro, Fédon, Equécrates, Críton, Símias, Gláucon, dos Diálogos platônicos, não são considerados personagens conceituais. Estrangeiro: – Todo personagem conceitual é original, único, notável. Ele é quem opera os movimentos que descrevem o plano do pensamento e intervêm na criação dos conceitos do pensador.

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Baruch: – Mesmo os personagens antipáticos – como o capitalista, em Marx – ou simpáticos – como o proletário, ou o amigo para os gregos – pertencem ao plano que traçam e aos conceitos que criam? Estrangeiro: – O rosto e o corpo dos filósofos abrigam os personagens conceituais, que lhes dão um ar estranho, sobretudo no olhar, como se outros vissem através de seus olhos. Os personagens não representam os filósofos, mas são os seus heterônimos. Os filósofos são idiossincrasias de seus personagens. E o seu destino é transformar-se neles. Ao mesmo tempo em que eles se tornam sempre outras coisas diferentes do que são historicamente. E renascem como tigres ou diabos... Baruch: – O personagem é o agente da enunciação filosófica, não dito mas pensando... Estrangeiro: – Em filosofia, o Eu é sempre uma terceira pessoa. Baruch: – Sim. Eu quero como Zaratustra... Os personagens não são personificações míticas, pessoas históricas, nem heróis literários ou romanescos. Não é o Dioniso dos mitos que está em Nietzsche... Porque devir não é ser. E o próprio Nietzsche devém Dioniso. Há, então, diferença entre os personagens conceituais e as figuras estéticas? Estrangeiro: – Os personagens são potências de conceitos, que operam sobre um plano de imanência. E produzem conceitos. As figuras estéticas são potências de afectos e perceptos, que operam sobre um plano de composição. E produzem afectos. Baruch: – Mas ambas, arte e filosofia, recortam o caos, isto é, pensam? Estrangeiro: – A arte pensa por afectos e perceptos, enquanto a filosofia pensa por conceitos. Esses pensamentos passam um pelo outro, numa intensidade que os codeterminam. Entre as figuras estéticas e os personagens conceituais, há alianças, bifurcações e substituições. Baruch: – Então, o conceito pode tanto ser de afecto, quanto o afecto pode ser afecto de conceito? Estrangeiro: – O plano de composição da arte e o plano de consistência da filosofia podem deslizar um no outro. Certas extensões de um podem ser ocupadas por entidades do outro. Embora o plano e aquilo que o ocupa sejam partes distintas, heterogêneas. Baruch: – É assim que um pensador pode modificar o que seja pensar... Mas, ao traçar um novo plano de imanência, em vez de criar novos conceitos, o filósofo pode

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povoá-lo com entidades poéticas, romanescas, pictóricas, musicais? E o artista pode fazer o inverso acontecer? Estrangeiro: – Pensadores como Hölderlin, Rimbaud, Mallarmé, Pessoa não fazem uma síntese entre arte e filosofia. Eles, tampouco, são filósofos pela metade. São mais do que filósofos! Acrobatas de um malabarismo perpétuo, eles bifurcam, instalamse na própria diferença. Baruch: – Tanto os personagens conceituais como as figuras estéticas são irredutíveis a tipos psicossociais? Estrangeiro: – Um campo social comporta dinamismos poderosos, em que os movimentos dos personagens, das figuras e dos tipos psicossociais se interpenetram incessantemente. O estrangeiro, o migrante, o excluído, o passante, o autóctone... Baruch: – Para não misturá-los, é necessário diagnosticar verdadeiros tipos psicossociais ou personagens ou figuras, numa sociedade dada, num momento dado. Entretanto, não me parece fácil... Quais as operações que eles realizam? Estrangeiro: – Os tipos psicossociais tornam perceptíveis as formações de territórios, os vetores de desterritorialização, os processos de reterritorialização. Baruch: – E as figuras estéticas? Estrangeiro: – Elas falam a linguagem das sensações, que fazem entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras. Vêem a Vida no vivente e o Vivente no vivido. São atletas afectivos... Baruch: – E os personagens conceituais? Estrangeiro: – Os personagens manifestam os territórios, desterritorializações e reterritorializações do pensamento. Baruch: – Isso quer dizer que os personagens nos preexistem? Eles assumem uma nova existência, como condições interiores do pensamento para o seu exercício real? Eles pensam em nós? Estrangeiro: – Eles são pensadores. Assim, o Amigo, o Juiz, o Legislador não são estados privados, públicos ou jurídicos, mas o que cabe de direito ao pensamento. Baruch: – Os personagens conceituais e os tipos psicossociais remetem um ao outro e se conjugam, sem se confundirem? Estrangeiro: – Os traços dos personagens têm, com a época e com o meio em que aparecem, relações que só os tipos psicossociais permitem avaliar. Os movimentos físicos e mentais dos tipos psicossociais são suscetíveis de uma determinação pensante e

