As antinomias de Kant sobre o caráter finito ou infinito do universo, no tempo e no espaço

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MARTINS, Roberto de Andrade. As antinomias de Kant sobre o caráter finito ou infinito do universo, no tempo e no espaço. Pp. 21-58, in: VILELA, Denise Silva; MONTEIRO, Alexandrina (eds.). Paradoxos do infinito e os limites da linguagem. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016. (ISBN 978-85-7861-439-3)

As antinomias de Kant sobre o caráter finito ou infinito do universo, no tempo e no espaço Roberto de Andrade Martins* Introdução Uma parte central da Crítica da Razão Pura do filósofo Immanuel Kant (1724-1804) contém a apresentação e discussão de quatro conflitos filosóficos (“antinomias”): pares de afirmações mutuamente contraditórias que podem ser ambas defendidas com argumentos igualmente convincentes. No primeiro deles, Kant expõe a tese de que o mundo tem um início no tempo e tem limites no espaço; e a antítese de que o mundo não tem início nem limites no espaço, mas é infinito em relação ao tempo e ao espaço. Ele apresenta então tanto a prova da tese quanto da antítese. Ao provar a tese, demonstra que a antítese está errada; e ao provar a antítese, demonstra que a tese está errada. Evidentemente, as duas afirmações mutuamente contraditórias não podem ser ambas verdadeiras. Kant acaba concluindo que ambas são falsas: o mundo não é finito nem infinito, no tempo e no espaço. A solução apresentada por Kant faz sentido dentro de sua visão filosófica geral (o idealismo crítico), que nega a própria existência do mundo como uma coisa em si mesma. Apresentaremos neste capítulo a argumentação de Kant sobre essa primeira antinomia, dando atenção especialmente aos conceitos de infinito que utiliza e ao modo como essa conceituação conduz ao paradoxo apresentado por ele. Apresentação da antinomia: as teses O nome “antinomia” foi uma invenção do próprio Kant. As antinomias podem ser consideradas semelhantes aos paradoxos, mas os dois termos não são sinônimos. Kant não definiu explicitamente essa palavra, mas a utilizou para descrever certos pares de conclusões mutuamente contraditórias sobre o mundo (compreendido como a totalidade incondicionada), cada uma das quais parece plausível e bem fundamentada na razão. Para cada par de afirmações opostas (uma tese e uma antítese), cada uma delas é provada indiretamente, através de um argumento que procura mostrar que seu oposto leva a um absurdo. Há, segundo Kant, quatro e apenas quatro antinomias possíveis, que se referem a temas fundamentais da cosmologia enquanto parte da metafísica. A forma “definitiva” pela qual Kant apresentou suas antinomias apareceu na Crítica da Razão Pura em 1781, e não sofreu alterações significativas da primeira para a segunda edição (EWING, 1938, p. 208). No entanto, suas ideias básicas apareceram dez anos antes (em *

Professor aposentado, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP); professor colaborador da Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (FESB) e da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Este trabalho foi elaborado quando o autor era professor visitante da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e pesquisador visitante do Instituto de Física de São Carlos (USP). E-mail: [email protected]

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1770), na Dissertação Inaugural que ele escreveu quando se tornou um professor regular da universidade de Königsberg (SMITH, 1918, p. 482). Sabe-se que a sua descoberta das antinomias teve influência decisiva na criação de sua filosofia crítica (AL-AZM, 1972, p. 1; BIRD, 2006, p. 661). O próprio Kant comentou, duas décadas depois: “Este produto da razão pura, em seu uso transcendente, é seu fenômeno mais notável, e tem o forte poder de despertar a filosofia de seu torpor dogmático e de incitá-la à difícil tarefa da crítica da própria razão” (KANT, 2004, p. 90, §50). Tanto a tese quanto a antítese da primeira antinomia de Kant podem ser divididas em duas partes, uma deles referente ao tempo e a outra referente ao espaço. Vamos, assim, apresentar separadamente esses quatro argumentos. Como a linguagem utilizada por Kant é extremamente complexa, em vez de citar literalmente o próprio texto da Crítica da Razão Pura apresentaremos uma paráfrase de sua argumentação. As demonstrações das antinomias sempre usam a técnica de redução ao absurdo (EWING, 1938, p. 209), ou seja, primeiramente assumem o oposto do que se quer provar, depois mostram que as consequências são absurdas, concluindo assim que esse oposto é falso e que a proposição inicial foi demonstrada (BIRD, 2006, p. 664). Esse método de argumentação, usado desde a Antiguidade, havia sido empregado com grande frequência por Clarke e Leibniz em sua famosa controvérsia1, que parece ter sido uma das inspirações de Kant (AL-AZM, 1972, p. 2). Vejamos, agora, as provas expostas por Kant. Tese 1a. O mundo tem um início no tempo. Prova: Se assumirmos que o mundo não tem um início no tempo, então já decorreu uma eternidade até qualquer instante do tempo. Então, já teria passado uma série infinita de estados do mundo. Mas a infinidade de uma série consiste precisamente no fato de que ela jamais pode ser completada por uma síntese sucessiva. Portanto, uma série já decorrida de estados do mundo é impossível, logo um início do mundo é uma condição necessária para sua existência; que era o primeiro ponto a ser provado. (KANT, 1998, p. 470; A426, B454) 2

O conceito de infinito que Kant utilizou neste argumento é aquele que se baseia em uma sequência ou série infinita, como a dos números naturais. Dada qualquer sequência de números naturais, podemos sempre continuá-la e acrescentar novos termos; por isso, essa sequência é infinita. Ela pode ser construída por adições sucessivas, ou através de um processo de síntese. No entanto, essa sequência não pode ser completada, ou seja, não podemos ter todos os números naturais escritos em um livro (ou mesmo em uma gigantesca biblioteca). Trata-se de um infinito potencial. O verdadeiro conceito (transcendental) de infinito é que as sucessivas sínteses unitárias [realizadas] para percorrer uma quantidade não podem ser jamais completadas. Essa quantidade contém, portanto, uma multiplicidade (das unidades escolhidas) que é maior do que qualquer número, e esse é o conceito matemático do infinito. (KANT, 1998, p. 472-474; B460)

A mesma ideia pode ser aplicada ao tempo futuro: a partir do presente, podemos pensar sobre uma série de estados futuros do universo; sempre podemos imaginar um estado que vem depois dos outros, ou seja, podemos conceber uma sequência infinita de estados futuros do 1

Trata-se de um famoso debate ocorrido nos anos 1715-1716 entre Samuel Clarke (defensor das ideias de Newton) e Gottfried Leibniz, a respeito de diversos temas de filosofia natural e teologia. Há uma tradução para o português dessa correspondência entre Leibniz e Clarke (LEIBNIZ, 1988). 2 Para a Crítica da Razão Pura, utilizei a excelente tradução inglesa de Paul Guyer e Allen Wood (KANT, 1998). Segui a tradição dos estudos kantianos, de indicar a paginação da primeira edição alemã antecedida pela letra A, e da segunda edição pela letra B.

