\"Árvores na paisagem: “O que se vê está lá” - Rita Carreiro. Galeria fuga pela escada – Guimarães

May 28, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Estética, Arte Contemporanea, Pintura, Paisagem, Arte Portuguesa
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Galeria fuga pela escada – Guimarães Janeiro 2004

Árvores na paisagem: “O que se vê está lá”

“Por trás das árvores há um outro mundo, o rio traz-me as queixas, o rio traz-me os sonhos, o rio fica silente quando eu, à noite, nas florestas, sonho com o Norte (…) Por trás das árvores há um outro mundo, eles descem em longos sulcos para as aldeias, para as florestas dos milénios, amanhã perguntam por mim…”1

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Com o Renascimento, a paisagem passou a constituir, em “escorço” e em decisão final, uma maneira aproximativa à reprodução científica do mundo, assumindo um carácter de imagem documental, fiel e permanente. 2 A paisagem serviu como ponto de partida a uma pesquisa específica, cujos problemas estavam, em parte, ligados aos da óptica, da botânica ou da física, mas conservando o carácter da sua particularidade estética. Os contributos científicos vieram consolidar a pintura num patamar cognoscitivo superior, ascendendo ao nível das ciências legitimadas. Admitia-se-lhe uma categoria que transcendia a técnica como fim em si, conformando-a a partir de uma panóplia de conhecimentos especializados, convergindo para a produção pictural. “Não há neblinas de arte nem do espaço alegre as cores!”



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Da paisagem emanava um certo esplendor de segurança, de efémera sensação de domínio num mundo volvido antropocêntrico. Contribuía para a destruição de uma noção topográfica finita, curiosamente…Ou seja, plasmando a visão do mundo natural, através de uma concepção ciente da exigência de fundamentação, a composição pictural ganhou os seus próprios terrenos: quer em termos estéticos, quer em termos cognitivos, servindo estes de fundamento, estímulo e meta. “Em minha opinião, não há nenhum [caminho] mais atraente do que andar no encalço das próprias 4 ideias, tal como o caçador persegue a caça, sem procurar manter um dado caminho.”

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A paisagem passou a ser domada em mapas da natureza, cartografias ensaiadas que estimulavam cada um dos observadores privilegiados da natureza – os pintores, os poetas, os botânicos e os demais ansiosos de saber. Nesse tempo, datado a partir quattrocentto, aparentemente a paisagem servia para enfatizar os retratados, as pessoas cuja memória se queria, por um ou outro motivo, preservar, protelar. Mas, atendendo bem ao olhar em pormenor, observam-se rios e

Thomas Bernhard, “Por trás das árvores há um outro mundo”, Na Terra e no Inferno, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000, pp.61 e ss. 2 Ressalvo que as pinturas de Rita Carreiro me obrigam a recordar alguns pressupostos acerca do que se considera “paisagem” no âmbito da cultura europeia e suas manifestações picturais. 3 Ossip Mandelstam, Guarda minha fala para sempre, Lisboa, Assírio & Alvim, 1996, p. 217 4 Xavier de Meistre, Viagem à roda do meu quarto, Lisboa, & etc, 2002, p.25

montanhas, prados e nuvens e tudo o mais que a razão sabe da natureza visível. Em manhãs (antigas) nebuladas, anoiteceres (nítidos e) submissos, expõe-se a sabedoria da luz e das sombras que, com mestria, então (e depois) se venerava: panoramas distantes… “Como Rembrandt, mártir do claro-escuro, 5 Mergulhei muito no tempo e emudeci.”



E, assim, nos tempos que se lhes seguiu, os demais artistas – maneiristas, barrocos e clássicos – souberam desenvolver caminhos em que pessoas e paisagens se estimulavam em sonhos mais ou menos fundados em narrativas da terra dos vivos e das terras dos deuses fossem estes quais fossem. “…É como a manhã. Os olhos sugerem-me todos os céus distantes daquelas manhãs antigas. E tem nos olhos um firme propósito: a luz mais nítida que a manhã jamais teve nestas montanhas. Criei-a do fundo de todas as coisas 6 que me são queridas e não consigo compreendê-la.”