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pensada, que os arranca tanto dos estados de coisas históricas de uma sociedade, como do vivido dos indivíduos. E faz deles traços de personagens conceituais, ou eventos do pensamento, sobre o plano traçado ou sob os conceitos criados. Baruch: – Quais são, afinal, os traços dos personagens conceituais? Esses traços variam com os planos de imanência? Sobre um mesmo plano, diferentes traços podem se misturar para compor um personagem? Estrangeiro: – Há traços páticos: o Idiota, o Louco, a Múmia, um grande maníaco. O esquizofrênico é um personagem conceitual que vive no pensador e o força a pensar, assim como também é um tipo psicossocial que reprime o vivo: os dois se conjugam. Há traços relacionais: o Amigo, mas que só tem relação com seu amigo, Pretendente e Rival, que disputam a coisa ou o conceito, mais o Jovem, uma Noiva. Há também traços dinâmicos: dançar como Nietzsche ou pensar como surfista. Os traços jurídicos ocorrem quando o pensamento exige o que lhe é de direito. Já os traços existenciais dizem respeito à filosofia que inventa possibilidades de vida. Baruch: – O personagem conceitual e o plano de imanência estão em pressuposição recíproca? Estrangeiro: – Ora o personagem precede o plano, ora o segue. É que ele aparece duas vezes: primeiramente, mergulha no caos e tira daí determinações, das quais faz os traços diagramáticos de um plano. Então, como se fossem dados, joga-os no acaso-caos e os lança sobre a mesa. Para cada dado que cai, faz corresponder os traços de um personagem e os componentes de um conceito, que vêm ocupar a mesa. Baruch: – Os personagens intervêm entre o caos e os traços diagramáticos dos planos? E também entre estes e os traços intensivos dos conceitos? Eles constituem os pontos de vista segundo os quais os planos se distinguem ou se aproximam? São eles que constituem as condições sob as quais cada plano de imanência se vê preenchido por conceitos do mesmo grupo? Estrangeiro: – O plano de imanência tem traços diagramáticos. O conceito tem traços intensivos. Já, o personagem conceitual é ponto de vista e condição. Os traços personalísticos dos personagens se juntam aos diagramáticos do plano e aos intensivos dos conceitos. Baruch: – Do que entendi, os conceitos não se deduzem do plano de imanência. É necessário o personagem conceitual para criá-los sobre o plano e para traçar o próprio

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plano. Parece-me, entretanto, que essas duas operações não se confundem no personagem, uma vez que ele é um operador distinto. Estrangeiro: – Os planos são inumeráveis, agrupam-se ou se separam segundo os pontos de vista constituídos pelos personagens. Cada personagem tem vários traços, os quais podem criar outros personagens sobre o mesmo plano ou sobre outro plano de imanência. Há, desse modo, uma proliferação de personagens conceituais. Assim como há uma infinidade de conceitos possíveis sobre um plano. Há grupos de conceitos, que ressoam entre si e lançam pontes. Há famílias de planos. Há tipos de personagens, segundo a possibilidade de encontro sobre um mesmo plano e num grupo. Ou seja, é um mundo muito rico... Baruch: – Vejo essa filosofia girando ao redor duma trindade de elementos: um pré-filosófico, de imanência – o plano; outro pró-filosófico, de insistência – os personagens conceituais; o terceiro, filosófico, de consistência – os conceitos. É assim? Estrangeiro: – Só que ainda há uma faculdade de co-adaptação desses três elementos, uma regra de correspondência das três instâncias: o gosto filosófico. A razão é a faculdade que traça o plano de imanência. A imaginação inventa os personagens conceituais. O entendimento cria os conceitos. Já o gosto é a tripla faculdade do conceito ainda indeterminado, do personagem conceitual ainda nos limbos, do plano de imanência ainda transparente. Baruch: – Ah, é o amor do conceito bem feito, como um novo lance, não? Não se dá o mesmo na arte? Há um gosto também pelos monstros, segundo o qual eles devem ser bem feitos! Estrangeiro: – Assim é... Baruch: – Então, há, por um lado, o que se pode chamar de mau gosto em filosofia? Seria aquilo que é desinteressante por natureza? Estrangeiro: – O mau gosto consiste na redução dos conceitos a proposições ou a simples opiniões. O desinteressante consiste em conceitos inconsistentes, ou por demais regulares, ou em conceitos mais universais, que são os mais esqueléticos. Baruch: – Por outro lado, existe um bom gosto? Estrangeiro: – É o plano de imanência traçado, que opera por abalos. O personagem conceitual inventado, que opera por solavancos. O conceito criado, que opera por saraivadas. Agora, o que é problemático, por natureza, é a relação das três