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mundo; mas, também nesse caso, temos um infinito potencial. Não precisamos nem podemos pensar que essa sequência de infinitos estados futuros vai ser completada. Por isso, não surge nenhuma antinomia relativa ao tempo futuro (EWING, 1938, p. 210; MOORE, 1988, p. 213). Porém, se tentarmos pensar sobre um passado infinito, teremos problemas que não surgem quando tratamos do futuro. Pois o passado é algo já dado, e se o mundo tem uma duração infinita no passado, então já se passou um número infinito de estados diferentes do mundo (EWING, 1938, p. 212). A existência do mundo no tempo presente está condicionada à existência do mundo em todos os momentos do passado (KANT, 1998, p. 462; A412, B439). Mas como o conceito de infinito que está sendo utilizado é o de algo que não pode ser completado, chegamos a uma contradição. Portanto, um passado infinito é impensável e, consequentemente, deve ser rejeitado, chegando-se assim à conclusão oposta: o mundo teve um início no tempo. Tese 1b. O mundo é limitado por fronteiras no espaço. Prova: Suponhamos que, pelo contrário, o mundo fosse uma totalidade infinita de coisas que existem simultaneamente. Quando certa quantidade não está restringida por certas fronteiras, só podemos pensar sobre sua grandeza através da síntese de suas partes; e só podemos pensar sobre a totalidade dessa quantidade pela síntese já completada, ou seja, pela adição repetida de unidades uma à outra. Assim, para pensar sobre o mundo que preenche todo o espaço completo, seria necessário considerar como se já tivessem sido completadas as sucessivas sínteses de partes de um mundo infinito. Para a enumeração de todas as [infinitas] coisas coexistentes, seria necessário que já tivesse decorrido um tempo infinito, o que é impossível. Portanto, um agregado infinito real de coisas não pode ser considerado como um todo dado, logo não pode ser considerado como sendo dado simultaneamente. Consequentemente, o mundo não é infinito em sua extensão no espaço, mas sim está contido dentro de suas fronteiras, que é o segundo ponto [que precisava ser provado]. (KANT, 1998, p. 470-472; A426-428, B454-456)

Podemos conceber com facilidade um objeto muito grande, mas que tem limites ou fronteiras. Como podemos, no entanto, pensar sobre um objeto que não tem limites ou fronteiras? Precisamos pensar sobre uma de suas partes de cada vez, e ir avançando, adicionando novas partes3. Mas essa adição não termina nunca, se o objeto for infinito. Assim, a ideia de um objeto infinito nunca pode ser completada. Não devemos considerar, no entanto, que é apenas o nosso processo de imaginação que estabelece essa limitação. Suponhamos que uma criança ou adolescente nos diz que escreveu todos os números naturais em um caderno. Será que precisamos folhear o caderno para saber se isso é verdade ou não? É claro que nem precisamos olhá-lo, pois é impossível completar essa tarefa. O conjunto infinito dos números naturais não pode ser completado. Da mesma forma, um conjunto infinito de objetos não pode ser concebido como um todo completo. Podemos pensar sobre a possibilidade de ir acrescentando novas coisas (ou partes) a alguma coisa, aumentando progressivamente o tamanho desse todo, mas seria absurdo aceitar que se completou essa adição e que foi formado um todo infinito. Sadik Al-Azm reconstruiu o argumento dessa segunda parte da tese de um modo bastante interessante: 1. Assuma que “o mundo é uma totalidade infinita dada de coisas coexistentes”.

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Kant comentou em uma nota de rodapé: “O conceito de uma totalidade, neste caso, nada mais é do que a representação da síntese completa de suas partes, pois não podemos traçar esse conceito de uma intuição do todo (que é impossível, neste caso); podemos captá-lo, pelo menos como ideia, apenas pela síntese das partes até completá-la no infinito” (KANT, 1998, p. 470; A428, B456).

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2. A grandeza de uma quantidade que não é dada à intuição como sendo limitada “só pode ser pensada pela síntese de suas partes”. 3. Segue-se que para pensar a totalidade dessa grandeza (ou quantidade) precisamos completar o processo de síntese “pela adição repetida de unidades à unidade”. 4. Também se segue que para pensar o mundo infinito como um todo, deve ser completado o processo de “síntese de suas partes”. Mas, pela própria natureza de uma grandeza infinita, nenhum processo de síntese de suas partes jamais pode ser completado. 5. Portanto, o mundo é finito, porque “Um agregado infinito de coisas atuais não pode, assim, ser visto como um todo dado, nem, consequentemente, como dado simultaneamente”. (AL-AZM, 1972, p. 1)

Apresentação da antinomia: as antíteses Antítese 1a. O mundo não tem um início, sendo infinito em relação ao tempo. Prova: Suponhamos que ele [o mundo] tivesse um início. Como um início é uma existência precedida por um tempo no qual a coisa não existia, deveria haver um tempo precedente durante o qual o mundo não existia, ou seja, um tempo vazio. Mas é impossível o surgimento de qualquer coisa em um tempo vazio, porque nenhuma parte desse tempo tem em si, mais do que alguma outra parte, qualquer condição distinta de sua existência [do mundo] ou de sua não-existência, seja se assumirmos que ele [o mundo] surge por si próprio ou por alguma outra causa. Assim, muitas séries de coisas podem começar no mundo, mas o próprio mundo não pode ter um início, portanto ele é infinito no tempo passado. (KANT, 1998, p. 471; A427, B455)

Se o mundo (o universo como um todo) começou a existir há vinte bilhões de anos, por exemplo, então houve um tempo, antes disso, em que nada existia, pois Kant assume que o tempo e o espaço são infinitos (EWING, 1938, p. 213). Esse tempo anterior ao surgimento do mundo é totalmente homogêneo, ou seja, todos os momentos eram exatamente equivalentes e vazios. Dentro desse tempo totalmente homogêneo anterior ao universo, não há nenhum momento que seja diferente dos outros, por isso não pode ser concebida nenhuma causa pela qual o mundo começasse a existir neste e não naquele momento. Admitindo-se que nada pode surgir sem uma razão suficiente para seu surgimento (que é uma hipótese implícita no argumento apresentado por Kant), é impossível que o mundo pudesse surgir em algum desses momentos totalmente vazios e equivalentes. Assim, o mundo não pode ter tido um início, e deve ter uma duração infinita no passado. Kant, como quase todos os outros pensadores (até o século XX), acreditava que o universo era compreensível; e que qualquer acontecimento incompreensível (em particular: sem nenhuma razão) jamais poderia acontecer no universo. Devemos, é claro, distinguir entre aquilo que conhecemos e aquilo que não conhecemos; uma coisa poderia acontecer por um motivo que desconhecemos; mas não poderia acontecer sem motivo. Embora não fique explícito na argumentação das antíteses, Kant precisa do princípio da razão suficiente para fundamentar essas provas (AL-AZM, 1972, pp. 28, 30). Vamos fazer uma comparação para esclarecer esse ponto. Tomemos por hipótese a existência de um fio de cabelo perfeitamente homogêneo, ou seja, com a mesma composição, espessura e resistência em todos os pontos. Suponhamos que esse fio de cabelo vai sendo esticado, submetido a uma força de tração cada vez maior. Em que lugar ele vai se romper? Como (por hipótese) ele é homogêneo, com a mesma resistência em todos os pontos, não há nenhum motivo possível para que ele se rompa em um ponto e não em outro 4. Então, há 4

Este argumento de homogeneidade ou “indiferença” do fio de cabelo é mencionado por Aristóteles na sua obra Sobre o céu, onde apresenta também uma versão do famoso dilema do “asno de Buridan” (ARISTÓTELES, 1984, p. 486; De cælo, livro II, cap. 13, 295b30-34).