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Durante o séc. XVII, por influência do Classicismo Francês, desenvolveram-se estudos da autoria de André Felibien ou do próprio Nicolas Poussin7, sobre as condições e directrizes da pintura. A organização, a definição composicional de paisagem, à semelhança do que aconteceu com outros géneros pictóricos (o retrato designadamente) cedeu lugar a juízos de carácter intuitivo, raramente a juízos de natureza histórica. Estes viriam a repercutir muito para além do seu tempo de formulação, insinuando-se em linguagens distintivas e bem distanciadas. O estudo das ideias e dos princípios da composição ficaram por concluir, abertos a posteriores estipulações quer normativas, quer hermenêuticas. Tomada como objecto de representação precisamente a partir do séc. XVII, só se tornou sujeito dessa mesma pintura, quando penetrou nos domínios dos estudos científicos esclarecidos. A paisagem, na tradição ocidental, foi tomada por uma propriedade retórica que se reinventava segundo as normas consignadas nos tratados dos mestres e/ou segundo os modelos implementados para a consecução de uma iconografia quase escrita. Os estudos de árvores - desenhos e aguarelas a sépia - de Claude Lorrain primeiro, assim como os de Théodore Rousseau ou de Corot depois, prosseguiram a tradição da observação minuciosa e selectiva dos elementos vegetais da natureza, dissecando-os, anatomizando-os para os reconstituir finalmente. Com a generalização funcional de procedimentos fotográficos, a perseguida utopia de possuir o real, libertou a pintura, tornando-a disponível para outras vias exploratórias. As temáticas subjacentes à paisagem como género foram substâncias desejáveis e oportunas para a implementação de exercícios visuais: quer pelo lado da fotografia, quer pelo lado da pintura. A opção aproximativa a diferentes ângulos e planos, a fruição de elementos naturais destacados do todo considerado ou o distanciamento instituído e deliberado, foram terrenos profícuos, para a revisão plástica da paisagem, experienciada na multiplicidade de linguagens que convieram nas primeiras décadas de 1900. Mondrian usou com uma clarividência invejável motivos integrantes da paisagem convencional para aceder a formulações então vistas como últimas e quase insuperáveis no caminho da inventividade depurada e geométrica. A árvore, as árvores foram

Ossip Mandelstam, Op.cit., p.181 Cesare Pavese – Trabalhar cansa, Lisboa, Ed. Cotovia, 1997 7 Sabe-se, ou pelo menos consta, que Poussin trazia sempre consigo um pequeno caderno de desenho, quando passeava no campo, para registar esboços ao vivo. No seu caso, tais desenhos serviam uma etapa necessária à construção de cenas que, posteriormente, compunham os seus ideais clássicos em pintura. 6



reduzidas à sua essência, trabalhadas ao longo de um processo de maturação estética e pictural, culminante na estrutura gráfica recheada de notações cromáticas basilares. Os ritmos que se desprendiam destas pinturas – em prol de uma abstracção atingida – conformados em linhas rectas e curvas, criaram um roteiro de depuração autognósica. Chegando às derradeiras décadas do século XX, os pressupostos para a constituição das novas revisitações figurativas e/ou representacionais, manifestaram-se em certas tendências “de autor”; retomaram a abordagem pictural da paisagem, após uma erradicação e ausência conhecidas. Implementou-se assim uma concepção designada por “paisagem estética”, redimida por argumentatividades éticas, concretizada através de discursos plásticos específicos e sustentada pela oscilação de um gosto caído para a rede da pintura revalidada.

“Eu desenrolo lentamente as pinturas, e enquanto as observo, avanço numa extensão sem limites que me envolve por todos os lados e que me abre para um sentimento de infinito inspirado pelo céu.” Zong Bing (375-443 A.C.)



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As incursões realizadas de acordo com este conceito de “paisagem estética” reflectia uma intencionalidade efectiva8, promovendo uma aproximação por via ironista, da reciclagem filosófica, da metodologia e crítica históricas da picturalidade (incidindo sobre si mesma), mas significou, também, retomar, com propriedade autoral devidamente presente, a própria pintura como sistema. A paisagem como género conformou-se enquanto forma de arte particular, ligada a uma especialização técnica e iconográfica precisa e exigente. Quando a paisagem não descreve com minúcia e rigor uma ambiência natural específica, está (igualmente) a fornecer uma interpretação que continua a ser dominada pela percepção visual. Procede, recorrendo a uma escolha prévia, determinada por uma visão intencionalizada e parcial (orientada para um certo ângulo) - o que aliás sucede mesmo quando o objectivo é dar uma representação exacta e documental da natureza. “Aos olhos dos Anjos, os cimos das árvores são talvez raízes que bebem os céus; e, no solo, as raízes profundas de uma faia 9 parecem-lhes cumeeiras de silêncio.”