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instâncias. Nada se sabe se não se construir o plano, o conceito, o personagem. São categorias do Espírito... Baruch: – Rumando para o final, Estrangeiro, importa falar, um pouco mais, sobre as ordens de criação que mergulham e recortam o caos, produzindo sentidos. Estrangeiro: – Como já vimos, são três ordens de criação: a filosofia, a arte e a ciência. Baruch: – Já sei que elas se distinguem em função de comportamentos diferentes diante do caos. Mas, podemos ver, primeiramente, as distinções entre filosofia e ciência? Estrangeiro: – O plano filosófico de imanência corta o caos, dá-lhe consistência, fá-lo não mais transparente. A ciência dá referência ao caos, renuncia aos movimentos e velocidades infinitos, renuncia ao devir. Baruch: – Então, a ciência não se ocupa de conceitos? Estrangeiro: – Não, ela se ocupa de funções, que se apresentam em forma de proposições. O caos traz o possível, mas com consistência e referência entrópicas. A ciência atualiza o virtual, através das funções, buscando retirar dele referência. Por isso, ela instaura um plano de referência. Baruch: – Devido à sua exigência de paradigmas de verdade? Estrangeiro: – Essa exigência inibe o poder imanente do conceito (consistência e sentido no jogo dos planos), em detrimento de verdades capazes de estabelecer uma correspondência entre o objeto (estado de coisas-fatos) e a idéia (modelo hipotético). Assim, a ciência é paradigmática, luta para dominar o caos e transformá-lo em verificação. Baruch: – Mas, há também a lógica, como já referiste. Estrangeiro: – Os prospectos designam os elementos da proposição lógica: função proposicional, variáveis, valor de verdade (igual a verdadeiro e falso). A lógica é reducionista por essência: ela quer fazer do conceito uma função. O conceito proposicional opera uma logicização dos functivos, que se tornam os prospectos de uma proposição, isto é, realizam a passagem da proposição científica à proposição lógica. Quando se torna proposicional, o conceito perde todos os caracteres que possuía como conceito filosófico. Por exemplo, “Leopold Bloom é homem” e “Molly Bloom é mulher” são prospectos apenas com valor de informação. Baruch: – E quanto a outras relações entre arte e filosofia?

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Estrangeiro: – A arte deixa o caos sensível. Traça um plano de composição lotado de blocos de sensação, isto é, compostos de perceptos e afectos. Conserva e se conserva a si. A obra de arte é um ser de sensação e nada mais: ela existe em si. Baruch: – Mas, o que são perceptos e afectos? Estrangeiro: – Perceptos e afectos são sensações, seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Pinta-se, esculpe-se, compõe-se, escreve-se com sensações. Baruch: – O afecto é o que é semelhante: “como o cachorro”, por exemplo? Estrangeiro: – Os afectos não são semelhanças, mas devires. Algo passa de um ao outro. Este algo é a sensação. Coisas, animais e pessoas atingem, na zona do afecto, um ponto que precede toda sua diferenciação natural. Baruch: – As figuras estéticas da arte são sensações. Já estas são percepções, que remetem a um objeto ou a um sujeito? Estrangeiro: – São perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires. Os afectos são os devires não-humanos do humano. Os perceptos são as paisagens nãohumanas da Natureza. Nathalie Sarraute não escreve com lembranças de infância, mas por blocos de perceptos e afectos de infância, que são devires-infantis do presente. As fabulações criadoras nada têm a ver com imaginação, lembranças, fantasmas. Os estados perceptivos e as passagens afectivas do vivido são excedidos. Na arte, é-se um vidente, alguém que se torna. Criam-se potências semipessoais ou presenças eficazes. É assim que se acrescentam novas variedades ao mundo. Baruch: – Porém, o conceito também não é composto por perceptos e afectos, paisagens e rostos, visões e devires? Estrangeiro: – Embora tudo seja devir, não se trata do mesmo devir. O da sensação é o ato pelo qual algo ou alguém não pára de devir-outro, continuando a ser o que é − alteridade numa matéria de expressão. O devir conceitual é o ato pelo qual o evento esquiva o que é − heterogeneidade absoluta. Baruch: – Então, não estamos nunca no mundo, nos tornamos com o mundo. Estrangeiro: – Mais do que isso: tornamo-nos universo... Finis. DESINÊNCIA (Aischrología. Linguagem feia, vergonhosa. Ética a Nicômano. – Que pai, hem? – Tocam-se sinos para essa sina?! Riverrun. – Noite escura. Rua escura. Um revólver. Um bandido. E eu. – A bolsa ou a vida? Olhei minha bolsa. Olhei minha vida. E