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apenas duas possibilidades: ou ele não se rompe em nenhum ponto; ou ele se rompe em todos os pontos ao mesmo tempo, virando pó. Qualquer outra possibilidade violaria o princípio de razão suficiente e é impensável. É claro que, se tomarmos um fio de cabelo real, e o submetermos a um experimento desse tipo, temos a expectativa de que ele vai de fato se romper em apenas um lugar. Isso é perfeitamente razoável, porque não podemos exigir que o fio de cabelo real tenha exatamente a mesma resistência em todos os pontos; provavelmente haverá um ponto mais fraco do que os outros, e a ruptura vai acontecer nesse ponto, mesmo se não pudermos determinar previamente qual é esse ponto. Retornemos, agora, à questão do surgimento do universo. Antes de seu início, o tempo é totalmente homogêneo e vazio, porque nada existia ainda (o universo é a totalidade das coisas que existem em cada instante). Não há nada de especial em algum desses momentos vazios que pudesse ser a razão do surgimento do mundo naquele instante. Então, por analogia com o fio de cabelo ideal, ou o universo não poderia surgir em nenhum momento, ou surgiria em todos eles (ou seja, teria sempre existido). Note que a antítese (assim como a tese) não pode ser aplicada ao tempo futuro (MOORE, 1988, p. 213). Não é absurdo pensarmos sobre um fim do universo, no futuro; pois os diferentes momentos futuros, antes que o mundo desapareça, são diferentes uns dos outros, e um deles, em particular, poderia ser a causa de seu desaparecimento. Antítese 1b. O mundo não tem limites, sendo infinito em relação ao espaço. Prova: Suponhamos que o mundo fosse finito e limitado no espaço. Então, ele existiria em um espaço vazio ilimitado. Assim, existiria uma relação entre as coisas e o próprio espaço. Como o mundo é um todo absoluto, fora do qual não existem objetos da intuição, então não existe fora dele nada semelhante ao mundo com que o mundo pudesse estar relacionado. A relação do mundo com o espaço seria uma relação entre o mundo e nenhum objeto. Essa relação, e a limitação do mundo pelo espaço vazio, não existe; portanto, o mundo não é limitado no espaço, tendo extensão infinita. (KANT, 1998, p. 471; A427-429, B455-457)

Kant pressupõe que o espaço é infinito e ilimitado (EWING, 1938, p. 213); apenas o mundo poderia ser finito e limitado. Nesse caso, fora do mundo haveria um espaço vazio. A fronteira do universo seria a superfície de separação entre o mundo e esse espaço vazio. O mundo estaria ocupando certo lugar e não outro no espaço. Poderíamos até supor que o mundo estivesse se movendo em relação a esse espaço. Mas todas essas relações entre o mundo (uma realidade) e o espaço vazio (que não é um objeto real) são desprovidas de significado (AL-AZM, 1972, p. 25). Podemos conceber um objeto estabelecendo uma barreira, fronteira ou limite de outro objeto – mas não podemos conceber que o espaço vazio tenha essa função. Podemos conceber que um objeto esteja nesta ou naquela posição em relação a outro objeto – mas não podemos conceber que esteja nesta ou naquela posição em relação ao espaço vazio. Podemos conceber que um objeto esteja parado ou em movimento em relação a algum outro objeto – mas não podemos conceber o repouso ou o movimento em relação ao espaço vazio. Estes são temas que haviam sido muito discutidos entre Clarke e Leibniz, em sua famosa disputa (AL-AZM, 1972, pp. 25-27). Assim como não podemos conceber o início do mundo em certo instante do tempo vazio homogêneo que precede seu início, também não podemos conceber o que o mundo comece em certo lugar do espaço vazio homogêneo. Não haveria razão ou motivo para essa fronteira ou limite estar em um lugar e não em outro. O universo seria irracional, incompreensível, se isso existisse.

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As outras antinomias Para satisfazer a natural curiosidade dos leitores, vamos apenas apresentar os enunciados das outras antinomias da Crítica da Razão Pura, que não serão analisadas aqui. Assim como a primeira, as demais também nascem da consideração de alguma coisa absoluta ou incondicionada que seria a base de tudo o que é condicionado, ou seja, as aparências ou fenômenos (BIRD, 2006, p. 663). A segunda antinomia apresenta a questão de saber se a matéria é constituída por partículas simples (como os átomos) ou se não existem esses elementos últimos, simples, da matéria. Envolve também a questão da divisibilidade finita ou infinita das substâncias e, indiretamente, a questão da divisibilidade infinita do espaço. Tese. Toda substância composta do mundo consiste em partes simples, e nada existe em lugar algum exceto o simples ou o que é composto pelos simples. Antítese. Nenhuma coisa composta do mundo consiste em partes simples, e em nenhum lugar existe qualquer coisa simples. (KANT, 1998, pp. 476-477; A434-435, B462-463)

A terceira antinomia questiona se tudo o que ocorre no mundo acontece de forma necessária e pode ser explicado pelas leis da natureza, ou se algumas coisas podem acontecer de forma livre (como, por exemplo, as ações humanas). Tese. A causalidade de acordo com as leis da natureza não é a única a partir da qual podem ser tiradas todas as aparências do mundo. Para explicá-las é também necessário assumir outra causalidade, pela liberdade. Antítese. Não há liberdade, mas tudo no mundo acontece apenas de acordo com as leis da natureza. (KANT, 1998, pp. 484-485; A444-445, B472-473)

Por fim, a quarta e última antinomia discute se devemos aceitar ou não a existência de um ser absolutamente necessário (Deus). Tese. Existe um ser absolutamente necessário que pertence ao mundo, ou que é sua causa. Antítese. Não existe qualquer ser absolutamente necessário, seja no mundo ou fora dele, como sua causa. (KANT, 1998, pp. 490-491; A452-453, B480-481)

A terceira e quarta antinomias não incluem qualquer discussão sobre o infinito. A segunda antinomia tem aspectos interessantes, sob o ponto de vista matemático5, pois analisa a própria composição do espaço (e do tempo), afirmando que o espaço não pode ser constituído de elementos simples indivisíveis – os pontos; e que o tempo não pode ser constituído de elementos simples indivisíveis – os instantes. Ambos (espaço e tempo) podem ser divididos indefinidamente, sendo constituídos por um número potencialmente infinito de partes, mas não estão divididos realmente em infinitas partes. Mas não vamos analisar estes argumentos, aqui. Todas as antinomias apresentadas por Kant surgem através de um mesmo processo de raciocínio. Cada fenômeno ou aparência que conhecemos é condicionada por outros; apenas o mundo, como um todo, seria incondicionado e completo. Porém, ao se tentar atingir essa totalidade incondicionada, é necessário pensar sobre séries de condições e condicionados, tais como as séries temporais de eventos que antecedem os outros, as séries de partes do mundo que incluem as outras, as séries de partes que formam um composto, a série de causas e a série de seres dependentes; quando essas séries são examinadas, surgem os diversos tipos de 5

Devemos notar que o próprio Kant diferenciava as duas primeiras antinomias das outras, chamando-as de “antinomias matemáticas” (BIRD, 2006, p. 662).