A paisagem consubstancializa-se, morfologicamente, integrando elementos (isolados e cúmplices), reagrupados consoante as consignações estéticas e estilísticas dominantes: árvores e oceanos, edifícios e sítios, rios e cidades, colinas e montanhas, efeitos atmosféricos... o

[Uns mais do que outros elementos – acima abordados - foram ressuscitados, na sua singeleza e estrutura, por Rita Carreiro.]

As peças de pintura de Rita Carreiro conhecem-se por: o Não estabelecer uma relação emocional (directa) com a natureza; o Não promover uma visualização demonstrativa sobre efeitos atmosféricos diversificados, motivados (a título de modelo) pela refracção do sol e das sombras, atendendo às razões e variabilidade; o Não estipular, por recurso a procedimentos convencionalizados, por exemplo através da vista estimulada em planos sucessivos, os níveis capazes de sugerir um espaço tridimensional ou um equilíbrio irrevogável no domínio da composição;

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Cf. a propósito Fátima Lambert, “Joana Rêgo e a paisagem: vais mas não voltas”, Guimarães, Galeria fuga pela escada, Novembro de 2003 9 Rainer Maria Rilke, Frutos e Apontamentos, Lisboa, Relógio d’Água, 1996, p.101

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Não pretender a aparência do natural, o exercício habilidoso da representação verista que confunde imagens de diferente tipologia: imagem da percepção visual directa sob consignação dos fenómenos visíveis naturais com imagem da percepção estética suscitada pela habilidade imitativa da visão do natural; Não contemplar a posse mistificada de uma paisagem em que os fenómenos atmosféricos relembrem a presença de homens que se acautelam de intempéries quase divinas; Não usar as transformações insustentadas das forças da natureza como fonte ou intencionalidade exclusivas; Não receber contaminações (refinadas) integradas em edifícios clássicos ou vislumbradas em reconstruções arqueológicas; Não cumprir a simplificação e/ou a utilização de espaços vazios que conduziriam a identidade a um grau de abstracção elevado – contrário ao que Xia Gui, pintor activo entre 1190-1225, realizou; Não emanar (superficialmente?) das suas paisagens um qualquer desejo de que possuam um carácter votivo estereotipado; Não guiar as almas por caminhos punitivos, memórias de peregrinações ou celebrar locais sagrados…

Motivam-na, antes, alguns motivos que se relacionam com a concepção oriental da natureza, tal como nós, os ocidentais, a recebemos, combinamos e extrapolamos, quase a tornando “nossa”: o o o o o o o o o o o o o o

o sentido panteísta da natureza que se desdobra e dobra, num envolvimento e dinamismo míticos, até à sublimidade de um transcendentalismo panteísta – evocando (talvez?) linhas poéticas de um Teixeira de Pascoaes filosoficamente pictural; a inerência estrutural que na “pele/superfície” sabe concentrar o âmago das coisas naturais desocultando assim a sua verdade (Paul Klee); a atenção focada nos movimentos animados quase imperceptíveis de coisas e seres; a afirmação de paisagens independentes de quaisquer remissões ou indícios cognitivos directos (Mondrian); a construção de cenários planificados num espaço sem dono a quem importe delimitar usufruto; a adesão a imagens longínquas isoladas que existem sozinhas sem suportes alheios ou dependências restritivas; a impregnação de um dimensionamento cosmológico que insiste em anunciar-se através de certos elementos cromáticos e gráficos quase universais; a estipulação de uma hierarquia iconográfica evidente, fundada exclusivamente no domínio pictórico; a insinuação de características afectas a um simbolismo ocultado pela impositividade gráfica e cromática vigentes; o parentesco hermético com o mapeamento dos eremitérios antigos que dominavam do alto as montanhas e planícies, os desfiladeiros e florestas, as serpentes de água e seixos; a explanação panorâmica de certas paisagens comunga com visões internas, motivos hipnagógicos (ou hípnicos) quase; a familiaridade com a pintura de Mantegna, quando este presentifica fenómenos geológicos que, para serem registados, obrigaram à ascensão inóspita de montes (neste caso metafóricos) certamente inacessíveis; a visão microscópica que se confronta com a amplitude do olhar estendido sobre o horizonte – uma espécie de breve e suspenso paradoxo; a ênfase nos pressupostos de crescimento de árvores, em particular, de eucaliptos, plátanos ou salgueiros, essas linhas famintas que se lambuzam de cores.