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respondi: – Escolha. Ambas estão vazias. Uma multidão de esfarrapados se avoluma através das poças de lama, carregando amuletos em forma de vaginas e falos. Há tochas também, com a mesma função apotropaica. Ólisboi. – De Mileto? – Escolher entre a fome do homem e a vida do bicho é difícil! – Bestalhão... Por entre as brechas, o nevoeiro rola para trás, revelando-a. Algures. Com touca e capa de pele de raposa branca, enrolada até o pescoço, ela sai de sua carruagem. À frente, no peito, duas suculentas maçãs maduras. Tira as mãos, perfumadas com água de rosas, do imenso regalo e as agita no ar. Com os lábios úmidos (seus dardos do amor), grita que parem, pois ela não é ninguém, nem uma metalinguagem. – Tansa! Tansa! Tansa! Riem zombeteiramente. – Here Comes Everybody. Aquilo estava virando um mantra. – Dêemlhes brioches! Ou os açoitem com violência – ela diz, veemente. Esganiçada. Esgoelada. Gasguita. Vaias a fazem calar. Franze a testa. Badaladas chegam de campanários diversos. À sua frente, o padre de barriga de sapo se benze. Prostituição sagrada. – Hieròs gamós. Máquina infernal, ela é a imagem do mundo que não se compreende em palavras. Escandalosa, é contraveneno à besteira. – Ars. Seu amor é como fatum, como fatalidade, único, inocente. Liame de olhos. Brilhantes. Injetados. Verdejantes. Rejeita o socratismo estético. É forma e caos. Luz e noite. Aparência e essência. Imagem e música. Apolo e Dioniso. Aristófanes e As tesmóforas. Tristão e Isolda. Heloisa e Abelardo. Cruzada das crianças. – Venho não sei de onde. Sou não sei quem. Morro não sei quando. Vou não sei onde. Espanto-me de ser tão alegre. Jogos de pensares e quereres e fazeres dos artistas. – O non plus ultra. – Tà aphrodísia. Então, volta-se e diz: – ...a les rayons du ciel dans le cul. – Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungo, expulso, execro e maldigo. O marrano. Maldito seja de dia. E maldito seja de noite. Maldito seja quando se deita. E maldito seja quando se levanta. Maldito seja quando sai. Maldito seja quando regressa. Ordeno que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita. Que ninguém lhe preste favor algum. Que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro côvados. Que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele. – He also believed that pleasure... – Existem muitos piores do que ele, mas pouquíssimos melhores. – Eu lhe daria tudo quanto tenho. À porfia. Se ele me quisesse. Eu seria sua escrava. Por ele, eu iria até para o fogo.) kairós estamos agora em condições de dissipar as ambigüidades aparecidas no início Salve porque fazer filosofia não é refletir sobre domínios extrínsecos a ela mesma