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contradições, pela tentativa de estabelecer um limite ou início dessas séries, ou pela tentativa de considerá-las infinitas (WOOD, 2010, pp. 247-250). Alguns esclarecimentos: espaço e tempo, universo Na primeira antinomia, Kant discute a possibilidade de que o mundo seja finito ou infinito no espaço e no tempo; mas não analisa o próprio espaço e o próprio tempo. Este é um ponto que não foi percebido por muitos dos comentadores das antinomias (AL-AZM, 1972, p. 8). Em passagens anteriores da Crítica da Razão Pura ele já havia esclarecido que o tempo e o espaço estão dentro de nós, não são coisas reais existentes fora de nós. Nossa forma de perceber os fenômenos do mundo pressupõe a existência do espaço e do tempo. Nossas percepções provêm, em parte, de alguma coisa externa a nós e, em parte, de algo que nos pertence. Espaço e tempo são apenas formas de nossa intuição dos fenômenos6; não vêm de fora de nós, e sim de dentro. Fazem parte de nossa constituição, de nosso modo de perceber os fenômenos. Assim, de acordo com Kant, quando olhamos à nossa volta, não estamos vendo realmente algo fora de nós, e sim construindo percepções que incluem uma estrutura que projetamos à nossa volta – o espaço – dentro de uma sequência que faz parte também de nosso modo de sentir o mundo – o tempo. Como o espaço e o tempo são apenas formas de nossa intuição dos fenômenos (e não coisas reais em si, externas a nós), não se aplicam a eles os mesmos raciocínios que Kant utilizou, nas antinomias, para o mundo. Todos os seres humanos concebem um espaço infinito, ilimitado, para todos os lados, à nossa volta. Todos os seres humanos concebem um tempo infinito, ilimitado, para o passado e para o futuro, a partir do atual presente. Kant aceita o espaço e o tempo como infinitos (EWING, 1938, p. 211). Mas esse espaço e esse tempo não são coisas reais fora de nós, por isso não surgem paradoxos quando lhes atribuímos o caráter de infinitos. Nossa intuição nos mostra coisas à nossa volta que ocupam certo espaço e que poderiam ocupar um espaço ainda maior (sem limites); e nos mostra fenômenos no passado (ou imaginados no futuro) que possuem certa duração, mas que poderiam ter uma duração ainda maior (sem limites). O espaço e o tempo que projetamos em nossa visão de mundo são suficientemente elásticos para acomodar qualquer objeto ou fenômeno, por maiores que sejam. Eles são infinitos apenas no sentido potencial – podem ser estendido tanto quanto se queira – mas nunca são infinitos reais, pois nunca temos a percepção de coisas infinitas preenchendo o espaço, nem a percepção de coisas eternas preenchendo o tempo. Podemos conceber uma série infinita de fenômenos no espaço e no tempo, mas esse é um infinito potencial e não algo que foi completado (EWING, 1938, p. 222). Os conflitos apenas surgem quando discutimos se o mundo (o universo) é finito ou não. Tanto nas teses quanto nas antíteses, supõe-se que o mundo seja algo real, fora de nós. Este é um pressuposto básico, que precisamos ter em mente ao refletir sobre as antinomias. Diversos autores não compreendem essa distinção. Norman Kemp Smith, por exemplo, afirmou: “Se o espaço e o tempo são vistos necessariamente como infinitos, não pode haver uma prova a priori [...] de que a série do mundo também não seja do mesmo tipo” (SMITH, 1918, p. 487). O conceito de mundo se baseia nos fenômenos que observamos; mas o próprio conceito de mundo não pertence ao campo dos fenômenos. Ele é uma ideia transcendental, correspondente à totalidade absoluta, incondicionada, na síntese das aparências ou fenômenos (KANT, 1998, p. 460; A407-408, B434). Observamos aparências ou fenômenos limitados e condicionados; nossa razão nos obriga a procurar uma totalidade absoluta, incondicionada, 6

A palavra “intuição” é a tradução mais comum utilizada para o termo alemão Anschauung utilizado por Kant. No entanto, não se trata de intuição no sentido de pressentimento não-racional. Anschauung significa aquilo que vemos ou percebemos através de nossos sentidos e que aparentemente faz parte de algo externo a nós, porém faz parte de nossa própria mente.