Donde se conclui que a pintura de Rita Carreiro se desenvolve em prol de uma cartografia de rigor, articulada através de diferentes referenciais que a pintora movimenta como propriedade e território individualizados e única.

A instauração de ritmos cromáticos concisos gera efeitos ópticos, propiciados por reverberações que dinamizam a composição e direccionam o espectador. Os ritmos visuais resultam de linhas quasi-paralelas…que poderiam simbolizar a inevitabilidade do tempo cronológico, a sua quotidaneidade linear…cronometrada objectivamente…irreversível e sinuosa. Tratam-se, enfim, de ressonâncias pictóricas, recordando-nos certa polifonia de planos, típica da arte do Extremo-Oriente. Proporcionado este ambiente, as suas paisagens, longínquas ao nosso reconhecimento, evocam a condição sublime dos elementos, de substâncias, de matérias, não humanos mas orgânicos e vivos. “Estas são notáveis: cada uma Ligando-se à seguinte, como se fala Fosse uma representação imóvel. (…) Com ele, tu e eu Somos de repente o que as árvores tentam 10

Dizer-nos que somos…”

Os mapas da natureza exterior, as árvores e as paisagens de Rita Carreira transportam a estabilização da estrutura interna e pessoal. Provavelmente estão povoadas de árvores imperceptíveis, que se propagam e propagam até à dissolução dentro de si mesmas. A árvore, permita-se recordá-lo, é fonte simbólica que impregna todas as culturas. A imagem da árvore possui um papel iconográfico universal. Rica em referenciais díspares e variantes, viaja desde a contextualização mítica (substância e matriz diversificadora e comum) até à reinterpretação poética, teológica e filosófica, serviu fins racionais e ultimatos herméticos. Foi sujeito e objecto de cultos, mais ou menos perversos e originários. Concentra em si as forças cosmogónicas e expele pulsões retóricas. Sofreu mutações narrativas e pragmáticas – nos domínios artísticos e literários; acudiu às transfigurações das mentalidades, sustentou-as e interrogou-as. Mas, tem permanecido sempre uma imagem indestrutível vigente na imaginação humana. Árvore sagrada, árvore cósmica, árvore do conhecimento, árvore genealógica, árvore da liberdade, árvore dos mortos é uma forma fálica e matricial simultaneamente. A árvore é um lugar. Nalgumas das instalações, em que articula unidades pintadas (paisagens, árvores e mapas singulares) com espelhos circulares, geram-se reflexos que deambulam pelas paredes. Nestes casos, promove-se uma expansão mais radical da desconstrução cognitiva e visual directas, para obrigar a uma montagem perceptiva a concretizar por cada um dos espectadores. A percepção visual é compulsiva, a orientação no espaço consegue ser aleatória, trazendo-nos, todavia, de volta a uma rua de “sentido único”, com que nos seduziu e lamentou Walter Benjamin…11 “…s’il est permis de comparer la composition d’un paysage à la structure humaine… »12

(In memorium de A.V.)

Fátima Lambert Porto, 19 Dezembro 2003 10

John Ashbery, Auto-retrato num espelho convexo, “Algumas árvores”, Lisboa, Relógio d’Água, 1995, p.17 11 Veja-se do autor mencionado Rua de sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900, Lisboa, Relógio d’Água, 1992 12 Charles Baudelaire, “VII. Le paysage”, « Extrait de la « Lettre à M. le Directeur de la Revue Française sur le Salon de 1859 », in Revue Française, Juin/ Juillet 1859.

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