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muito menos é repetir os filósofos Ah já que ela não pára de colocar-se em relação intrínseca com outros domínios embora não tenha o objetivo de fundá-los ou de justificá-los Ah bom apenas tematiza elementos não-conceituais que são atos saberes funções sons imagens linhas cores a ciência o literário o artístico e com eles estabelece ecos conexões ressonâncias articulações agenciamentos convergências que Ó ela integra e transforma em conceitos de modo que Ó o filósofo é criador e não reflexivo nem comunicador Imagine a filosofia Não é contemplação Não Nunca pois a contemplação Não é criativa Ó como no platonismo que visa a coisa mesma tomada como preexistente e independente do ato de contemplar Não Também não é reflexão sobre alguma coisa externa ao intelecto porque a reflexão Não é específica da atividade filosófica e Não é Nada de comunicação porque esta visa ao consenso não ao conceito como querem Aqueles chatos neopragmatistas que propõem uma conversação democrática ao redor da mesa do banquete e dificilmente Muito dificilmente saem da opinião Ó é que o filósofo só pensa a partir de Ó e a sua questão central é esta mesma O que é pensar E eis a filosofia definida por seu poder criador e pela exigência de criação de um novo pensamento Ah maravilha ela é arte de formar inventar fabricar conceitos Ó desde quando a palavra grega filosofia philia + sophia cruzou amizade remetida à proximidade e ao encontro com o conceito e fez com que o personagem do filósofo nascesse com os gregos como aquele que busca o que nunca é dado Ah lindeza como procura e produção e pensa o conceito diferentemente dos sábios antigos que Ah eles sim pensavam por figuras externas e transcendentes Então foi assim que o filósofo definiu-se Ó que coisa bonita como amigo do conceito e agora Vejam Salve Viva a filosofia da diferença resgata tudo isso e Ó admite que a sua tarefa é necessariamente criativa enquanto o amigo é um personagem conceitual que Bravo contribui para a definição dos conceitos e que a filosofia Ah bem jamais jamais é passiva frente ao mundo Isto sim sendo a sua atividade de criar conceitos uma intervenção no mundo Melhor Bem Melhor a criação de um mundo e Olha a surpresa acontece o mesmo com a ciência e a arte e a literatura Mas não de jeito nenhum isso resulta numa assimilação desses domínios nem no predomínio de nenhum deles sobre os outros Como não Cada um é criador ao seu modo E a filosofia tem por função específica criar conceitos E a ciência criar funções E a arte criar agregados sensíveis Ora assim a filosofia é uma prática dos conceitos que se interconexiona com outras práticas como Ó uma filosofia do inferno não é sobre o inferno Diabos mas é um pensar Infernal é verdade desde os

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conceitos que o Inferno suscita e que estão por sua vez em relação com outros conceitos que correspondem a outras práticas Ah então é no nível de cruzamento de várias práticas que os eventos E Ventos E Ventos E Ventos se fazem Claro por isso trata-se de uma geografia do pensamento mais do que de uma história Por isso em vez de constituir sistemas fechados a filosofia pressupõe eixos e orientações e traça dimensões e Claro sua história não é linear nem progressiva mas constitui espaços tipos conceitos planos personagens não só heterogêneos mas até mesmo antagônicos e Ó enquanto os dualismos são metafísicos ela Olha ela aí é um elogio da multiplicidade Maravilha para a qual existem apenas graus e sutis transições Ó pensamento filosófico rizomáticoooooooooo Ó móvel que não cessamos de deslocarrrrrrrrrr Ó a relação entre a criação de conceitos e a tradição filosófica e o pensamento de filósofos intempestivos é condição para esse modo singular de filosofar Ó aquele que foge da hermenêutica da interpretação do comentário e Ó tem efeito de diagnóstico multipolar e Ó sua potência performativa o situa fora dos campos de referência tradicionais da filosofia e forma blocos de devir Ah lindos que deslocam as territorialidades de origem Ah formulam uma nova política do saber Ah constroem um espaço ideal liberto dos pressupostos da imagem dogmática da filosofia da representação em Tudo Tudo Tudo diferente de Platão Aristóteles Descartes Kant Hegel Ah espaço que torna o pensamento de novo possível disse O querido Foucault Ah sim e não cansa de colocar em jogo sua própria atualidade a partir da necessidade de pensar de outro modo claramente dissidenteeeeeeeeeee Ó que resulta num exercício inatual como se o pensamento fosse uma colagem em pintura Ó roubar Ó realizar inflexões de leituras que têm um caráter instrumental e Ó não procurar nenhuma idéia verdadeira mas idéias diferentes em outros domínios Ó de modo que alguma coisa passe entre elas e Bem repete-se um texto não para buscar sua identidade mas afirmar a sua diferençaaaaaaaaaa e fazê-lo agir como um Duplo-Duplo Duplo-Duplo e comportar o máximo de variação própria ao duplo produzido por deslocamento disfarce dissimulação recriação e Ó modificá-lo Tanto Tanto que o real se transforme em imaginário fingido inventado fabulado Ó desembaraçar os conceitos de seus sistemas de origem e Ó roubar até mesmo aqueles que ficam na antípoda das posições adotadas Ó usá-los como operadores independentemente das inter-relações conceituais próprias do plano de pensamento ao qual pertenciam Ó passíveis de pequenas ou grandes torções e Ó aproveitá-los em problemas que são os nossos e Aí se tudo correr bem bem bem escrever um livro de