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completa, que ultrapassa todos os fenômenos; essa ideia transcendental (que ultrapassa o domínio dos fenômenos) é o conceito de mundo. Ao discutir as teses (de que o mundo é finito no espaço e no tempo), Kant utiliza o conceito de infinito. Ao discutir as antíteses (de que o mundo é infinito no espaço e no tempo), Kant utiliza, pelo contrário, o conceito de algo homogêneo e vazio (o espaço e o tempo desprovidos de qualquer objeto espaço-temporal). São dois tipos de argumentos bem diferentes. Alguns aspectos históricos desses argumentos Kant não criou as oposições e os argumentos presentes nas antinomias. Ele se baseou em uma longa tradição de discussão filosófica, existente desde a Antiguidade grega, ou antes disso. A questão da finitude ou infinitude do mundo no espaço pode ser encontrada em Anaximandro e Aristóteles (WOOD, 2010, p. 252). O próprio Kant indica que os atomistas, como Epicuro e seus seguidores (que ele considera como “empiristas”), defendiam as antíteses apresentadas – em particular, que o universo era infinito no espaço e no tempo; e que Platão e seus seguidores (que ele considera como “dogmáticos”), defendiam as teses, incluindo a de que o universo era finito no espaço e tinha um início no tempo (KANT, 1998, pp. 498-501; A466-472, B494-500; GRIER, 2006, p. 200). O argumento da tese da primeira antinomia é discutido claramente por Tomás de Aquino (MOORE, 1988, p. 214) e também por outros autores medievais. Por outro lado, sabe-se que Kant foi também fortemente influenciado por discussões filosóficas mais recentes (dos séculos XVII e XVIII), como o debate entre Leibniz e Clarke (representante do pensamento newtoniano) que incluiu, entre outras coisas, disputas a respeito do espaço e do tempo. A tese da primeira antinomia representa ideias de Newton, e a antítese representa as ideias defendidas por Leibniz desse debate (AL-AZM, 1972, pp. 7, 9). O princípio da razão suficiente já era utilizado em argumentos filosóficos, desde a Antiguidade, sem esse nome; mas Leibniz lhe deu essa denominação e o popularizou, no final do século XVII. Na disputa entre Leibniz e Clarke, os dois lados aceitavam esse princípio, embora o utilizassem de formas bem diferentes (AL-AZM, 1972, pp. 31-32). Os pressupostos teológicos dos debatedores tinham grande influência em suas conclusões. Clarke (seguindo Newton) aceitava a existência de um tempo e um espaço absolutos infinitos; ao mesmo tempo, supunha que o universo era finito espacialmente e que tinha sido criado em certo instante. Ele teria criticado o argumento das antíteses de Kant dizendo que, de fato, nada no tempo infinito vazio poderia determinar o surgimento do mundo em um momento ou em outro; mas que nesse tempo infinito vazio existia Deus, e que a divindade poderia decidir, livremente, criar o universo em um momento ou em outro, por sua vontade (BIRD, 2006, p. 668). Da mesma forma, todas as regiões do espaço infinito são iguais entre si, mas Deus poderia decidir colocar o universo em uma dessas regiões e não em outra, livremente, por sua vontade. Ou seja: o princípio da razão suficiente não estabelece limites ou condições para a vontade divina, segundo Clarke. Para Leibniz, pelo contrário, nem Deus pode agir sem uma razão compreensível para suas decisões e escolhas (AL-AZM, 1972, pp. 32-33). Por isso, Leibniz concordaria com a argumentação apresentada por Kant nas antíteses. A conclusão de Kant sobre as antinomias Kant considerava que tanto os argumentos apresentados a favor das teses quanto os argumentos apresentados a favor das antíteses eram igualmente bem fundamentados (KANT, 2004, pp. 91-92; §52; BIRD, 2006, p. 666). No entanto, como a tese e a antítese eram mutuamente contraditórias, era impossível que ambas fossem verdadeiras ao mesmo tempo. Note-se, além disso, que cada prova utilizava o recurso da redução ao absurdo, utilizando como hipótese inicial sua própria negação (ou seja, a afirmação contrária) e mostrando, 8

depois, que ela era inaceitável. Assim, a aceitação da tese seria necessariamente a negação da antítese, e vice-versa. Kant considerou que essa oposição antitética era uma consequência rigorosa e natural do uso da razão humana (SMITH, 1918, p. 480; EWING, 1938, p. 209) e não uma falha de raciocínio ocorrida de um lado ou do outro da argumentação: Aqui se mostra um novo fenômeno da razão humana, ou seja, uma antitética totalmente natural, para a qual não se precisa ponderar ou dispor de armadilhas artificiais; a razão, por si própria, cai naturalmente nela, de forma inevitável. Assim, ela protege a razão contra o entorpecimento de uma convicção imaginária, como aquela que é produzida por uma ilusão unilateral; porém, ao mesmo tempo, leva a razão à tentação de se render a uma falta de esperança cética, ou então a assumir uma atitude de dogmatismo teimoso, fixando sua mente rigidamente a certas afirmações, sem dar um julgamento justo aos fundamentos da oposição. Qualquer das alternativas [ceticismo ou dogmatismo] é a morte de uma filosofia saudável [...] (KANT, 1998, p. 460; A407, B433-434)

Uma pessoa que estude pela primeira vez essas antinomias provavelmente pensará que um dos dois lados está errado, e que deve ser possível descobrir qual argumento está correto, e qual está equivocado. O próprio Kant, até aproximadamente 1770, tinha esse tipo de opinião. No entanto, ele acabou chegando a um novo modo de compreender a situação. Passou a admitir que os dois lados estavam equivocados, e que havia algo implícito tanto na tese quanto na antítese que era preciso rejeitar. Antes de expor sua interpretação, é conveniente introduzir um exemplo que ele mesmo apresentou em outra obra, Prolegômenos a qualquer metafísica futura7 (KANT, 2004, p. 93; §52b). Duas proposições mutuamente contraditórias podem ambas ser falsas, se o próprio conceito subjacente a elas for autocontraditório. Podemos ver um exemplo disso nestas duas proposições: “Um círculo quadrado é redondo” e “Um círculo quadrado não é redondo”. Elas são contraditórias e, sem examiná-las detalhadamente, afirmaríamos que uma e só uma delas deve ser verdadeira, e a outra falsa. Mas a primeira, “Um círculo quadrado é redondo” é falsa, pois esse círculo é quadrado; e a segunda, “Um círculo quadrado não é redondo” também é falsa, pois ele é um círculo. O próprio conceito de círculo quadrado faz com que ambas proposições contraditórias sejam falsas. Pelo princípio do terceiro excluído, não há qualquer outra possibilidade além dessas duas; portanto, nada pode ser afirmado a respeito desse conceito contraditório; nada é pensado quando nos referimos a esse conceito, que é vazio (AL-AZM, 1972, p. 37). No caso das antinomias, existe também um conceito contraditório que faz com que tanto a tese quanto a antítese sejam falsas (KANT, 2004, p. 93; §52c). A contradição está oculta, na suposição implícita de que existe um mundo sensível que existe em si mesmo, que tem certa grandeza ou extensão no espaço e no tempo (MOORE, 1988, p. 216). Se admitirmos isso, então esse mundo deve ter uma extensão finita ou infinita no espaço e no tempo. Porém, os argumentos apresentados a favor da tese e da antítese mostram que nenhuma dessas alternativas pode ser admitida. Chegamos a um impasse. No entanto, existe uma porta de escape: o mundo pode não ter qualquer extensão, porque não é algo real, externo à nossa intuição. O mundo não é uma coisa em si, é apenas um tipo de representação que nós criamos. O objeto sobre o qual se está discutindo é apenas uma miragem (KANT, 1998, p. 468; A423, B451). Há uma interessante comparação apresentada por Kant. Se uma pessoa disser que qualquer objeto ou tem um aroma agradável ou tem um aroma desagradável, podemos 7

A palavra “prolegômenos”, proveniente do grego, significa preâmbulo ou introdução, aquilo que antecede a parte principal de uma obra.

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mencionar que há uma terceira possibilidade: ele pode não ter aroma nenhum. Da mesma forma, além das alternativas de que o mundo é infinito ou que o mundo é finito, há uma terceira possibilidade: ele pode não ter uma grandeza determinada (KANT, 1998, p. 517; A503-504, B531-532). Se, em vez de tentarmos pensar sobre o mundo como algo em si mesmo, aceitarmos que apenas temos acesso aos fenômenos, à nossa experiência, à aparência – então os problemas desaparecem. Somo levados a captar todos os objetos e fenômenos como estando no tempo e no espaço, mas esse tempo e esse espaço fazem parte de nós, são nossa contribuição para a criação dos fenômenos. Não precisamos supor que existe um espaço e um tempo externos a nós, no qual existem as coisas em si mesmas. Se admitirmos que os objetos dos sentidos existem apenas em nossa experiência, tudo se resolve de modo satisfatório. Nossa experiência dos fenômenos, no tempo e no espaço, não nos permite nem ter a experiência de um mundo infinito, nem de um mundo finito. Assim, tanto a tese quanto a antítese são meras ilusões criadas pela nossa razão, semelhantes às ilusões sensoriais que podemos ter (SMITH, 1918, p. 480; EWING, 1938, p. 209). Porém, são ilusões de um tipo muito especial: [...] esta proposição e seu oposto trazem consigo não uma mera ilusão artificial que desaparece logo que alguém consegue compreendê-la, mas uma ilusão natural e inevitável, que ainda ilude embora não engane, mesmo quando uma pessoa não é mais tapeada por ela; assim, ela pode ser tornada inofensiva, mas nunca destruída. (KANT, 1998, p. 467-468; A422, B449-450)

Kant caracteriza a “ilusão transcendental” como sendo causada pela tendência da razão, de tomar a necessidade subjetiva de encontrar uma totalidade incondicionada e transformá-la em uma suposta característica objetiva das coisas, supondo que essa totalidade incondicionada existe (GRIER, 2006, p. 196). Sobre a validade dos argumentos das antinomias As antinomias de Kant têm sido estudadas e discutidas há mais de duzentos anos. As posições dos diversos autores, com relação a seus argumentos, variam muito. Devemos, é claro, distinguir entre pessoas que se dedicaram seriamente a estudar Kant e, depois de uma longa análise, chegaram a alguma conclusão; e outras que têm um conhecimento superficial do pensamento de Kant e, no entanto, emitem opiniões a seu respeito. As pessoas do segundo grupo (entre as quais, infelizmente, podemos incluir importantes matemáticos, físicos e astrônomos) merecem de nós a mesma atenção que elas próprias deram a Kant: muito pouca. Dos que estudaram detalhadamente o trabalho de Kant, alguns consideram que sua argumentação é válida. Muitos consideram que é totalmente inválida. Outros consideram que apenas uma parte da argumentação seria válida. Norman Kemp Smith, cuja análise da Crítica da Razão Pura influenciou fortemente os leitores de língua inglesa durante décadas (BIRD, 2006, p. xi), afirma que “suas provas, seja das teses ou das antíteses, são inconclusivas em todos os casos” (SMITH, 1918, p. 483). No entanto, pode-se dizer que é a interpretação de Kemp Smith sobre os argumentos de Kant que está equivocada, e não os próprios argumentos. No caso específico desse autor, podemos perceber que ele estava fortemente comprometido com a visão religiosa de criação do universo, e por isso não colocava em dúvida que o mundo tivesse um início no tempo, mesmo se isso for incompreensível: “A natureza da ação criadora permanecerá misteriosa e incompreensível, mas isso não é uma razão suficiente para negar sua possibilidade” (SMITH, 1918, p. 487). Porém, fé não é filosofia; e Kant está discutindo filosofia, e não fé. Kemp Smith, na verdade, ainda estava mergulhado no “torpor dogmático” ao qual Kant havia se referido (KANT, 2004, p. 90, §50). 10

As reações dos diferentes autores dependem, entre outras coisas, de suas próprias posições filosóficas, bem como daquilo que está em voga no momento. Em meados do século XX, quando a filosofia analítica estava em seu auge, era muito difícil encontrar alguém que elogiasse os argumentos de Kant. A situação atual é diferente, e o respeito por Kant tem aumentado (WOOD, 2010, p. 247). Porém, não existiu nem existe unanimidade sobre o próprio significado dos detalhes de cada argumento e, muito menos, sobre sua validade (BIRD, 2006, pp. xi-xiii, 8-13). Devo confessar que sinto uma forte irritação quando uma pessoa que não estudou esse assunto de forma profunda, mas leu um único trabalho sobre o assunto, apresenta seu autor como se tivesse resolvido todos os problemas e encontrado uma saída genial das antinomias de Kant. Essas pessoas me fazem lembrar de Augustus de Morgan, que iniciou sua obra sobre paradoxos apresentando uma metáfora. Suponhamos que uma pessoa nunca tivesse visto uma mosca; e um inseto desses aparecesse diante dela e tentasse convencê-la de que era maior do que um elefante, invocando vários argumentos, como as leis da perspectiva, para defender sua alegação. A pessoa poderia, em princípio, ter dificuldades em rejeitar a alegação da mosca. Porém, se surgisse um enxame com milhares de moscas, todas zumbindo e declarando ser maiores do que o elefante; e todas dando razões contraditórias para suas alegações, e acusando as outras de estarem erradas; neste caso, a pessoa poderia simplesmente dizer: “Minhas pequenas amigas, a alegação de cada uma de vocês é destruída pelas outras” (DE MORGAN, 1872, p. 1). Da mesma forma, cada um dos trabalhos que “soluciona” as antinomias de Kant, visto separadamente, parece grandioso; mas quando vemos dezenas ou centenas deles reunidos, todos eles apresentando argumentos incompatíveis entre si e todos eles alegando que são os únicos que estão corretos, é melhor deixá-los de lado. Em muitos comentários recentes sobre as antinomias de Kant encontramos afirmações de que seus argumentos foram invalidados pelos avanços posteriores da matemática – como a criação das geometrias não-euclidianas e a teoria dos números transfinitos de Cantor. De fato, há aspectos da argumentação de Kant que dependem de forma crucial da concepção que ele aceitava acerca da geometria (a euclidiana) e da sua conceituação de infinito. Nas geometrias não-euclidianas podemos ter um espaço finito mas sem limites, uma possibilidade que Kant jamais poderia imaginar. Por outro lado, se o próprio conceito de infinito que Kant utilizava for abandonado, é evidente que suas conclusões também não poderão se sustentar. É claro que o pensamento de Kant – como o de qualquer outro pensador – está inserido em um contexto histórico determinado; e que desenvolvimentos posteriores podem entrar em conflito com esse pensamento. Nem a filosofia nem a matemática são imutáveis. Por outro lado, há também alegações de que os avanços recentes da física e da cosmologia invalidam os argumentos de Kant. A teoria cosmológica mais aceita, atualmente, é uma versão atualizada do big-bang, que admite um início do universo no tempo. Devemos alertar que essa teoria tem problemas, e que muitas pessoas competentes não a aceitam (MARTINS, 2012, pp. 209-226). No entanto, mesmo se essa teoria for considerada correta, ela apenas pode fazer afirmações sobre o início da fase do universo que conhecemos. Não pode afirmar que houve um início absoluto do universo, no início do big-bang. A cosmologia relativística é compatível com a ideia de que, antes do big-bang, poderia ter existido um universo em contração, produzindo um big-crunch de onde teria se originado o big-bang (MARTINS, 2012, p. 226). A teoria do big-bang é totalmente irrelevante para a discussão das antinomias de Kant. Após esses comentários, não seria significativo apresentar aqui minha simples opinião sobre as antinomias. É mais útil discutir com algum detalhe certos aspectos da argumentação de Kant, especialmente seu conceito de infinito.