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filosofia como ficção científica ou um romance policial e Ai Ai Ai zeus nos ajude e não nos desampare fazer filosofia como um teatro filosófico e Daí trazer os filósofos à cena como máscaras de suas próprias máscaras pois No fundo No fundo para Nietzsche Sim Sempre Tudo é máscara Ó fazer multiplicidade no pensamento e na escrita Que difícil Que difícil usar todas as formas concretas e modos de expressão possíveis Se tivermos sorte levar a filosofia percorrer um plano de composição para o pensamento e Ó realizar agenciamentos para um mundo dramatizado a partir dos devires mais atuais que desterritorializam o que já pensamos e Ó integram a alternativa radical do pensamento do Eterno Retorno e da Vontade de Potência que Aí justamente constituem a condição de possibilidade da chamada reversão do platonismo e que critica a representação A qual Que pena Que lástima reduz o conceito à identidade e a expande pela semelhança analogia negativo E é assim que a filosofia da diferença não se orienta nem pela altura e nem pela profundidade mas pelo abismo existente atrás de toda caverna E é na superfície sobre o plano de imanência e Ó ela não é nada sem as forças efetivas que agem sobre ela e as indeterminações afectivas que a forçam a pensar Ó se dá no infinitivo não no Eu que é o do presente Ó pensar assim é criar novos conceitos requeridos pela experiência real não apenas possível mas pelos eventos Ó dar lugar a novas experimentações de vida e Claro ter a sua força medida pelos conceitos que cria ou cujo sentido renova Ó filosofia que impõe um novo recorte às coisas e às ações Ó filosofia que descobre no devir a sua condição Ó filosofia que tem como princípio uma razão contingente Ó filosofia que tem no virtual distinto de suas formas de atualização uma maneira de problematização do movimento infinito do entre-pensamento Ó filosofia que joga em seu trabalho a vertigem filosófica que convoca o transcendental para opô-lo ao transcendente e a toda forma dada na consciência Ó filosofia que opõe à transcendência do sujeito e do objeto uma imanência absoluta ontológica Ó filosofia que envolve uma nova inteligência do político irredutível à filosofia política tradicional Ó filosofia que funciona como operadora de desencravamento da filosofia contemporânea acomodada nos blocos fenomenológico e analítico Ó filosofia que diz respeito às ciências e às artes desde que domina as potências do Fora que se empenha em captar e individuar na forma de idéias vitais Ó filosofia que tem por função dizer o evento e não mais a essência Ó filosofia que pensa por conceitos cruzados com funções ou sensações E um desses pensamentos Nunca Surpreendente é mais plenamente pensado do que os outros e os três entrelaçam-se sem síntese nem identificação Isto que é belo e traçam

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planos de consistência de referência de composição sobre o caos Claro que não como as religiões que invocam dinastias de deuses ou a epifania de um deus único e Ora bolas Covardes Frouxos Medrosos pintam sobre o guarda-sol um firmamento com as figuras de uma Urdoxa Ó opinião disfarçada de onde derivam as nossas opiniões Claro que são pensamentos que fazem surgir eventos com seus conceitos Ó erguem monumentos com suas sensações Ó constroem estados de coisas com suas funções Ó rico tecido de correspondência que se estabelece entre os planos Ó rede com seus pontos culminantes Ó cada elemento sendo criado sobre um plano e apelando a outros elementos heterogêneos que restam para criar sobre outros planos Ó pensamento como heterogênese Agora muito muito Cuidado pontos culminantes são perigosos porque podem nos reconduzir à opinião Cuidado de onde queríamos sair ou Cuidado nos precipitar no caos que queríamos enfrentar Ó pensamento que experimenta Ó política do ser mais do que metafísica Ó política das ciências mais do que epistemologia Ó política da sensação mais do que estética Ó política do inconsciente mais do que psicologia Ó micropolítica do desejo mais do que psicanálise Ó política da língua e pragmática mais do que lingüística dos signos Ó ética dos devires mais do que filosofia política Ó ecologia especulativa das práticas Ó política da filosofia para resistir ao presente e inventar outras possibilidades de vida Ó construcionismo sistemático Ó trabalho sobre autores como produção de experiência Ó antropofagia de idéias Ó rajadas e sacudidas que nos atingem pelas costas Ó móveis que não cessamos de deslocar deslocar de mudar mudar de lugar lugar lugar risum teneatis, amici

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