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Os conceitos de infinito utilizados por Kant Logo após expor as teses da primeira antinomia, Kant apresentou alguns comentários sobre o conceito de infinito: “O verdadeiro conceito (transcendental) de infinitude é que a síntese sucessiva da unidade na quantidade percorrida nunca pode ser completada. Essa [quantidade] contém, portanto, uma multiplicidade das unidades dadas que é maior do que qualquer número, e esse é o conceito matemático do infinito” (KANT, 1998, p. 472-474; B460). Tal conceito de infinito utilizado por Kant corresponde à ideia de um processo infinito, e não de um resultado infinito. Uma ideia semelhante de infinito pode ser encontrada em pensadores da Antiguidade, como Aristóteles, que considera tanto o infinito potencial obtido pelas sucessivas divisões de uma grandeza, quanto pelas sucessivas adições de uma grandeza (ARISTÓTELES, 1984, vol. 1, pp. 347-354; Physica, livro III, caps. 4-8). Em vários de seus argumentos, Aristóteles considera que o infinito é aquilo que não pode ser atravessado ou completado (WOOD, 2010, p. 252). Porém, é plausível que Kant tenha tomado esse conceito de John Locke, que o influenciou fortemente (AL-AZM, 1972, pp. 12-13): Qualquer um que tem alguma ideia sobre um dado comprimento de espaço, como de um pé, descobre que é capaz de repetir essa ideia: e unindo-a à anterior, produz a ideia de dois pés; e pela adição de uma terceira, três pés; e assim por diante, sem jamais chegar a um fim de suas adições [...] depois de continuar suas duplicações em seus pensamentos, e ampliar sua ideia tanto quanto deseje, ele não tem razão nenhuma para parar, nem está um mínimo mais próximo do fim de tal adição do que estava quando começou. Como ainda permanece o mesmo poder de ampliar sua ideia de espaço por outras adições, ele toma a ideia de um espaço infinito. [...] Penso que é uma sutileza significativa dizer que devemos distinguir cuidadosamente entre a ideia de infinidade do espaço, e a ideia de um espaço infinito. A primeira nada é senão uma suposta progressão interminável da mente, sobre a repetição de ideias de espaço que lhe agradarem; mas ter realmente na mente a ideia de um espaço infinito é supor que a mente já percorreu e realmente tem uma visão de todas essas ideias repetidas de espaço que uma repetição interminável nunca pode representar [à mente] de modo completo; o que traz consigo uma clara contradição. (LOCKE, 1892, v. 1, pp. 331-332, 335; Essay, livro II, cap. 17, §§ 3, 7)

Adrian Moore distingue duas grandes classes de conceitos de infinito: (1) aquele que envolve ideias de algo ilimitado, que não termina, que não pode ser medido, incompleto – algo que, dada qualquer parte dele, sempre existe alguma coisa a mais a ser adicionada; (2) aquele que envolve ideias de algo completo, absoluto, perfeição, totalidade. O primeiro grupo transmite um conceito de um infinito potencial, sugerindo um infinito que está fora, além daquilo que é conhecido. O segundo grupo transmite um conceito de um infinito atual, dado, que está dentro daquilo que é conhecido. Moore denomina o primeiro conceito de “matemático”, e o segundo de “metafísico” (MOORE, 1988, pp. 205-206). Dois exemplos simples, que ocorrem repetidamente na história da filosofia, são o da série dos números naturais (infinito “matemático”) e o conceito de Deus (infinito “metafísico”). Kant utiliza os dois tipos de infinito. Quando se refere aos fenômenos ou aparências, aos conceitos empíricos, aquilo que é dado em nossa experiência, ele utiliza o infinito “matemático”, que indica uma coisa incompleta, à qual sempre pode ser adicionada mais alguma coisa. No entanto, ao se referir à realidade, a algo que transcende nossa experiência dos fenômenos, à “coisa em si”, ele utiliza o infinito “metafísico” (MOORE, 1988, p. 206). Porém, ele não utiliza esses dois adjetivos para distinguir as duas classes de infinito, o que torna às vezes difícil compreender e distinguir suas ideias.

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O espaço e o tempo, para Kant, são infinitos no sentido “matemático”, que não envolve qualquer contradição; são ilimitados (MOORE, 1988, p. 207). Eles não constituem uma realidade externa a nós, e sim formas de intuição, a estrutura oriunda de nós mesmos na qual encaixamos os fenômenos que recebemos. Essa estrutura precisa ser suficientemente ampla para poder conter qualquer experiência, por mais ampla que ela seja no tempo e no espaço. Não pode ter limites, sempre pode abranger algo maior; mas não é um infinito “metafísico”, completo, dado. Não se deve pensar que a infinitude (“matemática”) do espaço e do tempo tenha por consequência a possibilidade de captarmos em nossa experiência algum fenômeno infinito. Na verdade, Kant nega tal tipo de possibilidade. É dentro dessa estrutura teórica que Kant coloca em discussão se o mundo seria uma realidade finita ou infinita no espaço e no tempo; referindo-se, agora, à ideia de um infinito “metafísico”. O mundo é definido por Kant como a totalidade incondicionada dos objetos espaço-temporais, a síntese completa de todos os objetos condicionados e finitos. As antinomias procuram mostrar que esse conceito de mundo não pode ser finito, nem infinito. Em outras palavras: o mundo, considerado como uma realidade no espaço e no tempo, não existe (MOORE, 1988, p. 212). Há, no entanto, um sentido no qual o mundo existe, para Kant: ele é uma ideia (não uma realidade) que podemos e devemos utilizar – mas sempre sabendo que não é uma realidade dada, algo em si mesmo. A ideia de um mundo infinito, completo, nos leva a procurar aquilo que ainda não conhecemos; e essa é a utilidade dessa ideia (GRIER, 2006, p. 204). Devemos proceder como se o mundo existisse (MOORE, 1988, p. 216). Kant também indicou, em certo ponto de sua discussão, um outro conceito matemático de infinito que ele não utilizou na sua argumentação: Eu também poderia ter dado uma prova plausível da tese pressupondo um conceito defeituoso de infinidade de uma dada grandeza, de acordo com o costume dos dogmáticos. Uma grandeza é infinita se não for possível qualquer outra maior do que ela (ou seja, maior do que o múltiplo de uma dada unidade contida nela)8. Mas nenhuma multiplicidade é a maior, porque sempre podem ser adicionadas a ela uma ou mais unidades. Portanto, uma dada grandeza infinita e também um mundo infinito (tanto em relação à série do [tempo] passado quanto em sua extensão) é impossível; assim, o mundo é limitado em ambos os aspectos. (KANT, 1998, p. 472; B458)

Este é um ponto importante, que não costuma ser enfatizado pelos comentadores da Crítica da Razão Pura. Kant considerou que essa definição do infinito seria defeituosa; e que introduzi-la seria uma estratégia inadequada para chegar à prova da tese. Inadequada, porque a conclusão da impossibilidade estaria na própria definição do infinito, ou seja, já estaria pressuposta antes da apresentação do argumento. Podemos acrescentar que, se essa definição fosse utilizada, poderíamos demonstrar que a duração do mundo no futuro também não poderia ser infinita – pois nada pode ser infinito quando se utiliza um conceito de um infinito impossível. Entretanto, o conceito que Kant efetivamente utilizou permite aceitarmos que esse futuro do universo seja infinito. Um conceito impossível do infinito também não permitiria afirmar que o tempo e o espaço (como formas de intuição) fossem infinitos. Enfim, o uso desse outro conceito de infinito mudaria toda a argumentação de Kant e invalidaria diversas de suas análises.

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Este é um conceito de infinito semelhante ao proposto por René Descartes: “uma coisa real que é incomparavelmente maior do que todas aquelas que são finitas” (AL-AZM, 1972, p. 41).

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Considerações finais Há certa semelhança entre as antinomias de Kant e os paradoxos de Zenão – se ambos forem bem compreendidos em sua profundidade filosófica9. Os filósofos Eleatas, como Parmênides e Zenão, não recusavam as aparências que percebemos, ou seja, não negavam que existe a aparência de multiplicidade das coisas e de movimento nos fenômenos que conhecemos. Negavam, porém, que a realidade pudesse ser múltipla ou sofrer mudanças. Essa diferença entre fenômenos e realidade é também essencial na argumentação de Kant. Além disso, tanto Zenão quanto Kant procuram mostrar que quando se tenta atribuir à realidade certas propriedades (o movimento, no caso dos Eleatas; ou a existência de um mundo com certa extensão, no caso de Kant) somos levados a contradições. Nos dois casos, chega-se à conclusão de que a realidade não é aquilo que geralmente acreditamos que ela é. É relevante mencionar que Kant elogia Zenão e o defende de algumas críticas de Platão (KANT, 1998, p. 517; A502, B530). No entanto, o próprio Kant fez questão de se distanciar do idealismo dos Eleatas, criticando sua postura epistemológica, que assim resumiu: “Todo conhecimento que vem através dos sentidos e da experiência não passa de pura ilusão; só existe a verdade nas ideias do entendimento e na razão pura”. Para Kant, pelo contrário, “Todo conhecimento das coisas a partir do mero entendimento ou da razão pura não passa de pura ilusão; existe verdade apenas na experiência” (KANT, 2004, pp. 125-126). Esta rápida comparação entre Kant e Zenão nos permite fazer alguns comentários importantes sobre o estudo dos paradoxos do infinito que surgiram em contextos que não eram matemáticos. Sob o ponto de vista de um professor ou estudante de matemática, há uma tendência natural a ressaltar exclusivamente os aspectos puramente matemáticos desses episódios. No entanto, quando ignoramos o próprio contexto filosófico em que um argumento foi desenvolvido, perdemos seu significado. Além disso, sem esse contexto e seus detalhes, podemos confundir coisas totalmente diferentes, como os paradoxos de Zenão e as antinomias de Kant, que possuem realmente algumas semelhanças, mas muitas diferenças. São os diferentes contextos, os detalhes e as diferenças que constituem a riqueza de todos esses episódios. Também é importante compreender o contexto histórico no qual surgiram esses episódios; no caso de Kant, o desenvolvimento das antinomias dependeu de um conceito específico de infinito aceito na época, e também da ideia de um espaço infinito (euclidiano) como a única possibilidade; foi também fortemente influenciado pelas discussões filosóficas ocorridas durante o século XVIII, como o debate entre Leibniz e Clarke. Se Kant tivesse desenvolvido seu trabalho filosófico no século XX, precisaria ter levado em conta os novos resultados matemáticos do século anterior (a teoria dos transfinitos de Cantor, e as geometrias nãoeuclidianas). Ao estudar pela primeira vez as antinomias de Kant, uma pessoa deve estar ciente de que está penetrando em um universo conceitual e filosófico novo e estranho. Um professor ou estudante de matemática pode ter enorme dificuldade para compreender Kant; um professor ou estudante de filosofia também, claro. Compreender com profundidade qualquer um dos grandes filósofos é uma tarefa árdua, que pode exigir vários anos de dedicação. A intenção deste capítulo não era (nem podia ser) a de explicar toda a filosofia de Kant, ou a parte dessa filosofia que está mais diretamente relacionada com a sua primeira antinomia. Isso exigiria um livro bastante grosso. Porém, espero que este texto tenha conseguido não apenas expor a primeira antinomia de Kant, mas também apresentar, de forma razoavelmente acessível, uma parte do contexto filosófico em que ela se insere. 9

Os paradoxos de Zenão, assim como as antinomias de Kant, não são problemas da matemática e sim filosóficos, embora façam uso de conceitos matemáticos (PAPA-GRIMALDI, 1996; CAJORI, 1920).

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Agradecimentos O autor agradece o apoio recebido por parte da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que possibilitou a realização desta pesquisa. Referências bibliográficas AL-AZM, Sadik J. The origins of Kant’s arguments in the antinomies. Oxford: Clarendon Press, 1972. ARISTÓTELES. The complete works of Aristotle. The revised Oxford translation. Edited by Jonathan Barnes. Princeton: Princeton University Press, 1984. 2 vols. BIRD, Graham. The revolutionary Kant. A commentary on the Critique of Pure Reason. Chicago: Open Court, 2006. CAJORI, Florian. The purpose of Zeno’s arguments on motion. Isis, 3 (1): 7-20, 1920. DE MORGAN, Augustus. A budget of paradoxes. London: Longmans, Green, and Co., 1872. EWING, Alfred Cyril. A short commentary on Kant’s Critique of Pure Reason. Chicago: The University of Chicago Press, 1938. GRIER, Michelle. The logic of illusion and the antinomies. Pp. 192-206, in: BIRD, Graham (ed.). A companion to Kant. Malden: Blackwell, 2006. KANT, Immanuel. Critique of pure reason. Trad. Paul Guyer, Allen W. Wood. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. KANT, Immanuel. Prolegomena to any future metaphysics that will be able to come forward as science. Trad. Gary Hatfield. Cambridge: Cambridge University Press, 2004. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Correspondência com Clarke. Trad. Carlos Lopes de Mattos. Pp. 233-298, in: Leibniz II (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1988. LOCKE, John. Locke’s philosophical works. London: George Bell & Sons, 1892. 2 vols. MARTINS, Roberto de Andrade. O universo. Teorias sobre sua origem e evolução. 2ª edição. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2012. MOORE, Adrian William. Aspects of the infinite in Kant. Mind, new series, 97 (386): 205223, 1988. PAPA-GRIMALDI, Alba. Why mathematical solutions of Zeno’s paradoxes miss the point: Zeno’s one and many relation and Parmenides’ prohibition. The Review of Metaphysics, 50: 299-314, 1996. SMITH, Norman Kemp. A commentary to Kant’s ‘Critique of Pure Reason’. London: Macmillan, 1918. WOOD, Allen W. The antinomies of pure reason. Pp. 245-265, in: GUYER, Paul (ed.). The Cambridge companion to Kant’s Critique of Pure Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

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